O FALSO PROFETA
Karl Barth1
O falso profeta é o pastor que agrada a todo mundo. Seu dever é dar
testemunho de Deus, mas ele não vê a Deus e prefere não o ver porque vê
muitas outras coisas.
Segue seus pensamentos humanos, conserva-se interiormente
calmo e seguro, evita habilmente tudo quanto incomoda. Não espera senão
poucas coisas ou mesmo nada da parte de Deus.
Pode calar-se, mesmo quando vê homens atravancando seus
caminhos de pensamento, de opiniões, de cálculos e de sonhos falsos, porque
eles querem viver sem Deus.
Retira-se sempre quando devia avançar. Compraz-se em ser
chamado pregador do Evangelho, condutor espiritual e servidor de Deus, mas
só serve aos homens.
Sonha, às vezes, que fala em nome de Deus, mas não fala a não ser
em nome da Igreja, da opinião pública, das pessoas respeitáveis e da sua
pequena pessoa.
Ele sabe que, desde agora e para sempre, os caminhos que não
começam em Deus não são caminhos verdadeiros, mas não quer incomodar
nem a si mesmo, nem aos outros; por isso é que pensa e diz: "Continuemos
prudentemente e sempre alegres em nosso cominho atual; as coisas se
arranjarão". Ele sabe que Deus quer tirar os homens da impiedade e que a luta
espiritual deve ser travada. No entanto, prega a "paz", a paz entre Deus e o
mundo perdido que está em nós e fora de nós. Como se tal paz existisse!
Sabe que seu dever consiste em proclamar que Deus quis uma nova
vontade, uma nova vida; mas não, ele deixa reinar o espírito do medo, do
engano, de Mamon, da violência - a muralha construída pelo povo (Ez.13: 10),
1 Karl Barth foi um dos maiores teólogos do século XX. Nasceu na cidade de Basiléia (Suíça) em 10 de maio de 1886 e morreu na mesma cidade em 10 de dezembro de 1968. Este artigo originalmente destinado aos pastores pode também ser aplicado aos cristãos em geral.
o muro oscilante e manchado. Ele o disfarça pintando de cores suaves e
consoladoras da religião para o contentamento de todo o mundo.
Eis aí o falso profeta!
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
1. Definições fundamentais da pregação
2. Formas essenciais da pregação
2.1.A pregação deve conformar-se com a revelação
2.2.Forma eclesial da pregação
2.3.Fidelidade doutrinal da pregação
2.4.Fidelidade apostólica da pregação
2.5.Forma provisória da pregação
2.6.Forma bíblica da pregação
2.7.Originalidade da pregação
2.8.A pregação deve adaptar-se à comunidade
2.9.Inspiração e pregação
3. Preparação da pregação
3.1.Escolha do texto
3.2.A preparação: do texto ao sermão
3.2.1. A função da recepção
3.2.2. A função espontânea
3.2.3. Redação, introdução, unidade e conclusão da
pregação
INTRODUÇÃO
Certo número de trabalhos meus nem tem sido publicado até agora
em alemão; esta mudança tem chegado ocasionalmente ao conhecimento de
círculos privados. Entre estes encontra-se um curso que dei neste momento -
não me lembro exatamente o tempo e o lugar - sobre o tema: " A pregação e a
forma de prepará-la".
Como pode-se comprovar, tem-me permitido fazer uma incursão no
terreno da teologia prática. Se este livro cair em suas mãos, os mestres desta
disciplina haverão de perdoar-me a liberdade que me tem tomado e julgar este
trabalho com indulgência.
Quanto aos elementos dogmáticos deste pequeno curso, haverá de
recordar-se que na época em que o dei, eram ainda relativamente jovem;
desde então, tem-se passado muitos anos e com eles quiças tem conseguido
alguns conhecimentos; ao menos assim o espero. Seja o que for, desde o
ponto de vista dogmático, de nada importante me arrependo; e, porque
concerne ao texto apresentado neste volume não vejo absolutamente nada que
mudar.
Por demais, aquele que conhece a bela e límpida tradução francesa
que Fernand Ryser tem feito da minha Dogmática, perceber-se-á sem esforço
de que algo que digo nela exatamente as mesmas coisas que agora, ainda
que, com um fundamento e uma formulação um pouco diferentes.
Aqui, trata-se antes de tudo de algumas normas e sugestões de
ordem prática que me parecem, todavia hoje, essenciais e dignas de serem
meditadas, ou, ao menos, de serem lidas com alguma atenção e de serem
discutidas. A ninguém o recuso o direito de criticá-las.
Poderia ser interessante para um jovem teólogo desperto comparar
algumas de minhas pregações - por exemplo as da série: "Aos cativos a
liberdade 2 ", ou simplesmente os três esquemas que dou neste volume - com os
princípios aqui desenvolvidos, e ver em que medida permaneço fiel a mim
mesmo.
Basiléia, maio de 1961.
2 Este livro está publicado em alemão, francês, inglês, italiano. Consta esta obra, de sermões do autor, pregados em vários locais diferentes. (Nota do Tradutor).
Este estudo é o desenvolvimento das duas definições seguintes:
a) A pregação é a palavra de Deus pronunciada por Ele mesmo.
Deus utiliza como lhe parece o serviço de um homem em seu nome a seus
contemporâneos, por meio de um texto bíblico. Este homem obedece assim à
vocação que tem recebido na Igreja e, por seu ministério, a Igreja realiza a
missão que a corresponde.
b) A pregação é o fruto da ordem dada à Igreja de servir à palavra
de Deus, por meio de um homem chamado para esta tarefa. Para este homem,
trata-se de anunciar a seus contemporâneos o que devem ouvir de Deus
mesmo, explicando, num discurso o que o pregador expressa-se livremente,
um texto bíblico que concerne-lhe pessoalmente.
Porque estas duas proposições? Porque o fato da pregação
apresentada a um duplo aspecto: palavra de Deus e palavra humana.
Se queremos definir teologicamente o que ocorre quando um
homem prega, não podemos fazer outra coisa que oferece indicações, por
pontos de referências. Por cima da reflexão humana, nos vemos remetidos a
Deus que diz a primeira e a última palavra. Deus não pode ser encerrado em
nenhum conceito: vive e atua com sua soberana autoridade.
O teólogo deve recorrer um duplo caminho: o pensamento
ascendente e do pensamento descendente. Com isso, só cumpre sua missão
anunciar a palavra de Deus de uma maneira fragmentária e incompleta e
imperfeita, pois se realiza corretamente esta tarefa, está seguro de fazer o que
tem que fazer, o que deve fazer.
Seu discurso é livre, pessoal. Não é nenhuma leitura, nenhuma
exegese. Diz a palavra que tem ouvido no texto da Escritura, tal como ele
mesmo a tem recebido. Sua missão como pregador, é parecida, em algum
sentido, à dos apóstolos. Também ele tem, outro plano, uma função profética.
A tentativa de servir à palavra de Deus, de anunciá-la, está
encomendada à Igreja. O termo que vem bem aqui para explicar a situação é
Ankuendigung - anúncio de um acontecimento por vir, mas que Verkuendigung
- anúncio do que está acontecendo. Deus vai fazendo-se ouvir; é Ele que fala,
não o homem. Este último só anuncia o que Deus vai dizer alguma coisa. Esta
palavra - anúncio não está incluída na idéia de chamamento a uma decisão,
por parte daquele que escuta. Esta decisão que unicamente tem lugar entre
homem e Deus, não é o elemento constitutivo da pregação.
Isto não exclui de tudo a possibilidade de que a pregação seja um
chamado. De fato, para dizer exatamente as coisas, é um chamado dirigido à
Igreja dos crentes. Pois, a decisão depende da graça divina, ou melhor desse
mistério que é a revelação face à face do homem com Deus. O pregador deve
saber que esta decisão não depende dele.
Assinalamos que o conceito de pregação não encontraria
fundamento algum na experiência. É um conceito teológico que baseia-se na fé
somente. E temos falado que, a pregação pode ir mais além de seu caráter
mesmo do conceito para adquirir uma forma tangível.
2. FORMAS ESSENCIAIS DA PREGAÇÃO
2.1.A pregação deve conformar-se com a revelação.
Vejamos, primeiramente, o aspecto negativo desta declaração.
Significa: o papel do pregador não consiste em revelar a Deus ou em servir-lhe
como mediador. O acontecimento da pregação é o Deus locutor - o Deus que
fala: assim, pois, não é a tarefa nossa revelar o que isto seja, nem tampouco,
uma revelação que passaria por nós, através de nós.
Em qualquer circunstância, devemos respeitar o fato de que Deus
mesmo tem-se revelado (epifania) e se revelará (parusia). Tudo isto o que
acontece na pregação, que se situa entre o primeiro e o segundo advento, é a
ação do mesmo sujeito divino. A revelação é um círculo fechado onde Deus é o
sujeito, o objeto e o termo médio.
Daqui resulta estas conseqüências práticas:
a) A pregação não pode pretender ser a transmissão da verdade de
Deus. Não pode ter por fim demonstrar a Deus por uma prova intelectual,
expondo mais ou menos longamente algumas teorias. Não tem outra prova de
Deus que relaciona-se com Deus mesmo. Não temos tampouco que expor a
verdade de Deus debaixo de uma forma estética por meio de imagens inúteis
ou apresentando a Jesus Cristo através de efusões sentimentais.
Quando Paulo diz aos Gálatas que lhes tem colocado ante aos olhos
de Jesus Cristo crucificado, não faz alusão aos discursos nos que haveria
usado artifícios estéticos para ferir a imaginação de seus ouvintes. Para ele,
descrever Jesus Cristo é anunciá-lo sem figuras. Estamos debaixo do mandato:
"Não terás nenhuma escultura, nem imagens". Já que Deus quer dizer sua
verdade, sua palavra, para si mesmo, fica proibido ao pregador o fugir desta
palavra com sua ciência e sua arte. Desde o ponto de vista, a figura de Jesus
Cristo na arte, o crucificado nas igrejas, como também a apresentação de
imagens espirituais de Deus torna-se problemática.
b) O pregador tampouco deve buscar estabelecer a realidade de
Deus. Sua tarefa é a de construir o reino de Deus. Deve conduzir para uma
decisão. Sua mensagem deve ser autentica e comunicar algo vivo. Deve
colocar a descoberto a situação do homem e colocá-lo assim diante de Deus.
Sem alguma mudança, sobre passa já seus limites quando esta confrontação
com Deus é concebida (Kierkegaard) como uma "enfermidade que conduz à
morte". Certamente esta expressão supõe coisas que estão implicadas na
pregação, pois concerne à ação de Deus. Que o homem não intervenha no que
não é de sua incumbência ou competência.
Se pretende que o homem deve converter-se, atrair à sua fé a quem
se dirige, isto não pode-se compreender, mas que no sentido: Ter consciência
do que se produz com a ocasião de seu testemunho. Crer, para o pregador, é
colocar o olhar em Cristo de tal maneira que diante da assembléia não da para
pensar que dispõe de Cristo e do Espírito, senão que é este quem tem a
iniciativa no que se faz. Deus não é um Deus ocioso: é o autor da obra que
realiza. Só poderemos atuar obedecendo a nossa tarefa e não como gente que
se tem assinalado a si mesmo seu programa e sua meta.
Nossa pregação não é qualitativamente diferente da dos profetas e
apóstolos que tem "visto e tocado", ainda que difira no fato de que se produz
em outro momento da história. Os profetas e os apóstolos se situam no
momento da revelação histórica cujo documento é a Escritura. Nós damos
testemunho da revelação, pois se Deus fala servindo-se de nossa palavra,
então de fato, cumpre-se este acontecimento: profetas e apóstolos estão aí,
incluindo se é um simples pastor o que fala. Não obstante, devemos ignorar
este papel e não considerarmos a nós mesmos como profetas; se Cristo digna-
se fazer-se presente com a ocasião de nossa palavra, é precisamente porque
aí tem um ato do mesmo Deus, e não nosso. O fato de que as coisas sucedam
assim tira do pregador todo o direito de fabricar-se seu próprio programa.
Assim, toda empresa autônoma, toda a tentativa tanto para um fim
teórico - apresentar-se com um tema, um propósito - como para um fim prático
- conduzir aos ouvintes a uma atitude determinada - não seria mais que um
atentado contra o que Deus mesmo quer fazer por meio da pregação. Se o
pregador se impõe como tarefa expor uma certa idéia baixo uma forma
qualquer - incluindo-se esta idéia é o resultado de uma exegese séria e
adequada, em tal caso, não é a Escritura mesma que fala, senão que se fala
sobre ele, para ser positiva, a pregação deve ser uma explicação da Escritura.
Não tenho eu que falar sobre, senão de (ex), tirando da Escritura o que digo.
Não tenho que dizer, senão repetir. Afim de que, só Deus fale, nenhum tema,
nenhum propósito tirado do meu próprio ser deve intervir. Portanto
posteriormente, teria que perguntar-me se não tem deixado influenciar por uma
idéia minha pessoal, ou se não tive a intenção de chegar a uma unidade que
somente Deus podia produzir. De qualquer forma, sigamos a direção que é
peculiar ao texto, mantenhamo-nos nele, e não nos questionamos sobre um
tema, que poderia, segundo nos parece, desprender-se do texto.
Em relação com o que acabamos de dizer, a eleição do texto pode
apresentar-se justamente como um perigo, no sentido de que se escolhe um
texto acomodado ao tema que se prefere tratar: recorrer à Bíblia para tirar dela
uma coisa, que está de acordo com meus pensamentos! É já suficientemente
perigoso ter que falar com um texto particular a uma comunidade também
particular, e em uma situação concreta. Nesta situação concreta pode suceder
que Deus fala e realiza um milagre. Pois nós não devemos incluir um milagre,
por adiantado, em nossa pregação. De nossa maneira, seria fácil para o
pregador, erigir-se em papa que se permitiria abordar dentro de sua
comunidade, suas idéias pessoais, apresentando-as como palavra de Deus.
Vejamos agora, o aspecto positivo desta afirmação: a pregação deve
conformar-se com a revelação. Devemos portanto, partir do fato de que Deus
mesmo quer revelar-se. É nele quem quer dar testemunho de sua revelação. É
ele quem realiza, e quer realizá-la. Desta maneira, a pregação tem lugar na
obediência escutando a vontade de Deus. Eis o acontecimento no que o
pregador encontrar-se comprometido, que forma parte de sua vida, e que dirige
sua pregação tanto em seu conteúdo como em sua forma. A pregação não é
um ato neutro, nem uma ação entre dois sócios. Não pode ser mais que
soberania por parte de Deus, e obediência por parte do homem.
Só quando a pregação está orientada por esta relação, pode
considerar-se como querigma, é dizer, como um novo anúncio feito por um
mensageiro que cumpre assim sua tarefa. Em tal caso, o pregador é
onipotente. Pois para ser onipotente necessita da onipotência daquele que o
tem enviado. O querigma significa então: vir da epifania de Cristo para ir após o
Dia do Senhor. Por isso, a pregação do Novo Testamento consiste no duplo
movimento: "Deus tem-se revelado" e, "Deus se revelará".
O que temos dito até agora, implica nas seguintes conseqüências:
a) A pregação tem um ponto de partida absoluto: Deus tem-se
revelado. Isto significa: a palavra tem-se feito carne. Deus tem assumido a
natureza humana. Em Cristo, tem-se apropriado da natureza humana do
homem caído. O homem perdido é chamado à sua casa. A morte de Cristo é a
última palavra desta encarnação. Nele, nossa falta e nosso castigo são
alijados, suprimidos. Nele, o homem é resgatado de uma vez por todas. Nele,
Deus tem-se reconciliado conosco. Crer, deve saber reconhecer que isto é
assim.
Portanto, se a pregação está dominada por este ponto de partida,
não se pode conceber-se mais que a atitude do homem que recebe. O
pregador sabe, sem dúvida alguma, que tudo é posto em ordem por Deus
mesmo. Sem embargo, sempre está cercado pela tentação de anunciar o
pecado do homem ou de denunciar suas idéias errôneas. Certamente é
necessário falar do pecado e dos erros humanos, pois tem que fazê-lo mostrar
o que o pecado tem sido aniquilado e o erro destruído. Porque, ou é verdade
que o homem tem sido perdoado ou não tem perdão completo. Não se pode
falar de pecado mais que como levado pelo cordeiro de Deus.
Igualmente, a pregação na que o evangelho é separado da lei não é
cristã. Como anunciar o evangelho sem ouvir também a lei, esquecendo o
"temerás e amarás a Deus "? "Este perigo percebe-se principalmente no
calvinismo. Ademais, a pregação está conduzida por um movimento no
calvinismo. Ademais, a pregação está conduzida por um movimento desde a
primeira até á última frase. Não trata de convicção, da seriedade ou do
entusiasmo do pregador. A pregação recebe este dinamismo partindo do fato
que "a palavra se fez carne", deixando-se guiar constantemente por ela. Se se
observar esta regra, quantas introduções seriam inúteis. O dinamismo não
consiste tanto em ir para os homens quanto em que Cristo vá ao seu encontro.
Desta maneira, a pregação tem um movimento descendente; nunca deve ter a
alcançar o cume. Não está já tudo cumprido?
b) Dizíamos acima que: a pregação tem um ponto de partida única,
a saber, que Deus tem-se revelado. É necessário dizer também: tem
igualmente um ponto único de chegada, o cumprimento da revelação da
redenção que vem a nosso encontro.
De um extremo ao outro, o Novo Testamento dirige-se para o
cumprimento da salvação. Pois isto não contradiz o "tudo tem-se cumprido de
uma vez por todas". Cristo que tem vindo é também o mesmo que voltará. A
vida da fé está orientada para este dia da Parousia. Este ponto de partida e
este ponto de chegada resume-se nesta declaração: "Cristo é o mesmo ontem,
hoje e eternamente". E posto que tudo esperamos de Cristo, pode-se dizer que
Cristologia e Escatologia são as mesmas coisas. Desta maneira, a revelação
está tanto diante como atrás de nós.
Aqui resulta que, a pregação move-se num clima de espera. Não
está instalada confortavelmente na fé, na salvação com se a graça divina
manifestada no passado nos permitirá repousar tranqüilamente. Certamente
tem certeza profunda e alegre; pois existe também a preocupação grave e
séria do que vigia, porque o cumprimento virá. A pregação, como também toda
a vida cristã, desenvolve-se entre o primeiro e o segundo advento.
Marchamos na fé, não na visão (2 Cor. 5,7). Se vivêssemos na visão
não teríamos nada que esperar. Não haverá ontem nem amanhã. Pois vivemos
na fé, é dizer viemos de Cristo e vamos para Ele. Paz e alegria por ambas as
partes, pois nesta marcha se vá da riqueza ao despojo, e do despojo a uma
nova riqueza. A pregação deve expressar esta marcha na fé, o que quer dizer
que a certeza confiante não é cristã, se não está atravessada pela sede de
uma salvação futura realizada em Cristo na plenitude. Cristo tem vindo, Cristo
volta, esperamos seu dia: tal é a confiança. "A palavra tem-se feito carne" e
tem por corolário: "Amém, venha já, Senhor Jesus".
A tendência do luteranismo é a de fundar-se no que está detrás de
nós, e por isso, sua pregação peca ao estar inclinada sempre para o
dogmatismo e a experiência religiosas. Sem embargo, Fl 3 relaciona-se com Fl
2: depois de ter mostrado nossa vocação cristã, o apóstolo declara: "Não é que
tenha alcançado já a meta, pois corro...". Tem dinamismo na tranqüilidade da
fé. A pregação deve proclamar com certeza que "tudo tem-se cumprido", pois
também que "tudo deve ser mudado". Esperamos um novo céu e uma nova
terra". Sim o sabemos, estamos reconciliados com Deus, pois somo hóspedes
que esperam o cumprimento de: "Eis que aqui faço novas todas as coisas". Por
isso toda a pregação está inserida na esperança. O "agora" cristão não é outra
coisa que a passagem do ontem para o amanhã, da epifania para Parousia.
Nesta perspectiva, somo um povo que marcha na noite, vendo uma grande luz.
"A noite está perto, o dia aproxima-se". Não tem que esquecer estes dois
pontos de referências para que a mensagem esteja conforme a revelação.
2.2.O caráter eclesial da pregação
A pregação tem lugar neste meio que é chamada Igreja: está ligada
à existência e a missão da própria Igreja. Precisamente por esta razão deve ser
conforme à revelação. Agora tem que notar que, esta situa-se no marco do
Antigo Testamento e no Novo Testamento. Trata-se, pois, de um
acontecimento particular, concreto, que ocupa um tempo determinado na
história, e não de fato do conteúdo geral, que possa produzir-se em todo tempo
e lugar. Por conseguinte, a pregação não fala de coisas que dependem da
existência humana em seu estado natural e em suas determinações históricas;
não inspira-se em uma filosofia ou concepção do mundo e da vida, senão
unicamente neste acontecimento particular, Dom de Deus na história.
Ademais assinalamos que, na pregação, não trata-se de um esforço
do homem para acrescentar algo à revelação. O movimento que vi do primeiro
ao segundo advento não o provocamos nós: é unicamente graça e obra de
Deus. É Deus quem vem para os homens, e não os homens quem se elevam
por seus próprios meios, para conquistar o que Deus lhes destina. Desta forma,
nossa tarefa resume-se no seguinte: refletir sobre o acontecimento único, Dom
da graça de Deus. Se reconhecemos a impossibilidade que temos para fazer
algo, então constatamos que não podemos escolher, por razões filosóficas,
políticas ou estéticas, o terreno da pregação. Não tem mais que um imposto
pela força das coisas, que é a Igreja.
Existe aí uma relação que é anterior a tudo o que conhecemos sobre
esta terra em questão de relações (família, sociedade, povo, raça). Esta
relação tem um caráter completamente distinto à ordem da criação. Na Igreja,
donde ressoa a palavra da reconciliação, todas as outras relações aparecem
como manchadas de impureza, como contaminadas, submergidas na esfera da
queda e, como tais, condenadas. Por esta mesma palavra nos diz também que
o mal está curado, e que todo o pé das conseqüências do pecado está
eliminado. Por demais, na palavra reconciliação, existe também a mensagem
da criação.
Quando ela é conforme ao que Deus tem revelado, a pregação cria
a reconciliação. E aí, donde os homens recebem esta palavra, está a Igreja, no
conjunto daqueles que tem sido chamado pelo Senhor. Só no terreno da
revelação pode-se legitimamente pregar, e nunca sobre o fundamento de uma
reflexão acerca do homem e do cosmo. Só porque ressoa esta chamada, e
porque os homens podem escutá-la, é por que existe uma Igreja. Assim o
caráter eclesiástico da pregação deriva-se imediatamente da conformidade
com a revelação.
Convém clarificar o anterior ressaltando dois pontos. A Igreja
autêntica está caracterizada pelo fato: Evangelho, puro ensino e administração
correta do sacramento (confissão de Augsburg, VII). Estes conceitos:
sacramentos e pregação do evangelho põem de manifesto a união entre a
Igreja e o caráter de conformidade com a revelação.
Falemos em primeiro lugar do sacramento, que é rico em
significação. Porque não pode-se saber o que é a pregação sem saber o que é
o sacramento. Só tem pregação no sentido exato do termo ali donde o
sacramento acompanha e a esclarece. Que ocorre com o sacramento? O sinal
visível remete ao acontecimento da revelação que fundamenta à Igreja e
constitui a promessa, o qual não sucede com a pregação ou com qualquer
outro ato eclesiástico. Porque o sacramento não é unicamente uma palavra, é
um ato material e visivelmente realizado.
O batismo confirma o pertencer de um homem à Igreja. Com o
batismo, não como o nascimento, começa a vida. Estar batizado significa que
esta relação entre a revelação e o homem, que se realiza em uma situação
bem determinada, está estabelecida (Rom. 6,3). Se o batismo caracteriza o
acontecimento que está no ponto de partida, a ceia é, por sua parte no sinal do
mesmo acontecimento, pois de frente para o futuro que esperamos (I Cor.
11,26).
Por conseguinte, a pregação verifica-se nesta Igreja onde realizam-
se o sacramento da graça e o sacramento da esperança, sendo cada um deles
os dois às vezes: posto que o sacramento e pregação só pode ter sentido na
Igreja, cada um se legitima por sua relação com o outro. De fato a pregação tira
seu conteúdo do sacramento que em si mesmo é uma referência em ato ao
acontecimento da revelação. A pregação é comentário, interpretação do
sacramento; tem o mesmo sentido este é, pois, em palavras. Se reconhecemos
que isto é assim, compreendemos que a pregação só é possível no âmbito da
Igreja, onde, no batismo e na ceia, o homem é chamado por Deus mesmo a
percorrer ao corpo de Cristo, a ser alimentado ao longo de sua viagem para a
vida eterna. Devemos saber que todos os homens que escutam estão
batizados, estão chamados a participar da graça, e que o que tem começado
neles encontrará seu cumprimento.
Desta maneira, a origem e o fim da pregação e o caminho que ela
recorre tomam um aspecto mais concreto, graças a esta referência ao batismo
e a ceia. Vê-se posto do mensageiro da palavra.
Depois destas considerações de ordem teórica, vejamos agora como
sucedem as coisas na Igreja evangélica. Aparece agora a simples visão de um
defeito. Nos ambientes da reforma, a Igreja sacramental de Roma tem sido
recolocada por um Igreja da palavra. Muito pronto a pregação chegou a ser o
centro de gravidade, ficando com um caráter mais restringindo a celebração do
sacramento. E atualmente, que vemos? Por um lado, a Igreja romana, Igreja do
sacramento, na qual a pregação carece de valor; por outro lado, a igreja
evangélica na que tem também um sacramento, pois que não forma parte
integrante e obrigada do culto. As duas posições são uma espécie de
destruição da Igreja. Que pode significar uma pregação que se apresenta
ostensivamente em detrimento do sacramento, uma pregação que não faz
referência ao sacramento que deve-se interpretar? Não vivemos de que o
pastor sabe dizer, senão do fato de que estamos batizados, do fato de que
Deus nos tem chamado. Por demais tem-se reconhecido esta lacuna em
nossos dias e tem-se intentado preenche-la por todos os meios possíveis
(renovação da liturgia, enriquecimento do culto por meio da música, etc.). Sem
embargo, estes paliativos estão chamados ao fracasso desde o começo,
porque caem fora do verdadeiro problema.
Nos círculos que preconizam estes modelos de renovação do culto,
sequer buscam sem razão um fundamento em Martin Lutero. A intenção do
reformador ao intentar manter o mais possível o que era valido na liturgia
romana, era antes de tudo dar-lhe um lugar à ceia. E João Calvino não cessava
de insistir sobre a necessidade de um serviço eucarístico em cada culto
dominical. E justamente este é o que nos falta hoje em dia: o sacramento de
todos os domingos. Deveria fazer-se da maneira seguinte: ao começo do culto,
batizar na presença da assembléia; ao final do serviço, a ceia; em meio, entre
os dois sacramentos, a pregação, que teria desta maneira seu pleno
significado. Então isto seria reto administrar o sacramento e ensinar o puro
evangelho (em latim - no original). Porém não tenhamos compreendido o
autêntico significado do culto evangélico em sua totalidade, faltará eficácia a
nossos esforços teológicos e a nossos movimentos litúrgicos. Somente terá
seu lugar na liturgia onde se realize corretamente o culto, com a pregação e o
sacramento; porque só desta maneira pode desempenhar seu ofício, que é o
de conduzir ao sacramento. Não tem que separar a administração dos
sacramentos do anúncio do evangelho, porque a Igreja é uma dimensão
totalmente física e histórica, porque é um corpo invisível e misteriosos de
Cristo, e porque é ambas coisas em uma só vez.
Certamente, seríamos melhores protestantes se nos deixássemos
instruir sobre este ponto por outro lado o catolicismo romano. Não descuidar da
pregação, como tem sucedido com tanta freqüência, senão restituir o seu lugar
legítimo o sacramento. Nos podemos perguntar se a razão última de nossos
esforços litúrgicos não é mais que um desejo de encaminharmos para as
"belas cerimonias" da Igreja de Roma. O que temos de buscar nelas, não é um
enriquecimento litúrgico, senão só o verdadeiro significado do sacramento na
Igreja. Seria um bom protestantismo o que admitiria isto, e ao mesmo tempo,
se esforçará por ter uma boa pregação.
A pregação só consiste em repetir o que concerne à revelação,
acontecimento anterior. E, se queremos distinguir os dois acontecimentos a
que se refere, diremos que existe de um lado, o sacramento, e, de outro lado, a
Sagrada Escritura. O sacramento remete ao fato da revelação, ao que Deus
realizou. A Sagrada Escritura remete à qualidade da revelação. É inútil opor o
sacramento à pregação. Não podem ser separados, posto que são os dois
aspectos de uma mesma realidade.
A revelação, ação divina, tem lugar dentro da vida e da história
humana. Pois a Igreja não pode transmiti-la de uma maneira imediata. Para
que este acontecimento seja sempre atual e verdadeiro necessita da Sagrada
Escritura, que é o testemunho dos intermediários desta revelação. Estes
intermediários são os profetas e os apóstolos. A Igreja repousa sobre o
fundamento dos testemunhos que foram chamados de uma maneira particular
a ser seus apóstolos. Quando se dá testemunho da revelação, é dizer, quando
se lê e explica a Escritura, a Igreja deve compreender que não vive só para si,
que esta não é sua própria vida, uma vida tiraria de seu próprio ter, senão que
está fundada sobre a ação unicamente e exclusiva de Deus realizada em Israel
e em Cristo, que são os dois pólos da revelação: um povo e um salvador. Por
uma parte, este povo errante que em sua incapacidade de cumprir a lei, cai
freqüentemente no pecado e que sem embargo não é abandonado por Deus;
por outra parte, a superabundância da graça, o salvador do povo, o
cumprimento da lei e por isso, do evangelho.
Compreendemos que a revelação não pode ser concebida como um
princípio de caráter geral, que regeria a relação entre Deus e o mundo. Pelo
contrário, é um acontecimento que só se realiza uma vez. Por esta razão, a
Escritura tem um caráter concreto, e não é um sistema de pensamento. O fato
de que nos atenhamos estritamente à Escritura é um sinal de caráter único,
único no tempo e único na forma, da revelação.
A Igreja não representa à humanidade em geral em sua relação com
Deus; ela é a humanidade reunida pela obra da revelação; porque está
fundada no testemunho dos apóstolos, intermediários da revelação; qual é,
neste contexto, o papel da pregação? Unicamente tem que explicar este
testemunho.
Isto nos leva a considerar a pregação a partir do texto. Tem que ser
exclusivamente bíblica. E ater-se às vezes ao sacramento e à palavra dos
profetas e apóstolos. Não podemos dar razão desta preferência pela Bíblia,
nem dizer porque elegemos esta literatura. Partimos deste fato: a Igreja nos dá
uma missão, uma ordem. Fundando-nos na Bíblia nos atrevemos a fazer o que
tem que fazer. Estes escritos que estão aí diante de nós são anteriores a nosso
testemunho, e a pregação deve ter em conta o que anteriormente tem sido
dado. Respeito à Bíblia, nossa independência é tão pequena como a que uma
criança ter em frente a seu pai.
Como conclusão deste capítulo, diremos que o caráter eclesiástico
da pregação está garantido quando esta se inspira no sacramento e na
conformidade da Escritura.
2.3.Fidelidade doutrinal da pregação.
Até aqui temos mostrado como a pregação está submetida a uma
ordem. Ela é missão e mandato. Por isso tem um caráter doutrinário.
Quando nos propomos educar os homens, podemos sonhar em
seguir um plano e fixar-nos uma meta. Esta seria a tarefa do pregador, se a
Igreja propuser-se a educar a humanidade, fazer verdadeiros homens. Pois
não pode ser assim conhecendo, qual é a função própria da Igreja. A Igreja não
é uma instituição a serviço do progresso do mundo. A Igreja, com sua
pregação, não é uma ambulância nos campos de batalha da vida. Por outra
parte, não deve tampouco buscar a instauração de uma comunidade ideal das
almas, corações ou espíritos. Todas estas coisas têm seu valor, certamente, e
devemos preocuparmos com elas. E podem entrar com acessório na pregação.
Por demais, tudo isto joga forçosamente um papel, como na vida ordinária. O
pregador, como todos os cristãos, vive no mundo e pode subtrair-se a estas
coisas. Pois, a partir do momento em que a pregação toma isto como meta,
não tem mais razão de ser. Atualmente o que compreendemos cada vez
melhor quando todas as forças civilizadoras têm sido assumidas por outras
organizações distintas da Igreja. Supondo que a Igreja desapareceria um dia -
este, por exemplo, era o ponto de vista de Richard Rote, que preconizava a
fusão progressiva da Igreja como Estado - os periódicos, os rádios, as obras
sociais, a psicologia, a política, bastariam para cuidar da vida da alma, da
família. Se se trata de moralidade pública ou de tarefas deste gênero, os filhos
deste mundo sabem bastante mais que a Igreja e dispõem de meios
superiores. Neste caso a Igreja não é mais que a Quinta roda da carruagem... e
nem sempre sequer uma roda para a troca (estepe)!
É necessário, pois, refletir seriamente sobre a missão que incumbe a
Igreja. Necessitamos de homens que obedeçam a uma ordem, a uma ordem
que se lhes tenha imposto de fora, a uma necessidade anterior a tudo o que
constitui nossa existência, como é o nascimento ou a morte. A Igreja não pode
fazer uma ordem que deve ser cumprida. A existência da Igreja justifica-se
somente se ela compreende que está fundada numa camada. Por conseguinte,
não tem um plano - este plano pertence a Deus - senão uma tarefa que
cumprir. A pregação, no desenvolvimento do culto, deveria ser o anúncio de
sua obediência a esta tarefa que ele tem sido confiado por Cristo.
De tudo isto resultam as seguintes considerações:
a) A pregação deve submeter-se à fidelidade doutrinaria. Trata-se
de confissão de fé, que não é um resumo de idéias religiosas tiradas de nosso
próprio ter, senão o que cremos e confessamos, o que recebemos e cremos
porque temos ouvido a revelação. E cada pregação é uma resposta de que
somos responsáveis.
O que ocorre então não tem nada que ver com um plano ou idéia
que nós tenhamos forjado em nosso espírito. Aqui obedecemos, o que quer
dizer: escutamos a palavra de Deus e respondemos de acordo com a confissão
de fé. Não se trata, naturalmente de pregar a confissão de fé, senão de ter
como meta e limite de nossa mensagem a confissão da Igreja de colocarmos
onde se coloca a Igreja.
b) Tem uma Segunda conseqüência prática: o elementeo de
edificação. Que devemos construir? Evidentemente a mesma Igreja. Pois
edificar a Igreja não deveria ser entendido no sentido do pastor de Hermas, no
que concerne o significado: "O continuar a construção", "construir sobre um
edifício em vias de término". Edificar a Igreja, é reconstruí-la cada vez mais de
cima para baixo. A Igreja deve construir-se sem interrupção, continuamente
devemos aceitar a ordem que se nos dá, reassumir a obediência. "Pela
obediência para a obediência", tal é a marcha do Cristão. A Igreja é uma
comunidade situada abaixo da revelação e edificada pela escuta da palavra de
Deus. A edificação realiza-se pela graça de Deus, com vista à vida. Neste
marco, então sim, pois somente então, podemos falar de educação dos
homens, de ajuda moral e espiritual à humanidade. Tem lugar para
construções secundárias à sombra da edificação principal. "Buscai primeiro o
reino de Deus e a sua justiça", "uma só coisa é necessária".
2.4.Fidelidade apostólica da pregação
No seio da Igreja encarregada de anunciar boas novas, um indivíduo
sai da massa para testemunhar, perante a comunidade, da redenção e
salvação, do homem realizado em Cristo. Juntamente com o problema da
fidelidade doutrinal do que acabamos de falar, se coloca aqui a legitimidade
deste ato individual. A exceção do ofício do apóstolo não está sublinhada
particularmente no Novo Testamento a função do pregador. Não podemos
deduzir nenhuma doutrina sobre esta função a partir das indicações que se nos
dão sobre aqueles que foram chamados pelos apóstolos para este ofício e
reconhecimento pela comunidade.
Quando a função apostólica, fica ligada à fundação e existência da
Igreja. Em Mt. 16, 18-19 (cf. Mt. 18, 15-20), se vê que a Igreja está instituída
numa ordem determinada: Pedro é o representante dos apóstolos, e a
comunidade se distingue do apostolado.
Se considerarmos agora a Igreja tal como existe a partir do período
apostólico, vê os que a ecclesia una, sancta é, enquanto una às vezes ecclesia
docens e ecclesia audiens.
Onde tem Igreja sempre se deu a princípio, porque a instituição do
apostolado só sucedeu uma vez. Depois dos apóstolos, os homens chamados
para esta missão devem continuar fazendo o mesmo que os apóstolos. E na
medida em que a Igreja é o corpo de Cristo, o pregador é, em certa maneira,
sucessor dos apóstolos, vigário de Cristo. A pregação do verbo divino e a Igreja
constitui uma só coisa, porque "a palavra de Deus não pode existir sem o povo
de Deus" (Lutero).
Depois dos apóstolos, o pregador, como ministro de Segunda
categoria, realiza numa determinada comunidade, o que os apóstolos fizeram
para a Igreja inteira. Em vista desta investidura do vigário de Cristo realizada
por Deus mesmo, a problemática sobre este homem revestido deste cargo é
secundária. O verdadeiro problema é saber se a Igreja é verdadeiramente a
Igreja de Cristo Jesus; é dizer, se quando um homem anuncia a Palavra e outro
a escuta, a mesma Palavra de Deus é ouvida e recebida pela ação do Espírito
Santo.
"O evangelho tem de ser pregado sinceramente, pois este é o reino
de Cristo. Ele é o verbo, com a ação do Espírito Santo, para os ouvintes, sejam
ensinados" (Lutero). Todos critérios que pudéssemos indicar em concreto
acerca de um ministério autêntico são relativos, porque somente podem ser
critérios humanos. Sem embargo, retenhamos quatro destes critérios, dos que
se podem fazer depender, desde o ponto de vista humano, a legitimidade a
função.
a) O pregador deve sentir inteiramente chamado. Deve conhecer a
necessidade da vocação e aderir-se a ela de todo o coração. E sem embargo,
a "impossibilidade de fazer outra coisa" implica muitos problemas. Por
exemplo, este: não seria talvez a situação de um desejo próprio essa
pretendida exigência interior? Notemos que a chamada interior, que cremos
reconhecer, somente é decisivo quando não procede nem de nosso saber, nem
de nosso sentimento, senão deste vos imperativa que é a de Deus.
b) Os textos relativos aos bispos e aos diáconos nas cartas
pastorais (1 Tim. 3,1-7; 3, 8-12; 2 Tim. 4, 1; 4, 5-9) contém uns catálogos
helênicos de virtudes, de ordens concernentes ao que assume a função de
pregador. "Homem irresponsável", não deve comprometer esta função com um
modo de vida contrário à moral e aos costumes vigentes. Seu modo de atuar
não deve ser demasiado estranho nem depender em excesso das
contingências humanas, demasiado humanos deste mundo, porque não deve
atrair a atenção sobre sua pessoa de umas maneiras inútil para não desviar a
atenção do evangelho. Estas recomendações éticas têm evidentemente um fim
recordar que o servidor da palavra assume seu cargo diante da lei de Deus, o
homem deve reconhecer que falta constantemente. Só porque esta justificado
em Cristo. Pela fé, pode apresentar-se diante de Deus.
c) Por outro lado, nas cartas pastorais requer sempre do pregador
que seja competente (1 Tim. 3,2; 2 Ti. 2,24). Segundo o costume da Igreja,
entendemos por isto a cultura científica dos teólogos. O pregador não tem
direito a amparar-se preguiçosamente no Espírito Santo para os assuntos de
seus cargos. Com toda modéstia e serenidade, deve trabalhar, lutar para
apresentar corretamente a palavra, sabendo perfeitamente que o reto ensinar
(recta docta) só pode ser realizado no Espírito Santo, por isso, a Igreja, tem-se
consciência de suas responsabilidades, não pode tolerar que qualquer tenha
direito de anunciar a Palavra sem cultura teológica. Sem embargo, não
esquecemos que a verdadeira pregação não a ensina o Espírito Santo, já que a
cultura teológica está submetida a ele.
d) Como temos notado, o pregador tem uma posição diferente da
dos apóstolos: o posto que ocupa, o ocupa por vontade da comunidade. A
função que ocupa pertence à Igreja (eclesia). Vem da comunidade e exerce-se
na comunidade. Sem embargo, o fato de ser chamado por uma comunidade
não impede que ele deva ter a chamada de Deus.
Acabamos de recordar quatro critérios que caracterizam a chamada
de Deus. Pois não nos compete fixar os limites desta chamada. É Deus quem
funda a Igreja, é ele quem institui o ministério e designa a aquele que deve
cumpri-lo. Atua assim onde e quando quer. Pois, o fato é que este homem deve
sempre responder aos quatro critérios que emanam desta chamada de Deus a
qual constitui para ele o problema fundamental. Esta chamada é a que dá todo
seu peso a estes critérios humanos. Lhes dá seu peso, pois ao mesmo tempo
sublinha sua relatividade. Sobre este problema fundamental não tem nada que
distinguir, só podemos aceitá-lo e secundá-lo assumindo o ministério com as
exigências que implica. Desta maneira, por nossa ação obediente, a revelação
e a Igreja encarrega de anunciar a Palavra fazem-se visíveis.
Quando cumpre o seu ministério neste clima o homem não busca a
satisfação de seu interesse individual, de suas inclinações, de suas convicções
e de sua vontade própria. Pois ainda que sempre tenha algo disto, é necessário
que, em sua ação, apareça esta subordinação da vontade e a ação de Deus
tem a pregação cristã legítima.
Fidelidade apostólica da pregação! A firme esperança do ouvinte
consiste em ouvir falar da grande obra cujo serviço encontra-se o pregador ao
que escuta, com sua natureza e condições. Agora bem, o ato que realiza
sempre é problemático, e incluindo, em certo sentido impossível. Pois nos
encontramos diante deste fato: Deus tem feito intervenção no plano humano
por meio de um homem apesar das debilidades inerentes à natureza humana.
A "fidelidade apostólica da pregação" significa para o pregador: que ele é
consciente das debilidades inerentes à sua ação. Pois não deixa-se paralisar
por sua debilidade: apoia-se sobre esta realidade: Deus tem-se revelado. Sabe
que a vontade divina, que tem-se dado a conhecer e que atua no plano
humano, cobrirá sua debilidade e sua miséria, conferirá a sua ação uma
qualidade que não pode dar-lhe por si mesmo. Vivendo do perdão de Deus,
realizará seu trabalho simplesmente na obediência, sem deixar-se amedrontar,
porque sabe que Deus o tem ordenado.
Ainda é necessário assinalar que esta fidelidade apostólica da
pregação não deve caracterizar-se por um único critério desde o ponto de vista
da psicologia, tanto para o pregador como para o ouvinte. A simplicidade ou a
objetividade poderiam ser uns indícios. Incluindo o êxito: por exemplo, um
despertar da comunidade. Pois estas coisas não podem ser consideradas
como critérios válidos. O único que conta é o fazer ouvir a palavra de Deus. E
não podemos saber o que ocorre neste momento, por que o efeito que produz
esta palavra de Deus depende de Deus. Por isso nos remetemos a ele, cremos
nele, no que ele faz. Fazíamos notar mais acima que a Igreja deve ser fundada
sempre no novo; se cria continuamente pelo anúncio e a audição da Palavra.
Desta maneira a Igreja instituição é uma espera da Igreja forma, anaça pelo
caminho no que se produz o acontecimento que cria a Igreja.
Devemos ver as coisas mesma na perspectiva com respeito ao
homem destacado do conjunto da comunidade, com vistas a exercer nela um
ministério particular. Este ato recebe sua eficácia da vocação dirigida por Deus.
Por esta razão, a ordenação é um ato de jurisdição eclesiástica, senão de uma
referência à chamada de Deus. É necessário, naturalmente, que o que é
ordenado receba a Palavra de Deus que se expressa na ordenação. Palavra
que deve ser sempre de novo em seu ministério.
O nomeamento não é um problema relevante da teologia, senão do
uso eclesiástico. Não tem que dizer que através ou de trás desta vocação em
sentido restringido deveria sempre existir em plena vocação de Deus.
Desta forma respeito à direção e ordem da Igreja, deveríamos ter em
conta os quatro critérios dos que temos falado. A Igreja não deve tolerar uma
função que não responda a estes critérios. Freqüentemente junto com a
vocação ordinária, existe sempre a possibilidade de uma vocação
extraordinária. Deus não está sujeito à ordenação da Igreja; a margem da
organização eclesiástica, pode ter ao bem chamar a um homem para pregar a
Palavra. Pois então, a vocação de tal homem deverá ser examinada e
apreciada pela Igreja no que toca a fidelidade escriturária.
Ao passar a revista dos elementos constitutivos da pregação
incorpora-se um termo empregado mais acima para defini-la. Temos dito que é
"uma tentativa" que a Igreja tem recebido a ordem de realizá-la". A
problemática sugeria pela Palavra "tentativa" nos leva a examinar o caráter
provisório da pregação.
2.5.A forma provisória da pregação.
A palavra provisória tem aqui um sentido mais profundo do que
ordinário. Significa: "o que não tem tocado o seu fim". Por caráter "provisório",
ou de "anterioridade", queremos dizer que a pregação precede a algo do que
ela é o sinal anunciador. É como o mensageiro que precede sempre o rei.
Abordamos aqui o passo da justificação à santidade ou santificação.
Porque a pregação é uma ação humana, é dizer, manchada pelo pecado; pois
também está ordenada e abençoada por Deu, é dizer, acompanhada de uma
promessa. Nesta parte de nosso estudo, consideramos a pregação como
orientada para a ética, para a lei, o qual nos conduz aos conceitos de
justificação e de santificação.
Ver a pregação na perspectiva de uma ação humana é ver ao
mesmo tempo ao homem incapaz e indigno de Deus. E sem embargo, esta
ação tem um grande significo, não em si mesma, certamente, porque sua
realização por parte do pregador não lhe confere nenhum valor. Pois este
significado encontra sua origem nos conceitos de "revelação", "igreja",
"fidelidade doutrinária", "fidelidade apostólica" descritos mais acima. O qual
significa que o pregador é levado a Cristo, pelo fato de ter realizado sua ação
enquanto pecador; está justificado por Cristo, Senhor da Igreja. Ele é o
princípio que necessita viver desta ação de Deus que justifica, da fé que se
resume no "não temas, crê somente".
Sem embargo, não nos imaginamos que por isso se dá uma
transformação deste homem, ou a infusão de uma nova natureza que vem de
um ser superior e que o enriqueceria. Em absoluto. A justificação é o resultado
do rosto de Deus no homem, que segue sendo homem. Falar aqui de vida nova
significa: olhar a esta luz, viver dela. É a salvação, no sentido escatológico, que
suprime a oposição entre o velho e o novo; a salvação entendida como o
cumprimento futuro do que temos e do que somo já debaixo da promessa.
A pregação é uma tentativa empreendida com nossos meios
humanos insuficientes para todos os conceitos. Aqui o homem não pode
apoiar-se no que sai de sua pessoa. Pois por parte de Deus que ressuscita aos
mortos e chama à vida ao que existe, esta tentativa é uma obre boa,
acompanhada de sua promessa e de sua benção com tal que realmente
pregue-se por seu mandato.
Vejamos outro aspecto da questão: como é possível que minha ação
seja boa e santa? Eis aqui um pecador perdoado e chamado a pregar a
palavra. Qual é a situação? Não se trata aqui da virtude senão de obediência
ante a bondade de Deus. A pregação, ação humana santificada por Deus, tem
como fundamento uma pretensão (reivindicação) de Deus. O pregador participa
de vida nova (em latim no original - vita nova), porque Deus quer tomar-lhe
consigo, o reclama para si. Quem quer restringir em algo esta reivindicação,
demonstraria que não tem compreendido o que sucede: um homem é
interpelado por Deus, se faz seu prisioneiro, escuta sua palavra. Esta é a
santificação do mensageiro de Jesus Cristo.
O pregador, como por demais, todo cristão, não está só consigo
mesmo. Ainda quando depois do chamado seja como for ou como era
anteriormente, está posto numa situação totalmente nova. Todo o que poderia
dizer-se aqui a propósito do poder de renovação da palavra de Deus é pobre
em comparação com a perturbação e a paz que se apoderam de um homem
captado pelo chamamento de Jesus Cristo. Quando Deus se volta assim para o
homem, como não vão a ser novas as coisas?
Pois então, o olhar recai sobre minha maneira de viver, sobre meu
comportamento. Que chega a ser em minha vida, esta novidade, esta nova
vida? Em todo caso, minha vida não está abandonada à aventura; não sou eu
o que manda, o mestre: sou um servo que tem um Senhor. Não vou pela vida
como um inconsciente exposto a todos os perigos; estou chamado a andar em
obediência, às ordens de meu mestre e Senhor.
Ao assinalar seu caráter provisório nos encontramos no centro da
pregação. A Igreja é a serva de Cristo sobre a terra. Nossa situação está
descrita em um fragmento central da Bíblia que interessa muito particularmente
ao pregador: o Salmo 119. Em 176 versículos expõe-se o mesmo tema em
todas as suas faces: um homem é interpelado por Deus, justificado e
regozijado pelo fato de que tem uma ordem, uma lei, um caminho.
O "provisório", de que temos falado, se faz lugar de combatente e de
trabalho. Como atuar? Intentaremos responder em seguida a esta pergunta.
2.6.Forma bíblica da pregação
Isto significa que a pregação consiste numa explicação das
Escrituras. Que devemos expor neste discurso humano? Dado que a razão de
ser da pregação é a de mostrar a justificação realizada por Deus, a tarefa do
pregador não pode consistir em desenvolver um sistema pessoal: o que pensa
de sua vida e de seu próximo, da sociedade, do mundo. Vive-se a justificação
não pode ser um profissional de ideologias humanas. Os homens não vivem do
valor imanente das coisas. Se nos perguntarmos porque estamos justificados,
temos remetido aos quatro critérios da Sagrada Escritura que dá testemunho
da revelação, funda Igreja, transmite a missão (o poder de testemunhar) e
suscita a vocação. Não tem que dizer mais o que diz a Escritura. Sem dúvida, o
pregador levará experiência do fundo que arrasta atrás de si com suas idéias
pessoais. Pois ao fim das contas, trata-se de saber se se prestará a um
compromisso; ou se, apesar de suas idéias pré concebidas, aceita a exigência
de explicar este livro e nada mais.
Para não perder-nos em considerações gerais, notaremos, em cinco
pontos, o comportamento e os caracteres próprios do pregador cristão:
a) Em primeiro lugar, ter confiança simplesmente nas Escrituras. Se
os pregadores atem-se ao texto e dá a sua exposição a forma de uma
explicação, já é o suficiente. Se pensa que a Bíblia não diz tudo o que faz falta
para viver, então esta confiança é defeituosa.
b) Explicar as Escrituras significa: respeitá-la no sentido de
considerar: ter consideração com uma coisa da que se espera uma ajuda. Todo
o discurso deve sair deste considerar. O pregador está ocupado por uma coisa
que não é só ele mesmo. Não deve pensar mais que nisto. Poderíamos
compará-lo a um homem que lê alguma coisa com dificuldade, e que fica
surpreso com os descobrimentos que faz: o vemos mover os lábios, mas que
ler e adivinhar, é tudo pelo olho, é afetado por uma impressão profunda: "isto é,
não vem dos homens".
c) A atenção específica é indispensável. O que quer pregar deve
estudar muito atentamente seu texto. Em vez de atenção, seria melhor dizer,
zelo, é dizer, esforço de aplicação para descobrir o que se diz neste texto que
está aí diante dos olhos. Para isto é necessário um trabalho exegético,
científico: em estudo preciso de caráter histórico e filosófico. Porque a Bíblia é
também um documento histórico; nasceu em meio da vida dos homens.
Desde o começo até o fim, a Bíblia diz sempre uma mesma coisa,
uma única coisa; ainda que o faz constantemente distinta maneira. A variedade
da Escritura tem também a conseqüência de que cada texto, em cada época,
fala ao homem da maneira que necessita. Por isso não se trata somente de um
trabalho filológico, senão que é necessário ademais buscar no texto a palavra
de Deus para a comunidade.
Uma pregação não é boa se se constata que este trabalho não tem
sido com seriedade também í indispensável um respeito, uma consideração
sempre renovada. Se trata aqui de lutar contra a preguiça intelectual do pastor
demasiado ocupado e voltado para o exterior. No púlpito, o Domingo, aparece
a negligência; porque, neste momento, todo zelo que se pode Ter é impotente
para suprir toda a indolência. A este respeito, a comunidade deveria deixar o
pastor mais tempo para a preparação de sua pregação. Porque para prepará-la
convenientemente precisa-se muito tempo. Por outra parte, a Igreja deveria
vigiar que só se pregasse no púlpito as pregações com seriedade.
d) O dever de modéstia. Na Escritura se lhe dá ao homem uma
resposta; deve contentar-se com ela não tem que adiantar-se com suas
disposições mais ou menos boas. Se o pregador presta atenção, recebe uma
resposta da Escritura; seu próprio pensamento está limitado. O pastor acha-se
frente aos profetas e aos apóstolos; deve, pois, retroceder com seus próprios
pontos de vista e sua espiritualidade.
Por desperto que seja o nosso espírito, todos nós nos sentimos
inclinados a empregar os caminhos trilhados. Por isso, incluindo depois do
estudo mais sugestivo, e apesar do que possamos imaginar, não sabemos
ainda o que tem a dizer. Pois cada vez está se preparando mais para a
situação, se é já um homem completo, e, sem embargo, não temos
compreendido todavia. Se pode falar, por exemplo, da consciência profunda,
do poder da linguagem e do pensamento, que tem na Bíblia, e de outras muitas
coisas. Pois isto não é ainda o evangelho, porque este não está nem em
nossos pensamentos, nem em nossos corações, se não na Escritura. Devo
renunciar aos costumes mais queridos, as melhores, a tudo isso, para poder
escutar. Não é necessário que, as causas delas sejam recusadas as coisas
que brotam da Bíblia. Continuamente devo deixar-me contradizer, estar
disponível, e deixar de lado o que possa ser obstáculos.
Este conceito de modéstia me fará ser prudente, por exemplo, ao ler
os sermões de Lutero. Esta qualidade não foi nunca seu feito e forte. Depois de
seu grande descobrimento, acreditou, que devia repetir a "única" coisa que o
animava. Esqueceu páginas inteiras da Bíblia, por exemplo, as concernentes a
lei e à remuneração, porque estava fascinado de certa maneira pelo que havia
sido revelado: a justiça pela fé e a justificação pela fé. É necessário deixar que
o texto corrija o que temos na cabeça; não imaginamos de ante mão que já o
sabe tudo. Isso é a modéstia.
e) A mobilidade. O pregador deve prestar-se ao movimento da
palavra não é suficiente dizer ou haver lido em qualquer lugar que a Bíblia é a
palavra de Deus para saber o que isso significa. Na realidade não é o sentido
em que se diz, por exemplo, que o código civil contém o pensamento do
Estado. Para fazer compreender o que sucede de verdade, seria necessário
dizer que a Bíblia se faz palavra de Deus. E quando chega a sê-lo para nós, o
é.
O pregador está chamado a viver uma história com a Bíblia;
continuamente existe um intercâmbio que se realiza entre a palavra de Deus e
ele. Quando falamos de mobilidade queremos dizer: ser dócil a este
movimento da palavra, e deixar-se conduzir através da Escritura.
Certamente, o cânon é uma garantia para nós, pois isto significa
simplesmente: a Igreja tem intendido estes escritos com lugar nele que ela
deve escutar a palavra de Deus. Enfim, pelo que concerne a doutrina da
inspiração, não é suficiente crer, senão que é necessário perguntar-se: estou
eu a escuta? Me vai falar Deus nesta Escritura? Esta escuta deve ser ativa:
dedicar-se a escritura, buscar, a fim de que ela nos encontre.
Os cinco pontos que acabamos de ver, e que caracterizam a
"biblicidade" da pregação não constituem um simples modo ou visão teológica
que se pode por, ou não, em tela de juízo. Não cada escolha. Só pode
compreender-se como uma disciplina a que se submete. Não poderíamos
substituir-nos a ela sem renunciar no mesmo instante, a sua função.
E agora, tem que prestar atenção a três conseqüências que seriam
fatais se não se tomam a sério as exigências precedentes:
1 - o pregador deve jogar no clericalismo. Ser vaidoso pela
consciência de sua missão, por sua função, sua teologia, ou acreditar-se cheio
do Espírito Santo para representar ante o mundo os interesses do bom Deus.
Contra esta miséria só existe a seiva do que sobe da "biblicidade", a verdadeira
compreensão da Escritura. Donde reina soberanamente a saga da Escritura,
não pode crescer a erva do clericalismo; o pregador não pode permanecer
numa falsa segurança e cultivar o contentamento próprio.
2 - o pregador não deve ser um iluminado levando-se a um mundo
irreal, com boas intenções, sem dúvida, e com grande idéias pré concebidas.
Uma pregação fiel não é iluminada nem iluminista, porque a Sagrada Escritura
tem sido pronunciada num mundo muito real. Freqüentemente podemos sentir-
nos isolados e solitários, pois não nos deixaremos levar pelas ilusões ou as
exaltações.
3 - o pregador não deve ser e estar aborrecido. Pastor e
aborrecimento faz tempo que tem se feito sinônimos. Os ouvintes crêem saber
desde a muito tempo, o que disse desde o púlpito. Isso não é só culpa sua. O
único remédio para isso é a Escritura anunciada em sua autenticidade. Sendo
fiel a Bíblia, a pregação não pode aborrecer-se. A Escritura é tão interessante
de fato, tem que dizer-nos tantas coisas novas e próprias para comover-nos,
que os ouvintes não podem adormecer.
Neste capítulo, é necessário ainda responder a uma pergunta: como
tratar um texto do Antigo Testamento? O Antigo Testamento nos interessa
através de seu novo companheiro, o Novo Testamento. Se a Igreja tem-se
apresentado como sucessora da sinagoga, significa que o Antigo Testamento é
testemunho de Cristo antes de Cristo, pois não sem Cristo. Antigo Testamento
e Novo Testamento relacionam-se mutuamente como a profecia em relação ao
cumprimento. Neste contexto será necessário ver sempre o Antigo Testamento.
A exegese histórica não deve esquecer-se, pois sempre teremos
que perguntar-nos: esta interpretação histórica explica o laço que une os dois
testamentos? Incluído uma pregação sobre Jz. 6,36, por exemplo, será
possível ater-nos ao sentido literal, e sem embargo, referi-lo a Jesus Cristo. O
Antigo Testamento é um livro totalmente judaico; ainda que não por isso deixa
de ter uma referência a Jesus Cristo. A relação entre o Antigo Testamento nos
guiará também no que concerne a legitimidade da alegoria. Para não ceder a
tentação de dar a uma passagem um sentido que não possui, atenhamo-nos
ao que tem-se dito neste lugar, pois sem esquecer que a Igreja tem adotado o
Antigo Testamento por causa de Jesus Cristo. Da mesma maneira, devemos
guardar-nos de opor a exegese histórica e a exegese cristã. O Antigo
Testamento olha para frente, e o Novo Testamento no futuro olhando para trás,
e ambos olham para Cristo.
2.7. A originalidade da pregação
Ao princípio deste estudo, nas definições fundamentais falamos:
"Trata-se (respeito ao homem) de anunciar a seus contemporâneos o que tem
que ouvir de Deus mesmo, explicando, em um discurso no que o pregador se
expressa livremente, um texto bíblico que lhe afeta pessoalmente". Com estas
palavras: "em um discurso no que o pregador expressa-se livremente",
queremos falar da originalidade da pregação. O pregador, criatura pecadora, é
chamado a explicar fielmente um texto. Pois esta fidelidade não é um
espantalho atrás da qual desaparece. Suas palavras não expressam as idéias
já feitas, como se as houvesse engolido, à mesma maneira da graça infusa.
Este homem que fala é certamente um homem de carne e de osso, com sua
personalidade, sua história, sua situação. Um homem que Deus tem ido a
tomar ali onde ele estava, numa situação concreta.
O pastor não deve jogar a Lutero ou Calvino, ou a um profeta, ou a
qualquer outra coisa parecida. Que ele mesmo seja quando explica seu texto.
A pregação é a palavra de um homem de hoje, palavra cuja responsabilidade
assume. Eu que tenho escutado a palavra, estou chamado a repetir aos
demais o que eu tenho escutado. É importante ser o que é, sobretudo quando
se tem um cargo apostólico. Não tem que atribuir-se a si mesmo um papel,
nem revestir-se de uma maneira espetacular, nem disfarçar-se com
ornamentos. Tem-se confiado uma missão, não como pastor ou teólogo, ou
como homem que beneficia-se de privilégios particulares, senão como servidor.
Cumpre-se com simplicidade e naturalidade. Sem embargo, devemos ter
cuidado com o que acabamos de dizer. A palavra "originalidade" é perigosa,
equívoca. Não aplica-se a qualquer que se imaginara ter adquirido como
conseqüência de não saber se a experiência religiosa, uma certa
independência a respeito de Deus. Trata-se de um homem consciente que vive
cada dia do perdão de seus pecados. Não trata-se de uma "atitude existencial",
porque o fantasma do "existencial" é simplesmente o velho satanás, que baixo
uma nova máscara encobre-se no ser humano.
E agora, eis que algumas diretrizes práticas sobre este capítulo.
a) Quando o pregador tem-se preparado seriamente, apresenta-se
diante da comunidade:
- Como um homem que tem sido alcançado, ele antes de ninguém,
pela palavra de Deus, e que tem sido conduzido ao
arrependimento ates do juízo de Deus;
- Como um homem que, com reconhecimento, tem escutado
ademais o evangelho do perdão, e que pode alegrar-se.
Somente neste movimento, que passa pelo juízo e a graça, a
pregação resulta verdadeiramente original.
b) E depois, me faz falta o valor de dizer aos outros o que isto
significa para mim. Exegese e meditação são meu testemunho dirigido aos
outros. Agora, estou chamado a dizer o que eu vivo. O faço no marco daqui de
uma exposição exegética. Já minha primeira frase deve ser uma interpretação;
um discurso ao homem, que constitua o centro de meu texto.
c) Que minha pregação seja pessoal. Sucede com freqüência que o
pregador inspira-se num modelo. Que seja, pois, o mesmo, quando esteja no
púlpito! Ele é quem tem sido chamado, ele é quem deve falar. As melhores
coisas deixam de sê-lo que elas eram, pois por pouco que sejam plagiadas e
trasladadas à boca do outro. Nada de comédias com um hábito copiado de
qualquer parte.
d) Fala a teu modo, seja natural. Não leves ao púlpito uma roupa de
rei ou de palhaço em Canaã. Incluído a linguagem tirada da Bíblia ou das
canções, o mesmo que os efeitos retumbantes de voz no fim, não são úteis
para a missão de que cumpres.
e) Sejamos simples. Nós, que estamos enrolados numa história,
queremos seguir o caminho que a Bíblia recorre a nós. Mostremos as coisas
como são, como se desenvolvem na vida. Isto nos preserva de disparates
doutrinais que não abordam grande coisa. A verdade cristã permanece sempre
nova quando está situada na vida diária.
2.8. A pregação deve adaptar-se à comunidade
Como pregador, estou chamado a conduzir a Deus às pessoas que
estão diante de mim. Deus quer que pregue a estes homens. Agora bem, não
posso dirigir-me a eles senão como a homens que já tem sido objeto da ação
de Deus. Por eles Cristo tem morrido e ressuscitado. Isto é o que tenho que
dizer-lhes. Vós sois objeto de uma misericórdia. Isto segue sendo verdadeiro
para vós hoje como o foi no primeiro dia.
Disto trata-se quando falamos "de adaptação à comunidade". Daqui
resultam as seguintes qualidades:
a) O pregador ama a sua comunidade. Deve fazer-se um corpo com
ela. Vive com este pensamento: "estou ligado a esta gente e quisera
compartilhar com isso o que tenho recebido de Deus". Falar com a linguagem
mais bela, incluindo com a dos anjos, não servirá de nada se faltar o amor.
b) Porque a ama, o pregador, vive a vida de sua comunidade.
Coloca-se a seu nível. Não deve ser o sábio, o adivinho do povo que expõe em
cena o que a gente tem em seu coração. Pois sempre tem presente a seu
espírito este problema: onde estão eles?
c) A pregação não é simplesmente uma explicação da vida, mas
clara, mais completa que a que outros lhe dessem. Tem outra coisa que é
necessária ter em conta, pois cuja situação está em último lugar. A comunidade
espera que o transcurso da vida seja esclarecido por Deus, não que se lhe
converta em grandes temas de chargistas. Sem dúvida, o pregador estará
atento a tudo, e nada o avantajará quando tratar-se de participar com o
coração. Pois o que caracterizará antes de tudo sua fidelidade será sua
maneira de participar na vida.
d) O tato é indispensável. Saber o que devemos intentar dizer a
cada indivíduo na comunidade. Freqüentemente pensamos que se deve dizer
alguma coisa, e nos apoiamos incluindo a Bíblia para fazê-lo. Agora bem, na
realidade, isto é só um assunto de orgulho. Se ocasiona um empobrecimento
das relações de confiança e uma atitude inútil. A propósito do fato assinalamos
ademais que a crítica bíblica no púlpito também deve estar subordinada a ele.
Que seja praticada somente com um espírito de serviço e respeito. Não
tenhamos dela um ideal falso de verdade.
e) Aqui é onde "é o conhecimento presente", segundo a expressão
de Paul Tillich, tem sua importância, seu justo lugar. Que exige de nós a
situação em que nos encontramos, minha comunidade e eu? Vivemos juntos a
uma história. Minha comunidade me diz o que tem no coração. Minha pregação
deve responder-lhes. Se compreendemos bem esta situação nos guardaremos
de prolongar temas que, desde faz tempo, tem perdido toda a importância.
Estas breves notas sobre o tema de uma "pregação adaptada à
comunidade" bastam para fazer-nos compreender que não se trata de "servir
uma clientela". Nem de ser um tirano, ou um zombador nem tampouco um
solitário divorciado de sua comunidade.
2.9. A inspiração da pregação.
A pregação é "a mesma palavra de Deus", é dizer que através dela
fala Deus. Se não fosse assim seria inútil seguir todos os conselhos anteriores,
seríamos servidores inúteis. Este serviço da palavra de Deus depende do que
Deus quer dizer.
- Que devemos ser humildes;
- Que, a causa de nosso papel de intermediário humano, deveremos ser
prudentes e sóbrios;
- Que a pregação, devendo-se ocupar em definitivo só de Deus, não
pode prescindir da oração, para que as palavras que se pronunciam e
se convertam em chamada de Deus. Finalmente, toda a comunidade
deve unir-se a esta oração.
Alcançamos aqui a fronteira onde se esgota o que podem dizer os
homens, o lugar onde o mesmo Espírito Santo deve interceder por nós com
suspiros inenarráveis.
3. PREPARAÇÃO DA PREGAÇÃO
Algumas vezes o pastor chega a crer-se obrigado a dizer em sua
próxima pregação, tudo aquilo que pode tirar de sua profunda intimidade.
Outras preocupam-se, porque não sabe muito bem que mensagem em
concreto é preciso oferecer. Nem uma nem outra situação deve ser tomada a
sério. Tudo o que tem de dizer-lhe será dado; é preciso que o saiba. Que
refreie, pois, um pouco o que vem ao espírito, e que escuta. Ou bem que se
deixe consolar por aquele que concede o que ordena. Não temos o Antigo
Testamento e o Novo Testamento? Neles tem muito que dizer.
3.1. Escolha do texto
A escolha do texto está diante de nós. Tem duas coisas a
considerar: o que se deve fazer, e o que não temos direito a fazer. Cada vez
que elegemos um texto, nos situamos diante da decisão: obedecer, ou
desobedecer à palavra, a Deus mesmo. Desobedecemos se nos imaginamos
poder-nos colocar diante da Escritura com nossa própria liberdade e nosso
poder autônomo. Se nos colocamos de verdade à disposição de Deus, a
obediência nos servirá de guia em nossa escolha.
Não está permitido por arbitrariamente a mão sobre as Escrituras,
buscar nela um texto que nos seja cômodo, que parece convir ao que nos
gostaria dizer. O texto não pode ser tratado segundo nossos desejos. É ele
quem manda, não nós. Está por cima de nós, e nós estamos aqui para servir-
lhe. Para evitar que nos extraviemos, enquanto seja possível, retenhamos as
notas seguintes:
a) Não escolher um texto demasiando curto. Senão tem-se
acuidade, o perigo assinalado seria mais terrível que com uma perícope. Por
exemplo, não separar a primeira bem-aventurança da última; ou bem, de 1 Jo.
4,16, que pode tentar-nos para utilizá-la ao serviço de nossa própria
eloqüência, em lugar de deixar-se conduzir pelo que ali se diz. Acrescentamos,
sem embargo, que se a pregação é essencialmente explicação bíblica, evitará
o perigo dos textos curtos.
b) Vigiar aqueles textos que passam por fáceis e que são a miúdos
muito citados. Assim, na Festa da Reforma, não desviar arbitrariamente o
sentido de Gal. 5,1; e em dia dos defuntos (finados), não dar a Jo. 11, 3,16
outro sentido que o imposto pelo contexto. A poderosa luminosidade de uma
palavra bíblica permanecerá sempre maior no contexto que quer Deus, que nos
discursos, talvez belos e interessantes, pois que violam ou violentam à Palavra
de Deus.
c) Nada de alegorias. Não exercitar nossos talentos sobre a
Palavra. Impede-se assim ressoar claramente. Procuraremos portanto, não
deixar falar a nossa individualidade nem estendermos sobre nossa situação
pessoal, por exemplo, em imagens, parábolas, ou histórias que temos vivido.
d) A pregação não deve ser um discurso utilitário. Não servir-se do
Sl. 96 para preconizar o melhoramento do cântico ou deduzir dele uma
reclamação para a música!
e) Para evitar tornar demasiado amiúdo sobre os mesmos
fragmentos, poderíamos ater-nos a uma lista baseada no ano eclesiástico, ou
bem fazer uma série de pregações sobre um mesmo livro. Do contato
freqüente com a Escritura pode ressaltar que algumas passagens imponham-
se ao pregador como um mandato. Supõe-se que o pastor consulta a sua
Bíblia em outras ocasiões ademais para pregar.
f) Não se pode fazer às vezes uma pregação sobre um tema
(pregação temática) e sobre um texto (homilia). No marco da Igreja, não temos
de expor princípios Cristãos ou outros temas deste gênero. O que temos de
ouvir é o que Deus disse à Igreja, o que consiste seu fundamento e edificação.
Se se quer ganhar incluído as pessoas estranhas à Igreja, trata-se de
evangelizar ou fazer missão, comecemos por não apartar-nos nós mesmos do
serviço que se nos tem encomendado.
g) Evitar especialmente pôr em relevo comemorações ou
acontecimentos particulares. O que pareceria útil assinalar à comunidade
poderia encontrar eco na pregação, pois tal coisa pode também passar em
silêncio: isto não dependerá da vontade do pregador, senão da exigência que a
Palavra de Deus lhe imponha. A Escritura deve encontrar um posto muito claro
no espírito do pregador. Para isto, é preciso submeter-se a uma rigorosa
disciplina. Ouçamos só o que a palavra, não o que grande público, a pequena
comunidade ou nosso coração gostaria de ouvir.
3.2. A pregação: do texto ao sermão
3.2.1. A função da recepção
O termo "receptivo" é oposto a "espontâneo". Se podemos dizer
também: passivo ou objetivo, por oposição a ativo ou subjetivo. Pois de todas
as maneiras, estes dois últimos termos devem empregar-se com reserva. Se
trata de escutar o que diz o texto. Comecemos simplesmente por lê-lo,
pensando-o palavra por palavra: é aí onde está a matéria de nossa pregação.
Ler o texto, pois no original. Toda tradução é fonte secundária e representa por
si só um verdadeiro comentário.
Quando abrimos nossa Bíblia, se nos coloca, pois, o importante
problema da língua. Não nos referimos a uma qualidade particular que faria do
Hebraico e do Grego as línguas do Espírito Santo. Não tem razão alguma para
buscar nestas línguas uma aptidão especial que as converta em instrumentos
da Palavra de Deus. Sem embargo, a revelação tem-se realizado por meio
destas línguas. Temos, pois, de trabalhar sobre estes documentos. Ao escutar
uma pregação, não podemos dar conta se está preparada segundo o original.
No original, descobrem-se relações e informações que são invisíveis na
tradução.
Depois, podemos recorrer às diversas versões. Recomenda-se ao
pregador não ler sua própria tradução, pois poderá indicar em seu sermão
correções matizes. Após a leitura atenta do texto vem o problema de seu
conteúdo. Convém desde logo dar ao contexto todo seu valor. Um texto bíblico
não é um recorte; está situado em um lugar determinado, forma parte de um
conjunto. Muitas pregações teriam outro colorido se se tivesse seriamente em
conta o que precede ao texto e o que vem depois.
Agora começa a análise. Anote-se um certo número de pontos
importantes, o objeto da perícope, suas partes diferentes, a ordem das idéias; é
preciso também ressaltar a linha que segue o desenvolvimento do texto.
Somente então poderá consultar os comentários. O comentário distingue-se da
tradução em que as diferentes partes do texto estão, uma a uma, submetidas a
estudos. Na escolha de comentários, encontra-nos geralmente ante dois tipos
absolutamente diferentes: os que são datados do fim do século XVII a nossos
dias, e os que são anteriores.
Os primeiros estão debaixo do signo da investigação histórico-
crítica. Temos o dever de lê-los. São um meio para compreender melhor a
Escritura que os antigos não tem sabido sempre ter presente. As situações nas
que a Bíblia apresenta-se debaixo do aspecto histórico e terrestre tem também
algo a dizer-nos. Naturalmente este método apresenta algumas dificuldades
que os antigos não tinham que resolver. Seja o que seja, tem tornado com os
tempos uma importância hipertrofiada: chega-se a identificar pura e
simplesmente o sentido real da Escritura com seu sentido histórico. Estamos
em presença de um verdadeiro dogma, ante tudo extra-eclesiástico e pagão, e
no que, em definitivo, não se reconhece mais que ao homem, é dizer, tudo o
que constitui seu mundo incluída a religião. Evidentemente, não se pode partir
de tal dogma para compor uma pregação. Se este dogma fosse válido, o laço
canônico que nos liga à Bíblia não teria sentido. Porque, fora da Bíblia, tem
toda uma literatura sobre este aspecto das coisas. Agora bem, a sagrada
Escritura é o testemunho exclusivo da revelação de Deus, o único meio de
transmissão da palavra de Deus.
Sem embargo, devemos conhecer comentários resultantes da
investigação histórica. Sim, nos tempos modernos, a atenção tem-se dirigido
especialmente para o lado humano da Bíblia, não é esta uma razão para
ignorá-lo. Porque não o esqueçamos, a revelação é a palavra de Deus feita
carne, e por isso mesmo, tem chegado a ser um acontecimento histórico.
Pois então, em que medida esta palavra humana é o testemunho da
Palavra de Deus? Em que medida este texto nos diz algumas coisas que, mais
além do humano, nos remete ao "Emanuel"? Nenhum problema crítico pode
dispensar-nos de colocarmos esta questão e de toma-la a sério. A Palavra tem-
se feito carne, sim, pois é a Palavra; eis aqui está o dogma Cristológico da
Bíblia. Na Bíblia, vemos homens condicionados e submetidos por uma verdade
que veio sobre eles; falam da revelação da que tem sido testemunhos e lançam
seus olhares para a revelação que vem. Tem algo que os comentários
modernos não nos dizem, não podem dizer-nos. É preciso recorrer aos antigos
(juntos aos quais, por demais, os modernos parecem inferiores por suas
variações), aos trabalhos exegéticos de Calvino e Lutero, e, com alguma
reserva a causa das influências platônicas de Santo Agostinho, podem-se ler
também coleções de pregações. As de Calvino, por exemplo, são excelentes
explicações da Escritura.
Notemos, ao terminar este capítulo, alguns dados essencialmente
práticos:
- Que fazer se, excepcionalmente, chega a ocasião em que falta
tempo para uma preparação tão completa...? Será preciso recorrer ao menor
texto original e a uma boa tradução. Seguramente trata-se de um caso
extremo. Para nós que, frente à Igreja Romana, temos este verdadeiro tesouro,
a palavra, a preocupação da pregação deve ser o dever primordial do pastor.
- Se uma pregação tende a deixar-se encadear num biblicismo
pessoal, a necessidade do comentário se impõe. As advertências saudáveis
contra o parecido erro se encontram, por demais, na mesma Escritura.
- Que atitude adotar ante um texto inautêntico...? Na Igreja, estou
chamado a ouvir a Palavra de Deus. O juízo, pois, do historiador não pode
fazer inutilizável um texto.
-
3.2.2. A função espontânea
Tem aqui dois elementos que devem considerar: o modo de
interpretar o texto e a forma de atualizá-lo. Examinemos estes dois pontos.
I - Uma vez realizado o trabalho de que acabamos de falar, nos
situamos ante o fato de que a Bíblia é as vezes um livro histórico e o livro da
Igreja.
Como livro histórico, é um monumento (monumento: aquele que fala
sobre alguma coisa do passado) que nos faz conhecer um pedaço da história
da piedade humana. Isto é preciosamente o que os comentadores modernos
têm posto para todo homem que lê a Bíblia como esta deve ser entendida, este
livro é na verdade um monumento que se refere ao passado, pois é também
um documento que tem um sentido para os dias de hoje. Este livro nos fala de
uma decisão realizada em outro tempo, decisão que tem também sua
aplicação no momento presente. Por isso a abrimos hoje em dia.
A Bíblia é o único documento da revelação, pois é um documento
suficiente. Por isso o chamamos de Sagrada Escritura, a Palavra de Deus que
chaga até nós. Se se compreende bem que este livro é o testemunho da
Palavra de Deus, pode parecer inútil falar do objeto e do tema da pregação; só
tem um objetivo, um só tema: a revelação de Deus, Jesus Cristo.
Sem embargo, o que figura no texto bíblico, recordamo-lo, não é a
revelação mesma, senão o testemunho da revelação. E incluído este
testemunho é expressão humana; os testemunhos têm sido dados pelos
profetas e os apóstolos, que não falam de sua própria colheita, senão que
estavam obrigados a isso, como diz Paulo, que não podiam fazer de outra
maneira, como diziam os profetas. Ofereceriam este testemunho como
poderiam, e sentindo sua responsabilidade perante os homens aos que
falavam. Jo. 1, 7-8, por exemplo, nos mostra claramente o que é o testemunho.
João Batista não é a luz, senão seu testemunho:
"Eis aqui o cordeiro de Deus que leva sobre si os pecados do
mundo?
A tarefa do pregador consiste em fazer ouvir este testemunho que
oferece o texto. Uma pregação é boa quando é atualização, no tempo
presente, deste testemunho dos profetas e dos apóstolos. Não se trata de fazer
uma exposição de verdades conhecidas: excelência da fé, Deus e pátria, ou
outros temas deste gênero, senão de remeter sem cessar à verdade divina
ignorada pelos homens, e de fazê-lo na esperança e na oração. Na pregação,
é preciso ter constantemente este pensamento: a verdade que está atrás do
texto bíblico é desconhecida aos homens. Tal verdade quer manifestar-se,
deve ser absolutamente conhecida. Pois o pregador não tem porque
preocupar-se. Basta com que esforce-se por dizer, segundo aos profetas e aos
apóstolos da melhor forma que possa, o que estes têm ouvido. É preciso fazer
aqui três advertências sobre a forma de expor o texto.
a) Temos assinalado que a Bíblia é um monumento e documento ao
mesmo tempo. Pois o mesmo que é preciso atualizar o documento, não é
sempre, necessário atualizar o monumento. O historiador só deve julgar um
papel na medida em que forma parte do testemunho. Na pregação, trata-se de
seguir a direção do texto, e isto em relação com nosso tempo. O texto nos dá a
direção do caminho, pois nós temos de recorrer este caminho no tempo atual.
b) Procuraremos não recair sempre no mesmo esquema por
exemplo, repetindo em cada pregação: "O homem é pecador, pois Cristo
intervém; é preciso que o homem melhore". A Escritura é muito rica, e os
caminhos que adotam são insuficiente variados. Se se tem em conta esta
observação, teremos cada Domingo alguma coisa nova que dizer; e será este
um sinal do grande começo, sempre novo, que empreendemos com Deus, por
que é ele quem tem e quer começar conosco.
c) É preciso uma vez mais denunciar o perigo de um biblicismo
arbitrário e demasiado original. O meio para preservar-nos dele é manter um
contato estreito e constante com a história dos dogmas e a dogmática da
Igreja. Os dogmas são como bóias, postes indicadores que assinalam a boa
direção. Não é preciso fazer uma exposição dos dogmas nem expor seu
conteúdo teológico senão deixar-se guiar por eles.
d) Tomemos agora três esquemas de pregação1 para ilustrar o que
estamos dizendo: por exemplo é o Salmo 121:
1 - Elevo meus olhos para os montes:
Donde virá o meu socorro?
2 - O meu socorro vem do Senhor
Que faz os céus e a terra.
3 - Não permitirá que tropeças teu pé,
Teu guardião não dormirá;
4 - não dorme nem descansa
O guarda de Israel.
5 - O senhor te guarda a tua sombra,
Está à tua direita;
6 - de dia o sol não te fará dano,
Nem a lua de noite.
7 - O Senhor te guarda de todo mal,
Ele guarda a tua alma;
8 - O Senhor guarda a tua entrada
e a saída, desde agora para sempre (tradução do Salmo feito por D.
Sotelo).
Este Salmo tem quatro partes importantes:
a) Os vv 1-2. Trata-se aqui de um cântico de peregrinos que fala da
ajuda de Deus que oferece ao homem fraco e desamparado. Este homem sabe
que existe uma ajuda a ele; mas ainda: sabe de onde vem esta ajuda. Dirige
seu olhar nesta direção, é dizer para Jerusalém onde reside o Senhor Deus,
todo poderoso, o criador do céu e da terra. Daí é onde lhe vem o socorro.
Assim, pois, existe um lugar, também para nós, de onde podemos esperar o
resgate.
b) Os vv 3-4. Esta certeza, a temos, porque Deus, nossa ajuda, é
ativo, atua: nunca adormece-se, jamais permanece inacessível ao que tem
1 Estes três exemplos têm sido expostos no Bulletin du Centre protestant d'Etudes, Geneve, Juin, 1954.
necessidade dele. Não está ausente, mantendo uma existência passiva em
esferas longínquas e fora de todo o contato com este mundo. Pelo contrário, o
Senhor está presente, com uma proximidade imediata, e sempre podemos
encontrar-lhe.
c) Os vv 5-6. Deus nos guarda precisamente quando o perigo é
maior, e ameaça destrui-nos. O elemento histórico não joga aqui nenhum
papel. O mal, tempo local, provocado pelo sol ou a lua, é totalmente secundário
e sem importância para nossa interpretação.
d) Os vv 7-8. A comunidade do Antigo Testamento tinha costume de
orar por cada um de seus membros, e encontrava sua força e sua consolação
nesta intercessão de uns para os outros. Também nós sabemos que hoje,
alguém roga por nós, pois de uma maneira muito mais eficaz que então: o
mesmo Cristo interviesse ante Deus todo poderoso. Sua oração é nossa
esperança e nossa força.
Uma pregação sobre o Salmo 121 poderia seguir este esquema.
Não trata-se de expor um tema concreto. Vejamos um outro exemplo: Jo. 13,
33-35:
33 - Meus filhos, já pouco tempo vou estar convosco. Vós me
buscareis e, o mesmo que disse aos judeus, vos digo também agora a vós:
aonde eu vou, vós não podeis ir.
34 - Vos dou um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros.
Que, como eu vos tenho amado, assim vós ameis também vós uns aos outros.
35 - Nisto conhecerão todos os que sois meus discípulos: se tiverdes
amor uns aos outros.
Estes três versos vieram bem para uma pregação no tempo da
paixão. Estão naturalmente em estreita relação com o que precede. O verso 30
assinala o começo da fase final e o último da paixão do filho do homem. A
encarnação de Deus realiza-se neste momento, nesta noite: uma última e
suprema glorificação lhe tem sido assegurado em sua mesma humilhação. O v.
31 ao mesmo tempo é glorificado em sua próxima elevação. O passo que
Jesus está a ponto de dar para o sofrimento, mais sombrio anuncia já a sua
transfiguração, seu trânsito à glória.
No v. 33 intervém um elemento novo. "Filhos meus... vos digo
também...": estas palavras dirigem-se em primeiro lugar ao pequeno grupo de
discípulos, pois este grupo estende-se já por todo mundo crente. O conjunto da
comunidade dos crentes existe nestes poucos apóstolos. Jesus lhes comunica
a todos seus últimos pensamentos. Eles devem saber ou compreender que não
poderão seguir a Cristo por este caminho. Nem o mundo, nem a Igreja serão
capazes de imitar o que a Cristo só tem lhe sido encarregado de realizar. Só
Cristo pode iniciar o caminho traçado pelo Pai, e recorre-lo, através do mundo.
Pois eis aqui no v. 34 aparece, de uma maneira surpreendente, um
novo mandamento. Esta ordem não fala de imitação: exige o amor mútuo. Esta
obediência responde a uma ordem muito direta. "Amai-vos uns aos outros",
porque o amor tem chegado a ser a natureza nova de quem tem visto a Jesus.
Agora bem, o mundo deve ouvir a palavra de Jesus por mediação da primeira
Igreja, por mediação de seus membros. E isto somente realizar-se-á "se vos
amai-vos uns aos outros". Não se diz que o mundo inteiro será conquistado por
essa Palavra de Deus senão o comportamento dos discípulos mostrará se
esses estão com Jesus. Este comportamento é a característica da Igreja em
meio do mundo.
Este esquema só quer ser uma exposição para ajudar a alcançar e
alcarar a linha deste texto, não o modelo. Nossa tarefa consiste em oferecer
em nossa linguagem e para pessoas de hoje em dia o que encontrar-se no
texto. Realmente alguns destes versos contém uma riqueza inesgotável.
Um último texto como exemplo é de Ef. 2, 1-10:
1-2 - E a vós que estáveis mortos em vossos delitos e pecados, nos
quais vivesses em outro tempo segundo o proceder deste mundo, segundo o
príncipe do império do ar, os Espíritos que atuam agora nos rebeldes...
3 - Entre eles vivíamos também todos nós em outro tempo em meio
das concupiscências de nossa carne, seguindo os desejos da carne e dos mais
pensamentos, destinados pela natureza, como os demais à cólera...
4 - Pois Deus, rico em misericórdia, pelo grande amor com o que
nos amou;
5 - Estando mortos por causa de nossos delitos, nos vivificou
juntamente com Cristo - por graça fostes salvos.
6 - E com ele nos ressuscitou e nos fez sentar nos céus em Cristo
Jesus.
7 - A fim de mostrar nos séculos vindouros a super abundante
riqueza de sua graça, por sua bondade para conosco em Cristo Jesus.
8 - Pois fostes salvos pela graça mediante a fé; e isto não vem de
vós senão que é Dom de Deus;
9 - tampouco vem das obras, para que ninguém se glorie.
10 - Com efeito, feitura sua somos: criados em Cristo Jesus, em
ordem às boas obras que de antemão dispôs Deus que praticássemos.
Esta passagem coloca de forma aguda o problema da pregação
sobre o pecado. Estabelece ao começo que todos os ouvintes dos apóstolos
têm sido homens pertencentes a este mundo, e pelo mesmo modo cheio de
pecado, vivendo neste mundo como seres independentes (sem Deus) e
rebeldes. Esta situação era totalmente estranha à vida verdadeira. Os homens
estavam mortos, no verdadeiro sentido da palavra, debaixo da cólera de Deus.
No v. 3, que resulta na realidade concreta e terrível do pecado, se opera uma
mudança prodigiosa: ao "vós" sucede bruscamente um "nós", pelo que Paulo
declara-se perdido no pecado como os demais.
Pois nos inteiramos de algo maravilhoso: a totalidade do pecado é
relegada ao passado. Este fato não implica de maneira alguma um
debilitamento da consciência do pecado pelo contrário, esta recusa põe em
evidência seu caráter abominável. A horrível realidade e a permanente
atualidade do pecado permanecem, ainda que este tenha sido recusada a um
tempo que se encontra às nossas costas. Este pecado aí, em todos os tempos,
pois está recusado, vencido. Está privado de seu poder de domínio e de
destruição.
Os vv. 4-7 designam ao vencedor de tudo o que leva o sinal do
pecado... A boa nova ressoa: todos os que estavam mortos debaixo do jugo do
pecado fostes ressuscitados em Cristo. Esta ressurreição dos mortos é obra de
Deus, dele só, obra realizada em Cristo e em sua elevação. O combate contra
o pecado está longe; a batalha está ganha, ainda que não tem terminado
todavia. A vitória é certa. Assim como Paulo combate o mal. Nada de linha
moral, de planos de batalhas, de preceitos éticos, senão só voltar-se para
aquele que despossuiu ao pecado de seu poder de uma vez para sempre. Esta
referencia a Cristo será desenvolvida no v. 7. Paulo vê nos cristãos o objeto da
bondade de Deus. Deus, em sua infinita riqueza, nos tem preparado uma
herança incorruptível.
Os vv. 8-10 nos situam no tempo que vai da ressurreição de Cristo a
seu regresso. O que somos neste tempo intermediário não o somos por nós
mesmos. Não temos, pois razão nem direito algum para gloriar-nos. Não são
nossas obras quem faze que sejamos o que somos. É a graça de Deus que
nos salvou por intermédio da fé, também ela, é um Dom de Deus. Assim pois,
onde encontraríamos um motivo de orgulho qualquer que fosse? E, sem
embargo, temos sido criadores para as boas obras que devemos praticar. É
importante ressaltar que Paulo evita aqui todo o imperativo: serve-se do
indicativo. Quer separar qualquer dúvida sobre este ponto: tudo é obra de
Deus, nada procede da iniciativa humana.
Esta passagem é típica do testemunho apostólico, que nunca expõe
um tema particular, senão que submete-se unicamente ao grande tema da
Bíblia. Esta é a mensagem que deve ser claramente dada à comunidade cristã.
II - Temos falado da orientação seguida pelos autores bíblicos ao
expor seu testemunho. Vamos ver agora como seguir este mesmo caminho em
nosso tempo. Nos referimos ao tempo no que vive a comunidade à que
devemos falar, e que deve ouvir sempre de novo a Palavra. Batizamos na
Igreja, e é preciso fazer uma chamada à fé fundada sobre o batismo. E aqueles
a quem nos dirigimos tem isto de comum: para eles nada tem mais seguro que
sua morte.
Pois se quer dirigir-me a eles de forma compreensível, e preciso que
lhes conheça em sua individualidade própria, naquilo que constitui sua vida,
suas possibilidades, sua boa ou má vontade, a fim de encontrar o meio de
captá-los e de que a palavra chegue a ser-lhes inteligível.
Nos vos deixamos turbar pelo problema de se um homem, pode
dirigir-se a outro de tal maneira que este último escute com fé. Primeiro, é
preciso que faça tudo o que esteja em minhas mãos para que a pregação não
seja um monólogo, magnífico, e quiças, pois que poderia ser inútil para a
comunidade. O homem ao que vou dirigir-me deve estar continuamente
presente em meu espírito durante minha preparação; do conhecimento mais ou
menos completo que eu tenha dele fluirão idéias inesperadas e associações
que me acompanharão de verso a verso. Estas idéias e associações
constituem o elemento de atualidade, e se bem os resultados de nossa
exegese teológica representam o fundamento sólido, o elemento de atualidade
nos permitirá prosseguir a construção de nosso discurso cristão.
Gostaríamos de esclarecer o que precede desenvolver esta
afirmação: na pregação, a explicação relaciona-se com a aplicação com o
sejeito com o predicado. A marcha de uma pregação tem lugar em e com a
Igreja tal como ela é no momento presente. Deve referir-se pois, não ao
homem abstrato, se não ao homem de carne e osso que está aí hoje, que
forma já parte da Igreja ou que está ainda fora dela. Quando falamos do
homem de hoje que está aí para escutar a Palavra, o entendemos tanto do
pregador como do ouvinte. A pregação não pode ser, pois, um monólogo que
quer zombador faria sobre si mesmo e seu próprio pecado, porque então não
se poderia falar de Igreja, de comunhão santa (sancta communio).
Pois existe outro perigo que é quiças mais temível ainda porque
sucumbe-se a ele mais facilmente: o pregador não deve falar à comunidade
colocando-se fora dela, desprezando integrar-se ele mesmo em tal
comunidade. O pregador deve saber qual é sua situação: é portador de uma
função, sem dúvida, pois de uma função que tem-lhe sido concedida à Igreja,
não à sua pessoa. Que não imagine-se que graças à sua teologia está
colocada demasiado alto como para abaixar-se para o pobre do povo. Deve
saber que tem necessidade, também ele, de ouvir sempre de novo a Palavra.
O conhecimento desta situação será a condição determinante de uma sã
aplicação, que sempre será ao mesmo tempo explicação.
Quando, em nossa pregação, procuramos seguir fielmente a
orientação do texto, nos encontramos com uma dificuldade séria, a propósito
da aplicação: ser ao mesmo tempo fiel ao texto e à vida moderna. Desgraçado
o pastor que não encontra atualidade da Palavra para os homens de hoje. Pois
por outra parte, infeliz ainda o pastor que vê o que a palavra bíblica diz
escandalizar, e que por isso vem a ser um desertor.
A palavra quer ser confrontada com o homem de hoje, quer agitar-
lhe, atacar-lhe, a fim de conduzir-lhe desta maneira à paz de Deus. Não é
preciso deformar a Palavra, ou evitá-la com preguiça e desobediência. O
pregador deve por isso ter coragem para pregar como se deve; uma coragem
que não tente este ataque direto, que está por cima das conseqüências que
possam resultar de sua obediência ao texto. Se se tem esta coragem, então é
a palavra de toda a Sagrada Escritura quem se encarrega de toda a
responsabilidade.
Permanecer perto da vida e manter-se fiel ao texto. Esta dificuldade,
para a que não possa dar nenhuma receita, deve permanecer para todos como
uma advertência. A pregação temática, na que é tão fácil de fazer uma idéia
que advém do centro da pregação, está mais particularmente exposta a
violentar o texto ao querer aproximar-se da vida. Não confundamos demasiado
facilmente os belos pensamentos de nosso eu enamorado de si mesmo, com
os pensamentos do texto em geral menos confortáveis e que se prestam
menos à moda do dia. Por isso é necessário provar seriamente os materiais de
atualidade que se nos ocorrem e passa-los pelo crivo de nosso texto. Esta
precaução poderá quiças forçar-nos a abandonar os mais belos pensamentos
que se nos tenham ocorrido sacrificando-os à dinâmica do texto. Não temamos
uma pregação que quiças marche adiante com seus membros rompidos, pois
que não será nem covarde nem inadequada. Então é quando mostra-se a
verdadeira coragem frente aos homens, e ao mesmo tempo a verdadeira
humildade frente à palavra. A verdadeira humildade que convém quando se
trata com a Sagrada Escritura e que é a única coisa que conduz a uma
pregação bendita por Deus. Apliquemo-nos somente a nosso texto: o
verdadeiro exegeta descobrirá nele sempre novas profundidades e novos
mistérios; sua atitude será a de uma criança admirada em um jardim
maravilhoso. Que não jogue um advogado de Deus!
Fidelidade ao texto e fidelidade à vida. Sempre será melhor estar
perto de um texto que perto de um tema, ou demasiado tempo com ele.
Coragem e humildade: será sempre necessária muita coragem, será preciso
também muita humildade; e quiças será preciso por mais acento ainda na
humildade, para que o amor de Deus realize-se no amor ao próximo.
3.2.3. Redação, introdução, unidade e conclusão da pregação
A redação deve seguir várias regras. Em primeiro lugar, escrever a
pregação, e isto é tão importante que é preciso justificá-lo. Sem dúvida,
fazemos um discurso; pois tenhamos ou não disposições para fazer este
discurso, não é necessário contar preguiçosamente com o Espírito Santo ou
com um outro espírito, que inspiraria no mesmo momento em que devemos
falar o que temos de dizer. A pregação deve ser preparada e redigida palavra
por palavra. Aqui se aplica muito bem o que temos de dar conta de toda
palavra vã. A pregação não é uma arte no que poderiam improvisar e outros,
redigir por escrito. É o ato central do culto evangélico, em estreita conexão com
o sacramento. Só uma pregação na que se possa justificar cada palavra é um
ato sacramental. A responsabilidade que penetra cada palavra e forma parte da
santificação do pastor. Esta regra vale para todos, e não só para os jovens.
Muitos pastores têm adquirido tal habilidade que acreditam poder dispensar-se
desta disciplina, e sem embargo suas pregações não são discursos cristãos.
Tem que procurar que a pregação não seja uma palestra que deixa a
impressão de que o pastor não tem-se preparado.
É necessária uma introdução? Não, ao menos que se trate de uma
introdução Bíblica. Qualquer outra forma tem que desfazê-la, e isto por várias
razões; vamos colocar em relevo duas:
a) Para que vamos à Igreja? Para ouvir a Palavra de Deus. Os
diferentes atos do culto são já uma introdução à pregação, que é o ponto
culminante. As poucas palavras que a anunciam são suficientes: qualquer outra
introdução é tempo perdido, e já sabemos que uma pregação não deve ser
demasiada longa. Pois tem algumas que são demasiadas curtas, e se intenta
então explicar que a brevidade é uma qualidade. Este procedimento pode valer
para outra classe de discurso, pois não para a pregação, que deve deixar à
Palavra de Deus: é esta a que regula o tempo. Fique claro que a extensão não
é um sinal de fidelidade; sem embargo é preciso não esquecer que nossa
exposição forma parte do culto que se rende a Deus, e que este culto é a parte
mais importante de nosso Domingo. Quando se dá glória a Deus não se faz
com o relógio na mão.
b) Muito a miúdo a introdução não introduz, senão que distrai o
pensamento da Palavra de Deus. Os homens vêm à Igreja com toda classe de
imagens na cabeça, e tenho aqui que o pastor toma a palavra para dizer outra
coisa distinta do verdadeiro objetivo de seu discurso. De um golpe seu objetivo
fica frustado. Porque justamente são os dez primeiros minutos que tem uma
importância capital: anunciam o que será a pregação.
Quando se tem uma introdução, como se prece geralmente?
a) Um ponto de partida muito corrente consiste em falar do tempo
em que se vive, ante o qual o pastor toma a posição de uma maneira positiva
ou negativa. Pois estas são as coisas que o ouvinte conhece quiças melhor
que o orador, e que nada tem a ver com a pregação.
b) Ou bem começa-se com a citação de uma grande personagem.
Pois que significa o nome deste personagem depois que tem-se lido e orado?
Não faz mais que dirigir a reflexão dos ouvintes em outra direção. A palavra
bíblica não pode ser avaliada por a de um homem, por bela que esta seja. Isto
é indigno.
c) Às vezes esta introdução é negativa. O procedimento é mau.
Uma exposição sobre o pecado e sobre um sermão. Oferece quiças um
horizonte imenso pois não é lícito alimentar desde o princípio a uma
comunidade cristã ou em vias de sê-lo com um desdobramento tal de rigor. Na
mesma ordem de idéias, existe o esquema consistente em criticar o velho Adão
que subsiste no homem para opor-lhe o "sem embargo" grandioso de Deus, se
se começa por falar da corrupção humana, expõe-se a um perigo da pregação
temática e a palavra bíblica fica então em segundo plano.
d) Tem quem utiliza, a modo de abertura, um pedaço da Teologia
Bíblica ou uma introdução ao Antigo ou ao Novo Testamento. Isto não tem seu
lugar numa pregação com parte independente, pois pode encontrar seu
momento de expressão legítima na exposição do texto.
Em ocasiões várias intenta-se justificar a introdução com uma razão
teológica. Parte-se da idéia de que tem no homem um pólo de atração da
Palavra de Deus, que espera esta Palavra. Tal coisa seria válida para Adão no
paraíso! Um ponto de vista assim seria concebível no marco de uma teologia
romana, no sentido da graça proveniente ou da analogia entis (em latim no
original). Por se interpretar a Bíblia segundo os reformadores, se sabe que tais
possibilidades humanas não existem, e que a união entre o homem e Deus se
faz desde o alto, por um milagre de Deus. Por natureza, o homem não está
disposto a ouvir a Palavra de Deus: somos filhos da ira (Ef. 2,3).
Nos dirigimos aos homens fundando-nos no fato de que são
chamados ao batismo em Cristo. A promessa é a única coisa que possuem.
Sem mudança, por causa desta promessa, não temos de considerar à
humanidade desde um ângulo negativo: aqui é onde Jo. 3,16 alcança toda a
sua significação. Cremos no milagre de Deus que tem-se produzido entre nós.
Que um homem possa falar disto é algo inaudito, pois deve cumprir este
serviço. O homem não tem de tomar outra atitude que a de mensageiro que
tem algo que dizer. Não é preciso procurar construir uma elevação para subir:
não se trata de alcançar uma altura. A realidade é que alguma coisa deve vir
do alto para nós, e isto realiza-se só se a Bíblia é quem fala desde o começo.
A pregação não está composta de partes separadas e ordenadas
arbitrariamente com ralação ao Texto. É um todo. Se se a interpretação como é
um corpo, se exclui pelo mesmo uma regra premeditada. É lógico distinguir
partes na pregação temática, pois este procedimento não é nosso. O texto é o
que nos conduz, não um tema. Nem falar mais de fé desde um ponto de vista
teórico e depois da vida prática. A unidade vem dada pelo texto mesmo do que
é preciso seguir o ritmo o próprio ressaltando suas proposições. Por
conseguinte é preciso ir de verso a verso, pois também pode ocorrer que os
versos não tenham todos a mesma qualidade, e que o acento do texto
apresenta variações. Seja o que for, o conteúdo essencial é o que deve
determinar o desenvolvimento. Tomemos um exemplo: Jo. 1, 43-52. Nesta
passagem a pregação deve girar em torno dos vv. 47-48: Cristo conhece o
predestinado Natanael; o resto está orientado para este núcleo.
Não tem, pois, que buscar o que é preciso dizer em primeiro lugar,
segundo ou terceiro. Observemos o dito. Isto que temos dito é uma coisa só: a
Palavra de Deus. Esta Palavra, não a podemos produzir por nosso engenho.
Só podemos testemunhá-la.
A pregação não deve implicar obrigatoriamente uma conclusão. Se
tivesse necessidade de uma conclusão para resumi-lo todo, então se haveria
perdido a ocasião. Não se pode ademais terminar com a aplicação, porque a
interpelação não virá nunca demasiado rápido. Evitamos citar versos de
cânticos para terminar e introduzir-nos arbitrariamente no corpo da exposição.
Uma tentação perigosa é concluir, a modo de exortação final, com uma grande
aleluia. Esta pode ser a exceção, pois não a regra.
Finalmente, a última palavra: amém, é em nossa debilidade, uma
consolação. Cremos assim que a palavra de Deus é a verdade que temos