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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rodrigo dos Santos
Força, Armas, Leis e Milícia
em I Primi Scritti Politici, de Maquiavel
MESTRADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO
2015
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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rodrigo dos Santos
Força, Armas, Leis e Milícia
em I Primi Scritti Politici, de Maquiavel
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertação de Mestrado com o título: Força, Armas
Leis e Milícia em I Primi Scritti Politici, de
Maquiavel apresentada a Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como
exigência para obtenção do título de MESTRE em
FILOSOFIA sob a Orientação do Prof. Dr. Antonio
José Romera Valverde.
SÃO PAULO
2015
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BANCA EXAMINADORA
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DEDICATÓRIA
Lembrando-me do Livro dos Provérbios, penso: "o coração prudente
possuirá a ciência" (v.15). Por isso é que dedico esta Dissertação de
um modo todo especial, a minha esposa, Josiane Alves Barbosa dos
Santos. Agradeço-lhe pela sua companhia, pelo seu apoio, pelo
incentivo me dado à volta aos estudos de uma maneira mais
aprofundada em 2007 e pela compreensão que sempre demonstrou
neste tempo de formação acadêmica, na pós-graduação, que não foi
nada fácil. Dedico de igual modo a minha nova razão de viver - minha
segunda filhinha: Camila Aparecida Alves Barbosa dos Santos, por
quem, com todo afeto, me impus um ritmo para findar esta empreitada
intelectual.
Diante do recorte da história em que estou, penso em quem não está
mais. Neste sentido, lembro-me do Prefácio da Missa pelos "Fiéis
defuntos", onde se encontra um referencial que me conforta em
relação aos que desta vida já partiram. No rito se lê: "Senhor, para
aqueles que acreditam em vós, a vida não é tirada, mas transformada
[...] e transformado nosso corpo de miséria, nos é dado, nos céus, um
corpo de glória". É assim, em solene esperança do "ainda não da
minha história", que dedico este trabalho e pesquisa in memoriam de
algumas pessoas muito significativas na minha vida. Os meus pais –
Dorival Camilo dos Santos e Benedita Santos e a minha filhinha
primogênita, Ana Clara dos Santos Barbosa.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus e a Natureza pela virtù!
Agradeço ao CNPQ que me contemplou com Bolsa de Estudo na efetivação desta
pesquisa e dissertação. Foi, de fato, uma oportunidade impar, que sem a qual a meu trabalho
ficaria muito mais oneroso.
Especial agradecimento ao Prof. Dr. Antonio José Romera Valverde, meu
orientador. Pela partilha, pelas aulas, pelo bom humor, pela sinceridade, por seu espírito
animado em ensinar, pelo seu “prazer pedagógico” em cada encontro, enfim, por ter-me
aceito como seu orientando e ajudado na efetivação e realização desta pesquisa e dissertação.
Agradeço ao Prof. Dr. Marcelo Perine por suas sugestões ao tempo da
qualificação e pelo apoio nos estudos durante a empreitada nesta Instituição.
Agradeço a exigente e pertinente reflexão que me causou o parecer do Prof. Dr.
Kurt Eberhart Von Mettenheim ao tempo da qualificação. Obrigado por ter aceito participar
de minha Banca, de ler meu trabalho e de me oferecer riquíssimas sugestões.
Agradeço aos Professores: Dr. Anor Sganzerla (PUC-PR); Dr. Sidnei Francisco
do Nascimento (UFMA) e Dr. Mario Ariel Gonzáles Porta (PUC-SP) por aceitarem fazer
parte da Banca de Exame Final.
Agradeço ainda aos Professores: Dr. Edelcio Gonçalves de Souza (USP), pela sua
atitude de compreensão e colaboração para a especificidade de minha situação acadêmica e ao
Dr. Maurílio José Camello (UFMG, UNITAU-SP), um grande amigo e incentivador ao estudo
contínuo.
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"Penso que a maior honra que podem ter os homens é aquela que
voluntariamente lhes è dada por sua pátria. Acredito que o maior bem que
se possa fazer, e o mais grato a Deus, seja aquele que se faz pela pátria.
Além disso, nenhum homem é tão exaltado em uma ação, quanto são aqueles
que, com leis e instituições, reformam as repúblicas e os reinos. Depois
daqueles que foram deuses, estes são os mais louvados. E como foram
poucos os que tiveram ocasião de fazê-lo, e pouquíssimos aqueles que
souberam fazê-lo, são raros os que o fizeram. E essa glória tem sido tão
estimada pelos homens que eles nunca visaram outra, e quando não
puderam instituir uma república em ato, fizeram por escrito, como
Aristóteles, Platão e muitos outros, que quiseram mostrar ao mundo que se
não conseguiram fundar uma república, como Sólon e Licurgo, não foi por
ignorância, mas pela impossibilidade de concretizar seus planos".
Maquiavel,
Política e Gestão Florentina,
(2010)
"A certa altura de minhas leituras, deparei-me naturalmente com as
principais obras de Maquiavel. Elas provocaram em mim uma impressão
profunda e douradora, acabando por abalar minha antiga crença. Delas
não aprendi os ensinamentos mais óbvios, ou seja, como chegar ao poder
político e conservá-lo [...] ou ainda, a que força ou astúcia devem recorrer
os governantes se desejam regenerar ou proteger suas sociedades ou a si
próprios ou a seus Estados de inimizade interna ou externa. Aprendi algo
diverso. Mudei minha noção de virtude. Há pouco tempo pensava sobre a
prudência, mas nem todos os valores supremos buscados pela humanidade
agora e no passado são necessariamente compatíveis entre si. Aprendi um
pouco da política e do político".
Isaiah Berlin,
Limites da utopia: capítulo das histórias das ideias
(1991)
“A grandeza de Maquiavel reside no fato de ter reconhecido, no limiar da
nova sociedade, a possibilidade de uma ciência da política, equivalente nos
seus princípios à física e à psicologia modernas e de ter enunciado os seus
traços gerais de um modo simples e rigoroso. Não se trata aqui de analisar
quão consciente Maquiavel estava desta analogia, ou quais as motivações
que sofreu, vindas da leitura de obras de escritores clássicos ou
investigadores seus contemporâneos: a sua intenção está à vista”.
Max Horkheimer,
Origens da filosofia burguesa da história (1929)
“Não são textos menores. Apresentam um Maquiavel republicano, servidor
público, antropófago e mestre em ilustrar o momento político, seja para a
política exterior florentina republicana, seja depois de seu afastamento na
procura de males menores no meio de forças monárquicas, estrangeiras e
papais”
Kurt Mettenheim
Prefácio – Política e Gestão Florentina
(2010)
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RESUMO
SANTOS, Rodrigo. Força, Armas, Leis e Milícia em I Primi Scritti Politici, de Maquiavel.
Dissertação de Mestrado em Filosofia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015,
204f.
A presente dissertação, a partir dos I Primi Scritti Politici, de Nicolau Maquiavel, apresenta a
denominada "teoria da força", intitulada desta forma por Claude Lefort, fundada na qualidade
de base para formação do exército florentino, tendo como instrumental, as boas armas, bem
manuseadas, com homens disciplinados e patriotas. No que se refere à constituição da teoria
da força, e tendo em vista todos os malefícios em que se incorre ao confiar em estruturas
arcaicas, tal como o modelo medieval de Providência ou da ação política fundada no amor,
Maquiavel desenvolve uma estratégia, aferida em sua prática, que desvincula a utilização de
soldados mercenários ou exércitos mistos, portanto, de homens não patriotas, porque estes são
por demais traidores e dados ao dinheiro. Maquiavel propõe a escolha perante o disjuntivo do
– amor ou força, o pretérito do uso da força para conquista, reconquista e conservação do
Estado. É por isso que a Itália de seu tempo sofria as agruras de uma nação espoliada,
externamente, porque era fraca do ponto de vista de defesa e ataque. O “sonho de Maquiavel”
é unificá-la, e a República de Florença há de ser a pioneira na estratégia de organizadamente –
a partir da teoria da força, e de uma lógica que seja própria, partir para uma práxis de
liberdade. A lógica da força é binária, pois tem uma direção teórica e estratégica, da qual
Maquiavel se torna expert e outra prática, de onde a necessidade das armas, principalmente as
de fogo, são indícios de fato do poder. O manuseio virtuoso das boas armas, vinculadas a boas
leis, dosado de violência quando necessária, leva o Estado a manter-se no poder e defender
sua condição de liberdade. A prova disso é que a história se incumbiu de demonstrar aos
homens que faziam a plena harmonização do mezzo uomo e mezzo bestia, situação essencial
para a fixação no poder. E tal era a situação de César Bórgia e Castruccio Castracani.
Palavra Chaves – Força, Boas armas, Exército próprio, Boas leis, Violência.
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ABSTRACT
SANTOS, Rodrigo. Force, Weapons and Army on I Primi Scritti Politici, of Machiavel.
Dissertation for a Master in Philosophy. Pontifical Catholic University of São Paulo, 2015,
204f.
This dissertation, from I Primi Scritti Politici of Niccolo Machiavelli, presents the so-called
"theory of force", called this way by Claude Lefort, founded on the basis of quality training
for the Florentine army, whose instrumental force of efficient weapons, well handled, with
disciplined men to form an appropriate army for the City of Florence. Regarding the
establishment of the theory of force, and in view of all the harm that is incurred to rely on
mercenaries in armies mixed in men unpatriotic because they are real betrayers due to the
money, Machiavelli proposes the choice before the disjunctive – love or force, the use of
force for conquest again and preservation of the state. That's why the Italy of his time
suffered the hardships of a nation plundered externally, because it was weak in terms of
defense and attack. The “dream of Machiavelli” is to regroup it and the Republic of Florence
is to be a pioneer in an organized strategy – from the theory of force and a logic that is
appropriate, heading to a praxis of freedom. The logic of force is binary, it has a “theoretical
and strategic way from” which Machiavel is becoming clever, and another “practical” where
the weapons, especially the fire ones are indications of real power. The virtuous handling of
efficient weapons linked to good laws, mixed with violence when useful, it takes the state to
remain in power and defend its condition of freedom. The proof in the dissertation is that the
history is instructed to show men that achieve the full harmonization of “mezzo uomo e mezzo
bestia”, essential situation be fixed in the power in the place. And such was the situation of
Cesare Borgia and Castruccio Castracani.
Word Keys - Strength, good arms, good laws own army.
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SUMÁRIO
Dedicatória ............................................................................................................................. 03
Agradecimentos ..................................................................................................................... 04
Resumo ................................................................................................................................... 06
Abstract .................................................................................................................................. 07
Relatórios dos I Primi Scritti Politici .................................................................................... 10
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11
CAPÍTULO I – A LÓGICA DA FORÇA E A CONQUISTA DA LIBERDADE EM I
PRIMI SCRITTI POLITICI, DE MAQUIAVEL ................................................................ 22
1.1. O Humanismo Cívico e a ideia de vida ativa: a lógica da Força versus a lógica da
Providência .............................................................................................................................. 24
1.2. “O Maquiavel antes de Maquiavel”: O Secretário observador dos I Primi Scritti Politici
.................................................................................................................................................. 42
1.3. A lógica da força e seus disjuntivos em I Primi Scritti Politici ....................................... 60
1.4. A lógica da força nos escritos posteriores a 1513 ............................................................ 70
CAPÍTULO II – AS ARMAS, AS BOAS LEIS E A MILÍCIA PRÓPRIA COMO
INSTRUMENTO E FORÇA DA AÇÃO POLÍTICA ..................................................... 107
2.1. A necessidade das armas, das leis e do Exército como base manutenção do poder político
e da competitividade do Estado ............................................................................................ 112
2.2. As armas e o Exército próprio: Análise interna dos I Primi Scritti Politici e do Príncipe
................................................................................................................................................ 122
2.3. O povo e a sua virtú: Força e armas desembocam na manutenção do poder ................. 132
2.4. A formação do Exercito próprio de Florença: "As provisões da República de Florença o
Magistrado dos Nove Oficiais da ordenança e Milícia florentina" ....................................... 142
9
2.4.1. A escolha, formação e aptidão militar ......................................................... 144
2.4.2. Os nove oficiais da ordenança: autoridade, função e administração ........... 146
2.4.3. A garantia da ordem através dos condestáveis e do modelo francês ........... 148
2.4.4. A organização interna dos homens inscritos no exército: Estruturação,
Dispensa e Manutenção sob denúncia ................................................................... 151
2.4.5. Os homens e as armas: “Homens armados na confiança e na força” ........... 152
2.4.6. A relação interna e de obediência aos conscritos – “O capitão da guarda” e as
primeiras conclusões da provisão, por parte de Maquiavel ................................... 153
2.4.7. Infantaria e Cavalaria para uma melhor proteção de Florença – Efetivação da
Cavalaria, regulamentos e ponderações sobre a mesma ........................................ 154
2.5. A força e a formação do exército no Príncipe: como avaliar a força dos Estados ........ 157
2.5.1. Interdependência entre "Príncipe, Poder e armas" ....................................... 159
2.5.2. “O Príncipe – Cap. XIII-XIV: Forças auxiliares, mistas e próprias” .......... 161
2.5.3. César Bórgia e Carlos VII – visão de um exército próprio e o fundamento da
prudência, lealdade e vitória genuína ..................................................................... 162
2.6. A prudência que fortalece a vida dos homens de virtù .................................................. 166
2.7. A palavra que governa o Estado forte ............................................................................ 178
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 183
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 189
10
RELATÓRIOS DOS I PRIMI SCRITTI POLITICI1
I Política Exterior Florentina
1 Discurso Proferido ao Magistrado dos Dez Sobre a Situação de Pisa
2 Providências para a Reconquista de Pisa
3 Notícias das Medidas Adotadas pela República Florentina para Pacificar as Facções de
Pistóia
4 Sobre a Situação de Pistóia
5 Descrição do Modo Adotado pelo Duque Valentino para Matar Vitellozzo Vitegli,
Oliverotto Pagolo e o Duque de Gravina Orsini
6 Do Modo de Tratar os Povos Rebelados do Valdichiana
II Armas
7 Palavras que Devem ser Ditas sobre a Provisão do Dinheiro com um Pouco de Proêmio e de
Desculpas
8 Discurso sobre a Ordenação do Estado de Florença para as Armas
9 Provisões da República de Florença para Instituir o Magistrado dos Nove Oficiais da
Ordenança e Milícia Florentina
10 Parecer para a Eleição do Capitão das Infantarias da Ordenança Florentina
11 Escrito sobre o Modo de Reconstruir a Ordenança
III França e Alemanha
12 Sobre a Natureza dos Gauleses
13 Nótula para Alguém que será Embaixador em França
14 Retrato das Coisas de França
15 Discurso sobre as Coisas da Alemanha e sobre o Imperador
16 Discurso sobre as Coisas da Alemanha e sobre o Imperador
17 Retrato das Coisas da Alemanha
IV Florença Pós-República
18 Aos Palleschi: Atentem bem para este Escrito
19 Alocação Feita a um Magistrado
20 Sumário do Governo da Cidade de Lucca
21 Discursus Florentinarum Rerum Post Mortemiunioris Laruentii Médicis
22 Memorial a Raffaello Girolami, Quando no dia 23 de Outubro Partiu para Espanha [como
Embaixador junto do] Imperador
V A Defesa de Florença
23 Relação de uma Visita Feita para Fortificar Florença
24 Provisão para a Instituição do Cargo dos Cinco Provedores dos Muros da Cidade de
Florença
1 MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio Kurt
Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da Administração,
FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010, pp. 03. pp. 18.
11
INTRODUÇÃO
“O essencial na política não são as virtudes, objeto da filosofia moral, mas a
realidade política tal como revelada nas e pelas coisas do mundo – o conhecimento
político está condenado a uma relativa incerteza e depende da capacidade de
transformar a percepção dos acontecimentos singulares em um saber e em uma ação
eficaz. Creio que é certo dizer que nem em termos morais, nem em termos das
exigências do conhecimento, o príncipe de Maquiavel é comparável ao de Botero,
por exemplo, que prevê um amplo e definido conjunto de saberes e virtudes que
visam fundar, conservar e ampliar o domínio sobre os povos” (pp. 31-32)
Patrícia Fontoura Aranovich
Notas sobre a relação entre fins e meios em Maquiavel
(2014)
Os homens estão envolvidos pela política, e por consequência, são submetidos aos
anseios que remetem à posse, à manutenção do poder e à condução de sua liberdade
individual, não obstante, coletiva também. Envolvidos os homens estão por esta dimensão
cultural e social, antes de tudo, inerente a natureza humana, segundo a concepção aristotélica
(ou na releitura medieval-tomista – do homem como animal social e político), mas também,
envolvidos pela necessidade de lidar, mudar e zelar pelas coisas ditas públicas, acima das
coisas particulares. A arte política é tão necessária à vida humana quanto à ordem do sistema
respiratório, pois a vida em si depende do bom funcionamento de ambos. Neste sentido, para
Maquiavel, o "Secretário de Florença", o envolvimento político se dá no lidar com as coisas
em sua natureza mais profunda, sem mediações ilusórias ou utópicas (Cf. Príncipe, Cap. XV),
ou seja, “em Maquiavel a avaliação se desloca do homem para o resultado de suas ações”
(ARANOVICH apud SALATINI, 2014, pp. 30)2.
No célebre texto "Sonho de Cipião"3 narrado por Cícero em sua obra República,
Maquiavel percebe que não é no céu que está a grandeza dos homens que lutam pela vida
2 SALATINI, R. & DEL ROIO, M. (Org.). Reflexões sobre Maquiavel. Marília: Oficina Universitária. São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. 3 Sobre o 'Sonho de Cipião' se lê que "na sua narrativa, o próprio Cícero, retoma todos os motivos do diálogo e
dos preâmbulos assim como Platão costuma ilustrar a sua dialética socrática com os mitos. [...] O sonho de
Cipião e o "mito de Er", por exemplo, possuem uma mesma estrutura narrativa, de característica protréptica, ou
seja, exortativo-impulsiva, postos no final da obra, revelando a recompensa da alma dos justos no além e
propondo uma visão do universo. Porém a narrativa de um sonho não é exatamente fazer um mito, ou seja, as
relações entre o pensamento debatido na busca de um conceito e a narrativa que ilustra esse pensamento não são
semelhantes, pois a resultante mítica na obra de Platão, apresenta uma verossimilhança conceitual com o debate,
isto é, não traça um paralelo entre as personagens do debate – Sócrates, Trasímaco, Adimanto etc – e as da
12
política. O céu, nesta acepção, tem rumores e a envergadura da ideia agostiniana, quase
milenar, de "Cidade de Deus", portanto de uma utopia que deu certo no projeto da condução
temporal e espiritual do Cristianismo e da Igreja. A política nesta concepção é o movimento
de contemplação para esta "Cidade", a qual os homens peregrinam e marcham na penumbra
da fé e nas inconstâncias da vida.
Lendo Maquiavel, sobretudo no Capítulo XV do Príncipe, encontra-se a ideia de
uma política diversa do contexto Medieval, uma política "em atividade", o que supõe uma
política baseada na ação. Assim sendo, o primeiro aporte a ser refeito é o da contemplação,
que deixa de ser o caminho da política, e que de Maquiavel em diante passa a ser o caminho
do "factual". Ou seja, ao satirizar o "Sonho de Cipião", VIROLI comenta e interpreta
Maquiavel, e afirma, que para o Florentino "o inferno é mais atraente e interessante do que o
paraíso, pois é lá que se encontram os grandes homens da política" (2002, pp. 18). Isso se dá
porque constantemente nos recriamos o inferno (entendido, sobretudo como local de conflito
e aflição). Pode-se também afirmar que o “dito céu cristão” é um local de “idiotas” (no
sentido de apolítico), e que, portanto, Maquiavel funda a política dos fatos e da ação. E a
política de tal modo é redefinida como um aspecto da própria ação cuja outra face é entendida
como administração (BOBBIO, 2000, pp. 48). Ainda no Príncipe, o Florentino afirma a
necessidade da busca política sem mediações imaginárias, utópicas, mas na total efetividade
das ações. É o que se denomina no ordenamento das ideias de Maquiavel como "verità
effettuale della cosa". E é neste sentido, que se apercebe a técnica política do contexto
humanístico, e nele, se reformula com Maquiavel, os fundamentos dos conceitos de política,
ao ponto de Gatti comentar que
[...] la ragione calcolante, in Machiavelli, opera secondo la logica del "se… allora":
se si ammette, come l‟esperienza conferma, che la ricerca del potere è il dato
dominante della vita politica, allora il punto diventa strettamente e rigorosamente
tecnico (l‟"arte" nell‟accezione umanistico-rinascimentale del termine). Si tratta cioè
di individuare le strategie più idonee per raggiungere l‟obiettivo. Questa e non altra
è la "verità effettuale". E la "necessità" spinge a usare tutti i mezzi utili al fine,
relegando l‟idealismo politico, in ogni sua forma, nel dominio dell‟immaginazione.
La tecnica politica, per la sua stessa natura, può essere messa a disposizione di
narrativa mítica de Er; estas reportam-se a todos os homens em todas as épocas, como um apólogo, aquelas estão
inseridas num contexto histórico, o que determina que apenas se delimitem conceitos filosóficos. No sonho de
Cipião, as personagens principais do debate estão presentes; e a narrativa reforça não só o que fora estabelecido
nos três dias de debate, mas também o caráter e a formação da figura central da obra – Cipião Emiliano. De fato,
a lembrança daquele sonho de vinte anos atrás terá modificado sua vida política, de modo a redirecioná-la de
acordo com as principais ideias de comportamento moral estabelecidas no debate. Podem-se fazer ainda
referências políticas que ligam a narrativa do sonho aos fatos gravíssimos que preocupam tanto Cipião como as
outras personagens na Roma de seu tempo, que se assemelham muito à situação política da Roma de Cícero,
enquanto ele escrevia o De Republica". Cf. MAIA Jr. J. A. "O Sonho de Cipião no De Re Pública, de Cícero".
In: Scientia Traductionis, n.10, 2011, pp. 242.
13
chiunque; si presenta come un insieme di accorgimenti neutri, atti a servire ogni
regime e ogni soggetto politico (GATTI, 2013, pp. 305)4.
O homem, desde suas raízes existenciais, está marcado pela tensão em relação a
posse e a vivência do poder, que é uma questão eminentemente política. A vivência da
política está entranhada na vida humana como uma espécie de qualidade, de extensão das
coisas importantes. Faz parte da própria condição humana, interessar-se pelo bem próprio,
pelo bem da cidade e do lidar e colocar-se na convivência social. Pode ser que alguém do tipo
teórico hobbesiano não concorde com esta ideia, mas deva admitir que a relação entre os
homens é um factum. Não há para o político, dirá Maquiavel, a possibilidade de ação fora da
vida terrena: ele não pode praticar o bem porque não está mais na "Cidade de Deus".
Retomando o pensamento clássico de Aristóteles, pode-se dizer que a ação política, em seu
sentido de excelência, não visa tanto o produzir ou o fabricar, mas a perfeição de uma
atividade, que é ao mesmo tempo, da esfera ética e política, que visa o bem - denominada por
eupraxia5 (BARRETO, 2010, pp. 18-19). Ocorre no Renascimento e no pensamento de
Maquiavel e em outras teorias políticas - a humanização da política.
Essa humanização das ações e dos seus significados se dá pela naturalização daquilo
que se designa por política. Não há recurso possível ao sobrenatural. Não há transcendência
que resolva os problemas da política, da vida nas cidades. A duplicidade reside agora na
natureza humana: e nela está na condição a ação política, que deve ser compreendida, a
"passos largos" como – lei e força, homem e animal (KRITSCH, 2001, pp. 04). Por um lado,
somos meio homem (mezzo uomo), porquanto somos racionais, conscientes do que fazemos e
de como o fazemos. Possuidores de virtù, em graus provenientes da natureza ou na
aprendizagem social dos que a possuem, ela é o senso de oportunidade e otimização das ações
a serem realizadas com maestria. Não obstante, somos meio "bestas" (mezzo bestia),
porquanto somos instintivos e animalescos. Agimos muitas vezes irracionalmente, só que em
se tratando de vida pública, erros não são toleráveis, quase nunca. A integridade de nossa
personalidade é a junção equilibrada entre o que se denomina bestialidade e racionalidade em
nossas ações, entre o que somos realmente: “mezzo uomo e mezzo bestia”.
Para Maquiavel há a necessidade das duas vertentes. Isso porque um homem somente
racional não conseguiria se manter no poder, porque não recorreria a força, elemento central
4 GATTI, R. "Natura umana e artificio politico da Machiavelli a noi" In: Lo Sguardo - Rivista di filosofia - Gli
strumenti del potere. Dal principe all‟archeologo, N. 13, 2013 (III), pp. 303-317. 5 Eupraxia é a denominação de "boa coordenação dos movimentos para um determinado fim".
14
na atividade política moderna6. Encontra-se no Príncipe a orientação da necessidade da
crueldade para manter-se à frente do Estado. Esta é da índole da bestialidade, do estágio sob a
proposição do mais forte sobre o mais fraco, daquele que conquista pelo "muque". Mezzo
Uomo, Mezzo Bestia, é assim a natureza do "homem maquiaveliano", repleto de incerteza e de
expectativa em relação a oportunidade na história. É mezzo bestia na medida em que aplica a
teoria da força em suas ações políticas. Com isso percebe-se o conflito diante da necessidade
e vicissitudes das leis. É preciso, de algum modo ser temido, antes de sê-lo amado. Por outro
lado, é mezzo uomo na medida em que, tendo a força como elemento subjacente, pode
controlar seu Estado com as leis [boas e fortes]. É uma tentativa de harmonização. As leis, as
armas e o exército próprio são manifestações do encontro das duas dimensões construídas por
uma observação ponderada da virtù. O equilíbrio apontado por Maquiavel neste estudo se dá
no uso da razão com uma “dose” de bestialidade, assim o homem age politicamente correto,
ou melhor dizendo, completo. Farenetti acrescenta a esta ideia:
questa parte è suta (1) insegnata alli principi copertamente (2) da li antichi scrittori,
e‟ quali scrivono come Achille e molti altri di quelli principi antichi furno dati a
nutrire (3) a Chirone centauro (4), che sotto la sua disciplina li custo dissi. Il che
non vuole dire altro, avere per precettore uno mezzo bestia e mezzo uomo, se non
che bisogna a uno principe sapere usare l‟una e l‟altra natura: e l‟una sanza l‟altra
non è durabile7.
Deste modo, sabe-se que o pensamento de Maquiavel tem muitas vertentes temáticas
que se desdobram em pesquisas das mais variadas naturezas. É autor muito visitado quando se
trata dos rumos da vida pública, da gestão do poder, etc. O que se interessa em pesquisa, é a
avaliação que o Florentino faz do momento exato que se deve usar a força como técnica
política para se manter a liberdade. Kurt Mettenhein afirma que
Maquiavel se afasta do consenso entre cristãos e pensadores da antiguidade, como
Cícero, que mantinha uma visão de virtude humanista abrangente se não única. [...]
A virtude apresenta três faces na obra de Maquiavel; ora uma virtude para príncipes,
analisada no Príncipe, ora uma virtude cívica tratada nos Discursos e, finalmente,
uma virtude militar, apresentada na Arte da Guerra (MAQUIAVEL, 2010, pp. 06)8.
6 Ao menos no início da política moderna, a força deve ser entendida, sobretudo, como uso imediato e não
comedido da violência. Newton Bignotto denomina-a neste contexto como “terror”. Trata-se de uma violência
que consegue a anuência do Estado para fazer valer a ordem, quando a lei não foi cumprida. Se leis e Instituições
fazem o Estado forte, quando esta finalidade não é alcançada, é necessário, inevitavelmente, o uso da força. 7 (1) È stata. (2) In maniera velata, cioè attraverso la mitologia. (3) In allevamento. (4) Personaggio della itologia
greca, il centauro Chirone è metà uomo e metà cavallo. Viene presentato come un esperto educatore, maestro, tra
gli altri, di Giasone, Enea, Achille. In: DE LUISE, F. Lezioni di storia della filosofia. Lettura 10 – © Zanichelli,
editore 2010. Cf. também MARCHAND, J. J. Niccolò Machiavelli. I Primi Scritti Politici. Editora Antenore,
Padova, 1975, pp. 98-119. 8 METTENHEIM, K. "Servidor Republicano: política nos "textos menores" de Maquiavel". In: Revista
Brasileira de Ciência Política, n° 12. Brasília. Setembro-dezembro de 2013, pp. 101.
15
Ver-se-á que um dos choques técnicos e teóricos sobre o uso da força como um ato
inevitável, tratando-se de conquista e manutenção do poder, é a adequação desta escolha com
a fundamentação legal. A força é uma dimensão da virtù, e como se viu, esta habilidade dos
atores políticos deve ser analisada na vida na cidade e na formação e coordenação militar. Um
dos entraves dos escritos [Scritti] de Maquiavel é exatamente a conciliação entre o uso da
força e o império das leis.
Comemoramos há pouco tempo os 500 anos da publicação de seu “livrinho” – O
Príncipe, que contém a base fundante da maneira de se pensar e de se fazer a política
moderna. Berlin comentando a obra, diz ter ela mudado o rumo de sua vida. Deste modo,
diante de tal literatura emblemática, do ponto de vista histórico e político, tem grande parte de
seus fundamentos na obra que pesquisamos do mesmo autor nesta dissertação, denominado
por J.J. Marchand de – I Primi Scritti Politici – termo ao qual nos referiremos à obra de
Maquiavel no decorrer do trabalho.
Há, contudo, na bibliografia sobre o Florentino, uma espécie de linha tênue,
obviamente não tão clara, que une em seus escritos, os cenários, os atores, as instituições e a
observação que ele faz dos líderes políticos sobre o “fazer político” moderno, que na verdade
é relativa primeiramente à Itália de seu tempo, tal como prevista, enquanto um “microcosmo
da Europa”, mas especificamente de sua cidade – Florença, e se estende para todos os lugares
do mundo após a publicação dos I Primi Scritti Politici, e obviamente, do Príncipe e de outras
obras, e chega até nós com todo o seu ímpeto.
Nos I Primi Scritti Politici, sobretudo quando se apresenta um detalhamento “Do
modo de tratar os povos rebelados do Valdichiana” (1502); (MARCHAND, 1975, pp. 98-
119), encontra-se expresso a intenção de nossa leitura, ou seja, verificar a teoria da força, das
boas leis e das boas armas na configuração de um exército próprio para Florença. Os I Primi
Scritti Politici são, basicamente, os relatórios escritos ao tempo que Maquiavel trabalhou
como Segundo Secretário da República de Florença, entre 1499 e 1512. Trata-se de relatórios
de participações em legazioni e commissarie9 políticas junto aos mais destacados atores
9 Afirma Valverde que "a altura do cargo de Segundo Secretário da Chancelaria permitia somente descrever os
fatos observados nas legazionni e commissarie, mesmo porque seu status social não permitia analisar e discutir
política junto ao Conselho ou com a Signoria. Porém, Maquiavel a la Capitu machadiana, levanta a cabeça ao
propor de maneira antitética soluções e possibilidades de movimentação do jogo político, quase sempre com uma
duplicidade de alternativas pelos movimentos, sob a capa de análises e rápidas reflexões. [...]Todos os relatórios
de Política e Gestão Florentina foram escritos ao longo de anos em legazioni e commissarie políticas, por regiões
da Itália, da França e da Alemanha, dentre outras. Para cumpri-las Maquiavel viajava sempre a cavalo, sob os
rigores ou não do inverno, atravessava, invariavelmente, a cordilheira dos Apeninos, ano após ano. Hoje, sabe-se
mais de política lendo Maquiavel e acompanhando os atores políticos estudados por ele, em ação, do que
perseguindo as últimas quantificações da politologia norte-americana. A experiência pode ser realizada pelo
leitor atento". VALVERDE, A. J. R. "Maquiavel a cavalo: os primeiros escritos políticos", In: MAQUIAVEL,
16
políticos da época, combinados à fina observação do desenrolar da ação encarnada pelo papa
Alexandre VI e alguns de seus sucessores [no conjunto da obra maquiaveliana], o rei
Francisco I, da França, o Imperador Maximiliano I, do Sacro Império e César Bórgia, que é
demonstrado como modelo de príncipe pendular entre fortuna e virtù, e anterior ao último
modelo, Castruccio Castracani, pleníssimo de virtù, e outros nomes e autores e atores de
menor expressividade (MAQUIAVEL, 2010, pp. 21).
Lauro Escorel, ao apresentar o modo de pensar maquiaveliano, ou seja, a leitura de
Maquiavel no Brasil, faz uma ressalva interessante ao quantitativo de abordagens que o autor
recebeu ao longo dos séculos (ESCOREL, 1979, pp. IX-XVI), principalmente no que se refere
a sua personalidade, ainda que meio “sombria”. No dizer de outro intérprete, Edson Nunes, há
uma espécie de “política a meia luz” na doutrina de Maquiavel, que aos poucos vai tomando
claridade, nudez. E ainda sobre sua personalidade, não se tem grande interesse pelo indivíduo
Maquiavel, a pessoa histórica, ainda mais quanto a uma imagem de um sujeito que, como
Chanceler de Florença, ainda não famoso no campo do fazer político, era um Secretário, um
notário de fatos da República Florentina. Abordar Maquiavel Secretário é uma oportunidade
de se chegar num “Maquiavel antes do Maquiavel famoso pelo Príncipe”. Com isso não se
pretende negar que há uma ética no labor “ideológico” de Maquiavel. Inclusive, os textos dos
I Primi Scritti Politici são, no fundo, relatórios que ele fazia para o Conselho dos X de
Florença, e é a partir deles que se dá os primeiros passos e a sustentação de nossas ideias.
Em tese, “O criminoso Maquiavel”, tal qual Shakespeare o chamava, nunca deixou
de ser objeto de (interesse), ódio para moralistas de todas as tendências, tanto revolucionários
quanto conservadores (SKINNER, 1988, pp. 11), pois, de fato, ele se tornou um referencial do
fazer político. Em verdade esta atividade que se está a debruçar trata-se exatamente de uma
“inquirição especulativa sobre as premissas das atividades políticas” (CRESPIGNY &
MINOGUE, 1979, pp. 13).
Jean Ladriére evidencia bem a oposição – político e política como algo “estranho”,
pois afirma o autor que a língua francesa admita a utilização do termo político, como
substantivo, tanto no masculino como no feminino, e não simplesmente porque esta dualidade
de gêneros suscita uma perplexidade semântica, mas porque ela é o sintoma de uma incerteza
profunda à própria coisa. A expressão „a política‟ tem uma referência aparentemente clara,
trata-se deste campo das atividades humanas que de forma, direta ou indireta, prevê a
existência do Estado e o exercício do poder "no e pelo" Estado. A expressão „o político‟ pode
2010, pp. 25, pp. 27. Cf. também: MACHIAVELLI , N. Legazioni, commissarie, scritti di governo. Tomo I.
Legazione a Caterina Sforza (1498-1500). Roma: Salerno Editrice, 2002.
17
ser utilizada para designar, de maneira indeterminada (e, portanto obliquamente universal), de
um indivíduo (qualquer) implicado na política, seja para designar o que está em causa nas
atividades visadas pelo termo „a política‟. Mas enquanto estas atividades tenham um estatuto
concreto, porque elas consistem em condutas analisáveis nos gestos e nas palavras
observáveis, localizadas, atribuíveis a indivíduos eventualmente identificáveis, o que é causa
nestas condutas, é uma espécie de essência insondável, reificável abusivamente em uma
simples ficção gramatical (BERTEN, 2004, pp. 23).
Diante desta apresentação conceitual, afirmamos que não se faz filosofia política
sem estas duas fundamentações: o interesse pela coisa pública e a disposição pelo
relacionamento coletivo. Ambas as pressuposições desembocam nas mediações do poder nas
mãos humanas e da constituição do Estado como um regulador de vida dos homens. Deste
modo, esta ciência é um convite ao engajamento social, ao compromisso com a coisa pública
e eleva um questionamento quanto em relação aos demais indivíduos no mundo. As cinco
principais qualidades de caráter aconselhadas ao soberano, por exemplo, no ideário
maquiaveliano dizem respeito ao seu espírito no que se refere a: ser piedoso, fiel, humano,
íntegro e religioso.
A dissertação está disposta desta maneira: no primeiro capítulo, a reflexão será sobre
a lógica da força a partir dos I Primi Scritti Politici. O que determina se uma atitude é ética é a
sua finalidade política. Neste sentido, os valores morais só podem ser compreendidos a partir
da vida social. A política para Maquiavel não é definida substancialmente como o fez
Aristóteles, mas de acordo com as possibilidades reais do “dever ser” e do “poder ser”.
Assim, sublinha Maquiavel, existem virtudes que podem arruinar o Estado e vícios que,
inversamente, podem salvá-lo. Por isso que nenhum valor pode ser considerado absoluto. O
que do ponto de vista da moral tradicional é plenamente condenável, na ética política
maquiaveliana é perfeitamente aceitável. Para tanto é preciso da posse e do uso reconhecido
da virtù. Por isso também, e como primeiro dado importante, é a descoberta do sentido em
que Maquiavel aplicou a ideia de que o uso da força era necessário.
Dovete adunque sapere come sono dua generazioni di combattere: l‟uno, con le
leggi; l‟altro, con la forza [...] Quel primo è proprio dello uomo; quel secondo, delle
bestie. Ma perché el primo molte volte non basta, conviene ricorrere al secondo:
pertanto a uno principe è necessario sapere bene usare la bestia e lo uomo (DE
LUISE, F. Lesione de La história de la filosofia, pp. 55).
O Florentino via na história a necessidade de preparar-se para o conflito. Os homens,
segundo uma antropologia negativa da ótica maquiaveliana são inconstantes, maleáveis, até
18
mesmo incoerentes. Maquiavel vai até a Roma Antiga para estudar a lógica da força física que
os romanos exploravam, e o conceito base de procedimento da Milícia, quando
posteriormente se citar-se-á a obra A Arte da Guerra.
O capítulo primeiro também se incumbe de fundamentar teoricamente o que seria a
lógica da força. Passo seguinte e fundamental é conhecer o autor, Maquiavel, sobretudo o
Segundo Secretário e Chanceler de Florença entre os anos de 1498-1512. O que a história tem
a nos dizer sobre este chanceler, historiador e fidalgo pensador das coisas políticas? A
principal preocupação histórica está voltada para os anos de 1498 a 1512, onde o Florentino
exercera o cargo de Secretário da Chancelaria de Florença. Mas o ideal máximo é encontrar-
se com o “Maquiavel antes do famoso Maquiavel do Príncipe”.
Admitindo Maquiavel como um grande observador político, reconhece-se a
necessidade de compreensão, um tanto quanto global, da esfera sócio-econômica-política e
religiosa em que ele estava inserido. Sua obra reverbera as moções de seu tempo. O espírito
de mundo renascentista influenciou certamente a produção do Florentino. Acima de tudo, os
escritos da Chancelaria já são marcados expressivamente pela mudança de paradigma do
mundo medieval para o mundo humanista. É necessário ver o homem renascentista tal qual
ele se apresenta nas cadeias do humanismo e de toda a moldura em que o séc. XVI está
imerso.
A compreensão de alguns textos dos I Primi Scritti Politici, onde Maquiavel realiza,
a partir da escolha pelo uso da força e não por outro molde, o restabelecimento estratégico de
reconquista de Pisa, é fundamental para perceber as características do que seja tal teoria e
porque Florença fez tal opção. Seguidamente, analisar-se-á os anos posteriores a 1513, com a
publicação do Príncipe e dos Discorsi e mais tarde da Arte da Guerra em relação ao mesmo
tema, percebendo os locais e personalidades em que a força se manifesta, bem como sua
antítese.
A fraqueza é manifestada, sobretudo nas ideias de um arcabouço cultural num teor
"machista", e obviamente, o conceito de feminino é reconhecido como a antítese da força.
Uma ideia muito comum do tempo humanista e do nosso tempo, a história de sexo frágil
ainda o é estereótipo das mulheres10
. A reflexão sobre a força nos escritos posteriores a 1513
10
Segundo Pitkin (2013, pp. 219-220) "o feminino constitui 'o outro' de Maquiavel, em oposição à
masculinidade e à autonomia em todos os sentidos: às condições de homem, de adulto, de humano, bem como à
política [...]As mulheres são burras, medrosas, fracas, indecisas e dependentes. Elas são infantilmente ingênuas e
facilmente manipuláveis. Como afirma o sacerdote em A mandrágora, “todas as mulheres carecem de cérebros”;
se por acaso uma delas for, como exceção, inteligente o bastante “para dizer duas palavras”, isso já é suficiente
para “torná-la famosa, pois em terra de cego quem tem um olho é rei”. Ou no dizer do próprio Maquiavel: As
mulheres já produziram muita destruição, grandes prejuízos já causaram àqueles que governam as cidades, e
19
termina com a apresentação das ideias de equilíbrio entre a dimensão instintiva e racional do
ser humano: mezzo uomo, mezzo bestia, onde o primeiro capítulo é concluído com a reflexão
sobre a prudência e a força em relação à fortuna.
No segundo capítulo se estudara a necessidade das armas como instrumento e força
da ação política. As boas leis, as boas armas e a formação do exército são a espinha dorsal dos
I Primi Scritti Politici. São as leis que produzem uma política orgânica, rizzomática. Adjunto
às armas, ocorre a garantia da efetivação da força, se necessário, ou em outras palavras, é pela
necessidade das armas que se materializa e se concretiza a força nas relações conflituosas.
O Florentino não está preocupado com a exterioridade da política, mas com a sua
essência. Por isso que as ideias de boas leis e boas armas para a manutenção do poder estatal
serão logo de inicio, no capítulo, refletidas. As leis são indicadores de conduta, e porquanto o
são, colaboram para o domínio ainda não violento dos homens. Numa sequencia teórica, a
virtù tem como qualidade a força que por sua vez, unida a prudência leva os homens, os
soldados e os Estados à conquista e a conservação. Assim como se lê em Claude Lefort sobre
a Lógica da força, quando os meios de coerção não resolvem sem força, é necessário utilizá-la
para coibir ataques e manifestações contrárias ao status quo. Lefort fala em força violenta,
porém tal ideia reforça o que se denomina no contexto humanista de Realpolitik e não tanto a
força misturada com prudência e leis.
Um grande problema das cidades italianas e das cidades renascentistas era o
recrutamento de homens para o exército. Por isso que na obra A Arte da Guerra, Maquiavel
elogia muito a conduta de recrutamento romano que priorizava a força física e a capacidade
de lutar segundo o critério de idade. Nos Scritti Politici os elogios são recorrentes ao exército
francês, que no fundo do relatório - é o modelo a ser seguido. A formação do exercito próprio
florentino seria uma ação política para terminar com as indesejáveis situações de traição que
em inúmeros casos ocorriam. Exércitos mistos e principalmente mercenários são movidos não
pelo patriotismo ou pela causa da guerra, mas pelo quantitativo de florins e benefícios que
lhes ofereciam, e por isso, estes tipos de recrutamento traziam o insucesso dos conflitos e da
guerra.
O interesse secundário, não menos importante do capítulo, é demonstrar a partir das
Provisões de Infantaria, que posteriormente será teorizada no Príncipe, a necessidade do
Exército próprio florentino. O exército deveria ser montado como um instrumental de
ataque/defesa, de conquista e reconquista de Florença para acabar com todo tipo de problema
ocasionaram muitas divisões entre eles. [...] Digo, então, que os príncipes absolutos e governadores de repúblicas
devem levar muito em conta essa questão” (MACHIAVELLI, 1965, pp. 488-489).
20
que outras tipologias de recrutamento causavam. Por isso abordar-se-á o Discurso sobre a
ordenação do Estado de Florença para as armas (os motivos da ordenança, onde encontrá-la
e o que é necessário fazer), de 1506. Se efetiva no interin dos textos a ideia de que
"necessário é o uso da força, e necessário é o uso das armas". Por isso a força e as armas
desembocam na manutenção do poder. Assim o sendo, a formação do Exercito próprio de
Florença será disposta a partir das provisões da República de Florença para instituir o
Magistrado dos Nove Oficiais da ordenança e milícia florentina, onde se encontra a Primeira
provisão, para as infantarias, em 06 de Dezembro de 1506.
Maquiavel descreve como se constitui o Magistrado dos Nove Oficiais da ordenança
da Milícia Florentina. Neste aspecto se desdobram mais disjuntivos: "quem e como devem ser
os que formaram o exército de Florença?" Esta questão evidencia o modo de se montar um
exército eficaz ao ver do estrategista Florentino. Apesar de se postar um novo olhar sob a
religião, as primeiras tropas são recrutadas a partir da primeira provisão sob a “proteção” de
São João Batista, que a República Florentina, através do Conselho Maior, escolhe e elege os
aptos para o oficio.
Os Nove oficiais da ordenança e milícia florentina tem como função e administração
a vida dos outros, principalmente a vida militar. Por isso, nos territórios, empunhavam
bandeiras como marca territorial da predominância de Florença e de sua autoridade. A
garantia da ordem é prevista através dos condestáveis e do modelo alemão de ser. O exército
alemão é para Maquiavel o mais disciplinado e organizado. É digno de imitação, como já se
afirmou.
Os condestáveis são eleitos com maior rigor pelos Nove em comunhão com os
demais Conselheiros na base do voto pelas favas e no consenso de quorum mínimo. Os
condestáveis ainda são os inspecionadores de todos os homens conscritos, e devem os
exercitar no modelo alemão. A organização interna dos homens inscritos no exército se dá
pela: "Estruturação, Dispensa e Manutenção sob denúncia". Ainda no segundo capítulo
encontra-se a apresentação e a reflexão sobre a: "Infantaria e Cavalaria para uma melhor
proteção de Florença; Efetivação da Cavalaria, os regulamentos e ponderações" sobre a
mesma. Tem-se ainda a Provisão para a Instituição do Cargo dos cinco provedores dos Muros
da Cidade de Florença.
Enfim, a força e a formação do exército ainda são analisadas em alguns capítulos do
Príncipe. Aqui, avaliar-se-á como Maquiavel observa as forças dos Estados; a
interdependência entre príncipes, o poder e armas efetivamente. Temos impressão que os
inimigos estão sob a mira – sob a condição de benefícios ou não na condução do povo. Na
21
obra O Príncipe – se fará a leitura do Cap. XII – onde se reflete sob os diferentes tipos de
milícias e de tropas mercenárias, sobre as tipologias de exército. Os Exércitos mercenários são
– sinal de traição e derrota, pois visando o prestígio pessoal leva ao descrédito a infantaria e o
príncipe em pessoa no comando. No Cap. XIII se observa as Forças auxiliares, mistas e
nacionais. Se analisa também o resultado de fracasso de um exército auxiliar ou misto. A
pessoa de César Bórgia e Carlos VII – visão de um exército próprio, fundamento da
prudência, lealdade e vitória genuína. No Cap. XIV – se observa os deveres do príncipe para
com as Milícias. A tríade objetivação dos Príncipes: a guerra, suas leis e sua disciplina são
temas correlatos no fim do capítulo. Enfim, em tempos de paz é preciso preparar-se para a
guerra, por isso prepara-se o príncipe quando exercita seus soldados e estuda a história da
humanidade. Por fim, o capítulo se encerra, mantendo a reflexão entre os conceitos de força,
armas e leis, homens disciplinados e exército, verificando-se, dentro do horizonte
maquiaveliano, exemplos de homens de virtú e fortuna, homens de força, que fizeram das
próprias vidas, estratégias de política. É o caso de César Bórgia, o Duque Valentino, e de
Castruccio Castracani, o denominado "pleníssimo de virtú". Enquanto tais são modelos de
homens fortes e armados – segundo Maquiavel11
.
11
"César Bórgia tornou-se modelo para o livro O Príncipe, de Maquiavel. Calculista e violento, tentou, com o
apoio do pai, constituir um principado na Romanha em 1501. Castruccio Castracani foi expulso de Lucca em
1300 ao lado dos negros, liderada por Bonturo dados". STIVAL, M. C. E. E.; BERGAMO, E. A. "Reflexões
sobre a relação entre violência e poder: Uma alternativa possível da prática educativa na perspectiva da Escola
unitária". In: IX Congresso Nacional de Educação - EDUCERE. III Encontro Sul Brasileiro de
Psicopedagogia, de 26 a 29 de Outubro de 2009, PUC-PR, pp. 8293.
22
CAPÍTULO I
A LÓGICA DA FORÇA E A CONQUISTA DA LIBERDADE
EM I PRIMI SCRITTI POLITICI, DE MAQUIAVEL
“O exercício da arte diplomática, o reconhecimento da importância prática da
retórica é a ocasião para Maquiavel de compreender que ela só existe junto como as
determinações da força. A solução de um desacordo banal sobre os termos de um
contrato só é possível num contexto no qual é preciso levar em conta todos os
termos do problema. De um lado, é essencial não ofender seus interlocutores.
Florença deve manter as aparências até o fim, pois depende de Caterina Sforza, até
para conservar sua imagem de cidade fiel a seus aliados. De outro lado, a situação
italiana faz com que a cidade não possa se assumir inteiramente nem como uma
entidade autônoma, nem como fiel da balança” (pp. 45).
Newton Bignotto
Maquiavel e a experiência da Diplomacia: As primeiras missões
(2014)
O capítulo, num primeiro momento, de modo indispensável, tece um olhar
panorâmico sobre o Humanismo Cívico, sobre o cenário político entre os anos de 1469-1540,
onde se discute fortemente a questão da unificação da Itália, e de onde emergem os vários
conceitos políticos da política moderna, sobretudo, sob o ordenamento textual das obras e do
pensamento de Maquiavel (JACOBELLI, 1998, pp. 17). Em certo sentido, abrange-se
também o Renascimento de um modo geral, pois é neste contexto que nasce uma nova ordem
política, a dos fatos e da ação, que doravante serão denominados como "realismo político"
(Realpolitik12
), e de onde Maquiavel e, posteriormente a sua obra, seus seguidores e
opositores de ideias, tiveram papeis preponderantes. Observa-se também a mudança de
paradigma e de lógica, ou seja, da desenvoltura da ação política por meio da vida ativa em
detrimento ao antigo modelo de vida contemplativa. Sobre esta troca de modelos, Maquiavel
reanalisa a função da religião no seio do Estado, e nos escritos posteriores aos relatórios da
Chancelaria de Florença, como é o caso de alguns livros e capítulos dos Discorsi.
12
"Esses textos menores de Maquiavel [denominados na dissertação, segundo a interpretação de J. J. Marchand
(1975) de I Primi Scritti Politici] ajudam a evitar a conclusão de que a ciência política de Maquiavel é uma
apologia irrestrita à Realpolitik" (Meinecke, 1957 [*] grifo nosso). Citado por METTENHEIM, K. "Servidor
Republicano: Política nos 'textos menores' de Maquiavel", pp. 100, In: Revista Brasileira de Ciência Política,
nº12. Brasília, setembro - dezembro de 2013, pp. 99-126.
23
O segundo momento do capítulo se dá na apresentação do próprio Maquiavel como
o Secretário da Segunda Chancelaria de Florença entre os anos de 1498-1512, onde estão
concentrados grande parte dos relatórios que por ora é examinado. Examinar é uma qualidade
do Florentino, que no esteio de Aristóteles, adentra aos mais profundos porquês do cenário
italiano, e que de antemão, nos revela a sua profundidade de pesquisa e capacidade
intelectual. Neste contexto percebe-se também Maquiavel como um ator político e observador
dos homens de excelência, tais como César Bórgia (1475-1507) e Castruccio Castracani
(1281-1328), bem como, enquanto um desenvolto aprendiz de outros homens de virtù do
passado.
Como terceiro momento do capítulo, apresenta-se a ideia da lógica da força, tal qual
fundamentada no pensamento de Claude Lefort. O autor francês é de certa forma, criador e
propagador deste conceito, e assim o sendo, dispõe-se a principal intenção desta reflexão no
capítulo. Na obra de Lefort, dá-se o devido destaque a teoria da força subjacente nos capítulos
do Príncipe, mas que, na atual reflexão tem suas origens teóricas nos relatórios produzidos
pelo então Segundo Secretário de Florença. Tais subsídios ou relatórios, denominados por
Scritti Minori ou, na interpretação de Marchand, de I Primi Scritti Politici, depara-se com o
próprio Maquiavel que afirma que sem o uso da força não há conquista, nem manutenção do
poder efetivado em vista da liberdade política, civil e social. No disjuntivo político, não há
outro caminho que não a força para realçar os novos rumos do Estado forte. Para tanto, o
Florentino propõe a troca da vida oracional, contemplativa e da espera casual à ação
premeditada, numa política beatífica divina, a ideia de vida política calculada a partir da
opção pela força, num ordenamento de exército próprio, com armas bem manuseadas e com
leis fortes. No fundo, Lefort e posteriormente Mettenheim, indicam a política como um
espaço orgânico, ou seja, local onde a ação interligada pela ideia de força, liberdade e justiça,
são, necessariamente adjuntas, unidas e misturadas com a noção de prudência e o imperativo
das leis.
Encerra-se a reflexão deste primeiro capítulo com a demonstração, não tão
aprofundada da lógica da força nas obras posteriores aos I Primi Scritti Politici, tais como: o
Príncipe13
(escrito por Maquiavel em 1513 e publicado em 1532; o qual é fundamento do
13
"Maquiavel, pois, procurou conceber sua obra mestre servindo-se do gênero literário, espelhos dos príncipes, o
qual continuava a ser usado no início do século XVI. Em sua carta a Lourenço, filho de Piero de Medici,
Maquiavel declara que está escrevendo um manual de conselhos para os príncipes, em especial, para o novo
príncipe de Florença, da família Medici, com o intuito de auxiliá-lo a manter o poder e o controle no seu Estado"
(RUBIM, 2009, pp. 2178).
24
artigo de Lefort para o tema da "lógica da força"), os Discorsi14
, que tem em suas matrizes
referenciais de exércitos antigos, fundados sob a ordenação de homens de virtù. Lembrando
que Maquiavel escreveu os Discorsi em 1517 e o publicou em 1531. Não obstante, verificar-
se-á também respaldos da lógica da força na obra: Arte da Guerra15
. Nesta obra, encontra-se
um pensador mais maduro, que se refere as técnicas militar, aos comandos do exército e do
manuseio de armas em vista de um procedimento padronizado. A obra, escrita e publicada
entre os anos de 1519-1520 se torna um último momento de reflexão sobre o tema da força,
que denota um Maquiavel aludindo a realidade da política necessariamente vinculada aos
novos moldes dos tratos de combates desenvolvidos no princípio da modernidade.
1.1. O Humanismo Cívico e a ideia de vida ativa: a lógica da Força versus a
lógica da Providência
A proposta que se desenvolve inicialmente tem como ponto de partida alguns dos
"relatórios"16
escritos por Maquiavel (1469-1527) no tempo em que serviu como Segundo
Secretário em Florença. Estes textos estão dispostos e ordenados num contraste disjuntivo,
segundo MARCHAND, e pressupõe em suas linhas de relato, as escolhas e as decisões de
políticas assertivas, bem como da cadencia laborativa do próprio Maquiavel. Pode-se dizer
que os relatórios denotam um Maquiavel trabalhando. Dentro deste contexto, pressupõe-se a
tensão que se pode constatar entre o modelo da Providência que regia e ordenava a vida no
mundo, na cidade e no campo, sob o ímpeto teocêntrico do poder temporal e espiritual da
Igreja, sobretudo do Papado, como também dos Reis e dos “Grandes do Povo” em
contraposição disjuntiva a novidade da política humanista, em especial a de Maquiavel,
14
Pocock, em The Machiavellian Moment defende que os Discorsi "são uma obra fundamental para traçar o
marco do republicanismo moderno. Nesse sentido, as artes de governar (entendida para o autor como as virtudes
militares) são os valores que teriam condições de impedir a corrupção das instituições, pois aquele que é um bom
cidadão também é um bom soldado" (1975, pp. 201). 15
A obra Arte da Guerra é um tratado de estratégia militar que se apresenta como um diálogo entre homens
experientes e cultivados, desfrutando as comodidades do jardim da casa/ou/palácio dos Rucellai em Florença. Na
perspectiva metodológica, pode-se afirmar que a sua tese principal é pensar a problemática militar dos modernos
à luz das lições dos antigos, notadamente com substancial olhar para com os romanos, os quais, como ninguém,
foram capazes de organizar-se militarmente. É a busca de virtù militar (ADVERSE, 2006, pp. VII-XXXVII, In:
MAQUIAVEL, N. A arte da Guerra). 16
Os textos/e ou/relatórios que foram abordados, são em suma, segundo Mettenhein, "uma temática desde a
diplomacia florentina e problemas administrativos, fiscais e políticos relacionados à mobilização de forças
armadas, até relatos sobre a França e a Alemanha, memoriais, como também análises de instituições e
conjunturas políticas. São textos curtos, mas seus significados e importância não são menores. Cf.
MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio Kurt
Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da Administração,
FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010, pp. 05.
25
fundada sobre a lógica da força que, segundo ele próprio, em seu primeiro relatório como
Chanceler, afirmou: “[...] necessário é o uso da força, me parece que deve ser considerado se
seria bom usá-la neste momento ou não” (MAQUIAVEL, 2010, pp. 31).
Esta contextualização é importante fundamento para a compreensão dos conceitos
de “força, armas, leis e formação do exército próprio” para a cidade de Florença. Tais
conceitos serão os temas de análise desta pesquisa, sob a ótica dos relatórios denominados por
Marchand de I Primi Scritti Politici17
, sob um recorte específico, onde o Florentino serviu
como Segundo Secretário da Chancelaria de Florença, entre os anos de 1498 a 1512. Tais
contrastes: "Providência x força, contemplação x ação", são tidos como uma reviravolta de
paradigma, onde se anseia por um ramo autônomo da política, e momento em que se substitui
uma lógica de cunho religioso-metafísico, denominada de Providência18
, por uma mais
prática, de cunho empirista, onde a realidade não é interpretada a partir da revelação e da
dogmática, mas sim, na veracidade dos fatos. Zeppi afirma que os Scritti Minori fornece uma
definição muito precisa e orgânica do novo modelo de política, onde se soma, no conjunto de
informações, “la forza, la prudenza e la armi” (2001, pp. 91), e que de certo modo, a conduta
humana se fundamenta numa nova moralidade, uma nova potência, unindo a palavra e as
ações em vista da liberdade efetiva. Não se deve interpretar o pensamento de Maquiavel
somente sob o prisma do realismo, apesar de ele tornar visível a situação política. Segundo
Zeppi (2001), Mettenheim (2013), a política denotada nos Scritti Politici indica também uma
organicidade das ações do ator político, o que significa dizer, que se há prudência, há respeito
e a força, mesmo que necessária, deve ser vista a partir da ocasião19
.
17
Utilizar-se-á este titulo no decorrer da dissertação, seguindo a sugestão do intérprete da obra, Jean Jacques
Marchand. Aliás, esta obra, estes relatórios de Maquiavel, são um conjunto agrupado de escritos, dos quais
germinaram as primeiras concepções sobre o “Estado e a Milícia”. Pode-se dizer sobre ela, isto no ensejo teórico
do Prof. Dr. Antonio José Romera Valverde (PUC/SP), que nela está em germe a origem política dos conceitos
políticos do pensamento de Maquiavel e da filosofia política moderna. "E o que chama a atenção é o largo
interesse que se depara com a res publica, e isso se dá em um paradoxo, pois apesar dos escritos serem
heterogênios do ponto de vista cronológico, são homogênios a partir da perspectiva da coisa pública".
(MAQUIAVELO, 1991, pp. XX-XXI). 18
Para Tomás de Aquino (1224/5-1274/5) os conceitos de providência, previdência e prudência são correlatos
em sua filosofia e teologia. Ao tratar do mundo regido pela Providência, o Aquinate enfatiza que “por ela Deus,
pela qual as coisas são governadas, pode se pensar de modo semelhante à providência pela qual o pai de família
governa a casa, e o rei a cidade ou o reino”. Em relação aos atos humanos, afirma que eles “caem debaixo da
Divina Providência de modo que são eles próprios os provisores de seus atos, e seus defeitos possuem uma
ordenação para com si próprios”. (Cf. Suma Teológica I-II, q.2 a.8; Suma contra gentios III, 111 n. 2.855; Suma
Teológica I, q.93 a.2). 19
Ocasione segundo Maquiavel é a antecipação dos eventos, é a previsibilidade. É a demonstração de que todos
os que escreveram sobre política, bem como os numerosos exemplos históricos, foram necessários no sentido de
que quem estabelece a forma de um Estado, e promulga suas leis, de certo modo antevê uma antropologia
negativa, isso disporia uma situcionalidade de agir com perversidade sempre que haja ocasião e necessidade.
26
A política orgânica é a política diligenciada pela autonomia. Em relação a isto, por
exemplo, Athanasios Moulakis (citado por Zeppi) acrescenta a este cenário de transição a
ideia de que:
pode-se dizer que o desenvolvimento de um ramo autônomo da política [...] visa a
prevenir a contaminação da lógica da política por ilusórias mistificações
ideológicas” (2001, pp. 4).
Maquiavel, no relatório proferido ao Magistrado dos Dez de Florença está
convencido de que “não se deve de jeito nenhum acreditar que por si mesmos que [os pisanos]
venham voluntariamente para o jugo de Florença” (MAQUIAVEL, 2010, pp. 31). Portanto,
seu interesse nos primeiros relatórios produzidos, é convencer Florença, seus lideres (os
grandi)20
e o povo (popoli)21
, de uma maneira geral, de que é uma necessidade formar um
exército próprio e se utilizar da força, se possível, da força das armas para a reconquista. É
inevitável a guerra, o confronto, pois o Florentino mesmo, tempos depois participou e
comandou, mesmo com insucesso, do exército florentino, participando dos combates em
Luca, Piombino e Cascina (MAQUIAVELO, 1991, pp. XXV).
As origens do Renascimento22
, especialmente na Itália, e de modo particular em
Florença, sobretudo entre os anos 1498-1512, têm como uma das questões centrais, a reflexão
20
Para Maquiavel, os grandi desejam comandar e oprimir o povo. Grandi e popoli são humores na sociedade.
Existem na sociedade, portanto, esses dois apetites,que são diversos, e nascem nas cidade fazendo valer como
consequência - o principado, a liberdade ou a licença. Cf. MAQUIAVEL, N. Il principe. In Tutte le opere. Org.
por M. Martelli. Florença: Sansoni, 1993. Citado por ADVERSE, N. "Maquiavel: A República e o desejo de
liberdade". In: Trans/Form/Ação. São Paulo, 30(2): pp. 33-52, 2007. 21
Bignotto afirma que: “o „povo‟ e os „grandes‟ não são conceitos sociológicos, que designam univocamente
grupos ou classes sociais. Esses dois conceitos se referem a dois elementos irredutíveis da vida política, que não
podem ser subsumidos por nenhum acordo, ou contrato, que restauraria a unidade do todo. Não há unidade a ser
restaurada. Os dois polos só existem em seu confronto, eles se determinam mutuamente, mesmo se os elementos
que os constituem se mostrem inconciliáveis”. Cf. LEFORT, C. Le travail de l‘oeuvre Machiavel. pp. 382-389.
Cf. também BIGNOTTO, N. Maquiavel Republicano. São Paulo, Loyola; 1991). 22
O Renascimento é marcado por autores do chamado humanismo cívico, tais como Petrarca (1304-1374),
Salutatti (1331-1406), Bocaccio (1313-1375), entre outros, e por ideias – dentre os quais: a tensão entre a vida
contemplativa e a vida ativa, o retorno ao pensamento clássico, especialmente ao romano, de Cícero, de um
modo geral aos gregos e, entre inúmeras situações, ainda é marcado, não tanto como na era medieval, pela força
da Igreja Católica. A força da Igreja era notada pelo ordenamento espiritual, onde a oração e a contemplação,
bem como a subserviência a Providência Divina, detinham o predomínio em relação à lógica meramente racional
das coisas. (BIGNOTTO, 2008, pp. 77). O Renascimento e o ideal de liberdade flexionam a concepção de que os
homens, os artistas, os novos modelos sociais, poderiam expressar-se livremente sem as amarras institucionais e
espirituais da Igreja. Várias “liberdades” foram sendo conquistadas, dentre elas, a de expressão intelectual, livre
do Índex, e por fim a religiosa, com a Reforma Protestante. Hans Baron, analisando a anatomia do humanismo,
afirma que se desenvolve no seio deste movimento um novo momento e um sentimento de liberdade para com a
cidade. "Sem liberdade, Florença não poderá sobreviver" (BARON, 1988, pp. 15). Uma segunda ideia
importante do Humanismo se dá, quando Baron, lendo Buonaccorso de Montemagno afirma que "o espírito
humano aumenta em sua excelência quando se põe em contato com a vida do estado" (De nobilitate tractatus, p.
74, 1718 apud BARON, 1988, pp. 21). Uma terceira e importante ideia, que vem ressaltar nossa tese inicial, é a
de que Baron destaca a convicção que a personalidade do homem só pode alcançar a perfeição por meio da vida
política ativa (BARON, 1988, pp. 25).
27
sobre o ideal de liberdade, aliás, um tema de cunho extremamente político, que se tornou
discutido pelos humanistas e artistas do novo ordenamento cultural e intelectual do período
chamado Quinhentista. Este período do "realismo político"23
, onde os fatos são o ponto chave
de compreensão da ação social, é visto como uma política centrada na ideia de liberdade24
.
Fatos políticos, ou seja, a política tal qual se apresenta, sem as mediações ilusórias, adjunto a
ideia de liberdade é que são refletidos nos relatórios dos I Primi Scritti Politici25
de
Maquiavel. Observa-se também a mudança de paradigma e de lógica, ou seja, da desenvoltura
da ação política por meio da vida ativa em detrimento ao antigo modelo de vida
contemplativa. Sobre esta troca de modelos, Maquiavel reanalisa a função da religião no seio
do Estado nos escritos posteriores aos relatórios, como é o caso de alguns livros e capítulos
dos Discorsi26
.
Francesco Petrarca (1304-1374) afirma no bojo de seus escritos que a vida ativa
(subentendida como negócios, comércios e política e voltada ao regime da república, portanto,
uma proposta de fim da monarquia) se instaura com uma nova lógica diferenciada da
23
"Sem dúvida, Maquiavel é um dos grandes mestres do realismo político. Certamente que não fundou esta
tradição. Bem antes dele o historiador grego Tucídides expôs este pensamento quando relata na História da
Guerra do Peloponeso as origens, motivações e dinâmicas da conflituosa relação entre Esparta e Atenas. Assim
como, há registros acerca das posições antagônicas entre idealistas e realistas, desde a Atenas clássica, nos
debates entre e Sócrates e os sofistas Trasímaco e Cállicles expostos por Platão em seus Diálogos Górgias e
República. Porém, é a partir de Maquiavel, com “la verità effettuale della cose” que o realismo ganha maior
dimensão. Maquiavel faz uma contundente crítica àqueles que “conceberam repúblicas e monarquias jamais
vistas e que nunca existiram na realidade” (O Príncipe, Cap. XV). Esta sua crítica é embasada em sua
antropologia negativa e é a expressão de sua incredulidade quanto a bondade humana" (GUIMARÃES, 2010, pp.
39). 24
Para Maquiavel, a ideia fundamental é a da especificidade da política e, de certo modo, a política deve ser uma
procura da estabilidade da sociedade, opondo-se à história que é um fluxo perpétuo, submetido aos caprichos da
fortuna, como defendiam Políbio e os escritores da Antiguidade. Para Maquiavel, os homens deviam dar-se
conta da "impossibilidade de basear uma ordem social permanente, que respeite a vontade de Deus, e em que a
justiça seja distribuída de modo a responder a todas as exigências humanas". Por conseguinte, "Maquiavel
agarra-se firmemente à ideia de que a política tinha as suas leis próprias, logo, era ou deveria ser uma ciência; o
seu objeto era apreender em vida a sociedade no perpétuo fluir da história". A consequência desta concepção era
"o reconhecimento da necessidade da coesão política e a tese da autonomia da política, desenvolvendo em
separado o conceito de Estado". (Cf. MACHIAVELI I AND GUICCIARDINI. Politics and History in
Sixteenth-Century Florence. Princeton University Press, Princeton, N. J, 1965 apud LE GOFF, J. História e
memória. Tradução Bernardo Leitão... [et al.]. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990). 25
Kurt Mettenhein afirma que: "os I Primi Scritti Politici [Política e Gestão Florentina] são 'um conjunto de
vinte e quatro textos, que de certo modo cobrem uma temática desde a diplomacia florentina e problemas
administrativos, fiscais e políticos relacionados à mobilização de forças armadas, até relatos sobre a França e a
Alemanha, memoriais, como também análises de instituições e conjunturas políticas. São textos curtos, mas seus
significados e importância não são menores. Ilustram um Maquiavel trabalhando.[...] Eles tratam de problemas
de gestão e políticas públicas florentinas justamente enquanto sua república nova se encontra no meio de forças
políticas novas, de Estados territoriais modernos emergentes como a França, a Espanha e a República Sagrada
Romana, o Estado Papal, e cidades e Estados vizinhos, procurando reconciliar novas capacidades comerciais e
industriais com incerteza política, ou seja, o início do século XVI renascentista'" (MAQUIAVEL, 2010, pp. 5). 26
Maquiavel, nos Discorsi afirma sobre o paradoxo: "ação x contemplação" e sobre a natureza humana a
seguinte ideia: “nós, italianos, uma primeira dívida temos para com a Igreja e os padres: a de termos perdido
todo o sentimento religioso e de nos ter tornado maus. Mas, nós lhes devemos outra coisa, ainda mais
importante, e que é a segunda das causas de nossa ruína: terem mantido e manterem sempre o nosso país
dividido”. (MAQUIAVEL, Discorsi, I, 12).
28
providencial mantida nas fases da Idade Média, desde os fundamentos clássicos de Cícero
(106 a.C – 43 a.C), Santo Agostinho (354-430) e Tomás de Aquino (1224/5-1274/5). Sobre a
temática da atividade política, o pensamento moderno ofereceu inúmeros autores, tais como
Giambatista Vico (1668-1744)27
. A Providência divina é questionada pelo novo ator político,
e de certo modo, faz frente ao conceito de fortuna do próprio Maquiavel, pois para os
renascentistas, em especial à Maquiavel, a política é um edifício a ser construído. Neste
sentido há uma devoção não tanto pela Cidade de Deus, mas pelas coisas da terra, pelas coisas
civis, públicas, em suma pela pátria.
A devoção pela pátria não é tema exclusivo de Petrarca, entretanto, é com ele que o
seu significado muda completamente, associando-se não mais às determinações da
Igreja, mas ao estudo da condição humana neste mundo. Petrarca se interessava pela
cidade terrestre, o que pode ser conferido em Bignotto, “por suas misérias e pelo
fato de que ela – a cidade terrestre - é obra do gênio humano, busca o „sentido
humano‟ das coisas, [...] de uma vida ativa feliz, e não mais de universais abstratos
que informam o sábio contemplativo em torno da perfeição espiritual”
(BIGNOTTO, 1991. pp. 11).
Salutati (1331-1406), outro importante humanista, escreveu em 1372 a obra: De Vita
Sociabili et Operativa refletindo sobre a opção medieval em relação a adesão ao modelo da
vida contemplativa. A paz monástica imperava na resolução dos problemas relativos à vida
social. Salutati inicia a tensão que Maquiavel vai também contrastar ao seu tempo num
momento posterior, no sentido de que o homem não é somente alguém esperando a beatitude
eterna, mas deve cercar-se das atividades consideradas mundanas. A política é uma espécie de
"encharcamento" das coisas da terra. O homem deve se meter com os assuntos relativos a
comunidade humana, e de tal modo deve preocupar-se em resolvê-los com ações eficazes
(BARON, 1988, pp. 119-122).
Neste sentido, o primeiro passo que se dá ao se reinventar a institucionalização da
política, é a mudança de foco, não sendo mais o da contemplatividade, mas da atividade28
. O
ator político pensa, reflete, coordena, colabora, instrui, lidera a construção de uma nova
sociedade. Esta demanda de ação política culmina nas deliberações sociais da família Patrizi
(mais ou menos por volta de 1461), que segundo Baron, pensando a Instituição da República
27
GONÇALVES, C. E. M. A vertente Vico. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 2011. 28
Nossa religião dá mais crédito às virtudes humildes e contemplativas do que à virtudes ativas. Nossa religião
coloca a felicidade suprema na humildade, na abnegação, no desprezo das coisas humanas; a outra, ao contrário,
considerava como bem soberano a grandeza da alma, a força corporal e todas as qualidades que tornam os
homens temidos. Se a nossa exige alguma força de alma é para dispor-nos a sofrer, mais do que para que
façamos alguma ação vigorosa (MAQUIAVEL, Discorsi, II, 2 apud BIGNOTTO, 1991, pp.6).
29
Florentina, dedicando-a ao povo (popolo29
) no Senado, reflete sobre as necessidades
psicológicas do homem de ação como alguém que deve possuir sentimentos mundanos, tais
como a própria ira (BARON, 1988, pp. 133-134).
O segundo momento no capítulo se dá na apresentação do próprio Maquiavel como
o Secretário da Segunda Chancelaria de Florença entre os anos de 1498-1512, onde estão
concentrados grande parte dos relatórios que por ora examinamos. Examinar é uma qualidade
do florentino, que no esteio de Aristóteles, adentra aos mais profundos porquês do cenário
italiano e florentino, que de antemão nos revela a sua profundidade de pesquisa e capacidade
intelectual30
. Neste contexto percebe-se também Maquiavel como um ator político e
observador dos homens de excelência, tais como César Bórgia (1475-1507) e Castruccio
Castracani (1281-1328), bem como, um desenvolto aprendiz de outros homens de virtù31
do
passado.
Como terceiro momento no capítulo, apresenta-se a ideia da lógica da força, tal qual
fundamentada no pensamento de Claude Lefort. O autor francês é de certa forma, criador e
propagador deste conceito, e assim o sendo, dispõe-se a principal intenção desta reflexão
neste capítulo. Na obra de Lefort, dá-se o devido destaque a teoria da força subjacente nos
capítulos do Príncipe, mas que encontra subsídios nos relatórios dos Scritti Minori, onde o
próprio Maquiavel afirma que sem o uso da força não há conquista, nem manutenção do
poder efetivado em vista da liberdade política, civil e social. O florentino propõe a troca da
29
"O popolo florentino tradicional englobava, em princípio, todos os habitantes da cidade; mas, na prática,
referia-se aos mais ilustres e capazes, aqueles que participavam na direção dos assuntos públicos. Em Maquiavel
esta noção do povo foi invertida. O verdadeiro estrato dirigente (aquilo que até então tinha sido designado por
„povo‟) era agora incluído na categoria dos „ilustres‟, em vez de ser na do povo, e dentro dela os nobres e os
burgueses constituíam ainda dois grupos separados; o povo era agora o estrato social inferior, os pobres e
desfavorecidos" (HELLER, apud SANTOS, 2011, pp.18). 30
Marchand (2006, p. 186-187) nos ajuda a ver como eram sofisticados os procedimentos seguidos pelo segundo
Secretário. Na carta do dia 17 de julho ele apresenta as posições de Florença, escuta Caterina Sforza e finalmente
apresenta sua réplica. Ao reportar suas ações à Signoria, segundo o intérprete, Maquiavel situa sua intervenção
exclusivamente no plano lógico-argumentativo, pois não cabia nenhum tipo de manifestação de afeto ou mesmo
de simpatia. In: BIGNOTTO, 2014, pp. 43. Cf. SALATINI, R. & DEL ROIO, M. (Org.). Reflexões sobre
Maquiavel. Marília: Oficina Universitária ; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. 31
"Virtù" é um termo que via de regra não deve ser traduzido, porém Skinner afirma que "é o nome dado àquele
conjunto de qualidades que permitem a um príncipe aliar-se com a „fortuna‟ e conseguir honra, glória e fama.
Mas afasta o sentido do termo de toda e qualquer conexão necessária com as virtudes cardeais e principescas.
Argumenta, ao contrário, que a característica que define um príncipe verdadeiramente virtuoso consistirá em
uma disposição de fazer tudo aquilo que for ditado pela necessidade - independente do fato de ser a ação
eventualmente iníqua ou virtuosa - para alcançar seus mais altos objetivos. Deste modo, virtù passa a denotar
precisamente a qualidade da flexibilidade moral que se requer de um príncipe: 'ele deve ter a mente pronta a se
voltar em qualquer direção, conforme os ventos da „fortuna‟ e a variabilidade dos negócios que assim os exijam"
(SKINNER, 1988, pp. 65). Assim sendo: “o modo como o termo virtù é usado tanto por Maquiavel quanto por
seus contemporâneos é informal e pouco técnico; grande parte das palavras usadas por Maquiavel são cotidianas
e ele raramente define ou explica de forma cuidadosa os termos que usa. Isso torna o estudo de palavras como
virtù não somente necessário, mas, também muito complicado”. Cf. PRICE, The senses of Virtù in Machiavelli.
1973, pp. 315.
30
vida oracional, contemplativa e da espera casual à ação premeditada, calculada a partir da
opção pela força. Encerra-se a reflexão deste capítulo com a demonstração, não tão
aprofundada da lógica da força nas obras posteriores aos I Primi Scritti Politici, tais como: no
Príncipe (escrito em 1513; publicado em 1532), nos Discorsi (escrito em 1517, publicado em
1531) e na Arte da Guerra (1519/20)32
.
No movimento humanista33
, como já enunciado, tem-se como marca principal o
abandono do paradigma da contemplação e o interesse proeminente em relação às questões da
vida pública na cidade (BIGNOTTO, 2001, pp. 16). Percebe-se também, ao interno do
movimento, uma inversão teórica e técnica do laborar político, principalmente no que diz
respeito à transição de época34
, sobretudo pela escolha da ação em relação à contemplação, e
do disjuntivo da força como a nova "ordem do dia em política", como nos afirma J. J.
Marchand.
Em relação à Maquiavel, mesmo se o considerarmos como um dos últimos dos
medievais, afirma Bignotto, se perceberá que há um desgaste da lógica meramente
providencial, e por isso
como exemplo deste desgaste da lógica da Providência e da contemplação pode-se
citar a atitude do papa Gregório XI (1329-/31-1378), que provocou uma verdadeira
catástrofe na Itália ao trazer para lutar a seu lado tropas mercenárias constituídas por
ingleses e bretões (BIGNOTTO, 2001, pp. 83)35
.
É a partir deste desgaste percebido pelo florentino, sobretudo na armação das tropas
militares, que se verifica o novo ordenamento da política e da sociedade pós-medieval. Ver-
se-á que Maquiavel propõe um novo estilo de recrutamento, e por isso, os antigos moldes de
infantarias e cavalarias mistas ou mercenárias não funcionam mais com a ideia do uso da
32
A atividade política ocupa neste movimento de troca de paradigmas o lugar da contemplatividade, da
passividade. A diplomacia exige, sobretudo dos humanistas e do novo ordenamento das cidades, um espírito
crítico e nobre, valores éticos distintos das antigas virtudes cardeais, o que de fato Maquiavel faz com o conceito
de virtú, ou seja, a ética está embasada na atividade militar e no heroísmo, portanto na ação política. Não se
subjuga a atividade intelectual, porque continua superior a atividade de um soldado, por exemplo, mas ela estará
a serviço das ações nacionais e estatais (BARON, 1988, pp. 126-127). 33
Baron comenta sobre o Humanismo, embasado no aporte do rompimento dos paradigmas da Idade Média,
sobretudo pela produção artística de Donatello, Brunelleschi e Masaccio (1988, pp. 32), e destaca também a
novidade do movimento sobre os destaques da literatura, política e economia (1988, pp. 34). Continua Baron no
sentido de que a humanidade foi ressaltada, elevada e vangloriada. Há um forte destaque no que se refere as
paixões humanas (1988, pp. 33). Enfim, Baron destaca a elevação de uma vida puramente republicana, da vida
ativa (1988, pp. 35). 34
BIGNOTTO, N. Origens do Republicanismo Moderno. Belo Horizonte, UFMG, 2001, pp. 32-82. Destaca-
se sobre esta transição de época, de modo particular o capítulo II, onde Bignoto trata da transição da Idade Média
para o Humanismo. 35
No Capítulo III, da obra citada, Newton Bignotto trata da temática: "Vida ativa e Vida contemplativa", que
neste tópico da dissertação é uma amarração pertinente.
31
força militar e civil, pois esta deve ser agregada ao principio do patriotismo e a uma nova
forma de educação, pois “a virtude cívica está intrinsecamente vinculada à educação”.
A educação é o condicionamento psicológico e moral que determina a vida humana
individual e coletiva. É o conjunto de pressupostos teóricos, de juízos e convicções
de toda ordem que regulam a vida dos cidadãos. Ela "forma" o cidadão ao inculcar
nele a virtù cívica: o amor à pátria, a dedicação ao bem público, a subordinação do
bem privado ao bem público. Está explícita aqui uma moralidade: Maquiavel
condena como vício o ócio, a inveja, a ingratidão, o egoísmo e tudo aquilo que
impede o homem de engajar-se na defesa da liberdade como bem coletivo.
Importante frisar que estas qualidades são importantes porque contribuem para a
estabilidade e permanência da república e não porque são atributos bons por
expressarem a perfeição moral de um indivíduo (AMES, 2008, pp. 151).
Há também que se notar a nova antropologia dos humanistas, especialmente a visão
que Maquiavel formula do homem enquanto um postulado diferenciado da tradição
agostiniana e tomista do período medieval, enfim, do contexto total da cristandade católica. O
homem para Maquiavel está livre das condicionantes atitudes e virtudes cristãs, dos esquemas
metafísicos, da inércia da contemplatividade, e por isso, é que se diz do florentino, "há nele
uma antropologia negativa"36
.
Maquiavel, fugindo da tradição, que considera a tendência do homem para a vida em
sociedade e o bem viver como naturais, sublinha que, ao contrário, os homens tendem sempre
à divisão e à desunião (WINTER, 2006, pp. 118). Isso se dá porque – nenhum homem
consegue construir uma habitação douradora neste vale de lágrimas. Aqui, não passamos de
peregrinos, buscando alcançar um reino que não é deste mundo (BERLIN, 1991, pp. 31).
Nem falta quem, como Maquiavel, chegue a aceitar, sem ilusões, o mundo como é,
imaginando uma ordem civil edificada sobre esse material imprestável que são os
homens, de sorte que a velha ruindade venha a sujeitar-se a novas leis que a
neutralizem, num verdadeiro equilíbrio de egoísmos, e que do próprio mal possa
brotar o bem, com o soldar-se dos indivíduos corruptos no Estado forte
(HOLANDA, 1977, pp. 174)37
.
Esta tendência de desunião entre os homens na história e o certo enfoque que se
destaca desta visão, privilegia a questão psicológica, onde o homem se auto-eleva. Maquiavel
recebe forte influência de Leonardo Bruni (1369-1444), onde se destaca a ideia e a
consciência de que todos os homens são mortais e se encontram num perpétuo movimento, ou
36
Refere-se ao texto de Bignotto que trata da antropologia negativa no pensamento de Maquiavel. No horizonte
da antropologia do Renascimento, Maquiavel foi herdeiro de duas grandes viradas teóricas. Bignotto descreve
tais viradas, destacando primeiramente a tensão principal que se dá na evolução da política, ou seja, a inversão e
a redescoberta da ação em detrimento da contemplação. Num segundo momento, diante de um conjunto de uma
nova literatura, os renascentistas abordam a natureza humana de um modo privilegiado. Cf. BIGNOTTO, N. "A
antropologia negativa de Maquiavel". In: Revista Analytica. Rio de Janeiro, vol. 12, nº 2, 2008, pp. 77-100. 37
Citado por: SOUZA, R. L. de. "Maquiavelismo: a teoria e o adjetivo". In: Fênix – Revista de História e
Estudos Culturais. Outubro/ Novembro/ Dezembro de 2007, Vol. 4, Ano IV, nº 4, pp. 02.
32
seja, estão numa condição de instabilidade, o que faz Maquiavel declarar nos Discorsi que
"devem todos nascer e morrer" (MAQUIAVEL, 2007, Discorsi I, 6, Prefácio). Segundo
Bignotto, Maquiavel não pensava em revoluções sociais, mas sua antropologia reflete sobre a
ocupação do poder da qual falavam os revolucionários do passado e do seu tempo. Uma nova
formulação do homem. Daí ele afirmar que os homens "são ingratos, volúveis, simuladores,
covardes ante os perigos e ávidos ao lucro" (O Príncipe, cap. XVII).
Neste encalço da realidade, a mediação da força, como novidade, como foco é
concorrida pelo armamento e este é materializado com a escolha e confecção de um bom
exército, impreterivelmente descrito nos relatórios, como patriota. Inclusive nos Discorsi, o
florentino afirma que, antes ter um bom comandante do que um bom exército, porque homens
bons, em termos de disciplina para a vida militar, necessitam de bom comando
(MAQUIAVEL, 2007, pp. 366-368). Nestes termos, Maquiavel faz a avaliação entre a força e
a fraqueza. Força é toda habilidade que a virtù dispõe nos homens, nos soldados e nos líderes
políticos para se conquistar e manter o poder e a liberdade. Não obstante, a fraqueza é toda e
qualquer abertura deste compromisso de viver a vida de modo ativo38
.
Sobre o relatório citado há pouco, ao Conselho dos Dez de Pisa, Maquiavel afirma
contundentemente a necessidade do uso da força. Escrito em 1499, aproximadamente um ano
antes da sua missão diplomática. O discurso sobre a manutenção da liberdade capta a nova
situação dramática da geopolítica para a república florentina. A nova janela da ação política
deve ser formulada por uma opção pelas armas. Em 1494, afirma Mettenhein, quando as
tropas de Carlos VIII, o rei da França, entraram na Itália e conquistaram o reinado de Nápoles,
o uso da força foi essencial no projeto de ação política do rei francês. A chegada de Carlos
VIII leva o povo de Pisa (o porto comercial mais próximo) a rebelar-se contra o controle de
Florença. Em seguida ocorre a saída de Piero de Médici de Florença, o que muda a política
interna da cidade, inaugurando um período republicano sob constante assalto e manobras do
Estado Papal, de uma Veneza expansionista e das disputas entre França, Espanha e a Sagrada
República Romana39
. O passado e seus atores políticos tornam-se uma escola onde Maquiavel
38
Maquiavel levanta uma antítese a duas colunas fundamentais medievais, isso relacionado-as aos humanistas
anteriores, e especialmente a Dante Alighieri (1265-1321), onde se afirmava a necessidade de um só príncipe e
de um só estado, mas, de modo contrário, o florentino reconhece a necessidade da multiplicidade de estados, e
estes autônomos, e leva-nos a pensar na mediação e no uso da força (BARON, 1988, pp. 39-40). 39
Segundo Kurt Mettenhein o resumo deste primeiro relatório é baseado, principalmente, em três fontes: J. J.
Marchand. Nicollò Machiavelli: I Primi Scritti Politici (1499-1512), Padua: Antenore, 1976; A. Montevecchi,
―Nota Storica‖ em Machiavelli, Istorie Fiorentine e altre opere storiche e politiche (Opere). Turino: UTET,
2007, pp. 33-50; F. Gilbert. Machiavelli and Guicciardini, Politics and History in Sixteenth Century
Florence. New York: Norton, 1965. É citado também o nome de Giorgio Falco, La Santa Romana Repubblica
(Milão, Riccardo Ricciardi, 1954) para enfatizar a continuidade republicana nas instituições políticas, como
também na vida e obra de Maquiavel (In: MAQUIAVEL, 2010, pp. 8).
33
constantemente aprende. A Itália deve também aprender com as culturas do passado, e por
isso
os florentinos podem aprender com os romanos, interrogando-se, simultaneamente,
sobre o presente e o passado, é que a arte da política exige que se saiba identificar os
inimigos, escolher um campo, utilizar-se oportunamente da astúcia e da força; em
suma, diz respeito à arte da guerra, embora não se reduza a isso (LEFORT, 1999, pp.
155)
Mettenheim, ao prefaciar os I Primi Scritti Politici, afirma que a política, mesmo
sendo uma desgraça, “é necessária para manter a liberdade entre os homens”. O fazer político
ativamente é um modo de tentar a eficácia no estabelecimento da liberdade na vida social40
.
Um dos disjuntivos de escolha da liberdade proposto por Marchand em sua leitura desta obra
maquiaveliana é o discernimento entre o uso ou não da força, da violência. A liberdade é vista
como uma conquista. E esta escolha se procede no que diz respeito às coisas da política.
"A mensagem de seus escritos" – continua Mettenheim, os que são ditos “menores
ou primeiros” – é a avaliação do uso da força, das armas e da formação de um exército
próprio para Florença. Assim sendo, para manter a liberdade, todos os cidadãos e todos os
Estados enfrentam os disjuntivos de decisão política e as realidades da gestão pública, ou seja,
as escolhas entre os paradoxos que a política [naturalmente] encarrega-se de criar. Isso se “...
quisermos manter a liberdade41
...” (MAQUIAVEL, 2010, pp. 5).
[...] se quisermos manter a liberdade, não me parece que eu possa demonstrá-lo a
vós com outras razões que não aquelas que por vós mesmos já sabeis [...] é
necessário o uso da força (MAQUIAVEL, 2010, pp. 31).
Posteriormente na obra O Príncipe e, mais tarde, nos Comentários sobre a primeira
década de Tito Lívio, Maquiavel demonstra que a liberdade política, nada mais é do que o
direito de opor-se pacificamente a quem está no poder, em um contexto de Estados nacionais,
e depende, de um primeiro momento de não-liberdade. Como na realidade humana a disputa
pelo poder é inevitável, para que uma comunidade seja livre é necessário que ela crie uma
40
Inclusive, Hans Baron afirma do autor romano que há uma rememorização, uma espécie de anamnese do
"espírito cívico" e da chamada vita civilis desenvolvida por Cícero na Roma Antiga (BARON, 1988, pp. 86-
118). 41
A liberdade individual é tema recorrente no trabalho de Maquiavel. "Deus não quer fazer tudo, para não tolher
o livre arbítrio e parte da gloria que nos cabe". Berlin, por exemplo, afirma que o individuo e a liberdade estão na
base da fundamentação de todo principio democrático. A civilização moderna caminha ainda sobre a rodagem
rumo a liberdade. Deste modo "qualquer coisa que tenha sido, não há duvida que Maquiavel foi um patriota
apaixonado, um democrata, um entusiasta da liberdade e o Príncipe deve ter tido por finalidade, como Spinoza o
explica com muita clareza, acautelar os homens contra o que os tiranos podem fazer', afim de ajuda-los a resistir
a eles". Cf. BERLIN, I. O problema de Maquiavel. Brasília, UNB, 1978.
34
soberania territorial em face das demais, uma vez que o domínio de uma força estrangeira
significa a obediência a desígnios heterônomos (SINGER, 2006, pp. 352-353).
Maquiavel aparece como um observador atento da peregrinação dos atores políticos
neste mundo inacabado. A peregrinação se dá pelas “bem-aventuranças” políticas
(macarismos em grego), ou seja, pela “marcha”, com “pés firmes” frente às utopias históricas,
que se fazem à luz da nudez social e da destruição da hipocrisia que mascara o que realmente
é o mundo, os homens e a sociedade. Maquiavel de fato funda a política factual. Agregado a
esta ideia, Maquiavel também há de lidar com a força como opção primária, e num segundo
momento, com a confluência desta escolha com a irremediável relação para com as leis que se
formam nos principados. Assim sendo, a política se faz, para o Secretário Florentino de modo
"nu e cru". Há, portanto o nascimento de uma nova lógica, suscitada por força da história, em
que se retirasse de cena a Providência e levantasse uma reflexão sobre a ação em torno da
força e da violência42
.
O cenário é específico, a política se abre em escolhas e Maquiavel se questiona:
"sendo, portanto, necessária a força, me parece que deve ser considerado se seria bom usá-la
neste momento ou não" (MAQUIAVEL, 2010, pp. 31). A escolha pela força é a fortiori
deduzida, porém o momento, a ocasião de usá-la é que está sempre em questão. O realismo
político, por um lado, e por outro, a política orgânica, devem ser guias de atuação, sendo a
última especificamente o postulado da atividade e não a Providência Divina. Segundo
Bignotto não se trata de um anti-cristianismo, ou anti-catolicismo, mas simplesmente de um
novo postulado, de uma nova reflexão, onde a ordem do dia, a política dos fatos se baseiam
no domínio do ser temido antes de o ser amado que mais tarde o Florentino haverá de discutir
no Príncipe. O fato de ser temido está num primeiro plano referenciado ao respeito as leis. Ao
respeito ao próprio ator político, que com virtù exerce com excelência sua organicidade. Ser
temido é também ser visto como o que exerce a violência, mas esta decisão também depende
da ocasião.
Os contemporâneos [do Renascimento como um todo] viveram este choque [que a
nova ordem política era derivada do uso da força das armas] com a passagem súbita
42
"A violência fundadora da ordem política não é estranha à violência que funda a lei, no sentido de que ambas
(violência fundadora e violência da lei) se constituem para abolir a violência originária, que existe previamente
(não no sentido de anterioridade temporal e, sim, lógica), isto é, à margem de todo ordenamento político-legal.
Por isso, a necessidade de um mito ou crime fundador para simbolizar e justificar a passagem de uma violência
“prévia” tão destruidora que é preciso destruí-la: a violência construtora e ordenada da existência política e legal,
quer dizer, o crime fratricida de Rômulo (Discursos I,9). A violência fundadora do Estado e da ordem política é
exatamente a mesma violência fundadora da lei, no sentido de que tanto o Estado quanto a lei se constituem para
abolir a violência originária que existe “antes” ou “à margem” de todo ordenamento estatal, político e legal da
sociedade; em outras palavras, fora do Estado, da política e da lei não existe mais do que violência" (AMES,
2011, pp. 39).
35
de um mundo ordenado, regido pela Providência, a um mundo de violência,
atravessado por forças aleatórias e ameaçadoras (SENELLART, 2006, pp. 239).
O pensamento anterior ao Renascimento e a obra de Maquiavel se fundamentam em
duas colunas fortemente divulgadas na longa tradição medieval, e são elas: a Patrística,
principalmente com Agostinho de Hipona (354-430), sobretudo nas obras: Cidade de Deus e
Doutrina Cristã e a Escolástica, com o pensamento de Tomás de Aquino (1225-1274)43
. No
séc. IV, Agostinho na obra A Cidade de Deus implementa a ideia de Providência Divina,
derivada da leitura do romano Cícero, como soberana no governo da história. Instaura-se o
teocentrismo que influenciará diretamente o modus vivendi da sociedade medieval, sobretudo
nas condutas de políticas sociais. Baseado no cap. XVI do Evangelho de Mateus, Agostinho
tem na passagem de “Pedro, tu és pedra... tudo que ligares será ligado e tudo que desligares,
será desligado”, a vida na sociedade é regida pela supremacia da Igreja. Portanto, a vida
política fica submetida aos desígnios do “amor de Deus Criador em vista do bem comum”, o
que acarreta uma desnaturalização da política. A regência da história está submetida à vontade
divina, que por sua vez, se aplica na prática pelos desígnios da Igreja Católica44
(BIGNOTTO,
1991, pp. 54).
A gloriosíssima cidade de Deus, tanto no curso dos tempos, enquanto peregrina
entre os ímpios vivendo da fé, como na estabilidade da morada eterna, que agora
espera com paciência, „até que a justiça se converta em juízo‟, e que depois será
alcançada pela excelência na vitória final e paz perfeita, é a cidade que eu, na feitura
desta obra, dívida de promessa que te fiz, caríssimo filho Marcelino, encarreguei-me
de defender contra aqueles que preferem seus deuses ao Fundador dela: grande e
árdua tarefa, mas „Deus é nosso auxílio‟ (AUGUSTINUS. De Civitate Dei,
praefatio)45
.
Não obstante, na outra coluna medieval, a Escolástica, no século XIII, se confirmou
na obra de Tomas de Aquino tal pensamento político. O Aquinate, no de Regno, Sobre o rei
43
"A filosofia cristã, legada pela Idade Média ao Renascimento, concebia o homem como um ser temporal, de
vocação social, dotado, porém, de uma destinação extraterrena, isto é, como um ser que vive naturalmente em
sociedade, subordinado à lei positiva, mais que deve, antes de mais nada, obedecer à lei natural, colocada acima
da própria autoridade do Estado, e que este não deve contrariar, pois ela emana da própria lei eterna". Cf.
ESCOREL, L. Introdução ao Pensamento Político de Maquiavel. Brasília, Editora Universidade de Brasília,
1979, pp. 93. 44
Maquiavel, seguindo os passos que Marsílio Ficcino dera dois séculos antes, mostra que o exercício do poder
temporal pela Igreja corrompe sua missão espiritual. A religião cumpre uma função essencial na estrutura social.
É dela que provém a coesão interna do povo e o devotamento à pátria como a um mandamento religioso. A fé
religiosa inspira o amor cívico e cultiva a virtù coletiva sem a qual nenhum Estado sobrevive. Os chefes da
Igreja, quando se imiscuem na vida do Estado, destroem o sentido espiritual identitário que funde o povo numa
nação. O poder exercido pela autoridade religiosa, devido ao seu caráter divisionista, leva o povo a descrer
(AMES, 2006, pp. 70). 45
Assim, logo no prólogo da obra, A Cidade de Deus, Agostinho explicita que a concepção de política é
ambivalente, ou seja, a política adquire positividade ou negatividade conforme a identidade ou a contradição de
uma civitas ou res publica consigo mesma (Cf. FILHO, 2012, pp. 12).
36
do Chipre, flexionou as suas poucas definições e concepções de política a sua extensa
reflexão moral. Por certo que a política deve estar no encalço da moral, não obstante,
Tomás de Aquino ocupa um lugar de relevo na história da Filosofia Política. Creio
não estar errado ao afirmar que ele, juntamente com Aristóteles, são os nomes mais
importantes do pensamento clássico anterior a Maquiavel e Hobbes. [...] Tomás de
Aquino foi inovador não somente em Metafísica ou em Ética. Seus escritos sobre a
Política, incorporando o pensamento aristotélico, permitem colocá-lo como o
primeiro politólogo medieval (LIMA, 2005, pp. 28)46
.
Assim a lógica da Providência e da contemplação tem seus fundamentos ao longo
dos séculos a partir da produção da tradição medieval e cristã. A lógica que se instaura no
Renascimento e no realismo político, na organicidade da reflexão sobre a vida citadina,
sobretudo com os textos dos I Primi Scritti Politici, se fundamentam na força e na ação. Deste
modo, com um novo enfoque lógico, os humanistas voltaram-se para o mundo concreto dos
homens e passaram a valorizar a divindade presente em cada homem e a liberdade individual.
Mas nem todos puderam pensar livremente, alguns autores humanistas e renascentistas ou
artistas foram perseguidos, tanto pelo poder temporal como pelo espiritual. De qualquer
forma, o antropocentrismo foi a forma típica de manifestação do ideal de liberdade individual
entre os intelectuais do período. Vejamos o que de fato mudou com a reviravolta dos
postulados e da nova lógica instaurada.
Para BURCKHARDT, o Renascimento se constitui por algumas ideias principais. A
primeira e mais importante é a de vê-lo como um período predominantemente cultural, que
tanto a política como a religião são influenciadas pela cultura, diferente de outras épocas,
onde uma destas duas esferas é que se sobrepunha às demais. É importante chamar a atenção
para o fato de que no século XIX, o que Burckhardt entende por cultura é algo bastante
amplo, indo desde as artes (plásticas, literárias e musicais), o vestuário, a língua, a etiqueta, os
costumes, as festividades e o pensamento da época (BURCKHARDT, 1991, pp. 8-9).
BURCKHARDT também reflete sobre o juízo dos florentinos a respeito de tiranias
desde o séc. XIV. A visão pressupõe uma postura de tiranicídio e inferno. E há uma forte
tendência surgida entre os humanistas de observarem a realidade não como uma cidade
utópica, do ainda por fazer, das fantasias e do idealismo, mas – como afirmará Maquiavel no
Príncipe, sob o enfoque da verdade efetiva e da crueza das coisas como são. Francesco Sforza
46
O autor LIMA fundamenta sua tese de doutorado, “Da política à ética: um itinerário de Santo Tomás de
Aquino”, na citação acima sobre o enfoque das obras de: DE BONI. De Abelardo a Lutero. Porto Alegre:
Edipucrs, 2003, e SARANYANA. "La ciência política de Tomás de Aquino". In: DE BONI. Idade Média:
Ética e Política. 2a. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. pp. 233.
37
(1401-1466) e a família Sforza são ícones desta mudança de mentalidade (BURCKHARDT,
1991, pp. 33-47).
Pode-se observar também no Renascimento, um crescente interesse pela literatura
clássica, uma espécie de releitura do passado. Este processo ocorre, tanto no aporte geral,
como em situações específicas, tais como um novo olhar para o modo de fazer política. As
ruínas da Antiga Roma poderiam reconstruir a nova Itália. Há um relato interessante quanto
ao interesse pelos escritos da antiguidade: Niccollò Niccoli (1364-1437), florentino e membro
ilustrado que se reunia em torno do já idoso Cosme de Médici (1389-1464), aplicou toda a sua
fortuna na aquisição de livros. Outro italiano de igual importância foi o cardeal grego
Bessarion (1403-1472) que compilou, com enorme sacrifício, seiscentos manuscritos, tanto de
conteúdo pagão como cristão, procurando a seguir um local seguro para abrigo. Merece
também destaque, neste ínterim cultural, a construção da biblioteca dos Médici
(BURCKHARDT, 1991, pp. 150-151)47
.
Os principados e os estados devem se valer da força do príncipe, do líder político,
para conquistar cada espaço de terra, enquanto um ponto de partida da dominação geográfica,
para caminhar para a dominação das ideias, invocando um certo comportamento da
subserviência, de modo a dominar cada citadino. Maquiavel acena várias vezes, isto ao estilo
aristotélico, que a ordem do dia é a inversão da providência pela ação, da passividade
oracional confiante à força, e que esta não ocorre pura e simplesmente pelo acaso ou muito
menos pela vontade divina. Contudo não há também nos relatórios uma pura e simples ordem
para as armas e para a força. Esta adesão é necessária, porém ela é antecipada por uma
conduta frente as boas leis, ao respeito, a organicidade das ações que promovam a aceitação
do ator político, e, acima de tudo, que a arte da guerra seja uma preocupação constante,
mesmo em tempo de paz.
A arte da guerra deve ser assim uma preocupação constante do príncipe. Mas em que
sentido se pode dizer que esta é a única arte que se espera dele? Num sentido
especial, que pode ser afirmado sem contradizer os capítulos seguintes do livrinho
do florentino: quando a política é entendida como a continuação da guerra por
outros meios. O que significa dizer que a possibilidade do uso da violência está
ligada à possibilidade do governo. No capítulo XVII do Príncipe, quando trata do
binômio crueldade/piedade, Maquiavel insiste no fato de que a piedade não consiste
na renúncia à violência ou à crueldade pelo príncipe. Para o homem político a
piedade consiste no uso da violência que seja mais conveniente aos súditos. Pois a
47
Maquiavel não se interessa, por exemplo, pelo problema da criação do mundo e nem mesmo pelo de sua
eternidade enquanto problema metafísico ou ontológico. Ele se interessa sim, na medida em que esta concepção
de mundo implica numa visão do tempo e da história que, em primeira instância, se revela destruidora para a arte
política. Cf. COLONNA d‟ISTRIA, G.; FRAPET, R. L‘Art Politique chez Machiavel. Paris: J. Vrin, 1980, pp.
164.
38
violência bem utilizada – e isto importa reter – gera ordem e segurança. O oposto da
ordem, raciocina Maquiavel, é a violência indiscriminada (KRITSCH, 2001, pp. 3).
Maquiavel neste universo do conhecimento também apostou pela reflexão política a
partir da história48
. Para ele não existe um fundamento anterior e exterior à política. A política
resulta da ação humana em uma situação de conflito49
. Assim sendo, a política se demonstra
como o campo de práticas sem pré-conceitos ou ideais; o que conta é a conquista e
conservação do poder tendo em vista a sua legitimidade; e quem o faz possui virtú.
A noção que subjaz nesta ideia não é a virtude cristã, pois esta tinha sobre si
enxertada a negação da vida como forma prática de usura (BARON, 1993, pp. 198-199). Mas,
seguindo intérpretes renomados e recentes, tais como Genaro Sasso, pode-se desconsiderar a
antiga ideia de separação de ética e política no Renascimento, especialmente na obra de
Maquiavel. O que se tem de fato é uma ética distinta da medieval, distinta da demarcação
agostiniana do arbítrio humano ou das virtudes ponderadamente frisadas do tomismo. E
mesmo se, considerando Maquiavel como um dos últimos medievais, como um intelectual
atrelado a Igreja, a sua maneira de ver a res civitas (a coisa pública) é distinta de tudo o que a
Idade Média produziu.
Hans Baron, dentro da perspectiva da anatomia do humanismo cívico, apresenta uma
antropologia fina em relação as verdadeiras necessidades e convicções humanas. Leonardo
Bruni (1369-1444), com as descobertas de Aristóteles e as leituras e abordagens que desta
descoberta decorrem, eleva a reflexão antropológica renascentista a um grau mais excelso de
perspectivas. O próprio Bruni cita a Ética a Nicômaco para afirmar que o homem necessita da
prosperidade material, porque é simplesmente humano. Para ele a condição prévia de
liberdade é o dinheiro. Assim sendo, para lograr com justiça e fineza a vida, são necessárias
propriedades, e para se ter valor é necessário a força.
Ao nos referirmos a uma antropologia, no seio dos escritos maquiavelianos, não
estamos supondo que possamos encontrar algo como uma antecipação dos conceitos
e métodos, que irão constituir essa disciplina no seio das ciências sociais na
48
VIROLI, (2002, pp. 89), comentador de Maquiavel, afirma que a "história ensina a quem quer aprender", ou
seja, nas palavras do florentino “... a história é mestra de nossos atos e máximas dos príncipes; e o mundo
sempre foi, de certa forma, habitado por homens que sempre têm paixões iguais; e sempre houve quem serve e
quem ordena, e quem serve de má vontade e quem serve de boa vontade, e quem se rebela e se rende”. Não
obstante, na História de Florença, Maquiavel em relação a história afirmou: "evito bem, em qualquer momento,
os vocábulos odiosos e pouco necessários à dignidade e à verdade da história" (MAQUIAVEL, 1998, pp. 30). 49
Deste modo, a atitude do Renascimento perante os clássicos adequou alguns impulsos característicos da Idade
Média, além do que propôs uma maneira diferente no modo de abordá-los, pois, ao continuarem ou retomarem o
estudo dos autores latinos, os homens do Renascimento buscaram não apenas o entendimento dos mesmos, pois:
não eram anticristãos, mas enquanto laicos não subordinavam o desenvolvimento da cultura secular à
possibilidade de a amalgamar com a doutrina religiosa ou teológica. Além disso, introduziram o estudo da língua
grega e, para lá da ciência e da filosofia aristotélica, de toda sua literatura (KRISTELLER, 1995, pp. 15).
39
contemporaneidade. [...] Antes de mais nada, cabe recuperar o sentido dessa
disciplina, que se dedica, segundo Lima Vaz a “elaboração de uma ideia do homem
que leve em conta, de um lado, os problemas e temas presentes ao longo da tradição
filosófica e, de outro, as contribuições e perspectivas abertas pelas recentes ciências
do homem” (BIGNOTO, 2008, pp. 78 apud LIMA VAZ)50
.
O que se observa é que o Renascimento passa pela reformulação estamental, ou seja,
da visão classista em distintas ordens: nobreza, clero e servos, a uma ideia mais uniforme dos
que convivem socialmente. A sensibilidade não foi rejeitada, pois por ela é que se tem o
primeiro acesso ao mundo material. A natureza inanimada pode, sem dúvida nenhuma, ser
dominada por intermédio da racionalidade. E questões que não somente as da fé cristã,
poderiam fazer parte do afã de importância do cotidiano renascentista, pois como disse o
próprio Galileu (1554-1642): “o livro da natureza está inscrito em caracteres matemáticos”
(BIANCHI, 1988, pp. 47-48) e não teológicos, metafísicos. Isso ocorre de tal modo que
Maquiavel irá subordinar a moralidade à necessidade (SENELLART, 2006, pp. 227). É, de
fato GARIN tinha razão: „magnun miraculum est homo”(GARIN, 1988, pp. 10). Chegou-se
ao tempo de se pensar no homem e nos seus problemas internos e externos de sociabilidade.
MOUSNIER declara, por sua vez, que o Renascimento é o período da “renovação
das estruturas mentais” (1973, pp. 50)51
. E diz isto principalmente em relação aos progressos
do Estado e da política positiva. No absolutismo monárquico, a obediência à autoridade é
forma de servidão voluntária, e foi dando espaço, mesmo que pequeno, as indagações que
levaram a pensar um sistema de monarquia moderada. Pode-se falar também de novas
estruturas econômicas. O surto do grande comércio, como primazia do atual sistema
capitalista. Ocorre também o surto demográfico. O câmbio da época sustentado no crédito, na
especulação e na circulação das mercadorias, bem como o fluxo monetário (1973, pp. 99-
115).
Do ponto de vista artístico, a intimidade e o despojamento são levados em
consideração não mais na perspectiva cristã, mas da criatividade. O homem não é somente
imago Dei, mas um ser divino, “um herói destinado a todas as glórias”. O homem é também
tratado como um microcosmo, uma substância. Uma nova visão de mundo veio de baixo para
cima. Não mais sob o aporte eclesiástico, mas da astrologia e de outras reflexões ainda não
50
VAZ, H. C. L. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991, pp. 10. 51
Ao falarmos em estruturas mentais, incorremos em um campo de estudos relativamente novo na reconstrução
da história, abrindo novas possibilidades para a chamada historiografia. Podemos afirmar que o estudo das
mentalidades começou a se popularizar com a chamada Escola dos Annales. O campo das mentalidades nos
sugere na verdade o estudo de uma psico-história, pois, de fato, trabalha-se com imagens, sonhos, visões,
crenças, mitos etc., recorrendo-se a simbologias que se tornam corriqueiras e "verdadeiras", "imprescindíveis"
para um determinado grupo social. Tal "necessidade" simbólica é a concretização de crenças que são aceitas de
forma quase unânime pelo inconsciente coletivo de uma sociedade (PRADO, 2000, pp. 117).
40
científicas surgidas entre os humanistas, tais como o manejo com a cabala, com a feitiçaria e
com a magia, o matematismo e com a nova visão de política instaurada por Maquiavel
(MOUSNIER, 1973, pp. 39-47).
Um último aspecto da Renascença a ser apresentado é a moralidade e a
religiosidade. Diz-se isto, porém o que mais se percebe no período renascentista é o caráter
“mundano”, dessacralizado. Há uma afirmação dos propósitos e pensamentos relativos à
natureza e a humanidade. Digna de atenção é, antes de tudo, a moral das novelas. A maior
parte delas trata das mulheres casadas, e, portanto do tema do adultério. O indivíduo vai
conquistando deveres e obrigações para a noção, ainda obscura de consciência, que vai ser
formada posteriormente com as ideias do cogito cartesiano.
A ética maquiaveliana é racional e secular e considerações podem ser feitas quanto a
ambos os aspectos. Quanto ao primeiro, Nisbet compara Maquiavel, em termos
morais, a um artista renascentista: “Maquiavel estava simplesmente submetendo a
política, guerra e moralidade à mesma ótica desapaixonada a que muitos artistas
submetiam seus óleos ou seus mármores”. E ainda quanto ao primeiro aspecto,
segundo Koyré, “o imoralismo de Maquiavel é pura lógica. Do ponto de vista em
que se coloca, a religião e a moral são apenas condicionantes sociais. É preciso saber
lidar com fatos com os quais se possa contar. Isso é tudo” (SOUZA, 2007, pp. 8
apud KOIRÉ, 1982)52
.
Em relação a Maquiavel e a questão da religião53
seria um tema específico para outro
trabalho, mas que se faz necessário como tema de passagem a esta pesquisa. Ettiene Gilson
afirma que a evolução da cidade de Deus - como a Igreja assim pautou por um milênio, a
cultura e a política medieval, destacava-se como – o poder espiritual estando acima do poder
temporal. A religião para Maquiavel se atenua como “cimento social”. A religião,
compreendida como instrumentum regni, requer do príncipe a capacidade de servir-se de
modo sagaz da fé do povo para levá-lo à obediência da lei civil (AMES, 2006, pp. 53).
Continua AMES, “a fé religiosa, compreendida como a vida profunda do povo expressa nos
bons costumes e na educação moral e cívica, constitui-se na razão de ser da virtú política dos
membros e no fundamento interno do Estado”54
. Assim sendo
52
KOYRÉ, A. Estudos de História do pensamento científico. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
1982, pp. 20. 53
“Maquiavel não hesita em dizer que o homem moderno, isto é, o cristão, não sabe mais ser cruel. Ele é cruel
[...] mas sua crueldade é uma “crueldade santa”, ou seja, um fanatismo religioso louco, que justifica as piores
atrocidades. Ao contrário, onde é preciso saber resolver pela espada e ganhar a glória, o homem moderno torna-
se incapaz” (COLONNA d‟ISTRIA, 1980, pp. 164). 54
"Maquiavel, na tentativa de comprovar mais uma vez a culpa da Igreja pela fragmentação e fraqueza da Itália,
sugere a transferência da corte romana para um local ainda intacto em relação à corrupção". BENEVENUTO, F.
R. de S. ‗Virtù‘ e valores no pensamento de Maquiavel. Dissertação de Mestrado. Departamento de Filosofia
da UFMG, Belo Horizonte, 2003, pp. 17.
41
o fundamento da religião para Maquiavel é, pois, o medo de um Deus que, ainda que
seja apresentado como algo que tem certa feição humana, considerado em si mesmo
não constitui razão de obrigação política e de vínculo social. Contudo, ainda que o
medo de um Deus não tenha nada que o faça critério e fundamento de
comportamentos políticos e sociais por si mesmo, pode tornar-se tal graças à
intervenção prudente de um legislador que saiba alimentar, orientar e, sobretudo,
organizar em instituições estáveis esse sentimento humano, tornando-o, assim, apto
a suscitar coesão política e obediência civil (AMES, 2006, pp. 55).
Como valor instrumental, a religião é, portanto, um elemento de grande eficácia
política. Usada com a devida prudência, constitui uma alternativa ao emprego da força bruta
para assegurar a ordem e a paz interna (AMES, 2006, pp. 56). Os dirigentes políticos são
sabedores de sua obrigação em relação à coletividade. Eles devem manter o povo unido e
obediente ao Estado, pois somente sob esta condição garantem a continuidade da ordem e da
paz, que asseguram a vida e a segurança de todos. Segundo Gérard Namer, o príncipe conhece
a verdade da religião de maneira racional, ao passo que o povo, quando muito, concede-lhe a
falsidade quanto a intenção de embuste do mediador que lhe é descoberta55
.
Um primeiro aspecto disciplinador da religião é que o povo, “amedrontado pela
religião”, faz o que lhe foi pedido. Um segundo aspecto, no ambiente militar, Maquiavel
oferece um exemplo do modo “como os capitães dos exércitos se valiam da religião para tê-
los [os soldados] dispostos a um empreendimento” (Discorsi I, 13). E por fim, são citados os
juramentos56
, dos quais Maquiavel mais vezes recorda o uso, especialmente pelos romanos
(AMES, 2006, pp. 59-60). Num embate entre a religião dos romanos e o Cristianismo,
Maquiavel, segundo Ames afirma que
o critério de distinção entre a virtude dos romanos e a corrupção geral dos modernos
reside unicamente na diferente educação e, portanto, nas diferentes religiões
existentes entre os antigos e os modernos. A fraqueza dos modernos e a
exemplaridade dos antigos têm seu fundamento na diversidade radical de suas
religiões e do conteúdo delas. Significa dizer que o mundo moderno tornou-se
politicamente impotente por causa de sua religião assim como o mundo antigo havia
55
A religião tem um papel muito importante no pensamento de Maquiavel no sentido em que apela ao
compromisso social pela fé e pela crença. Tem uma função instrumental, uma função agregadora e uma função
cívico-educativa que estabelece e desenvolve uma função normativa, educadora e garante das hierarquias
(MANGERONA, 2012, pp. 139-143). De tal modo que pode-se ler: "onde há religião, facilmente se podem
introduzir as armas; e, onde houver armas, mas não houver religião, esta com dificuldade poderá ser introduzida
(MAQUIAVEL, 2007, pp. 50), e de que [...] nunca houve ordenador de leis extraordinárias, em povo nenhum,
que não recorresse a Deus (MAQUIAVEL, 2007, pp.50). A veracidade da religião não é, para este pensador
florentino, um elemento relevante. Para Maquiavel não interessa se a religião é verdadeira ou falsa; o que
importa é o resultado da interpretação da vontade divina. Ou seja, a prática que obriga a um certo
comportamento individual e coletivo [...]. Saber utilizar a religião exige prudência para que o objetivo seja
cumprido: alcançar o ânimo para o exército e para o povo de forma a manter a união e a independência
(MANGERONA, 2012, pp. 139-143). 56
“A dinâmica na qual se produz o juramento torna evidente que aquelas manifestações da religião que vêm em
auxílio da política não têm uma origem autônoma, não são um movimento espontâneo e imediato do espírito do
povo. Pelo contrário, estas manifestações da religião são o produto de uma vontade política bem determinada”
Cf. LARIVAILLE, 1982, pp. 127.
42
fundado sua exemplaridade sobre as qualidades específicas da religião própria
(AMES, 2006, pp. 65).
Maquiavel extrai dessa origem histórica das religiões duas consequências que
evidenciam sua compreensão da finalidade da religião. Primeiro, que é vã a oposição entre
religião revelada (cristã) e não revelada (pagã). Segundo, que é absurda a ideia de uma
Providência divina reguladora das coisas mundanas. A primeira consequência permite-lhe
sustentar a função política da religião (Discorsi II, 2). A segunda consequência possibilita-lhe
evidenciar a sua tese da determinação humana (ainda que não de modo absoluto) dos
acontecimentos históricos: contra as interpretações fatalistas, que querem atribuir as
calamidades e as adversidades em geral à fortuna ou a Deus. Maquiavel afirma o papel
decisivo da virtù denunciando a fé numa Providência reguladora como fuga, desleixo e
incapacidade política (AMES, 2006, pp. 71-72). O próprio tomismo no humanismo precisaria
de uma redefinição. O conceito de civitas57
de Tomás de Aquino, fundado no bem comum
passa a ser interpretado pelos humanistas como o bem da cidade, o bem civil. Para tanto, o
novo olhar é do ator político, não mais do teólogo. Crê-se que Maquiavel segretario58
desempenha com maestria esta função. É o que se aborda no próximo item.
1.2. ―O Maquiavel antes de Maquiavel‖59
: O secretário observador dos I
Primi Scritti Politici
Ter-se-ia no personagem histórico de Maquiavel e na sua obra várias interpretações
tais com há no Marxismo, por exemplo? Será possível e pertinente conceber o paradoxo:
"Maquiavel, Maquiáveis" disposto por Sadek no tocante a fases do pensador Florentino? A
intenção deste tópico é abranger a figura de Maquiavel, sobretudo como diplomata e 57
“A civitas é, para Santo Tomás, uma criação coletiva dos homens”. Na Civitas, todos e cada um, trabalham,
cada qual dentro de funções determinadas, em prol do bem comum, que nada mais é do que a realização da
natureza humana. Homens vivendo em sociedade com o fim de alcançar o bem específico da sua natureza, eis a
Civitas. Cf. STORK, A. C. "O Indivíduo e a Origem Política na Dimensão da Civitas". In: DE BONI (Org.)
Idade Media: Ética e Política. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. pp. 326-328. 58
"Em I Primi Scritti Politici, Maquiavel expõe fatos marcantes da política, das guerras, dos personagens e dos
desafios que Florença enfrentava no início do século XVI, e inaugura um novo discurso estratégico-militar e
político que ultrapassa o simples relato das negociações" (DA SILVA, 2013, pp. 31). 59
“Quale Machiavelli” abordare? A intenção deste item é prender-se em Maquiavel, perceber sua
originalidade, sua postura frente ao passado, observá-lo como Secretário e como Chanceler do Conselho da
Guerra de Florença. Vê-lo aos 29 anos, no ano de 1498 no seu inicio como Secretário do Conselho dos Dez e
estender esta análise até 1512, quando deixa o cargo a pedido dos Médici. Cf. SCAGLIA, G. B. Machiavelli:
passioni e rischio de la política. Edizioni Studium, Roma, 1990, pp. 9. A ideia que se estabelece neste item
pode ser também consultada no artigo de Walter F. L. da Silva, que tem como título: “Maquiavel segretario
(1498-1512), guerra e política em I primi scritti politici”. In: Revista Integração, ano XIX, nº. 65, pp. 28-35,
2013.
43
secretário de Florença (SKINNER, 1988, DA SILVA, 2013) que tem especificamente uma
missão desmistificadora anti-utopista e anti-ilusionista, que na visão de LEFORT é
en primer lugar, la ilusion de que los dirigentes gozarian de un dominio de la ciencia
politica -el muestra que son unos pobres calculadores-; en segundo lugar, la ilusion
de que la ciudad se beneficiaria de la proteccion especial de la providencia y, en
tercer lugar, que seria la depositaria de la herencia de Roma y de la sabiduria antigua
(LEFORT, 2007, pp. 243).
Walter Silva dispõe sobre a função de Maquiavel em Florença a seguinte ideia
vinculada aos relatórios
em I primi scritti politici, aprofunda-se a reflexão sobre a visão de Maquiavel a
respeito da necessidade de Florença se aprimorar política, social e militarmente, de
forma a desenvolver capacidade de solução de seus problemas internos; e isto,
previamente, à busca por soluções para as tensões externas nas quais a República
encontrava-se envolvida. No scritto Sommario de‟ Pistolesi 1502, Maquiavel
argumenta a respeito das maneiras de exercício do poder e da necessidade de deter
pleno controle sobre uma cidade então dominada. Também destaca o argumento da
intervenção de Florença de forma a eliminar da cidade dominada todo e qualquer
foco de resistência, mas sem dominá-la por completo. Assim feito, através do
destacamento de um comissário florentino e o concomitante envio de tropas pagas,
dar-se-ia o estabelecimento de força militar na cidade, buscando o restabelecimento
da ordem, com o fim dos tumultos sociais, da delinquência e a erradicação de todas
as outras artilharias, armas públicas e bastiões (DA SILVA, 2013, pp. 31).
Para a filosofia política e para a contemporaneidade, a figura de Maquiavel não se
trata apenas de um ator de grande porte histórico, que produziu teoria e prática dos conceitos
políticos que se vivenciam hodiernamente, RIDOLFI (apud TEIXEIRA) afirma que
Maquiavel “gostaria de ver os antigos valores e as antigas ordenações ressuscitadas”60
. Não se
trata também de vasculhar neste campo de pesquisa do contexto Humanístico-renascentista,
mas de asseverar, como arcabouço teórico e substrato morfológico, a compreensão dos
esquemas que modulam a prática política em nossas culturas atuais. Já não se pensa hoje,
realmente, como escreviam as "penas" de Maquiavel, como pensariam Hume ou Bonald, que
há no tempo "uma coisa, pelo menos, que é imutável: o homem". Aprendemos que também o
homem mudou muito: no seu espírito e, provavelmente, até nos mais delicados mecanismos
do corpo. Como poderia ser de outro modo? questiona-se Bloch. Há em nossos tempos, o séc.
XXI uma nova atmosfera mental e também um novo modelo de higiene, de alimentação.
Convimos, todavia, em que existe na natureza humana e nas sociedades humanas um fundo
60
TEIXEIRA, F. C. “A História em Maquiavel”. In: Ciclos visões da História. Conferência proferida em 22 de
setembro de 2012. (http://www.academia.org.br/abl/media/RevistaBrasileiraCICLOVISOESDAHISTORIA.pdf)
Acesso em 15 de Dezembro de 2015.
44
permanente. Se assim não fosse, os próprios vocábulos de "homem" e de "sociedade" não
significariam coisa nenhuma (BLOCH, 1965, pp. 42).
Para Maquiavel, somente alguns homens são políticos, e eles governam em qualquer
regime, não importa como seja chamado. O povo não deseja governar e quando
parece governa está sendo manipulados por seus líderes. Ele é matéria sem forma,
corpo sem cabeça. Uma vez que não pode governar, o regime é sempre do governo
de um príncipe ou de príncipes. (MANSFIELD, 1996, pp. 237)
Sendo assim, a figura de Maquiavel61
como historiador, ator político, poeta,
teatrólogo, diplomata, enfim, como um humanista que formula um novo conceito de natureza
humana, vê-se por assim dizer a necessidade de debruçar-se sobre o personagem histórico,
Maquiavel, sobretudo, sobre a sua função enquanto Secretário de Florença, onde obteve
inúmeras experiências que marcaram os seus relatórios anteriores ao "livrinho". Pesquisar
sobre Maquiavel, portanto, é um modo de perceber como ele apreendeu o espírito político de
seu tempo, sobretudo pelo cargo que ocupara. Maquiavel é tido como alguém astutamente
relacionado a compreender o Estado. Diz ele mesmo que esta é sua missão, pois
[...] o destino determinou que eu não saiba discutir sobre a seda, nem sobre a lã;
tampouco sobre questões de lucro ou de perda. Minha missão é falar sobre o Estado.
Será preciso submeter-me à promessa de emudecer, ou terei que falar sobre ele.
(Carta a F. Vettori,de 13/03/1513.)
A política nasce da observação, de um planejamento e, sobretudo, de uma
qualificada ação. Maquiavel reconhece que nos conflitos sociais estão toda a fonte da
liberdade. Desses conflitos podem surgir duas soluções: uma aristocracia ou um regime
popular. Estes três momentos (observação, planejamento e ação) estão intimamente
conectados em sua forma de fazer política, pois da observação à ação, Maquiavel disse do
serviço prestado nos quinze anos de trabalho na Chancelaria, que ele "não passou nem
dormindo, nem brincando". O modo com que reflete sobre o Estado, sobre as relações, sobre a
efetiva realidade das coisas, faz de Maquiavel, um ator prudente. RIDOLFI afirma ter ele
mantido "um espírito de deliberação administrativa" (2003, pp. 34). No Príncipe, cap. XXI,
ele assim define esta virtude: a prudência62
como aquela que "consiste em saber examinar
61
“O resgate do pensamento de Maquiavel mostrou que a atuação dos agentes políticos no contexto
contemporâneo pode ser reinterpretada à luz de suas ideias. Exemplo disso é a noção da ética da
responsabilidade, concebida por Max Weber, que apresenta muitos pontos em comum com o que Maquiavel
denominava ação virtuosa. Para Weber, a ética da responsabilidade representa o conjunto de normas e valores
que orientam a decisão do político a partir de sua posição como governante ou legislador". Cf. LAURENTIS;
DIAS DA SILVA. "Nicolau Maquiavel: realismo e humanismo na teoria política. Revista Brasileira de
Estudos Políticos. Belo Horizonte. n. 102. pp. 291-303, jan./jun. 2011, pp. 301. 62
[…] os homens trilham quase sempre estradas já percorridas. Um homem prudente deve assim escolher os
caminhos já percorridos pelos grandes homens e imitá-los; assim, mesmo que não seja possível seguir fielmente
45
bem a natureza dos inconvenientes, e aceitar como bom o menos mau". Se há outros modos
de ler Maquiavel, até de percebê-lo, então: quem e qual Maquiavel estamos nos reportando?
Gramsci aponta um dado histórico, no séc. XIX, e afirma
criou-se o hábito de considerar Maquiavel, de modo excessivo, como o “político em
geral”, como o “cientista da política”, atual em todos os tempos. É necessário
considerar Maquiavel, em grau maior, como expressão necessária de seu tempo e
como estreitamente ligado às condições e às exigências de sua época (...)
(GRAMSCI, 2000, pp. 29).
Maquiavel ensina que a política é um espaço de reconhecimento e de tensão que
surge da vida coletiva, na qual toda possibilidade de poder estável se produz a partir do
reconhecimento dessas tensões e de seu manejo, por meio da sedução, do engano e da força,
mas também por meio da atenção à situação comunitária, considerando sua participação
(LARISON, 2009, pp. 82).
O "martelo de Nietzsche"63
, por exemplo, apontou no séc. XIX para o procedimento
de Maquiavel, que ao seu tempo, analisou as relações e os valores sociais e culturais que
assinalamos e que são contundentes para que haja realmente vivência política. Disse
Nietzsche
nenhum povo poderia viver, se antes não analisasse o que é bom e o que é mau; mas
se quer conservar-se, não deve fazê-lo da maneira de seu vizinho. Muitas coisas que
um povo considerava boas, considerava, outro, como escárnio e opróbrio: foi o que
achei. Muitas coisas achei, aqui, chamadas mal e, acolá, ornadas de purpúreas
honrarias. [...] Uma tábua de tudo o que é bom está suspensa por cima de cada povo
(NIETZSCHE, 2005, pp. 94).
Esta tábua Maquiavel tornou-a visível. Isto significa referendar que as palavras
tornaram-se secundárias, pois os fatos tornaram-se primários. Se bem que, conforme
RIDOLFI, "os florentinos sempre gostaram mais das palavras, do que dos fatos" (2003, pp.
44). E fatos são a dura consciência da realidade, sobretudo no que se refere a empreita de
arranjar dinheiro, que é a comissão da empresa de reorganização estatal (RIDOLFI, 2003, pp.
48).
A Itália do tempo de Maquiavel era a Itália das vésperas da excomunhão de
Martinho Lutero, que, por sua vez, seria excomungado por um Médici, o Papa Leão X –
esse caminho, nem pela imitação alcançar totalmente as virtudes dos grandes, sempre se aproveita muita coisa.
(MAQUIAVEL, 1996, pp. 24). 63
Na obra Além do bem e do mal, Nietzsche afirma: "Mas como poderia a língua alemã, mesmo na prosa de um
Lessing, imitar o tempo de Maquiavel, que no seu Príncipe nos faz respirar o ar fino e seco de Florença, e só
consegue expor o assunto mais sério num indomável allegrissimo – talvez com maliciosa percepção artística do
contraste que ousa: os pensamentos, difíceis, prolongados, duros, perigosos, e um tempo de galope e bom humor
mais caprichoso (NIETZSCHE, 2005, pp. 33).
46
Giovanni de Médici. É por demais conhecido o contexto de corrupção, disputas políticas e
simonia no qual estava inserida a Igreja na época da Reforma Protestante. decorre por outro
tom, o lado bem irônico de Maquiavel, isto em relação a sua concepção de natureza humana e
relacionamentos em meio ao tempo de paz e aos conflitos
Messer Nícia64
– "Não é isso. Ela era a pessoa mais doce e mais dócil deste mundo,
mas como ouviu de uma vizinha que se ela assistisse à primeira missa por quarenta
manhãs, na igreja dos Servos, ela emprenharia, lá foi ela, talvez por uns vinte dias.
Ocorreu porém que um daqueles fradalhões começou a rondá-la, de modo que ela
não quis mais voltar lá. É bem ruim que justamente aqueles que deveriam nos dar o
bom exemplo ajam deste modo. Não é verdade?" (MAQUIAVEL, 2004, pp. 54).
Um importante dado recorrente da vida de observador em Maquiavel é a sua
percepção de que a política não deveria ser vivida aos moldes da era contemplativa, como já
disse, e muito menos, ser do tipo cristã [moralmente falando]. Manuais e alguns autores de
um modo mais superficial afirmam não ter ética em Maquiavel, porém, há, só que não a
cristã. Edison Nunes classifica em sua obra, esses leitores, como "ingênuos". A fecundidade e
a novidade de Maquiavel se dão nos fundamentos imperativos de sua ação política, pois está
sempre presente na ação humana a difícil deliberação do que se fazer. Nunes indica como
exemplo o relatório de Maquiavel sobre "O modo de tratar os povos rebelados de
Valdichiana" (NUNES, 2008, pp. 31). A condição humana, percebeu o Florentino, está
disposta nas questões que permeiam a ciência política, sobretudo a sua visão sobre esta
ciência, a política em si e a retórica (NUNES, 2008, pp. 33). Zeppi acrescentaria a questão
moral/ética o seguinte dado: se pergunta se a atividade do homem, já ao interno do
humanismo, se asseverasse no substrato de um valor moral? (2001, pp. 95)... que tipo de
moral seria esta? Que tipo de ética? Diz-se que para conhecer a obra deve-se conhecer o
artista, portanto, vamos a ele, dedicar-se há alguns dados mais pertinentes do que Berlin
chama em Maquiavel de "originalidade".
Da sua formação humanista decorre a habilidade e a sua disposição de subordinar
interesses privados aos bens públicos, o desejo de lutar contra a tirania e a contra a corrupção
(SKINNER, 1988, pp. 15). No bojo de seu pensamento, Maquiavel discute primeiramente as
64
“A Mandrágora é a síntese perfeita do que Maquiavel acreditava que deveria ser o teatro cômico. Resultado de
uma longa maturação formal e temática, ela acabou realizando no terreno cômico uma mudança tão importante
quanto aquela produzida por nosso autor no campo da reflexão política. Na verdade, o texto nada tem de um
improviso. As pistas para compreender esse caráter inovador e consciente do esforço do autor se encontram em
um escrito em prosa no qual ele expõe sua concepção do que deveria ser uma comédia [...]A Mandrágora
ilumina a condição privada do homem citadino italiano e com isso abre as portas para a compreensão de uma
época que apontava para novos caminhos. Longe do elogio do homem presente em tantos textos do período,
Maquiavel opta por apontar suas limitações e sua pequenez”. Cf. BIGNOTTO, N. “Política e vida privada na
Mandrágora de Maquiavel”. In: Cadernos de Ética e Filosofia Política. N. 24, Universidade de São Paulo,
2014, pp. 12. 18.
47
relações de força e poder entre as cidades – repúblicas e o Império, bem como entre as
repúblicas e a sinuosa política do papado (MAQUIAVEL, 1998, pp. 63).
Destaque se dará a questão da força, pois se trata de uma qualidade da virtù, só que
derivar confiança somente da virtù ou da generosidade da fortuna não é um dado seguro na
reformulação do contexto político em questão. Não se tem mais o auxílio de Deus. O homem
não é uma imago Dei. Por isso mesmo que Maquiavel criticou alguns aspectos do movimento
humanista, pois seu pensamento estando sob o mesmo aporte65
, não compartilhava de todas as
colocações de seus contemporâneos ou antecessores, ou seja, está convicto de que a ideia de
liberdade da república e do comportamento do príncipe, deve estar acoplando a uma espécie
de revisão conceitual, sobretudo os de: força, armamento e exército próprio.
Maquiavel procurou colocar em prática este ensinamento, buscando analisar nos
exemplos que pode observar enquanto exercia suas funções políticas, o fator que fez com que
cada governante fosse destituído do poder ou nele se mantivesse.
O cenário em que tudo se passa é a cidade de Florença e o conturbado contexto
político da Itália quinhentista, carecendo de um Estado unificado, como o francês,
vez que dividida em reinos, principados, repúblicas, tiranias66
.
O enfoque dado recai especialmente no fator político, no entanto, com consciência
de relação a outros fatores, como por exemplo, o econômico. E mesmo sem eleger aspecto
algum como o preponderante (pois se colocam como essenciais outros, tais como o
sociológico e o geográfico), evidencia-se que muitas vezes os fatores políticos e econômicos
são mais visíveis na observação de determinada sociedade, inclusive no contexto de mudanças
no convívio social, sobretudo no que se refere ao compromisso de conquista e manutenção da
liberdade (ARNAUT & BERNARDO, 2002, pp. 91-102). Os fatores que mensuram a
sociedade nos reportam a indicadores de igualdade e desigualdade, de conflito de interesses.
Por isso, a ordem e a vida civil são pensados por Maquiavel no contraste com os exemplos
tirânicos já vistos na história.
[...] a liberdade é princípio constitucional da república, mas também conteúdo e
objetivo do desenvolvimento republicano, a igualdade é sua condição de
possibilidade: sem ela, não é possível fundar uma república. Mais radicalmente
ainda, Maquiavel afirma que a aristocracia feudal não somente impede o
nascimento de um regime republicano, mas impossibilita qualquer tipo de
65
Skinner indica uma reflexão sui generis em relação à contribuição de Maquiavel no repensar o movimento
humanista. Cf. SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno, pp. 25-209. 66
Conforme Antonio J. R. VALVERDE, na Introdução: “Maquiavel a cavalo: Os Primeiros Escritos Políticos”,
pp. 21, In: MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio Kurt
Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da Administração,
FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010.
48
organização estatal que não seja tyrannica: ao contrário da vita libera republicana,
aquela representa a corrupção, a destruição das ordini e da vita civile. Numa
palavra: desigualdade identifica-se com a ausência de vivere político pura e
simplesmente (AMES, 2011, pp. 30)67
.
O Secretário Florentino obteve destaque no campo da política, sobretudo por sua
desenvoltura de observador. Nas missões diplomáticas, observou que Florença era
absurdamente vacilante e fraca (SKINNER, 1988, pp. 20). Ao lado de muitos personagens na
trama da política renascentista, dentre os quais, o Duque Valentino, vai percebendo, que de
deslize em deslize, o duque ia caminhando aos poucos para a sepultura (SKINNER, 1988, pp.
26). Para chegar à proposição de que "bons exércitos são até mesmo mais importantes do que
boas leis, e que, portanto, deve haver sempre boas armas" (SKINNER, 1988, pp. 53). A
capacidade do condottiere (comandante militar) de lidar com aliados e adversários não
deixava dúvidas de que estava sempre pronto para a conquista militar, ao mesmo tempo em
que exercia habilidosamente a arte política. Maquiavel teve que valer-se de sua formação
histórica, e é nela que de agora em diante damos ênfase. Nesta mesma cadência temática
afirma Bignotto
O exercício da arte diplomática, o reconhecimento da importância prática da retórica
é a ocasião para Maquiavel de compreender que ela só existe junto como as
determinações da força. A solução de um desacordo banal sobre os termos de um
contrato só é possível num contexto no qual é preciso levar em conta todos os
termos do problema (BIGNOTTO, 2014, pp. 45)68
.
Descrevendo o famoso "biotipo/caricatural" de Maquiavel, Ridolfi afirma
pessoalmente, era bem proporcionado, de estatura média, magro de corpo, ereto na
postura, semblante audacioso. Tinha os cabelos pretos, a tez branca, mas tendendo
ao oliváceo, a cabeça pequena, o rosto ossudo e a testa larga. Os olhos muito vivos
e a boca fina, fechada, pareciam sempre zombetear. Há muitos retratos bem feitos69
,
mas só Leonardo, com quem chegou a tratar em seus prósperos dias, com o
desenho e as cores teria podido traduzir-lhe as ideias e aquele fino e ambíguo
sorriso (RIDOLFI, 1999, pp. 30).
67
No texto de Ames, as citações que seguem são: em primeiro plano, da igualdade política de todos os cidadãos
perante a lei, civile equalità, como Maquiavel já afirmara, em Discursos I,2, que não exclui a existência de dois
humores diferentes, do povo e dos grandes, os quais se contrapõem, como plebe e nobres, na antiga república
romana, num quadro institucional. Contudo, a exigência da supressão ou ausência da aristocracia feudal
(constituída de gentis-homens e senhores), para a fundação de uma república, leva a pressupor de que se trata
também de uma igualdade social (disustanze) e não tão somente política (di grado). Como podemos identificar
nesta passagem: devido à desigualdade “[...] nessas províncias [Nápoles, Roma, Romanha e Lombardia] jamais
surgiu nenhuma república, nem qualquer vivere político” (Discursos I,55). 68
Cf. SALATINI, R. & DEL ROIO, M. (Org.). Reflexões sobre Maquiavel. Marília: Oficina Universitária; São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. 69
Cf. F. ROSSI trata da iconografia, “I ritrati di Machiavelli”, In Illustrazione Toscana, V (1927), fasc. 4, pp.
17ss. Cf. também A. LENSI. "La donazione Loeser", In Palácio Vechio. Florença, 1934, pp. 41; MANSIFILD,
“Di um retrato inédito di N. M”, In: Rivista d‘ Arte, vol. XI, pp. 129, pp. 361ss. Cf. ainda RIDOLFI, R.
Biografia de Nicolau Maquiavel. Tradução de Nelson Canabarro, São Paulo: Editora Musa, 1999, pp. 316-319.
49
"As aparências enganam, aos que fingem e aos que amam", porém, a aparência de
Maquiavel indica um pensador irônico, pioneiro de seu tempo e um novo baluarte da reflexão
sobre as tramas das veias políticas dos séc. XV-XVI. Fiori, tratando da aparência e da
essência em um texto reflexivo sobre Maquiavel, afirma que o florentino entende que política
é uma arte e não uma missão. E, por este motivo, o sorriso de Maquiavel demonstra alguém
instigado por política, ao ponto de se tiver que ir para o inferno, que antes preceda um
momento em que possa debater com os grandes pensadores políticos da Antiguidade.
O rosto de Maquiavel apresentado por Ridolfi, ainda indica algumas qualidades que
estão também no seu "sonho de Cipião" narrado por Viroli. São elas: "zombeteiro, irreverente,
dotado de uma inteligência aguçada, pouco interessado nas questões da alma, na vida eterna
ou no pecado" (VIROLI, 2002, pp. 18). Assim, por política enquanto arte, como se definiu a
pouco, Maquiavel entende que o jogo do poder é independente da moral e da religião. Logo, é
preciso dessacralizar e secularizar a política. Trazemos marcados no rosto nossas inclinações,
talvez fruto da esteriotipação, ou mais ainda das coisas que falam de nós, creio que seja este o
caso da interpretação do rosto e da máscara do Florentino.
Maquiavel nasceu em Florença em 3 de maio de 1469 e morreu, na mesma cidade no
dia 22 de junho de 1527. Sua mãe foi Bartolomea de‟ Nelli, a quem um panegirista de sua
cepa atribuiu capitoli [poesia jocosa em terceira rima] e louvações sacras a que não temos
acesso porque se perderam. De seu pai, Bernardo, recebeu o apreço pelos estudos, e de sua
mãe a aptidão para a vida poética. Tendo habilidade em muitas coisas, pode-se também
chamar Maquiavel de “profeta”, pois jamais lhe faltou inspiração e expressões ousadas, e
profetas vivem de ousadia (RIDOLFI, 1999, pp. 30).
Fiori, Ridolfi e Viroli satanizam Maquiavel? Quanto a este aspecto muitos autores
comentam que há algo de diabólico no pensamento de Maquiavel. Ele seria quase o
“embaixador do mal”, por pregar a “arte do engano”. Chamado de "The Old Nick", Maquiavel
é tido como encarregado do diabo. De fato, pode-se dizer que ele é um divisor, mas não do
mal, mas de uma transição de modelos. Esse quadro se reverteu. A esse período de excessiva
repulsa se seguiria um período de intensa admiração por Maquiavel. No século XVII, Francis
Bacon, por exemplo, chama a atenção para as contribuições filosóficas de Maquiavel,
destacando que o autor havia se desvencilhado dos métodos escolásticos tradicionais e tentado
estudar a política através de métodos empíricos. Espinosa, por sua vez, foi aquele que mais
trabalhou para retirar o nome do florentino da escuridão à qual havia sido lançado. Ele destaca
a sinceridade e a honestidade de Maquiavel, apontando que, através de sua correspondência
50
pessoal e familiar, percebemos um homem justo e reto. Diz ainda que seu pensamento em si
não traz qualquer tipo de dissimulação ou ambigüidade (MANDANARO, pp. 16-39)70
.
Dos pais, certa vez Maquiavel disse: “nasci pobre e primeiro conheci dificuldades
em vez de amenidades” (RIDOLFI, 1999, pp. 20). Com sete anos, em 1476, teve contato com
a obra de Donatello e também com os primeiros elementos da língua latina. Já em 1480, com
onze anos, ele e seu irmão Totto, de cinco, vão à escola, e Maquiavel inicia seus estudos com
o ábaco (RIDOLFI, 1999, pp. 19). Com estes primeiros passos de formação, e posteriormente
verificando seu pensamento político, Ridolfi afirma que Maquiavel fez valer uma proposição:
“não só a bondade das leis valiam, mas também as virtudes dos dirigentes” (RIDOLFI, 1999,
pp. 20). O que se faz pensar que
la verdadera, la profunda intencion del escritor - que es diferente de su intencion
general (broad intention)- no es convertir la politica en una tecnica, ni concierne
siquiera en primer lugar a la politica. El blanco al que apunta es la enseiianza de la
Biblia y de la f:tlosona clasica y, mas alia del primero, a este ultimo de manera
esencial. Maquiavelo qui ere ser el fundador de una ciencia segura que procure la
inteligibilidad de la sociedad y de las cosas del mundo; pretende desarraigar la idea
de que habria una virtud en S1, una justicia en si, que, aunque fueran inaccesibles de
hecho, constituirian una norma para la conducta human a y la organizacion social;
pretende destruir que trata como un prejuicio, la creencia en una jerarquia en el seno
del alma y de la ciudad en correspondencia con la jerarqu1a de los seres en el seno
del cosmos; la creencia, pues, en una distincion entre alto y bajo que no seria ere ada
por el hombre, sino constitutiva de su naturaleza (LEFORT, 2007, pp. 252)71
.
Em 28 de maio de 1498, Maquiavel é designado como Segundo Chanceler da
República de Florença, apenas cinco dias após a morte de Savonarola72
(MARZI, 1910, pp.
288)73
. Mesmo não tendo uma ligação de certeza que o martírio do “profeta desarmado” tenha
a ver com sua ascensão, alguns biógrafos afirmam que tal fato lhe abrira o caminho
burocrático, mas o que se tem de certo é que Maquiavel competiu conforme a lei com o
messer Francesco Gaddi74
(1441-1495), que era um professor de eloquência na universidade
pública (MARZI, 1910, pp. 265). Como Secretário florentino, BRUSCAGLI enfatiza que, a
70
Cf. MANDANARO, L. A. Segredos do Príncipe ou Jerônimo Osório e de como reagiu o mundo católico
da Ibéria às ideias de Nicolau Maquiavel (Séculos XVI e XVII). Dissertação de Mestrado em História, Juiz de
Fora, 2008. 71
Pode-se conferir: LEFORT, C. Le temps présent. Écrits 1945-2005. Paris: Belin, 2007. 72
Savonarola impôs uma nova ordem política na república, de acordo com WEINSTEIN, R. Savonarole et
Florence, Calmann-Lévy, 1973, pois possuía uma autoridade moral para com a cidade de Florença
(BIGNOTTO, 1991, pp. 60). Mas, conforme a história, Savonarola perdeu-se em seu sonho milenarista, pois não
foi capaz de compreender que ocupava o mesmo lugar de Moisés (BIGNOTTO, 1991, pp. 129). Cf. também
VIROLI, M. O sorriso de Nicolau. São Paulo, Estação Liberdade, 2002, pp. 33-35. 73
Carta de Bartolomeu da Dicomano, 29 de maio de 1498. 74
D. MARZI, La Cancelleria della Repubblica fiorentina, Rocca San Casciano 1910, ad indicem; L. Sozzi,
Lettere ined. del Commynes a F. G., in Studi di bibliografia e di storia in on. di T. De Marinis, IV, Verona 1964,
pp. 205-262.
51
missão de Maquiavel estava reportada sob o ordenamento da política e da escritura sob as
insignes da: "lettere, legazione e commissaire" (2008, pp. 17)75
.
Maquiavel foi Chanceler e depois Secretário das relações exteriores da República de
Florença entre 1498-1512. VIROLI o denomina como “Secretário muito particular” (2002,
pp. 49-57)76
. Trata-se de perceber as primícias da reflexão política de Maquiavel ao tempo em
que era Secretário da República, portanto antes do famoso Maquiavel conhecido e divulgado
pela obra do Príncipe.
Dos relatórios, Maquiavel saltara da empiria dos fatos da vida política de seu
tempo, parte dos quais esteve presente como Secretário político, para lançar os
fundamentos basilares da filosofia política moderna77
.
Na Segunda Chancelaria, Maquiavel substituiu Adriani78
, e como Secretário do
Conselho dos Dez da Guerra, serviu a instituição que na Signoria tratava da guerra e da
diplomacia. Sobre os diplomatas escreveu relatórios críticos em relação a tradição. Via um
novo modelo de mundo surgindo. Maquiavel ia aprendendo com a história79
. BRUSCAGLI
desenvolve esta tese em seu texto sobre a reflexão de Maquiavel em relação as coisas da
Romagna (2008, pp. 20-26). Tornou-se um conhecedor profundo dos mecanismos políticos e
viajou incessantemente participando em vinte e três embaixadas das cortes italianas e
européias, conhecendo vários dirigentes políticos, como Luís XII de França (1462-1515), o
Papa Júlio II (1443-1513), o Imperador Maximiliano I (1459-1519) e César Bórgia (1475-
1507). Em sua obra, História de Florença, chega a ser mencionado como interpretação de seu
olhar para o papado, o termo “sinuoso” para tal política do Vaticano em relação ao seu
modelo e lógica (JACOBELLI, 1998, pp. 17-24).
75
Cf. C. Bec, La biblioteca di un alto borghese fiorentino: F. G., In Cultura e società a Firenze nell'età della
Rinascenza, Roma 1981, pp. 197-205; A. Verde, Lo Studio fiorentino, IV, 2, Firenze 1985, p. 557; V. Arrighi -
F. Klein, Dentro il palazzo: cancellieri, ufficiali, segretari, In: Consorterie politiche e mutamenti istituz. In età
laurenziana, Firenze 1992, pp. 91-93. 76
Em relação ao Maquiavel Secretário pode-se ler também – WERTHEIMER, O. V. Maquiavel. Trad. Herbert
Caro, Porto Alegre: Edição da Livraria Globo, 1942, pp. 37-67. 77
Conforme Antonio J. R. VALVERDE, na Introdução: “Maquiavel a cavalo: Os Primeiros Escritos Políticos”,
pp. 24, In: MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio Kurt
Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da Administração,
FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010. 78
Ridolfi descreve Marcello Virgilio Adriani como uma espécie de referencial para Maquiavel. Na Biografia de
Maquiavel, Ridolfi parece dispor o paradoxo: seriam Maquiavel e Adriani uma espécie de amigos ou discípulo –
mestre? Giovo propõe esta relação, mas nem todos os biógrafos concordam. E este paradoxo tem haver com a
escolha de Maquiavel para o cargo de segundo secretário. Entre eles, afirma Ridolfi, (1999, pp. 35): “acontece
que entre eles, um amava as coisas, o outro as palavras”. 79
Bruscagli afirma que da história e dos atores Maquiavel foi aprendendo a perceber e a escrever sobre a técnica
política (2008, pp. 26).
52
Walter Silva, refletindo sobre o secretariado de Maquiavel em Florença, tendo como
foco a questão da guerra, e citando Guidi (2009)80
afirma
[que no breve escrito do citado] L‟esperienza cancelleresca nella formazione
politica di Niccolò Machiavelli, destaca-se a importância de enxergar os textos de
governo em I primi scritti politici, de Maquiavel, do período compreendido entre
1499 e 1512 – e, portanto, restritos ao seu período como Segretario na Chancelaria -
não apenas como simples fonte de informações sobre aquele raro momento
histórico, ou como parte da emergência de um novo pensamento político ou modelo
literário, mas principalmente, como bancada de testes e laboratório experimental de
sua crescente intelectualidade (DA SILVA, 2013, pp. 30).
Como se sugeriu há pouco, nem tanto o céu, nem tanto a terra, mas com Maquiavel,
as coisas da vida civil tinham totalmente prioridade. Maquiavel opera na escrita um retorno ao
mundo temporal, pois a própria identidade do ser humano é temporal e correlativa a uma
sociedade, da qual é simultaneamente produto e produtor, também é: senhor de si mesmo
(investido e sacramentado; Cf. NUNES, 2008, pp. 43. 47). Como há pouco se apresentou na
abertura deste item, a política está no centro, mas a ética, mesmo "a meia luz" não pode ser
apagada. Uma premissa importante é que para Maquiavel o mundo deve ser aceito como ele é.
Quem quiser viver neste mundo, mundo de atividades, mundo dos negócios, mundo das
habilidades (virtù), é preciso estar no mundo ativamente (NUNES, 2008, pp. 51). Mandarano
escreve
uma das coisas que pretendi foi mostrar que Maquiavel não era um moralista cristão,
mas que isso não significava ser ele imoral, já que havia outras formas de moralismo
disponíveis no século XVI italiano para uma pessoa educada na tradição da filosofia
moral romana (MANDARANO, 2008, pp. 08)81
.
Nestas experiências, o aceite do mundo nada tem que ver com passividade, mas o
contrário, deve ser entendido a partir de uma nova lógica, a da força, que começa a fazer
sentido, pois ela se centrava numa relação política onde a determinação teleológica, ou era em
forma acordos, ou na efetividade do uso das armas (RIDOLFI, 1999, pp. 41). Uma
constatação do florentino foi a de que não recorrendo à força, a República fica a mercê da
fortuna. Isso é muito perigoso nos "tempos atuais" (pensando ao tempo de Maquiavel). O uso
da força está direcionado ao domínio instintivo humano, onde as relações são menos racionais
e mais brutais. "Mezzo uomo, mezzo bestia". Como exemplo efetivo da lógica da força,
percebe-se no relatório de 1515, intitulado Descrição da maneira empregada pelo Duque
Valentino para matar Vitellozzo Vitelli, Oliverotto da Fermo, Signor Pagolo e o Duque de
80
GUIDI, A. Un Segretario Militante. Politica, diplomacia e armi nel Cancelliere Machiavelli. Bologna.
Italia: Società Editrice Il Mulino, 2009. 81
BURKE, M. L. P. As muitas faces da História. São Paulo, UNESP, 2000, pp. 325.
53
Gravina, Orsini, no qual descreveu com uma precisão cirúrgica os assassinatos políticos
impetrados por César Bórgia, filho do Papa Alexandre VI.
Estas experiências promovem uma reflexão do aprendizado de Maquiavel no tocante
a questões de ordem prática aprendidas na Chancelaria. Adverse aponta que já nos primórdios
de sua incumbência aristocrática, o florentino propositou que o ethos político da liberdade não
pode ser compreendido apenas negativamente porque envolve um principio de ação (2007,
pp. 37). Deve haver um comprometimento com a civiltá, ou seja, o engajamento em prol da
(re) conquista da liberdade e de sua manutenção ultrapassa o limiar dos bens estabelecidos
pessoais (ADVERSE, 2007, pp. 37). Portanto, estas experiências implicavam em estabelecer
para cada habitante, patriota, uma missão referente a ser guardião da liberdade, uma certa
representatividade, mesmo com aspectos da monarquia nos moldes antigo. Este
reconhecimento, ressalta Adverse "satisfaz, no âmbito institucional, o desejo de participação
na vida pública" (ADVERSE, 2007, pp. 41).
Ridolfi exprime o estilo de Maquiavel ao afirmar que “só depois de uma longa
experiência e contínua leitura” é que o florentino se dispunha a escrever algo sobre um fato
(RIDOLFI, 1999, pp. 33). Não sendo “nem doutor, nem escrivão” (RIDOLFI, 1999, pp. 32)
pode-se dizer que logo em seus primeiros anos sob a frente da Signoria e adjunto a César
Bórgia, Maquiavel concebeu a necessidade política do uso da força.
Quando assumiu a Chancelaria, Maquiavel tinha 29 anos e não possuía nenhuma
experiência administrativa anterior. A sua preparação foi realizada por recrutamento formal
denominado studia humanitatis82
, onde provavelmente, estudando especialmente o romano
Cícero, ele foi desenvolvendo sua formação e ideias. Essa educação, verdadeiramente
humana, sublinha SKINNER, passaria pelo aprendizado e aprimoramento do estudo de latim,
da retórica e da leitura cuidadosa da história antiga e da filosofia moral (1988, pp. 15).
Como diplomata e atrelado ao tema da teoria da força, Maquiavel teve, logo de
inicio em sua carreira o serviço dos Dez da Guerra. A priori sua função era pacificadora,
basicamente de informante sobre os negócios de Florença no estrangeiro. No ano de 1500,
diante da rebeldia de Pisa, como descreve o primeiro texto dos I Primi Scritti Politici, os
franceses concordaram em ajudar os florentinos na tentativa de reconquista. Por isso enviaram
tropas para "sitiamento". Maquiavel aprende, logo de início, que a força das armas é mais útil
82
"Outros animais têm inerente a sua natureza certos poderes: o cavalo o poder de correr, as aves de voar; mas
ao homem foi dado o desejo de conhecer, e é daí que os studia humanitatis retiram seu nome. Pois aquilo que os
gregos chamam de paidéia nós chamamos de erudição e educação nas artes liberais” (ADVERSE, 2011, pp. 10).
Cf. também GUARANIO, B. "Ad Maffeum Gambaram brixianum adulescentem generosum discipulum suum,
de ordine docendi et studendi". In: C. Kallendorf. Humanist educational treatises. Cambridge: Harvard
University Press, 2002, (Coleção I Tatti Renaissance Library), pp. 306.
54
do que a força das palavras, porém mesmo com esta desproporção de utilidade, ele não desiste
do discurso. Seu antecessor em Florença, o Frade Savonarola, perdeu-se nas palavras,
Maquiavel não poderia titubear. Tal alçada de estratégia não teve bom retorno, ou seja, não
obteve sucesso o florentino, pois o ataque teve de ser cancelado. Teve um grande aprendizado
em tudo isso, “Florença parece absurdamente vacilante e fraca” (SKINNER, 1988, pp. 19-20).
Por ter sido gonfaloneiro83
da República florentina, é visto com desconfiança pelo
governo dos Médici, até ser demitido em sete de Novembro de 1512, preso e torturado em
1513, sendo depois exilado à propriedade que herdara da família, em São Casciano. No retiro
forçado, tenta ardorosamente voltar às graças da família que ocupa o poder, sendo deste
período as mais importantes obras, como: Os discursos sobre a primeira década de Tito Lívio
e O Príncipe (BELOZZO, s/d, pp. 3-4).
Foi na ocasião que redigia O Príncipe que escreveu a um amigo:
À tardinha volto pra casa e vou pra minha biblioteca; deixo à porta as roupas
poeirentas que usei durante o dia, visto-me decentemente antes de penetrar no
recinto dos homens do passado. Eles me acolhem com bondade, e com eles eu me
nutro do alimento que me é próprio e para o qual eu fui feito. Tenho a ousadia de
dirigir-me a eles e perguntar-lhes as razões por que agiram desta ou daquela forma.
Eles são boas almas, e em regra, respondem. Assim, por muitas horas estou livre de
aborrecimentos, esqueço todas as minhas dificuldades, domino o medo da pobreza
e o horror da morte. Deixo-me absorver inteiramente por eles (Carta de Nicolau
Maquiavel à Francesco Vettori de 10 de Dezembro de 1513, In: SFORZA, 1951,
pp.192-193).
Sobre a situação de Maquiavel após a perda do cargo de Segundo Secretário dos
Dez, comentou Charles BENOIST que: “tudo estava perdido, mas nós ganhamos Maquiavel”.
A vivência cotidiana durante anos de importantes acontecimentos políticos possibilitou ao ex-
secretário de Florença refletir sobre a fragilidade da península Itálica diante de países com
governo centralizado. Seu ideal era a unificação da Itália, e não considerava isto uma utopia.
Porém, este trâmite só seria possível com a construção de degraus e de escolhas nos
disjuntivos da ação política. Maquiavel assimilara o que postula ser a essência da política: a
combinação entre o uso da força e da astúcia como chaves da conquista e da manutenção do
poder.
Junto ao Duque Valentino, em 1502 na Romagna, surge e se forma com clareza em
sua mente, o pensamento que logo devia ocupar, de forma central, o resto de sua vida: a
possibilidade da construção de uma ciência do estado, separada e independente de toda
83
Gonfalonieri era uma função muito prestigiada nas comunas da Itália renascentista e medieval, principalmente
em Florença. O termo deriva da palavra “gonfalone”, bandeira ou estandarte das cidades-Estado, no caso de
Soderine, era o cargo mais importante ocupado em Florença.
55
consideração moral (prevista e entendida, como já se mostrou, enquanto cristã). Em tal
consideração, começou a ver o único meio para concebê-la claramente e fundá-la sobre uma
nova base. Sucintamente podemos dizer que assim como as premissas de Galileu Galilei
(1564-1642) tornaram-se a base da Ciência Natural, as premissas de Maquiavel tornaram-se a
base de uma nova modalidade de pensar os acontecimentos políticos. Rompendo com a
tradição medieval que partia da verdade revelada para deduzir o real, Maquiavel propõe um
método que contava com as explicações transcendentais e éticas (medievais) dos fenômenos
políticos (CHABOD, 1964, pp. 279-297). E mesmo sendo mal interpretado, como há pouco
líamos em Sadek, Maquiavel não é "maquiavélico"84
. Maquiavel não era o vilão que as
pessoas pensam. Ele não era nem malvado. O termo maquiavélico tem sido constantemente
mal interpretado.
[...] “maquiavélico”, é utilizado pejorativamente para classificar o governante
totalitário, corrupto, dentre outros adjetivos, é derivado de uma compreensão
errônea da obra deste pensador. Muitos teóricos e estudiosos da política – mesmo
assumindo a importância do legado de Maquiavel, considerando-o fundador da
ciência política – têm atribuído-lhe uma noção de política anti-ética, de ações
voltadas exclusivamente para seus fins. De modo que, recai sobre o autor a culpa por
ter construído os alicerces de uma política moderna ilegítima e violenta (SANTOS,
2007, pp. 186).
Maquiavel nunca chegou a escrever a sua mais famosa frase: “que os fins justificam
os meios”. Precisa-se refazer esta tradução. O certo é que tenha dito que precisa "buscar fins".
Falou-se de makários no primeiro tópico, ou seja, o caminhante que não deve desistir.
Makários é aquele que deve perseguir os fins. lutar pelos fins. Aqui tem-se um outro fator
importante de sua personalidade, que marca sua obra, seus intérpretes, a recorrência ao
passado como principio e fundamento da aprendizagem política.
[...] o centro de interesse de Maquiavel fixa-se então na Antiguidade, o que ordenará
toda a sua análise, isto é, que impulsionará todas as questões que sejam levantadas.
Esse centro é Roma, um Estado que dura. O centro de Roma e seu começo. [...]
Aqui, voltamos a encontrar, no coração da reflexão e do discurso de Maquiavel, o
mesmo ir e vir entre o passado e o presente, entre a teoria geral e o problema
concreto [...]” (Althusser 4, p. 99). Mas, complementa Althusser, “o tratamento da
Antiguidade por parte de Maquiavel é interessante por outra razão, a de ter
permitido-nos captar a originalidade de nosso autor” (Althusser 4, pp. 99).
84
Se maquiavelismo significa engano ou hipocrisia para alguns intérpretes históricos ou alguns "aventureiros" do
pensamento de Maquiavel, pode-se afirmar que: "Maquiavel não era maquiavélico". O Florentino nunca foi um
hipócrita. Cassirer afirma que se trata, na história das ideias políticas de um grande mestre, possuidor de manejos
políticos e de uma noção prudencial das traições próprias do cenário social. Maquiavel é tido, segundo Cassirer
com um dos escritores políticos mais sinceros de todos os tempos.
56
O busto histórico de Maquiavel (RIDOLFI, 1999, pp. 274), de barro cozido,
apresenta sob o cansaço e a amargura, uma fisionomia arguta e astuta, algo que é ali o que há
de mais genuíno. Enfim, com sua morte não se tem respaldo em sua memória de textos
panegíricos. Maquiavel ficou mais famoso por seus escritos contra-humanistas e taxados de
maquiavélicos do que por outro motivo contundente. O que ocorreu foi que, com a morte, que
há muitos costuma dar justa fama e paz, à Maquiavel trouxe, sobretudo, guerra e paz
(RIDOLFI, 1999, pp. 285). Mas não se pode negar que a obra de Maquiavel revela em grande
escala um homem sagaz, observador, articulador e até mesmo genial.
É diante desta sua postura que será analisado a escolha que se propõe pelo uso da
força, das forças armadas, num exército próprio, não como uma fuga, ou algo aleatório, mas
decorrente de um estudo do tempo, do contexto histórico. Pode-se perceber também que no
fato ocorrido em 1494, com Pisa rebelando-se contra Florença, e toda a reflexão e ação que
Maquiavel arquiteta e lidera na reconquista de Pisa, percebe-se os fundamentos da nova
moldura social, a lógica da força (PANCERA, 2010, pp. 102).
Uma antiga regra dos florentinos era manter Pisa sob seu domínio com as
fortalezas, ou seja, com a força, e Pistóia com os partidos85
. Mas já tinha chegado
ao ponto em que a força não bastava para manter Pisa, e os partidos chegados ao
ponto de perder Pistóia (RIDOLFI, 1999, pp. 61).
Maquiavel também esteve a lidar com a índole dos florentinos, marcada por muitos
vícios que denigrem o ideal de virtù, sobretudo o luxo, o jogo, a luxúria e a sodomia. Lidava-
se com uma índole de aparência agradável, porém continha um fundo amargo e áspero, talvez
um lampejo de crueldade sob a cívica bonomia, e não são todas jocosas e boazinhas, mas
aguçadas em ironia. Nem a palavra de Cristo, enquanto “arma do amor”, sob o eco de Roma
conseguiria aplacar tal situação dos florentinos. Quem sabe não fosse por este contexto
religioso fortemente apático que ele não tenha “caído do cavalo” tipologicamente de mode a
Paulo de Tarso. Mas, a situação chegou a tal ponto que após a morte do profeta desarmado,
Savonarola, um dos senhores publicamente pode afirmar: “Louvado seja Deus, agora
podemos sodomizar” (RIDOLFI, 1999, pp. 25-28)86
. Maquiavel precisou realçar o valor e a
função das leis. Pergunta um anônimo
85
Sobre o binômio - força e partidos - indica-se a leitura de KRITSCH, R. "Maquiavel e a construção da
política". In: Lua Nova [online]. São Paulo, nº 53, 2001, pp. 181-190. 86
Cf. RIDOLFI, R. Vita di G. Savonarola. Florença, Sabsoni Editore, 1974, pp. 427, pp. 668. No capítulo VI
sobre a biografia de Maquiavel, o autor, Ridolfi, afirma (1999, pp. 71) que “Florença sempre supriu os defeitos
das leis com a virtude dos cidadãos”. Isso denota, se por um lado a morte da interdição religiosa dá espaço para a
vida sexualmente “depravada” do ponto de vista cristão, a virtude que o povo florentino gozava era de outra
natureza, quem sabe até mesmo estóica.
57
qual lei? A do reino ou a de Maquiavel? Ainda há memórias desse cão! Vá-se
presidir no inferno. Sabeis vós quem é esse perro? É o mais mau herege que
vomitaram neste mundo as Fúrias da Babilônia. (A Arte de Furtar, Século XVII).
Desta obra, de autor anônimo, recai-se sobre a personalidade e a história deste
Florentino, com um pesar de culpa que não deveria se sustentar. Diz-se isso devido ao fato de
ter em Maquiavel uma abordagem nova, um esboço de nova mentalidade, enfim, uma
originalidade. BERLIN, ao refletir sobre esta originalidade de Maquiavel87
destaca a
ambiguidade que sua obra e sua postura política denota através dos séculos. Diz que não há
consensos sobre os livros dos Discorsi e nem mesmo sobre o Príncipe. Encerra-se este ítem
comentando alguns dados interpretativos da pessoa de Maquiavel.
De fato, são tantas interpretações que nos distanciamos de um Maquiavel, antes
destas obras: Príncipe e Discorsi. Porém, segundo Alberico Gentili88
e Garret Mattingly89
–
Maquiavel escreveu no Príncipe uma sátira, pois ele não poderia ter querido dizer o que disse
(BERLIN, 2002, p. 301). Os autores não acreditam que o Príncipe seja uma obra política, mas
um meio de Maquiavel conjecturar em modo de comédia com seu tempo e com seus autores.
Félix Gilbert, já pensa o contrário, acha mesmo que o Príncipe é uma obra própria
da Renascença, do estilo em que os humanistas tinham que aprender. Benedetto Croce90
interpreta Maquiavel como um humanista angustiado, já Von Muralt91
afirma que Maquiavel
era um humanista amante da paz. Maquiavel seria alguém sinceramente buscando o prazer da
87
BERLIN, I. “A originalidade de Maquiavel”, In: Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios,
Tradução de Rosaura Eichenberg, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pp. 311. A apresentação de Berlin
não é histórica, mas de acordo com as aproximações teóricas dos diversos autores que se encontram em espaço e
tempo distanciado. Gentili e Mattingly, por exemplo, estão um, no séc. XVI, contemporâneo de Maquiavel, o
outro, no séc. XX, mas ambos concordam numa típica interpretação do pensamento e das obras mais famosas do
florentino. Nesta mesma linha, Ridolfi denomina Maquiavel como historiador, corógrafo e escritor trágico, In:
Biografia de Nicolau Maquiavel, Tradução de Nelson Canabarro, São Paulo: Editora Musa, 1999, pp. 237ss.
251ss. 88
Alberico Gentili (1522-1608), notável pensador do Direito Internacional testemunhou e foi parte ativa do
grande movimento de reação contra o predomínio econômico e espiritual do Papado que se estendeu do princípio
do século XVI até as guerras religiosas que culminaram com a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), fenômeno
que ficou conhecido como Reforma Protestante. 89
Garrett Mattingly (1900-1962). Tinha sua preocupação voltada para o histórico da diplomacia. Tendo ganhado
o prêmio Pulitzer por um best-seller sobre a Armada Espanhola, entre 1918-1919, como um sargento do Exército
dos EUA, aprendeu muito sobre as forças armadas. 90
Benedetto Croce (1866 – 1952) foi um historiador, escritor, filósofo e político italiano. Os seus escritos giram
em torno de um largo espectro temático, sobretudo estética e teoria/filosofia da história. É considerado uma das
personalidades mais importantes do liberalismo italiano no século XX. Na política, foi nomeado senador em
1910. Entre 1920-21 foi ministro da educação. Croce opôs-se ao governo fascista de Benito Mussolini, embora
inicialmente o tivesse apoiado. 91
Segundo Leonard von Muralt, Maquiavel é o adversário mais declarado do maquiavelismo. Segundo ele, não
apenas seria um equívoco chamar Maquiavel de pai da mentira, como o florentino desaconselharia abertamente a
mentir, porque não ignoraria que a honestidade é a melhor diplomacia. Maquiavel de forma alguma poderia ser
tido como defensor da tirania, pois acolheria como forma de governo ideal a república fundada sobre a justiça,
defendida por um exército constituído pelos próprios cidadãos e regida pela lei. Cf. MURALT, L. von.
Machiavellis Staatsgedanke. Basel: Benno Schwabe, 1945, pp. 67-81.
58
vida segundo o modelo antigo e clássico dos estóicos? Justus Lipsius92
o interpreta assim,
pois admite Maquiavel como um patriota apaixonado. Outros intérpretes viam em Maquiavel
um técnico frio, sem compromisso ético ou político93
. Maquiavel é de fato, um “homem
sensível aos traços característicos de seu tempo” na visão de Genaro Sasso. Para o idealismo
alemão, sob a interpretação de Fichte, Maquiavel é um homem de intuição profunda sobre as
forças históricas. Na mesma linha, o pai do movimento, Hegel afirmou que:
Ele é o homem de gênio que percebia a necessidade de unir um grupo caótico de
pequenos principados fracos num conjunto coerente; suas panacéias específicas
talvez despertem repulsa, mas são acidentes devidos às condições de seu próprio
tempo... (BERLIN, 2002, pp. 303)
Köning94
tem uma opinião contrária, pois avalia as ideias do florentino não como
um realista, mas como um esteta que vive no mundo caótico e sórdido da Itália Renascentista.
Renzo SERENO (1959, pp. 159-167) afirma que Maquiavel é alguém profundamente
frustrado, que nas penas de seus escritos encontra ecos de súplica desesperada. Karl Marx e
Friedrich Engels interpretam a obra de Maquiavel, principalmente a História de Florença,
como uma obra gigantesca que tem como ícone a imagem de Maquiavel enquanto um grande
iluminista. David Hume e Karl Popper interpretam o florentino como um antimetafisico e
propagador de premissas anti-teológicas (BERLIN, 2002, pp. 303-304).
Segundo Hannah Arendt, Maquiavel “viu que toda a história e a mentalidade
romanas dependiam da experiência da fundação e acreditou ser possível repetir essa
experiência por meio de uma Itália unificada, que deveria constituir para o
organismo político “eterno” da nação italiana a mesma pedra angular sagrada que
fora a fundação da Cidade Eterna para o povo latino” (ARENDT, 5, pp. 183).
Pode-se dizer que Maquiavel é um intelectual que faz uma ruptura dramática com o
passado. Quanto à religião, ela não é para Maquiavel algo de importante. Não crê, mesmo
havendo controvérsias entre os biógrafos, que haja pressuposição séria da existência de Deus
e da lei divina. Também não é devoto para com a autoridade, evidentemente religiosa, o que
em alguns casos específicos torna-se contradição (BERLIN, 2002, pp. 307). Por isso que
segundo Berlin, os jesuítas o consideravam “o parceiro do diabo no crime”, “um escritor
desonrado e ateu”. Bertrand Russel vê o Príncipe como um compêndio para gângsteres, uma 92
Justus Lipsius (1547-1606) foi um filólogo e humanista flamengo. É considerado um dos eruditos mais
famosos do século XVI. Estudou com os jesuítas em Colônia, que lhe corroboraram a sua extraordinária paixão
pela literatura clássica latina e grega. 93
Essa visão pode ser creditada ao autor – Ernest Cassirer. Ele (nasceu 28 de julho de 1874, Breslau – 13 de
abril de 1945, Nova York) filósofo de origem alemã. Sua obra mais famosa foi Filosofia das formas simbólicas. 94
René König (1906-1992) reflete como Maquiavel lida com o poder e em sua obra afirma ser o florentino:
"Feiticeiro do poder, esteta da violência". Cf. KÖNIG, R. Niccolò Machiavelli: zur Krisenanalyse einer
Zeitenwende. München: Carl Hanser, 1979, pp. 338.
59
espécie de vademecum para quem deseja tiranizar os outros (BERLIN, 2002, pp. 305). O texto
que nos serve de guia, a “Note sur Machiavel”, é o único que Merleau-Ponty dedica
inteiramente a esse autor.
O problema que Merleau-Ponty busca pensar por meio do pensador florentino é o da
instituição ou reinstituição de um poder político que não produza a anulação do
conflito que é inerente a sua origem e, em última análise, à vida em comum; ou, dito
de outro modo, o que Merleau-Ponty busca ao encontro de Maquiavel e de encontro
com o marxismo hegeliano é um meio de pensar uma revolução que não dê lugar a
uma restauração ou a um totalitarismo95
.
E assim procede a análise de um autor que viveu intensamente seu tempo.
Maquiavel secretário é um notário atento aos movimentos da política. Política é toda e
qualquer ação que envolve os sentimentos e as relações humanas. Maquiavel secretário traz
em seus escritos de 1498-1512 a novidade da lógica da força que doravante, chegando até
nossos dias, século XXI, é o ordenamento da vida política concreta.
Neste instante, o texto se endereçará aos disjuntivos da ação política presente nos
relatórios dos I Primi Scritti Politici. Neles, Marchand demonstra como Maquiavel lida com a
necessidade da abordagem da lógica da força, apresentada como uma opção adversa a
passividade política do contexto medieval, portanto centrada na ação. E posteriormente se
demonstra como esta teoria se relaciona, enquanto uma intransigência, a ideia relacional desta
mesma teoria com a necessidade das leis que mantém o bom funcionamento do estado e do
governo. Comparato assinala a finalização deste item dizendo que
o alto burocrata florentino foi o primeiro a sustentar, cruamente e sem eufemismo,
que a vida pública é regida por uma ética especial, cujos valores supremos são a
estabilidade interna e a independência externa da sociedade política. O direito deve
servir a essa finalidade maior, e o cumprimento dos preceitos de moral privada e dos
mandamentos religiosos há de submeter-se às exigências básicas de respeito à ordem
e manutenção da segurança. (2006, pp. 155).
Assim sendo, conclui-se, desta forma, com Walter Alves que
Maquiavel soube utilizar sua posição e experiência como Segretario da República,
bem como de sua influência sobre Piero Soderini, para encabeçar uma campanha a
fim de que Florença voltasse a utilizar uma milícia cívica. Durante o grande assédio
a Pisa, com a rebelião de 1505 dos soldados mercenários acampados ao longo de
suas muralhas, que acabou por levar à suspensão do cerco à cidade inimiga, fica
clara a necessidade do abandono da prática de contratação e pagamento de soldados
estrangeiros e a urgência em se estabelecer uma milícia própria florentina. Foi,
portanto, nesse contexto histórico, que combinava “traição e incompetência”, e com
base em seus pensamentos e convicções, que Maquiavel propõe um plano detalhado
para a cidade abandonar a prática de uso de forças mercenárias (DA SILVA, 2013,
pp. 32).
95
MERLEAU-PONTY, M. “Note sur Machiavel”. In Signes, Paris, Gallimard, 1960.
60
1.3. A Lógica da força e seus disjuntivos96
em I Primi Scritti Politici
A novidade da política ativa no pensamento de Maquiavel se apresenta num novo
modus: a partir da percepção da verittà efetuale della cosa, da factualidade a concepção de
uma política de cunho orgânico e determinada pela tríade: força, liberdade e justiça. Esta
novidade é uma proposta e uma nova interpretação política e de reformulação do contexto
socioeconômico e obviamente político no qual Florença e as demais cidades italianas estão
submetidas. É necessário uma renovação de estrutura social e do ideário que sustenta tal
estrutura. Tanto é que, Lefort ao interpretar este contexto afirma que a legitimação do poder
ocorre na ideia de governo que conserva, conquista e reconquista ao interno da dinâmica dos
humores (LEFORT, 1972, pp. 346). Por isso é que pode haver uma pressuposição, ou ainda
uma percepção de que em Maquiavel, há a ideia de que “o sonho republicano de restauração
das liberdades em Florença” só será possível, na medida em que se reflita sobre a composição
do Estado fundado na força e na recomposição da guerra (LEFORT, 1999, pp. 143)97
.
A força produz, portanto, um duplo efeito no campo da política. Ela é o fator
objetivo que divide os atores e faz pender a balança para um lado ou para o outro do
campo de disputas que é a cena internacional. Nesse sentido, sua posse é um bem
desejável e um elemento essencial para o pensador que se ocupa com a política. Sua
dimensão objetiva faz, no entanto, com que ela interfira não somente no terreno das
guerras, mas também naquele da produção da imagem e do juízo. Os franceses
estavam conscientes de que eram mais fortes que os florentinos e dessa constatação
passavam para um plano diferente de julgamento quando forjavam uma ideia global
não apenas daqueles com que discutiam e dos quais tentavam obter vantagens, mas
de si próprios. O fato objetivo das armas era também a mola dos juízos a respeito
dos outros e o ponto de partida de constituição da autoimagem. Nessa passagem para
o plano do imaginário, a força pode se converter numa fonte de ilusões que, longe de
reforçar o poder dos que a detém pode contribuir para destruir seu poder. Nas
semanas seguintes, Maquiavel se dedicou a procurar entender o comportamento dos
franceses e a maneira como pensavam o mundo que os circundava e maneira como
isso afetava Florençam (BIGNOTTO, 2014, pp. 52).
Sobre a tríade enunciada [força, liberdade e justiça], Lefort indica que no Príncipe
Maquiavel demonstra a ideia de força atrelada ao conceito de necessidade. Quando se, por
exemplo, se um ator político deve aprender a não ser bom, isso não deve ser entendido como
se Maquiavel estivesse querendo dizer que o príncipe devesse ser sempre mal, mas a se valer
96
A ideia deste conceito surge na leitura da obra de Marchand (1975) sobre os I Primi Scritti Politici, pp. 5-23,
na medida em que o autor utiliza o termo "dilema" para referir-se a situação de Pisa em 1499. Preferiu-se aqui a
utilização do conceito "disjuntivo", exatamente por se compreender que o termo dilema é algo que indica não
resolução. Portanto, pela ideia de disjuntivo é que a força se faz um conceito frente ao seu revés, o amor (pp. 22). 97
A ideia básica desta concepção/conceito, fundamenta-se na obra do pesquisador e interprete de Maquiavel,
Claude Lefort, que a partir do Príncipe, elaborou uma tese que define que a virtú é sustentada por sua qualidade -
a força, ou seja, Lefort afirma que o regimento e a ordenação mais eficiente da ordem social é o uso da força,
como recurso eminentemente necessário da ação política. Cf. LEFORT, C. Le Travail de l‘Oeuvre Machiavel.
Ed. Gallimard, 1972, pp. 346-368.
61
ou não desse recurso conforme a necessidade. Nesse sentido, o que ele refere é que quem
quiser ser sempre bom em tudo o que vier a fazer, vai se arruinar em meio a tantos que não
são bons, logo, o príncipe deve aprender a usar a "maldade e a ferir quando for preciso". É por
essa razão que, a força se configura, portanto, como um elemento necessário na vida política,
especialmente, porque é por meio dela que se pode assegurar a paz, o progresso e a
permanência do príncipe no poder. Não obstante, a liberdade, tema forte do Discorsi, está
atrelada a ideia de força na medida em que os guardiães desta dignidade humana e social é o
povo. Maquiavel demonstra nos Discorsi sua preferência pela civilização romana neste
sentido. Este espírito de liberdade vinha, em grande medida, devido a determinadas
características da época. Poderíamos dizer que uma delas teria sido “o desenvolvimento de
uma consciência cívica” (BIGNOTTO, 1991, pp. 16). O povo é o guardião da liberdade, e
enquanto isso não for uma realidade, a força se faz necessária na tensão dos humores. Justiça
é a equidade. A virtù é a genetriz de todas estas ideias, pois é dela que, com prudência se usa a
força, e a medida em que se deve usá-la, e por ela que se conquista e mantém a liberdade e é
em sua frieza e calculismo, enquanto autoconstrução que se efetiva a justiça. Assim
Maquiavel estuda o ato da conquista a partir de alguns casos de conquistadores
particulares (BIGNOTTO, 1991, pp. 125); e observa que o ato da conquista é, na
verdade, um ato político e não meramente um ato de força (COSTA, 2015, pp. 93).
A "lógica da força", como um esboço de teoria política, é uma novidade que se
propõe ao se ler os relatórios dos I Primi Scritti Politici de Maquiavel. Em verdade, Claude
Lefort98
, numa leitura da obra do florentino, sobretudo, fundamentado no Príncipe, percebeu
fragmentos dos relatórios anteriores, reunidos numa proposta disjuntiva, já disposto
anteriormente por outro intérprete, desta vez dos relatórios, J. J. Marchand, e que tem como
esboço e fundamentação teórica a ideia de avanço em torno da conquista e reconquista.
No ato político da conquista, a força, como um ato de violência, está
inevitavelmente presente. Maquiavel, entretanto, parece se interessar no Príncipe
não pela força como violência, mas pela força como atividade política. No Príncipe,
a força como atividade política justificaria o agir político, amparado na ideia de que
a força seria um elemento complexo, com diferentes possibilidades de uso político, e
que seria, sobretudo, um elemento mediador entre a política e a pura violência99
.
98
Lefort retém insistentemente uma observação do florentino acerca de “duas tendências diversas” que se
encontram em todas as Cidades no sentido de polis: “o povo não deseja ser governado nem oprimido pelos
grandes, e estes desejam governar e oprimir o povo.” Com isso, observa nosso autor, “o filósofo florentino havia,
bem antes de Marx, percebido a divisão de classes em todas as sociedades históricas”. Na sua obra: Le Travail
de l‘Oeuvre Machiavel (1972), Lefort introduz a lógica da força como ideia matriz do novo ordenamento da
política renascentista. Para o Lefort não se conquista e nem se mantém no poder sem o uso matemático da força. 99
COSTA, P.H.S. "Política, força e virtù em Maquiavel", pp. 94. In: Griot – Revista de Filosofia, Amargosa,
Bahia – Brasil, v.11, n.1, junho/2015/www.ufrb.edu.br/griot - acesso em 11 de Dezembro de 2015.
62
Resaltam Lefort e Marchand que a lógica da força está vinculada ao homem de virtù,
e que investindo em exércitos de cunho patriota podem utilizar-se da força como uma escolha
calculada de investidura política de ação. Primeiro porque, segundo Lefort, o pressuposto é
que os homens “antigos e modernos são feitos com a mesma argila” (LEFORT, 1999, p. 146)
e que, portanto, a nova arte política, as novas configurações de ação política ocorrem na
medida em que tal arte
[...] exige que se saiba identificar os inimigos, escolher um campo, utilizar-se
oportunamente da astúcia e da força; em suma, diz respeito à arte da guerra, embora
não se reduza a isso” (LEFORT, 1999, pp. 155).
Lefort também percebeu que na representação política, por mais débil que se
apresente, delineando-se em certos casos, o que se faz aparecer é inevitavelmente os conflitos.
Num texto contemporâneo de André Berten, (2004), o autor propõe uma espécie de retorno à
Maquiavel para pensar exatamente os conflitos. Berten afirma que as tensões que se formaram
a partir de uma política de conflitos provocou uma extensa e progressiva esfera de situações
denominadas "dolorosas e remanescentes" (2004, pp. 147), pois se asseguram na ordem pela
desordem da força. Este modelo de força, como um substrato de teoria política ativa, os
autores que leem Maquiavel e constatam que há uma oposição entre a força e as boas leis se
distanciam do ideal primário de Lefort, que analisa a força como coadjutora das "boas leis e
das boas armas". Lefort chega a afirmar que a força é uma operação empírica e visa
estabelecer condições de equilíbrio social (LEFORT, 1972, pp. 357.352).
Como se apresentou, o problema da efetivação do ordenamento da ação política é
que a providência divina, por exemplo, promovia grande desinteresse pelo agir político, ou
seja, já que todas as coisas estão previamente determinadas por um ser superior, perfeito,
todo-poderoso e transcendente, não haveria um por quê para a ação política (LEFORT. 1972,
pp. 349). O Cristianismo „glorificou os humildes e contemplativos‟, „instituiu como maior dos
bens a humildade, a capacidade de se rebaixar e o desprezo pelas coisas humanas‟, não deu
valor „à grandeza do espírito e à força do corpo‟, nem a qualquer outro atributo da cidadania
virtuosa. Ele tornou o mundo fraco, entregando-o como presa à rapina de homens perversos‟.
Foi preciso reverter este cenário. Tanto é que, no capítulo VIII d'O príncipe,
Maquiavel avalia o papel da "crueldade e da violência"100
, mais uma vez rompendo com a
100
"Não há, desde o Estado, para Maquiavel", afirma Ames, "instituições nem ordenamentos ou leis que não se
fundem e se estabeleçam sem um grau de maior ou menor violência, proporcional à violência que visam a
suprimir". Cf. AMES, 2011, pp. 33. In: "Lei ou violência: a legitimação política em Maquiavel". In:
Trans/Form/Ação, Marília; v.34, n.1, 2011, pp. 21-42. Não obstante o uso legitimado da força deve ser bem
aferido pelo líder político. COSTA escreve que "o príncipe pode 'fazê-los crer à força' de diferentes modos, isto
63
tradição ao recusar todo critério moral-cristão na análise destes itens. No capítulo XVIII,
Maquiavel descreve a questão da "dissimulação". Cruel, violento e dissimulado, esta é nova
face do político ativo quando assim, "o deve ser", sem antes fazer valer a força da política
como atividade convencimento via legislação. Lefort comentando estas passagens aponta o
rompimento decisivo do secretário florentino com o humanismo clássico, pois Maquiavel se
recusa a fazer a distinção entre a razão e a paixão, entre o homem e a besta. A força é um
ímpeto que regula junto a virtù o homem em sua totalidade101
.
Por isso, Maquiavel, segundo Bignotto: Combate os jovens de seu tempo, que viam
na força o único elemento motriz da política, mostrando que nem mesmo uma
conquista levada a cabo pela força das armas se esgota no momento da invasão. [...]
Devemos, pois, distinguir a conquista – momento da pura negatividade – da
fundação – momento de criação social (1991, p. 127)
Tendo como base o pensamento de Cícero, para quem as fontes da injustiça, como
ele mesmo afirma em seu De officis, estariam exatamente na força e na simulação, uma
própria do leão, a outra própria da raposa (LEFORT, 1972, pp. 410), Maquiavel inaugura um
novo cenário, uma nova dinâmica de observação da sociedade. Enfim, o marco inicial desta
abordagem da teoria da força, da sua logicidade no esquema da política moderna se dá num
primeiro plano, como já apontado, no exame dos conflitos. Todos os conflitos cujos interesses
afetam a sociedade em seu conjunto estão atrelados a forças de mediação em torno do poder,
da conquista e da subalternação102
. Não se pode perder de vista os "dois humores"103
- dos
grandi e do popoli104
. É por isso que Maquiavel
é, pode, no ato da fundação, se utilizar de diferentes formas do uso da força para assegurar a conservação do
novo regime. Dentre essas formas, pode o príncipe fazer com que creiam (na nova instituição e em sua
autoridade, por exemplo) não apenas pelo uso prático da força, mas também pelo seu uso simbólico. Sobre o uso
simbólico da força, Maquiavel, no Capítulo XVII, diz, por exemplo, que é melhor ser temido do que amado e é
melhor ser piedoso do que considerado cruel (1991, p. 80); e, reitera que: “[...] o príncipe fazer-se temer de modo
que, se não conquistar o amor, pelo menos evitará o ódio; pois é perfeitamente possível ser temido e não ser
odiado ao mesmo tempo” (1991, pp.80-81). In: COSTA, P.H.S. "Política, força e virtù em Maquiavel", pp. 94.
In: Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.11, n.1, junho/2015/www.ufrb.edu.br/griot -
acesso em 11 de Dezembro de 2015. 101
Lefort reflete que a virtù em Maquiavel deixa de ter um sentido inteiramente positivo e passa a conceitualizar-
se como a „qualidade da flexibilidade moral‟ que um príncipe precisa ter. Nas palavras de Lefort, “o príncipe
aparece, então, como um ator cuja conduta é determinada pelas exigências da situação e, consequentemente, cuja
potência é indissociável da inteligência que adquire quanto à relação de potência: é ou não capaz de reconhecer
essa ordem e se o conseguir será sob a condição de dominar a confusão dos acontecimentos, de resistir à tentação
de utilizar meios que, por serem eficazes a curto prazo, estão destinados a se voltar contra ele” (LEFORT, 1972,
pp. 36). 102
Maquiavel se coloca um desafio e um problema a resolver: defendendo o conflito, e não o negando, procura
demonstrar não somente a sua necessidade, mas também que ele é condição fundamental para a possibilidade da
liberdade política. 103
Sobre a relação entre humores na obra de Maquiavel pode-se recorrer a dicotomia dos amores na Cidade de
Deus de Agostinho. Para o autor cristão do primeiro milênio, há os desejos da terra, envoltos nas paixões e nas
concupsciências, que resulta no pecado humano e do mundo e há também as virtudes que podem evidenciar a
graça especial que nos remetem a cidade de Deus, à lógica do amor de Deus e de seu Reino. Os humores na obra
64
“vivendo numa República, [...] passou pela experiência de conflitos a que se
entregam múltiplos atores, que também são, de uma maneira ou de outra, ativados
pelos conflitos, e encontrou na República Romana uma espécie de laboratório que
lhe permitiu desvendar - sempre sob o exame de situações particulares - uma ampla
variedade de esquemas de ação” (LEFORT, 1999, pp. 174.)
É precisamente devido a esta exibição dos conflitos, que a sociedade ganha o duplo
sentimento de unidade e de diferença. Mais aprofundado, pode-se dizer em mandatários e
comandados. Esta diferença e não divisões, no plural, é necessária para fazer entender que a
sociedade não é, nem homogênea, nem fragmentária. Isto é o mais fecundo da representação
política (LEFORT, 1999, pp. 142). Deste modo surge um novo conceito para a guerra, o de
estética105
:
a importância que Maquiavel atribuía à guerra era mais de proteção do seu Estado
do que propriamente de ataque. A guerra é uma forma de poder de um Estado e está
intrinsecamente ligada à política. As oportunidades de conquista aparecem e a
guerra era uma forma de se autoafirmar, aumentando seu território de ação. Mas, o
melhor ataque é a defesa, isso é o que Maquiavel prega. O exército bem formado é
uma certeza de vitória. Como ele observa, “quem na guerra observar com maior
vigilância as intenções do inimigo, e melhor exercitar seu exército, correrá menos
perigos, e sua probabilidade de vitória será maior. Dificilmente será vencido quem
souber avaliar suas forças e as do inimigo” (MAQUIAVEL, 1982, pp. 37).
Segundo o filósofo contemporâneo, J. Derrida, que examina em inúmeros textos o
problema que envolve o universo político desde suas matrizes modernas. Para ele houve
desde o Humanismo uma descentralização de estruturas, sobretudo, Igreja e Estado. E, nos
textos, ele considera inseparável os personagens, as motivações e os fundamentos teóricos que
fundaram o novo modelo estrutural. Derrida afirma que “o modo dos príncipes é essencial
numa perspectiva totalizadora, isto porque eles devem manter a palavra dada” ou “eles devem
de Maquiavel pode-se dizer que, a partir da obra do Príncipe, capítulo IX, o Florentino afirma: “[...] que em toda
cidade existem estes dois humores diversos que nascem do povo que deseja não ser comandado nem oprimido
pelos grandes, e dos grandes, que desejam comandar e oprimir o povo”. Nos Discursos I,4 se lê: “Sem dúvida, se
considerarmos o objetivo dos nobres e dos plebeus [nobili e degli ignobili], veremos naqueles grandes o desejo
de dominar e nestes somente o desejo de não ser dominados e, por conseguinte, maior vontade de viver livres
[...]”. Finalmente, na História de Florença III,1, encontra-se a passagem “as graves e naturais inimizades que há
entre os homens do povo e os nobres, são causadas pela vontade que estes têm de comandar e aqueles de não
obedecer [...]”. Cf. AMES, 2011, pp. 22. 104
De acordo com Bock, Maquiavel, expressando-se em uma fusão da filosofia política com a linguagem da
tradição, pôde reconhecer primeiramente o embate estrutural, gerado pela inevitabilidade do conflito entre
desiguais (povo e aristocratas), que deve ser superado institucionalmente pelas leis que garantem liberdade, e um
conflito disruptivo que acontece entre iguais: as divisões entre o povo (popolo e plebe) e entre as diversas
facções (parte, sétte) dos endinheirados e dos grandi (BOCK, 1990, pp. 201, In: MAGALHÃES, 2011, pp.58). 105
Todo estudo da guerra exige a compreensão da política interior e vice-versa. É por isso que podemos dizer
que a política e a guerra são gêmeas, sem apagar a diferença evidente entre conflitos interiores e conflitos
exteriores. Essas observações nos permitem compreender por que Maquiavel, discutindo os problemas da guerra,
retorna à questão da lentidão de certos Estados em tomar decisões. Isso deriva de que o modo de preparação da
guerra não é diferente do modo de organização da vida política interna (BIGNOTTO, 1991, pp. 158).
65
ser fiéis aos seus juramentos” (DERRIDA, 2008, pp. 21)106
. Isto ocorre à medida que, se se
interpreta Maquiavel por este viés, constata-se dois gêneros de combates: um com as leis e
outro com a força. Na verdade, a proposta é aferir e conquistar o poder não meramente pelo
medo, mas, sobretudo pelo respeito às leis. Esta oposição é mais atual do que renascentista,
pois a força nasce como uma ramificação da virtù e logo faz frente junto as boas leis, boas
armas e competente milícia107
.
Na mesma linha da subalternação do medo ao respeito, escreve Lefort, dizendo que
o ator político, o cidadão decidido a defender o bem comum, ou o conquistador, ou
mesmo o príncipe capaz de se lançar em empreitadas desmedidas a fim de criar um
regime completamente novo, não pode deixar de seguir a veritá effetuale se deseja
obter êxito (LEFORT. 1999, pp. 175).
Também neste ensejo sobre os conflitos vai I. Berlin, sobretudo quando reflete na
questão do bom discernimento em política. A competência e a genialidade do político se
expande na dimensão de suas qualidades. Maquiavel diria - na posse de virtù. O que chama
atenção no texto de Berlin é a lógica dos fatos. A política inaugurada por Maquiavel há mais
de 500 anos ainda é suporte de análise da ação dos políticos contemporâneos, pois Berlin se
fundamenta na capacidade prática, visionária, histórica, e sobretudo pelo sonho do fabuloso
que se possa construir para mensurar o sentido da realidade (BERLIN, 1999, pp. 67).
Numa análise mais profunda, a partir dos Primeiros Escritos, o tema recorrente
sobre a força é a relação de Florença com algumas cidades italianas que faziam parte de seu
domínio, mas que se rebelaram e, por isso, exigiam uma resposta por parte de Florença108
.
E como não podem existir boas leis onde não há armas boas, e onde há boas armas
convém que existam boas leis. É necessário o uso constante das armas [...] As
forças com que um príncipe mantém seu Estado são próprias ou mercenárias,
auxiliares ou mistas (MAQUIAVEL, 2000, pp. 53). Por isso: “Não se vê como
Pisa, sem o uso da força, possa ser reconquistada” [...] Sendo, portanto, necessária a
força, me parece que deve ser considerado se seria bom usá-la neste momento ou
não (MAQUIAVEL, 2010, pp. 31).
106
DERRIDA, J. “O Maquiavel esquecido”. Filosofia. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo, ano 2, n. 14,
setembro/2008. 107
“Onde e como se produz esse descentramento como pensamento da estruturalidade da estrutura? Para
designar esta produção, seria algum tanto ingênuo referirmo-nos a um acontecimento, a uma doutrina ou ao
nome de um autor. Esta produção pertence certamente à totalidade de uma época, que é a nossa, mas ela já
começou há muito a anunciar-se e a trabalhar” Cf. DERRIDA, J. A escritura e a diferença. Tradução Maria
Beatriz M. N. da Silva. 3.ª ed., São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002. pp. 232. 108
“Sobre o uso simbólico da força, Maquiavel, no Capítulo XVII, diz, por exemplo, que é melhor ser temido do
que amado e é melhor ser piedoso do que considerado cruel; e, reitera que o príncipe fazer-se temer de modo
que, se não conquistar o amor, pelo menos evitará o ódio; pois é perfeitamente possível ser temido e não ser
odiado ao mesmo tempo”. Cf. COSTA, P.H.S. "Política, força e virtù em Maquiavel". In: Griot – Revista de
Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.11, n.1, junho/2015/www.ufrb.edu.br/griot - acesso em 11 de Dezembro
de 2015, pp. 96-97.
66
O caráter disjuntivo dos textos maquiavelianos, segundo MARCHAND, é o modo
de como proceder a resposta sobre a técnica de reconquista, ou seja, por uso de força ou
através de espera fortuita, da crença no acaso, enfim, de um tipo de atitude que se deveria
tomar frente aos desafios políticos e factuais do conflito (AMES, 2011, pp. 23). É a questão já
superada entre a antiga norma, a contemplação e o novo postulado, a ação. A lógica da força é
a nova ação política moderna. SENELLART vai atrelar a ideia da teoria da força a ideia de
cálculo matemático (2006, pp. 225-246).
Ao interno desses “Escritos”, destes relatórios, tendo como exemplo o “Discurso
proferido ao Magistrado dos Dez sobre situação de Pisa de 1499”, Maquiavel afirma que
para se manter a liberdade é necessário o uso da força. E parece necessário também averiguar
o momento oportuno de agir de acordo com a lógica da força (MAQUIAVEL, 2010, pp. 31).
Há uma profunda ligação nos I Primi Scritti Politici entre o uso da força e o momento
oportuno do uso (cálculo matemático). Estrategicamente Maquiavel está sempre a questionar-
se sobre a consideração do momento oportuno do uso da força (MAQUIAVEL, 2010, pp. 31).
Por isso, crê-se que se eleva uma reflexão sobre a natureza humana, tão discutida, porém não
tão clara em Maquiavel, sobretudo, porque nos parece que o florentino tenha uma visão
pessimista da natureza inconstante dos homens, e mais, vê-se também como inconstante a
própria realidade social onde os mesmos estão inseridos (BIGNOTTO, 2000, pp. 77-79).
Assim sendo, o uso depende do senso de oportunidade, ou seja, o uso da força depende da
virtù do príncipe, do líder político e das circunstâncias situacionais, ou seja, da fortuna.
Segue o texto dos I Primi Scritti Politici onde se constata a lógica da força
[1] DISCURSO PROFERIDO AO MAGISTRADO DOS DEZ SOBRE A
SITUAÇÃO DE PISA (1499)109
Visto que ninguém duvida que a retomada de Pisa é necessário, se quisermos manter
a liberdade, não me parece que eu possa demonstrá-lo a vós com outras razões que
não aquelas que por vós mesmos já sabeis. Examinarei então somente os meios que
conduzem, ou possam conduzir a essa retomada, os quais me parecem ser ou pela
força ou o pela vontade dos pisanos, isto é: ou reconquistá-la pelo assédio, ou que
ela voluntariamente caia em nossas mãos. E porque este último modo seria o mais
seguro e, portanto, o mais desejável, nós examinaremos se ele é viável, e tomemo-lo
em consideração da seguinte maneira. E se Pisa, sem que recorrêssemos às armas,
caísse em nossas mãos, isso se daria ou pelos próprios pisanos, que se colocariam
em nossos braços, ou por alguém outro que sendo o seu senhor vos dê como
presente. O quanto se pode acreditar que os pisanos, por si mesmos, possam voltar
para a vossa proteção, o demonstram os tempos presentes, nos quais, privados de
todo apoio, sós e fraquíssimos, não acolhidos por Milano, expulsos pelos genoveses,
nem bem vistos pelo Pontífice e maltratados pelos seneses, continuam pertinazes,
esperando nas vãs esperanças de outros e na vossa fraqueza e desunião, nem
aceitaram, nunca, tamanha é a sua perfídia, um mínimo sinal vosso de aproximação.
109
MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio Kurt
Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da Administração,
FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010, pp. 31.
67
Assim, se em tão calamitoso presente eles não flectiram o ânimo, não se pode, nem
se deve, de jeito nenhum acreditar que por si mesmos venham voluntariamente para
o vosso jugo. Quanto à possibilidade que Pisa nos seja concedida por quem a
possua, devemos considerar que quem vier a possuí-la ou terá entrado na cidade
chamado pelos pisanos ou pela força. Se ele aí tiver entrado pela força, não há
nenhuma razão para que a conceda a nós, pois se ele foi capaz de ocupá-la pela
força, será ainda mais capaz de mantê-la para si e preservá-la, pois quem quer que
seja senhor de Pisa, não a deixará a outros com prazer. Se quem a possuir a tiver
nela entrado pela vontade e chamado dos pisanos, baseando-me no recente exemplo
dos venezianos, não me parece crível que houvesse alguém que traísse a confiança
deles e, sob o pretexto de querer defendê-los, os atraiçoasse e lhes desse a servidão.
E ainda que esse seu senhor quisesse que a cidade voltasse para sob o vosso
domínio, a abandonaria e a deixaria a vós como presa como recentemente fizeram os
venezianos. Assim, por essas razões, não se vê como Pisa, sem o usa da força, possa
ser reconquistada. Sendo, portanto, necessária a força, me parece que deve ser
considerado se seria bom usá-la neste momento ou não (MAQUIAVEL, 2010, pp.
31).
MARCHAND acrescenta a ideia de cálculo matemático na lógica da força uma
espécie de fluxograma onde apresenta o disjuntivo de reconquista sob as nomenclaturas: amor
ou força110
. Por amor, que, segundo Maquiavel, não é a escolha mais devida, a reconquista
procederia por espontaneidade ou por doação de alguém que a reconquistasse por primeiro,
isso em relação a alguém ou outro Estado, que não Florença. Mas, se for pela força, e de
modo não calculado, tem-se a ideia de incompletude desta atuação política. (MARCHAND,
1975, pp. 22). Eis um primeiro disjuntivo que se abre na narrativa de Maquiavel.
A força só deve ser usada para garantir a instituição e a manutenção da vida
associada, e a figura do príncipe é importante porque só ele pode utilizá-la
legalmente, impedindo que a sociedade mergulhe na pura violência (GOMES, 1993,
pp. 80)
O uso da força, monopólio estatal imprescindível à conservação e à expansão do
Estado, recebe de Maquiavel atenção proporcional à sua importância à razão de Estado.
Imerso num cenário político composto pela incessante ameaça de invasão externa, Maquiavel
(1976, pp. 85) alerta: Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem outro pensamento,
nem tomar qualquer outra coisa por fazer, senão a guerra e a sua organização e disciplina,
pois que é essa a única arte que compete a quem comanda111
.
110
“O caráter prático dos primeiros escritos políticos de Maquiavel, práticos entendidos como aqueles nos quais
o autor analisava determinados eventos da cena política florentina com vistas a uma solução imediata, oferecem-
nos um material privilegiado para a delimitação do universo de problemas com os quais irá se defrontar mais
adiante nas suas obras maiores. não só por isso são relevantes, pois, na medida em que os problemas se
apresentavam, ele mobilizava um aparato conceitual que mais tarde seria integrado num corpo teórico-filosófico.
Tais elementos, por sua vez, colocam em destaque aspectos constitutivos de um novo modo de compreender a
nova formação estatal em questão”. Cf. PANCERA, 2010, pp. 99. 111
Nesse sentido, como já se apontou, BENEVENUTO demonstra que Maquiavel ao indicar o modo de proceder
adequado ao governante nos mostra “que existem duas formas de se combater, uma pelas leis, outra, pela força.
A primeira é própria do homem, a segunda, dos animais”. Mas, logo após classificar o uso da força como digno
68
A política é uma forma de guerra (LEFORT, 1972, pp. 353). Lefort apresenta a
lógica da força como uma novidade política, uma nova opção ao novo governante para viver
a guerra. E interpreta a ideia de força no ideário de Maquiavel como uma “operação empírica”
(LEFORT, 1972, pp. 357). Tendo como principio o paradoxo entre o novo príncipe e o antigo
modelo de príncipe, Lefort apresenta a finalidade do Estado que é a legitimação das armas
para a conquista de poder. Por isso a lógica da força está subentendida como governo,
conservação, conquista ou reconquista pelos lideres políticos.
Na abertura dos I Primi Scritti Politici112
, Maquiavel – enquanto um filósofo da ação
registra aos Magistrados dos Dez de Florença a situação de Pisa (JACOBELLI, 1998, pp. 17-
24). Sabe-se que Pisa e Florença estão em guerra, e tendo a política como o assunto do dia,
entra em cena a necessidade de um exército. No Príncipe, o florentino vai discutir a validade
e as tipologias de recrutamento de exércitos, e como sua cidade não contava com um exército,
e já conhecendo a pertinência de se ter um ou no arriscar do contratar um, Maquiavel, com 29
anos de idade, em seu primeiro ano na Chancelaria se arrisca em convocar um exército para
Florença. Conclusão desta história – fiasco total (MARCHAND, 1975, pp. 5. 16-17).
Um segundo disjuntivo proposto na obra de MARCHAND, ocorre quando
Maquiavel não tem boa aventura na prática política. Seria ele então apenas um teórico?113
de animais, sugere ao governante que, a ele, “torna-se necessário saber empregar convenientemente o animal e o
homem". (Príncipe, 2010, Cap. XVIII). Cf. BENEVENUTO, F. R. de S. ‗Virtù‘ e valores no pensamento de
Maquiavel. Dissertação de Mestrado. Departamento de Filosofia da UFMG, Belo Horizonte, 2003, pp. 107. 112
"Olhamos brevemente os textos de um Maquiavel assumidamente republicano e da política como necessidade
para manter a liberdade. Maquiavel chegou à segunda chancelaria da cidade para servir como secretário do
Comitê dos Dez, responsável pela defesa militar. Em 1505-6 é responsável pelo alistamento militar e tenta
implementar uma alternativa à contratação de mercenários (aversão já adquirida durante sua missão e observação
da desordem causada pelas tropas suíças e Guascones usadas por Florença para reprimir revoltas em Pisa em
1500). Ainda a serviço da sua cidade, participa de missões diplomáticas na França, no Vaticano e na Alemanha.
Depois da retirada da França da Itália em 1512 e de cair Gonfaloniero Piero Soderini, Lorenzo de Médici e um
Comitê de 70 acabam com o governo republicano e despedem Maquiavel. Assim, ao contrário das preocupações
em debates que perduram até hoje sobre a composição, o propósito e o conteúdo do Príncipe, os textos de
Maquiavel aqui publicados registram seu serviço ao governo republicano florentino". Cf. METTENHEIM, K.,
In: MAQUIAVEL, 2010, pp. 7. 113
Maquiavel, conforme Asor Rosa, era um “puro político” (ASOR ROSA, 2009, pp. 546), um homem de ação,
que não queria ficar como mero expectador da crise italiana, mas sim fazer parte da vida pública de Florença. Cf.
ASOR ROSA, A. Storia europea della letteratura italiana. Torino: Einaudi. 2009. Sobre a questão da força
ainda pode ser dito que o "essencial na política não são as virtudes, objeto da filosofia moral, mas a realidade
política tal como revelada nas e pelas coisas do mundo – o conhecimento político está condenado a uma relativa
incerteza e depende da capacidade de transformar a percepção dos acontecimentos singulares em um saber e em
uma ação eficaz. Creio que é certo dizer que: “sucede então que a moderação, seja o conhecimento da
oportunidade dos momentos certos para agir. A mesma definição pode ser aplicada à prudência [tratada por nós
posteriormente], tal como em relação a moderação, temperança e virtude semelhantes”. (Dos deveres, I, 142-
143). “Dessas duas qualidades [prudência e justiça], então, a justiça é a que tem mais poder para suscitar a fé,
pois, embora ela, sem a prudência, tenha bastante autoridade, a prudência, sem a justiça, é impotente para gerar a
fé. De fato, quanto mais a pessoa é solerte e ardilosa [versutior et callidior], mais detestada é quando lhe falta a
reputação de probidade”. (Dos deveres, II, 33). Cf. ARANOVICH, 2014, pp. 31-32.
69
Sendo adunque necessária La forza, mi pare de considerare, se gli é bene usarla in
questo tempo o no. Ad ultimare l‟imprensa di Pisa bisogna averla o per assedio o
per fame, o per espurgazione (corsivo mio) (BRUSCAGLI, 2008, pp. 17). Pois a
força e a perfídia devem ser enfrentadas com força e perfídia (BERLIN, 2002, pp.
320).
Neste sentido, que tipo de qualidade a nova forma de política requer do príncipe, do
governante? Maquiavel observa na história a importância da conduta em todos os momentos,
em tempo de guerra e em tempo de paz. Assim, a questão que subjaz é o modo pelo qual o
líder, o príncipe, aquele que está à frente, sem legitimação hereditária, mas de conquista,
mantêm o poder de homem sobre homens (LEFORT, 1972, pp. 346-348). É a dinâmica da
virtú que impõe neste caso o regimento da força. Por assim ser, Maquiavel faz sua leitura em
relação aos homens no sentido de que os mesmos não têm predisposição para acordos114
. O
Frade Savonarola é sempre comentado como alguém que se conduziu numa espécie de
política sob a conduta de um profetismo desarmado, fato que o fez perder e morrer. Os
profetas desarmados acreditam na Providência, na Regência de Deus sobre a história, e como
pacificador, Savonarola tinha sua arma no pai nosso, mas somente com pai nosso não se
sustenta uma república, dirá Maquiavel mais tarde nos Discorsi. Assim, o novo ordenamento
político são as armas e a guerra. Deve haver o reconhecimento por parte do príncipe da
necessidade da força (LEFORT, 1972, pp. 366-367)115
.
114
“arrebatado pela paixão da verita effetuale, encantado por produzir ao mesmo denominador as ações dos
homens, abandonava toda preocupação com o dever-ser. [Assim,] somente fazia o elogio das virtudes dos
romanos na medida em que se combinavam com a arte da ação política, e o conhecimento dessa arte induzia-o a
passar em silêncio sobre suas convicções, levava-o a transgredir toda norma moral” (LEFORT, 1999, pp. 143). 115
“Se em O Príncipe Maquiavel preceitua o uso da força, ou, em seus próprios termos, o emprego da crueldade
(que define propriamente o principado novo em oposição ao principado hereditário), em oposição ao emprego da
bondade (que poderia definir o principado eclesiástico em oposição aos principados laicos), não se trata de
qualquer forma de emprego da crueldade, uma vez que a crueldade pode ser empregada, segundo Maquiavel, de
duas maneiras: “bem empregada” ou “mal empregada”. No primeiro caso, a crueldade é empregada quando
necessário e porque necessário; no segundo, é empregada ao bel-prazer do príncipe. No caso da crueldade bem
empregada (o mal que traz o bem), trata-se de um uso por necessidade, em que o príncipe usa da violência
porque precisa; no caso da crueldade mal empregada (o mal que traz o mal), trata-se de um uso por desejo, em
que o príncipe usa da crueldade porque quer. Em outras palavras, crueldade bem empregada é aquela que o
príncipe usa para fundar ou manter seu Estado; crueldade mal empregada é aquela que o príncipe usa para
expropriar ou assassinar seus súditos. Quando bem empregada, a violência evita a perda o Estado; quando mal
empregada, o príncipe enfraquece sua própria autoridade, o que levará por fim à perda do Estado. No primeiro
caso, a violência é maior no começo, quando a conquista ou a saúde do Estado está em questão, e segue
diminuindo; no segundo, é menor no começo, quando o príncipe ensaia seus crimes, e segue aumentando. Entre
uma coisa e outra a diferença não é de quantidade (ou intensidade), mas de qualidade (ou natureza): a crueldade
bem empregada consiste num uso político da violência; a crueldade mal empregada, num uso corrupto (segundo
o critério que os pensadores políticos antigos utilizavam para distinguir o monarca do tirano, mencionado
também por Maquiavel no capítulo 10 do livro I dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio). Em
resumo, o primeiro é um príncipe de virtù (caso de César Bórgia), por mais cruentos que sejam seus métodos; o
segundo, um príncipe que só pode contar com a fortuna, e que não conseguirá por fim manter seu Estado”
(SALATINI; DEL ROYO, 2014, pp. 80-81).
70
1.4. A lógica da força nos escritos posteriores a 1513
“Os homens podem ser mudados, mas não num grau fantástico” (BERLIN, 2002,
pp. 315)
Tem-se como objetivo deste tópico a análise da ideia de Lefort, relativa à lógica ou
teoria da força nos escritos posteriores aos Scritti de Maquiavel, sobretudo no Príncipe, obra
que serviu de suporte teórico para o texto de Lefort, bem como, ao interesse desta pesquisa.
As outras obras a serem analisadas são Discorsi e Arte da Guerra. A ideia de força, como
uma qualidade da virtú é analisada como a materialização das possibilidades da ação política,
tendo como práxis as boas leis, as boas armas, o exército próprio, a prudência, a retórica, e,
sobretudo, a escolha disjuntiva da força enquanto tal. Por isso, como se apontou acima, a ação
política é um processo de amadurecimento onde se tem premissa de que os homens mudam
aos poucos, como adverte BERLIN, mas se adéquam rapidamente, pois este é o novíssimo da
política humanista, a permanência no cenário, portanto, a capacidade de adaptação ou de
readaptação.
Segundo ESCOREL, a capacidade adaptativa maqueaveliana se dá através
da atividade política, que por sua dinâmica, impõe aos que a praticam uma
maleabilidade adequada aos imperativos da realidade histórica, uma capacidade de
adaptação e improvisação proporcional às variações frequentes da situação de fato a
enfrentar (ESCOREL, 1979, pp. 104).
Num primeiro momento a reflexão e a definição possível que se dá ao conceito de
virtú e de fortuna, pois ambos subsidiam a teoria da força construída na reflexão de Lefort.
Num segundo momento, aborda-se a ideia de força em seus aspectos preponderantes nos
livros subsequentes aos I Primi Scritti Politici. No Príncipe, matriz de onde Claude Lefort
apontou esta leitura, seus capítulos e citações em que a ideia de força aparece ou se apresenta
como um dado relevante ao interesse da pesquisa. O mesmo ocorre nos Livros dos Discorsi e
da Arte da Guerra116
.
Assim sendo, após o período em que esteve à frente da Segunda Chancelaria de
Florença (1498-1512), Maquiavel tornou-se, na opinião de vários intérpretes, especialmente
de Lefort, um expert na observação da vida política. "A verdade efetiva das coisas" e os fatos
116
Deve ficar claro para o leitor que este tópico da dissertação se equivaleria a um outro tipo de pesquisa muito
densa. Mas não é nosso intuito fazê-la. Ao mesmo tempo, produzimos uma reflexão pertinente às ideias de força
e fraqueza nas obras referidas, mesmo não tendo a pretensão de esgotar a temática ou a exegese necessária para
tal pesquisa. A quem nos lê, isso deve estar claro, pois não haveria tempo hábil e pertinência estudar um tema,
que não faz parte dos conceitos ordinários de Maquiavel, de modo exaustivo nas obras em questão.
71
políticos, como ordenamento do dia, passaram a ser os norteadores da análise de um
principado, de um estado e mais tarde da República.
Tanto é verdade que Maquiavel é um observador, que, em 1513, ele escreve o que
primariamente chamou de "O Livrinho", e que se tornou, como se viu na análise de Berlin,
uma obra muita controversa em interpretações, pois abriu, a partir de seu conteúdo, um novo
leque de abordagem políticas no Renascimento, até mesmo do conceito de política. Esta
novidade é sustentada por uma ética sustentada pelas ideias dos humanistas, sobretudo para
Maquiavel117
, tanto quanto por um novo conceito de homem e de natureza, bem como, por um
novo conceito de sociedade.
Saindo paulatinamente da ideia de bem comum medieval e de sua lógica
providencial, entra em cena o bem civil, fundado na lógica do bem público, da civiltá,
portanto, requerendo de seus líderes e atores a virtú cívica118
. Segundo Cortina, comentando
Maquiavel, pode-se dizer que
se percebe na teoria da força e em seu primaz escrito, O Príncipe, que Maquiavel irá
defender que todo sujeito que pretende manter-se no poder deve ter uma visão mais
clara das condições históricas que condicionam suas atitudes, suas decisões.
Segundo o florentino, nem sempre as mesmas ações surtem os mesmos efeitos em
diferentes situações. É preciso que o príncipe tenha capacidade de perceber as
condições do lugar e do momento em que desempenhará determinada ação
(CORTINA, 1994, pp. 92).
A vida ativa, desta maneira, delineou um novo modo de ser na sociedade e da
conduta dos príncipes e dos atores políticos, porquanto inverteu o fundamento basilar do fazer
político, ou seja, deve-se ater as condições para o laborar político e o desempenho é definido
fundamentalmente pela atividade. Bom político é aquele que calcula e prevê as condições
para a boa administração, que sabe manter-se e adaptar-se ao cenário social. É preciso ter
virtú e prudência retórica para tal evento. Segundo Skinner119
117
"Em síntese, a concepção moral maquiaveliana não admite a existência de um Bem ou um Mal preexistentes a
definir os atos humanos, mas admite a existência de atos bons ou maus conforme observem ou não o bem da
coletividade. Portanto, a Moral em Maquiavel perde sua autonomia e sua transcendência e é integralmente
absorvida pela Política". Cf. AMARAL, M. Maquiavel e as relações entre ética e política. In: Ensaios
Filosóficos, Volume VI - Outubro/2012, pp. 34. 118
AMES afirma que "para o florentino, fundar um Estado é tarefa para um homem que tenha virtude suficiente
para instituir, no lugar do caos produzido pela incapacidade de associação natural dos homens, uma sociedade
política, único lugar em que impera a ordem e a harmonia cívica" (AMES, L. J. Lei e estado no Pensamento de
Niccolò Maquiavelli. In: PERES, D. O. (org). Ensaios de Ética e Política. Cascavel: Edunioeste. 2002). Afirma
Maquiavel nos Discorsi (Livro I, capítulo I) que é preciso legislar no estado para mantê-lo ordenado. Em suma, é
necessário que uma república, sob o influxo da força, das armas, das leis e da ordenação se baseie
substancialmente na ideia de "muita virtù" na base (MAQUIAVEL, 2007, pp. 7). 119
SKINNER, Q. Maquiavel. pp. 65.
72
“'virtù' é o nome dado àquele conjunto de qualidades que permitem a um príncipe
aliar-se com a „fortuna‟ e conseguir honra, glória e fama. Mas afasta o sentido do
termo de toda e qualquer conexão necessária com as virtudes cardeais e
principescas. Argumenta, ao contrário, que a característica que define um príncipe
verdadeiramente virtuoso consistirá em uma disposição de fazer tudo aquilo que for
ditado pela necessidade - independente do fato de ser a ação eventualmente iníqua
ou virtuosa - para alcançar seus mais altos objetivos. Deste modo, 'virtù' passa a
denotar precisamente a qualidade da flexibilidade moral que se requer de um
príncipe: 'ele deve ter a mente pronta a se voltar em qualquer direção, conforme os
ventos da „fortuna‟ e a variabilidade dos negócios assim os exijam”.
A virtù "se expressa, segundo outra autora, Benevenuto, como „capacidade de
flexibilidade moral‟, ou seja, é a ideia de que o governante não deve se prender a uma
moralidade que coloque suas ações em estado de inércia. A política não pode e não deve
"ficar parada". E Maquiavel entendeu bem isso, e mais, demonstrou por uma análise
minuciosa da história que reinados, principados e repúblicas inertes são fracas, suscetíveis a
derrota e a escravidão. Por conseguinte, são condenadas a serem presas da não liberdade
cívica.
Estados mais estáticos, portanto, são mais fracos. Estados fortes são aqueles que
estão constantemente preparados para a guerra. Por isso não se recorre ao antigo molde da
moral cristã, que de per si é do bem, ou mesmo uma suposta moral do mal. A paz não é o
télos da vida política, nem o melhor estado nas condições da política. A moral de Maquiavel é
naturalista, e nela a 'virtù‟ atua como uma qualidade de antecipação das diversas situações.
Benevenuto continua afirmando que, de um modo geral, virtù é um conjunto de ações
apropriadas para que se possa conquistar e governar da melhor maneira possível (cf. p. 63-
65)120
.
E o próprio Maquiavel, nos Discorsi afirma sobre a necessidade da guerra que se
trata de uma falha crucial e capital de um rei e príncipe não estar preparado para guerra. O
tempo de paz não propicia a fortaleza de um reino. Um reino forte é aquele que está, mesmo
no tempo da paz, preparado para as ordenações da guerra (MAQUIAVEL, 2007, pp. 80).
Maquiavel começa este capítulo 21 do Livro I dos Discorsi afirmando que "'é uma vergonha,
príncipes atuais e repúblicas modernas que não tenham soldados próprios" (MAQUIAVEL,
2007, pp.79), pois onde há homens deve haver soldados. E ainda exemplifica que em 1513, o
rei da Inglaterra atacou o reino da França, e o fez com soldados de sua pátria. A França estava
desacostumada à guerra, afirma Maquiavel, isso porque já faziam mais de trinta anos que eles
120
BENEVENUTO, F. R. S. ‘Virtù’ e valores no pensamento de Maquiavel. Dissertação de Mestrado.
Departamento de Filosofia da UFMG, Belo Horizonte, 2003.
73
não tinham soldados e nem comandantes que tivessem combatido em guerras
(MAQUIAVEL, 2007, pp. 80). Enfim, é preciso estar acostumado às armas e à guerra.
A força é uma qualidade da virtú121
. Lefort já apontou que o novo modo de fazer
política é pressupor ao menos a possibilidade da força como mediação da política. Marchand
dispôs no tópico 2, que é necessário ter a consciência de que a força é uma possibilidade no
horizonte disjuntivo da política.
Em resumo, a „virtù‟, oscilante entre o bem e o mal, só se torna uma condição
necessária para a obtenção e manutenção do Estado porque os homens são maus. É a
maldade inerente à condição humana que torna a „virtù‟ tão crucial para que o
governante tenha êxito (BENEVENUTO, 2003, pp. 67).
Assim sendo, após ao tempo dos relatórios, como já descrito, Maquiavel se viu
forçado, por condições históricas e políticas, a retornar a viver em suas propriedades
familiares. Isso ocorreu no momento em que os Médici retomam o poder do papado.
Maquiavel se exila em propriedades familiares. É neste tempo que desenvolve suas principais
obras. Como já citamos: O Príncipe, os Discorsi, inclusive, segundo Martins, a partir de 1515,
Maquiavel, passando a frequentar os encontros (denominados de Orti Rucellai) com jovens
aristocráticos nos jardins dos Rucellai, em Florença, produziu a maior parte dos Discorsi. Ele
parou de escrever os Discorsi para escrever brevemente o Príncipe, que é um novo gênero
literário. Em 1520, a pedido do papa Leão X (Giuliano de Médici), recebe o encargo de
escrever uma história da Cidade de Florença (MARTINS, pp. 12 apud MAQUIAVEL, 2010).
E escreveu também sobre a "Arte da guerra" entre 1519-1520.
Como aprofundou Lefort (1972), Maquiavel desenvolveu em sua observação do
cenário político, prevendo [previdência/prudência] que a virtù vence a fortuna, e atentamente
identificando nas ações de um histórico e renomado italiano, chamado Castruccio Castracani
(1281-1328) a quem Maquiavel denomina como "pleníssimo de virtù", e no seu tempo, séc.
XVI, os elogios à conduta virtuosa e as habilidades de César Bórgia (1475-1507), o filho de
Alexandre VI (1431-1503), porque política é desenvoltura para conquistar e manter-se no
poder e com liberdade, com capacidade de adaptar-se.
Nas palavras de Lefort
o príncipe aparece, então, como um ator cuja conduta é determinada pelas
exigências da situação e, consequentemente, cuja potência é indissociável da
121
Nesse sentido, a „virtù‟ maquiaveliana, não implica, então, em praticar essencialmente o bem e sim em agir de
acordo com as circunstâncias e fazer o que for preciso para alcançar a glória cívica e a grandeza, não
importando, se para isso, são as ações do príncipe boas ou más. De fato, a „virtù‟ em Maquiavel deixa de ter um
sentido inteiramente positivo e passa a conceitualizar-se como a „qualidade da flexibilidade moral‟ que um
príncipe precisa ter (BENEVENUTO, 2003, pp. 68).
74
inteligência que adquire quanto à relação de potência: é ou não capaz de reconhecer
essa ordem e se o conseguir será sob a condição de dominar a confusão dos
acontecimentos, de resistir à tentação de utilizar meios que, por serem eficazes a
curto prazo, estão destinados a se voltar contra ele (1972, pp. 365-366).
Nos Scritti, sobretudo a partir do primeiro escrito, sobre a "Reconquista de Pisa", em
sua disposição gramatical, fundamentalmente disjuntiva, no que se pode referir-se a uma
espécie de marca das penas de Maquiavel, através dos prefixos "ou...ou", o florentino afirma
que a retomada de Pisa será ou pela força ou pela livre vontade dos pisanos. Há uma escolha
neste tópico: o uso da força122
. É neste sentido, e com este intuito, que se fará a abordagem
das obras posteriores já mencionadas.
Aprofundando a ideia de força, pode-se citar a definição de STOPPINO. Ele refere-
se a ideia de força como sinônimo de violência. LEFORT, por sua vez, ao criar e revisar a
lógica da força tem como ponto de destaque a utilização da violência como forma
instrumental de dominação humana e de demarcação geográfica. Maquiavel no conjunto de
sua obra apresenta o fato de que é pela força, por sua mediação, que ocorre o paradoxo "a
dominação dos grandi sobre o popolo". Nas relações sociais, há sempre aqueles que querem
mandar e aqueles que deverão obedecer.
Se se olha para os escritos de Maquiavel e seus panegíricos a Cesar Bórgia, por
exemplo, vê-se que pode nos parecer uma exaltação da violência e da crueldade, o que lhe
rendeu muitos maus entendidos. Mas não se trata disso. Maquiavel, quando reconhece a virtú
[sobretudo a romana] dos antepassados e dos seus contemporâneos, demonstra como um
verdadeiro príncipe deve atuar. E para atuar, não há outra maneira que a escolha da lógica
baseada na força. Esta é uma possibilidade que não se pode de forma alguma ser descartada. É
o novo ordenamento da política. É o fim dos reis e dos príncipes bonachões. Isso é tão
verdade que SOREL afirma, por sua vez, que se exalta a violência no sentido de que por ela
temos um instrumento da libertação da maioria da dominação de poucos (popolo versus
grandi).
STOPPINO ainda faz uma observação pontual quando delega ao cientista político,
ao sociólogo e ao filósofo a missão de avaliar quando uma intervenção física é legítima ou
não. Tem sentido olhar a ação dos florentinos e do discurso político de Maquiavel em relação
ao uso da força? O ponto chave de avaliação é o contexto social que sucede o ano de 1513, 122
Segundo Heller apud Martins (1995, pp. 92), Maquiavel foi grande observador das questões de seu tempo,
pois conseguiu perceber o confronto que se estabelecia entre o comportamento ético cristão e a nova ética
burguesa que se formava. Ao invés, porém, de bradar contra essa nova ética (a procura do dinheiro a qualquer
custo), o autor florentino propôs um programa em forma de alternativas: ou se voltava à velha noção de polis da
Antigüidade e à sua ética comunitária ou se rejeitava tudo isso, aceitando a ideia da monarquia absoluta
unificada na Itália e a situação ética que o capitalismo contemporâneo trouxera.
75
com a publicação do Príncipe123
. Pois é o contexto social que define o que ocorre durante o
uso da força – se assassinatos ou execução capitais. STOPPINO menciona também que a
força e a violência podem ser tratadas e interpretadas de diferentes modos pelo Estado, tais
como a ideia de força vigente, ou por revolucionários, que divergem da força vigente. A
compreensão que cada qual vai ter diante de uma morte, via uso extremado ou não de força
física, fica à mercê de uma interpretação. Nos Estados modernos a força é mediatizada e até
mesmo "controlada" pelos contratos legais dos Códigos e Constituições. Retomando a ideia
de força, MARCHAND dispõe o porquê Maquiavel escolheu a força e não o amor para a
retomada de Pisa. Diz o relatório primeiro
examinarei então somente os meios que conduzem, ou possam conduzir a essa
retomada [está se referindo a Pisa], os quais me parecem ser ou pela força ou pela
vontade dos pisanos, isto é: ou reconquistá-la pelo assédio, ou que ela
voluntariamente caia em nossas mãos (MAQUIAVEL, 2010, pp. 31).
BURCKHARDT sobre este contexto disposto no relatório e na obra de Marchand,
expõe a ideia de que os florentinos não tinham muita tolerância com o sistema tirânico. Isso se
dava pelo fato de que Florença via-se em meio ao mais rico desenvolvimento das
individualidades, ao passo que os déspotas não reconheciam, nem admitiam qualquer outra
individualidade que não a deles próprios (BURCKHARDT, 1991, pp. 26-27). Assim, o
resultado deste cenário de virtú, fortuna e força é a visão de Maquiavel essencialmente
estratégica, pois visa definir o objetivo, enxergar a realidade como ela é, e a partir daí, como
possibilidade chegar à situação desejada, rever o caminho e, por fim, pensar nas táticas que
podem ajudar a concretizar o objetivo através de metas realistas e concretas. A "verità
efetuale dela cose" é o ponto de partida da reflexão da força no Príncipe. Afirma Maquiavel
vai tanta diferença entre como se vive e como se deveria viver, que quem se
preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína
própria, do que o modo de se preservar; e um homem que quiser fazer profissão de
bondade é natural que se arruíne entre tantos que são maus (MAQUIAVEL,
2010[2]. cap. XV).
No escrito La cagione dell´ordinanza, dove la si truovi e quel che bisogni fare,
composto entre junho e novembro de 1506124
, a questão da força ganha uma formulação que
123
STOPPINO, M. Verbete – Força, In: Cf. BOBBIO, N. & MATTEUCCI, N. & PASQUINO, G. Dicionário
de Política, Tradução Carmem C. Varrielle et alli, Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 2000, pp. 503-504. No Príncipe encontra-se no capítulo Dos Principados
hereditários a ideia de força extraordinária, São Paulo: Hedra, 2010, pp. 33. 124
A explicação de Mettenheim do texto, “Discurso sobre a Ordenação do Estado de Florença para as Armas”,
de 1506, volta à questão militar com mais um apelo aos cidadãos para não confiar em alianças nem na
contratação de mercenários para defender a cidade, mas sim financiar uma força militar própria. Montevecchi
76
incorpora um elemento novo, isto é, a justiça. O vínculo entre força e justiça sobrepõe à ideia
de preservação do estado e tal preservação se submete a ideia de necessidade de armas, ou
seja, neste ponto, parece estar mais ou menos estabelecido conceitualmente a relação e a
aceitação da instituição de uma milícia, no caso específico de Maquiavel, a intervenção é mais
incisiva porque a justiça se dá pela força, ainda mais, pela força das armas.
Assim se lê:
E me lembro ter ouvido do Cardeal Francesco Soderini125
que, entre outros elogios
que se poderia fazer ao papa e ao duque, havia este: que são conhecedores da
ocasião e que sabem usá-la muito bem. Opinião que é comprovada pela experiência
das empresas conduzidas por eles conforme a oportunidade126
.
Este texto de 1502, Maquiavel termina abruptamente, sinal que poderia, quem sabe,
ser um escrito um pouco maior, com maiores detalhes. Porém, na lógica do raciocínio de
cunho aristotélico, Maquiavel indica que ambos, os atores políticos, “o pai e o filho” (Papa
Alexandre e o Duque Valentino) são artífices do uso da força, quando não da percepção direta
de vantagem por parte do Duque. A ocasião é o “lócus”, onde o ator político mede a força. E a
medida deve ser pensada no que se refere a dispensa de força como arma política.
Tal força, como se verá, não se trata apenas de um conjunto de ideias, pode até o ser
num primeiro momento, mas ela se materializa na força das boas armas, das espadas e das
armas de fogo [que é uma novidade para Maquiavel e para o séc. XVI], quiça de um bom
exército, que Florença sempre lutou para ter e não depender mais de exércitos mercenários ou
mistos.
Maquiavel quis ver os homens integrados no Estado puramente temporal, dando
espaço para o juízo sobre as prioridades do senso real das pessoas. Ridolfi, como já se
argumenta que o texto foi escrito para ajudar o Gonfaloniero Piero Soderini a convencer os florentinos a aprovar
um novo tributo sobre imóveis eclesiásticos. 125
Francesco Soderini (1453–1524) foi um diplomata e cardeal italiano. Foi nomeado embaixador de Florença
ante o Papa Alexandre VI em outubro de 1500. Neste momento o papa queria Cesar Bórgia, seu filho, como rei
da Romagna e restabelecer Piero de Medici em Florença. Em junho de 1502, deixou Florença, acompanhado
de Niccolò Machiavelli, como embaixador de Florença junto a Cesar Bórgia. Soderini morreu em maio de 1524.
Participou dos Conclaves: 1503 – eleição de Julio III, 1513 – eleição de Leão X, 1521-1522 – eleição de
Adriano VI e em 1523 – eleição de Clemente VII. Cf. CHACÓN, A. Vitae et res gestae Pontificum romanorum
et S.R..E. Cardinalium: ab initio nascentis Ecclesiae vsque ad Clementem IX, P.O.M. Roma: Tomus
Tertius, 1677. Cf. também CARDELLA, L. Memorie storiche de' cardinali della Santa Romana Chiesa.
Roma: Stamperia Pagliarini, 1793. 126
Nesta situação Maquiavel está se referindo ao senso de oportunidade. Tal senso estabelece uma disposição e
discernimento em relação ao puro acaso. A fortuna, a sorte, quando apreciada por este senso, é reconhecida por
Maquiavel no sentido em que, na citação que se segue, o papa Alexandre VI e seu filho, o Duque Valentino,
César Bórgia, agiam juntos. Força e armas eram projetos oportunos utilizados por estes atores políticos. É o
tempo em que se supera a mera crença na Providência Divina, pois política se faz com as mãos, de modo “nu e
cru”. A ação política tinha uma qualidade de senso oportuno da ocasião. Isso levava a ações de menor teor de
erro político. Cf. MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio
Kurt Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da
Administração, FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010, pp.
30. Cf. também MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo: Hedra, 2010, pp. 37.
77
enfatizou, o chama de “observador”. Em 1557, o papa Paulo IV condena o livro do Príncipe e
coloca-o sobre o Índex (COSTA, 1999, pp. 189-195). Sem bens ou categorias absolutas,
Maquiavel abre caminho para uma nova ciência. Ele é o Galileu da política127
.
Estes Scritti que examinamos antecipam, de certo modo, o vínculo que vai se
estabelecer depois nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio entre boa educação,
boas ordenações e a potência (PANCERA, 2010, pp. 105-106). Daí analisar os locais de
manifestação da força nos escritos posteriores a 1513, sobretudo no Príncipe, nos Discorsi e
na Arte da Guerra. Tal analise se caracterizará no que de fato se tornou ideia de força no
pensamento maquiaveliano.
Deveis, portanto, saber que são dois os gêneros de combate: um com as leis, outro
com a força (cf. cap. XII). O primeiro é próprio do homem, o segundo é próprio dos
animais. Mas porque o primeiro muitas vezes não basta, convém recorrer ao
segundo, portanto ao príncipe é necessário saber usar o animal e o homem
(MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 177).
Há dois pontos centrais em que o afastamento de Maquiavel da tradição humanista
fica mais evidente no que se refere à inflexão entre justiça e força e a moldura posterior da
concepção de republicanismo128
. Na visão de Cícero, seguida fielmente pelos humanistas
cívicos, as virtudes cardinais necessárias à realização do bem comum são a prudência, a
coragem, a temperança e a justiça129
. Conforme esclarece SKINNER, “a análise de Maquiavel
difere da de Cícero num ponto imensamente importante. Ele apaga da justiça, a qualidade que
Cícero, em seu De officiis, descrevera como o esplendor triunfal da virtude” (1996, pp. 207).
Essa alteração aparece de modo mais explícito no Príncipe, embora também seja
perceptível nos Discorsi. Na análise de Cícero, a justiça consiste em evitar a fraude e a
crueldade. Maquiavel não discorda dessa análise no que diz respeito ao conteúdo do conceito
127
O Renascimento foi um período de intensa renovação em muitos sentidos. Caracterizou-se por um movimento
intelectual baseado na recuperação dos valores e modelos da Antigüidade greco-romana, contrapondo-os à
tradição medieval ou adaptando-os a ela. O Renascimento referiu-se não apenas às artes plásticas, a arquitetura e
as letras, mas também à organização política e econômica da sociedade. 128
A busca da dignidade da pessoa humana é o fim da Justiça e, como muito bem afirmou Hegel, “a Justiça não
é um dom gratuito da natureza humana, ela precisa ser conquistada sempre porque ela é uma eterna procura”.
[...] Cícero, por sua vez, publicou em "De natura deorum, III, 15 que "justitia suum cuique distribuit" ("a Justiça
distribui a cada um o seu"). Na obra "Republica I, VI, 331", Platão cita Simonide de Céos, do Século V a.C.: "a
justiça é dar a cada um o que lhe é devido". Nas "Institutiones, livro I, titulo I de Justiniano, está assim
codificada a definição de justiça: "justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi" ("justiça
é a constante e permanente vontade de atribuir a cada um seu direito"). 129
Sobre as virtudes cardeais, pode-se ler em Cícero, que o “homem eloquente deve cultivar uma gama de
virtudes morais sem as quais sua oratória é vazia; em contrapartida, suas qualidades morais não têm utilidade
para a cidade se não forem acompanhadas de eloquência”. O par simulação/dissimulação é um dos atributos
constitutivos do príncipe retratado em Maquiavel. A arte da aparência, crucial no domínio da política, associa o
éthos do príncipe à persuasão dos demais integrantes do Estado, ou seja, o exercício do poder não é
unidirecional, mas fruto de uma relação que implica subordinação e convencimento (ADVERSE, 2009, pp. 126).
78
de justiça. O que ele nega é que o uso de expedientes fraudulentos ou cruéis seja sempre
incompatível com a realização do bem comum. Pelo contrário, há determinadas ocasiões130
em que tais expedientes são deveras eficazes para a defesa da cidade. Entrecruzam neste
momento, para contraste teórico, sobretudo na novidade humanista, a justiça, o bem comum e
a crueldade. Na guerra, por exemplo, a fraude é um método corriqueiro de combate, e em
situações que a liberdade da cidade se encontra ameaçada ou a estabilidade do Estado esteja
em risco, a crueldade não pode ser descartada como método de ação (SILVA, 2010, pp. 45-
46)131
. Maquiavel guia seus escritos primordialmente em vista da necessidade. É através dela
que deve-se delimitar as ações do príncipe.
Outro ponto – ainda mais importante do que o apresentado – é a demarcação do
distanciamento de Maquiavel e da tradição do republicanismo clássico referente ao papel dos
conflitos sociais na ordem republicana. Tanto os clássicos romanos quanto os humanistas
tendiam a considerar os “tumultos”132
e os conflitos internos à cidade como graves ameaças à
liberdade e à ordem pública. Ainda que esses autores considerassem muitas vezes a
necessidade da guerra para proteger a cidade de ameaças externas, a manutenção da paz
interna era vista como condição, ao mesmo tempo favorável e desfavorável para a
manutenção da liberdade e da persecução do bem comum. Porém, como revela claramente a
análise maquiaveliana das causas da liberdade desfrutada pela República romana, não 130
Por ocasião, Maquiavel entende que o príncipe deve agir. Para o Florentino, não há uma conduta a priori boa
ou a priori má. Ao encarar a política como uma técnica, o julgamento das ações do governante só pode se dar a
posteriori, em função de sua eficácia na prática, naquilo que se designa ocazione, ou seja, a conduta de
conquistar o poder, conservar o poder ou promover o bem coletivo deve ser um fato de atenção permanente para
quem governa. Assim sendo, não existem fins que justifiquem meios. Existem fins que devem ser perseguidos. A
leitura de mundo, a percepção da ocasião é o sinal virtù para ser o príncipe virtuoso. Nos Discorsi o tema da
ocasião aparece no Livro I, capítulos 9 [De como é preciso estar só para se ordenar uma república nova ou para
reformá-la inteiramente com ordenações diferentes das antigas] e 42 [Da facilidade de se corromperem os
homens], (MAQUIAVEL, 2007, pp. 40-43; 131). 131
"Entender de guerra é necessário ao príncipe para ter o respeito dos seus soldados e poder confiar neles. E ao
se relacionar com outros governos sem armas, apresenta-se então como submisso. Sendo assim é
desproporcional a diferença de poder entre os que governam com armas e os que governam sem elas. A guerra
deve ser cultivada mesmo em tempos de paz e com maior exercício que em tempos de guerra, tanto com ações
como com a mente. Com isso os soldados se manterão sempre em forma e prontos a combater; nunca ficarão
ociosos" (VIDAL, 2010, pp. 110). 132
Os conflitos e os tumultos para Maquiavel são tidos numa concepção de inevitabilidade. Diz-se isto porque
assim afirma AMES: “o conflito não está limitado à oposição interna à questão dos “humores” de grandes e
povo. Este é o ponto, talvez, mais visível, mas seria um equívoco reduzir tudo a esse confronto. Com efeito, além
da oposição dos “partidos” no interior do Estado, o conflito das paixões está igualmente na base da rivalidade
entre os indivíduos singulares, assim como da guerra entre os Estados. Assim sendo, é preciso ter presentes
alguns pontos importantes. Por um lado, o conflito permanece irresolvido, o que significa dizer que, em vez de a
política ser a neutralização dele, o máximo que ela consegue é ser sua regulação. Por outro lado, uma vez que o
conflito não se esgota intramuros, mas se manifesta também na expansão dos Estados, há uma ligação íntima
entre política e guerra. Por fim, do conflito (em quaisquer de suas três formas – como rivalidade de paixões entre
singulares; como oposição dos humores de partidos e como guerra) não é possível determinar a priori sua
natureza – construtiva ou destrutiva –, mas apenas a partir das circunstâncias concretas nas quais se manifesta”.
Cf. AMES, J. L. "Lei ou violência: a legitimação política em Maquiavel". In: Trans/Form/Ação, Marília, v.34,
n.1, p.21-42, 2011, pp. 23.
79
somente os conflitos sociais internos não causaram prejuízos à ordem republicana, como
consistiram na principal causa do aperfeiçoamento de suas instituições (SILVA, 2010, pp. 45-
46).
É com essa convicção que Maquiavel vai “contra a opinião de muitos de que Roma
foi uma república tumultuária e tão cheia de confusão que, se a boa fortuna e a virtù militar
não tivessem suprido a seus defeitos, ela teria sido inferior a qualquer outra república”
(SKINNER, 2010, pp. 210-215). Segue-se então a surpreendente tese segundo a qual quem
condena os tumultos entre os nobres e a plebe parece censurar as coisas que foram a causa
primeira da liberdade de Roma. Para Maquiavel, não apenas em Roma, mas em toda república
há dois humores diferentes, o do povo, e o dos grandes, e todas as leis que se fazem em favor
da liberdade nascem da desunião deles (SILVA, 2010, pp. 45-46).
Segue a análise do tema da força na obra do Príncipe. A primeira ideia ligada à força
que surge no Príncipe133
encontra-se no capítulo I, sobre os vários tipos de Principados, de
Estados, e Maquiavel vincula a ideia, o conceito de força ao Estado. Define-o como estado
forte, o francês (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 31). Diz que a conquista, para além da
hereditariedade, se dá com virtú, um pouco de fortuna, e, sobretudo, com armas próprias, ou
seja, com a escolha da força. Assim diante da fundação e conservação do Estado é preciso
manifestar a força (MAQUIAVEL, 2010[2], p. 30-31).
O segundo tema do Príncipe é pensar a política em duas versões: a da técnica e da
guerra. A política não é invenção, ela deve saber fazer a leitura do tempo. Maquiavel
estabelece o fim do ator político que empurra as coisas com a “barriga, o príncipe bonachão”.
Política se faz com a necessidade da força, da violência, como se viu na leitura de Lefort. A
política não é mera idealização, ela é realista. Por isso no capítulo II, Maquiavel chama
atenção para o cuidado em relação às forças excepcionais, extraordinárias e excessivas. Há
uma ambivalência, por conta da fortuna, da lógica da força, porque ora ela pode estar ao
133
De um modo geral, os vários autores destacam uma leitura global e uma preocupação de Maquiavel no
decorrer da obra. Por exemplo, dos capítulos I a XI temos a questão da organização militar do Estado. Aqui o
tema da força surge amplamente, pois a materialização desta lógica se dá no uso das boas armas e do bom
exército. Maquiavel desde os relatórios indica um exército patriota, e o fim das contratações de exércitos mistos
ou mercenários. Dos capítulos XII ao XIV trata-se da conduta do príncipe. Há várias recomendações e exemplos
que o florentino apresenta ao leitor. Sem forçar encontramos a lógica que apresentamos como tema principal nas
várias indicações de Maquiavel nestes capítulos. Um pouco mais adiante, entre os capítulos XV a XLX,
Maquiavel trata de assuntos de especial interesse para o príncipe. E por fim, nos capítulos XX a XXV,
Maquiavel retoma a sua principal preocupação - a unificação da Itália, por isso desenvolve um panorama italiano
de seu tempo. No fim da obra, capítulo XXVI, ele faz uma exortação para tomar a Itália das mãos dos bárbaros.
80
nosso favor e ora em oposição. Assim, no que se refere aos principados hereditários, ele
ressalta a adversidade da fortuna134
(MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 33-34).
No Cap. III, pode-se encontrar uma explícita demonstração da imposição da força.
Maquiavel relata a organização da força, da força presente, do medir a força com outros. A
força produz medo, e o aumento deste é ascensão daquela. Ressalta muito a ideia de armas, de
gente armada, de exército bem formado com bons soldados e de evitar a guerra devido a
desvantagem, mas não a nega contudo, se, necessária. Isso, porque, como se demonstrou a
pouco, a guerra movimenta a lógica da política num estado forte. Cabe ainda neste capítulo a
menção da expressão: "aproveitando-se da ocasião da rebelião" cria-se fortes elos e
fundamentos (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 34-55). Especificamente sobre a forca se lê:
Há somente que tomar cuidado para que eles [outras Províncias, inimigos] não
ganhem muita força e muita autoridade, pois facilmente pode, com sua força e com
o favor deles, diminuir os que são poderosos, para manter o controle social daquela
província, e quem não governa bem esta parte, perderá rapidamente aquilo que
conquistou, e enquanto a manter, sofrerá infinitas dificuldades e aborrecimentos
(MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 43).
Em resumo, o texto do capítulo III, pode se ter o seguinte esquema: o poder é criado
com astúcia ou com força. A astúcia no poder é moderada pela oportunidade e pela qualidade
da virtù e da boa fortuna. Não obstante, se pensarmos na perspectiva da força, ela se firma
com violência e com dominação. Não se conquista e nem se mantém o poder sem astúcia ou
sem força, ou com a mistura dos disjuntivos. São estas condições que Maquiavel, encerrando
o capítulo ressalta como situações basilares de manutenção ou ruína de um principado ou
estado (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 55).
No Cap. IV, Maquiavel estabelece que a força é real, não se tratando apenas de um
suposto ideário. Estabelece-se com a força uma ordem social e de seguimento. Maquiavel
aconselha os Príncipes que é "preciso confiar mais na própria força do que na desordem"
(MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 59). Isto porque é a força que faz a glória do Estado e do
individuo se manifestar claramente. A força, como já se disse, é uma qualidade da virtù. Ela
se manifesta particularmente na habilidade do ator político, mas também na conduta de um
povo (é a chamada virtù civil). Por isso, que no cap. XII, Maquiavel afirma que tanto a
crueldade como a clemência são manifestações da força. A crueldade vem manifestada na
134
BENEVENUTO afirma que no capítulo vigésimo nono do Livro II dos Discorsi, Maquiavel parece dar
sequencia àquilo que já havia afirmado no capítulo XXV de sua obra O Príncipe: “os homens podem
perfeitamente acompanhar a „fortuna‟, mas não se podem opor a ela, que lhes permite urdir uma trama sem
romper um só fio”. Cf. BENEVENUTO, F. R. S. ‗Virtù‘ e valores no pensamento de Maquiavel. –
Dissertação de mestrado. Departamento de Filosofia da UFMG, Belo Horizonte, 2003, pp.70ss.
81
violência que educa para a obediência e servilismo, enquanto que a clemência demonstra
quanto o conquistador é piedoso ao deixar viver por motivos políticos alguns conquistados em
certa guerra. Ainda no IV capitulo, Maquiavel enfatiza a duração da força. Portanto a
principal referência que o Príncipe nos dá em relação à doutrina da força é o equilíbrio e a
necessidade da conservação das duas naturezas, humana e animal (mezzo uomo e mezzo bestia
– Cf. MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 56-63).
No Capítulo V, Maquiavel une a força à amizade. No cap. XV, segundo Ménissier, o
príncipe que chegar a frente do Estado precisa governar os seus súditos tendo alguns amigos.
O poder gera muitos inimigos, por isso que amigos na condução do principado e do poder
efetivo se torna muito importante. Ménissier diz que "fazer política é, portanto, fazer
inimigos. O inimigo é o produto natural da política entendida como conquista" (2012, p. 9).
Quanto às amizades, recomenda Maquiavel, o discernimento à qualidade da amizade. O poder
é um grande hálibe de sedução. No capitulo XXI do Príncipe, Maquiavel diz que o príncipe
deve estar pronto para discernir entre o verdadeiro amigo e o verdadeiro inimigo. Em suma,
enquanto Aristóteles subordinava a ideia de philia à utilidade mútua que visa o uso das
virtudes, Maquiavel atribui à arte política a tarefa fundamental de consolidar as relações entre
os homens, cujos desejos e interesses levam naturalmente ao antagonismo (MÉNISSIER,
2012, p. 10; MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 65-67).
No Capítulo VI, Maquiavel une a ideia de força a ideia de ocasião. A ocasião nasce
das coisas novas, ou seja, elas são provenientes de uma firme experiência (MAQUIAVEL,
2010[2], pp. 70-73). Há um novo disjuntivo neste capitulo: rezar ou forçar? Maquiavel está
pensando no frei Jerônimo Savonarola, que se arruinou existencialmente, não foi ouvido. É o
profeta desarmado. O pressuposto é a ideia de que "todos os profetas armados venceram suas
batalhas, pois se apoiaram na força efetiva, e não na eloquência das palavras. Não obstante, os
profetas desarmados, tais como Savonarola, foram arruinados (MAQUIAVEL, 2010[2], p.
75), pois não tiveram nenhuma chance nesta moldagem da política sob o tumulto. Nos
Discorsi, Maquiavel, ao tratar de modelos de príncipes, de governantes, sobretudo da religião
como “cimento de coesão social”, dirá que os cabeças e ordenadores de religião, os
fundadores de repúblicas ou reinos, os comandantes de exército e os homens de letra devem
ser louvados (MAQUIAVEL, 2007, pp. 44).
Maquiavel ao se deparar com a obra de Tito Lívio, cita Rômulo, que foi um rei feroz
e belicoso; Numa Pompílio, rei tranquilo e religioso e Túlio Hostílio, pouco mais semelhante
a Rômulo, só que mais amante da guerra do que da paz (MAQUIAVEL, 2007, p.77). Nos
primórdios de Roma, para se efetuar a ordenação da vida civil, foi necessário um rei como
82
Rômulo. E de tempos em tempos, o modo de Rômulo, a ferocidade e a belicosidade deveriam
ressurgir para não tornar Roma uma cidade frágil, efeminada e presa fácil (MAQUIAVEL,
2007, pp. 77). Elogia Rômulo como um governante de "grande virtú" (MAQUIAVEL, 2007,
pp. 78). Quem se assemelha, por exemplo, a Numa pode manter ou não o estado, é
indeterminado, é fortuna, porém, aquele que se assemelha a Rômulo manterá o estado de
qualquer modo, pois está investido de "prudência e de armas", e pode ser surpreendido
somente com algum tipo de "força extraordinária"135
(MAQUIAVEL, 2007, pp. 78).
Voltando ao Príncipe, no capítulo VII, Maquiavel demonstra as conquistas pelas
armas, ou seja, pela força. Ressalta-se no capítulo a figura de César Bórgia, que tendo
conquistado tanta força e tanta reputação136
que por si mesmo ter-se-ia mantido e não mais
seria dependente da fortuna dos outros e da força dos outros, mas de sua potência e de sua
virtú (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 91). Há também neste capítulo algumas reflexões
disjuntivas que merecem destaque, tais como: se vence ou pela força ou pela fraude. Na ideia
de amigos e inimigos, ocorre também o disjuntivo do ser amado e ser temido pelo povo,
seguido e reverenciado pelos soldados, tendo como ponto culminante a ideia de ser severo ou
ingrato, magnânimo ou liberal dependendo da cautela e das condutas que beneficiem o
resultado da política efetiva (MAQUIAVEL, 2010[2], p. 94-95)137
.
No Capítulo VIII se destaca a ideia de que não se pode atribuir à fortuna ou à virtù
aquilo que se consegue sem uma ou sem outra. Maquiavel está enfatizando a questão do
planejamento dentro do jogo da política (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 99-101). No capítulo
IX se enfatiza os dois humores: mandar ou obedecer, bem como os três efeitos que decorrem
dos humores: o principado, a liberdade e a licença (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 109). Neste
capitulo, Maquiavel destaca superficialmente a ideia de favorecimentos aos ordenamentos
sociais. Esta é uma política nova, que fundamenta o bom andamento da hierarquização social
(MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 116-118). Já no capítulo X, Maquiavel trata do modo de
conceber as forças dos principados. Surge num primeiro instante as ideias de abundância de
homens, de dinheiro em vista da formação de um exército efetivo. Outra ideia é a questão da
135
O termo extraordinário para Maquiavel tem relevância porque designa o que se opõe à finalidade normal da
política, bem como a gravidade extrema da situcionalidade. Refere-se ainda ao recurso e aos meios que fogem ao
que é comum (aos "modos ordinários". Tais meios devem ser compreendidos como os que são da ordem da
violência, e que costumam ser proscritos pela política porque sua finalidade é fazer o Estado durar
(MAQUIAVEL, 2007, Livro I, 34, pp. 106-109). Cf. MÉNISSIER, T. Vocabulário de Maquiavel. Tradução de
Cláudia Berliner, Rev. Técnica de Patrícia Fontoura Aranovich, São Paulo, 2012, pp.22. 136
Como Maquiavel dispõe em italiano: "acquistava tante forze e tanta reputazione che per sé stesso si sarebbe
retto e non sare' piú dependuto dalla fortuna e forza di altri, ma dalla potenza e virtú sua" (2010[2], pp. 90). 137
Para Lefort (1972, pp. 453), o Príncipe nos coloca questões como “o que é o poder, a divisão do Estado e da
sociedade, a divisão de classes e os desejos das classes”. Para responder tais questões, devemos observar a obra
que se segue ao Príncipe, os Discorsi, que trata, entre outras coisas, dos temas da República e da liberdade.
83
plebe que deve estar sempre bem alimentada. Isso causa um contentamento no povo. Povo
contente, povo solidário. Povo menos crítico, pois a cidade estando forte, não cria espaço para
críticas internas, tumultos ad intra (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 119-123).
No Capítulo XI, Maquiavel trata dos "principados eclesiásticos". Segundo o
florentino, estes estados podem ser conquistados por mérito ou pela fortuna (nos dois
sentidos: sorte e dinheiro), porém, nem uma nem a outra são necessárias para conservá-las.
Isto porque são sustentados por antigos costumes religiosos (e a religião é cimento de coesão
social). Há, portanto, o anúncio da força da Igreja, sobretudo da força da religião, como
cimento de coesão social. Maquiavel ainda relata sobre a importância do Papa Alexandre VI,
que “dentre todos os que sentaram no trono de Pedro, melhor demonstrou o quanto um papa
pode dominar pelo dinheiro e pela força". Nem mesmo o papa Júlio II, o cavaleiro e
guerreiro, pode o subjugar em fama de tramas políticas e ordenações para a guerra.
No Capítulo XII, a base principal de todos os Estados, sejam novos, antigos ou
mistos, são boas leis e bons exércitos138
. E como não pode haver boas leis onde não haja bons
soldados, Maquiavel reconhece a necessidade das forças armadas. As tropas com que um
príncipe defende seus domínios podem ser próprias, mercenárias, auxiliares ou mistas. As
mercenárias e auxiliares são prejudiciais e perigosas. O príncipe que defende seus domínios
com o apoio de mercenários nunca terá uma posição firme ou segura, pois são soldados
desunidos, ambiciosos, sem disciplina e infiéis, ousados entre amigos, covardes perante os
inimigos; não temem a Deus e nem são leais aos homens. O motivo único e a afeição que os
faz lutar é um salário modesto, que não é suficiente para fazê-los morrer pelo soberano. Uma
138
No Príncipe, capítulo XII, que trata de "Quantos são os gêneros de milícias e das milícias mercenárias",
Maquiavel descreve que os bons fundamentos, tal qual as boas leis e as boas armas, que o príncipe deve ter e
manter, para que não se arruíne a si próprio e ao seu estado (XIII, 2-3) está na sua prudência de provir "armas e
exército próprios" (XII, 11-12). As armas apresentadas no capítulo são variadas. São elas: as próprias, as
mercenárias e as auxiliares ou mistas. De todas elas o aceno mais virtuoso está nas armas próprias (XII,4). A
Itália por longos anos ficou a mercê das armas mercenárias, até mesmo quando os padres estiveram no comando,
deram aos forasteiros encargo de proteção, e isso foi devastador. Nas mãos de homens sem virtú suficiente a
Itália foi "devastada por Carlos, saqueada por Luís, subjugada por Fernando e vituperada pelos suíços" (Cf. XII,
24-31). As armas mercenárias e auxiliares são inúteis, e em última instância não dão segurança ao Estado. Tais
armamentos são fundados, tão somente, no "soldo", no dinheiro (XII, 5-7), que nos Discorsi pode se ler: "o
dinheiro não é o nervo da guerra" (MAQUIAVEL, Livro II, 10, 2007, pp. 213). E Maquiavel faz ainda um
comentário - "é por isso que a Itália está em ruína" (XII, 8-9), por confiar em tropas mercenárias. Maquiavel fala
também do capitão mercenário, que tendo ou não virtù pode se arruinar e arruinar aos que o contrataram (XII,
10). Fica claro até aqui que a primeira coisa que um "príncipe virtuoso" deve pensar é a guerra. Nos Discorsi, ao
pensar e refletir sobre a religião romana, Maquiavel afirma que depois dos "fundadores de religião", os
comandantes de exército tem seu mérito nas articulações do estado. Eles também devem possuir virtù para
comandar o exército e o povo, ao ponto que o próprio Maquiavel prefere teoricamente um grupo de soldados
mais enfraquecidos do que um comandante sem virtù, um comandante fraco (MAQUIAVEL, 2007, pp. 44. Livro
III, 13). Relendo a histórias das repúblicas e dos homens armados, Maquiavel chama a atenção para o
empreendimento da guerra com armas próprias, tendo nos gentis homens e na plebe armada, de maneira muito
virtuosa, a sagacidade com que estes dispuseram ações políticas na Itália Renascentista (XII, 13-23).
84
república que não tenha exército próprio se submeterá mais facilmente ao domínio de um dos
seus cidadãos do que uma república com armas mercenárias (MAQUIAVEL 2010[2], pp.
131-141).
No Capítulo XIII, Maquiavel trabalha com a ideia de forças auxiliares, pedidas a um
vizinho poderoso como ajuda para a defesa do Estado. Como se demonstrou anteriormente,
forças auxiliares são tão inúteis quanto às mercenárias. Tropas auxiliares podem ser em si
mesmas eficazes, mas são sempre perigosas, pois podem sair vencedoras ou aprisionadas nas
batalhas ou de a àqueles que as utilizam. Um príncipe prudente, por conseguinte, evitará
sempre tais milícias, recorrendo a seus próprios soldados; preferirá ser derrotado c/ suas
próprias tropas a vencer c/ tropas alheias. Em suma, as armas alheias nos sobrecarregam e
limitam, quando ñ falham (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 143-151).
No Capítulo XIV, Maquiavel ele trabalha a ideia de que os príncipes, por
conseguinte, ñ deveriam ter outro objetivo ou pensamento além da guerra, suas leis e sua
disciplina, nem estudar qualquer outro assunto; pois esta é a única arte q se espera de quem
comanda. Os príncipes quando se interessam mais pelas coisas amenas do q pelas armas,
perdem seus domínios. Entre outros males, estar desarmado significa perder a consideração.
No Capítulo XV temos a seguinte ideia, os homens e os príncipes em primazia, são
louvados devido à pratica constante da bondade. A bondade e a leitura de tempo desta ou
daquela necessidade se esquiva a ideia de necessariedade. Contudo, não deverá tais homens se
importarem com a prática escandalosa daqueles vícios sem os quais seria difícil salvar o
Estado. Certas qualidade que parecem virtudes levam à ruína, e outras que parecem vícios
trazem como resultado o aumento da segurança e do bem-estar. Maquiavel aponta para uma
valoração das coisas e das atitudes dependendo do contexto. É a ideia que sempre se ouve do
Prof. Valverde sobre Maquiavel, ou seja, na perspectiva maquiaveliana [ipsis literis] "o bem
se faz a conta gotas... o mal de uma só vez".
No Capítulo XVI, Maquiavel define que o príncipe, para ser prudente, não deve se
incomodar que o chamem de miserável. De fato, a liberalidade é muito necessária para o
príncipe que marcha à frente, com pés firmes (Makários - bem-aventurado) do seu exército e
vive do espírito da guerra, do roubo e de resgates, pilhando a riqueza alheia, sem a qual
deixaria de ser seguido pelas tropas. Ora, dentre as coisas que o príncipe precisa evitar, o mais
importante é o ser desprezado ou odiado; e a liberalidade conduzirá a uma ou outra dessas
condições.
No Capítulo XVII, Maquiavel propõe a reflexão aos príncipes se é preferível ser
amado ou temido? Está ele na questão analisando o perfil e o modelo do novo príncipe. Crê
85
que todos os príncipes devem preferir ser considerados clementes, e não cruéis. O príncipe,
não deve se incomodar com a sua de líder cruel, isso se seu propósito é manter o povo unido e
leal a si. Apesar de o tumulto ser preferido a paz, o ideal é a demonstração de benevolência,
mesmo que em certas situações, como fizera César Bórgia e seu pai, o Papa Alexandre,
fossem impiedosos e cruéis com quem lhes foram intransigentes. Porém, o ideal é o príncipe
ser amado e temido. A opção mais engenhosa é ser temido, e fazer-se temido, e mesmo que
não ganhe o amor dos súditos, pelo menos evite seu ódio ou sua intempestividade
(MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 169-175).
No Capítulo XVIII, Maquiavel nos apresenta a diferenciação de dois modos de se
lutar em vista de algo, o modo dos homens e o dos animais. Segundo o autor, o primeiro se
caracterizaria pela atenção às leis, criações humanas regulatórias, enquanto o segundo, pelo
uso da força. No texto se afirma “como o primeiro modo [de ação, as leis] muitas vezes não é
suficiente, convém recorrer ao segundo [o uso da força]”. Daí decorre a alusão do autor à
figura do leão e à da raposa: deve o governante, quando não atingir sucesso através do uso
leal da força (como o faz o nobre leão), se usar do ardil e da astúcia, como o faz a raposa para
contornar sua carência do atributo físico. Possuidor das virtudes dos dois animais, deve o
príncipe saber conciliar as duas naturezas, em vista do contexto e do caso que a situação
exigir139
.
No longo Capítulo XIX, (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 185-207), ele delineia como o
príncipe deve fazer para evitar o desprezo e o ódio de seus súditos e citadinos. A força por
estar atrelada as qualidades do ator político, a priori não tende a levar os que estão em volta a
odiá-lo. Porém, como no caso do Duque César Bórgia, que envolveu assassinatos, e na
história dos textos e da interpretação de Maquiavel, do seu olhar sobre a ação política, houve
muitas críticas e argumentos distorcidos sobre o desprezo e até mesmo o ódio. Mas para
Maquiavel, sobretudo no capítulo, o que mais contribuirá para fazer um príncipe odiado é sua
conduta, ou seja, a questão de usurpação dos bens e das mulheres dos súditos. Os príncipes
precisam se acautelar contra duas coisas: uma interna – seus súditos -; a outra externa – as
potências estrangeiras. Os bens privados e as mulheres adquiriram “sacramentalidade” no
ordenamento político. Portanto, se um príncipe possui a estima do povo é impossível que
alguém cometa a temeridade de conspirar contra ele, mas isso dependerá de seu
procedimento, de suas condutas, de sua liderança, porque não de sua virtù acumulada. Já no
139
CORTINA, A. Leitura como processo de compreensão e de interpretação. "O Príncipe" e seus leitores.
Tese de Doutorado em Letras - Área de Semiótica e Lingüística Geral. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, 1994.
86
capítulo XXI, Maquiavel se debruça a demonstrar os motivadores para que um príncipe seja,
de fato, estimado. Diz o florentino que nada faz com que um príncipe seja mais estimado do
que os grandes empreendimentos e os exemplos que possa dar, sobretudo algum exemplo
notável da sua grandeza no campo da admiração interna, como o que se conta a respeito de
messer Barnabé de Milão. Acima de tudo, um príncipe deve procurar em todas as suas ações
conquistar fama de grandeza e excelência, assim como agir enquanto verdadeiro amigo ou
inimigo declarado. O príncipe deve sempre estar posicionado, a política deve fugir sempre da
neutralidade, ela é o pior dos defeitos de um ator político (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 221-
229).
A força é meditada no Capítulo XX do Príncipe no sentido de que Maquiavel
propõe a reflexão sobre a utilidade da construção de fortalezas e de outras medidas de
prudência no governo do principado ou estado. Nos relatórios ficou claro a importância dos
“bastiões”, e nos Discorsi, Maquiavel vai elogiar os príncipes que se utilizam dos
desfiladeiros como local de defesa do exército. Jamais aconteceu de um príncipe que
conquistasse o poder, desarmasse seus súditos. Ao contrário, estando eles desarmados, o
príncipe sempre lhes dá armas. Boas leis e boas armas140
são o conjunto adjacente da teoria da
força. Os braços armados pertencerão ao monarca, os suspeitos se tornarão leais e os que já
eram fiéis manterão sua fidelidade, e de simples súditos passarão a ser partidários do soberano
(MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 208-219).
No Capítulo XXII, Maquiavel fala dos ministros que cercam o príncipe. Afirma que
quando estes são eficientes e fiéis, pode-se sempre considerar o príncipe sábio, pois foi capaz
de reconhecer a capacidade e de manter a fidelidade. Mas quando a situação é oposta, pode-se
sempre fazer dele mau juízo, porque seu erro fundamental terá sido cometido ao escolher os
assessores. Quanto a estes há três tipos: (a) os que compreendem as coisas por si só, (b) os
que compreendem as coisas demonstradas por outros e os (c) que nada consegue discernir,
nem só nem com a ajuda dos outros. Os ministros devem pensar no príncipe e no principado.
Já o príncipe por outro lado, para assegurar a fidelidade do ministro, deve pensar nele,
honrando-o (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 231-233). Em ato contínuo na obra, Maquiavel, no
capítulo XXIII demonstra o modo de como escapar dos aduladores. Diz que não há outra
forma de se defender contra adulações do que fazer as pessoas compreenderem que não há
140
As boas leis indicam a contenção dos homens no pensamento maquiaveliano. Trata-se de um indicativo de
respeito. O seguimento consciente das leis sugerem uma sociedade em harmonia. A partir do momento em que
se institui as boas leis, na visão de Maquiavel, o príncipe evita que os homens, ao procurarem satisfazer seus
desejos individuais, prejudiquem a ordem interna do principado [trata-se da questão dos humores],
(MAQUIAVEL, Livro I, capítulo 3, pp. 20). Não há política sem leis, tanto que, complementa Maquiavel: “[...] a
fome e a pobreza tornam os homens industriosos, mas as leis os tornam bons” (MAQUIAVEL, 2007, pp.20).
87
ofensa em falar a verdade; pois quando todos podem falar a verdade a alguém, perdem-lhe o
respeito. O príncipe prudente adotará um meio termo, pois escolherá como conselheiros
homens sábios, e dando-lhes inteira liberdade para falar a verdade, mas só quando forem
interrogados e requisitados. É a liberdade e obediência, porém, somente com diálogo
(MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 234-239).
No Capítulo XXIV, Maquiavel assevera, segundo o subtexto de Lefort, a
importância da teoria da força. Ou seja, ele evoca as razões pelas quais os príncipes da Itália
perderam seus domínios. O defeito comum encontrado por Maquiavel é o desarmamento. Ou
ainda pior, o uso constante de milícias externas, mistas ou mercenárias, que levaram a Itália à
ruína. A teoria da força supõe, como encontramos nos relatórios, a ideia de um exército
patriota (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 241-243).
No Capítulo XXV, Maquiavel trata da fortuna, sobretudo quando ela demonstra seu
poder quando a virtù não é ordenada para resisti-la (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 245). Contra
a impetuosidade da má fortuna, Maquiavel chama a atenção para a prudência, como um
contrassenso da fortuna (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 249). Sobre a prudência pode-se
acrescentar
sempre atento à verità effetualle della cosa, Maquiavel – difere a prudência do “agir
conforme a verdade das coisas” de Tomás de Aquino, enquanto uma verdade
inflexível, evidente e natural, porque associada à sinderesis141
. A verità effetualle
maquiaveliana é provisória, circunscrita e retórica. Como nota Eugene Garver, “agir
de acordo com princípios garante a retidão das ações numa ética dos princípios;
alcançar resultados bem sucedidos justifica a retidão numa ética das
consequências”142
.
No último Capítulo, XXVI, Maquiavel sonha com uma Itália unificada, livre dos
bárbaros e para tanto diz que devemos fazer "a nossa parte". Parte de um pressuposto
agostiniano, onde se encontra a ideia de que "Deus não deseja fazer tudo, para não tirar nosso
livre arbítrio e a parte daquela glória que nos cabe" (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 255). O
141
A ideia de sinderesi ilumina a razão e a vontade e se relaciona com os hábitos dos atos inatos. Pode-se dizer
ainda que “la sindéresis, también llamada por Tomás de Aquino razón natural, es cognoscitiva: un hábito innato
por medio del cual la persona humana conoce y regula su naturaleza humana, y en especial, su razón (tanto
teórica como práctica) y su voluntad, y está abierta a éstas facultades, tanto en su estado nativo como activadas.
La sindéresis se conoce por medio del hábito de sabiduría, y ambos dependen del intelecto agente. [...] Para
Tomás de Aquino la sindéresis es, sin duda, un hábito: “synderesis est habitus”. Y un hábito, como se ha
indicado, cognoscitivo, pues lo propio de él es juzgar". De modo que no es un acto, una operación inmanente de
la razón. Pero tampoco es una potencia: “la sindéresis se distingue de las demás potencias, pero no como diversa
por la sustancia de la potencia, sino por el hábito”. Tampoco, claro está, es una virtud. La siguiente cuestión es
saber de qué tipo de hábito se trata. La respuesta tomista tampoco deja lugar a dudas: es un hábito innato: “la
sindéresis... es en cierto modo innato a nuestra mente”. Cf. CROWE, M.B. “The term synderesis and the
scholastics”, en Irish Theological Quarterly, 1956, pp. 151-164. 142
GARVER, E. Machiavelli and the History of Prudence. Madison: University of Wisconsin Press, 1987,
pp.16.
88
teorética se encaminha para a prática efetiva. Ele vê a Itália mais escrava do que os hebreus,
mais serva do que os persas, mais dispersa dos que os atenienses, enfim, está sem chefe, sem
ordem, abatida, espoliada, dilacerada e invadida (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 253). O texto
do Príncipe é concluído com um verso de Petrarca, e assim o fazemos também
"Virtù contra furor. Tomará as armas, e que seja breve o combate, que o antigo valor
nos corações italianos não está morto"143
(MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 261).
Passemos à análise do conceito de força no livro dos Discorsi. Nesta obra, com
várias entradas temáticas, sobretudo a que se fará na tentativa da amarração da ideia de força
com a de liberdade, que é mais notada na obra, encontra-se Maquiavel defendendo a liberdade
cívica e o republicanismo aos moldes da antiga Roma. É preciso reordenar sempre os
acontecimentos da cidade, a política nos Discorsi não pode ficar estática, sobretudo porque é
na dinamicidade dos tumultos e da guerra que se faz a reordenação efetiva da lógica da força e
do bem estar das coisas públicas.
Os Discorsi estão divididos em três livros. No Primeiro Livro encontramos um
estudo detalhado dos diversos modos utilizados para se fundar os estados, as diversas
modalidades de governo e a organização dos mesmos. No Segundo Livro, Maquiavel analisa
como se engrandecem os estados e como se conquistam novos estados. No Terceiro Livro,
Maquiavel reflete sobre como acontece à decadência dos estados. Neste sentido a ideia de
força está atrelada, num âmbito mais amplo, no seio da obra ao que se refere a fundação, os
modelos, o engrandecimento, a conquista, a manutenção e a decadência dos estados e das
repúblicas. Entretanto, afirma Escorel, não devemos crer que esses temas estejam assim
didaticamente expostos nos Discorsi, ao contrário, “seria mesmo difícil determinar com rigor
o tema central da obra, escrita evidentemente ao sabor das leituras e das preocupações de
momento do autor, que esteve longe de ser um pensador temático” (1984, pp. 25).
De qualquer forma, por mais que Maquiavel faça grandes digressões, jamais perde
de vista o seu foco: a fonte da sabedoria se encontra na República romana. Lefort ao comentar
a obra, afirma que “a audácia das fórmulas sugere [...] que os Discorsi são aos olhos do seu
autor a obra da fundação, da qual o Príncipe foi apenas uma primeira tentativa de descoberta”
(1972, pp. 455).
Assim sendo, logo de entrada, no livro I, encontra-se a ideia de locais de
manifestação da força144
. Estes locais são postulados institucionais que produzem a coesão
143
Petrarca dixe: "Virtù contra a furore... prenderá l'armi, e fia combatter corto, che l'antico valore nelli italici
cor non è ancor morto".
89
dos homens em prol da república, da unidade estatal. São eles para Maquiavel: a religião, o
exército e a unidade social dos homens em si, (sobretudo no capítulo 57, do Livro I). De
modo que unido o povo é forte, e isolados, os indivíduos são fracos145
. A unidade física e de
ideias do povo é um elemento chave na compreensão da força nos Discorsi. A força, portanto,
é sinal de deliberação da comunidade. Quando a deliberação é ambígua, é lenta, então é fraca
e prejudicial. Na questão individual, a força se manifesta em homens de virtú – homens de
caráter forte, que anteveem os problemas e fazem o cálculo político (Livro III, cap. 31). No
próprio Livro III, o grande inimigo de qualquer tipo de manifestação de força, é segundo
Maquiavel, são as "conspirações" (Livro III, cap. 6, onde se afirma delongadamente que isto
derruba homens e a comunidade).
Maquiavel relata na abertura do Discorsi a sua intenção de escrever baseando-se na
longa prática de aprendizado, bem como nas contínuas lições tiradas das coisas do mundo
(MAQUIAVEL, 2007, pp. 3). Na abertura do Livro I, Maquiavel delibera sobre a natureza
humana, já referida neste capítulo, sob o aporte do artigo de Newton Bignotto, com a ideia de
antropologia negativa, ou seja, natureza invejosa/egoísta dos homens. A força que
pesquisamos é uma qualidade da antiga virtù romana denominada de cívica, pois enquadra os
homens numa vivencia comum em vista de um bem para todos. Por isso que se disse há pouco
que os homens unidos são fortes. E nas entrelinhas do texto que corre nos capítulos iniciais do
Livro I, e nas variações disjuntivas de caráter aristotélico que Maquiavel escreve, percebe-se a
ideia de que senão houver a virtù acumulada a fortuna destrói as amarrações e ordenações
sociais (MAQUIAVEL, 2007, pp. 9).
A questão da liberdade, um tema saliente dos Discorsi, sobrepõem-se as questões
práticas, de modo que Maquiavel analisa as relações de poder ao interno da sociedade, ou
seja, afirma que os homens não se contentam em viver com o que é seu e querem sempre
mandar nos outros homens (MAQUIAVEL, 2007, pp. 10).
No Livro II, capítulo 3 dos Discorsi reaparece o discurso da força relativo ao
relatório da Reconquista de Pisa -1499146
, onde Maquiavel trata de Roma como uma cidade
144
MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. São Paulo, Martins Fontes, 2007. 145
A plebe, unida, é forte, dispersa, é fraca (MAQUIAVEL, I, 57, pp. 165). Ideia recorrente da obra de TITO
LIVIO, V, 50, VI, 4. E acrescenta Maquiavel que a multidão é mais sábia e constante que um príncipe (op. cit ,
pp. 166). 146
Maquiavel faz referência ao contexto do "Relatório da Reconquista de Pisa" também no Livro I, 39, em que
se lê: "a cidade de Florença, perdendo parte de seu império depois de 1494 (época da invasão de Carlos VIII da
França), com as cidades de Pisa e outras, precisou travar guerra contra aqueles que a ocupavam. E com quem as
ocupava era forte, grandes eram os gastos com a guerra, sem nenhum retorno, dos grandes gastos resultavam
grandes impostos, dos impostos, infinitos lamentos do povo, e como aquela guerra era administrada pela
magistratura de dez cidadãos, que se chamavam os Dez da Guerra, o povo [l'universale] começou a sentir-lhe
90
que arruína as cidades circunvizinhas, admitindo estrangeiros em suas honras. Evitando a
ruína, Roma e as novas repúblicas ensinam a forma de conquistar. A força da cidade está no
quantitativo de citadinos, de habitantes. Povo forte é povo unido. Novamente reaparece o
disjuntivo – amor ou força, entendendo por amor que os estrangeiros desejam morar na
cidade, e por força se eles forem destruídos. Maquiavel ainda ressalta a importância de se
portar “armas” (MAQUIAVEL, Livro III, cap. 3, 2007, pp. 193). Diz o Florentino: “sem um
grande número de homens bem armados, nunca república alguma poderá ampliar-se, e, caso
se amplie, não poderá manter-se” (MAQUIAVEL, 2007, pp. 30).
A força também se faz na escolha de terra para o molduramento e efetivação das
cidades. Deve-se escolher sempre, pois isto é prudente, o lugar mais fértil para os princípios
do lugarejo (MAQUIAVEL, 2007, pp. 11). Nas cidades, acomodadas, Maquiavel enfatiza a
importância das leggi e ordini (Leis e Ordenações, Discorsi I, 18)147
como cautela frente as
possibilidades de rebeliões. A importância da legislação Maquiavel herda de Tito Lívio, na
História de Roma, porém não se deve elencar e fabricar muitas leis, pois isso revela de certo
modo a decadência moral dos homens em comunidade. A força das leis está em sua
observância (MAQUIAVEL, 2007, pp. 13). Tanto que, na formação da base de todas as
cidades está a ideia de que se tornaram repúblicas onde, num primeiro momento esteve o
sujeito forte, que “com o muque” decidiu dirigir e engendrar as coisas (MAQUIAVEL, 2007,
pp. 14-15). E comentando sobre os regimes possíveis numa república, a sua legitimidade,
efetivação e desgaste, Maquiavel cita a questão da força enquanto vivência sob a ordenação
do estado, dentro dos liames dos humores e interesses, dos conflitos, que são interceccionados
por leis, ordenações e instituições (MAQUIAVEL, 2007, pp. 19-21).
Ideia importantíssima da lógica da força presente nos Discorsi é a que encontra-se
no Livro I, 9, onde Maquiavel afirma a necessidade de se “estar só para pensar a nova
republica”. Ordenar a reformar as antigas ordenações é o ato fundante da reformulação do
estado. E para tanto, é preciso usar a força – até mesmo a crueldade, como já exposto há
pouco no Príncipe, para fundar ou reformular a sociedade, para mediar os conflitos, dar
encaminhamentos (MAQUIAVEL, 2007, pp. 40-43). Isso impede o que mais tarde, nos textos
dos Discorsi, Maquiavel irá denominar como consciência do povo, que não deve ser enganado
ódio, como se ela fosse a razão da guerra e de seus gastos [...] acabaram com a magistratura [...] delegando suas
obrigações a Signoria" (MAQUIAVEL, 2007, pp. 121). 147
Por várias vezes se falou da importância das leis para Maquiavel. Isso se faz necessário porque, as leis é o
pressuposto substancial da governabilidade e da força de um indivíduo e de um estado. No Livro I, 45,
Maquiavel diz ser injurioso aquele que não observa a lei, muito mais se o mesmo for o autor. A ideia popular de
"faça o que eu digo, mas não façam i que eu faço" não tem funcionamento na política. É danoso para quem
governa, é governado, a não observação das leis (MAQUIAVEL, 2007, pp. 134).
91
por falsas aparências, falsas esperanças ou audazes promessas, porque isto historicamente
comove o povo muito facilmente, e o corrompe. Para tanto é preciso que o "cabeça" da
república, que pensa no processo da constituição da liberdade cívica, num segundo momento
leve todo povo a fazer a experiência que ele mesmo encabeçou, sobretudo no que se refere a
corrupção dos valores e costumes (MAQUIAVEL, 2007, pp. 152ss. 158).
A ideia de religião é apresentada como força em Maquiavel, no sentido de ordenar a
convivência dos povos (Livro I, capítulos 10 a 15)148
. A religião é um substrato de autoridade
e de conjunção dos homens. Na religião está alguém que é intermediário do divino com o
humano, o que convencionalmente se refere como "cabeça de religião". Maquiavel, no Livro
I, 44, afirma que: "uma multidão sem cabeça é inútil", e que portanto, a autoridade deve ser
conquistada, antes de ser realizada por ameaça, que deve ser a última expectativa do líder
político (MAQUIAVEL, 2007, pp. 133). No livro II, 2, acrescenta que a religião romana
antiga beatificava homens de ação, que no séc. XV-XVI é o novo ordenamento do
Humanismo-renascentista, porém, a "nossa religião" diz Maquiavel, (em referência aos
cristãos), "só tem glorificado homens mais humildes e contemplativos do que os ativos"
(MAQUIAVEL, 2007, pp. 189-190). É preciso repensar a funcionalidade da religião, apesar
de que Maquiavel somente observou as estruturas da Instituição - Igreja Católica.
Maquiavel analisa a religião dos romanos, e de como é importante a conservação da
religião como forma de organização e obediência dos homens. Já havia feito isso nos Scritti,
quando tratou da formação e postura dos homens de armas do exército sob a proteção de São
João Batista. A força refere-se primeiramente a ideia de domínio sobre o outro, e quando
necessário para além do campo das ideias, do recurso das armas. Por muito tempo os homens
foram “domesticados” por força da palavra. Tanto que nos capítulos 16 à 18 do Livro I,
Maquiavel chama atenção para a corrupção dos costumes do povo, porque isso facilmente
quebra, desalinha e enfraquece o estado forte (MAQUIAVEL, 2007, pp. 64-75).
A força de uma cidade e de um poder instituído está entre outras coisas, entranhada
na manutenção da religião. E Maquiavel demonstra por que a Itália foi padecendo
internamente, porque não conservou a religiosidade tradicional. A força na religião tem dois
movimentos: primeiro para organizar, no caso a República, segundo, para reprimir desordens.
Maquiavel ainda vincula a noção de prudência à observância da religião. O que se percebe
nesta leitura é um binômio – força versus punição nas entrelinhas da relação do poder e de sua
efetivação.
148
MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. São Paulo, Martins Fontes, 2007, pp.
44-64.
92
Os Capítulos 19 à 27 (Livro I), onde se desenvolve e se amplia o esteriótipo de
“espelho de príncipe”, Maquiavel aponta o modo de ser daquele que deve governar, daquele
que deve estar à frente do Principado ou da República, e que é denominado pelo conceito de
"Príncipe Virtuoso". Três são os assuntos mais recorrentes na configuração destes capítulos:
(a) a teoria da virtú e da boa fortuna como pressuposto da governabilidade eficaz; (b) a
necessidade do armamento e da disposição para o conflito e para guerra e (c) o modus
operandis de investimento na formação de bons homens manuseadores de boas armas.
Nestes Capítulos (19 à 27) dá-se destaque à importância das armas próprias. A
virtude cívica leva o líder político a armar-se, pois, no novo cenário da ação, as armas se
tornaram o instrumental mais eficiente de conquista e manutenção do poder e da liberdade.
SANTOS estudando o conceito de populo afirma que "o problema militar foi uma das grandes
preocupações de Maquiavel desde 1500 na cidade de Florença quando participando dos
combates para a retomada de Pisa durante o governo republicano de Soderini"149
percebeu
que tropas externas não eram eficientes. Foi neste entrave de conflitos que Maquiavel
constatou uma grande indisciplina em decorrência do uso de tropas mercenárias. Dessa
indisciplina resultaram derrotas humilhantes, inclusive quando ele próprio esteve à frente de
tropas militares. Em tese, pode-se acrescentar a ideia de Bignotto que acentua muito bem a
necessidade do armamento em vista da preparação continente para a guerra e para o conflito,
pois
o processo de fundação e conservação de uma república não é independente da
escolha de sua estratégia de defesa. A estabilidade de um regime espelha a
capacidade de preparar a guerra. Sua legitimidade não decorre, portanto, somente da
representatividade e constância de suas instituições, mas também do fato que ele é
capaz de resolver o conflito de classes de maneira a tornar possível a conquista e a
resistência (BIGNOTTO, 1991, pp. 156)150
.
No Capítulo 19, que tem como título: "Depois de um príncipe excelente pode-se
manter um príncipe fraco; mas, depois de um fraco, não se pode manter reino algum com
outro príncipe fraco" há uma distinção primária, ou seja, a ideia de que Maquiavel, em
primeiro plano, afirma que o príncipe forte é aquele que possui virtù151
e boa fortuna152
, ou
149
SANTOS, L. M. A virtù do povo na Filosofia de Maquiavel. Dissertação de Mestrado. Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2011, pp. 84. 150
BIGNOTTO, N. Maquiavel Republicano. São Paulo: Edições Loyola, 1991. 151
Segundo Price, “há diferentes tipos de 'virtù': a moral, a política e a militar (além da combinação entre 'virtù'
política e militar)” além de outras que ele trata de forma menos especificada. Cf. PRICE, R. The senses of
'Virtù' in Machiavelli, pp.321-322.344. In: BENEVENUTO, F. R. de S. ‘Virtù’ e valores no pensamento de
Maquiavel. Dissertação de Mestrado. Departamento de Filosofia da UFMG, Belo Horizonte, 2003, pp. 61-62. 152
Os termos: virtù e boa fortuna marcam deliberadamente a obra de Maquiavel. Para o florentino, estes
conceitos subsidiam a base fundamental da conquista e manutenção do poder, bem como, da articulação e dos
93
seja, é aquele que sabe fazer o cálculo político e sabe também armazená-la para momentos
oportunos, pois se não há virtù acumulada, pode a "roda" da fortuna colocar tudo a perder.
Para tanto é necessário que o príncipe tenha a habilidade e o manejo político de um líder que
antecipa as situações, tanto que, "assim como os homens agem por necessidade ou por
escolha", os príncipes devem, em primeiro lugar, criar as boas leis e estipular a ordem onde
regem (MAQUIAVEL, 2007, pp. 9-10).
Num segundo plano do Capítulo 19, Maquiavel define a oposição do príncipe
virtuoso, ou seja, o príncipe fraco. Este é aquele que, não possuindo as mesmas qualidades de
seus antepassados, não pode manter por si só no reinado, à frente de um estado. Disso
decorre, nas entrelinhas do texto que o "tempo de guerra" e a aptidão para ela, bem como a
prudência e a virtù são mais eficientes do que o "tempos de paz"153
. Em outras palavras, o
bom governo e o bom governante são mais excelentes e bem alinhados quando são postos à
prova, no que se denomina "tempo de guerra" ou necessidade do conflito. Quem não está
acostumado à guerra tende a ser mais frágil nas relações de poder, portanto, mais suscetíveis à
derrota em combates e submetidos a perda da liberdade.
Nos Capítulos 20 à 25154
, Maquiavel defende as seguintes ideias relacionadas a força
do líder político. Maquiavel, no capítulo 20, quer estabelecer a seguinte ideia: propõe que uma
república que deve ter em seu ordenamento "infinitos príncipes virtuosíssimos", ou seja,
homens que sejam de comprovada capacidade de cálculo e de leitura dos tempos frente as
ocasiões. Como já disposto no capítulo 19, a virtù é o mensurador da capacidade de conquista
e manutenção do poder e da liberdade de um príncipe. E isto se faz de tal modo que, assim
como ocorreu entre Felipe da Macedônia e Alexandre, o Grande, como conquistadores do
mundo. Pode também ocorrer com Roma, de acordo com a eleição, sucessão e ordenação dos
critérios que são essenciais naquele que estará à frente de um principado, estado e república. BENEVENUTO
afirma que “no capítulo vigésimo nono do Livro II dos Discorsi, Maquiavel parece dar sequencia àquilo que já
havia afirmado no capítulo XXV de sua obra O Príncipe: “os homens podem perfeitamente acompanhar a
„fortuna‟, mas não se podem opor a ela, que lhes permite urdir uma trama sem romper um só fio”. Cf.
BENEVENUTO, F. R. S. ‘Virtù’ e valores no pensamento de Maquiavel. Dissertação de Mestrado.
Departamento de Filosofia da UFMG, Belo Horizonte, 2003, pp.70ss. 153
Os ditos, longos períodos de ozio (paz) são descritos por Maquiavel. A paz e a liberdade devem ser
compreendidas como resultados concretos e dinâmicos da convivência em comum. Segundo AMES (2008, pp.
142), "o ócio aparece em Maquiavel em três acepções distintas: como inércia (ou preguiça) que se opõe à energia
(ou virtù); como licenciosidade decorrente da ausência de controle por oposição à força disciplinadora da
necessidade; como a situação que oferece um excesso de possibilidades de escolha: o ócio torna os homens mais
lentos em lhes oferecer uma quantidade de alternativas. A concepção maquiaveliana do ócio revela a influência
que exerceu sobre ele o humanismo renascentista, que atribui um lugar secundário à contemplação (otium) e
subordinado ao ideal da vida ativa (negotium). Na avaliação de Maquiavel, o ócio degenera os costumes e
corrompe a vida política: “as razões da desunião das repúblicas, na maioria das vezes, são o ócio e a paz”
(Discursos II,25)". 154
MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. São Paulo, Martins Fontes, 2007, pp.
79-83.
94
líderes. Depois da expulsão dos reis fracos e maus, daqueles que expunham Roma ao perigo,
que não tinham condições de governo forte, e não imitavam seus antecessores próximos ou
um pouco mais distantes, o estado deve se "armar" personificadamente, militarmente e
economicamente. Os Cônsules que tomaram o poder, não pela via da herança, da fraude ou da
ambição violenta, mas por sufrágio livre, eram homens excelentes, de comprovada virtú e de
boa fortuna (MAQUIAVEL, 2007, pp. 79). Assim sendo, a virtù produz efeitos benéficos
para o principado ou república, na medida em que as sucessões e as políticas de expansão se
fizerem prioridade dos seus líderes.
Segundo Maquiavel, que lê a obra "História de Roma" de Tito Lívio, afirma que
Tulo, rei de Roma, tinha mais virtù do que o rei Mécio de Alba, ao ponto que, no confronto
dos três Curiácios, de Alba, com os três Horácios de Roma, os primeiros foram derrotados.
Mécio e os albanos ficaram sujeitos aos romanos. Horácio ao voltar para casa matou também
sua irmã que chorava a morte de um dos Curiácios, seu marido. Este Horácio foi julgado e
libertado por este erro, de matar sua irmã, graças aos rogos de seu pai (MAQUIAVEL, 2007,
pp. 81-82).
Três situações notáveis destaca Maquiavel nesta passagem: primeiramente “é que
nunca se deve arriscar toda a fortuna como parte das forças, uma segunda, as culpas nunca são
compensadas pelos méritos, como demonstrou no caso do Horácio que matou a irmã e o
cunhado, e por fim, nunca são sábias as decisões, quando se deve ou se pode desconfiar de
sua inobservância (MAQUIAVEL, 2007, pp. 82). Deste cenário de confronto, Mécio e seu
povo ficam submissos ao povo romano. Maquiavel ressalta a importância da "denúncia
pública", pois isso deixa a Instituição forte. A denúncia evita a calúnia, e deve ser realizada
em praça pública com provas contra o acusado. Este é um mecanismo forte onde se tem mais
controle das variações humanas155
. A calúnia é o inferno social. E com a instituição da
denúncia, se faz frente ao inferno que pode ocorrer entre os convivas sociais156
.
Assim sendo, a servidão não é uma situação fácil, porém, como se anunciou, Mécio
tentou enganar Tulo através de uma obediência enganosa, mas sem tomar a devida percepção
que deve se fazer nestes eventos, o que denomina-se temeridade (MAQUIAVEL, 2007, pp.
82). O Capítulo 20, portanto, envolve o comedido investimento na guerra, bem como questões
de meritocracia e heteronomia das leis e relações sociais.
155
Nos Discorsi, Maquiavel, no Livro I, capítulo 37, afirma: "tudo que é humano varia". 156
Vale a menção do que dizia, segundo Antonio Valverde, Mauricio Tratenberg: "cidade pequena, inferno
grande", referente à vida do povo em pequenos vilarejos ou em cidades de porte médio, onde todos sabem da
vida de todos, ou pelo menos acham que sabem. Deste saber, que é muito questionável, nascem as calúnias e as
injúrias.
95
Maquiavel nestes Capítulos (21-25) faz uma dupla constatação: em primeiro lugar, a
crítica a Tulo, mesmo que este tenha saído vencedor do confronto contra os Albaneses, e a
Mécio, o próprio rei de Alba. Em segundo lugar, refere-se a pouquíssimos comandantes que
escolhem lugares mais adequados para o confronto e para o embate. Diz o florentino que "são
raros os comandantes que guardam os desfiladeiros" (MAQUIAVEL, 2007, p. 84). Maquiavel
parte de um pressuposto que nunca foi contrariado, ou seja, a decisão de pôr em risco toda
fortuna e todas as forças numa situação que envolva a história e o bem de todos numa
república. Tulo e Mécio confiaram toda a fortuna e virtù da pátria à três homens como
representantes e com isso tornaram vão todo o trabalho de seus antecessores. Mesmo os
Horácios romanos que saíram vencedores, como há pouco se relatou, não conseguem em si
mesmos darem conta de toda a virtù que possa existir em Roma. Muito menos os Curiácios,
que no micro cenário da disputa perderam, não tiveram virtù suficiente (MAQUIAVEL, 2007,
pp. 82-83).
A crítica de Maquiavel se estende a ideia de que é errôneo e danoso o investimento
de não guardar os desfiladeiros como ponto estratégico de combate, ou em locais onde se
prevê maior dificuldade de manter as forças ordenadas a acomodadas. É danoso, insiste
Maquiavel, esperar o inimigo (potente) em local "acolhedor e não montanhoso", pois o
inimigo está em avanço e ataca em momento oportuno, enquanto o exército que está em
espera, precisa além da observância do combate, tomar cuidado com outras situações, tais
como o zelo pelo acampamento. O fato de escolher locais não adequados para a batalha
acarreta um desfavorecimento, não só relativo ao quantificador, mas também às condições
efetivas de embate, como o terror de ser posto à prova e o arriscar a boa fortuna
(MAQUIAVEL, 2007, pp. 83-84). Citando novamente a obra de Tito Lívio157
, Maquiavel
narra as dificuldades de Aníbal no que se refere ao transpor as montanhas entre a Lombardia,
a França e a Toscana, bem como a vitória dos romanos antes de Ticino, depois da planície de
Arezzo. Aníbal foi esperado e seu exército dizimado pelos romanos num lugar que havia a
possibilidade de vitória, e não antes, já destruído pela, segundo Maquiavel, "aspereza do
lugar" (MAQUIAVEL, 2007, pp. 84). Maquiavel cita um último exemplo ao narrar que, em
1515, o rei Francisco da França, que pretendia adentrar à Itália, venceu os suíços, porque se
utilizou de um caminho desconhecido, de tal forma que os surpreendeu, deixando-os
apavorados em Milão (MAQUIAVEL, 2007, pp. 85). O capitulo aponta portanto, além da
preparação efetiva do exército, da virtù militar, das condições do comandante, a questão
157
TITO LIVIO, XXI, 32-37 e 58; In: História de Roma. Introdução, Tradução e notas de Paulo Matos Peixoto,
São Paulo: Editora Paumape S.A, 1989.
96
geográfica, o melhor lugar, "menos áspero" para se enfrentar com maior incidência para
vitória os inimigos.
As repúblicas bem-ordenadas instituem prêmios e penas para seus cidadãos, e nunca
compensam estas com aqueles. Os Horácios venceram os Curiáceos com virtù, e um deles foi
aclamado e tido como herói, porém matou a irmã e foi levado a julgamento. Diz Maquiavel:
"nenhuma república bem ordenada jamais usou méritos de seus cidadãos para anular
deméritos". Estas ordenações quando bem observadas garantirão a civiltà, sem prejuízo da
república. É importante aplicar as penas pelas más ações, e premiar aqueles por seus méritos.
Mesmo que a república seja pobre é importante honrar com prêmios seus cidadãos destacados
(MAQUIAVEL, 2007, pp. 85-87).
Quem quiser reformar um estado antigo, transformando-o em cidade livre, deverá
manter pelo menos algum vestígio dos antigos modos. Aquele que quiser reformar o estado de
uma cidade, deverá manter antigos modos, pois o povo se sensibiliza mais pelo que parece, do
que pelo que efetivamente é. Preservar nomes de cargos e símbolos, preserva o antigo, e
mesmo que o conteúdo seja totalmente diferente, haverá respeito e equilíbrio no novo
governo. Isto é demonstração de força no governo e no estado, república (MAQUIAVEL,
2007, pp. 87-88).
Um príncipe novo, em cidade ou província por ele tomada, deve renovar tudo.
Aquele que tiver bases fracas deverá construir novo governo com nova denominação. Criar
novas cidades, demolir as já existentes, transferir habitantes sem deixar nada intacto da antiga
província. Deve fazer com que toda nova ordem, cargo ou riqueza sejam atribuídos a
causalidade do novo príncipe. Como exemplo histórico temos Filipe da Macedônia, que
projetou-se de pequeno rei para ser o grande príncipe da Grécia.
Raríssimas vezes os homens sabem ser de todo maus ou de todo bons. O Papa Julio
II (1505) tinha por objetivos: (a) expulsar de Bolonha a casa dos Bentivogli; e (b) expulsar de
Perúgia o tirano Giovampagolo Baglioni. O papa Julio II entrou na cidade desarmado,
conseguiu a rendição de Giovampagolo, deixando em seu lugar um governador de sua
confiança. Portanto, Giovampagolo apesar de incestuoso e parricida, acovardou-se frente ao
papa, mostrando-se fraco e temente, ao não ousar contra o papa e sua comitiva, perdeu a
oportunidade de glorificar-se como alguém audacioso e destemido em seu reino, sendo
portanto submetido por sua própria fraqueza e covardia. Maquiavel acrescentará a esta cena
de fraqueza do tirano Giovampagolo, a ingratidão que ocorre para com o príncipe, se o povo
perceber que ele não vai pessoalmente as expedições (MAQUIAVEL, 2007, pp. 89-96).
97
Maquiavel contrapõe a força à fraqueza dos príncipes158
, e denota que a força de
liderar é vista em alguns homens, sem virtù e sem fortuna, como uma desqualificação. Eles
não vão muito longe. Por isso sempre se recorre à necessidade de um exército próprio.
Recorre, de igual modo, à necessidade de se utilizar de toda a força na manutenção do poder e
do governo. E afirma que a sorte e a força na condução de alguma labuta política, não deve
terminar num desfiladeiro, mesmo sendo este um local adequado para batalhas e para guerra.
Ainda no Livro I, no capítulo 32, Maquiavel aconselha que é prudente e sinal de força da
república, o povo ter a consciência de que recebe os benefícios do seu líder político e não dos
adversários (MAQUIAVEL, 2007, pp. 101). Isso reforça a coesão social. E quando ocorrer
inconvenientes ao interno da república, sobretudo porque não se detém toda a condução frente
a natureza das coisas, e nem sempre a fortuna roda ao favor de um mesmo líder, é preciso,
segundo Maquiavel, para não expandir o medo e o caos, temporizar o evento e não tentar de
toda sorte extingui-lo (MAQUIAVEL, 2007, pp. 103). Cita que a conjuração fizeram contra
Roma, nada mais nada menos levou-os a serem "mais unidos, mais fortes, [...] a pensar em
novos modos de, em tempo mais curto, ampliar seu poderio" (MAQUIAVEL, 2007, pp. 105).
E diante do disjuntivo: autoridade e liberdade, Maquiavel, não vê na República Romana um
mal em sua efetivação histórica. E afirma deste modo porque "os ferimentos e quaisquer
outros males que os homens impõe-se a si mesmo, espontaneamente ou por livre escolha
doem muitíssimo menos do que os provocados por outra pessoa" (MAQUIAVEL, 2007, pp.
108-109).
Uma questão importante a teoria da força está relacionada a ideia de natureza
humana, que é recorrente na obra e na pesquisa. Para que a inimizade não se engrandeça é
necessário a partir das conquistas que haja o cumprimento da lei da "partilha" de terras.
Primeiro que nenhum cidadão poderia ter mais terra que outro. A terra, a propriedade é um
sinal evidente de força social. É força política. E, quando Roma dizimasse qualquer nação ou
povo deveria repartir os campos conquistados entre seus habitantes, não só entre seus
conquistadores (MAQUIAVEL, 2007, pp. 114), isso porque, assinala Maquiavel: "vê-se
também por ai que os homens estimam mais o patrimônio do que as honras" (MAQUIAVEL,
2007, pp. 116).
158
O florentino analisa a diferença entre o que é idealizado e o real. Ao colocar o problema do conflito, aborda
acerca das qualidades para o exercício do poder. É necessário agir de acordo com a conjuntura, a realidade tal
qual se apresenta, levando em consideração a natureza humana e afastando-se de uma política idealizada, num
mundo de boa vontade. [...] Nesta perspectiva, a lógica a conduzir as ações políticas ou dos Estados, já não fica
submetida a julgamentos morais, ou sobre noções do bem ou do mal. Mais adequado é dizer no realismo que a
ação política é julgada pelos resultados que pode produzir (GUIMARÃES, 2010, pp. 63-64).
98
Maquiavel afirma que repúblicas fracas, onde o povo é mais desunido, são
irresolutas em suas constituições, e sobretudo, não sabem deliberar. A deliberação é um
evento central da prudência e da virtù. Deliberar é a postura de quem é forte enquanto
indivíduo e enquanto comunidade política. E acrescenta Maquiavel, se estas repúblicas tomam
alguma decisão é mais por "necessidade do que por escolha apropriada"159
(MAQUIAVEL,
2007, pp. 117).
Há uma passagem interessante no capítulo 40, quando Maquiavel descreve como os
romanos tiveram a consciência de que estavam enfraquecidos diante dos sabinos e dos
volscos, tanto que foi necessário a deliberação prudencial em torno da formação de exércitos
porquanto na efetividade das relações sociais, mas sobretudo as de poder, há uma facilidade
extremada da corrupção dos homens (MAQUIAVEL, 2007, pp. 126-127.131). Maquiavel
indica ainda como se deve utilizar ou não utilizar a força, no caso específico de "necessidade"
– no capítulo 41160
, onde tem a realidade dos soldados que combatem pela própria glória, e
portanto, são bravos e leais (Cap. 43); (MAQUIAVEL, 2007, pp. 132). Encerraria a leitura do
Livro I, em seu vinculo com a ideia de força na obra de Maquiavel, analisando a postura e a
envergadura política dos denominados "gentis-homens" (MAQUIAVEL, 2007, pp. 161).
Maquiavel abre o Livro II dos Discorsi ressaltando a questão da variação em todas
as situações, ou seja, refere-se às coisas que estão em contínuas modificações, e mesmo o
mundo permaneça o mesmo, os costumes e os valores variam. As variações ocorrem nos
homens, em seus apetites. Assim, de certo modo pode-se interligar esta ideia com a de
fortuna, pois mesmo que se faça a leitura do mundo e dos costumes e dos valores, o ator
político não tem, nem mesmo com virtù acumulada, um critério de fixidez no cenário em que
se está (MAQUIAVEL, 2007, pp. 178-179)161
.
Na sequencia da obra, Maquiavel exalta novamente a virtù romana, afirmando que
ela foi mais eficaz do que a fortuna quanto as conquistas de impérios por parte dos romanos.
Muitos povos foram combatidos no decorrer histórico, porém, o realce dado pelo florentino se
encontra em conexão com a proposta dos relatórios outrora escritos, ou seja, a manutenção da
liberdade (MAQUIAVEL, 2007, pp. 182-187). A liberdade é a razão de ser da lógica da força.
De tal modo, que um povo subordinado em sua liberdade é muito vingativo. Maquiavel
159
TITO LIVIO, III,6. 160
Russel Price, ao se debruçar sobre essa questão, nos diz que “o modo como o termo „virtù‟ é usado tanto por
Maquiavel quanto por seus contemporâneos é informal e pouco técnico; grande parte das palavras usadas por
Maquiavel são cotidianas e ele raramente define ou explica de forma cuidadosa os termos que usa. Isso torna o
estudo de palavras como „virtù‟ não somente necessário mas também muito complicado. Cf. PRICE. The senses
of 'Virtù' in Machiavelli, pp. 315. 161
MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. São Paulo, Martins Fontes, 2007, pp.
178-303.
99
quanto a isso diz: "é de admirar que os povos se vinguem de maneira extraordinária dos povos
que privaram sua liberdade" (MAQUIAVEL, 2007, pp. 188).
A lógica da força aplicada a atuação das repúblicas tende-se a ampliar por três
condições: (a) a imposição da autoridade constituída sem questionamentos; (ou) (b) fazer
aliados (este foi o modo romano) (ou); (c) criar súditos, como fizeram os espartanos e os
atenienses (MAQUIAVEL, 2007, pp. 195-196). A constituição de legitimidade cria o vínculo
necessário para a manutenção da conquista. E o cerne do modelo, também proveniente dos
romanos, é a ideia de procedimento nas guerras. Os romanos faziam guerras curtas e grossas,
devastavam as terras inimigas, e, segundo Maquiavel, "iam aos poucos conquistando
reputação entre os inimigos e força entre o seu próprio povo" (MAQUIAVEL, 2007, pp. 204).
No Livro II, Cap. 11, Maquiavel relata a força real. Diz não ser prudente fazer
aliança com um príncipe que tenha mais prestigio que força. E pouco antes na obra, ressalta
que "o dinheiro não é o nervo da guerra" (MAQUIAVEL, 2007, pp. 213). Isso é um
indicativo que para a moldura política de Maquiavel a força ocupa um lugar de destaque, ou
seja, um líder político vale pelo quanto de intimidação e força demonstra socialmente. No cap.
13 – Maquiavel sobrepõe a força com a ideia de engano, dizendo que este é mais importante
para proteger alguém de uma posição modesta as mais altas honrarias. No cap. 18 –
Maquiavel diz que a força da infantaria, que trataremos no próximo capítulo, é um modelo
efetivo de conquista social. No cap. 30 – A reputação da força é mais fecundo em adquirir
amizades aos príncipes e às repúblicas do que o uso do dinheiro (MAQUIAVEL, 2007, p.
177-303).
No Livro III, Cap. 13, Maquiavel afirma que “exército forte” é aquele que é bem
comandado. No cap. 20, reflete sobre a força das armas romanas. Maquiavel atenta para
exemplos de conduta humanitária. No cap. 26 – A mulher é vista como protótipo de fraqueza
– ela pode arruinar um Estado. No cap. 36 – Maquiavel compara as mulheres aos gauleses e
afirma que estes são os mais fracos no prosseguimento da luta, da batalha. Não basta apenas
ter a coragem do passo da luta, é preciso ter prosseguimento. No cap. 33 – A confiança na
força, no caso do exército e do comandante – princípio de assegurar a vitória. No cap. 42 –
Não se devem cumprir as promessas extraídas pela força. Parece indicar uma contradição pelo
que já se apontou quando Maquiavel afirma no cap. 44, Livro III, que com audácia e violência
se consegue muito mais coisas do que com meios ordinários. No cap. 45 – A força deve atacar
impetuosamente ou cautelosamente esperar o choque? Já no cap. 48 – Uma estratégia que
deve ser pensada é que a força pode ser manifestada por um grande erro, como estratégia de
contra-ataque (MAQUIAVEL, 2007, pp. 305-456).
100
A terceira obra, de cunho militar, onde se pode observar a lógica da força, é a que
Maquiavel intitulou: A Arte da Guerra162
. Maquiavel, nesta pesquisa faz menção da
necessidade da instituição militar na vida civil, e onde também demonstra uma comparação
entre seu contexto histórico e a República Romana, no sentido de que esta instituição foi
fortemente efetiva na sua dinâmica histórica quanto ao uso da força, das armas e dos
exércitos. Um detalhe é que Maquiavel diz pensar e se dedicar a escrever sobre a arte da
guerra em um momento de ócio163
.
A obra em si apresenta, entre outros pormenores, o conceito de formação de tropas e
conferiu à disciplina a importância fundamental para o êxito do combate. Esta preocupação
com a arte militar e com o comportamento disciplinado dos combatentes está intrinsecamente
relacionada à teoria da força e com o restante da obra maquiaveliana. Isso porque a técnica
militar ultrapassa na obra, a experiência prática do florentino (MAQUIAVEL, 2006, pp. XI)
que deve ser compreendida, sobretudo, através do último capítulo do Príncipe, onde o lugar
da força, que aqui é representada abstratamente e universalmente, se emerge, com inusitada
paixão, do sentimento patriótico de Maquiavel e de sua esperança de que a Itália possa ser
palco de um segundo renascimento, do renascimento de si mesma como unidade e potência
política164
. Enfim, na obra, como primeiro passo, Maquiavel elogia Cosme Rucellai, enquanto
homem de estremada grandeza em relação à arte militar (MAQUIAVEL, 2006, pp. 3). Cosme
discute com Fabrício de Colona as questões históricas da disposição para guerra, bem como
os ordenamentos disciplinares e técnicos da vida militar e da formação do exército virtuoso.
Maquiavel tem consciência que não lhe é própria esta reflexão, ou seja, não faz parte de seus
ofícios, mas os erros de muitos o fizeram pensar na necessidade de balancear os erros e os
acertos históricos da Itália e de Florença em particular.
Nos dois primeiros livros da Arte da Guerra, Maquiavel reproduz, como se
enunciou, o diálogo de Cosme Rucellai e Fabrício Colona da Lombardia, um guerreiro
glorioso em nome de Fernando, Rei da Espanha. Os dois debatem a habilidade dos antigos na
guerra e no uso da força. Há uma crítica de Fabrício quando este se remete a homens que se
utilizam da arte militar para beneficio próprio. Chega a afirmar: “tendes um provérbio que dá
força as minhas razões: a guerra faz os ladrões, a paz os enforca”. Cosme, por sua vez, supõe
que a arte militar valha pouco, pois a manutenção dela pode conduzir aos roubos [obviamente
162
MAQUIAVEL, N. A Arte da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 163
Foi alguém de inatividade fecunda. Cf. BARINCOU, E. Maquiavel por ele mesmo. Tradução de Alberto de
Los Santos, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991, pp. 61. Ridolfi, na Biografia de Maquiavel
descreve outros “ócios literários”, o Asno e Belfagor (pp. 191). 164
LARIVAILLE, P. A Itália no Tempo de Maquiavel. Tradução de Jonatas Batista Neto. São Paulo:
Companhia das Letras: Círculo do Livro, 1988.
101
não se referia a exército próprio]. Quanto a este tema discutem as atitudes dos romanos:
Pompeu, César, Cipião, Marco Aurélio e Régulo Atílio que entre eles, após um tempo de
batalha, quiseram voltar para casa e para suas antigas profissões (MAQUIAVEL, 2006, pp. 8-
14).
Fabrício da Lombardia fala da técnica militar romana e da concepção de força física,
pois adestravam homens para serem soldados na flor da idade, ou seja, entre os dezoito aos
trinta e cinco anos, por isso, a força teoricamente romana é a força física e a possibilidade de
melhores treinamentos dos homens. Eis uma tática válida. Neste tempo há boa coordenação
da força. Fabrício acrescenta: [neste tempo] “não esperavam que lhes diminuísse a força,
crescendo a malícia, como se passou a fazer nos tempos da corrupção” (MAQUIAVEL, 2006,
pp. 16-25).
Para Maquiavel, o homem é determinado, fundamentalmente, pelo dinamismo da
necessidade natural do desejo que o impulsiona incansavelmente e sem qualquer controle
interno. A característica essencial do desejo humano é sua imoderação e desmedida. O
homem é insaciável, seu desejo se dirige a tudo e sem qualquer controle interno. A natureza
humana e os humores novamente em questão na obra do florentino165.
Deste modo, tomar a figura e o pensamento de Maquiavel a respeito da força de
modo imoral pode ser considerado um equívoco, pois, a questão de fundo foi uma análise a
fim de saber se o governante pode agir sempre em conformidade com os princípios éticos
aceitos em seu tempo e esperar atingir seus objetivos, ou se deve aprender a seguir outros
caminhos quando confrontado com situações difíceis. Maquiavel não aconselha aos
governantes a desrespeitar as regras morais aceitas pelo mero prazer de fazê-lo. Ao contrário,
enfatiza que os homens devem se comportar de acordo com elas sempre que possível. É o que
se apresentou ao longo deste capítulo como "antevisão do tempo", ou como "calculo de ação",
em tese é exatamente a medida de virtù do líder político166
.
Posto de outra forma, o grande objetivo de Maquiavel foi saber se a ética é
suficiente para mostrar como agir na política em todas as situações. Ética pensada e aplicada
de outra maneira que não aos moldes medievais, ou seja, a prudência e as demais virtudes,
morais ou cardeais, e até mesmo as teologais, são relidas neste contexto. Os demais livros da
Arte da Guerra, especificamente do terceiro ao sexto, que tratam de como preparar o exército
165
A natureza criou os homens de maneira que podem desejar qualquer coisa, mas não podem conseguir
qualquer coisa; desse modo, sendo sempre maior o desejo do que a potência de conquistar resulta disso o
descontentamento do que se possui e a insatisfação em relação a isso. Disso nasce a variação de suas fortunas
(Discursos I, 37). Cf. AMES, J. L. “Maquiavel e a Educação: a formação do bom cidadão”, In:
Trans/Form/Ação, São Paulo, 31 (2): 137-152, 2008, pp. 142. 166
COLONNA d‟ISTRIA, G. et FRAPET, R. L‘Art Politique chez Machiavel. Paris: J. Vrin, 1980.
102
para a luta e a ordem da batalha e o combate, bem como a artilharia serão refletidos mais
especificamente com os norteamentos dos relatórios dos I Primi Scritti Politici no segundo
capítulo desta dissertação.
Os livros subseqüentes da Arte da Guerra, que tratam das regras gerais, denotam a
observação de Maquiavel em forma de “aforismas” ao interno do diálogo de Fabrício de
Colona e Cosme Rucellai. Tais proposições reforçam o que já foi até então construído sobre a
ideia de força, e acrescenta a importância do senso de oportunidade no anteceder e decorrer da
guerra. Afirma Maquiavel: “dificilmente será vencido quem souber avaliar as suas forças e as
do inimigo”, pois o primeiro trato da teoria da força nesta parte da obra é a ideia de que o que
“favorece o inimigo, me prejudica, e o inverso é verdadeiro”. Na guerra, segundo Maquiavel
vale mais o exercício do exército e a vigilância que provem da prudência em relação às
intenções dos inimigos. A lógica da força prevê o ânimo e a disciplina aos soldados que irão
para a batalha, pois na guerra a disciplina pode mais que o ímpeto. Assim sendo, “é melhor
vencer o inimigo com a fome do que com o ferro, pois na vitória com este vale mais a sorte do
que o valor” (MAQUIAVEL, 2006, pp. 27-30)167
.
Fabrício é homenageado de todas as maneiras na obra por seus feitos, especialmente
quando se enfatiza o tempo e o local em que as elaborações militares foram providas. Desta
situação, acrescenta Maquiavel, "terminados os festejos, tiradas as mesas, depois dos prazeres
do convívio festivo" – que para homens de qualidade, inclinados a pensamentos mais nobres,
se esgotam rapidamente –, julgou o florentino que Cosme tinha por objetivo levar o grupo de
ouvintes para a parte mais protegida e sombreada do jardim, escapando assim ao calor do dia.
Estando todos ali sentados sobre a relva fresquíssima ou em cadeiras à sombra de árvores
muito altas, Fabrício elogiou o lugar, que era extremamente agradável, examinando as
árvores, ficou surpreso por não reconhecer algumas delas. Ao perceber isso, Cosme disse: "É
possível que não conheças parte destas árvores, o que não te deve surpreender, porque são
mais antigas do que as que hoje cultivamos" (MAQUIAVEL, 2006, pp. 30-40). Cultivar as
raízes antigas, em outras palavras, Fabrício e Cosme estão se remontando ao passado glorioso
de Roma, especialmente ao seu tipo de ordenança, de militares e de dispositivos efetivos para
o tempo de guerra.
167
Eles examinaram também se é acreditável que o assédio baste sem a força, e são do parecer que não baste,
porque acreditam que os pisanos têm com o que viver até a próxima colheita, e pelas notícias que se tem de
quem vem de Pisa, pelos sinais da escassa qualidade do pão que lá se vende, e pelo ânimo obstinado dos pisanos,
estão dispostos a suportar muito, e não se vê porque devam suportar somente uma parte do que podem, por isso
pensam os sábios nesses assuntos que vós sereis obrigados a usar a força (MAQUIAVEL, 2010, pp. 34).
103
O que seria essencial no diálogo de Cosme e Fabrício ao interesse de Maquiavel
relativo à teoria da força?
Fabrício. A explicação é magnífica, e certamente verdadeira. Mas não me referia
tanto a esses hábitos espartanos, e sim a outros que, mais humanos, se ajustam
melhor à vida de hoje. Não creio que fosse difícil para um príncipe introduzi-los.
Não me afastarei nunca do exemplo dos meus romanos. Se se considerasse sua vida,
e a organização da república que instituíram, encontrar-se-iam muitas coisas a ser
introduzidas em uma comunidade onde houvesse ainda algo de bom.
Cosme. Que coisas, na tua opinião, seriam essas, semelhantes às antigas?
Fabrício. Honrar e premiar a coragem; não desprezar a pobreza; amar os hábitos e
instituições da disciplina militar; induzir os cidadãos a se amarem mutuamente, a
viver sem avidez, a buscar menos o interesse privado e mais o interesse público; e
outras coisas semelhantes que facilmente se poderiam ajustar aos tempos atuais. O
que não é difícil de aceitar, quando se reflete bem, e quando se usam meios
apropriados, os quais põem em evidência a verdade de modo que qualquer
inteligência mediana possa percebê-la. Quem age assim planta árvores sob cuja
sombra se vive mais feliz e satisfeito.
Cosme. Não quero retrucar as tuas palavras; que as julguem os amigos, que podem
fazê-lo sem dificuldade. A ti, acusador dos que não imitam os antigos nas ações
graves e grandes, dirigirei uma pergunta por acreditar que assim satisfarei melhor
meu propósito. Gostaria de saber por que razão, de um lado, criticas os que não se
assemelham aos antigos no agir e, de outro, não se vê que tenhas utilizado na guerra
a tua profissão, na qual tens excelente prestígio, qualquer coisa antiga, ou que
lembre a Antiguidade168
.
Fabrício afirma que na guerra, sua profissão, não tinha usado nenhuma coisa antiga.
A esse respeito afirma também que a profissão militar não assegura a nenhum homem uma
remuneração que seja honesta e permanente, pelo que só pode ser praticada a serviço das
repúblicas e dos reinos; estes, quando bem organizados, jamais consentem a seus cidadãos ou
súditos praticá-la por conta própria; e nunca ela foi exercitada por um homem reto de modo
particular. De fato, não se qualificará de reto quem se dedique a profissão que, para ter
utilidade permanente, conduz à rapacidade, à fraude e à violência, valorizando muitas
qualidades que obrigam a ser mau. Nem podem ser diferentes os homens, poderosos ou
humildes, que praticam tal arte, que não os sustenta em tempos de paz (MAQUIAVEL, 2006,
Livro III, pp. 85-115).
Nenhuma dessas duas ideias é compatível com a bondade humana, o poder manter-se
com a arte da guerra todo o tempo conduz aos roubos, violências, aos assassínios que os
soldados cometem contra amigos e inimigos; o não desejar a paz provoca os enganos que os
chefes militares praticam contra aqueles a quem deviam servir, para prolongar a guerra. Se
168
Trechos da obra Arte da Guerra, Livro II, pp. 41-84.
104
vem a paz, acontece muitas vezes que, privados de seus estipêndios e da vida licenciosa que
levavam, os guerreiros se fazem aventureiros e saqueiam sem piedade. Recorda Maquiavel:
não vos lembrais de que, havendo na Itália um grande número de soldados
desocupados, terminada a guerra, se reuniram em bandos para saquear o país, sem
que isso pudesse ser evitado? Não sabeis que, depois da primeira Guerra Púnica, os
soldados cartagineses, chefiados por Mato e Spêndio, moveram contra Cartago uma
guerra mais perigosa do que as hostilidades contra os romanos? (MAQUIAVEL,
2006, Livro IV, pp. 117-137).
Todo Estado bem ordenado deseja que a arte da guerra seja, em tempos de paz,
empregada apenas como exercício; e que, havendo hostilidades, seja usada para atender à
necessidade, pela sua glória, ficando os poderes públicos dela incumbidos como
exclusividade, como em Roma. O cidadão que a usa para qualquer outro fim não age
retamente; e qualquer Estado que adote outro sistema não estará bem organizado. Não aceita
como exemplo, acrescenta Fabrício de Colona , nenhum reino atual, pois não são Estados bem
organizados. Estes últimos só reconhecem a autoridade absoluta dos monarcas, no que se
refere aos exércitos, porque só neles é necessário que haja decisões imediatas, e por isso
mesmo uma única autoridade. Em tudo o mais, o soberano nada pode fazer sem conselho; e os
conselheiros temem sempre que haja alguém a seu lado que em tempo de paz deseje a guerra,
por não poder prescindir dela para viver (MAQUIAVEL, 2006, pp. 138-142)169
.
O comandante de um exército, tema dos Discorsi e desta obra, é aquele que se
prepara para a luta e não pode fazer pior do que dispô-lo em uma única linha, de modo que a
sorte da batalha seja decidida no primeiro assalto. Nos Discorsi, Maquiavel destaca que estes
também são possuidores de virtú, pois do contrário, a ruína é certa, a derrota é companheira. E
Maquiavel adverte que "só fará isso quem tiver perdido o antigo conhecimento da disposição
das forças em linha sucessivas, uma à frente da outra, que permite o recuo ordenado de cada
uma". Sem tal dispositivo, não é possível socorrer os que estão na frente de combate, defendê-
los ou substituí-los – o que os romanos sabiam fazer muito bem (MAQUIAVEL, 2006, Livro
V, pp. 143-160).
Quem na guerra observar com maior vigilância as intenções do inimigo e mais
exercitar seu exército, correrá menos perigos, e terá maior probabilidade de vitória. Não
devemos jamais conduzir os soldados à batalha se antes não nos certificamos de que seu
ânimo é disciplinado, e isento de medo. Não se deve combater senão quando se vê que
esperam a vitória. É melhor vencer o inimigo com a fome do que com o ferro, pois na vitória
obtida com este vale muito mais a sorte do que o valor. Nenhum método é melhor do que
169
MAQUIAVEL, N. A Arte da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 85-142.
105
aquele que o inimigo não percebe até o adotarmos. Na guerra, reconhecer a oportunidade e
aproveitá-la vale mais do que qualquer outra coisa (MAQUIAVEL, 2006, pp. 161-192).
Na guerra, a disciplina pode mais que o ímpeto. Quanto acolhemos alguns inimigos,
que se incorporam ao nosso exército, isso representará sempre uma grande aquisição, desde
que sejam leais. Com efeito, as forças do adversário diminuem mais com a perda dos que
fogem do que com as baixas em combate, embora a qualificação de “desertores” seja suspeita
a seus novos companheiros, e odiosa aos antigos. Mais vale a coragem dos soldados do que a
multidão; e algumas vezes mais vale a situação do que o valor (MAQUIAVEL, 2006, pp.
193-205).
Pode-se acolher inúmeros conselhos de Maquiavel durante a obra e no diálogo de
Fabrício e Cosme. Exemplo: "as coisas novas e súbitas espantam os exércitos; o que é
costumeiro e lento é pouco estimado pelos soldados; deve-se obrigar o exército a
experimentar e avaliar, com combates limitados, um inimigo novo, antes que se engaje em
batalha contra ele. Quem persegue em desordem o inimigo, depois de vencê-lo, quer passar de
vitorioso a derrotado. Quem não prepara os alimentos necessários para subsistir é vencido
sem o emprego de armas. Quem confia mais nos cavaleiros do que nos infantes, ou mais nos
infantes do que nos cavaleiros, que se acomode com a situação. Quando se quer ver de dia se
há algum espião no campo, que todos se recolham a seus alojamentos. Muda de decisão
quando perceberes que o inimigo a descobriu"170
. Convém ainda o aconselhamento com
muitos a respeito das coisas que devem ser feitas, depois, deve-se confiar a poucos aquilo que
se quer fazer. Deste modo, os bons comandantes nunca se empenham em uma batalha se a
necessidade não os impele, ou a oportunidade não os chama171
.
Os homens, o ferro, o dinheiro e o pão constituem os pontos nevrálgicos da guerra,
destes, os mais necessários são os dois primeiros, porque os homens e o ferro produzem pão e
dinheiro, mas pão e dinheiro não fazem os homens e o ferro. O rico desarmado é o prêmio do
soldado pobre. Habitua os soldados a desprezar a vida delicada e as vestimentas luxuosas.
É o que me ocorre recordar-vos, de um modo geral. Sei que seria possível dizer muitas outras
coisas nesta minha exposição, como, por exemplo, como e em quantas formas os antigos
dispunham as colunas de soldados, como estes se vestiam e como se conduziam sob muitos
outros aspectos (MAQUIAVEL, 2006, pp. 216-217).
170
MAQUIAVEL, N. A Arte da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 206-208. 171
Entre eles, Maquiavel cita: Pelópidas e Epaminondas, Tulo Hostílio, Felipe da Macedônia (pai de Alexandre),
Ciro, rei dos persas, e o romano Graco. Todos tiveram primeiro de criar um exército, para depois comandá-lo.
106
"Como é hora de terminar esta exposição", afirma Maquiavel, "quero voltar ao
assunto principal, escapando assim à pena que nesta cidade se costuma aplicar aos que
divagam". Maquiavel, admirador da Antiguidade, crítico dos que não a imitam nas coisas
sérias, e não a imitava na arte militar à qual ele se dedicou. "Vós, que me ouvistes por tanto
tempo falar sobre o assunto, deveis julgar se saberia ou não ordenar um exército segundo o
modelo antigo". Se a instituição militar florentina não tem a ordenação "nem pratica os
exercícios que descrevi, sois os culpados por haverdes instituído um sistema abortivo, e não
perfeito". Para tanto
não basta, portanto, na Itália, saber comandar um exército; é necessário, em primeiro
lugar, saber criá-lo e depois saber conduzi-lo. Para isso, são precisos príncipes que
disponham de Estados de extensão suficiente e súditos numerosos. O que desde logo
me exclui, pois só comandei e só posso comandar exércitos estrangeiros, compostos
de soldados leais a outrem. Sabereis discernir se é ou não possível introduzir em
exércitos desse tipo as ideias que expus aqui (MAQUIAVEL, 2006, pp. 221-222).
107
CAPÍTULO II
A NECESSIDADE DAS LEIS, DAS ARMAS E DO EXÉRCITO
ENQUANTO INSTRUMENTOS E FORÇA DA AÇÃO POLÍTICA
“A violência fundadora da ordem política não é estranha à violência que funda a lei,
no sentido de que ambas (violência fundadora e violência da lei) existem em função
da necessidade de abolir a violência originária, que existe previamente (não no
sentido de anterioridade temporal e, sim, lógica), isto é, à margem de todo
ordenamento político-legal. Por isso, a necessidade de um mito ou crime fundador
para simbolizar e justificar a passagem de uma violência “prévia” tão destruidora
que é preciso destruí-la: a violência construtora e ordenada da existência política e
legal, quer dizer, o crime fratricida de Rômulo (Discursos I,9). A violência
fundadora do Estado e da ordem política é exatamente a mesma violência fundadora
da lei, no sentido de que tanto o Estado quanto a lei se constituem para abolir a
violência originária que existe „antes‟ ou „à margem‟ de todo ordenamento estatal,
político e legal da sociedade; em outras palavras, fora do Estado, da política e da lei
não existe mais do que violência” (pp. 103)
José Luís Ames
Metáforas da ação política e figuras de príncipe: Uma tentativa de
aproximação conceitual à noção de ação política em Maquiavel
(2014)
Neste segundo capítulo, será embasado na ideia de Kritsch “como não pode haver
boas leis onde não há boas armas, Maquiavel concentra sua atenção inicialmente no estudo da
força. A decisão de discutir apenas as boas armas deve-se ao fato de que Maquiavel raciocina
aqui pela condição limite: as armas são a condição primeira de qualquer lei, pois lhe garantem
a eficácia”172
. |Por isso estudar-se-á a necessidade das boas leis, das armas e da formação de
um exército próprio, uma milícia, nos I Primi Scritti Politici de Maquiavel, sobretudo a partir
da interpretação dos relatórios e dos comentários de Marchand173
, tendo como marco
referencial e pressuposto fundamental a ideia de manutenção do poder político – o que revela,
numa perspectiva transversal, a própria competitividade do Estado moderno nascente. Não
172
KRITSCH, R. “Maquiavel e a construção da política”. In: Lua Nova - Revista de Cultura e Política, (53),
pp. 181-190. 173
"Segundo Marchand (2003), ao relatar suas experiências como Segretario da República Florentina em sua
correspondência e em I Primi Scritti Politici, entre 1499 e 1512, Maquiavel inaugura um pensamento político
que incorporava, entre outras, a problemática representada pelas forças mercenárias, os conflitos sociais entre
Senhores e súditos, além das questões entre as facções políticas" (DA SILVA, 2013, pp. 31). In: MARCHAND,
J., MELERA-MORETTINI, M. Introduzione. In: Nicollò Machiavelli. Legazioni. Commissarie.Scritti di
Governo. Tomo III (1503-1504). Roma: Salerno Editrice, 2003.
108
obstante, há a recorrência, como já se fez, as demais obras do Florentino, por se constatar
através de seus intérpretes uma amarração teórica em seu olhar para as res pública, para o
funcionamento do Estado. Neste sentido
ao invés de simplesmente privilegiar um dos escritos, para assim se contrapor as
outras leituras, demonstrou existir um mesmo conjunto de pressupostos teórico-
conceituais na base do pensamento maquiaveliano, o que lhe permitiu dissolver as
aparentes inconsistências que tanto embaraçam seus leitores (PANCERA, 2010. p.
34)174
.
Esta ideia de competitividade fará uma revolução nas Instituições públicas. Até
mesmo o "cimento de coesão social", a religião, que passará no séc. XVI por uma grande
"Reforma". Em outras palavras, houve uma reorganização socio-política-econômica em torno
de Florença e nas demais cidades da Itália, mas sobretudo, havia um ideal de reeducação, de
reorganização dos princípios. Sobre isso, Walter Silva afirma que
[...] nos scritti sull‟ ordinanza [há] uma evocação dessas ideias através da criação
das milícias, com objetivo puramente militar (reconquista de Pisa) e, em seguida,
com um objetivo administrativo e cívico (a redução dos problemas da
insubordinação e da deserção observados no início da constituição das milícias),
(DA SILVA, 2013, pp. 31).
Denominar-se-á ainda neste capítulo uma nova interpretação do Florentino a partir da
ideia de McCormick no sentido de pensar a obra de Maquiavel não somente como
tradicionalmente o é feito, como anti-popolo, mas também enquanto "dicas" de controle da
elite.
Maquiavel é notório por aconselhar sobre como manipular o povo. De fato, muitos
consideram esse o aspecto principal de sua obra mais famosa, O príncipe. Mas as
evidências sugerem que ele considerava algo bastante diferente como sendo o seu
conselho mais importante e mais original: como controlar as elites (McCORMICK,
2013, pp. 253).
Percebe-se na teoria da força em Maquiavel a necessidade e a urgência do uso de
boas armas. Para o Florentino, força e armas desembocam na manutenção do poder. É por
isso que SALAZAR ao comentar os ditos "escritos políticos breves" anuncia como primeiro
aspecto a importância dos textos que fazem referência às campanhas militares na Toscana
(1991, pp. VII) e outras situações similares. São os conceitos de força e armas que tornam
efetivamente o Estado forte. Esta unidade adjunto as boas leis, com uma “boa dose de
astúcia”, afirmam o poder do Estado não tanto pela via do terror, que é uma realidade
primária, até mesmo em Maquiavel, mas pelo viés do respeito, de uma dita política 174
PANCERA. C. G. K. Maquiavel entre Repúblicas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
109
orgânica175
. Tal forma política indica a experiência de Maquiavel em relação a história,
sobretudo na experiência prática do Florentino que afirma
Ouvi dizer que a história é mestra das nossas ações e, sobretudo, das ações dos
príncipes, e o mundo foi sempre habitado por homens que sempre tiveram as
mesmas paixões; e sempre houve quem serve e quem manda; quem serve de má
vontade e quem serve de boa vontade, e quem se rebela e é reprimido. Se alguém
não acredita nisso, basta olhar para Arezzo no ano passado e para toda a região de
Valdichiana, que agem de um modo muito semelhante àquele dos povos latinos: lá
se vê a rebelião e depois a reconquista, como aqui; e ainda que no modo de se
rebelar e de reconquistar haja muitas diferenças, também a rebelião e a reconquista
são semelhantes (MAQUIAVEL, 2010, pp. 46).
Não obstante, a via do realismo é um ponto marcante nos relatórios, e até mesmo no
Príncipe mais tarde. De modo a ler-se que
[...] ao anoitecer, com os tumultos sobre controle, pareceu ao duque que era a hora
de mandar matar Vitellozo e Liverotto, e tendo-os conduzido juntos a um lugar,
mandou estrangulá-los. Lá nenhum deles pronunciou palavras dignas de suas vidas.
Vitellozo pediu que se suplicasse ao papa para que este lhe concedesse a indulgência
plena de seus pecados. Liverotto, chorando, imputava toda a culpa das injúrias
sofridas pelo duque a Vitellozo. Pagolo e o duque de Gravina foram mantidos vivos
até quando o duque soube que o papa tinha prendido o Cardeal Orsini, o Arcebispo
de Florença e Messer Iacopo de Santa Crocie. Depois que teve conhecimento dessa
notícia, no dia 18 de janeiro, em Castel della Pieve, foram também eles igualmente
estrangulados (MAQUIAVEL, 2004, pp. 44)176
.
175
“Devemos convir que a lei e a força são consubstanciais às relações do homem com o homem. A força,
porém, só é eficaz quando ligada à astúcia. Dito de outro modo, ela não pode exercer-se a nu, sem que seja
colorida de modo a tornar-se aceitável. É certo que estamos diante de um atributo bestial, uma paixão da qual a
raposa é o símbolo. Trata-se, diz Maquiavel, da arte de escapar das armadilhas dos adversários, a qual, por sua
própria natureza, exige um desdobramento que permita assumir o ponto de vista do outro, de modo a conhecer
suas intenções e a driblar os possíveis efeitos destas. Segundo o seu sentido geral assim esboçado, a astúcia
permeia a todos: todo homem é duplo – simulador e dissimulador – e, por isso, age como raposa, sob o império
da paixão. Contudo, a teoria da astúcia tem de dar um passo adiante e considerar que o príncipe eleva a outro
nível essa duplicidade – ele é gran simulatore e dissimulatore –, quer dizer, ele sabe disfarçar a força em lei e
governar tanto pela força quanto pela lei, de modo a dar à besta a figura humana e a reprimir, quando necessário,
a besta no homem. A astúcia, por um lado, se enraíza na animalidade e, de fato, é movida pela paixão mais viva,
a do poder. Por outro lado, ela transcende essa paixão, pois só pode triunfar sobre as astúcias dos outros. Isso
significa que há vários graus de astúcia. Há uma astúcia simples, quer dizer, a disposição para trair sob o efeito
de uma necessidade imediata, movimento passional que torna o vulgo instável, sempre tentado a passar de uma
posição a outra na medida em que, guardando apenas a aparência do sentimento que era há pouco o seu, ele
doravante age por um sentimento contrário. Isso faz com que o vulgo seja comandado por certa volubilidade
natural, de forma que sua visão abraça o espetáculo da variação das coisas, une o vício à virtude, para dar a um e
a outro sua expressão conveniente segundo o evento”. Cf. RAMOS, S. de S. “Maquiavel e a política do desejo”.
In: Cadernos de Ética e Filosofia Política. n. 20, Universidade São Paulo, 2014, pp. 51-52. 176
Kurt Mettenheim (2010, pp. 10: MAQUIAVEL, op. cit) descreve no relatório: “Descrição do Modo Adotado
pelo Duque Valentino para Matar Vitellozzo Vitegli, Oliverotto Pagolo e o Duque de Gravina Orsini,” de 1515-6
os eventos de outubro de 1502 a janeiro de 1503 e coloca em destaque o brilho estratégico de César Bórgia, o
Duque Valentino. Trata-se da descrição, afirma Metenheim, de modo detalhado, do uso tático de tropas para
culminar num ato amoral. Registra ainda a combinação cruel de perversidade e inteligência em Maquiavel. Mais
ainda, pela sua admiração por César Bórgia, líder político e militar da cadeia de reação que derrotou a república
Florentina".
110
A tensão entre realismo e política orgânica ocorre de tal modo que, a formação do
Exército próprio em Florença será disposto através de provisões da sua República ao
Magistrado dos Nove Oficiais da ordenança e da própria milícia florentina. Seguindo a
narrativa de interpretação de SALAZAR, Maquiavel organiza este cenário de modo técnico e,
através de sua experiência diplomática (1991, pp. VII), como se viu até o momento, se
efetivará uma estratégia do pensar político.
Na ótica documental, Maquiavel apresenta as Provisões para as infantarias e para as
montarias à cavalo. Uma questão fica disposta no capítulo é a seguinte: "quem e como devem
ser os que formarão o exército de Florença?" A resposta a esta proposição demonstra em
Maquiavel, um elam temático ainda atrelado aos recalques medievais, pois se verifica nos
relatórios, a ideia do padroado, ou seja, a milícia será formada sob a “proteção” de São João
Batista, que é, pela Igreja, patrono da Infantaria, e a República Florentina, através do
Conselho Maior, escolherá e elegerá os aptos para o ofício. Salazar neste sentido reúne os
textos em que Maquiavel afirma na perspectiva política e burocrática a necessidade de um
exército em Florença. Neste caso, os documentos de Florença apontam que "os Nove oficiais
da ordenança e milícia florentina tinham como função a administração de outras pessoas, de
outras funções e de vários ofícios”177
.
Os Nove oficiais e sua autoridade eram manifestadas nas bandeiras, enquanto marca
territorial e, na predominância e garantia da ordem através dos condestáveis ao modo do
modelo alemão. O formato do exército, da milícia será aos moldes da França. A segurança
pública terá esquemas como torres e bastiões178
, que serão construídos ao entorno da civiltà
para promover a ordem e garantir a administração dos territórios conquistados. É o que
Salazar denomina de "la justiça y la organizacion del Estado" (1991, pp. VIII). Todo este
esquema é garantido através da organização interna dos homens inscritos no exército, sob a
égide da estruturação, dispensa e manutenção, sob a regulamentação da denúncia179
dos
177
"Todo Estado (en original, città) que en un momento determinado, aunque sólo fuera durante un breve
período de tiempo, haya sido gobernado por un principe absoluto, por la oligarquia o por el pueblo, como se
govierna éste. ha contado como base de su defesa con la fuerza unida a prudencia, porque ésta aislada no basta, y
aquella o no lega a resolver os assuntos, o, si los resuelve, no consegue hecerlos perdurables" (SALAZAR, In:
MAQUIAVELLO, 1991, pp. 77). Força e prudência como se verá adiante são reunidas no exército através de
homens que tenham amor a pátria, que sejam bem treinados, que tenham virtù militar, e que sejam, sobretudo,
comandados por um homem de palavra, forte e também de virtù. Sobre a unidade de força e prudência pode-se
consultar Gabriel Pancera que afirma: “força e prudência se constituem, assim, num novo par maquiaveliano,
mas desta vez num par complementar, que já mereceu alguns comentários de nossa parte quando da apresentação
do Del modo de trattare. Parole é um escrito que precede de alguns meses este último e já estabelece, de modo
claro, o princípio sobre o qual um estado deve se constituir” (PANCERA, 2010, pp. 105). 178
Cf. MAQUIAVELLO, 1991, pp. VIII, sobre "La defesa e fortificacion de Florença" (pp. 169-178). 179
"Maquiavel dedica uma atenção mais específica à instituição das denúncias públicas, presumivelmente
porque era a mais democrática. Qualquer cidadão podia levantar uma acusação contra outro, especialmente
111
convocados e servidores. Assim, como se apresentará, o Estado forte é aquele que tem -
homens e armas fortes.
Nesta configuração, a relação interna e de obediência aos conscritos se funda na
função do “capitão da guarda” e das conjunturas da Infantaria e Cavalaria que protegem a
mantém a ordem sob os muros da cidade. Ainda neste capítulo apresentar-se-á a ideia de força
e da formação do exército na obra do Príncipe, onde será apreciado o modo que Maquiavel
demonstra o "como avaliar a força dos Estados", "a interdependência entre Príncipe, Poder e
armas", "os alemães, enquanto modelos de exercito", "o procedimento para com os inimigos
sob a mira – que é condição de benefícios [ou não] na condução do povo". Serão analisados
alguns capítulos específicos do Príncipe, como o Cap. XII: "Os diferentes tipos de milícia e
de tropas mercenárias, que tem por base principal de todos os Estados – as boas leis e bons
exércitos”. Neste sentido, Maquiavel apresenta o príncipe, ou o ator político como aquele que,
no comando – é modelo de exército vitorioso, obviamente com comprovada virtú. Ainda se
observará o Cap. XIII, sobre as "forças auxiliares, mistas e nacionais”. O Cap. XIV, sobre "os
deveres do príncipe para com as Milícias". Neste capítulo se estudará a tríade objetivação dos
Príncipes: a guerra, as suas leis e a sua disciplina. Para tanto é preciso, como repetitivamente
em suas obras Maquiavel recorda: "em tempos de paz é preciso preparar-se para a guerra, por
isso prepara-se o príncipe quando se exercita os soldados e se estuda atentamente a história da
humanidade". Isso revela o suporte teórico da filosofia política de Maquiavel: a prudência,
também distinta do conceito medieval, mas que fortalece a vida de homens de virtú. Concluí-
se o capítulo com as ideias de "palavra que governa o estado forte", ressaltando a importância
da retórica no meio militar, e na apreciação da vida de César Bórgia e Castruccio Castracani –
que para Maquiavel, "são modelos de ação política forte e de virtú, porque são homens
prudentes, um armado e cruel, outro retórico e ocasional" são modelos de vida cívica180
.
contra um magistrado. Mas, por razões que serão discutidas abaixo, esta pode ter sido a instituição popular da
república romana menos atraente para os padrões contemporâneos. Por fim, observarei que o modo pelo qual
Maquiavel interpreta a história romana situa-o em uma posição particularmente desajeitada: ao demonstrar o que
algumas vezes chama como os muitos “pecados” dos nobres, ele frequentemente revela o quão exitosos eram
estes em manipular o mesmo povo cuja virtude e talentos Maquiavel enaltece. Além disso, quando focaliza o
espírito do povo, ele é forçado a evocar o espectro da maneira “popularmente legitimada” pela qual a república
veio a ser destruída [...] O temor à exposição pública constituía uma dissuasão tão significativa quanto o exílio, o
aprisionamento e as multas. Maquiavel admira em especial a maneira pela qual as denúncias reprimiam
instantaneamente e “sem deferência” as ações incivis (MACHIAVELLI, 1997 [1531], I, 7). Dado que a ameaça
de sanção eleitoral tem muito menos força quando a reeleição não é provável, as denúncias são uma maneira
eficiente e relativamente imediata de manter as elites responsáveis. A maior parte da nobreza podia ser atingida
em qualquer momento, e os magistrados, como os cônsules, tinham imunidade por apenas um ano ou menos"
(McCORMICK, 2013, pp. 271. 275) 180
"A vida cívica ativa desfrutada pela Roma de base popular (talvez romantizada por Maquiavel) não é – como
observam os neorrepublicanos e os comunitaristas – um arranjo pacífico, bucólico e tranquilo de interação social.
Embora Maquiavel nunca faça a distinção, a discórdia parece ser boa por duas razões – como maneira preferida
112
2.1. A necessidade das armas, das boas leis e do Exército como base de
manutenção do poder político e da competitividade do Estado
“A virtude tomará armas contra o furor e será curto o combate, pois o antigo valor
ainda não está morto nos corações italianos” (PETRARCA apud MAQUIAVEL,
Nicolau, op. cit., 1999, pp.151).
A política renascentista, como se apresentou, faz-se a partir de um novo
ordenamento estratégico - a ação, e de uma nova lógica - a força. As armas, a fortuna e a virtù
são entendidas como ferramentas da qual deve dispor um príncipe para conseguir ou manter o
controle do poder. Ficou, portanto, evidente que o novo sistema de manutenção do Estado
moderno é o conflito que ocorre ao interno da sociedade181
.
O essencial na política não são as virtudes, objeto da filosofia moral, mas a realidade
política tal como revelada nas e pelas coisas do mundo – o conhecimento político
está condenado a uma relativa incerteza e depende da capacidade de transformar a
percepção dos acontecimentos singulares em um saber e em uma ação eficaz
(ARANOVICH, pp. 31 apud SALATINI & DEL ROIO, 2014182
)
Os partidários dos Principados disputariam, na visão de Maquiavel, pela conquista e
manutenção do poder e da liberdade através de conflitos bem determinados. A vida pública e
as coisas próprias da vida na cidade passaram a interessar mais do que o ideal de bem comum
medieval. Duas situações chamam a atenção de antemão no capítulo: "a questão da debilidade
das instituições políticas e a inexistência de um exército bem disciplinado, que coloca-se a
liberdade para Florença" (VIROLI, 2002, pp. 27). Anos mais tarde, na História de Florença,
Maquiavel, a respeito desta detalhada descrição, afirmou que "se alguma lição é útil aos
cidadãos que governam as repúblicas, é precisamente a exposição dos motivos dos ódios e
divisões das cidades" (MAQUIAVEL, 2007, pp. 31).
Neste capítulo, verifica-se a importância das boas armas, e de modo destacável,
porque atrelado à elas, a questão das boas leis, bem como do exército próprio, como
de conduzir a vida pública e como meio para melhores políticas e sucesso militar" (McCORMICK, 2013, pp.
266). 181
Sobre a inevitabilidade do conflito, Winter pensando a relação "liberdade e conflito", sobretudo, entre o povo
e os grandes aristocratas afirma que "tal conflito não é apenas salutar, mas é também condição necessária para a
liberdade. No entanto, não regulá-lo suscita os ódios e as inimizades, os partidos e as facções que dilaceram o
corpo político. Deste modo, o conflito desemboca não em liberdade, mas em anarquia ou em tirania. Para
Maquiavel, a verdadeira política é guiada pela liberdade e pela busca da igualdade, mas ela somente pode existir
se conduzida no interior de instituições sólidas, capazes de transformar o desejo de liberdade e de não-opressão
em desejo de participação na vida pública e respeito por seus mecanismos legais de regulação dos conflitos"
(WINTER, 2011, pp. 45). Vai ficar latente a ideia e o vinculo entre as boas leis e o conflito. Sobre isso pode-se
dizer que "uma vez que apenas ordena o conflito, a lei está sujeita ao processo histórico, ou seja, está
continuamente exposta ao risco e à possibilidade de corrupção" (MORAES, 2013, pp. 774). 182
SALATINI, R. & DEL ROIO, M (Org.). Reflexões sobre Maquiavel. Marília: Ofícina Universitária; São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.
113
desdobramento da lógica enunciada no capítulo anterior. Boas armas, adjunto a boas leis
conservam e mantém o estado unido. Armas bem manuseadas por homens disciplinados. O
exército se torna na teoria maquiaveliana uma obra central a ser construída com
minuciosidade. De certo modo, o exército coroa a estética da guerra como um pilar
fundamental da expressão da força do estado, enquanto instituição política, e, ao mesmo
tempo, como principio e fundamento da conquista, manutenção e conservação do poder.
A força está na origem da conquista do poder ou da fundação do Estado, diz
Maquiavel. Tal afirmação afronta a crença dominante, fundada na distinção entre
poder legítimo e poder ilegítimo. Para o pensador florentino, todos os domínios que
existiram e que existem foram fundados por meio do uso da violência. Dessa forma,
a distinção entre Principados novos ou recém-conquistados e Principados
hereditários ou mais antigos não está na origem. Em todos eles, em seu nascimento,
a força esteve presente. O que separa os principados novos dos antigos não é, pois,
como se dizia, a legitimidade; mas, sim, a permanência no tempo. Um principado
hereditário, no passado, foi um principado novo. Em decorrência, é questionada a
qualificação tradicional imputada aos usurpadores, de governantes ilegítimos
(SADEK, 2014, pp. 39).
A liberdade, que era descrita em um cenário sob o ritmo de um novo espírito de
tempo e cultura, passou a ser mantida sob a ordenança militar. As coisas da cidade eram a
razão de ser da ação política do novo modelo de Estado. Não obstante, o recrutamento
militar183
tornou-se a primordial ação do líder político, que doravante fará da guerra uma arte,
uma situação eminentemente estética da política moderna. A guerra para Maquiavel é a
resposta mais eficaz para se manter a vida livre. Tal situação enuncia a objetividade da força
política do Estado, bem como é prenuncio de sua competitividade.
A necessidade a que a guerra externa expõe o povo é a ameaça da perda da
liberdade. Desperta nele, portanto, o medo originário do retorno a uma situação de
absoluta insegurança em que a vida está exposta ao arbítrio do mais forte, cujo
resultado pode ser a morte ou a escravidão. Isto nos remete à análise, ainda que
breve, da relação da lei com a violência originária (AMES, 2009, pp. 12)
Nesta nova visão política, onde a guerra se tornou um pilar fundamental da
conquista e conservação do poder e da liberdade, depara-se com a visão que Maquiavel eleva
sobre as armas. As armas para Maquiavel são princípio e fundamento da conservação do
Estado, sobretudo quando no Príncipe, elas aparecem, ao lado das leis e da religião, como um
183
Todas as repúblicas, afirma Maquiavel nos I Primi Scritti Politici, procedem desta forma a respeito da boa
conjunção: leis e armas. Elas tem certo que, nos tempos passados se mantiveram e cresceram, e tiveram sempre
como seu principal fundamento duas coisas, isto é, justiça e armas para poder refrear e governar os súditos e para
poder defender-se dos inimigos. Continua Maquiavel, "tendo considerado que a vossa república é de boas e
santas leis bem instituídas e ordenadas em relação à administração da justiça, e que lhe falta apenas prover-se
bem de armas" (MAQUIAVEL, 2010, pp. 59).
114
dos mais eficazes meios para a realização da ação política e para a manutenção do poder184
.
Maquiavel afirma em suas obras que é extremamente necessário que um príncipe crie bons
alicerces para seu poder, pois caso contrário seguramente se arruinará, pois “é a experiência
que demonstra que só os príncipes e as repúblicas armadas obtêm grandes progressos”. É
deste modo, que neste trecho do Príncipe, Maquiavel trata dos sistemas de defesa e de ataques
que são inerentes aos tipos de Estado por ele mesmo enumerados ao longo da obra185
.
Para o Florentino, duas coisas são os sustentáculos que garantem estabilidade e
segurança a um governo soberano: boas leis e boas armas. A concepção é de que é
impossível existir boas leis se antes destas não existirem as boas armas. É nesta
perspectiva que iremos maturar as considerações de Maquiavel acerca das forças
armadas, do exército permanente nascido no período absolutista da história186
.
O Estado forte e livre, tal como o francês no Príncipe, ou o alemão nos I Primi
Scritti Politici187
, ainda que se tratando de armamento e exército, tem anexado a ideia de força
das armas e a virtù (MAQUIAVEL, 2000, pp. 31). Isso demonstra que o florentino não está
preocupado somente em refletir sobre as forças armadas, mas reconhece o elo que une este
tema com a ideia de boas leis (MANSFIELD, 1996, pp. 14-15). A virtù, as leis e as armas são
o sustentáculo do sucesso estatal, de um governo soberano e de um estado competitivo188
.
Para Maquiavel, a atribuição de “boas” para qualificar as leis não se faz a partir de
preceitos ou valorações abstratas. As leis não são boas ou más em si. “Boas”
significam leis adequadas, condizentes com as situações concretas, com os objetivos
da ordem política que se deseja construir. As leis têm a faculdade de modelar o
homem e a sociedade (SADEK, 2014, pp. 14).
184
BERBEL, M. A. F. As armas como instrumento de ação política em Maquiavel: Uma análise de O
Príncipe. Dissertação de Mestrado apresentada a Universidade de São Paulo (USP), 2009, pp. 101-107. 185
A princípio os tipos de Estados abordados no Príncipe são – Os Principados e as Repúblicas (Cap. I), mas no
(Cap. IX) Maquiavel aponta outro tipo – o qual intitula: Governo Civil – que basicamente é entendido no sentido
de que um cidadão se torna soberano. Portanto o governo é instituído pelo povo ou pela Aristocracia, conforme
haja oportunidade para um ou para a outra. O conflito do novo cenário político renascentista reside exatamente
nesta busca e conquista de oportunidade. 186
Cf. AZEVEDO Jr, M. “A força das armas na política de Maquiavel”, pp. 26, In: WEBER, I. H. O Príncipe &
Maquiavel sem ideologias. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. 187
"O poder da Alemanha, é sabido, reside muito mais nas comunidades do que entre os príncipes. Porque os
príncipes são de dois tipos: ou temporais ou Espirituais. Os temporais estão quase reduzidos a uma grande
debilidade, em parte por eles mesmos (uma vez que cada principado é dividido por igual por vários príncipes,
pelo princípio hereditário que eles observam), em parte porque o imperador os subjugou com o apoio das
comunas, de forma que eles são amigos inúteis e inimigos pouco temíveis" (MAQUIAVEL, 2010, pp. 98). 188
Como exemplo nos I Primi Scritti Politici, Maquiavel descreve a importância da obediência: Existe outra
razão do grande poder do rei da França. No passado a França não era unida, por causa dos poderosos barões
(Barão aqui significa “homem poderoso e notável pelo valor, pela posição e/ou pela riqueza,” que pode ser um
Duque ou um conde, não barão como um determinado grau na hierarquia nobiliárquica feudal) que ousavam e
tinham coragem suficiente para lançar-se em todo tipo de empresa contra o rei, como era o caso do Duque de
Guienne, de Bourbon, etc. Hoje são todos obedientíssimos ao rei, e por isso o reino é ainda mais forte
(MAQUIAVEL, 2010, pp. 85).
115
A lei é uma forma contundente de controle, assim como a força e o dinheiro. Leis,
armas e dinheiro tornam o Estado competitivo (MAQUIAVEL, 2000, pp. 33). Assim sendo,
tanto nos I Primi Scritti Politici como no Príncipe sobressaem estas ideias, ou seja, que
existem duas formas de se controlar: uma, pelas leis, outra, pela força. A primeira é própria do
homem; da racionalidade e da inteligência, a segunda é própria dos animais, do instinto e da
impetuosidade. Por isso a ideia de mezzo uomo e mezzo bestia como garantia de equilíbrio no
controle do Estado e das diretrizes que se averiguam no que tange a liberdade política
(MARCHAND, 1975, pp. 69-75).
Claude Lefort percebe outra faceta, agora política, do conceito de liberdade proposto
por Maquiavel: “A liberdade política se entende por seu contrário; é a afirmação de
um modo de existência, em certas fronteiras, de tal sorte que ninguém tem
autoridade para decidir assuntos que dizem respeito a todos, isto é, para ocultar o
lugar do poder”. As boas leis, para Maquiavel, portanto, não dizem respeito aos
direitos individuais e, sim, às obrigações cívicas e seus benefícios para o cidadão.
Traduzem-se em termos de segurança pessoal (SOUZA, 2007, pp. 13-14)189
.
Com a obra maquiaveliana, tem-se a virada do mundo invisível e visível ao mundo
previsível (SENELLART, 2006, pp. 225). Não se faz guerra ao relento, de qualquer forma e
modo. É preciso um longo exercício de previsibilidade para se ater as coisas essenciais do
conflito. A guerra também é feita com virtù, aliás com muita reflexão e cálculo sobre a
dimensão da oportunidade. Isto traz como consequência natural, a ação política, junto com as
leis e a diplomacia, que passaram a ser governadas pela força. É pela força das armas, que
doravante, convinha avaliar todo poder humano, temporal e estatal190
.
Tendo apresentado e propositalmente superado o discurso metafísico e religioso da
manutenção absolutista e medieval, Maquiavel desde 1498 – atuando como Secretário e
vendo no uso da força o caminho eficaz da política, acrescenta que a força não é somente um
sistema de ideias, mas algo real, instrumental, materializado. É o caso das armas. A princípio
as boas armas são as espadas e o modelo de cavalaria e infantaria do antigo regime medieval,
não obstante entra em cena também a arma de fogo que a priori não teve boa aceitação do
florentino, mas se tornou adiante na história, e o é até os dias atuais, a mais eficaz das armas
de combate e de guerra.
189
LEFORT, C. Desafios da escrita política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999, pp. 170. 190
A técnica de Maquiavel com o tema da força pode-se relacionar com a ideia de “profeta desarmado” e com a
pessoa do Frei Savonarola. SENELLART. As artes de governar. Trad. de Paulo Neves, São Paulo: Ed. 34,
2006, pp. 225.
116
Assim sendo, se torna necessário saber dosar os humores191
. A racionalidade
humana é que permite a feitura da lei impedindo assim que os homens caiam no estado de
natureza completamente hobbesiano192
. Maquiavel reconhece que só o homem é capaz de
legislar, ir além do instinto animal, mas não prescindindo dele. Dosar os humores significa ser
suficientemente humano para usar a lei até o extremo, até seu limite que é o uso da força para
o seu cumprimento. É a parte inteligente do esquema da guerra. Porém, usar exacerbadamente
a força, desrespeitando as leis da natureza e a divina, leis de boa convivência, seria inaugurar
um reinado de força que sucumbiria ao primeiro valente e corajoso que se lhe pusesse à
frente, inclusive do povo. Dosar os humores é sinal de virtú (MANSFIELD, 1996, pp. 8). Tal
é o alicerce que fundamenta a ligação terminológica entre a força das armas em comunhão
com as boas leis. Perceba-se que virtú não é o descarte da violência. Virtú é o uso comedido e
oportuno da violência quando necessária.
O meu dever foi agir de modo que seja vosso o arbítrio, e isso foi feito. A vós agora
cabe decidir sobre o que será conveniente e útil à república (MAQUIAVEL, 2010,
pp. 45).
Há momentos numa determinada República, que é inevitável o uso da força. Assim
sendo, Maquiavel indica no relato da provisão de dezembro de 1506 nos I Primi Scritti
Politici, que, observando a história das grandes e eficazes Repúblicas, destacam-se dois
referências que são norteadoras e fundamentos para a manutenção da magnificência da
mesma, e futuramente, em relação à Florença. Os pilares referenciais são: as leis que
manuseiam a ordem na justiça e a necessidade das armas, tendo como base a escolha pelo uso
da força193
. Ambas, justiça e armas colaboram para que os súditos sejam, quando necessário,
refreados e os inimigos combatidos (SANCHEZ-PARGA, 2005, pp. 73).
191
"A partir da teoria dos humores Maquiavel enuncia sua tese geral: os homens são dotados de desejos e
buscam saciá-los ao infinito. Buscando na concepção médico-galena as bases de seu pensamento político, os
desejos dos homens, para o autor, são compreendidos na dinâmica dos humores. Os humores, como líquidos, ou
fluídos, no corpo, são as pulsões viscerais que o mantém em movimento. Os desejos, para Maquiavel, são como
os humores do corpo, uma espécie de energia que impulsiona o indivíduo em busca de algo que o satisfaça. Estes
desejos são infinitos e insaciáveis. Compreender a dinâmica destes desejos e dar-lhes vazão adequada é
necessário se quiser manter uma determinada ordem e evitar a derrocada do Estado, ensina Maquiavel. Como,
para o florentino, há dois distintos humores desejosos em todo corpo político – os grandes e o povo , o conflito
civil encontra aí seu fundamento" (WINTER, 2011, pp. 50-51) 192
Mesmo que se tenha como pano de fundo uma antropologia negativa em Maquiavel, não se pode afirmar que
suas obras denotem uma natureza voltada exclusivamente para a luta do todos contra todos. Maquiavel admitiu
que o cidadão não era somente imago Dei, ele trouxe a cena da política as contradições próprias do mezzo bestia. 193
O exercício do poder é sempre conflituoso e se constitui em oposição a outros poderes. Um príncipe, para
Maquiavel, “não deve ter outro objetivo nem outro pensamento, nem ter qualquer outra coisa como prática a não
ser a guerra, o seu regulamento e sua disciplina, porque essa é a única arte que se espera de quem comanda”
(cap. XII, Príncipe). Essa ideia ganharia no século seguinte uma formulação que faria fama. Como escreve
Hobbes, na ausência de qualquer outra instituição, um poder torna soberano aquele que o possui o comando da
milícia. Por isso. seja quem for o general de um exército, quem possui o poder soberano é sempre o
117
Os romanos pensaram outrora que os povos rebelados devem ser beneficiados ou
mortos, e qualquer outro caminho seria perigosíssimo (MAQUIAVEL, 2010, pp.
46).
A ideia de boas leis e boas armas surge em relação a necessidade de repensar a
natureza do exército, e Maquiavel parte para a reflexão através da tripartição possível – ou
seja, a ideia de um exército próprio, ou mercenário ou auxiliar/misto. Os dois últimos tipos
são perigosos, porque os soldados mesmos não são de confiança, são desunidos, ambiciosos,
indisciplinados, ousados para com os amigos e covardes perante os inimigos, e mais, não
temem a Deus. Tais homens não possuem lealdade aos outros homens e, alguns deles – os
mercenários – só lutam pelo salário que recebem, nem mesmo estão dispostos a morrer pelo
seu soberano, são fiéis em tempo de paz, mas quando chega o tempo de guerra, eles
abandonam a função. Maquiavel deixa claro em “suas penas” a necessidade de um exército
patriota, fiel ao território e ao príncipe (MAQUIAVEL, 2010, pp. 37-40).
Sobre as "boas leis" pode-se entender que
Na verdade, o pensador florentino desposa a tese segundo a qual as boas leis nascem
dos conflitos sociais, segundo o exemplo romano da oposição entre patrícios e
plebeus. Os conflitos são capazes de produzir ordem por conterem a força e coerção
necessárias à atividade de governar. A lei tem a função de ordenar o conflito, e não
naturalizá-lo ou extingui-lo (MORAES, 2013, pp. 774)194
.
Neste sentido é preciso formar um Exército para Florença. Maquiavel afirma que
todas as deliberações que se verificarem, devem ser tomadas na presença dos magníficos e
eminentes Senhores, sob a tutela do escrivão, e diante deste norteamento se delineia os ofícios
e a montagem do Exército Florentino (MAQUIAVEL, 2010, pp. 39-40). Mas, como manter a
estabilidade política de um Estado numa sociedade contraditória, como o conflito entre os
grandes e o povo? Evidentemente, a existência da política pressupõe unidade, concórdia.
Entretanto, esta unidade política, necessária para a existência do Estado, nunca pressupõe
aniquilação do conflito social. O Estado só se mantém quando consegue dar vazão ao conflito
de desejos. Reduzi-lo à unidade, à concórdia, o enfraquece e o torna inseguro, sublinha
Maquiavel (WINTER, 2006, pp. 126). E mais
generalíssimo. Cf. KRONENBERGER, T. S. & MALTA, M. Considerações sobre a concepção de Estado em
Maquiavel e em Hobbes, pp. 68. 194
Há uma conexão entre a ideia de boas leis e conflitos no pensamento de Maquiavel. Quanto a isto pode-se
consultar MORAES, 2013, pp. 775. "Na hipótese da lei nascendo do conflito, está posta a oposição irredutível
dos dois “humores” (ou “desejos”, em um linguajar atual) existentes na sociedade [...] “Boas leis” e “boas
armas” precisam estar bem articuladas para o bom resultado do estadista. Como pode ser necessário “saber usar
bem a natureza animal”, o príncipe deve escolher a raposa e o leão, “porque o leão não tem defesa contra os
laços, nem a raposa contra os lobos”, necessitando “ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os
lobos” (op. cit. pp. 774).
118
A questão da lei se prende, portanto, à lógica da necessidade, resultando ela própria
da impossibilidade dos homens coexistirem em uma comunidade política sem
alguma forma de coerção (ADVERSE, 2007, pp. 49).
Ora, se os homens fossem seres naturalmente inclinados para a vida em sociedade,
não seria necessário existir um Estado (FORNEZIERI, 2006, pp. 34-40)195
. Pode-se
compreender, a partir das teses maquiavelianas sobre o conflito entre os homens, a tão famosa
ruptura, operada pelo pensador florentino, entre a ética e a política. Mas até que ponto,
realmente, existe uma ruptura entre ética e política, na esteira do pensamento de Maquiavel?
Pois, sendo os homens naturalmente maus e estando sempre dispostos a dar vazão a suas
maldades, mesmo sob o poder do Estado, o príncipe não tem como se pautar por regras
morais (medievais) na esperança de que elas o orientem na condução dos negócios do Estado.
Assim, em que medida os fins justificam os meios? Maquiavel, sobre a ideia de ética e fins,
elabora uma política fundada na habilidade do seu líder, conquanto este prossiga firmemente,
perseguindo fins. Não é que valha tudo para se efetivar o poder, mas é necessário
fortuitamente perseguir e calcular matematicamente os fins que se quer alcançar. Há nos
relatórios uma tese sobre as boas armas, de modo a Maquiavel deixar a questão sobre a
necessidade das forças militares
E de novo vos replico que sem força as cidades não sem mantêm, mas chegam a seu
fim. E o fim ou é pelo seu abandono por parte de sua população, ou pela servidão.
[...] Eu vos advirto, não digais depois: “Isso não me foi dito!” E se replicardes: “Que
necessidade há de forças militares? (MAQUIAVEL, 2010, pp. 51).
A preocupação de Maquiavel sobre a formação das tropas militares daquela época
partiu de uma ótica centrada na Itália que possuía uma prática militar de recrutamento
mercenário. No sonho de ver a Itália como a França, Maquiavel até se arrisca como “cabeça”
do recrutamento de homens, mas ele não é homem de ação. Como já citado, seu recrutamento
foi um fiasco. No entanto, não devemos passar por essa questão sem antes notarmos que o
século XVI estaria vivendo uma ascensão urbana, uma espécie de “evolução” daquelas
cidades que se reorganizavam de uma Idade Média que transitava do rural para o urbano,
onde a “contratação” de trabalhadores livres se fazia necessária (tanto para o trabalhador
como para o „empregador‟). É neste sentido que pode-se enxergar esse recrutamento
assalariado de soldados mercenários em muitas partes da Europa ocidental, inclusive na Itália,
grande pólo de cidades comerciais daquela época; basta notar que o salário seria algo
essencial e vital demais para um mundo que iniciara o processo de compra e venda de mão- 195
FORNEZIERI, A. Maquiavel e o Bom governo. Tese de Doutorado apresentada a Universidade de São
Paulo (USP). Departamento de Ciência Política. São Paulo, 2006.
119
de-obra (tratando-se em termos monetários), e uma destas profissionalizações (talvez a mais
importante) se deu na figura do soldado (RUBSTEIN, 1972, pp. 22).
A novidade que Maquiavel acrescenta ao raciocínio de Políbio surge no quarto
capítulo do primeiro livro: a noção de que a liberdade e a força da república romana
teriam nascido da desunião entre a plebe e o senado. Aqui, o pensador florentino
introduz, uma vez mais contra a tradição, a ideia do conflito como condição de
estabilidade e/ou firmeza da república (e, portanto, das instituições). “Todas as leis
para proteger a liberdade nascem da desunião [entre o povo e os poderosos, entre a
plebe e o Senado]”, escreve o autor196
.
Todas as cidades que por algum tempo foram governadas por um príncipe absoluto,
pelos optimates ou pelo povo, empregaram na sua defesa as suas forças misturadas com a
prudência, porque esta sozinha não bastava, e aquelas ou não levam a termo a ação política
ou, se a levam, não mantêm os resultados obtidos.
São, portanto, essas duas coisas o nervo de todas as Senhorias que já existiram ou
ainda existirão no mundo. E quem observou as mudanças dos reinos, as ruínas das
províncias e das cidades, não as viu terem como causa outra coisa senão a falta de
armas ou de prudência. E dado que as vossas excelências me concedem que isso seja
verdade, como o é, necessariamente se segue que vós quereis que na vossa cidade
haja uma e outra dessas duas coisas, e que vós procurais bem, se elas existirem,
conservá-las; e se não existirem, providenciá-las. E eu, de fato, há dois meses tive
boas esperanças que vós tenderíeis a esse fim; mas, tendo visto depois tanta
obstinação vossa, fiquei aturdido. E vendo que podeis ouvir e ver, mas que não
ouvis nem vedes o que, e somente isso, tanto surpreende vossos inimigos, me
persuado de que Deus não nos castigou à sua maneira e que nos reserva para um
flagelo maior (MAQUIAVEL, 2010, pp. 51)
Com relação à política de defesa, onde há pessoas e não um exército é notado uma
clara incompetência por parte do soberano, pois é de sua exclusiva competência formar um
exército próprio para a defesa da nação. É, também, de extrema importância saber-se a hora
própria para instituir-se a ditadura, que, em ocasiões excepcionais, é necessária a fim de
tomarem-se decisões rápidas, a dispensar, assim, consultar as tradicionais instituições do
Estado. Contudo, ela deve-se instituir por período limitado, de modo a não se corromper e
deve existir até quando o motivo o qual a fez precisar-se for eliminado (RUBSTEIN, 1972,
pp. 26).
Assim como os analistas políticos de hoje encontram problemas e tentam provocar
uma reflexão para solucionar, mesmo que teoricamente, as intempéries sociais, Maquiavel (o
primeiro a realizar esta tarefa) enxerga em sua época algo que surgiu com os novos rumos que
a sociedade tomava quanto a constituição de forças armadas: a constituição de tropas
mercenárias (MAQUIAVEL, 2010, pp. 51-53). O soberano de valor próprio, o príncipe
196
Cf. POLÍBIOS. História. Brasília: UnB, 1985, pp. 31.
120
prudente deve sempre evitar constituir tropas com soldados que não sejam os seus, com forças
que não sejam genuinamente suas. Formar um exército mercenário significa colocar em risco
a integridade do governo e a força da nação, pois o “salário modesto” oferecido não seria o
suficiente para que neste tipo de soldado florescesse o sentimento patriota, o desejo de vitória
acima de qualquer outro princípio. Em suma, o mercenário não morreria pelo soberano, pelo
Estado197
. Além do que, o risco que o príncipe corria de aprisionar o seu domínio a um outro,
era grandioso, pois se “um exército mercenário perde, será apenas uma derrota; se este vence,
a vitória aprisionará o soberano que utilizou destas forças” porque não mais conseguirá sair da
dependência de homens que não são seus, tornando os seus legítimos covardes e inseguros
que irão lutar apenas com a ajuda de outros. Portanto, as tropas mercenárias são exércitos
erguidos de forma errada para Maquiavel, algo que pode levar o Estado soberano às ruínas do
fracasso (SANCHEZ-PARGA, 2005, pp. 19).
Daí a serventia da lei. As leis têm como função primordial controlar as armas198
.
Boas armas e boas leis são parte de um todo necessário para fortalecimento do príncipe. Boas
leis que regulamentem o recrutamento militar. A base de um exército e o modo com o qual os
homens desde pequenos são tratados. Maquiavel dá um realce a necessidade da disciplina. E
de tal modo que, no instante de instituição da República deve o povo “assegurarse, mediante
leis, contra o capitão, para que não exorbite ele das suas funções”. Desta forma, Maquiavel
mais uma vez condiciona, numa República, as armas às leis, criando assim uma hierarquia
entre ambas. Claro que para o florentino a soberania está no povo que institui a lei, devendo o
mesmo ter força suficiente para repelir todo aquele que através de armas queira deixalo fora,
tornandose a lei a defesa do homem livre, do cidadão perante todo aquele que, através de
armas, queira aboli-la. As armas são, então, a garantia da liberdade e apesar de serem
primárias na confecção estatal, não sobrevivem sem a primeira, ou seja, as boas leis
(RUBSTEIN, 1972, pp. 69).
197
Norberto Bobbio afirma que "o fato de que Maquiavel retorna com freqüência a essa distinção, utilizando-a
para compreender a realidade do seu tempo, prova que ela não é livresca, ou meramente cômoda. Limito-me
aqui a citar um trecho de escritor menor, a Exposição sobre a Reforma do Estado de Florença a Instâncias do
Papa Leão, que começa com estas palavras: 'A razão por que Florença sempre variou nos seus governos reside
no fato de que nunca houve ali república ou principado com as qualidades devidas. Não se pode dizer que é
estável um principado onde tudo se faz conforme deseja um só, e se delibera mediante o consenso de muitos;
nem se pode crer que seja duradoura a república onde não se satisfaz aqueles requisitos que a arruinam, quando
não satisfeitos" (BOBBIO, 1981, pp. 85). 198
Thomas Berns (1997, pp. 39 apud AMES), resume essa relação nos termos seguintes: Indeterminação das
boas leis primeiramente, por causa de sua relação necessariamente circular com a história; indeterminação a
fortiori de seu momento originário que se determina unicamente como momento que faz vir junto um futuro
sempre indeterminado que escusa um necessário engajamento presente que somente pode acusar na medida em
que faz violência à história. Eis o que exprime a famosa frase: “conviene bene che, accusandolo il fato, lo effetto
lo scusi”. A conveniência (conviene, cum venire, vir junto) que deve haver entre o que não é ainda legal e o que
o será (AMES, 2011, pp. 34).
121
As leis encontram, como podemos notar, um limite intransponível na corrupção
política da sociedade e de suas instituições: “[...] não há leis nem ordens que bastem
para frear a corrupção generalizada” (Discursos I,18). Quando o tecido social (a
“matéria” de que é constituída a coletividade política) e as instituições políticas (as
ordini) se corrompem, não há condições para a produção da legalidade. A lei deixa
de gerar e reproduzir vínculos; em lugar de ampliar e reforçar o público, debilita-o e
o submete ao privado (AMES, 2011, pp. 35)
Analisa Maquiavel a necessidade de um amparo militar – pois política se faz com
força armada. A força é a garantia da unidade política. Da posse de armas próprias depende
outro fator (MAQUIAVEL, 2010, pp. 55-58). Trata-se da conservação de um estado diante
das contínuas ameaças e dos constantes confrontos a que estava sujeita a Itália. Neste caso, os
pactos não são suficientes, pois eles somente são garantidos pela força. A regra de que lança
mão para concluir o argumento lembra-nos Hobbes199
descrevendo a situação de guerra:
“porque toda cidade, todo estado, deve considerar inimigos todos aqueles que pensem ser
possível ocupar o seu [estado] e de quem vocês não se podem defender” (MACHIAVELLI,
1997, pp. 13). Assim, a respeitabilidade e subsistência de um estado somente são obtidas com
a força e esta depende, na ordem das razões maquiavelianas, da possessão de exércitos
próprios. Daí que Florença, cujo nascimento foi livre, para conservar sua liberdade, isto é, a
soberania de seu estado, deva levar em consideração este fato (PANCERA, 2010, p. 105).
Maquiavel contrasta nos I Primi Scritti Politici os exércitos da França e da
Alemanha:
As infantarias francesas não podem ser muito boas, porque há muito tempo que não
enfrentam uma guerra e por isso não têm experiência nenhuma. Além disso,
naquelas terras todos são ignóbeis e trabalhadores, e estão tão submissos aos nobres
e são tão reprimidos em toda iniciativa que acabam sendo covardes. E por isso que
não se vê o rei utilizá-los nas guerras, porque dão bons resultados, apesar dos
gascões, que o rei utiliza por serem um pouco melhores do que os outros, isso
porque estão próximos da fronteira com a Espanha e têm algo dos espanhóis
(MAQUIAVEL, 2010, pp. 86). [...] As infantarias alemãs são muito boas e seus
homens de boa estatura, ao contrário dos suíços, que são pequenos e sujos e nem são
belos; mas não se armam ou se armam pouco, somente com a lança e a espada, para
serem mais desembaraçados, expeditos e leves. E costumam dizer que assim fazem
por não terem outro inimigo senão a artilharia, contra a qual a armadura, a couraça
ou o gorjal não os podem defender (MAQUIAVEL, 2010, pp. 99-100).
Entre a milícia francesa e alemã, Maquiavel indica a primeira como modelo de
exército forte. Nos Discorsi III, 31, (2007, pp. 416), Maquiavel afirma ser o exército "o 199
"O Estado hobsseniano é aquele Estado erigido a partir do conchavo dos cidadãos que o faz existente, que o
compõe a fim de estabelecer o ordenamento mais racional da, e para, o grupo dos pactuantes, isto é, a sociedade.
Vale também lembrar que o Estado está isento de qualquer condicionamento ético e moral. O Estado é titular de
todos os poderes e age tendo em vista a garantia da paz e dos direitos básicos dos cidadãos, sem levar em
consideração qualquer base ética e moral. Hobbes observa que o contrato social é a solução para a superação
tanto da violência como da insegurança coletiva existentes no Estado de Natureza e, assim, o Estado é a solução
à sobrevivência do homem em Sociedade" (LOPES, 2012, pp. 179).
122
fundamento de todos os estados, e que onde não há milícia não pode haver boas leis nem
coisa alguma que seja boa". Ele também indica, a partir do modelo romano, observado
também em seu tempo na milícia francesa, a questão da "disciplina, ordenação, moderação,
competência para a guerra", sobretudo entendendo a guerra como estética e exercício, ou seja,
"durante a guerra deve prescrevê-la como um objeto de necessidade e uma oportunidade de
conquistar a glória, mas competindo unicamente ao governo, como o fez o de Roma, exercê-la
como um ofício" (MAQUIAVEL, 2006, pp. 65). Fica evidente que seguindo o roteiro de
Maquiavel, a ordenação para as armas é uma necessidade do Estado. Esta organização é um
fato para se pensar, seja na cidade ou no campo, pois é preciso "armar-se", pois é esta a
garantia da competitividade do Estado forte e da exímia formação de uma Milícia.
VALVERDE aponta a política não somente como uma técnica da articulação ideológica e do
controle das forças em movimento, mas também uma espécie de técnica teatral. Uma técnica
lúdica de forçar a imaginação nas possibilidades de bem representar, como no teatro. Para
tanto, é mister vasculhar, antecipadamente, os bastidores, as coxias, os interiores, e devassá-
los, mas fazendo-os permanecer como que inviolados e invioláveis (1998, pp. 45)200
.
2.2. As armas e o exército próprio: Análise interna dos I Primi Scritti Politici
e do Príncipe
Ausência das armas em Maquiavel representa um dos fatores determinantes para o
fracasso político201
.
A fortuna é o imprevisível, e pode também ser considerada como princípio de
alcance entre a glória ou a ruína de uma República e da vida do ator político. Maquiavel
reconhece que palavras sem armas não são indicativo de um plano de governo seguro e de
sucesso, pois a glória ou a ruína têm como pontos uniformes o uso bem feito das armas e do
exército ou a sua negligência. Confiar à fortuna o rumo do Estado é muito perigoso, e o
insucesso é quase certo, por outro lado, a virtú é o saber como atuar de acordo com a
necessidade oportuna, é a “vontade-força”, qualidade fundamental do príncipe que define,
200
Prof. Valverde complementa a ideia de técnica ao afirmar que "a técnica política se complexifica pelo fato de
Maquiavel não definir nenhum dos conceitos sobre os quais discorre: fundação, corrupção, liberdade, força,
virtude, glória, grandezza, fortuna, etc. Por certo qualquer tentativa de definição fossilizaria a abordagem da
realidade caleidoscópica do objeto em pauta" (VALVERDE, 1998, pp. 44). 201
Quentin Skinner defende que o papel político da força é um dos pontos de desacordo entre Maquiavel e os
escritores de sua época, dedicados a escrever espelhos de príncipe, gênero literário que procurava determinar as
ações virtuosas que um príncipe deveria realizar para obter sucesso político. Cf. SKINNER, Q. As fundações do
pensamento político moderno, pp. 150-151.
123
segundo suas qualidades específicas, o destino da sua ação política. Quando virtú e fortuna
caminham juntas, o resultado é a vitória, a glória – como pode-se observar nos exemplos
históricos relatados pelo florentino ao decorrer dos I Primi Scritti Politici e do Príncipe – caso
contrário, a derrota, a ruína é sempre prevista, é possibilidade.
Uma República fundada em palavras terá provavelmente como resultado a situação
do Frei Savonarola, ou seja, a derrota e a morte. A política fundada na eloquência e na
oratória não garantem nada. Maquiavel reconhece que é de bom grado que o príncipe tenha
um espírito preparado para se adaptar às variações das circunstâncias e da fortuna e, a manter-
se, tanto quanto possível, no caminho do bem, antenado pelas suas qualidades, pronto
igualmente a enveredar-se por uma outra via, as vezes denominada de
"maldade/maquiavélica", quando necessário. A ocasião desfavorável não solicita outra coisa
que o uso das armas. As armas, como já se apresentou, são um valor necessário para a
conquista e manutenção do poder (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 143)
A força de um príncipe ou Estado avança como instrumental histórico e real para as
armas. São elas que fazem um principado ou uma República forte. A história humana, como
afirma um dos fundadores da Nova História, Marc Bloch (1997, p. 55), é o estudo do homem
em uma análise do seu tempo. Mas a fonte de poder é criada com dois movimentos que se
desencadeiam em tom de afastamento ou de complementaridade. São eles: a astúcia ou a
força. Nesta já se viu, trata-se do uso da violência que tem como finalidade a dominação e a
legitimação de ações político-sociais. Dominar não é nada mais nada menos que aplicar a
teoria da força em sua tríplice comunhão: força, armas e exército. Não obstante, a astúcia tem
seu fundamento na oportunidade e seu manuseio é a virtú e o bom andamento consciente da
fortuna (BARROS, 2006, pp. 13).
Por essa razão, vale recuperar uma pergunta central do Príncipe: como medir as
forças de todos os Estados202
? Questão válida para refletir o valor de um exército nacional na
proteção dos governos modernos. E, para incitar a discussão, pode-se ler o cap. III do
Príncipe, onde Maquiavel falando das Monarquias Mistas discorre sobre a demonstração da
imposição da força. Imposição significa avançar com homens armados e de modo organizado
conquistando espaços. Este fato, certamente causará medo (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 35-
55). O medo é o sentimento causado pela força aplicada violentamente num local específico.
202
"O conceito de razão de Estado parte do pressuposto político da impossibilidade de organização humana sem
uma firma égide centralizadora; sem o pulso de um Estado forte, seria inevitável o eterno retorno à anarquia
generalizada. Dessa forma, a necessidade de manutenção do bem da estrutura estatal, inclusive com o controle
absoluto dos monopólios estatais (força física, impostos e leis), justificaria a repressão de interesses particulares
e demais medidas adotadas em prol dos interesses do Estado" (GONÇALVES, 2010, pp. 9)
124
A força gera o medo. O medo gera inconsistência e esta atitude cria a vulnerabilidade do
local. Estando vulnerável, o exército pode atacar. O exército deve ser formado por homens
disciplinados e não mercenários ou mistos, mas amantes da pátria. Devem atacar armados, e
se necessário violentamente. Tal situação reserva o sucesso da ação política.
Assim, entre “uma narrativa e outra” – o que se percebe é Maquiavel descrevendo
nos I Primi Scritti Politici como se constitui o Magistrado dos Nove Oficiais da ordenança da
milícia florentina, suas funções próprias e todas as respectivas informações sobre os
subalternos de tal Magistrado. Como primeiro aspecto textual, amparado no conhecimento
histórico sobre a temática, Maquiavel afirma que sobressai a ideia de que as leis protegendo a
justiça e a força das armas são pressupostos da proteção de uma cidade. Nos Discorsi ele
mesmo prorroga a afirmação, dizendo que “se não houver nem leis e nem instituições que
possam reprimir” e continua SGANZERLA comentando “somente um governo de medidas
extraordinárias, utilizando-se da violência, das armas e da força, poderá produzir algum
resultado benéfico à sociedade”203
.
Eles examinaram também se é acreditável que o assédio baste sem a força, e são do
parecer que não baste, porque acreditam que os pisanos têm com o que viver até a
próxima colheita, e pelas notícias que se tem de quem vem de Pisa, pelos sinais da
escassa qualidade do pão que lá se vende, e pelo ânimo obstinado dos pisanos, estão
dispostos a suportar muito, e não se vê porque devam suportar somente uma parte do
que podem, por isso pensam os sábios nesses assuntos que vós sereis obrigados a
usar a força. Eles pensam que seria impossível que os pisanos resistam dias, se vós
os mantiverdes assediados durante quarenta ou cinqüenta dias, e durante esse tempo
tirar da cidade todos os mercenários que puderem, e não só tirar de lá quem quiser
sair, mas premiar quem não o quiser para que saia. Depois, passado o dito tempo,
reunir quantos infantes de puder reunir, disparar duas vezes as baterias, e quando
eles estiverem para assaltar as muralhas, então dar a permissão de sair para quem
quiser sair da cidade: mulheres, crianças, todos, porque todos estão aptos a defendê-
la, e assim se acharão os pisanos sem defensores e sem dinheiro, atacados por dois
lados, com três ou quatro assaltos seria impossível que resistissem, se não for por
milagre, conforme os mais sábios nessas matérias afirmam (MAQUIAVEL, 2010,
pp. 34).
Assim, Florença deve repousar sua confiança nos dados da história – sob o
regimento das boas leis e sob a força dos bons soldados, bem como das boas armas. Depois,
numa vertente construtiva, Maquiavel demonstra quem é e como deve ser formado o Exército
de Florença. Nos I Primi Scritti Politici é descrita a hierarquia desde o Magistrado dos Dez,
passando pelo Conselho dos Nove, chegando aos eleitos deste oficio na cidade de Florença
sob a proteção de São João Batista. Os eleitos devem exercer com virtú a sua função na
milícia florentina. Na seqüência, Maquiavel evidencia os Nove oficiais da ordenança e milícia
203
Cf. MAQUIAVEL, N. Discorsi, pp. 75-76, In: SGANZERLA, A. Maquiavel: A religião como instrumento
da política. Dissertação de Mestrado, São Paulo: PUC – SP, 2004, pp. 49.
125
florentina, destacando as suas funções e a credibilidade administrativa em relação aos outros
membros da cidade (MAQUIAVEL, 2010, pp. 59-69).
No modo de tratar os povos do vale do Chiana rebelados, Maquiavel lança mão de
um procedimento que será a marca de suas obras teóricas posteriores: o uso da história
como guia para suas reflexões sobre o presente. No primeiro capítulo ficou evidente a
importância deste olhar distanciado, mas ao mesmo tempo, próximo do comportamento de
atores e repúblicas que souberam conquistar a manter o poder e a liberdade. Do exemplo
romano, Maquiavel deduz que existem duas vias básicas para tratar povos conquistados: ou
destruí-los completamente, de tal forma que não possam mais fazer mal ao conquistador; ou
incorporá-los à nova pátria, tratando-os com suavidade e amizade. Ao abordar o caso das
populações do vale do Chiana e aquele de Arezzo, Maquiavel parte de um pressuposto: os
homens repetem suas paixões e sua forma de agir ao longo dos tempos e, por isso, podem se
servir da história para tomar decisões no presente (MAQUIAVEL, 2010, pp. 45-47).
Por onde começar então o armamento e o sitiamento da corporação militar?204
Nem parece aconselhável começar pelo distrito, mesmo que nele se possa introduzir
a milícia a pé, porque não seria uma medida segura para a vossa cidade,
principalmente naqueles lugares do distrito nos quais há cidades ou aldeias com
fortalezas nas quais uma província possa resistir. Porque os humores da Toscana são
tais que assim que alguém soubesse que pode governar-se sozinho, não iria mais
querer um senhor, sobretudo se ele se vê armado e o senhor desarmado
(MAQUIAVEL, 2010, pp. 55-56)
O esteio de tal procedimento (recorrer ao passado) era a confiança de que a natureza
humana é repetitiva e, portanto, pode ser analisada em qualquer tempo com as mesmas
ferramentas teóricas. Vendo Cesar Bórgia, começou a pensar as coisas da política de um ponto
de vista bastante diferente daquele de seus contemporâneos. Ao elogiar, por exemplo, a
habilidade com a qual César Bórgia havia se livrado de seus inimigos, pelo texto de 1515 dos
I Primi Scritti Politici e sua repetição no cap. VII do Príncipe, ele incorria no perigo de se
transformar em um defensor da prática de crueldades, que, inclusive, ameaçavam se voltar
contra Florença. Isso marca na história interpretativa de seu pensamento o que se denomina
maquiavelismo. O fato que ele percebia, no entanto, era não que a crueldade fosse boa em si
mesma, mas que a simples condenação dos atos dos governantes não ajudava nem a
204
Retomamos a ideia de Maquiavel Secretário, e de acordo com DA SILVA, "a Segunda Chancelaria era a alta
magistratura militar e diplomática de Florença. Maquiavel tornava-se portanto o responsável por apresentar
instruções e ordens a serem executadas e cumpridas nos territórios florentinos. E mais, como Secretário dos Dez
da Liberdade, era de competência de Maquiavel a questão da fortificação e defesa da cidade de Florença, os
assuntos referentes às suas alianças militares e demais assuntos referentes à guerra e paz nos seus territórios"
(2013, pp. 34).
126
compreendê-los, nem a evitar seus efeitos (MAQUIAVEL, 2010, pp. 41-44). Esta situação
traz a tona uma cena épica, onde Maquiavel define um lado diverso da virtú, quando
reconhece que Cesar Bórgia agiu plenamente com virtú ao derrotar e decapitar seus inimigos.
Quando Maquiavel trata do Discurso sobre a ordenação do Estado de Florença para as
armas (Os motivos da ordenança, onde encontrá-la e o que é necessário fazer) de 1506205
,
afirma que é preciso dizer sempre justiça e armas no que diz respeito a conservação da cidade.
Declara: “Vós, de justiça tendes pouca e de armas nada, e o modo para reaver uma e outra é
um só: organizar-se para as armas por deliberação pública, ordenadamente, e manter essa
ordem” (MAQUIAVEL, 2010, pp. 55).
E supondo que se armar seja coisa julgada, se quisermos ordenar o Estado de
Florença para as armas, será necessário examinar como se deveria aí implantar essa
milícia. E considerando o vosso Estado ele se acha dividido em cidade, campo e
distrito, de maneira que é preciso começar a organizar a milícia a partir de um
desses lugares, ou de dois, ou a partir de todos eles de uma vez. E como coisas
grandes devem ser conduzidas devagar, não se poderia de modo nenhum começar a
organizá-la em dois, nem em todos os lugares supracitados, sem causar uma grande
confusão e um grande perigo com sua implantação. É necessário, portanto, escolher
um deles (MAQUIAVEL, 2010, pp. 55).
Por onde começar a se armar?206
O projeto deve começar pelo recrutamento no
campo. Primeiramente, a escolha do campo não é aleatória, é algo premeditado nos escritos
políticos. É preferível a realidade campezina, porque escolher a cidade para o recrutamento do
exército já é, ainda que de maneira genérica, compô-lo por homens que comandam e homens
que obedecem, por homens que combatem a pé e homens que militam a cavalo e, tendo de
introduzir o exército em uma província desacostumada às armas, é necessário, como em todas
as outras disciplinas, começar pela parte mais fácil, no caso, o campo e os homens que ali
residem (MAQUIAVEL, 2010, pp. 55). Maquiavel também – ainda para defender a ideia do
inicio no campo, afirma que
não seja aconselhável começar pelo distrito, mesmo que nele se possa introduzir a
milícia a pé, porque não seria uma medida segura para a vossa cidade,
principalmente naqueles lugares do distrito nos quais há cidades ou aldeias com
fortalezas e nas quais também uma província possa resistir" (MAQUIAVEL, 2010,
pp. 56)
205
O texto, “Discurso sobre a Ordenação do Estado de Florença para as Armas”, de 1506, volta à questão
militar com mais um apelo aos cidadãos para não confiar em alianças nem na contratação de mercenários para
defender a cidade, mas sim financiar uma força militar própria (METTENHEIN, pp. 11, In MAQUIAVEL,
2010). 206
“A virtude tomará armas contra o furor e será breve o combate, pois o antigo valor ainda não está morto nos
corações italianos” (MAQUIAVEL, 1973, pp. 116).
127
Acrescenta o florentino que "não se devem se armar naqueles lugares fortificados
como, Arezzo, San Sepolcro, Cortona, Volterra, Pistóia, Colle, San Gimignano"
(MAQUIAVEL, 2010, pp. 56). Os outros lugares onde não há mais castelos semelhantes,
como a Romanha, Lunigiana, etc, não importam muito, pois não reconhecem outro senhor que
não seja Florença, nem têm nenhum homem acima deles, como acontece no vosso campo
(MAQUIAVEL, 2010, pp. 56).
Por esses motivos é que se indica a introdução da ordenança no campo onde, se
quiser ordená-la, é preciso dar-lhe ordem e modo, isto é, insígnias sob os quais eles militem,
armas com as quais devem se armar, determinar quem deve combater sob qual insígnia e dar-
lhes comandantes que as exercitem. Quanto às armas, aquelas que lhes são dadas devem ser
controladas. Quanto às insígnias, é bom que sejam bandeiras, todas com o mesmo símbolo,
para que todos os homens se afeiçoem de uma mesma coisa, e tenham por objetivo somente
este emblema público e assim se tornem seus defensores (MAQUIAVEL, 2010, pp. 56).
Nada impede, além disso, de manter organizados nas cidades muitos homens,
obrigando-os a fazer não mais do que doze ou dezesseis exercícios militares por
ano, e dando-lhes a permissão de ir onde queiram para cuidar de seus afazeres.
Porém, mantê-los muito preparados é muito prudente, com a intenção de não ter
que, mais tarde, tirar de casa quem tem honestos motivos para aí ficar, ou quem se
sabe ser incapaz. Assim, para a reputação serve um grande número, mas para a ação
um número menor e bem preparado, porque sempre se poderá fazer novo
alistamento e é melhor ter visto esses homens várias vezes do que não tê-los vistos
nunca (MAQUIAVEL, 2010, pp. 56)207
.
A organização procederá sob o ícone das bandeiras e do comando de homens
divididos organizadamente (MAQUIAVEL, 2010, pp. 57)208
. O comando que se lhes deve dar
é fazer uma lei de que deles disponham e um magistrado que a observe. Para mantê-los em
ordem é necessário, segundo Maquiavel que esse magistrado tenha autoridade para puni-los e
faculdade para fazê-lo, e que a lei lhe possibilite fazer tudo aquilo que for necessário, e caso
isso foi negligenciado, o dano seria certo. Por isso é necessário obrigá-los a se manter
207
Sobre a atividade campezina, Maquiavel afirma nos I Primi Scritti Politici: "Essa organização bem ordenada
no campo é preciso que entre, pouco a pouco, na cidade. Será facilíssimo introduzi-la e vós vereis ainda em
nossos dias que diferença há entre ter vossos cidadãos soldados escolhidos livremente e não os homens mais
inadequados e corruptos como tendes no presente. Pois se alguém não quer obedecer ao pai, criando-se pelos
bordéis, tornar-se-á soldado; mas, saindo das boas escolas e de uma boa educação, poderão honrar a si mesmos e
à pátria. E tudo depende de começar a infundir respeito nesse exército, o que convém que necessariamente se
faça, firmando bem essas ordenanças no campo em que começaram" (MAQUIAVEL, 2010, pp. 58). 208
"Quanto ao modo de organizá-los para que não possam causar danos, deve-se considerar que podem fazê-lo
de dois modos: ou entre eles ou contra a cidade. Entre eles podem ferir-se uns aos outros ou reunir-se para
cometerem abusos, como costumam fazer [os soldados]. No primeiro caso se pode duplicar a pena, sobretudo
para aqueles que ferissem outros durante os exercícios; mas para os que ferissem em outra situação se poderiam
observar as leis já existentes. No caso de eles reunirem-se [para cometer abusos], seria necessário agir com todo
rigor contra o chefe dessas reuniões; e um exemplo permanece por um bom tempo na memória dos homens"
(MAQUIAVEL, 2010, pp. 57).
128
armados ao menos um numero de homens suficiente para manter as bandeiras, e aos
condestáveis obrigá-los a providenciar as armas, treinar os homens e alimentá-los, rever a
cada ano seu número e desmobilizá-los, em certos dias e por certo tempo, e reuni-los e incutir
neles alguma coisa de religião, para torná-los mais obedientes (MAQUIAVEL, 2010, pp. 57).
Devem manter sempre inscritos, armados e ordenados sob as bandeiras e sob o
comando dos condestáveis que as exercitem e a distribuam entre o campo e o distrito
de Florença, pelo menos dez mil homens, e quantos mais acreditem poder manter
armados, conforme a disponibilidade de homens (MAQUIAVEL, 2010, pp. 61).
A obra de Maquiavel não se dirige somente aos homens do séc. XVI, na verdade, ela
continua a interpelar os homens de outros tempos. E não poderia ser diferente, pois conforme
SGANZERLA “a análise da sociedade, da política e do homem, proposta por Maquiavel
exige que o governante se utilize das leis, das armas e da religião para governar”
(SGANZERLA, 2004, pp. 11)209
.
Deste modo, a análise dos textos dos I Primi Scritti Politici parte das provisões da
República de Florença para instituição do Magistrado dos Nove Oficiais da ordenança e da
milícia florentina. Abordando as duas provisões respectivas da narrativa de Maquiavel – a
primeira para as infantarias, de 06 de Dezembro de 1506 e a segunda – para as milícias a
cavalo, de 30 de março de 1512 pode-se perceber a estrutura do exército que vai sendo
montado ao molde alemão e as configurações e funções que são de modo arquétipos
enumeradas nas “penas de Maquiavel”.
Nenhum soberano permaneceu no poder por muito tempo sem o auxílio das armas.
Encontramos exemplos de príncipes que chegaram ao poder pelo que Maquiavel chamaria de
“sorte”, de oportunidade, mas faltando-lhes a “astúcia afortunada” ou o valor próprio, estes
não se mantiveram no trono com facilidade, pois não foram dignos dele, pela ausência de
valores que são inerentes ao príncipe. Na compreensão destes valores podemos entender a
natureza militar que um soberano deve possuir para garantir o seu domínio, bem como
conquistar novos horizontes. Não foi assim com Dario, Alexandre e tantos outros? Todavia,
apesar da era absolutista necessitar por questões de sobrevivência em um momento de
209
Quanto ao tema da religião coube a consulta em Chabod (1994) e Sasso (1980). Para o primeiro a importância
da religião em Maquiavel não está nos seus sentimentos e nem no sentido de remédio para as inquietudes
naturais dos homens, mas no seu caráter prático, por constituir um freio para a corrupção e um elemento para a
vida coletiva de modo ordenado. Em tese a religião perde o caráter intimista e despoja-se do místico – restando-
lhe unicamente os motivos políticos. Cf. CHABOD, F. Escritos sobre Maquiavelo. Tradução de Rodrigo Ruza.
México: Fondo de Cultura Econômica, 1994, pp. 90. Quanto à Sasso – a religião em Maquiavel é avaliada pelo
seu resultado, e não mais como um instrumento de domínio. Formula-se um forte vinculo com o Estado, não
mais ideologizada enquanto opressora, mas assumindo um sentido positivo. Cf. SASSO, Gennaro. Machiavelli e
gli antichi e altri saggi, pp. 553-554. In: SGANZERLA, A. Maquiavel: A religião como instrumento da
política. Dissertação de Mestrado, São Paulo: PUC – SP, 2004, pp. 95.
129
descoberta de novas fronteiras, de um “Novo Mundo”, do caráter belicoso para não definhar
diante dos ousados e fortes inimigos, é necessária a análise com quais tipos de forças armadas
um líder de Estado deve contar (AZEVEDO Jr, 2007, pp. 28).
Ao começar a leitura da Introdução dos Discorsi, ainda no quarto parágrafo, nos
deparamos com o contraste teórico que caracterizou o pensamento dos humanistas - qual seja,
a conjugação do conhecimento dos antigos com a compreensão dos fenômenos modernos –
por trás do sugestivo e, por vezes, enganoso estilo maquiaveliano210
.
Maquiavel afirma que a prudência levará o príncipe a constituir sempre exércitos
nacionais, e a contar com as suas próprias forças justamente pelo risco de fracassar com as
insuficientes tropas mercenárias, que podiam ter habilidade de guerrear (ou não), mas não
teriam o desejo de vitória acima de qualquer preço, de qualquer “soldo”. Para manter a
estabilidade do seu reino, o soberano deveria ter a percepção aguçada (acima dos homens
comuns) de desviar-se desta enfermidade que poderia arruiná-lo e também destruir ao seu
povo. Um exército nacional próprio necessitava, para Maquiavel, não somente de leis
militares, como também de um “habitus” novo, ou seja, um código de honra, um sentimento
de nacionalidade, uma total fidelidade ao Estado. A análise de Maquiavel sobre o papel dos
exércitos, suas motivações para a guerra em defesa de um Estado, o uso privado das armas
(institucionalizadas ou não), serve-nos, além de tudo, para entender a belicosa natureza
humana, confirmando a necessidade do controle sobre os impulsos racionais ou emocionais
dos homens, especialmente, quando eles não mais têm o sentimento de honra, respeito e amor
pela sua pátria (ERCOLE, 1917, pp. 35-38).
O foco sobre o qual aborda-se alguns textos de Maquiavel em relação – a força das
armas e do exército em vista da manutenção do governo se ancora, como se apresentou, na
crença do conflito, sobretudo entre o povo e os grandes. Aqui esta a possibilidade de findar-se
a paz interna e externa dos indivíduos, mas, sobretudo no vórtice da comunidade humana – da
reinvenção de Florença e do reerguimento da Itália. Por conta disso se olha, por exemplo, para
o primeiro aforisma kantiano na obra A Paz Perpétua (de 1792) (KANT, 2010, pp. 14)211
entender-se-á a relação de intenção de "guerra e paz" presentes nos relatórios e no Príncipe de
Maquiavel. Kant, por exemplo, trabalha a ideia de que, tendo em vista a própria paz, a sua
210
Como observa BIGNOTTO, N. “Maquiavel Historiador”. Seção Livros, n. 29, pp. 186-187, mar.-mai./1996.
Maquiavel muitas vezes se serve de uma estrutura clássica ou de uma fórmula tradicional, como no Príncipe e
nas Histórias de Florença, para seduzir o leitor e mostrar-lhe as conquistas teóricas que empreendeu, as quais, na
maioria das vezes e não obstante a semelhança estrutural, são radicalmente diferentes daquelas dos seus
antecessores. 211
O aforisma da obra O Tratado da Paz diz o seguinte: “Nenhum tratado de paz deve ser tomado como tal se
tiver sido feito com matéria secreta para uma guerra futura” (KANT, pp.5).
130
efetivação, deve-se ficar, como ponto substancial, a ausência de uma intentio em relação à
guerra. Este fato é essencial para se configurar um tratado de paz. Em relação a Maquiavel
não se encontra em suas “penas políticas” tal ideia. Seria a lógica do vale tudo? Certamente
não. Mas trata-se do espírito do momento, ou seja, do senso de oportunidade e do calculo
matemático, ou mais estritamente a ocasião.
lá esperaram para assegurar as garantias das famílias e estabelecer a
segurança e a paz como determinavam os termos do acordo de paz. Ocorreu
que, querendo os nossos excelsos Senhores concluir a paz e repatriar os
Panciatichi, mandou um novo comissário [Niccolò Valori acompanhado por
Maquiavel] com forças militares, e no dia 20 de outubro passado, como já se
disse, repatriaram os Panciatichi, tendo depois disposta a guarda que se
julgou necessária para mantê-los seguros, a situação permaneceu estável até o
dia 23 de fevereiro próximo passado. Os motivos dos tumultos que se
seguiram foram relatados de diversas maneiras, mas o fato é este: tendo
avisado aqueles governantes de Pistóia os nossos excelsos Senhores que
certos tumultos ocorridos e como era necessário que lá se mandasse um
comissário, esses Senhores imediatamente nomearam Tommaso Tosinghi,
que partiu no dia 23 de fevereiro e não chegou a tempo, pois lá ele encontrou
os Panciatichi expulsos de Pistóia, alguns deles feridos, dois dos Senhores
[Giovanni di Tommaso Franchi e Giuliano di Jacopo Crimi] e o capitão da
infantaria, todos os três eram da parte dos Panciatichi, algumas casas
queimadas de saqueadas. Os comissários tomaram as medidas que puderam
para que aqueles tumultos não fossem adiante (MAQUIAVEL, 2010, pp.
36)212
.
O que se vê é a descrição do modo adotado pelo Duque Valentino – para matar
Vitellozzo, Vitegli, Oliveroto Pagolo e o Duque de Gravina Orsini a partir de um “tratado de
paz” [textualmente: “[...] e tanto se empenhou nesta política (César Bórgia) que firmou com
eles um tratado de paz” que teve como finalidade a degola dos inimigos (MAQUIAVEL,
2010, pp. 41-44). É a total oposição de intenção em relação ao início de uma nova ótica
política moderna com a ótica do séc. XVIII – no auge da racionalidade e dos contratos entre
os homens.
Bem, assim sendo, é deste modo que se eleva esta parte do trabalho sobre a
“formação de um exército florentino” nas descrições de Maquiavel nos Primeiros Escritos e
em alguns capítulos selecionados do Príncipe, sobretudo os que repercutem enfaticamente
reflexões quanto às armas e ao exército. Recorre-se neste instante também a interpretação
novamente da lógica da força, relembrando o inicio do Príncipe, onde Maquiavel afirma que
o poderio de todos os Estados ou senhorias – do poder efetivo sobre os homens – ou foram
respaldados pelas repúblicas ou pelos principados e foram de fato anexados com a “força das
armas” (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 31).
212
Relatório sobre "Notícias das medidas adotadas pela república Florentina para pacificar as Facções de Pistóia
(1502)".
131
A reflexão posterior de Maquiavel repousa na ideia não só da conquista, mas come
questi principati se possino governare e mantenere213
, assim os adversários do grande
empreendimento resultante da conquista devem ser tratados em vista de ações que são
determinadas pelo estado de guerra e a política não pode ser senão uma estratégia análoga a
de um capitão que, tendo ocupado sobre o campo a posição cobiçada, aplica-se a desmanchar
as iniciativas de inimigos decididos a tirá-la dele (LEFORT, 1972, pp. 252).
Maquiavel propõe então a ideia de fortificação a partir do campo. A pouco falou-se
do inicio no campo, agora se enfatiza a fortificação no campo. A retomada seria composta
numa organização triangular aderindo estrategicamente a várias regiões. Com esses campos,
Pisa estaria assediada nesse triângulo. Os campos estariam seguros fortificando-se como
fossos. Maquiavel tem claro a estratégia, sobretudo pelo conhecimento de que em San Pietro
in Grado o ar é ruim, e se aí fosse necessário manter um campo este certamente adoeceria, e
porque poderia ser muito penoso manter os três ditos campos, se poderia manter o campo em
San Pietro in Grado somente enquanto não se construísse um bastião grande, capaz de abrigar
300 ou 400 homens em guarda. A estratégia se define com a construção de um bastião, onde
se poderia levantar o acampamento e deixar no seu lugar o bastião com a guarda e manter os
outros dois campos (MAQUIAVEL, 2010, pp. 55-56).
Quando se esboçou ordenar este Estado para as armas, e instruir os homens para
combater a pé, se julgou ser conveniente dividi-lo por bandeiras, e determinar cada
bandeira conforme limites territoriais e não pelo número de homens. Por isso se
decidiu colocar no domínio de cada podestade uma bandeira e sob ela alistar
aqueles homens, poucos ou muitos, conforme o número que deles se encontrasse
em tal domínio (MAQUIAVEL, 2010, pp. 73).
Todas as cidades que por algum tempo foram governadas por um príncipe absoluto,
pelos optimates214
ou pelo povo215
, como Pisa é governada, empregaram na sua defesa as suas
forças misturadas com a prudência, porque esta sozinha não bastava, e aquelas ou não levam a
termo a ação política ou, se a levam, não mantêm os resultados obtidos (MAQUIAVEL, 2010,
pp. 51). A prudência política adianta o remédio que se faz necessário em tempo de guerra.
E se vós dissésseis: “Nós recorreremos ao rei!,” parece-me que vos disse também
isso: que o rei não está disposto a defender-vos, porque as circunstâncias não são
mais as mesmas; e se nem sempre se pode lançar mão à espada de outrem, no
entanto é bom ter uma [própria] espada ao lado cingi-la quando o inimigo estiver
213
MACHIAVEL, N. Le Travail in l‘oeuvre. Galimmard, 1972, pp. 246-368. 214
Na antiga república romana optimate era o membro da aristocracia, e por extensão de sentido passou a
significar qualquer indivíduo poderoso, muito rico e influente, de qualquer nação. 215
Estão representadas aqui as três formas de governo que aparecem em Aristóteles e também em Políbio: a
monarquia, a aristocracia e a democracia.
132
distante, pois que de outra maneira não se terá tempo e nem se achará remédio
(MAQUIAVEL, 2010, pp. 52).
No cerne desta postura encontra-se uma forma de conceber a lei que podemos
caracterizá-la como fortemente influenciadora do modelo atual, no qual a lei é tida como um
instrumento de poder, usada na intenção de imperar coercitivamente uma determinada
conduta. O Papa Alexandre VI e seu filho, o Duque Valentino assim procediam. Dessa forma
a lei é exercida como representação da vontade do príncipe, instaurando dois mundos: a saber,
o mundo da moral e o mundo do direito, da justiça. O primeiro pertence ao estado do dever
ser, já mencionado, do abstrato. Já o segundo está relacionado ao externo, ao público, sendo o
espaço do ser (VIDAL, 2010, pp. 113).
Maquiavel, deste modo, mantendo firme no propósito de resgatar as ordenações e a
formação militar [especificamente sob o vértice do modelo romano], bem como de
demonstrar que em seu tempo ou se esquecera ou não se aprendera o tratamento oportuno
para com o povo, provavelmente por negligência com os exemplos dos antigos, relata ele
sobre a ordenação dos romanos a seguinte premissa
digo, portanto, que do texto de Lívio se percebe que o exército romano tinha três
divisões principais, que em toscano diríamos fileiras [schiere]; à primeira davam o
nome de hastados; à segunda, de príncipes; à terceira, de triários; cada uma delas
tinham seus cavaleiros. (Discursos, II, 16, p. 232-233).
Ou em tese, a importância do povo, e do reconhecimento de uma virtude própria
pode ser admitida entre os comentadores de Maquiavel, ao menos é o que se previu no
entendimento de Ames no sentido de que a (2005, pp. 2),
[...] criação de uma “milícia cidadã” que é onde, segundo Maquiavel, melhor se
constata a importância do povo na criação de um Estado forte. É na defesa da pátria
que o povo participa de modo mais elevado dos negócios públicos de modo que o
cidadão maquiavelano é, fundamentalmente, um cidadão soldado: o exercício da
cidadania implica o serviço militar.
2.3. O povo e sua virtù216
: força e armas desembocam na manutenção do
poder e da liberdade
A guerra tem a ver com os homens, com o dinheiro, com o governo e com a sorte; e
quem tem mais dessas coisas, deve-se crer, vencerá a guerra (MAQUIAVEL, 2010,
pp. 95). Lê-se ainda no capítulo IX de O Príncipe: "Pois, em todas as cidades,
existem esses dois humores diversos que nascem da seguinte razão: o povo não
216
Em relação a análise do “povo em Maquiavel” pode-se consultar: Cf. SANTOS, L. M. A virtù do povo na
filosofia de Maquiavel. In: Dissertação de Mestrado apresentada a Universidade de São Paulo (USP), 2011, pp.
10-61.
133
quer ser comandado nem oprimido pelos grandes, enquanto os grandes desejam
comandar e oprimir o povo; desses dois apetites diferentes nascem nas cidades um
destes três efeitos: principado, liberdade ou licença" (MAQUIAVEL, 2010 [2], pp.
109-118).
A liberdade, enquanto teleologia da política é resultado do confronto - popolo versus
grandi. Neste interregno se dá a efetivação do controle social. Maquiavel observa e escreve
atentamente sobre a relação existente entre estes dois humores sociais, pois os primeiros não
querem ser oprimidos, já os segundos vivem da opressão aos primeiros. É esta relação que se
faz importante analisar, pois dela, é que nascem os exércitos, ou seja, é do popolo que se
recrutam homens, sobre a proteção de Deus e de São João Batista para servir, com disciplina e
patriotismo a cidade de Florença, "pois ao povo importa a estabilidade política, que só pode
ser dada pelo príncipe virtuoso, independentemente dos meios que ele utilize" (WINTER,
2006, pp. 127).
O exercício da guerra deveria ser uma tarefa dirigida pelo Estado, ao invés de ser
comandada por homens que a fizessem como profissão, como os mercenários.
Segundo Maquiavel, nenhum homem bom pode exercer a arte da guerra como sua
arte particular, pois não pode ser julgado como bom aquele que exerce algo que para
lhe ser útil o obrigue a ser rapace, fraudulento, violento e outras qualidades que o
tornem não bom. (MAQUIAVEL, 2006, pp. 11)
Como perceber, neste sentido, a prontidão de um cidadão em entregar-se pela pátria?
Como mensurar a virtù de alguém do povo ou seu vicio no tocante a sua disposição para a
vida militar? "Para Maquiavel são considerados como vícios tudo aquilo que impede o
homem de engajar-se na defesa da liberdade como bem coletivo: o ócio, a inveja, a ingratidão,
o egoísmo" (AMES, 2008, pp. 6).
A política, enquanto “arte e técnica” – foi “manuseada como ninguém” por
Maquiavel217
. Na verdade o florentino tornou-se um sujeito de ação política na medida em
que observou o seu tempo com "pluridimensionalidade". Isso porque registrou cada momento
de sua análise as diversas relações e os significados dos contextos históricos que se passavam.
Portanto, formou uma base empírica de análise muito antes da proposta baconiana da teoria
dos idola e da própria exigência do empirismo moderno. Acrescentaríamos ainda a sua
capacidade mediadora de analisar os fatos, não sendo “neutra” em sua proposta de fazer
política. Isto porque, de forma alguma, o discurso político pode ser neutro. Maquiavel propôs
uma ação política emancipatória, pois ele, e posteriormente os que o interpretaram, tiveram
217
Cf. VALVERDE, A. J. R. "Maquiavel: A política como técnica". In: Hypnos. n. 4. São Paulo: Educ: Palas
Athena, 1998, pp. 37-46. Sobre Maquiavel "intérprete", conferir LEFORT, C. As formas da História: ensaios
de antropologia política. São Paulo, Brasiliense, 1979, pp. 159ss.
134
que travar um luta “ideológica” tanto no interior dos aparelhos institucionais renascentistas,
quanto fora deles, onde se constituiu uma realidade para a “efetiva verdade das coisas”218
.
Neste cenário: popolo versus os grandi destaca-se a qualidade humana vista por
Maquiavel, uma habilidade que ele define como virtù
Falar em virtù do povo na obra O Príncipe pode causar um certo estranhamento.
Mas a nossa tese é de que mesmo não havendo a expressão “virtù do povo” no
Príncipe, o povo aparece nesta obra também como agente político e, portanto, com
capacidade de ação, de influência nas ações do príncipe e nos destinos do
principado. Tendo em conta o atributo essencial da virtù – a ação positiva, criativa,
de transformação - parece-nos que mesmo no contexto político do Príncipe o povo
exerce a virtù (SANTOS, 2011, pp. 63).
De um jeito quase despretensioso do ponto de vista filosófico, sem rebrusqueios na
escrita, o florentino adquiriu um interessante marco para a política moderna, sobretudo,
porque no Príncipe, ele se propõe a fazer política de um modo inovador – partindo da “nudez”
e crueza dos fatos, sem mediação do cenário medieval e das virtudes cristãs, como assim se
fazia durante alguns séculos sem tanta preocupação de demarcar o que era laico e o que era
religioso. Tratar da virtù do povo é uma novidade que traz importantes consequências para o
cenário político renascentista e democrático atual. Há também, como se acenou algumas
vezes no texto, um sacrifício entre ética e a política, um desvincular, que no dizer de Benedito
Croce era necessário para que o ideal político se tornasse uma espécie de areópago
(ESCOREL, 1956, pp. XIII).
Outra questão de mediação entre popolo e os grandi dá-se na força institucional da
religião. Está na religião uma intrépida força de interesse e de manutenção dos homens pelas
empresas (MAQUIAVEL, 2007, pp. 57), isso demonstra para o Florentino o "quanto se pode
ganhar usando bem a religião" (MAQUIAVEL, 2007, pp. 64). Religião também é boa ocasião
para os governantes219
.
218
"Para Maquiavel, um príncipe não deve medir esforços nem hesitar, mesmo que diante da crueldade ou da
trapaça, se o que estiver em jogo for o bem do seu povo" (WINTER, 2006, pp. 120). 219
"[...] Para Maquiavel a religião é parte do jogo do poder político e participa dos altos e baixos dos processos
históricos. A religião equipara-se a outros fatores não religiosos, e está situada no nível da imanência – é, como
na tradição romana, de Cícero ou Varro, a 'religião civil'. [...] É puramente a parte e a face “exterior” da religião
que têm de funcionar, independentemente de qualquer questão de “verdade”. É a efetividade social que conta: a
constância dos procedimentos rituais, a estabilidade das hierarquias, o trabalho das forças vinculantes
provenientes do interior, etc. [...]a religião é forte em termos de estabilidade social e fraca em termos de política,
mas a política é forte onde é capaz de “usar” a religião para seus propósitos (fins). Mas, para ser usada, uma
religião tem de ser diferente da religião dos “cristãos”, qual se orienta para o outro mundo". Cf. LEINKAUF, T.
"O conceito de religião no início da filosofia moderna, três exemplos: Maquiavel, Cardano e Bruno". In:
Conjectura: Filos. Educ., Traduzido do alemão por Luiz Carlos Bombassaro. Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p. 14-
35, set./dez. 2014, pp. 24-26.
135
Há muita reflexão sobre o pensamento de Maquiavel sobre o definição, o local, a
função, enfim, sobre a importância da religião na efetivação do Estado moderno, da política
dos fatos. Retomando o conceito de força, pode-se dizer que a religião é um espaço excêntrico
de força social, sobretudo porque nela se encontra a "crença nos milagres" (MAQUIAVEL,
2007, pp. 53). Nos Discorsi220
, no Livro I, entre os Capítulos 10-16, Maquiavel desenvolve a
ideia de que entre os fundadores de república, destacam-se "os cabeças e ordenadores de
religião" (MAQUIAVEL, 2007, pp. 44). O conceito mais contundente utilizado por
Maquiavel é o de instrumento, ou seja, a religião é um instrumento de manutenção do poder e
da liberdade, ela, de fato, "facilita a política".
Maquiavel se refere à religião como um instrumento que pode facilitar a criação e a
conservação do Estado. O governante, seja quem for, pode valer-se do temor do
castigo divino para induzir os súditos ou cidadãos a respeitar as leis civis tanto
quanto os mandamentos de Deus (SANTOS, 2011, pp. 79).
A religião se torna um aspecto social agregado à disciplina do povo, porquanto não
careça de ser ao mesmo tempo uma forma de legitimação do poder. Em outras palavras, a
religião condiciona a virtù221
.
Maquiavel sublinha que nenhum Estado sobrevive sem a religião. Não porque se
sustente pela fé ou pela crença em Deus. A sua razão está na finalidade que lhe é
externa, qual seja, um devotamento dos súditos à pátria e às causas cívicas. Desta
maneira, o temor a Deus pode ser um importante meio do qual o monarca pode se
utilizar para tornar o povo mais aderido ao Estado, o que, em última análise, facilita
a sua administração (WINTER, 2006, pp. 124).
A religião é uma caminho de "adestramento" para a vida do Estado. Leinkauf
escreve que Maquiavel vê "uma reciprocidade direta entre uma religião viva e suas atividades
ritualísticas específicas – il culto divino – e o funcionamento da sociedade" (2014, pp. 22).
Refletindo sobre a religião dos romanos, Maquiavel elogia a sabedoria de Numa Pompílio que
percebeu que não bastava somente o juramento civil, havia a necessidade do juramento
religioso (MAQUIAVEL, 2007, pp. 48-49). Isso porque
onde religião, facilmente podem introduzir armas; e, onde houver armas, mas não
religião, esta com dificuldade poderá ser introduzida [...] concluo que a religião
introduzida pelo romano Numa Pompílio foi uma das principais razões da felicidade
daquela cidade, pois ensejou boas ordenações; as boas ordenações trazem/atraem
220
MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Tradução MF, São Paulo: Martins
Fontes, 2007. 221
A religião é um espaço de legitimação de poder. O Estado investe através da religião como força sutil de
doutrinação, ao ponto de não ser de utilidade à liberdade individual. Neste sentido, "Maquiavel acreditou que o
cristianismo era boa religião para escravos e bem entendidos” conforme: LOPES, M. A. "Tempo e História em
Maquiavel". Revista Locus, Juiz de Fora, v. 9, n. 2, 2003, pp. 64.
136
boa fortuna, e da boa fortuna nasceram o bom êxito das empresas (MAQUIAVEL,
2007, pp. 50-51)
Assim sendo, para entender e ampliar o significado de virtú do povo é necessário
antes decifrar o significado e a ideia de povo nas obras de Maquiavel. O povo é o fundamento
de onde se cria as resistências do poder. É pelo povo e para o povo que se faz política. É a
partir do conceito de povo que se vislumbra a amarração dos termos – liberdade222
, força,
armas e exército, que até então foram esboçados.
Numa passagem de Le Travail de l‟oeuvre Machiavel, Lefort deixa claro, pela sua
interpretação da filosofia maquiaveliana, que o povo e os grandi, enquanto pólos em
conflito, são elementos permanentes da vida política e não podem ser subsumidos
por nenhum acordo ou contrato que restauraria a unidade do todo. Não há unidade a
ser restaurada. Os dois pólos só existem em confronto determinando-se mutuamente
(SANTOS, 2011, pp. 30)
Pode-se compreender o povo e sua virtù em quatro momentos no pensamento de
Maquiavel: primeiro em relação a república popular, em segundo lugar em relação ao modo
de governo, em terceiro, no que diz respeito ao serviço militar e por fim, no que concerne a
religiosidade. Tendo como pano de fundo que o contraste entre os grandi e o povo não é
solucionável, pois eles só existem no conflito, e é neste que a sociedade se mantém, portanto,
a unidade é uma utopia, sendo o que nos resta é a compreensão de quem são os pactuadores
destes dois pólos sociais.
Segundo McCormick
Maquiavel também usa o termo "povo" de modo intercambiável com “popolani”,
plebe, “ignobili”, a multidão e a universalidade; ele geralmente o entende como o
conjunto dos cidadãos mais pobres de uma república que não são membros do
patriciado ou classe rica223
.
Ou ainda
o povo é, em última instância, o árbitro da liberdade no regime. Segundo Maquiavel,
ele merece essa posição simplesmente porque é mais confiável do que a nobreza ou
os notáveis. De acordo com a distinção mencionada acima, entre os apetites das
elites e os apetites populares, o povo não usará tal poder para dominar, mas apenas
para se defender contra a dominação (Machiavelli, 1997 [1531], I, 5; I, 46).
O termo povo pode ser entendido sob dois significados, um geral e outro específico:
civitas ou segmento social. A pesquisa de SANTOS sobre três obras de Maquiavel –
222
Neste aspecto, a liberdade para Maquiavel estava vinculada ao conflito que se traduzia em leis e instituições
políticas que garantiam o compartilhamento do poder político entre os grandi e o povo (SANTOS, 2011, pp. 37). 223
Cf. McCORMICK, J. P. Machiavellian Democracy. University of Chicago, 15/09/2009. Disponível em:
<http://ptw.uchicago.edu/McCormick09.pdf>. Acesso em 20 de maio de 2013.
137
Discursos, O Príncipe e a História de Florença – revelou em relação a este tema que os dois
significados estão presentes no pensamento deste filósofo, mas há mais ocorrências224
do
segundo significado que do primeiro (SANTOS, 2011, pp. 10-61).
ESPINOSA, em relação ao humor do povo, disse de Maquiavel
talvez Maquiavel tenha querido, também, mostrar quanto a população se deve
defender de entregar o seu bem-estar a um único homem que não seja apto e capaz
para julgar e agradar a todos, que tenha o dever de constantemente recear qualquer
conspiração e, por isso, vê-se obrigado a preocupar-se consigo próprio, e, assim, a
enganar a população, em vez de a salvaguardar. E estou tanto mais disposto a julgar
assim acerca da habilidade deste autor quanto mais se concorda em considerá-lo um
partidário constante da liberdade e quanto, sobre a maneira necessária a conservar,
ele deu opiniões muito salutares (ESPINOSA, 1973, pp. 329)225
.
Neste texto pode-se observar uma ideia muito forte da modernidade e de nossos
tempos. O povo não deve entregar sua liberdade, suas vidas nas mãos de um único homem.
Porém, há um detalhe no texto espinosiano, onde se lê: "há não ser que seja apto e capaz de
agradar a todos", ou seja, aquele que tenha a lucidez política de não deixar torpes
conspirações malograr a finalidade de suas ações. O grande detalhe do realismo político é que
ele ainda denuncia a aparência do ator político. Espinosa denomina este aspecto de engano a
população, que por usa vez não a salvaguarda, ao contrário, a engana. O que deve o povo, de
fato fazer? Maquiavel, nas penas do relatório afirma que
“pais Conscritos, o que no Lácio devia ser feito pela guerra e pelas armas, tudo pela
bondade dos deuses e pela virtude dos nossos soldados, foi levado a termo. Os
exércitos inimigos tiveram o seu fim em Pedo e Ástura; todas as terras e as cidades
latinas e Âncio, cidade dos Volscos, tomadas pela força ou pelos pactos, estão nas
vossas mãos. Resta-nos agora decidir – porque se rebelando com freqüência elas nos
colocam em perigo – como nós devemos no assegurar em relação a elas no futuro,
ou tornando-nos cruéis com eles, ou perdoando-os livremente. Os deuses vos
fizeram onipotentes para poder deliberar se deve manter o Lácio ou não, e para
poder perpetuamente mantê-lo com segurança” (MAQUIAVEL, 2010, pp. 45)226
.
Na obra O príncipe predomina o significado de povo como segmento social. Não se
encontrou nenhuma ocorrência com o sentido de civitas. O termo com o significado de
segmento social encontra-se nos seguintes capítulos: cap. 8, cap. 19, cap. 24. Na História de
Florença encontramos mais de 200 ocorrências do termo povo, predominando também o
significado de segmento social. Maquiavel tem claro a importância do conceito de povo para a
realização de um grande projeto político. O grande problema é como manter os conflitos, as
224
Nos Discorsi, segundo SANTOS, encontramos o seguinte resultado: ocorrem 72 vezes o significado de
civitas e 130 vezes o significado de segmento social. 225
Cf. ESPINOSA, B. Tratado político. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 329. 226
Conforme a obra citada, o que se segue é a tradução da tradução que Maquiavel fez do texto de Tito Lívio.
Sobre o relatório - "Do Modo de Tratar os Povos Rebelados do Valdichiana (1503)".
138
inimizades, sem destruir a sociedade, sem a supremacia de um segmento social sobre outro.
Maquiavel dá uma resposta ao afirmar que os conflitos, as disputas em Roma, por exemplo,
diferentemente do que acontecia em Florença, evitavam a participação exclusiva de um
segmento social através de leis que possibilitavam o compartilhamento do poder político
(SANTOS, 2011, pp. 10-11).
Mas, como manter a estabilidade política de um Estado numa sociedade
contraditória, como o conflito entre os grandes e o povo? Evidentemente, a
existência da política pressupõe unidade, concórdia. Entretanto, esta unidade
política, necessária para a existência do Estado, nunca pressupõe aniquilação do
conflito social. O Estado só se mantém quando consegue dar vazão ao conflito de
desejos. Reduzi-lo à unidade, à concórdia, o enfraquece e o torna inseguro, sublinha
Maquiavel (WINTER, 2006, pp. 126).
Nos Discorsi estariam evidentes as relações entre a virtude cívica e a virtude
militar227
. É nesta obra que Maquiavel deixa claro a importância do povo na defesa e
manutenção da cidade. É aqui que se desenrola o principal foco de nosso interesse, ou seja,
como encontrar e disciplinar homens para a vivência militar? E disso decorre que o ponto
central da análise maquiaveliana, de acordo com POCOCK, reside na ideia de que a virtude
militar seria o veículo para se passar da massa popular a uma comunidade de cidadãos ativos,
alimentando o sentimento cívico necessário ao florescimento da liberdade e da grandeza da
república (POCOCK, 1975, pp. 132).
Força, armas, leis e exército não são pontos desconexos, precisam do patriotismo
como elo de ligação suprema entre eles. Somente patriotas manuseiam bem armas por amor à
pátria. De igual modo, patriotas respeitam as leis promulgadas por seu soberano. Somente
patriotas defendem com a “alma” a sua pátria. Portanto, a teoria da força é mais ampla,
porque se trata de um disjuntivo de escolha para ação de uma República. As armas esperam
quem as manuseiam. Mas o exército deve ser galgado por homens locais, com amor a Pátria.
Deste modo, a teoria do exército próprio esta na base das ações urgentes de Maquiavel
Secretário de Florença.
E de novo vos replico que sem força as cidades não sem mantêm, mas chegam a seu
fim. E o fim ou é pelo seu abandono por parte de sua população, ou pela servidão.
Neste ano vós estivestes perto de um e de outro, e neles incorreram de novo se não
mudardes de opinião. Eu vos advirto, não digais depois: “Isso não me foi dito!” E se
replicardes: “Que necessidade há de forças militares? Estamos sob a proteção do rei
[O rei da França ao qual Maquiavel se refere aqui é Luís XII; Op. cit, pp. 51], e
227
"Malefijt menciona, entre as principais características do ser humano mencionadas por Maquiavel, a ambição
e a credulidade. É a partir delas, pelo menos, que o príncipe deve estabelecer regras de conduta, tomando como
base seu conhecimento da natureza humana e das motivações do homem" (SOUZA, 2007, pp. 2-3). Cf.
MALEFIJT, A. de W. Imágenes del hombre: historia del pensamiento antropológico. Buenos Aires:
Amorrortu, 1983, pp. 52.
139
nossos inimigos estão liquidados! O Duque Valentino não tem motivo para nos
atacar!” Poder-se-ia dizer-vos que tal opinião não poderia ser mais temerária. Porque
todo Estado, toda cidade deve reputar inimigo todos aqueles que podem ter
esperanças em poder ocupar o que é seu, e de quem eles não podem se defender.
Nem houve jamais nem senhor, nem república sábios que quisessem manter seus
Estados à discrição de outros, ou que assim mantendo-o lhes parecesse tê-los em
segurança. Não nos enganemos sozinhos, examinemos melhor a nossa situação e
comecemos a observá-la seriamente. Vós vos vereis desarmados, vereis vossos
súditos sem confiança e disso, há poucos meses, já experimentastes. E é razoável
que assim seja, porque os homens não podem, e nem devem, ser servos fiéis daquele
senhor pelo qual eles não podem ser nem protegidos nem governados. Como vós
pudestes ou podeis governar o sabem Pistóia, a Romanha e Barga, lugares que se
tornaram ninhos e receptáculos de todo tipo de abuso e furto. Como vós pudestes
defendê-los o sabem todos aqueles lugares que foram assaltados. E não havendo
agora nesses lugares mais ordem do que havia antes, deveis crer que eles não
mudaram nem de opinião nem de ânimo. Nem vos podeis chamá-los vossos chamá-
los vossos súditos, mas sim daqueles que estarão entre os primeiros a vos atacar
(MAQUIAVEL, 2010, pp. 51-52).
É nesta chave do “patriotismo” que POCOCK interpreta a célebre declaração de
Maquiavel de que em uma república expansiva deve-se confiar ao povo a “guarda da
liberdade”. Maquiavel teria em mente a disposição do povo para lutar em exércitos pela
defesa da pátria. A guerra em defesa da pátria seria a arena privilegiada de realização do tipo
de virtude que a república demandaria do cidadão comum (POCOCK, 1975, pp. 133).
Em todo o caso, a participação na república de caráter popular dá mais qualidade à
virtù popular que se revela mais apta que a do governante para a conservação deste
tipo de regime. Pode-se afirmar que há uma acepção republicana do tema virtù
presente principalmente nos Discursos. Por isso afirma-se que a “virtù é a
capacidade, tanto dos governantes como dos cidadãos, de referir sua ação a valores
republicanos, que são universais no campo da política. Mas esses valores só se
realizam no enfrentamento dos desafios específicos de cada situação” (SANTOS,
2011, pp. 22)228
.
Nos Discorsi Maquiavel argumenta entre os capítulos quarto e sexto, que são
eminentemente a base de sua concepção militar, que o conflito entre o povo e os nobres fez
emergir a força e a solidez da república romana. Na desunião entre a plebe e o senado fez
surgir em Roma as boas leis e Maquiavel acrescentou que toda forma de tumulto e não
concordância discursiva na civitas levava a mesma à ruína229
. Os tumultos em Roma sempre
tiveram como resultado a geração de leis para controlar os humores.
O conflito é insistentemente afirmado nesta pesquisa como positivo na obra
maqueveliana, pois segundo Martins, ele representa uma espécie de remédio para manter a
vitalidade e a saúde do corpo político (MARTINS, 1998, pp. 91). Mas a valorização do
228
Cf. ANDRADE, R. de C. “O indivíduo e o cidadão na história das ideias”. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452002000200003#tx93>. Acessado em 20
de janeiro de 2014. 229
SASSO, G. Niccolò Machiavelli, storia del suo pensiero politico, 1980, pp. 518.
140
coletivo não desemboca em nenhum tipo de tirania. A convivência dos dois coletivos sociais
numa relação perpassada pelos conflitos sem supremacias é, para Maquiavel, essencial para a
preservação da liberdade republicana.
A virtù popular cresce em qualidade quando mediada pelas leis. Como afirma
Nunes230
, “a virtù popular é fruto também das instituições políticas em sua
capacidade atualizada de ordenar a multidão em povo”. Se houver uma boa
ordenação o povo terá maior capacidade de agir com “alto grau de acerto e
adequação em suas escolhas (SANTOS, 2011, pp. 48).
No centro da relação conflituosa está na base, o servilismo, ou seja, os que oprimem
e os que são oprimidos, e principalmente os que aceitam ser oprimidos. Nem sempre a história
fez com que a opressividade sobressaísse e por isso que o povo é importante neste tópico que
antecede a formação do exército, pois os humores do povo são essenciais para a vida política,
e eles quando conjugados com os humores dos grandes ratificam e constroem uma grande
república (MAQUIAVEL, 2007, pp. 22).
Outra manifestação da virtù no comportamento coletivo aparece ainda nos Discorsi:
aquela que implica a realização dos sacrifícios necessários para a defesa da pátria, da
liberdade e das instituições republicanas. Qual a virtù a se esperar do povo? Apenas
estas citadas, pois o povo deseja somente não ser oprimido. A virtù se manifesta no
povo, portanto, como a fidelidade às instituições livres e republicanas. Não há aqui
uma dimensão ética explícita: ela está “embutida” na identificação que Maquiavel
faz entre liberdade, grandeza do Estado e prosperidade unidas num mesmo povo
(KRITSCH, 2010, pp. 36).
No que se refere à cultura e educação, por exemplo, Najemy afirma que a
capacidade de ler e escrever foi universal nas corporações de ofício e se estendeu a grandes
números de artesãos não participantes de corporações, a mulheres e funcionários. Os
membros do popolo (lojistas, artesãos, notários, etc...) encontraram nas corporações uma
identidade cultural. Digno de nota é o fato de as corporações favorecerem a experiência
republicana em pequena escala. Escreve Najemy
Cada corporação tinha realmente uma estrutura republicana em escala modesta na
qual a autoridade exercida por cônsules e conselhos era autorizada pelos próprios
membros da corporação. Uma estrutura tão autônoma foi, na língua de juristas
medievais, uma universitas, uma associação legalmente reconhecida levada a cabo
pelas promessas mútuas e os juramentos dos seus membros (NAJEMY, 2006, pp. 130-
132).
O que Maquiavel pretendia acentuar era a divisão do corpo político. Pois, como
escreve LEFORT (1979, pp. 144), “a sorte da divisão social se decide em função do modo de
230
NUNES, E. A política à meia luz – Ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel. São Paulo: Educ,
2008, pp. 85.
141
divisão do poder e da sociedade civil...”. Ou seja, a questão da participação no poder, e
portanto a questão política se colocava para Maquiavel como fundamental na relação entre os
dois pólos. O que Najemy afirma sobre o popolo na época de Maquiavel nos auxilia para um
melhor entendimento deste termo na filosofia maquiaveliana: tanto lá como em qualquer
contexto histórico, o status político é elemento determinante para entender o significado de
popolo231
.
Segundo Adverse232
talvez o desinteresse que Maquiavel parece atribuir ao povo em
determinadas passagens de suas obras não seja atribuível a ele, como autor, mas ao
povo florentino. E os dirigentes florentinos não seriam os responsáveis por esta
situação já que a qualidade de um povo se mede pelas instituições políticas? O povo,
pois, tem interesse já que é a sua vida que está em jogo. Está atento às ações do
príncipe/governante no que se refere à realização do seu desejo (SANTOS, 2011, pp.
73).
Numa passagem de Le Travail de l‟oeuvre Machiavel233
, LEFORT, (1927, pp. 381-
382) deixa claro, pela sua interpretação da filosofia maquiaveliana, que o povo e os grandi,
enquanto pólos em conflito, são elementos permanentes da vida política e não podem ser
subsumidos por nenhum acordo ou contrato que restauraria a unidade do todo. Não há
unidade a ser restaurada. Os dois pólos, como se viu, só existem em confronto determinando-
se mutuamente em forma de tentativa de compreensão dos atos institucionais, tais como o
próprio governo e o stato234
.
Os outros costumam tornarem-se sábios com os perigos dos vizinhos, vós nem com
os vossos. Não confiais em vós mesmos, não sabeis o tempo que vós perdeis e que
vós perdestes, pelo qual vós ainda haveis de chorar em vão, se não mudardes de
opinião. Pois vos digo que a fortuna não muda de sentença se não se muda o critério;
nem os céus querem, ou podem, sustentar algo que quer, de qualquer maneira,
arruinar-se. Eu não posso crer que seja assim, vendo-vos florentinos livres, e estando
em vossas mãos a vossa liberdade, pela qual creio que vós tereis aquele respeito que
sempre teve quem nasceu livre e deseja viver livre (MAQUIAVEL, 2010, pp. 53-
54)235
.
231
"Partindo do princípio de que natural é somente a mudança e não a permanência das coisas e que, portanto, a
ação política é sempre movida pela transitoriedade, pela mutabilidade, Maquiavel retém as formas legítimas e
ilegítimas de poder da tradição, mas elimina o princípio de poder natural dos poderes hereditários". Cf.
WINTER, 2006, pp. 123. 232
ADVERSE, H. Maquiavel: Política e Retórica. São Paulo: Humanitas, 2009, pp. 53. 233
LEFORT, C. Le Travail de l‘oeuvre Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, pp. 381-382. 234
Para Chabod (1990, pp. 556), Maquiavel utiliza o termo stato da mesma forma como nós o utilizamos. Com
a distinção entre governo e stato, dá para perceber que, além de distinguir os dois termos, Maquiavel ainda
utiliza stato de forma mais ampla, um uso correspondente à acepção moderna. Por outro lado, diferentemente de
Aristóteles, para Maquiavel, o Estado não tem como função principal assegurar a felicidade e a virtude. Ao
contrário do pensamento medieval, este Estado não é mais a preparação dos homens para o reino de Deus. O
Estado passa a ter a sua própria dinâmica, faz política, segue sua técnica e faz suas leis. 235
Confirma "Discurso sobre a ordenação do Estado de Florença para as armas (Os motivos da Ordenança, onde
encontrá-la e o que é necessário fazer) 1506".
142
Maquiavel parece seguir a tradição humanista quando apresenta nos dois primeiros
capítulos do Livro I dos Discursos a definição de liberdade. No Capítulo 1 escreve que são
livres os homens que não dependem de outros. No Capítulo 2 completa a definição de
liberdade afirmando que agir livremente é governar-se “por seu próprio arbítrio” (SANTOS,
2011, pp. 27). No entanto, segundo BIGNOTTO
A definição da liberdade serve muito mais para responder a certas exigências de uma
história tradicional das ideias do que para compreender o sentido da obra. Parece-nos
que devemos tomar as primeiras afirmações do texto muito mais como um convite à
exploração de seus mistérios, do que como uma exposição sistemática de seus
principais conceitos236
.
Assim sendo, os que farão parte do exército próprio de Florença saem do povo, são
tirados do povo, tem a sede primordial de liberdade, lutam por ela para si e para os seus. A
seguir, veremos como o florentino enfatiza a eleição e a convocação dos que serviriam o
exercito próprio florentino. Entra em cena a questão do soldo.
A população, privadamente é rica porque vivem como pobres, pois não constroem
nem se vestem [com riqueza], nem as conservam em casa. Para eles basta que haja
fartura de pão e carne, e ter uma estufa para afugentar o frio; e quem não tem outras
coisas vive sem elas e não as procura. Gastam para se vestir dois florins em dez
anos, cada um vive proporcionalmente às suas condições, e ninguém fica contando o
que lhe falta, mas aquilo de que necessita; e suas necessidades são bem menores do
que as nossas. É por isso que não sai dinheiro de seu país, pois se contentam como o
que ele produz. E no seu país sempre entra dinheiro de quem deseja comprar suas
mercadorias, trabalhadas manualmente, com as quais abastecem quase toda a Itália.
E o seu ganho é maior na medida em que, em grande parte, provém das suas
manufaturas ou de trabalhos manuais, com pouco gasto com outros materiais. E
assim gozam dessa sua vida rude e livre [...] (MAQUIAVEL, 2010, pp. 97).
2.4. A formação do Exército próprio de Florença: As provisões da
República de Florença para instituir o Magistrado dos Nove Oficiais da
ordenança e milícia florentina237
Maquiavel descreve, de modo mais enfático, nos I Primi Scritti Politici e no
Príncipe, a constituição do exército modelo para Florença e para a Itália. Tem dois grandes
modelos em verificação: o alemão e principalmente o francês. Já é certo que a insistência de
exércitos mistos ou mercenários trouxe sempre grandes malefícios para quem os contratou.
236
BIGNOTTO, N. Maquiavel Republicano, pp. 80 apud SANTOS, 2011, pp. 27. 237
"Provisões da República de Florença para instituir o Magistrado dos Nove Oficiais da Ordenança e Milícia
Florentina". In: MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio
Kurt Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da
Administração, FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010, pp.
59-69.
143
Maquiavel, enquanto observador, relata que a disciplina e a ordem são características destes
modelos de exércitos que servem à suas pátrias.
Coragem e obstinação” não são presentes dos céus. São frutos de uma educação para
a cidadania que cultiva nos homens as virtudes imprescindíveis para a vida política.
Estas qualidades não são boas em si ou porque podem ser instrumentos para o
aperfeiçoamento moral dos indivíduos, mas porque fazem com que os homens sejam
capazes de assumir a vida política como tarefa sua (AMES, 2008, pp. 150).
Nos Scritti Politici desenvolve o relatório de como se constitui o Magistrado dos
Nove Oficiais da ordenança da Milícia Florentina. Torna-se importante esta descrição,
primeiro porque o florentino frisa o esquema e a habilitação dos que servirão aos interesses do
Estado. Homens dispostos a disciplina e ao patriotismo, tais quais os alemães e franceses,
sobretudo estes segundos. Portanto, o que se vê a seguir é a "Primeira Provisão238
para as
infantarias em Florença, de 6 de Dezembro de 1506, denominada de Militie Florentine
Ordinatio".
Os Nove poderão, para alistar os homens, como se disse acima, e para inspecionar
os exercícios e as paradas militares na maneira como se dirá adiante, eleger e enviar
para fora da podestade ou da capitania seus comissários, com o salário não maior do
que um ducado de ouro por dia, que será pago da maneira e por quem paga os
comissários que são eleitos no Conselho dos Oitenta .
Sobre esta visão unívoca nas obras de Maquiavel, sobre o conceito de exército e de
homens para as milícias, pode-se dizer que
As obras de Maquiavel não trazem uma contradição em si, mas uma
complementaridade para a realização do projeto político da Itália, com o propósito
de tornar a nação forte e soberana (SGANZERLA, 2004, pp. 54).
O objetivo de Maquiavel, tanto como Secretário, como Observador, e como teórico
político é a unificação da Itália. Seus escritos tem esta finalidade. Mas, sobre esta questão da
coerência teórica nas obras de Maquiavel, Helton Adverse comenta na sua apresentação da
obra maquiaveliana em A arte da Guerra e diz que “Vida militar e vida política são
identificadas no pensamento maquiaveliano, e para provar essa afirmação, bastaria lembrar
que com frequência nos escritos de Maquiavel, especialmente nos Discursos, o cidadão mais
virtuoso é também o melhor guerreiro..." (ADVERSE, 2006, pp. 43, In MAQUIAVEL, A
Arte da Guerra). A cidadania passa pelo humor e pela virtù da coragem. Ocorre o controle
dos desejos insanos, da desordem que a natureza humana sofre estando a mercê do convívio
238
Bignotto ressalva a força das provisões quando afirma a reesignificação da retórica em tom e uso político
agregado ao uso da força pelas armas e pelo bom exército (BIGNOTTO, 2000, pp. 49-57).
144
social. Neste sentido, o bom cidadão é o bom militar, isto porque em ambos se encontram o
amor pela pátria enquanto resultado de uma fina educação para a civilidade.
A educação é pensada por Maquiavel como uma força destinada a controlar a
desordem inerente ao movimento tanto do desejo quanto da natureza.
Evidentemente, a educação não é capaz de conter o movimento. Afinal de contas,
tanto o desejo quanto a natureza são propulsores de um movimento "necessário",
quer dizer, inerente às coisas. Graças à educação, o homem é capaz de conhecer a
"natureza das coisas", isto é, saber o que as coisas são "desde sempre" (AMES,
2008, pp. 142).
"Saber o que as coisas são desde sempre" é uma novidade no pensamento político de
Maquiavel. A educação do bom cidadão e do bom militar desemboca na habilidade que este
vai ter para com o poder das armas239
. O que explica esse poder das armas é o fato de elas
constituírem a possibilidade privilegiada de participação na vida pública para os cidadãos.
Não é difícil ver que Maquiavel está criticando os dirigentes florentinos por suas posições
aristocráticas. Embora o medo que eles tinham de armar os cidadãos pudesse ter um matiz
patriótica (alguém poderia se servir da milícia para tornar-se tirano), esse mesmo medo
afastava da vida pública os cidadãos, os quais raramente encontram melhor oportunidade para
exercer sua cidadania do que a guerra. Mas por que a guerra? Porque nela está em jogo a
conservação do corpo político e, por isso, guerrear é uma maneira de refazer o laço político,
repetindo o gesto inaugural da fundação240
. Sendo assim
a insistência de Maquiavel na formação de um exército próprio decorre de sua
concepção política: nenhum Estado alcança a grandeza sem um exército forte
constituído a partir de seus cidadãos. (AMES, 2008, pp.10).
2.4.1. A escolha, formação e a aptidão da Milícia Florentina241
Esta tema evidencia o modo de se montar um exército eficaz ao ver do estrategista
Maquiavel. Ele percebe dois tipos de movimentos ao selecionar a infantaria na escolha dos
soldados. Devem-se convocar dentro do próprio domínio os bons homens, qualificados e
muni-los de boas armas. Neste primeiro movimento, está subtendido no adjetivo “bom” para
ambos os pontos, pois bons homens manuseiam boas armas (MAQUIAVEL, 2010, pp. 59-
69).
239
"Percebemos, portanto, que para Maquiavel o amor à pátria, o uso da violência pela sua causa, constituía-se
como elementos necessários à virtù do legítimo cidadão. Esse estadista conclui, declarando sobre a importância
de um príncipe ter uma milícia constituída por cidadãos, pois caso contrário, estará à mercê da fortuna, em
momentos difíceis não haverá virtù que mantenha o Estado seguro" (RUBIM, 2009, pp. 2184). 240
MAQUIAVEL, N. Arte da Guerra. Edição Martins Fontes, 2006, pp. XIV. 241
Cf. Ibidem. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio Kurt Mettenheim.
Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da Administração, FGV-EAESP:
FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010, pp. 59-69.
145
Cabe a menção, que não é textual, mas que enriquece – Maquiavel não está
pensando na arma de fogo, mas nas espadas. Os que são desta estirpe são mais facilmente
dominados, premiados ou castigados quando se fizer necessário. Outra grande vantagem,
enquanto explanação do segundo movimento citado, por serem de Florença, os soldados
estarão em casa caso ocorra um ataque repentino e por isso não serão surpreendidos como
outrora (no tempo de exércitos mistos ou mercenários). Do contrário, como nos atesta a longa
experiência a este assunto no que se sabe; os soldados estrangeiros ou mercenários não são
dignos de depositar confiança, pois se são numerosos e estimados, tanto quanto se
demonstram insuportáveis e suspeitos, ou se são poucos e não estimados não tem utilidade.
Não tendo domicilio em Florença, a cidade fica em grande parte desprovida de segurança –
tema específico e função primária de um bom exército (MAQUIAVEL, 2010, pp. 59)242
.
Sobre esta questão, afirma Maquiavel
julgai ser um bem se armar de armas próprias e com seus próprios homens, dos
quais vossos domínios são copiosos, de maneira que facilmente se poderá ter o
número de homens bem qualificados que se quererá. Esses homens, sendo do vosso
domínio, serão mais obedientes e, quando errarem, eles poderão ser mais facilmente
castigados, e, se merecerem, poderiam ser premiados mais facilmente. E
permanecendo em suas casas, armados, manterão sempre o vosso domínio a salvo de
qualquer ataque repentino, nem poderá este ser tão facilmente devastado e saqueado
pelos inimigos (MAQUIAVEL, 2010, pp. 59).
Sob a “proteção” de São João Batista, o Conselho Maior, escolhe e elege os aptos
para o oficio. A sequência que encontramos neste texto de Maquiavel sobre as Provisões é
esta: (a) O Conselho Maior escolhe nove cidadãos (b) Eles serão divididos desta forma: sete
para as Artes maiores e dois para as Artes menores (c) Depois para cada um dos eleitos pelo
Conselho se elegerá dez cidadãos; assim haverá 70 para as Artes Maiores e 20 para as Artes
menores (d) Subseqüentemente esses eleitores nomearam entre si cada um o seu membro em
relação a toda a cidade (e) Os membros eleitos serão postos a aprovação do Conselho Maior
através da contagem das favas negras (f) Os sorteados sejam eleitos de fato para o “infracitado
oficio”. Maquiavel faz uma ressalva – estão proibidos de participar os Senhores, os
Colegiados e o Magistrado dos Dez (MAQUIAVEL, 2010, pp. 59).
242
Em relação a este aspecto da segurança e da liberdade, Skinner escreve que os cidadãos incorriam a uma
grande ameaça a suas liberdades, pois não se sentiam mais preparados a lutar pela liberdade, pela defesa de
Florença em vista das agressões tirânicas, e por isso, como já destacado na provisão por Maquiavel, entregavam
suas vidas a defesa de homens – absolutamente não confiáveis – de tropas pagãs e/ou mercenárias. Cf.
SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. Tradução Renato Janine Ribeiro e Laura
Teixeira Motta, São Paulo: Cia das Letras, 1996, pp. 96.
146
Os Nove oficiais da ordenança e milícia florentina,” e tenham por símbolo e seu
sigilo a imagem de São João Batista, com as letras talhadas em volta, que indicarão
de qual oficial seja o dito sigilo (MAQUIAVEL, 2010, pp. 60).
2.4.2. ―Os Nove oficiais da ordenança e milícia florentina: autoridade,
função e administração"243
A função dos Nove deve seguir por oito meses subseqüentes, salvo algumas
exceções que serão apresentadas a seguir. Dentro dos primeiros quatro meses pode-se fazer
um sorteio em duas bolsas, pelo intermédio de um dos frades do sigilo – onde serão sorteados
três nomes da bolsa das Artes maiores e um das Artes menores. Os sorteados podem deixar
imediatamente o oficio, não precisando cumprir os oito meses regimentais e no que resta a
fazer devem os cargos ser preenchidos num período de quinze dias após a saída dos eleitos
que foram sorteados. E assim proceda-se sucessivamente neste sistema de renovação
magistral. Em caso de vacância deve-se sortear automaticamente da bolsa um novo nome, se
caso não houver disponibilidade de elegíveis na bolsa que se faça através de uma nova eleição
conforme já foi descrito anteriormente. Os nomeados devem receber um florin de ouro, ouvir
a missa do Santo Espírito244
e aceitar o cargo através de um juramento ao modo dos Dez da
liberdade e paz, dos quais protocolarmente são – na escala hierárquica os posteriores. Que
após este ato cívico sejam imbuídos e informados de um código sigiloso para comunicação
interna. Que sejam ainda recebidos em audiência no Palácio da Senhoria e dos Eminentes
Senhores. Que os oficiais não tenham nenhum tipo de salário, mas que agreguem a si um
secretário que seja remunerado, bem como outros nove auxiliares que a tempo também sejam
remunerados de acordo com o justo. São eles: o camareiro, um escrivão e um superintendente
e, sobretudo em relação a este há alguns pormenores como o deixar o cargo e o tempo em que
não poderá voltar por determinação regulada de três anos (MAQUIAVEL, 2010, pp. 60-62).
243
Afirma Mettenheim: “O texto, “Provisões da República de Florença para Instituir o Magistrado dos Nove
Oficiais da Ordenança e Milícia Florentina” apresenta a reforma das forças armadas de Florença como projeto de
lei encaminhado oficialmente em 30 de novembro de 1506 e aprovado pelo Conselho Maior em 6 de dezembro,
com 841 votos a favor, 317 contra. É a maior vitória política de Maquiavel e significa a aceitação de sua teoria
sobre a importância do serviço militar. A organização da forças armadas é uma questão de sociologia política,
não técnica. A “conjugação orgânica” (Montevecchi, “Nota Storica,”, pp. 38) da questão de justiça com a
questão de armas por Maquiavel é uma revolução sobre visões antigas das comunas medievais, como também as
soluções das oligarquias antigas e da nova burguesia, ou seja, de simplesmente contratar mercenários. Maquiavel
inova em argüir que a organização de forças armadas adequadas é fundamental para a liberdade republicana” (In
MAQUIAVEL, 2010, pp. 11-12), 244
Interessante é que alguns autores, como Croce e Berlin, afirmam que Maquiavel descobriu a necessidade e a
autonomia da política em detrimento da religião. Afirmava uma política para além do bem e do mal, que não
pode ser exorcizada e banida do mundo com água benta. Por certo que tal enunciado rotula uma crítica a
religiosidade, especialmente à religião oficial; o Cristianismo católico. Porém, percebemos como marca da
formação do exército o exercício da religiosidade e a prática da crença vinculada a proteção e porque não ao
próprio exercício da política de defesa de Florença. Cf. BERLIN, I. A originalidade de Maquiavel. Tradução de
Bárbara Heliodora, São Paulo: Ediouro, 2002.
147
Que os Nove oficiais não tenham salário algum, mas somente tenham uma
gratificação [...] Que tenham para as suas necessidades e as de seu ofício nove
auxiliares. [...] Que os Nove oficiais tenham plena autoridade e poder de colocar
bandeiras nas terras e nos lugares do campo e do distrito de Florença e sob elas
alistar homens para combater a pé, a qualquer momento [...] e de punir os conscritos
por seus crimes não somente nos bens e nas pessoas destes, mas também com a pena
de morte, como a eles livremente aprouver, exceto nos casos citados. [...] Os Nove
oficiais, assim que tiverem aceitado e jurado seu cargos, deverão rever os cadernos e
as listas das bandeiras até a data fixada pelos magníficos Dez, e ordenar que seu
secretário copie esses cadernos e listas em um livro ou mais, distinguindo bandeira
por bandeira e anotando os condestáveis que as comandam [...] Devem manter
sempre inscritos, armados e ordenados sob as bandeiras e sob o comando dos
condestáveis que as exercitem e a distribuam entre o campo e o distrito de Florença,
pelo menos dez mil homens, e quantos mais acreditem poder manter armados,
conforme a disponibilidade de homens (MAQUIAVEL, 2010, pp. 61-62).
Aos Nove oficiais são conferidas funções que remetem os súditos a sua obediência e
submissão da autoridade. A bandeira representa um ícone do poder dos Nove e, onde é posta,
o poder e a autoridade deles se efetivam. Em cada bandeira deve se pintar um leão em cor
natural – não podendo pintar nenhuma outra fera, nem outras armas ou símbolos a não ser o
dito leão245
. Na bandeira ainda deve constar o número que corresponde a sua criação. O ato e
o poder de colocar as bandeiras em locais determinados indicam de modo evidente este poder
deliberativo. Os registros em cadernos do procedimento em relação à disposição das
bandeiras, bem como a substituição dos que as comandam ficam sempre ao critério do
responsável por este oficio particularizado. Entre as bandeiras deve – pelo menos haver dez
mil homens e quanto mais acreditarem, manter armados. Devem ser aceitos somente homens
nativos de onde a bandeira foi elevada e devem os Nove sempre manter o cumprimento da
aceitação e juramento ao cargo assumido. Na pessoa dos Nove poderão ainda agir os
comissários respectivamente eleitos no Conselho dos Oitenta e inseridos no poder por
participação, com salário garantido e com funções e compromissos deveras firmados entre os
Nove e o Conselho maior (MAQUIAVEL, 2010, pp. 62-64).
[...] E devem os Nove ter arregimentado os dez mil homens no prazo de seis meses a
contar do dia em que aceitaram e juraram o seu ofício. [...] Os Nove devem, em cada
245
Sua imagem é normalmente associada ao poder, à justiça e à força, mas também ao orgulho e à autoconfiança.
É um símbolo solar. No livro das revelações, o Leão de Judá é o Messias: “Todavia, um dos anciãos me disse:
Não chores; eis que o Leão da tribo de Judá, a raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selos”.
(Apocalipse 5, 4-6). O leão também aparece no estandarte da tribo de Judá. Como símbolo do safári africano,
pertence ao grupo de animais selvagens chamado de big five, correspondente aos 5 animais mais difíceis de
serem caçados: leão, leopardo, elefante, búfalo e rinoceronte. No Brasil, devido à veiculação, em 1979, de uma
campanha publicitária sobre a ação fiscalizadora da Receita Federal nas declarações de Imposto de Renda, em
que aparecia o animal, tornou-se uma metáfora frequentemente usada pelos meios de comunicação para
simbolizar aquela autarquia (“prestar contas com o Leão”, “Leão do Imposto de Renda”). Ainda é conhecido
como o Rei dos Animais, e assim é retratado em muitas histórias infantis na atualidade. Cf. Simpson DP.
Cassell's Latin Dictionary. 5th edition ed. London: Cassell Ltd., 1979. pp. 883. Cf. Também Liddell, Henry
George and Robert Scott. A Greek-English Lexicon (Abridged Edition). United Kingdom: Oxford University
Press, 1980.
148
bandeira que forma, mandar pintar somente um leão, e em cor natural, da maneira
que atualmente está nas bandeiras escolhidas e feitas por ordem dos Dez. [...]
Devem, porém, variar os fundos das bandeiras para que os homens que combatem
sob elas possam reconhecê-las, e devem mandar inscrever em cada bandeira o
número correspondente à sua criação como acontece nas bandeiras criadas até aqui.
[...] Os Nove poderão, para alistar os homens para inspecionar os exercícios e as
paradas militares na maneira como se dirá adiante, eleger e enviar para fora da
podestade ou da capitania seus comissários, [...] Os Nove devem manter
condestáveis que inspecionem todos os homens conscritos e que os exercitem
conforme o modelo alemão; e devem dar a cada condestável o comando daquelas
bandeiras que lhe parecerá conveniente (MAQUIAVEL, 2010, pp. 61-62).
2.4.3. A garantia da ordem através dos condestáveis e do modelo francês246
METTENHEIM escreve que “como Secretário da Chancelaria, Maquiavel
acompanhou as operações aliadas francesas e visitou a cidade de Arezzo três vezes junto ao
Capitão Langres, líder das tropas francesas” (2010, pp. 10, In: MAQUIAVEL, Política e
Gestão Florentina247
). Os textos que se referem à França foram redigidos pelo Florentino
durante as quatro missões diplomáticas que ele fizera. O texto “Da Natureza dos Gauleses”,
por exemplo, foi escrito durante a primeira viagem de Maquiavel, em 1500, e ampliado no
ano seguinte. A “Notula para alguém que será Embaixador em França” foi escrito em 1504,
na missão de levar novas instruções para o Embaixador de Florença, Valori, em Paris. Porém,
ressalta Mettenheim que o relatório “Retrato das Coisas de França”248
provavelmente foi
escrito em 1510 e aumentado em 1511, depois da terceira missão diplomática. Isso ocorreu
entre junho e outubro daquele ano, tendo como fundamento último a proposta de mediação da
parte de Florença para se efetivar um acordo de paz entre os reis das duas potências, Louis
XII, da França e Julio II, da Espanha (METTENHEIM, pp. 12, op. cit).
Os franceses são, por natureza, mais orgulhosos do que fortes do que hábeis, e quem
pode resistir à ferocidade de seu primeiro ataque os verá perder toda a coragem e se
246
Sobre o modelo francês, afirma Maquiavel que “o exército francês era forte na cavalaria pesada, e o espanhol
nas infantarias, por isso não houve tanto massacre. Assim quem quiser vencer os franceses deve guardar-se do
primeiro ímpeto de suas tropas, pois resistindo a eles, pelas razões ditas acima, vencerá. Por isso César disse que
os franceses no começo da batalha são mais que homens, e no fim menos do que mulheres. [...] A natureza dos
franceses é ávida dos bens alheios, com os quais, juntamente com os seus, é depois pródiga. Por isso um francês
roubaria sorrateiramente para gastar, usufruir e consumir o que roubou juntamente com aquele de quem roubou.
Natureza contrária a dos espanhóis, pois daquilo que te roubam nunca mais vê nada”. Cf. MAQUIAVEL, N.
Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio Kurt Mettenheim. Série Ciências
Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da Administração, FGV-EAESP: FSJ. Circulação
Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010, pp. 88. 89-90. 247
Pode-se conferir também MARCHAND, J. J. Niccolò Machiavelli: I Primi Scritti Politici. Editora
Antenore, Padova, 1975, pp. 100. 248
“Maquiavel explica a estrutura deste novo Estado Francês citando causas institucionais e políticas com as
regras de herança, a transformação dos vizinhos em súditos e a primogenitura combinada com a tradição dos
outros filhos de monarcas conquistarem territórios para estender domínios” afirma METTENHEIM, K, 2010, pp.
12. In: Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio Kurt Mettenheim. Série
Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da Administração, FGV-EAESP: FSJ.
Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010.
149
tornarem quase como mulheres, E também não suportam os incômodos e com o
tempo se tornam negligentes a um ponto que é fácil, ao encontrá-los desorganizados,
vencê-los (pp. 87). [...] A França, por sua grande e por sua grande população é rica e
opulenta. Lá os gêneros alimentares e o trabalho manual valem pouco ou nada por
causa da falta de dinheiro que grassa entre o povo, que com muita dificuldade pode
ajuntar o necessário para pagar os impostos de passagem, ainda que baixíssimos, a
seus senhores (MAQUIAVEL, 2010, pp. 86-89)
Assim, Maquiavel abre os relatórios sobre a França distinguindo-a da Alemanha e
dos demais países da Europa. Vê-se que Maquiavel se firma na descrição e no exame das
coisas do dia. Alemanha e Suíça, quiça a Espanha são modelos militares que podem ser
sondados. No caso, o modelo francês é o preterido.
[...] No passado a França não era unida, por causa dos poderosos barões que
ousavam e tinham coragem suficiente para lançar-se em todo tipo de empresa contra
o rei, como era o caso do Duque de Guienne, de Bourbon, etc. [...] Há outra razão
para tal. Antes, todos os príncipes vizinhos da França tinham coragem de atacar o
reino [por variados motivos] hoje são súditos obedientes da França, aos príncipes
estrangeiros não só veio a faltar o apoio desses domínios, como hoje lhe são
inimigos; e o rei, por tê-los, é mais poderoso e seus inimigos vizinhos mais fracos.
Ainda outra razão há: hoje os mais ricos e os mais poderosos barões da França são
de sangue real e descendência dinástica. Assim, se não houver ninguém superior ou
anterior a eles na linhagem, a Coroa pode vir a ser de algum deles (pp. 86). [...] As
infantarias francesas não podem ser muito boas, porque há muito tempo que não
enfrentam uma guerra e por isso não têm experiência nenhuma. Além disso,
naquelas terras todos são ignóbeis e trabalhadores, e estão tão submissos aos nobres
e são tão reprimidos em toda iniciativa que acabam sendo covardes. E por isso que
não se vê o rei utilizá-los nas guerras, porque dão bons resultados, apesar dos
gascões, que o rei utiliza por serem um pouco melhores do que os outros. [...] Os
franceses provaram ser mais ladrões do que homens valentes; no entanto, são de
muito valor para defender e atacar castelos e cidades fortificadas, mas em batalhas
campais não, ao contrário dos alemães e suíços, que para batalhas campais são bons,
mas não servem para defender e atacar castelos e cidades fortificadas. E creio que
isso acontece porque nesses dois casos não podem manter a ordenação da milícia
que mantêm em seus campos. É por isso que o rei da França utiliza ou suíços ou
alemães, porque sua cavalaria pesada francesa, onde quer que encontre um inimigo,
não confia nos gascões. Porque se suas infantarias tivessem a mesma eficiência da
cavalaria pesada francesa, não restaria dúvida que teriam coragem para defenderem-
se de todos os principados (MAQUIAVEL, 2010, pp. 85-93).
Os condestáveis são eleitos com maior rigor pelos Nove do Conselho em comunhão
com os demais na base do voto pelas favas e no consenso de quorum mínimo. Ele deve ter um
secretário para controlar os homens inscritos. Os condestáveis serão os inspecionadores de
todos os homens conscritos, e devem os exercitar no modelo alemão. Esses também teriam
seu próprio salário, teriam não menos que trezentos homens a sua inspeção no regimento dos
36 dias do mês militar (MAQUIAVEL, 2010, pp. 62). Em suas funções mais exímias estão a
incumbência de – uma vez por mês – entre março a setembro, reunir todos os homens de seu
comando, e no ano todo três vezes entre os meses de outubro a fevereiro, além de datas
150
comemorativas e nestas datas serão realizados exercícios militares obrigatoriamente. Cabe aos
contestáveis ainda informar as ausências aos Nove para que sejam punidos.
Todo e qualquer conscrito que não comparecer aos desfiles convocados, como dito
acima, será, por cada vez que não comparecer sem motivo legítimo, condenado a
multa de vinte soldos. E aquele que faltar em seis desfiles durante um ano, a contar a
partir de primeiro de novembro, sua falta se tornará crime, e ele será castigado na
sua pessoa na maneira que decidir os Nove oficiais, além de ter que pagar tudo o
que, conforme o disposto acima, deve pagar por suas ausências às paradas. Os
motivos legítimos para tais ausências são ou doença ou licença concedida pelos
Nove. E os recursos provenientes de todas as condenações mencionadas acima
podem ser aplicados pelos Nove na sua magistratura, para o pagamento das despesas
ordinárias (MAQUIAVEL, 2010, pp. 66)
É recomendável ainda, afirma Maquiavel, que o condestável não seja eleito num
lugar de origem ou onde possua algum tipo de propriedade. Em relação às obrigações do
Conselho dos Nove no tocante aos condestáveis, cabe àqueles permutarem estes de ano em
ano, de modo a um condestável não poder exercer sua função na bandeira, se já estiver
exercendo outro cargo. Se por acaso, algum dele for cassado, a partir da data da cassação o
condestável por três anos não poderá assumir nenhum posto na República Florentina. Noutro
momento dos seus escritos Maquiavel afirma a necessidade de um comandante para eventuais
situações, e enfatiza que durante eventos cívicos ou durante a própria ação de guerra não se
deverá barganhar conscritos. Eles também não poderão ser retirados de suas casas para
qualquer tipo de ação, mesmo se referindo a guerra sem a devida aprovação do Conselho.
Serão punidos caso abandonem as bandeiras em vista de qualquer finalidade. Do mesmo
modo deve se punir quem faltar aos desfiles sem justa causa. Estas podem ser: doença ou
licença concedida pelos Nove. Ainda deve se punir os conscritos por algum tipo de reunião
privativa entre eles que tenha motivação última à infidelidade. Deverão ser punidos de acordo
com as regras concordadas – na alma desta provisão (MAQUIAVEL, 2010, pp. 64-66).
Segue o texto, recortado, em que Maquiavel evidencia algumas razões que em sua
visão justifica o poder da França sobre os países circunvizinhos, sobretudo no que se refere a
sua organização militar.
A França teme muito os ingleses, por causa das grandes incursões e danos que
antigamente impingiram ao reino, e entre o povo a palavra „inglês‟ é temida, visto
que eles não percebem que a França está hoje em outra situação, diferente da
situação de antigamente, porque está armada, provada e unida, e domina aquelas
domínios sobre os quais os ingleses se apoiavam como dos ducados da Bretanha e
de Borgonha. Os franceses não temem os flamengos, e isso porque os flamengos não
colhem, por causa da natureza fria de sua região, o suficiente para viver, sobretudo
trigo e vinho, os quais é preciso trazer da Borgonha e da Picardia e de outras regiões
francesas. Os franceses temem muito os suíços pela proximidade e pelos ataques
repentinos eu eles podem fazer, contras os quais, por sua presteza, não é possível
prevenir-se a tempo. E fazem os suíços, sobretudo, depredações e incursões, pois
151
não tendo artilharia nem cavalaria, e como as terras francesas que lhes são
confinantes bem guarnecidas, não fazem grande grandes progressos. E também a
natureza dos suíços é mais apta à batalha campal do que ao assaltar ou defender
regiões, e os franceses, por sua vez, relutam em entrar em conflito com eles, pois
como não têm boas infantarias, não podem enfrentar os suíços, e a cavalaria sem
infantaria vale pouco. [...] Dos lados da Itália nada temem em relação aos Alpes e às
grandes extensões de terra que têm ao pé dessas montanhas. Toda vez que alguém
quisesse atacar por aí a França, deveria atravessar por cima dos Alpes e teria atrás de
si uma região tão estéril que ou padeceria a fome, ou deveria atravessá-las direto (o
que seria loucura), ou que se pusesse a conquistá-las. Assim, da parte da Itália, não
temem, tanto pelas razões ditas acima como pelo fato de não haver na Itália um
príncipe capaz de atacá-los, e por não estar Itália unida como era nos tempos dos
Romanos. [...] A população da França é humilde e muito obediente, tem grande
veneração por seu rei, vivem com pouquíssimos gastos pela grande abundância de
gêneros alimentícios e todos têm algum imóvel para si. Vestem-se grosseiramente e
com panos baratos, e não usam seda de nenhuma espécie, nem os homens nem as
mulheres, pois seriam vistos como nobres. [...] A guarda de infantaria é composta
de alemães, são cem soldados que recebem doze francos ao mês, e se costumava
manter até trezentos deles com um salário de dez francos ou mais, mais dois
uniformes por ano a todos eles, um de verão e outro de inverno, com o gibão e as
meias com as insígnias do rei; e esses cem do corpo de infantaria tinham um gibão
de seda na época de Carlos VIII. Em cada paróquia da França há um homem pago
com um bom salário que se chama franco arqueiro. Ele é obrigado a manter um bom
cavalo e a ter uma armadura para atender a qualquer chamado do rei. Quando o rei
se encontrar fora do reino, em guerra ou por outro motivo, são obrigados a cavalgar
até aquela província em que o reino foi atacado, ou onde há a ameaça de um ataque.
Conforme o número de paróquias eles são um milhão e setecentos mil (pp. 93)249
.
2.4.4. A organização interna dos homens inscritos no exército:
Estruturação, Dispensa e Manutenção sob denúncia250
É interessante como se dá o processo de alistamento, ou ainda, como os Nove
Oficiais chegam ao conhecimento dos nomes que serão candidatos ao cargo do exército.
Primeiramente cabe aos líderes e governantes, prefeitos dos povoados apresentarem a lista
com os nomes mais indicados para a função do exército. Caso isso não ocorra, escreve
Maquiavel que os regentes dos povoados devem ser penalizados com a pena mínima de duas
chibatadas caso omitam algum nome por qualquer motivo (MAQUIAVEL, 2010, pp. 63).
Assim sendo os novos soldados serão avaliados segundo um critério de aptidão.
Maquiavel não o descreve, somente o cita, mas pelo que já foi dito, deve ser um bom homem,
cidadão de Florença, possuir a virtù na obediência às leis e no manuseio das armas. Como já
se afirmou, "bom cidadão, bom militar". Os Nove devem rever o procedimento de todos os
homens inscritos, dispensar alguns por inaptidão e conforme já dito recrutar outros. Onde
formar novas bandeiras, que cuidem os responsáveis para que lá também se angariem bons
homens com boas armas. Ao interno da companhia devem ser eleitos também comandantes de
249
MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio Kurt
Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da Administração,
FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010, pp. 85-93. 250
"Provisões da República de Florença para instituir o Magistrado dos Nove Oficiais da Ordenança e Milícia
Florentina", pp. 59-69. In: Ibidem, pp. 59-69.
152
pelotão. Os eleitos devem ser os de melhor qualidade e devem ter sob sua regência não mais
do que cem homens. Caso algum nome seja burlado, omitido, narra Maquiavel que a Igreja
participe deste ato civil dos homens para fomentar a verdade dos fatos. Em cada paróquia ou
igreja deve haver um tambor para que ali sejam realizadas as denúncias. A cada dois meses,
um dos Nove Oficiais abre este tambor e recolhe os nomes dos denunciados para as devidas
providências (MAQUIAVEL, 2010, pp. 63-64). Quanto aos que requererem a dispensa,
Maquiavel afirma que não se pode forçar – a não ser por necessidade – os que passarem dos
cinqüenta ou sessenta anos, e que demonstrarem algum tipo de situação desfavorável a
permanência na infantaria. Cada caso será julgado, mas prevalecendo a necessidade da
Infantaria. Textualmente afirma Maquiavel “[...] os casos de necessidade serão julgados pelos
eminentes senhores e seus veneráveis colégios ou por dois terços deles” (MAQUIAVEL,
2010, pp. 63-64).
2.4.5. Os homens e as armas: ―Homens armados na confiança e na força‖251
Dessa maneira, o cidadão, servindo a pátria com sua própria vida, não está sendo
apenas um soldado, está exercendo um dos mais elevados graus da liberdade, a
cidadania, motivado não por interesses particulares, mas pelo bem de todos. Aqui
virtù militar e virtù política tendem para o mesmo fim, uma vez que a república é o
bem comum e o cidadão, encaminhando todas as suas ações para esse bem comum
dedica a vida à república. Quem luta pela pátria oferece em sacrifício sua existência,
e desse modo cidadania e milícia coincidem ao aperfeiçoar a natureza humana
entregando seus bens particulares para um fim universal (POCOCK, 2008, pp. 289,
ZORZO, 2010, pp. 2-3).
Detalhadamente – Maquiavel descreve num momento o armar-se dos homens da
guarda e distingue dois momentos específicos em relação ao porte de armas no comando dos
Nove e dos encarregados destes juntos as milícias e as bandeiras. Maquiavel afirma que as
armas são necessárias para a defesa e para o ataque dos homens da milícia florentina. Em
relação à defesa – uma couraça de ferro, quanto ao ataque – a cada cem infantes, sententa
lanças e dez escopetas. Aos restantes, podem se manter com – bestas, escudos de madeira ou
couro e espadas. Cabe aos nove ainda reunir duas vezes ao ano, fevereiro e setembro, os
homens em respectivas bandeiras e for organizar um desfile. No lugar do desfile deve o
encarregado, seja ele quem for, mandar celebrar uma missa do Santo Espírito. Ao
251
“Provisões da República de Florença para instituir o Magistrado dos Nove Oficiais da Ordenança e Milícia
Florentina”, pp. 59-69. In: MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato
Ambrosio. Prefácio Kurt Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e
Jurídicos da Administração, FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de
Impressão, 2010.
153
encarregado, neste momento, cabe o discurso solene seguido do toque de mãos em honra ao
Santo Evangelho.
Após este ato de juramento, com todas as suas incidências – diante das palavras
obrigatórias, de corpo e alma estejam conscientes da incumbência lhes transmitida e
assumida, e possam então voltar à suas casas. Maquiavel ainda salienta duas situações
importantes na manutenção da milícia florentina – a primeira referente ao soldo que deve ser
pago aos conscritos na primazia de suas funções, e que todos, inclusive os próprios conscritos,
saibam que não tem o direito, ou privilégio de poder portar armas dentro da cinta das
muralhas da cidade de Florença (MAQUIAVEL, 2010, pp. 64-65).
É o que vários autores, dentre os quais AMES insiste em frisar no pensamento de
Maquiavel, a questão do bom cidadão e da boa educação.
Um "bom cidadão", para Maquiavel, é alguém com hábitos de vida simples,
coragem, patriotismo, disposição ao sacrifício pelo bem comum, etc. Um "homem
bom", por sua vez, é aquele que possui um conjunto de qualidades morais em grau
de excelência, tais como honestidade, senso de justiça, retidão de caráter, piedade,
etc. Não há relação necessária entre as duas "bondades": é possível ser honesto,
íntegro, justo, fiel e, no entanto, ser incapaz de sacrificar-se pelo bem público, de
assumir os encargos públicos como tarefa sua. Se Maquiavel se interessa pelo "bom
cidadão" e não pelo "homem bom" não é porque considera irrelevante o último, e
sim porque, como pensador político e não teórico da moral, se preocupa com as
condições de possibilidade para o estabelecimento de uma república estável e
duradoura. (AMES, 2008, pp. 150).
2.4.6. A relação interna e de obediência aos conscritos – ―O capitão da
guarda‖ e as primeiras conclusões da provisão por parte de Maquiavel Primeiramente quem é o capitão da guarda? È o responsável pela organização e
manutenção do exército florentino. Cabe ao capitão manter a ordem ao interno do exército.
Como nos outros cargos, terá alguns homens ao seu comando mais próximo, e alguns destes
terão um soldo vitalício – o que é interessante no sentido de um vinculo mais profícuo e uma
garantia maior de fidelidade252
. Por um lado, os capitães nas diversas bandeiras devem
obedecer à hierarquia já citada, por outro, quanto à identidade, ou melhor, quanto ao local de
origem deste capitão, diz Maquiavel, que não se poderá ser da cidade, do campo ou do distrito
de Florença, nem de região de quarenta milhas do território florentino. Esta primeira provisão
é concluída relembrando ao Conselho dos Nove a sua função de manter a ordem e de
obediência as leis dispostas nesta provisão sob a ordenação do Conselho de Leis. É presumida
multa a quem não cumpri-las, e caso haja alguém que alegue ignorância em algum momento,
252
Maquiavel afirma que “[...] os povos, como diz Túlio, mesmo sendo ignorantes, são capazes de entender a
verdade e facilmente cedem, quando a verdade lhes é dita por homem digno de fé” (MAQUIAVEL, Discorsi,
Liv. I, Cap. IV).
154
foi proposto que se resuma todas as leis e se sejam dispostas num livreto para fácil consulta
pelos determinados responsáveis (MAQUIAVEL, 2010, pp. 65). Neste sentido, o capitão deve
ser criteriado a este modo
Nada pode desorganizar ou denegrir as infantarias ou a vossa ordenança do que
serem comandadas sem critério; e nada pode fazer-vos correr mais perigo do que a
pouca ordem em vosso campo. Para querer evitar uma e outra dessas desordens,
creio não haver outro meio, nem mais cômodo, do que nomear o senhor Iacopo
Savelli capitão das vossas infantarias: porque qualquer outro que se escolha, ou será
tardo ou muito perigoso. E para discorrer sobre a primeira parte, sobre as desordens
das infantarias, como se nós devêssemos pensar em formar um exército
imediatamente, dir-se-ia que estes comandantes atuais não servem. E toda vez que
ou que vós escolherdes novos comandantes, ou propuserdes a eles homens de baixa
extração ou desconhecidos, vós, no primeiro caso, tornareis os infantes inúteis, no
segundo caso indignareis os ditos comandantes, de modo que não poderão fazer
nada bem (MAQUIAVEL, 2010, pp. 71)
2.4.7. Infantaria e Cavalaria para uma melhor proteção de Florença –
Efetivação da Cavalaria, regulamentos e ponderações sobre a mesma253
Citando a primeira provisão, que acabamos de apresentar, Maquiavel afirma na
segunda, sobre "as milícias a cavalo, de 30 de Março de 1512254
sob o texto latino: Pro
discrebendis equis in militia florentina, que para enriquecer e ampliar a segurança de
Florença, desencorajando inimigos, aumentando a confiança dos súditos e garantindo uma
maior segurança e firmeza do Estado, os mesmos argumentos iniciais da primeira provisão em
relação às leis e as armas.
Neste determinado momento faz-se necessário – no modelo burocrático já esmiuçado
– diz Maquiavel – alistar homens para uma milícia a cavalo. Novamente reforçando as
funções próprias do Conselho dos Nove, Maquiavel relata que, sob o mesmo esquema das
bandeiras, dos desfiles, da obediência e civilidade, do sistema de pagamento e taxas, mas,
sobretudo na prontidão para a guerra – devem ser selecionados quinhentos cavaleiros, e estes
devem ser reembolsados conforme tabela própria e agregados aos conscritos tendo entre os
253
“Provisão para a Instituição do cargo dos cinco provedores dos muros da cidade de Florença”. pp. 116-117.
In: MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio Kurt
Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da Administração,
FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010. A disciplina militar
se soma às duas qualidades referidas, por modelar corpo e alma e construir tanto o desapego às paixões
perecíveis quanto o amor à pátria e valorização do bem comum: “em qualquer lugar”, afirma Maquiavel em A
arte da Guerra, “com exercícios, fazem-se bons soldados; pois onde falha, a natureza é suprida pela indústria,
que nesse caso vale mais que a natureza”. Cf. também MAQUIAVEL, N. A arte da Guerra, I, pp. 22. 254
“Provisões da República de Florença para instituir o Magistrado dos Nove Oficiais da Ordenança e Milícia
Florentina”, pp. 66. In: MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio.
Prefácio Kurt Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da
Administração, FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010.
155
seus alistados dez por cento portando lanças. Cabe aos Nove enviar um representante para
averiguar os efetivados da cavalaria255
.
Este comandante é chamado de condottiere que pode ao menos comandar uma
bandeira e cinqüenta cavaleiros, levando em conta o tempo previsto para o comando e a
transmigração própria do sistema de mudança e rotatividade, como se prevê nos cargos
anteriormente citados. Na avaliação da cavalaria haverá em um mesmo dia – uma revista aos
cavaleiros feita sob a tutela dos Nove onde todos os homens da cavalaria deverão ser
identificados e receber o que lhes for devido. As faltas devem ser justificadas – ou com a
autorização dos Nove ou por motivos de doença que deve ser atestada em papel pelo padre da
paróquia e o cavaleiro doente deve enviar alguém em seu lugar no seu cavalo para atestar e
justificar sua ausência. Não se poderá apresentar-se com outro cavalo senão com aquele em
que se está inscrito. O cavaleiro tem liberdade e responsabilidade sobre o seu cavalo, portanto
pode vendê-lo quando bem quiser, mas terá 10 dias para apresentar o novo cavalo ao seu
responsável e pagar a devida taxa respeitante àquele ato. Ao interno deve ser tudo registrado
como caixa de entrada e saída de arrecadações e sempre que necessário ser prestado contas
por parte dos responsáveis pela cavalaria. Para tanto – se ocorrer de algum cavaleiro estar em
débito com Florença – no tempo de guerra a dívida será perdoada. Ao voltarem da guerra
inicia-se o processo de divida até uma possível nova guerra. O que ainda pode ser dito neste
assunto é que os Nove não podem dispensar nenhum conscrito sem que este restitua antes aos
ditos oficiais tudo aquilo que é devedor, a não ser que numa reunião em um número suficiente
dos Nove, os Senhores e o Colegiado possam cancelar, total ou parcialmente, os débitos de
algum conscrito. A dívida pode ser esquecida se o conscrito morrer em batalha de guerra, ou
for banido ou preso por qualquer circunstância, mas se morrer em outro local – que não em
batalha – seus herdeiros ou sucessores devem assumir a dívida e restituir ao debitante a partir
dos bens que o devedor deixar. O mesmo pode ser assinalado à posse do cavalo. Se o animal
vier a morrer em campo de batalha, o conscrito deverá receber dois terços do valor do animal
da parte dos Nove. Se o animal morrer fora da esfera da guerra – os alistados sob a bandeira
devem doar parte de seu soldo até o limite de dez florins de ouro afim de que as companhias 255
"Registrarão seus cavalos pela cor do pelo e marcas, anotando ainda o valor de cada cavalo”. Muito se pode
dizer a respeito do sentido militar da cavalaria. Jacques Le Goff & Jean-Claude Schmitt no – Dicionário
Temático do Ocidente Medieval, Vol. 1, no texto de Jean Flori, traduzido por Lênia Márcia Mongelli. Flori nos
afirma que essencialmente trata-se de um grupo profissional, os dos guerreiros da elite, atacando
impetuosamente, de lança ou espada em punho, em todos os campos de batalha. [...] Este aspecto militar atrela-
se a um segundo – fazer cavalaria – militiam facere – que significa tanto atacar quanto realizar grandes feitos de
armas, proezas ... cavaleirescas. Flori é incisivo – na cavalaria não entra quem quer, pois [...] deve-se controlar o
acesso, filtrar a admissão. Cf. FLORI, J., Cavalaria (verbete), pp. 185s, Tradução de Lênia M. Mongelli. In:
Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Vol. 1, coordenador de tradução Hilário Franco Jr., Bauru, SP,
Edusc, 2006.
156
mantenham sempre seus cavalos sem custos para a comuna de Florença (MAQUIAVEL,
2010, pp. 66-69).
Entro nas antigas cortes dos antigos homens, onde, amavelmente recebido por eles,
nutro-me daquele alimento único para mim e para o qual nasci, onde não me
envergonho de falar com eles e lhes pergunto a razão de suas ações, e eles, com sua
urbanidade, me respondem; e por quatro horas não sinto nenhum aborrecimento,
esqueço todas as preocupações, não temo a pobreza, e a morte não me perturba:
transporto-me totalmente para eles (Maquiavel, Lettere)256
Esta provisão tem no auge de sua redação, num primeiro momento, a intenção de
constituir os “Cinco procuradores das Muralhas da Cidade” sob a invocação do patronato de
São João Batista e sob a proteção de Deus e da Gloriosa Virgem Maria. Num parágrafo
extenso, Maquiavel, por mais de cinco vezes, na tradução que temos, fala em prudência do
príncipe, do líder político. E ao falar da prudência – o faz em referência a quem não a teve
historicamente, e como conseqüência efetiva foram arruinados e saqueados. Na busca e na
evidenciação da Verità effetualle, a prudência é redefinida nos escritos de Maquiavel. A
ênfase nas tópicas da honestidade, da utilidade, da segurança e da necessidade. Trata-se da
arte do estado e da verdade efetiva, bem como na retórica da pratica. Os componentes da
prudência são: a experiência e a leitura das histórias (discrezione e ragione).
Ser prudente257
, em síntese, é garantir a segurança da cidade de Florença fortificando
cada vez mais o modelo já descrito na égide dos homens armados e dos cavaleiros. A respeito
da prudência – outrora afirmou Cícero:
256
Cf. NETO, M. de A. O Tempo nos Discorsi de Maquiavel. Dissertação de Mestrado em Filosofia. Área de
concentração: Filosofia Social e Política. Colaboração de Newton Bignotto, Belo Horizonte; Departamento de
Filosofia da UFMG, 1999, pp. 87. 257
Maquiavel altera o significado de prudência, da razão prática dos humanistas, alicerçada por considerações
morais, para a faculdade de julgamento calculativa, potencialmente amoral, apropriada ao homem de virtù. Cf.
KAHN, Victoria. Machiavellian Rhetoric, pp. 21. “At the same time, he alters the meaning of prudence from
the humanists‟ practical reason, informed by moral considerations to the calculating, potentially amoral faculty
of judgment appropriate to the man of virtù”. Trata-se de uma concepção calcada na premissa de uma
subjetividade forte que atua como desenraizadora consciente da tradição humanista. A redefinição da prudência
em Maquiavel [...] obedeça a movimentos mais sutis, isto porque, para ele, a prudência não deixa em absoluto de
ser concebida como recta ratio agibilium; é precisamente a noção de “razão reta” que se transforma,
distanciando-se da idéia de que modelos universais possam ser intuídos e realizados em ações particulares, e
aproximando-se de um entendimento mais pragmático calcado na valorização dos efeitos das ações dos agentes
envolvidos e na antevisão das possibilidades em jogo no tabuleiro da política. A ênfase analítica é em grande
medida direcionada aos meios e fins primeiros, os quais não deixam de remeter, ainda que muitas vezes de forma
opaca, a fins últimos tomados como honestos. De modo que não se pode afirmar que a idéia aristotélica de
desejo correto seja questionada por Maquiavel; porém, o caráter normativo deste desejo correto se dissolve de tal
forma que o princípio de correção passa a ser, ele próprio, contingente e passível de deliberação. In: A prudência
em Maquiavel e Guicciardini. S/N – Texto vinculado a PUC-RJ. Tradicionalmente, como se disse na introdução,
há vários leitores e várias óticas em relação aos escritos de Maquiavel. Não se pode rejeitar a ética de suas penas
históricas. Cf. NUNES, E. A Política à meia luz: ética, retórica e ação no pensamento de Maquiavel. São
Paulo: EDUC, 2008, pp. 103-137.
157
Prudência é a destreza que pode, com certo método, discernir o bem e o mal.
Também se denomina prudência o conhecimento de alguma arte, e ainda a memória
de muitas coisas e o trato de um grande número de negócios258
.
Maquiavel fala da organização destes cinco provedores dos muros da cidade de
Florença no sentido de que devem eles ter mais de trinta e cinco anos, não portarem dívidas
para com a Comuna e prestarem o juramento já referido outrora. Serão oficiais com poder de
decisão e primordialmente no que concerne a fortificações da cidade. O posto devido é
posterior aos Conservadores da Lei. Que eles possuam um secretário e possam eleger um
chanceler, e outros ministros no modo e com o salário que lhes aprouver. Que tenham eles – a
autoridade devida e o respeito do povo de Florença259
.
2.5. A força e a formação do exército no Príncipe: como avaliar a força dos
Estados
O Príncipe de Maquiavel pode ser dividido em duas grandes partes, sendo que na
primeira delas, referente aos cap. I-XIV, tem-se como objeto principal da reflexão, a questão
dos principados. Em tais capítulos reflete-se sobre a natureza, o como são formados e como
devem ser mantidos os principados. Destaca-se nesta parte também, sobretudo ao nosso
interesse, as propostas que Maquiavel faz a respeito dos ordenamentos militares, ou seja, das
forças militares que auxiliam o governo260
, ou ainda, a questão propriamente das armas. O que
se enseja compreender na averiguação dos textos do Príncipe é a funcionalidade do
principado. Portanto, neste tópico conclusivo do segundo capítulo, analisaremos, entre outras
coisas, os capítulos XII, XIII e XIV do Príncipe de Maquiavel.
Para Sasso, o critério que qualifica a política e o príncipe, em Maquiavel, não é
necessariamente a sua excelência ética, mas sua funcionalidade e necessidade
prática261
.
258
Cf. CICERO, M. T. Retórica a Herênio, III, 3, pp.153. In: A prudência em Maquiavel e Guicciardini. S/N –
Texto vinculado a PUC-RJ. 259
“Provisão para a Instituição do cargo dos cinco provedores dos muros da cidade de Florença”, pp. 116-117;
pp. 66-69, In: MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio
Kurt Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da
Administração, FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010. 260
MAQUIAVEL, N. O Príncipe, cap. XII - XIV, Trad. José Antônio Martins, São Paulo: Ed. Hedra, pp. 19-20,
2010. 261
SASSO, G. Machiavelli e gli antichi. Napoli: Morano. 1967, pp. 465. Cf. SGANZERLA, A. Maquiavel: A
religião como instrumento da política. Dissertação de Mestrado, São Paulo: PUC – SP, 2004, pp. 65.
158
Um aspecto central ao adentrar o Príncipe é definir o que Maquiavel entende por
política. Para o florentino política não é um conceito meramente, é mais do que isso. Trata-se
de ações necessárias para alcançar e manter o monopólio do poder estatal e com ele a sua
autonomia (VINDAS, 2009, pp. 64)262
. No capítulo VI do Príncipe, Maquiavel afirma que a
política se efetiva na verdade das coisas, ou seja, quando as coisas veem nascidas de uma
firme experiência (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 73). E complementa que é preciso crer na
política, ou seja, é preciso crer pela força (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 75).
Quanto aos gêneros e os modos de adquirir os principados, Maquiavel, abre o
Príncipe, no capítulo I, descrevendo o hábito de se ter e obedecer um príncipe. Traz implícito
a questão da vida livre, mas enfatiza o uso de armas e a habilidade da virtú (MAQUIAVEL,
2010[2], pp. 31). Quanto aos principados hereditários, Maquiavel confirma a lógica da força
descrita outrora nos relatórios dos I Primi Scritti Politici, sobretudo quando fala em "força
extraordinária" para a conservação do território (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 33). É preciso
pegar em armas, ter em sua jurisdição, gente armada para manter o poder e a liberdade.
Aproveitar-se da ocasião para precaver-se dos pontos de fraqueza (MAQUIAVEL, 2010[2],
pp. 37). É no capítulo III que o florentino denota que para se combater os inimigos e os que se
injuriam é necessário "que se tenha um fortíssimo exército próprio, pois sempre é necessária a
ajuda dos provinciais para entrar [e manter - acréscimo nosso] uma província conquistada
com muita gente armada e muitos soldados (MAQUIAVEL, 2010[2], p. 35. pp. 40-41).
Maquiavel tem consciência de que "o tempo traz todas as coisas, e pode conduzir
consigo o bem como o mal, e o mal como bem" (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 47). Foi por
este motivo, obviamente ao espírito da fortuna, que a França, que é bem organizada, pode
assaltar Nápoles e com as suas forças tomá-la. O Rei Luis XII (1498-1515)263
da França pode
eliminar os menores poderosos da Itália (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 51).
A força dos Estados se manifestam num esquema específico delineado por
Maquiavel. Primeiramente pelo fato de que o poder é criado com força e com astucia. Pela
força, sobretudo no que diz respeito a violência e a dominação. Já, no que se refere a astucia,
nas oportunidades, tendo em vista a virtú subestimando a fortuna. (MAQUIAVEL, 2010[2],
pp. 55; 65). A lógica da força é reiterada por Maquiavel quando o florentino afirma: "convém
confiar mais na própria força do que na desordem dos outros" (MAQUIAVEL, 2010[2], pp.
262
CASSIRER, E. "La nueva ciencia politica de Maquiavelo: gloria, poder y usos del mal", In: El mito del
Estado, México. Fundo de Cultura Económica, 1968, pp. 138-193. 263
MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Trad. José Antônio Martins, São Paulo: Ed. Hedra, 2010, pp. 265.
159
59). A força cria a potência no Estado, por isso a importância do planejamento político
(MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 91. 101).
Entre os capítulos XII e XIV, Chabod os interpreta, afirmando que a questão que se
apresenta à investigação de Maquiavel se dá sobre a organização das forças armadas. Nestes
capítulos, Maquiavel se mantém sob o foco dos problemas político-militares, e isso resulta ao
tipo de milícia que se deve montar, não obstante, trata-se também do ponto de organização, no
caso a virtude do príncipe, e os requisitos pessoais indispensáveis ao governo (CHABOD,
1987, pp. 158-159).
No processo de formação do “soldado cidadão”, insiste Maquiavel que, além das
aptidões físicas serem importantes e necessárias para torná-lo ágil e vigoroso, se
deve considerar também como basilar a formação de seu caráter, uma vez que ser
possuidor das condições físicas é fundamental, contudo estas não podem ser as
únicas, pois há outras qualidades que lhes são fundamentais. Desse modo,
estabelece: " É necessário que ele seja honesto e dotado de pudor, caso contrário se
converte num instrumento instaurador de desordens e um foco de corrupção. De
fato, não é possível jamais esperar qualquer comportamento íntegro, não é possível
esperar uma conduta virtuosa de um homem privado da mais ínfima educação e
embrutecido pelo vício (Da Arte da Guerra, 2002, pp. 79)" (In: POYER, 2013, pp.
73-74).
2.5.1. Interdependência entre "Príncipe, Poder e armas"
Maquiavel abre o capítulo XII do Príncipe com pressuposto de que o regente
político não depende somente de si para manter o poder e a ordem sobre sua jurisdição –
sobre o Estado. E pensa a ordem no sentido de um enfrentamento ao modo de guerra. Por isso
no final deste capítulo ele mesmo afirma que a prudência do príncipe é que fará valer o
desfecho de sua liderança, pois o que tiver prudência – virtù – não terá dificuldades em
manter o ânimo de seus súditos. E, além disso, percebe e salienta Maquiavel que o regente
político necessita de um auxílio alheio que deve ser – em miúdos – compreendido como um
bom exército.
Num primeiro argumento referido a este assunto, Maquiavel trava a reflexão sobre o
ter suficiente dinheiro e homens para a defesa da cidade. Num segundo aporte, e é o que ele
vai melhor desdobrar, trata-se dos que permanecem refugiados, escondidos. A tese é a
seguinte: o líder político deve fortificar bem sua cidade, de modo a não ser fácil alguém
atacar, pois está bem defendida. A idéia de fundo são os empreendimentos. O príncipe deve
ser um artífice de “grandes empreendimentos” para conquistar o povo (Cap. XXI). E neste
conjunto há um detalhe importante que é preciso citar, segundo Maquiavel não ser o regente
político odiado pelo povo (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 131-142).
160
No “O Príncipe – Cap. XII: Os diferentes tipos de milícia e de tropas mercenárias: A
base principal de todos os Estados – boas leis e bons exércitos”264
. Os Exércitos mercenários
são – sinal de traição e derrota, pois visando o prestígio pessoal leva ao descrédito a
infantaria. Maquiavel vê a derrocada da Itália pelo fato de ela ter sempre insistido em
exércitos mercenários. Os mercenários, ao exato momento, demonstram a falsidade e a traição
– e como exemplo, cita que o rei Carlos da França pode tomar a Itália a partir desta situação
descrita. No caso foi atribuído um sentido religioso vinculado ao pecado na derrocada italiana.
Pecado? Pensa Maquiavel, foi o que fizeram aos punidos, o erro e o motivo está na má eleição
da guarda da Itália – exércitos mercenários. Ao fundo mesmo em relação às forças
mercenárias – “elas só sabem causar danos” e como danosa consequência “[...] conduziram a
Itália à degradação e a servidão” (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 139).
Quase ao fim do capítulo XII, Maquiavel descreve as conseqüências dos exércitos
mercenários na Itália, dizendo que: “[...] a Itália foi vencida por Carlos VIII, depredada por
Luis XII, violentada por Fernando de Aragão e insultada pelos suíços” e com isso descreve
uma tese de oposição ao que já apresentou a partir do enunciado de que um príncipe em
pessoa no comando angariaria novas posturas e conclusões totalmente contrárias “ad intra” e
“fortunadamente ad extra” em relação aos procedimentos dos exércitos mercenários no
tocante a postura de guerra.
Neste intuito, Maquiavel elenca vários exemplos italianos e cita vários nomes e
situações históricas que demonstram de sua parte dois movimentos – o conhecimento bem
elaborado da história de até então, e uma leitura precisa – no vórtice político – desta mesma
história, dando certo destaque ao comandante Paulo Vitelli, homem de prudência, em sua
postura em relação à conquista de Pisa. Por certo que Vitelli não se deu bem nesta empreitada
em relação a Pisa, e no que concerne aos venezianos, mesmo tendo em vista sua condição de
cidadão de bravura. Maquiavel dispõe um comentário sobre o poder temporal da Igreja em
ascensão exatamente por mancomunações políticas realizadas pelo papa em detrimento a
subdivisões de estados e a pessoas que passaram a governar – o que resulta – segundo
Maquiavel que a “Itália caiu quase inteiramente em poder da Igreja” (MAQUIAVEL,
2010[2], pp. 131-141).
264
A ideia de força apresentada no 1° Capítulo é vista como uma técnica da política e um recurso importante;
porém, já de principio neste 2° Capítulo afirmou-se a importância das leis, que de certo modo, organicamente é o
fator de limite do emprego da força. O recurso à força estrangeira, como ocorreu em Florença, na descrição do
primeiro relatório de Reconquista, constitui a prova mais cabal da ineficiência institucional do Estado. No fundo
da questão da competitividade do Estado estão os bons empreendimentos. Eles são até citados como um fator de
boa liderança e de boa propagação de si mesmo, como ator político, no Capítulo XXI do Príncipe.
161
2.5.2. ―O Príncipe – Cap. XIII-XIV: Forças auxiliares, mistas e próprias‖ A causa principal da perda dos Estados é o negligenciar a arte da guerra; e a
maneira de conquistá-los é ser nela bem versado. [...] Em outras palavras [...] é
preciso ter cuidado em se armar, pois [...] estar desarmado significa perder a
consideração – desgraça que um príncipe deve evitar, pois [...] de fato não podemos
comparar um homem armado e um homem desarmado (MAQUIAVEL, 2010[2],
pp. 153-158).
Maquiavel analisa outros tipos de forças militares que podem ser consideradas, num
primeiro plano, como auxiliares. Em relação a este tipo de exército, afirma Maquiavel que é
da eficiência deles que resulta o maior perigo, porque vencendo podem se rebelar. Já os
mercenários são covardes e preguiçosos em relação à luta265
. De certo modo ele já disse que
ter um exército militar auxiliar ou misto é o mesmo que ser abandonado em plena guerra.
Neste capítulo XIII do Príncipe ele não trata de um exército próprio, mas de um auxílio que
venha de outro país/ou cidade. A conclusão deste auxílio pode descambar em duas posturas –
na primeira se eles são derrotados, somos também, mas se eles ganham, pode ocorrer,
assegura Maquiavel, que queiram aprisionar quem os contratou. Como exemplo, cita os
florentinos e seu exército francês no ataque a Pisa, cita também o Imperador de
Constantinopla que contratou turcos para atacar a Grécia, mas, sobretudo destaca o papa Júlio
II que – imprudentemente em sua má política – querendo tomar Ferrara confiou inteiramente
em forças estrangeiras (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 143-145).
No “Príncipe – Cap. XIV: Os deveres do príncipe para com as Milícias” há uma
proposição essencial no dever do príncipe – é o fato de que “[...] não podemos comparar um
homem armado a um homem desarmado”. Por isso é próprio de quem comanda, afirma
Maquiavel, o não negligenciar a arte da guerra, pois é por ela que se exerce a maneira de ser
um bom líder, porquanto o ator político é bem versado em tal arte. De GRAZIA, ao pensar o
binômio – guerra e paz – afirma que “sem exércitos as cidades não se mantém, mas chegam
ao seu fim. O fim se dá ou pela devastação ou pela servidão” (DE GRAZIA, 1993, pp. 174). E
é neste sentido que existem homens que transitam da consideração para desconsideração – foi
o caso dos filhos de Francisco Sforza – que, entre outras coisas de menor significância, não
imitando seu pai, compreenderam que “[...] estar desarmado significa perder a consideração”.
Por isso que o príncipe não pode ignorar os assuntos militares – senão, não será estimado
pelos seus soldados (MAQUIAVEL, 2010, pp. 73).
265
"A sobrevivência é a única justificação válida. Na verdade, não existe ética na natureza. A vida natural na sua
dinâmica cotidiana não está voltada para nenhum fim moral. A lei básica da natureza é a mutação competitiva,
onde tudo se transforma o tempo inteiro e nada se define por ser melhor ou pior. Na natureza, sobreviver é a
glória, não importa de que modo ela é alcançada. Porque, além do mais, existir é como uma vitória que precisa
ser obtida e renovada a cada instante" (NIVALDO JÚNIOR, 1999, pp. 31).
162
Em tempos de paz é preciso preparar-se para a guerra, por isso prepara-se o príncipe
quando exercita seus soldados e estuda a história da humanidade. Os príncipes devem se
manter preocupados em relação aos exercícios bélicos – prevendo em seu modo de pensar a
estratégia na paz antes que ocorra a guerra. A estratégia deve ser regida pela ação física e
pelos estudos. A exemplo desta arte, cita Maquiavel o príncipe dos aqueus – Filopêmene –
que ao caminhar em tempo de paz em todo o vale de sua região pensava e questionava seus
oficiais e amigos quanto a uma possível ação inimiga inesperada por aquele local. Portanto
conhecer o local é essencial para levar vantagem na guerra perante o inimigo (MAQUIAVEL,
2010[2], pp. 155-157). Quanto à ação física, ela fortalece o espírito do homem, prepara o seu
corpo para as agruras que são próprias da batalha e ensina na arte da caça a natureza das
regiões da melhor maneira em conhecê-la e em defendê-la. Não obstante o conhecimento, o
mapeamento da região, como já se afirmou, dá ao príncipe uma vantagem nas querelas contra
os inimigos. Por familiaridade, se conhece, através de sua região, as demais. Isto é essencial
ao príncipe – o método de pensar, que em tempo de paz é preciso pensar na guerra. O príncipe
não deve se manter ocioso em tempo de paz, sua prudência está além do que já foi referido
quanto ao preparar-se ativamente, ele e seu exercito. Maquiavel insere a ideia de que o
príncipe deve estudar a história e as ações dos grandes homens, ver como se conduziam na
guerra, examinar as razões de suas vitórias e derrotas, afim de imitar as primeiras e evitar as
segundas (MAQUIAVEL, 2010, pp. 31.34). Se espera do governante uma esmerada
virtude266
. Segundo De Grazia, é preciso concentrar exclusivamente em atos de força, pois
eles fundamentam e mantém o desejo e a possibilidade da conquista e manutenção, no
conflito, da posse do poder e do controle da situação.
Como o poder se funda exclusivamente em atos de força, é previsível e natural que
pela força seja deslocado, deste para aquele senhor. Nem a religião nem a tradição,
nem a vontade popular legitimaram e ele tem de contar exclusivamente com sua
energia criadora (DE GRAZIA, 1993, pp. 168).
2.5.3. César Bórgia e Carlos VII: visão de um exército próprio e
fundamento da prudência, lealdade e vitória genuína Quem é a figura de César Bórgia
267 no relatório e na obra posterior de Maquiavel,
senão a ideia de um homem capaz de comprovar a força de sua virtù na ação e na resistência à
266
“A guerra é um assunto da política e está relacionada a escolhas dos homens. Guerras e revoluções têm em
comum entre si o fato de serem símbolos da força. Porém as guerras e revoluções não possuem um valor nem
uma legitimidade em si. Suas ações são julgadas pelo êxito, pelo reconhecimento público e de acordo com as
circunstâncias históricas. Ela é a arte, segundo Maquiavel, daqueles que comandam” (COELHO; MENEZES. “A
política da guerra em Maquiavel”. Rev. Bras. Ciênc. Polít. n.12 Brasília Set./Dec. 2013, pp. 3). 267
“O duque Valentino nasceu em 1475 ou 1476. No ano em que Cesare completou 17 anos, seu pai Alexandre
VI tornou-se papa. Antes disso, aos sete anos tornou-se Prebenda da Catedral de Valência, e um ano depois
163
fortuna. É como se César Bórgia, o Duque Valentino, agisse para construir a própria história.
Se antecipa aos dados políticos frente ao “tempo propício de ação”; antevê as necessidades, as
carências, as oportunidades e ocasiões. Pode o homem desconsiderar o determinismo da
fortuna? Para Maquiavel, César Bórgia deve ser visto e compreendido como a encarnação de
dois tipos de políticos: (1) aquele modelo típico – condotieri italiano – que chega ao poder
rejeitando todos os princípios éticos [entendido como ética cristã] e por outro, (2) o modelo de
estadista reformador. César Bórgia possui virtù com excelência, é politicamente armado e
sabe aproveitar a ocasião, pois antecipa-se em ações, no que denomina-se nesta pesquisa
como previsibilidade268
.
No ano seguinte Maquiavel se dedicou quase inteiramente ao conflito envolvendo
Florença e Pisa. Embora ambos os autores afirmem que a cidade foi perdida graças à
interferência de Carlos VIII e suas tropas, White (2007, p. 61) coloca que tal fato se
deu no governo de Savanarola, enquanto Viroli (2002, p. 59) versa ter sido perdida
quando Piero de Médici mantinha-se no poder. Independentemente disso, a perda de
Pisa desencadeou uma série de confrontos envolvendo as duas cidades. Inicialmente,
sob o comando de Paolo Vitelli e com um exército mercenário, Florença acabou
sendo derrotada após estar muito próxima de recuperar a cidade (MORO, 2009, pp.
41)269
.
A pertinência deste celerado homem e personagem de Maquiavel em face aos
demais homens, tidos por “frágeis”, se torna um forte indicativo e indício de política
substanciada em virtù. Ao ser posto à prova em outras ocasiões, César Bórgia iludiu-se quanto
ao seu poder para decifrar os desígnios erráticos da fortuna. Mesmo que tenha lutado, seu
esforço foi em vão, pois “a fortuna lhe arrebatou aquilo que lhe dera, apesar de seus esforços
para transformar a contingência do começo em necessidade histórica” (ALTHUSSER, 1, pp.
243)270
.
Althusser dá como certo que a habilidade humana para realizar ações variadas é o
que produz maior segurança a quem deseja se manter no poder. Ele se vale da já
muito discutida avaliação de Maquiavel sobre a relação entre a boa e a má fortuna
com o modo segundo o qual os homens procedem no tempo (BARROS, 2011, pp.
57).
Protonotário Apostólico da cidade. Aos nove anos recebeu o título de Reitor de Gandia e Preboste de Albar e
Jativa. Em seu décimo aniversário tornou-se tesoureiro de Categena. O filho de Rodrigo Bórgia estudou teologia
na Universidade de Pisa e aos 18 anos tornou-se cardeal. Dentro de uma lista de inúmeros crimes, destaca-se a
suspeita do assassinato do irmão Giovanni. Alguns historiadores defendem que a causa do assassinato tenha sido
por ciúmes do poder que o irmão vinha ganhando, enquanto outra ideia refere-se a ciúmes sexuais relacionados à
sua irmã Lucrécia, de 13 anos” (WHITE, 2007, p. 97-98). 268
BARROS, F. D. “Um Maquiavel de Althusser – Acerca do fundamento da Filosofia Política
Contemporânea”. In: Cadernos Espinosanos XXV, Universidade de São Paulo, 2011, pp. 55-66. 269
MORO, E. J. “Duque Valentino: O Príncipe ou um príncipe de Maquiavel?”. In: Revista ALPHA. Patos de
Minas: UNIPAM, (10): pp. 38-48, dez. 2009. 270
Citado por BARROS, F. D. “Um Maquiavel de Althusser – Acerca do fundamento da Filosofia Política
Contemporânea”. In: Cadernos Espinosanos XXV, Universidade de São Paulo, 2011, pp. 55.
164
SABATINE descreve a vida de Cesar Bórgia exatamente sob a ótica da força-virtù e
das armas-ocasionais. O “exemplo” de Cesar Bórgia no capítulo VII do Príncipe é complexo.
Já citado noutro momento, as ações específicas do Duque Valentino, que tinha gerado sua
reputação como um homem totalmente sem escrúpulos, violento, não estão em causa para
Maquiavel. Ao contrário, é neste capítulo que Maquiavel o aclama como modelo de político
moderno, que se sustenta na ideia de força e armas. É o espírito e a coragem de usar a força
como um dos meios para criar um novo regime de ordem política que faz com que Maquiavel
identifique César Bórgia aos fundadores louváveis de Estados e Principados descritos no
capítulo VI da mesma obra.
Embora, neste sentido, as ações de César ilustrem um tipo exógeno de “virtude
política”, que deve ser entendido como ausência do correlato objetivo de estabelecer "boas
leis". Ele ilustra o problema de tratar a ideia de fortuna diverso ao procedimento de César
Bórgia, ou seja, a retrata como uma mulher, com requintes de fragilidade. Se César Bórgia
pereceu em face dela [fortuna] a quem quis opor-se e construir uma história sem
determinismo, como um sujeito comum poderá desta forma, dominá-la? Todos portamos
alguma virtù, alguma força para agir, mas, por si mesma, esta é simples ausência de conteúdo
positivo. Como nem todos são capazes de introduzir uma ordenação na indeterminação, então,
nem todos provamos nossa virtù na ação. Por isso, a virtù é comprovada, em si mesma,
quando ela é posta em prova na ação. Ela “nada mais é do que fenômeno da fortuna – e não o
seu contrário; é a necessidade, não é produto da virtù, mas a virtù é produto da necessidade”
(ALTHUSSER, 1, pp. 244)271
.
Não por outro motivo, Althusser insiste em mostrar que a análise desse termo não
poder estar descolada da experiência histórica, da matéria disforme. Esta ideia reflete com
exatidão a situação política de Maquiavel, ou seja, a impossibilidade em que ele está de
mostrar o vínculo entre a necessidade que anuncia o novo Príncipe e a contingência radical de
seu surgimento. Aquele que deve fundar a ordem, fazer da história um rio pacífico a correr
entre seus diques, é ao mesmo tempo requisitado pela situação, por uma necessidade surda,
mas cega da história (ALTHUSSER, 1, p.244-5)272
.
Há quem afirme que a figura de César Bórgia representa a fortuna negativa, ele
encarnaria nessa acepção a má sorte na ação política. Por que atribuir seu fracasso à
indeterminação e não àquilo que nele falhou quando este deveria impor resistência à fortuna?
271
Citado por BARROS, F. D. “Um Maquiavel de Althusser – Acerca do fundamento da Filosofia Política
Contemporânea”. In: Cadernos Espinosanos XXV, Universidade de São Paulo, 2011, pp. 55. 272
Cf. Ibidem, pp. 56.
165
Para Haney (2005) o Duque Valentino era um homem, cuja sofisticação e selvageria viviam
em iguais proporções. Estas eram qualidades as quais Maquiavel admirava e considerava
indispensáveis para um governante Tal personagem condensa sobre si o exemplo do erro, de
uma impotência radical que não diz respeito ao quantum da força, mas à qualitas da
compreensão sobre como agir na matéria histórica.
A fortuna (negativa) nada mais é que a incompreensão humana da necessidade dos
tempos, aqui estamos numa necessidade de direito inteligível ao homem. Toda a
(má) fortuna humana é a incompreensão e a cegueira humana para as
transformações dos tempos, ou seja, para o fenômeno de crescimento e de devir da
sociedades. E a fortuna positiva é a capacidade dos homens de adaptar-se às
situações existentes e à evolução delas (ALTHUSSER, 1, pp.245-6)273
.
Na História de Florença Maquiavel se propôs a escrever a história da cidade desde
sua fundação até a morte de Lourenço de Médici, o magnífico, em 1492. No relato detalhado
de Florença, fica clara a posição do autor em marcar o poder das famílias na constituição
desta cidade. A cidade é tratada com sendo uma família, ou seja, um amontoado de pessoas
unidas por traços comuns. Nesta família – o poder esta sempre em disputa. Maquiavel trata
essa disputa por divisões partidárias, entre pró-papas ou pró-império. Mas acima dessa disputa
a construção de sua história se faz pela reconstrução dos bastidores da ação política, onde ele
procurou demonstrar a ação desses príncipes, de como agiam, de como tramavam suas
conquistas e de como a mantinham/ou não, enfim, de como estabeleciam seu jogo político.
Nessa disputa de poder os conceitos de fortuna e virtú são colocados como inerentes
ao homem. O homem que dispõe de virtù consegue desviar-se da fortuna, ou até mesmo
manobrá-la, mas o desprovido desta fica a mercê da sorte. Nesse ficar a margem da ação, do
vir virtutis, Maquiavel coloca a presença da igreja como sendo um poder em ascensão entre
seus contemporâneos. A tônica é o modo de agir dentro de seu contexto, concordando com
Febvre (citado por MATOS) quando diz que:
o conhecimento do passado consistirá, então, em sua interpretação e organização a
partir de problemas e através de conceitos. O resultado final é um passado que o
presente tem necessidade de conhecer. O tempo reconstruído está, e isto é
explicitado, a serviço do presente (MATOS, 2006, pp. 35. 174).
Assim, concordando com a citação, entende-se que Maquiavel quando da escrita de
suas obras, colocando suas questões contemporâneas, como sua fonte de questionamento para
273
Cf. BARROS, F. D. “Um Maquiavel de Althusser – Acerca do fundamento da Filosofia Política
Contemporânea”. In: Cadernos Espinosanos XXV, Universidade de São Paulo, 2011, pp. 56.
166
as problemáticas do seu tempo, pode-se entender a seguinte premissa “o oficio do historiador
contemporâneo é, antes de tudo, saber ocupar os espaços”.
Na verdade uma vitória genuína se faz com exército próprio, e não com outros tipos
de milícia. Isso faz com que um príncipe seja efetivamente prudente. Fazendo referência a
César Bórgia, único senhor de suas forças, Maquiavel o descreve como um líder prudente, que
de exército mercenário passou ao auxiliar e ao fim das contas passou a contar consigo mesmo
e seus próprios soldados. Outro nome referendado é o de Hierão de Siracusa que percebendo a
inutilidade das tropas mercenárias mandou chacinar os soldados, e passou a guerrear com suas
próprias tropas. Maquiavel enriquece a descrição quando afirma que: “armas alheias
sobrecarregam e limitam, quando não falham”. Posterior a estes dois exemplos, o florentino
cita um de exército misto. É o caso da união da França com soldados suíços. Carlos VII
investiu numa infantaria francesa, porém seu filho, Luis XI preferiu recrutar soldados suíços.
A conclusão foi o desânimo dos soldados próprios e o erro fatal foi a França ter perdido a
oportunidade de ter se tornado invencível se tivesse insistido no modelo de Carlos VII.
Assim, conclui Maquiavel, que são poucos os príncipes que logo de inicio são
verdadeiramente sábios. E o príncipe sábio274
– ao contrário de inúmeras situações históricas
de imprudência e falta de sabedoria, repousa seu governo na ideia de que “nada é tão fraco e
instável quanto a fama de uma potência que não se apóia na própria força”, e a força própria
de um príncipe, são seus súditos, cidadãos ou servos, ademais são todos mercenários
(MAQUIAVEL, 2010, pp. 5). César Bórgia possuía virtù, ele é qualificado como homem da
política e não como tirano, isto porque
os tiranos são criticados não pelo uso da força, mas pela mediocridade do uso que
fazem dos meios extraordinários [...] pois a compreensão do comportamento político
dos homens é a compreensão do comportamento medíocre dos homens
(BIGNOTTO, 1991, p. 103).
2.6. A prudência que fortalece a vida de homens de virtù
A lógica força é uma necessidade teórica e prática frente aos novos desafios internos
da conquista e manutenção do poder estatal, e realizando a demonstração das habilidades dos
274
Um príncipe sábio será guiado acima de tudo pelos ditames da necessidade: “para manter sua posição” ele
“deve adquirir o poder de não ser bom (...), e entender quando usá-lo e quando não o utilizar” segundo exigirem
as circunstâncias. (...) Um príncipe sábio “mantém-se fiel ao que é bom quando pode”, mas “sabe fazer o que é
mau quando isto for preciso”. Além disso, deve reconciliar-se com o fato de que, se quiser “manter seu
governo”, “com frequência precisará” agir de modo “contrário à verdade, contrário à caridade, contrário à
humanidade, contrário à religião”. Cf. SKINNER, Q. Maquiavel – pensamento político. Brasiliense, 1988, pp.
63.
167
jogos políticos e de seus atores bem sucedidos, salienta-se neste tópico que, se deve dar
atenção também aos variados conflitos existentes externamente no cenário Renascentista e na
pré-modernidade, isso porque Maquiavel baseia sua reflexão sob o ordenamento da ação em
vista da guerra, alicerçando o uso da força sob os conceitos de virtù, prudência e retórica
(considerando esta última em seu uso coordenado, e por vezes coercitivo).
A força garante a paz, a esperança e a liberdade. Garante a paz no sentido de
demonstrar o mandante locatário, o regente local, o ordinário caracterizado, garante a
esperança, enquanto esta é conquista e possibilidade efetivada, e garante a liberdade, no
sentido de dependência da lógica pressuposta275
. A força, como se viu, é uma eficaz
possibilidade de ação efetiva. A força é uma extensão prática e técnica da virtù276
.
Na configuração do estado moderno, a escolha primaz da dominação e do controle
estatal é subsidiada não pelo amor providencial, como se vê na obra de Marchand em relação
aos disjuntivos prescritos nos Scritti de Maquiavel, mas pela força violenta, de tal modo que o
próprio Florentino aponta em certas passagens de seus relatórios, e de modo especial, neste
tópico, um segundo momento determinante da manutenção dos valores e das conquistas da
política: a retórica e a prudência, ou como TEIXEIRA nos apresenta - a retórica prudencial.
Partindo dos I Primi Scritti Politici e do Príncipe, a prudência e o uso da palavra
aparecem como itens coligados à excelência da virtú e podem ser consideradas como extensão
da força e, enquanto tais, são decisivas na conservação e manutenção do poder efetivado277
.
Ao lado das boas armas e das boas leis, a excelência humana é prevista como boa educação
(entendida enquanto processo contínuo de formação) a ser imitada (POYER, 2013, pp. 30).
Estas habilidades dos atores políticos fazem com que alguns se destaquem socialmente, e por
isso são ícones nas obras de Maquiavel. É o caso do Duque Valentino, César Bórgia e de
Castruccio Castracani. A boa educação é ponto chave para compreender a fortuna e o cálculo
matemático da oportunidade, sobretudo baseados na ideia de retórica prudencial.
275
Nos I Primi Scritti Politici tal termo - virtù - é preenchido com conteúdos de natureza política, procurando
apreender o fato que tinha diante de si, que era a existência de estados territoriais. Termos como cidade,
principado ou república, carregados dos usos medievais, parecem insuficientes para dar conta deste novo
fenômeno. Esta inadequação conceitual parece reveladora do descompasso existente entre as antigas estruturas
institucionais de origem comunal e as novas exigências do então recente fenômeno que eram os estados
territoriais (PANCERA, 2010, pp. 99). 276
A força explica o fundamento do poder, porém é a posse de virtù a chave por excelência do sucesso do
príncipe. Sucesso este que tem uma medida política: a manutenção da conquista. O governante tem que se
mostrar capaz de resistir aos inimigos e aos golpes da sorte, “construindo diques para que o rio não inunde
planície, arrasando tudo o que encontra em seu caminho”. O homem de virtù deve atrair os favores da
cornucópia, conseguindo, assim, a fama, a honra e a glória para si e a segurança para seus governados. 277
O político é pensado aqui não em oposição à retórica, mas como um campo por ela impregnado; e Maquiavel
é considerado o autor que explorou de maneira mais aguda, quase à exaustão – e não necessariamente por meio
de reflexões teóricas –, as diversas possibilidades que se abrem no entrelaçamento entre retórica e política. Cf.
TEIXEIRA, 2010, pp. 333. In: Revista Topoi, v. 11, n. 21, jul.-dez. 2010, pp. 332-334.
168
O que se chama de retórica prudencial nada mais é do que o pleno e bom uso da ação
em justa medida e das palavras que convencem. As palavras se verificam, sobretudo nas leis
do Estado, e são indispensáveis para o controle da vida citadina. A prudência, por sua vez, na
longa tradição desde Aristóteles, passando por Cícero e Tomás de Aquino, se constituiu por
muitos séculos um aspecto decisivo da reflexão ético-retórica e filosófica até a chegada do
Renascimento italiano e no mundo ibérico do século XVII278
. Sobre a retórica, por exemplo, o
romano Cícero afirmou que
o orador deve mirar o conveniente não só nas ideias, mas também nas palavras. É
que as pessoas em diferentes circunstâncias, de classes distintas, com prestígio
pessoal diferente, de diferentes idades, e os diferentes lugares, momentos e ouvintes
não devem ser tratados com o mesmo tipo de palavras ou ideias. Há que se ter em
conta todas as partes do discurso, da mesma forma que na vida, o que é conveniente:
e o conveniente depende do tema que se trate e das pessoas, tanto as que falam como
as que escutam (CICERO, 2004, I, 71 apud TEIXEIRA, 2010, pp. 134-135).
Contextualizando os conceitos, pode-se dizer que a virtù vem acompanhada de
conhecimento, e tem um caráter teleológico de ação, pois é impulsionada pelas coisas que são
imediatas (POYER, 2013, pp. 23). E Maquiavel, categoricamente distingue a virtù das antigas
hierarquias e esquemas tipológicos de virtudes, pois não se imita a virtù, ela se conquista, pois
ela é força e potência, é antecipação e sigilo (POYER, 2013, pp. 24). O que possui virtù deve
ser ao mesmo tempo - obstinado, flexível e prudente e não pura e simplesmente mimético.
Interessa neste capítulo também o que Maquiavel, e mais tarde, Francesco
Guicciardini, afirmaram sobre a questão da prudência e seu vinculo com a retórica, com o uso
adequado da palavra. Ao seu tempo, na Renascença, Maquiavel encontra o seguinte cenário:
os domínios da prudência, em uma República como Florença entre 1494 e 1512,
[tempo de nosso recorte dissertativo] associavam-se à prática de aconselhamento nos
foros de discussão (como pratiche da República florentina) ou de deliberação (como
no Consiglio Maggiore) e também à ação no exercício das diversas magistraturas
(como na Signoria). Já num principado, ou num regime stretto, a ação se
concentrava nas mãos do príncipe, dos condottieri e seus homens de confiança;
neste caso, cabia aos conselheiros orientar a ação principesca segundo o bom juízo.
Em todas as instâncias referidas a mera atinência ao critério calculativo da prudência
não basta, isto porque o princípio do reconhecimento público da prudência orienta o
(presumível) prudente no sentido da busca de efeitos esperados e desejados, por isso
mesmo regrados. Ainda mais importante: não existe um cálculo prudencial anterior à
elaboração discursiva; o discurso não é o meio transparente que dá vazão a ideias, e
sim o produto de uma complexa operação onde os elementos convencionais
mobilizados na argumentação – a disposição, o emprego de lugares-comuns,
entendidos como “argumentos-padrão” ou “pequenos-discursos” (LECHNER, 1962,
pp. 72-73), as técnicas de amplificações, etc. – estruturam a urdidura dos juízos
prudenciais. Pela mesma razão, prudência e decoro letrado são indissociáveis
(KAHN, 1985, pp.39). O prudente, além de se mostrar habilitado a deliberar, sem
timidez e com bom juízo, sobre as melhores ações a seguir ou evitar num
278
SANTI, V. A. La ―Gloria‖ nel Pensiero di Machiavelli. Italy: Longo Editore – Ravenna, sd, pp. 19, 21.
169
determinado momento, deverá, da mesma forma, saber como se portar, o que dizer
ou escrever segundo a ocasião – diante de iguais, de superiores ou de inferiores, de
acordo com as hierarquias sociais (TEIXEIRA, 2010, pp. 134)279
.
Dentre os desafios oferecidos e propostos por Maquiavel, um deles é o de indicar que a
virtù dos grandes atores é o verdadeiro segredo da grandeza dos principados e das repúblicas do
passado e que é nela que se devem inspirar os que querem imitar seus modelos. O prudente
delibera bem. Calcula o que se deve falar e o quando se deve calar. Segundo Teixeira, pode-se
falar que: "prudência e decoro letrado são indissociáveis". Portanto, a busca por caminhos para a
realização no presente da antiga virtù e conquista da glória é proposta singular à lógica da ação
política maquiaveliana. Em suas obras, Maquiavel apresenta o conceito de glória com
interpretações diferenciadas, ora como adjetivo que se refere à ação tanto individual como
coletiva, ora como substantivo, no qual ele enfatiza o aspecto dinâmico da “glória” de conquista
(POYER, 2013, pp. 27).
De fato, a glória de conquista, de convencimento, de uso oportuno, seja das palavras
ou das ações, é determinado pela reta razão de agir (prudência). A glória é a superação de
obstáculos que impedem a caminhada bem sucedida do ator político ou da instituição estatal.
Por isso, a redifinição do conceito de prudência, não só como previdência ou cautela, que foi
realizado pelos humanistas, ais como Leonardo Bruni, Giovanni Pontano, Poggio Bracciolini
é muito importante para a análise que Maquiavel faz em seu conjunto de obras, pois
transparece como fato moral, como ação determinante ética, pois a prudência é a destreza que
pode, com certo método, discernir o bem e o mal, é a reta razão do agir280
.
Ainda sobre o discurso da prudência, Maquiavel afirma que
resta discorrer agora qual regime político surgiu depois de 1512, e quais são seus
pontos fracos e fortes [...] É verdade que tendo nascido como nasceu, pela morte do
Duque de Urbino [Lorenzo de‟ Medici], e como se deve tratar aqui de novos modos
de governo, me parece, para mostrar minha boa fé para com a Vossa Santidade, que
não poderei errar ao dizer o que penso, e primeiramente falarei da opinião de muitos
outros, conforme me pareceu que pensassem, depois acrescentarei a minha opinião,
279
Por ser virtuoso, o príncipe deve ser o guardião da justiça na terra, já que os homens comuns, imperfeitos pelo
pecado, esquecem da caridade divina que deveria reger o mundo, sendo sua função atuar como ministro da
razão. O príncipe faz justiça entre ele e seus súditos e entre os súditos entre si. Quanto à primeira, o povo é
obrigado a dar todo o apoio possível ao príncipe par que ele possa manter a paz interna e, portanto, a justiça.
Quanto à segunda, deve conceder bons magistrados para resolver as contendas, sempre atento para não colocar
na cadeira de magistrado pessoas que buscam somente benefício próprio, ou ainda que sejam contra o príncipe,
pois aí estará instaurado o reino da discórdia, o rancor da nobreza e os rumores entre o povo (BOTERO, G. Della
ragion di stato. A cura di Chiara Continisio. Roma: Donzelli Editore, 1997, p. 22-23.27 apud NUNES, 2008,
pp. 140). 280
Cesare VASOLI afirma: "Ma il valla sapure, e lo afferma senza esitazioni, che la storia offre all`uommo un
sapere `civile` e un insignamento de prudentia assai suepriori di quello recato de la filosofia" (pp. 230).
170
da qual, se estiver errada, peço que Vossa Santidade me desculpe, considerando-me
mais afeiçoado do que prudente281
.
Fica até então claro que os conceitos de virtù e prudência são muito importantes,
enquanto temas complementares à lógica da força no pensamento de Maquiavel. São
conceitos chave da liderança política moderna. De tal modo evidenciam a virtú
destacadamente em homens de excelência. Pois, se por um lado, a força é um braço da virtú,
por outro, a prudência é a capacidade de agir retamente, portanto complementar a lógica
renascentista282
.
No capítulo VI do Príncipe, referindo-se a Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu, enquanto
homens de excelência, Maquiavel fala em nuovi ordini i modi, ou seja, introdução de novas
instituições e de ações acima da fortuna. Ações exceletissimamente prudenciais (POYER,
2013, pp. 31). Num período denominado como calamitá (TEIXEIRA, 2010, pp. 114), a
prudência torna-se uma intervenção primordial nas questões e nos papéis relevantes da ação
política. A glória, enunciada como resultado da boa política, da ação baseada em fatos, é fruto
da boa tríade entre força-virtù-prudência/retórica.
Assim, para entendermos a prudência partimos de sua etimologia
[do lat. Prudentia.] S. f. 1. Qualidade de quem age com moderação, comedimento,
buscando evitar tudo o que acredita ser fonte de erro ou de dano. 2. Cautela,
precaução. 3. Circunspeção, ponderação, cordura, sensatez: Leu os autos com toda a
prudência283
. Ser prudente, para MAQUIAVEL, e mais tarde para seu leitor
GUICCIARDINI (1993, p. 115), é olhar para as “coisas do mundo” de forma
penetrante, com occhi che penetri drento, separar o substancial do acidental,
mergulhar nas motivações dos homens procurando antever com alguma margem de
281
Discurso sobre a situação dos florentinos depois da morte de Lorenzo de‟ Medici, o jovem. Lorenzo di Piero
de' Medici, (Florença 1492 – 1519) foi governante de Florença e Duque de Urbino, era filho de Piero Lorenzo
de‟ Medici e Alfonsina Orsini. Este discurso, provavelmente, foi escrito para o papa Leão X (Giovanni di
Lorenzo de Medici) em 1520, atendendo ao pedido do Cardeal Giulio de‟ Medici, futuro papa Clemente VII. 282
Maurizio Ricciardi afirma em seu texto – “A República antes do Estado: Nicolau Maquiavel no limiar do
discurso político moderno” – que dando destaque a fantasia, às atitudes e à natureza humana, Maquiavel
transforma o conceito clássico de virtude de uma maneira que ele alcance tanto a capacidade de planejamento
quanto o desejo, elementos que devem produzir a capacidade e as formas de adequar-se aos tempos. Segundo o
autor, quanto a fortuna – par antitético da virtù, ela permite estabelecer a verdadeira natureza dos tempos e, em
consequência, ela representa aquele “bem, que o rigor da época e da sorte não lhe permite trilhar”, mas deve ser
ensinado “na esperança de que, dentre todos os que puderem compreende-lo, haja um, favorecido dos céus, que
siga este caminho”. Maquiavel afirmou estas ideias nos Discorsi II, 25, tradução portuguesa p. 191. In: DUSO,
G. (org.) O Poder: História da Filosofia Política Moderna. Tradução Andrea Ciacchi, Lísia da Cruz e Silva e
Giuseppe Tosi, Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. Cf. Também NUNES, E. A Política à meia luz: ética, retórica e
ação no pensamento de Maquiavel, pp. 49-55, São Paulo: EDUC, 2008. Neste estudo sobre a virtú, Maquiavel
volta aos clássicos e se afasta do consenso entre cristãos e pensadores da antiguidade, como Cícero, que
mantinha uma visão de virtude humanista abrangente se não, única. Neste sentido, a virtude apresenta três faces
na obra de Maquiavel; ora uma virtude para príncipes, analisada no Príncipe, ora uma virtude cívica tratada nos
Discursos e, finalmente, uma virtude militar, apresentada na Arte da Guerra. 283
FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Aurélio, pp.1.651.
171
segurança – nunca, porém, com certeza absoluta –, as motivações, ações e condutas
dos agentes políticos284
.
O ambiente humanista, como se viu, teve sua parcela de contribuição na
desenvoltura do que se denomina filosofia política moderna, da análise com "certa
segurança", pois, em primeiro lugar, as suas origens estão vinculadas diretamente aos esforços
da aristocracia florentina, e nesta destaca-se os homens de excelência de virtú. É sobre esta
situação que o prudente vai depositar seu olhar penetrante, por dentro das razões. Os vários
escritores e autores deste período eram de famílias nobres que gozavam de situação social
excepcional. Um aspecto muito importante deste cenário se molda entre o fim do Trecento e o
inicio do Quattrocento, onde os principais personagens são os que manifestam posições
interessantes às classes republicanas. As conversas políticas “nos corredores da aristocracia”,
bem como os escritos da nova moldagem da cidade são assuntos do dia em política. Este
cenário revela uma ambiência de virtú na visão das obras de Maquiavel. O humanismo é um
período da renovação e da exaltação da prudência, pois
a prudência é o conhecimento do que é bom e daquilo que é mau, e do que não é
nenhum dos dois. Suas partes são a memória, a inteligência e a previsão
[providentia]. A memória é o que permite à mente revocar o passado; a inteligência,
o que faz compreender o presente; a previsão, o que permite conhecer a realização
de uma coisa antes que aconteça (CICERO, 1997, II, 160).
Se há conexões disjuntivas, por exemplo, entre a ação e a contemplação, entre a
força e o amor, entre o exército próprio e os mercenários/mistos, há também uma teorética
entre a palavra e a neutralidade, entre a virtú e a falta de habilidade e de senso para com a
oportunidade, enfim, entre a prudência e a imprevidência. É neste sentido que o fazer político
moderno, enquanto laboração da comunidade humana se torna um ato específico que foi
tomando forma de corpo, sobretudo na modernidade, com algumas obras e reflexões famosas,
tais como o próprio Príncipe e O Leviatã de Thomas Hobbes, entre outras obras, e moldaram
um cenário laico de se pensar a coisa publica e as relações sociais, porque não contratuais,
entre os convivas de uma cidade, região, etc. Se com o "muque se conquistou, agora [...] com
a palavra se governará e se manterá o status quo" vai afirmar Maquiavel nos Discorsi.
Russel Price, ao se debruçar sobre essa questão, nos diz que
o modo como o termo „virtù‟ é usado tanto por Maquiavel quanto por seus
contemporâneos é informal e pouco técnico; grande parte das palavras usadas por
Maquiavel são cotidianas e ele raramente define ou explica de forma cuidadosa os
284
GUICCIARDINI, F. "Oratio Consolatoria”. In: Consolatoria, acusatoria, defensoria. Autodifesa di un
politico. Bari, Laterza, 1993.
172
termos que usa. Isso torna o estudo de palavras como „virtú‟ não somente necessário
mas também muito complicado285
A virtù, embora seja um fator subjetivo, ou seja, que é inerente ou não à figura do
governante, só tem razão de existir, como já foi dito, em função de uma organização social. A
virtù, assim, requer que o governante aja de acordo com a necessidade. O governante precisa
ser virtuoso inicialmente para obter o poder e posteriormente para mantê-lo. Mas suas ações,
virtuosas ou não, não são ações isoladas enquanto praticadas como governante. Dizem
respeito ao Estado e, em última instância, ao povo. Nesse sentido as ações do governante
sempre dizem respeito à sociedade. E, mesmo que ele possua esse caráter subjetivo que, por
sua vez, o torne dotado de virtù, precisa agir necessariamente em relação ao Estado, ao povo e
enfim, em relação a homens (SOUZA, 2003, pp. 65). Ora, é justamente nos homens que se
encontra o eixo do nosso problema. São eles que constituem uma das causas segundo a qual a
virtù não pode ser constante e estável, permanecendo integralmente boa. Em resumo, a virtú,
oscilante entre o bem e o mal, só se torna uma condição necessária para a obtenção e
manutenção do Estado porque os homens são maus (assim como citamos na antropologia
negativa de Maquiavel, na obra de BIGNOTTO). É a "maldade" inerente à condição humana
que torna a virtù tão crucial para que o governante tenha êxito.
A „virtù‟, ou seja, „capacidade de flexibilidade moral‟, indica, como o próprio
conceito expressa, que o governante não deve se prender a uma moralidade que
coloque suas ações em estado de inércia. Por isso, não se pode imaginar que uma
moral do bem (como a cristã) ou mesmo uma suposta moral do mal, possa se
configurar como „virtù‟. Por atuarem nos extremos não constituiriam, pelo menos de
um modo em geral, um conjunto de ações apropriadas para que se possa conquistar e
governar da melhor maneira possível (SOUZA, 2003, pp. 68).
O homem de virtù não se produz ao mero acaso, mas apresenta uma conduta
significativa e significante em suas ações (POYER, 2013, pp. 26). AMES assinala o termo
utilizado por Maquiavel em relação a atitude de homens de palavras, tais como o já citado
Frade Savonarola, porque as preces não estabelecem, nem fortalecem e mantém os
principados (2002, p. 185 apud POYER, 2013, pp. 34). Homem de virtù é um homem
prudente. A palavra prudence deriva da palavra latina prudentia. O termo foi delongadamente
estudado e valorizado pelos medievais, sobretudo por Tomás de Aquino, o qual tem em sua
Suma de Teologia um estudo aprofundado sobre esta virtude, no séc. XIII. Existe uma
avaliação na aplicabilidade, sobretudo no que se refere ao caráter intelectual da prudência
285
PRICE, R. “The Senses of virtù Machiavelli”. In: European Studies Review, 1973, 3, (pp. 315). Citado por:
SOUZA, F. R. B. Virtù e valores no pensamento de Maquiavel. Dissertação de Mestrado. Departamento de
Filosofia da UFMG, Belo Horizonte, 2003, pp. 58.
173
(reta ratio agibilus). O adjetivo prudens é atestado por diversos autores, e conforme a
etimologia, a prudência vem de outro termo – providência286
.
Pois o homem que queira professar o bem por toda parte é natural que se arruíne
entre tantos que não são bons. Para um príncipe é necessário, querendo se manter,
aprender a poder não ser bom e usar isso, conforme precisar287
.
De grande relevância para a compreensão da política é a sua relação com a ética, que
a partir de uma análise baseada no realismo ganhou uma nova perspectiva. O r1ealismo
político expressado por Maquiavel e posteriormente pelo pensador alemão Max Weber, vai
impactar a noção de uma política idealizada que possa produzir o bem somente pelos
caminhos do bem. Para Maquiavel o bem supremo a ser preservado é o Estado, para este
desiderato não é possível ser guiado por condutas éticas que limitem a luta em defesa da razão
de Estado. Weber, quatro séculos depois, abrigará este pensamento defendendo que existe a
ética da convicção e a ética da responsabilidade. A primeira é estabelecida a priori, a segunda
é aquela que será julgada pelos resultados produzidos pelas ações, próprias do campo político
(BONAVIDES, 2003, pp. 36).
adquirir virtù naqueles que tu imitas, deve um homem prudente seguir sempre
pelas estradas percorridas por grandes homens, e imitar aqueles que foram
excelentíssimos, afim de que, se a sua virtù não os alcançar, ao menos recebe deles
algum aroma (MAQUIAVEL, 2010[2], pp. 69).
Outro polo da concepção maquiaveliana da ação política é a ideia de fortuna.
Herdada dos romanos, a deusa da roda se apresenta como aquela que retira dos homens tudo
aquilo que conquistaram, quando decide mudar o curso das coisas sem aviso prévio. A
fortuna é a antítese do juízo prudencial. Pois a fortuna aparece sempre como uma força que
não pode ser inteiramente dominada pelos homens, portanto, fora da ética da
responsabilidade. A fortuna representa o elemento de imponderabilidade das coisas
humanas. Embora a natureza humana seja repetitiva e que valha a pena recorrer à história
para aprender com seus exemplos, não sabemos nunca como uma determinada situação
286
SAINT THOMAS D‟AQUIN. Summe Théologique – La Prudence, pp. 375, Traduction francese par TH.
Deman, O. P, Editions de La Revue des Jeunes, Paris, Tournai, Rome, 1949. Sobre o mesmo tema, Cícero afirma
na obra República VI, I: "Totam igitur expectas prudentiam hujus rectoris, quae ipsum nomem hoc nacta est es
providendo". 287
Cf. MAQUIAVEL[2], 2010, pp. 159. Cf. também AUBENQUE, Pierre (2003, pp. 154) afirma que “os latinos
não estavam pouco inspirados quando traduziram por prudentia, o termo que Cícero lembra que se trata de uma
contração de providentia cristã e phronesis de Aristóteles, ou da proveniente da tradição popular”.
174
particular vai evoluir. Bignotto afirma que a fortuna seja árbitra de metade de nossas ações,
mas que, ainda assim, ela nos deixe governar quase outra metade288
.
Na análise de Skinner, o conceito de virtú indica a qualidade indispensável que
capacita um príncipe a vencer a fortuna, e a aspirar assim a obtenção da honra, glória e fama.
Isso, segundo o autor, se evidencia de forma clara em dois capítulos na obra O Príncipe: “Por
que os príncipes de Itália perderam os seus Estados” e no último capítulo do livro “Exortação
ao príncipe para livrar a cidade dos bárbaros”. No Livro II dos Discorsi
Maquiavel retoma a seguinte discussão: “a expressão do Império Romano se deveu
mais à „fortuna‟ ou à „virtù‟?” Dos que atribuem tal empreendimento à „fortuna‟,
Maquiavel cita Plutarco e o próprio Tito Lívio, mas, em seguida, se contrapõe a eles.
De acordo com ele “se nunca existiu outra república que tivesse feito conquistas
iguais às de Roma, isto se deve a que nenhuma outra teve, desde o início,
instituições tão apropriadas a este fim. Foi à „virtù‟ de seus exércitos que fez com
que Roma conquistasse o Império; mas foi ao seu modo de proceder e ao seu caráter
especial que lhe imprimiu seu fundador que deveu a conservação dessas conquistas”
(SOUZA, 2003, pp. 82).
Ao compor Príncipe, Maquiavel expressa nitidamente os seus sentimentos de desejo
de ver uma Itália poderosa e unificada. Expressa também a necessidade (não só dele, mas de
todo o povo Italiano) de um monarca com pulso firme, determinado, que fosse um legítimo
rei e que defendesse seu povo sem escrúpulos e nem medir esforços.
Para Maquiavel, uma das facetas da virtù é exatamente a força, da qual devem lançar
mão os príncipes quando a necessidade se impuser. Por esta forma lógica, Maquiavel introduz
o conceito de virtù. Os homens de virtù são aqueles que sabem agir diante da situação que se
lhes oferece e imprimir sua vontade no curso das coisas (fortuna). Agir com virtú, assim, é
agir ora com humanidade ou bondade, ora com crueldade ou maldade, de acordo com a
necessidade da ocasião. Por detrás da noção de virtù está o princípio moral da ação como
justificativa para o bem coletivo (WINTER, 2006, pp. 121). Assim sendo
força e prudência se constituem, assim, num novo par maquiaveliano, mas desta
vez num par complementar, que já mereceu alguns comentários de nossa parte
quando da apresentação do Del modo de trattare. Parole é um escrito que precede
de alguns meses este último e já estabelece, de modo claro, o princípio sobre o qual
um estado deve se constituir. Do binômio acima, Maquiavel diz ser o cerne de
todas as senhorias que existiram, existem ou existirão. A falta de um deles é causa
de alterações ou variações de reinos e ruínas de cidades. Por isso mesmo, aqui
dirigimos os comentários apenas à problemática da força. É necessário precisar que,
quando Maquiavel utiliza a expressão força, normalmente, está a referir-se a
exércitos próprios289
.
288
BIGNOTTO, N. Maquiavel. pp. 24-29, Zahar, 2003. 289
PANCERA, C. G. K. “Ragionare dello stato: A representação do estado no vocabulário maquiaveliano dos
Primeiros Escritos Políticos”. In: O que nos faz pensar, nº. 27, maio de 2010, pp. 105.
175
Para Guicciardini, leitor de Maquiavel, a universalidade de valor se define em
referência ao período de ascendência das grandes famílias florentinas, em associação aos
valores ciceronianos do bom governo – modelo otimatti que teve nas décadas de predomínio
de Maso degli‟Albizzi, entre 1393 e 1420, seu período de glória (TEIXERA, 2010, pp. 122).
Pode até ser que a natureza do regime político (monarquia ou república) e os objetivos do
exercício do poder (centralização, unificação, bem comum) atenuem o governo de um
príncipe virtuoso ou afortunado (melhor se for os dois). Caso contrário, governar torna-se um
pesadelo, senão um inferno290
.
No que diz respeito a prudência, pode-se dizer que esta virtude é redimensionada em
sua etimologia e aplicabilidade, pois é apresentada, em várias passagens, como remédio eficaz
contra a fortuna. Não se trata de um remédio de fácil aplicação, ou infalível, e sim um
paliativo capaz de orientar a ação no mundo com alguma segurança e de permitir a navegação
“num mar agitado pelos ventos”. Maquiavel (2007, III, 5, pp. 168-169), embora tenha se
notabilizado pelo modo peculiar de expor a oposição entre fortuna e virtú, também via na
prudência um paliativo contra os caprichos da deusa: “a maldade da fortuna”, diz ele nas
Istorie, “pode ser vencida com a prudência, pondo-se freio à ambição desses homens,
anulando-se as ordenações que alimentaram as facções e prendendo aqueles que não estão em
conformidade com a verdadeira vida livre e civil”. O prudente, nesse sentido, é aquele que
sabe fazer uso adequado do livre-arbítrio, mantendo-se, na medida do possível, pouco
vulnerável aos caprichos da fortuna; tal liberdade revela-se ainda uma forma de manter aceso
o amor à res publica, e de vislumbrar, em horizonte turvo, as possibilidades, ainda que
parciais e limitadas pelas “condições dos tempos”, de consolidação efetiva de honestos fins
últimos.
A prudência não busca na realidade o que já se sabe de antemão, ou não se projeta
nela o que se espera saber. Ao contrário: parte-se da diversidade, do que é pouco
visível, do que se esconde em cores e nomes diversos, para, com engenho, agudeza e
celeridade, destrinchar os movimentos sutis das “coisas do mundo”, através da
separação entre diversidades substanciais, aquelas que de alguma forma remetem a
certos padrões estáveis e recorrentes – como ciclos de formas de governo, princípios
associados à natureza humana, máximas e sentenças presentes em diversos povos e
tempos, tudo enfim que transcende as “variações de nomes e cores” responsáveis
pelos enganos recorrentes de analistas desatentos, sejam eles príncipes, conselheiros
ou homens de letras –, e os acidentes, cuja lógica, se é que existe, é inextricável,
remetendo, portanto, aos caprichos da Fortuna, ao acaso e aos desígnios da
Providência (TEIXEIRA, 2010, pp. 129).
290
CHAIA, M. “A natureza da política em Shakespeare e Maquiavel”. In: Estudos Avançados, 9 (23), 1995, pp.
177.
176
O prudente, segundo Maquiavel, deve ater-se primordialmente às conjunturas
circunscritas a um conjunto particular de possibilidades, conforme o parâmetro do que é
possível realizar. “Um homem prudente”, afirma Maquiavel (1999, VI, p. 23) em O Príncipe,
deve sempre seguir os caminhos abertos pelos grandes homens e espelhar-se nos que foram
excelentes. Benedetto Croce foi um dos principais defensores do princípio segundo o qual
Maquiavel teria descoberto a autonomia da política em relação à ética. É também dele a tese
que atribui ao secretário a paternidade da idéia de razão de estado, hipótese retomada por
Meinecke (In: MONTANARI, 2006, pp. 19-20).
julgando muito distantes os alvos que pretendem alcançar e conhecendo bem o grau
de exatidão do seu arco, orientam a mira para bem mais alto que o lugar destinado,
não para atingir tal altura com flecha, mas para poder, por meio de mira tão
elevada, chegar ao objetivo.
A prudência291
, assim, opera a escolha correta segundo as condições dos tempos. Em
outro capítulo, diz o secretário: “A prudência consiste em saber reconhecer a natureza dos
inconvenientes e tomar os menos maus como satisfatórios” (XXI, p. 108). Outra característica
associada à prudência era a celeridade decisória e o desembaraço. Lê-se na Storia d‟Italia de
Guicicardini (1988, III, 4, pp. 284)
não se deve confundir – como poucos observadores das propriedades, do nomes e da
substância das coisas afirmam – a timidez com a prudência; nem se deve reputar
como sábios aqueles que, tomando por certo todos os perigos, agem como se todos
fossem acontecer. Não se pode chamar de sábio ou prudente àqueles que temem ao
futuro mais que se deve.
Victoria Kahn (1994, pp. 21) afirma que “Maquiavel altera o significado de
prudência, da razão prática dos humanistas, alicerçada por considerações morais, para a
faculdade de julgamento calculativa, potencialmente amoral, apropriada ao homem de virtú”.
Também a ênfase no exame atento dos possíveis efeitos das ações se mostra recorrente, como
no Dialogo del Reggimento di Firenze:
a se querer ajuizar entre governo e governo, não devemos considerar tanto de que
espécie são, mas seus efeitos, e dizer que é o melhor governo ou menos daninho
[cattivo] aquele que produz melhores efeitos, ou menos daninhos (GUICCIARDINI,
1994, pp .33).
291
“Maquiavel queria evidenciar o desenvolvimento do Estado, desde seu nascimento até sua morte. Maquiavel
acreditava poder encontrar na história de Roma a resposta para suas questões. Ele via na virtù e na prudência
romana os elementos básicos que contribuiriam para fazer dela um Estado tão poderoso” Cf. SANTANA, F. F.
“Do Príncipe aos Discorsi: Algumas Considerações sobre o Pensamento Político de Maquiavel”. In: Existência e
Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João
Del-Rei – ANO VII – Número VI – Janeiro a Dezembro de 2011, pp. 92-101.
177
A prudência não busca na realidade o que já se sabe de antemão, ou não se projeta
nela o que se espera saber. Ao contrário, parte-se da diversidade, do que é pouco visível, do
que se esconde em cores e nomes diversos, para, com engenho, agudeza e celeridade,
destrinchar os movimentos sutis das “coisas do mundo”, através da separação entre
diversidades substanciais, aquelas que de alguma forma remetem a certos padrões estáveis e
recorrentes – como ciclos de formas de governo, princípios a associados à natureza humana,
máximas e sentenças presentes em diversos povos e tempos, tudo enfim que transcende as
“variações de nomes e cores” responsáveis pelos enganos recorrentes de analistas desatentos,
sejam eles príncipes, conselheiros ou homens de letras –, e os acidentes, cuja lógica, se é que
existe, é inextricável, remetendo, portanto, aos caprichos da Fortuna, ao acaso e aos desígnios
da Providência.
Como percebe Isaiah Berlin, Maquiavel não questiona que a virtude seja boa em si,
e que tudo aquilo que a tradição chamou de virtude seja de fato louvável. O
questionamento fundamental do secretário diz respeito à aplicabilidade universal de
tais virtudes, e às desconsiderações de práticas que, em circunstâncias determinadas,
e tendo em vista fins últimos úteis e honrosos, poderiam ser consideradas virtuosas,
não em absoluto, mas segundo condições específicas – a isto Quentin Skinner (1988,
pp.65) denominou “revolução maquiavélica”, ou “qualidade da flexibilidade moral
que se requer de um príncipe” (TEIXEIRA, 2010, pp. 124).
Pode-se dizer, assim, que a prudência em Maquiavel possui necessariamente um
caráter de evento: a validade dos juízos prudenciais nunca é universal, mas provisória, mesmo
quando diz respeito a padrões de recorrência ou tendências de estabilidade. Nesse sentido, as
lições da prudência legadas às gerações futuras por meio de histórias ou tratados só se
revelarão úteis se puderem ser atualizadas performativamente, mostrando-se aptas a produzir,
diante de um público leitor ou ouvinte, bons efeitos contingentes, de validade localizada, e por
isso mesmo bons efeitos sempre mutáveis. Por esse viés, a análise da política, para que seja
efetiva, não pode visar exclusivamente, mesmo preferencialmente, à formulação de sentenças
genéricas de validade indistinta. Não que as sentenças deixem de se fazer presentes:
especialmente nos Discorsi de Maquiavel e nos Ricordi de Guicciardini elas encontram um
campo privilegiado (TEIXEIRA, 2010, pp. 130)292
.
292
SASSO, G. Studi su Machiavelli. Nápoles: Morano, 1967. Neste sentido, é “por isso, [que para Maquiavel]
um príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando as
causas que o determinaram cessem de existir. Se os homens fossem todos bons, este preceito seria mau. Mas
como são todos pérfidos e que não a observariam a teu respeito, também não és obrigado a cumpri-la com eles”
(MAQUIAVEL, 2010[2], Cap. XVIII).
178
2.7. A palavra que governa o estado forte
Maquiavel afirma que a tríade: virtú-prudência-retórica se torna o princípio básico e
unificador de se manter no poder os príncipes que podem ter numerosos homens ou dinheiro e
formar um exército forte. Esta tríade tem por finalidade a conquista da boa fama por parte do
príncipe. Afirma o Florentino “assim um príncipe que tenha uma cidade forte e não se torne
odiado não pode ser atacado” (MAQUIAVEL, 1973, pp. 50). Segundo Maquiavel, o príncipe
necessita estabelecer sólidos fundamentos, pois sem isso é certa a sua ruína. As tropas
mercenárias e auxiliares são caracterizadas por Maquiavel como inúteis e perigosas e não
fornecem segurança ao Estado, porque carecem exatamente da excelência da tríade de
governabilidade, pois as tropas não são unidas aos príncipes, são ambiciosas, indisciplinadas e
infiéis. É neste contexto que se insere a realidade italiana da época: “a atual ruína da Itália não
é causada por outra coisa senão porque durante muitos anos esteve apoiada em armas
mercenárias” (MAQUIAVEL, 1973, pp. 57). Em certo sentido, Maquiavel acrescenta: “essas
tropas dão apenas lentas, tardias e precárias conquistas, mas rápidas e espantosas perdas. [...]
começando nestes últimos tempos o império a ser repelido da Itália, e tendo o papa maior
autoridade do poder temporal, o país foi retalhado em mais Estados” (MAQUIAVEL, 1973,
pp. 58).
Neste tópico cabe ressaltar a interdependência entre a eloquência, conhecimento da
matéria, a prudência e a fluência oratória. No De Oratore, Cícero afirma que "o costume e o
treinamento agudizam a prudência e a aceleram a fluência oratória". A oratória, em nosso
contexto mediato, é a forma mais sublime e eficaz da ação política. A força está subjugada na
sutileza do discurso. Foucault e outros contemporâneos estudam as dinâmicas dos discursos,
há ainda no mundo muita servidão voluntária, muita falta de clareza para com os conceitos de
política, e sobretudo, falta senso interpretativo e compromisso ético com o que se fala e o que
se ouve. Quanto a isso, nos meios instrumentais e técnicos da persuasão, Maquiavel corrobora
o pensamento do romano Cícero quando compartilha da ideia da necessidade de honestidade
no que se refere à retórica (TEIXEIRA, 2010, pp. 126). O retórico, possivelmente prudente, é
aquele para Maquiavel que procura a excelência, faz como arqueiros que procuram a exatidão,
buscam os mais altos objetivos (TEIXEIRA, 2010, pp. 128). Enfim, a retórica, diferentemente
da prudência, é a busca mimética, ou seja, a boa imitação dos antigos, trata-se de uma
releitura do passado.
Numa famosa passagem dos Discorsi, Maquiavel ampara sua defesa da imitação das
ações virtuosas dos antigos com o seguinte argumento: “o céu, o sol, os elementos e os
179
homens” não mudaram de “movimento, ordem e poder, distinguindo-se do que eram
antigamente” (MAQUIAVEL, Discorsi, I, pp. 7). Assim, no entender de LEFORT (1972, pp.
348), é na crítica da experiência, no mundo real, no aqui e agora, que Maquiavel descobre que
há em cada situação uma política adequada. A política adequada é aquela que se concilia com
o ser da sociedade, que acolhe os contrários, se enraíza no tempo, se dispõe a costear o
abismo sobre o qual repousa a sociedade, de enfrentar o limite constituído pela
impossibilidade de compor os desejos humanos (LEFORT, 1972, pp. 348).
O pensamento de Maquiavel é marcado pela exposição e análise dos elementos que
determinam a instauração e a conservação da vida civil. Segundo Berlin: “ele não acredita na
irreversibilidade do processo histórico ou no caráter único de cada uma de suas fases”
(BERLIN, 2002, pp. 313). Por isso que corroborando a esta proposição, Skinner o define
como – diplomata, conselheiro dos príncipes, filósofo da liberdade e historiador de Florença
(SKINNER, 1988, p. 14-134). As ações de Maquiavel, como ator político, mesmo que “as
espreitas” devem levar-nos a configuração de sua identidade, de sua formação e de seu
pensamento.
Segundo o modelo do conflito político, ao desejo desmesurado dos grandes pela
apropriação/dominação absoluta, opõe-se um desejo não menos desmesurado e absoluto do
povo de não sê-lo, de não ser dominado nem dominar. A centralidade do conflito não está
limitada, porém, à oposição interna à coletividade política dos “humores” de grandes e povo.
Este é o ponto, talvez, mais visível, mas seria um equívoco reduzir tudo a esse confronto
(AMES, 2011, pp. 23).
Maquiavel diferentemente de Aristóteles não procura a substância do que é a política
nem como os homens são políticos. Villari afirma que a “verità effetuale della cosa” está
reportada na indagação de como a política e de como os homens e ainda, de como a realidade
podem ser293
. Enquanto Aristóteles via uma natura politizada, Maquiavel observa que a
realidade politiza e modifica constantemente o homem, que de per si é inconstante. Assim, o
interesse político em Maquiavel é de primeira ordem.
O papa Leão X, quando assistiu à apresentação da peça A Mandrágora de
Maquiavel, teria aprovado e parabenizado o autor pela perspicácia do enredo. Talvez o papa
não tenha percebido o real alcance e impacto da referida peça para a moralidade e os
costumes. O texto, aclamado por cardeais, reis, príncipes e burgueses, não era, de forma
alguma, inocente. Maquiavel denunciava, de forma meticulosa, porém indireta, todos os
hábitos corruptos, vícios e imoralidades de seu tempo. De alguma maneira, Maquiavel parecia 293
VILLARI, P. Niccolò Machiavelli e i suoi tempi. II vol., Firenze, 1877, pp. 279.
180
estar pregando uma peça nos espectadores: o riso era permitido, mas até que ponto não
estariam rindo de si mesmos? A comédia A Mandrágora foi escrita no começo do século XVI
e é considerada a melhor peça do teatro italiano da Renascença. Maquiavel, seu autor,
também escreveu a obra mais importante do pensamento político renascentista: O Príncipe. É
muito comum que se analise as duas obras separadamente, como se não tivessem qualquer
espécie de conexão. O que de fato nos parece acontecer é uma situação singular: Maquiavel
escreve na Mandrágora elementos de seu pensamento político. Em outras palavras,
acreditamos poder enxergar por trás da forma artística da peça de teatro um conteúdo de
cunho político.
O ato de fundação por si só não basta. Além de fundar uma nova ordem, é
necessário mantê-la. Mesmo que o ato inicial se caracterize pela violência, os recursos à força
e às armas não podem ser perpetuados e nem utilizados sem necessidade real. “Em outras
palavras, embora a fundação seja, na sua essência, um gesto solitário, esta ação somente
será eficaz se escapar da pura lógica da força” (AMES, 2002, pp. 15).
Do segundo ao décimo primeiro capítulo de O Príncipe294
, Maquiavel tece seus
comentários sobre as características de diversos tipos de principados, demonstrando quais são
as ações sobre as quais o príncipe deve se pautar para conquistá-los e conservá-los. Segundo o
autor, “[...] os principais fundamentos de todos os stati, tanto dos novos como dos velhos ou
dos mistos, são as boas leis e as boas armas” (O Príncipe, XII). O ato de fundação, que, no
primeiro momento, se caracteriza pela violência, pelo uso da força e das armas, num segundo
momento precisa dar espaço a um recurso que permita conservar o que foi conquistado
(HEXTER, 1957, pp. 113-138).
A filosofia política não está desligada das condições políticas da sua atividade –
como afirma Miguel Morgado (2010, pp. 467). Defende o autor que a defesa política da
filosofia, que é um elemento estruturante da filosofia política, resulta de um confronto entre as
várias formas de existência. O regime político e a sua vitalidade histórica afetam o modo de
relacionamento do filósofo com a cidade. Isso fica claro no cenário em que Maquiavel se
reporta à sua cidade, Florença, e como é repercutida as suas obras após sua morte. É na
cidade, e nas decisões próprias da comunidade, que a filosofia se encontra com a política. É
neste encontro que se verifica a técnica da tríade: virtù-prudência-retórica
294
No capítulo XVIII de O Príncipe, Maquiavel diz, respectivamente, sobre o uso das leis e da força, que “[...] a
primeira é própria dos homens, a segunda é o dos animais, porém, como freqüentemente o primeiro não basta,
convém recorrer ao segundo. É, portanto, necessário ao príncipe saber usar tanto o animal quanto o homem”.
Recorrendo à literatura clássica para explicar sua afirmação, Maquiavel lembra o exemplo de Aquiles, que fora
criado por um centauro e disto conclui que “[...] ter um preceptor meio animal meio homem não quer dizer outra
coisa senão que um príncipe deve saber usar ambas as naturezas e que uma sem a outra não é duradoura”.
181
Por sua estreita vinculação com a política, a retórica não pode ser considerada um
instrumento neutro de persuasão, tampouco uma simples techné. Esse argumento,
inteiramente adequado, é repetido exaustivamente por Adverse. Mas como articulá-
lo à pressuposição da existência de “níveis retóricos” em Maquiavel? Como esses
níveis podem ser hierarquizados? E se não são hierarquizáveis, como evitar uma
visão instrumentalizante da retórica? Esta é multifacetada, mas não tem níveis: a
coesão da instituição retórica, até o século XVII, baseava-se precisamente numa
representação da estabilidade universal dos valores (TEIXEIRA[2], 2010, pp. 334)
Assim sendo, não basta ao príncipe ser forte para governar. A força pode ajudá-lo a
conquistar o poder, mas não é capaz, sozinha, de fazer com que ele o mantenha. Para manter o
domínio e o respeito dos governados é preciso possuir virtú. O sucesso do príncipe está
atrelado à posse da virtú, o que implica numa medida política: a manutenção da conquista.
Resistindo aos inimigos e aos golpes da sorte, o homem de virtú295
deve atrair, para si, a fama,
a honra e a glória e, ao povo, a segurança. Pois ao povo importa a estabilidade política, que só
pode ser dada pelo príncipe virtuoso, independentemente dos meios que ele utilize (WINTER,
2006, pp. 127).
Um efeito dessa transformação foi que o poder do Estado, e não do governante,
passou a ser considerado a base do governo (ARNAUT & BERNARDO, 2002, pp. 91-102 &
SKINNER, 1996, pp. 10). E o Estado deve ser mantido sob a ótica e a lógica da força das
armas. As forças armadas296
é a garantia da lei e da ordem. Este conjunto de procedimentos
externos são fundamentalmente importantes para o domínio provincial e, de certo modo, são
alicerçados na ideia da tríade: virtù-prudência-retórica297
.
Nesta questão do domínio provincial, a partir dos I Primi Scritti Politici, vê-se que
Maquiavel descreve sobre o apoderar-se bem das cidades. A força, novo ordenamento, é um
disjuntivo de escolha de providência do príncipe, anti-Providência medievo, para que o
governo seja efetivo (MAQUIAVEL, 2010, pp. 36). Oportuno é a indagação de Maquiavel ao
final deste discurso sobre As noticias das medidas adotadas pela República Florentina para
295
Maquiavel utiliza o termo: "eccellentissime uomine" para referendar os homens excelentes que examinam e
governam com magnitude um principado. Nos Discorsi (III, 5: 318), o florentino indica que a imagem dos
grandes e excelentes homens são denegridas quando começam a transgredir a lei, ou seja, a não cuidar da exímia
retórica, bem como a desrespeitar os modos e costumes dos antigos, ou seja, a fechar-se para a prudência
(POYER, 2013, pp. 28-29). 296
O uso de artilharia contra as suas muralhas [...] estratégia de acampamentos para lograr espaços e
proporcionar uma situação de miséria e fome [...] construção de bastiões, enfim... ouvir os entendidos da guerra
– pois, atacados desta forma eles se renderão (MAQUIAVEL, 2010, pp. 34). 297
Não é por acaso que Maquiavel começa o “Príncipe” descrevendo as espécies e os modos pelos quais se
conquistam os Principados. Este é o ponto para o qual chama a atenção. Quando fala, no capítulo II, dos
principados hereditários, ele procura persuadir o leitor para, depois, falar sobre o Estado novo. [...] O Estado
hereditário, por ser mais antigo do que o Estado novo, leva os súditos a esquecerem do uso da força empreendida
pelo príncipe para conquistá-lo. Desse modo, o Estado hereditário é legítimo pelo hábito dos súditos de estarem
submetidos ao poder de um monarca. Eis porque, segundo Maquiavel, é mais fácil administrar e preservar um
Estado hereditário do que um Estado novo (MAQUIAVEL, 2004, pp. 5, In: WINTER, 2006, pp. 124).
182
pacificar as facções de Pistóia de 1502, onde se lê: “resta saber agora como se procederá
daqui em diante e, sobretudo, sobre o modo de reformar a cidade...” no que se refere a
habilidade da virtù e sua relação com a fortuna (MAQUIAVEL, 2010, pp. 37)298
.
298
Sobremaneira, com a obra Niccolò Machiavelli – I Primi Scritti Politici, Marchand anuncia a “nascita di um
pensiero e di uno stile”. Dos relatórios, Maquiavel saltara da empiria dos fatos da vida política de seu tempo,
parte dos quais esteve presente como Secretário político, para lançar os fundamentos basilares da filosofia
política moderna. A esclarecer e a fundamentar o conhecimento da verità effetuale delle cose que, como queria o
Florentino, não fora obra do acaso. Cf. VALVERDE, A, “Maquiavel a cavalo: Os primeiros escritos políticos”,
pp. 21-27. In: MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato Ambrosio. Prefácio
Kurt Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e Jurídicos da
Administração, FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de Impressão, 2010, pp.
24.
183
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“O aniversário de quinhentos anos da obra O príncipe levou muitos estudiosos a
revisitar a obra, o autor, a problemática nela contida ou tudo isso ao mesmo tempo.
Evidentemente tal honraria não pode ser atribuída à marca do tempo, mesmo porque
o tempo já cuidou de enterrar nas brumas do passado muitos autores cujas obras não
tiveram o mesmo impacto sobre o pensamento político. A que se deve, então, a
honraria? Entre as muitas respostas que esta pergunta admite, gostaria de indicar
aqui o incômodo que Maquiavel provoca, aliás, um aspecto pouco abordado nas
interpretações do autor. [...] Maquiavel postula o início da sociedade não num
contrato, mas nas condições naturais vividas pelos homens, assim como nelas
identifica a origem do primeiro governo (a monarquia) cujas características levam à
sua degeneração (a tirania), da qual se passa a outro tipo de governo (a aristocracia)
que degenera em oligarquia, dando lugar à democracia que degenera em
licenciosidade” (pp. 231. 237).
Jair Pinheiro
O Profeta Desarmado
(2014)
Crê-se que ficam algumas questões ao final deste trabalho. Uma delas, que por sinal
é fortemente emergente na pesquisa, é se a política é a utilização da força sem medida?
O uso simbólico da força nesse contexto de fundação-conservação é um exercício
de virtude. Por isso, nas passagens acima, Maquiavel parece apenas apontar
algumas características da virtù que o príncipe novo deveria seguir e não parece ter
a intenção de fazer uma defesa de ações desmedidas (ou imorais), tal como, a
tradição o interpretou. Na verdade, Maquiavel parece dar uma justificativa prática
das ações dos príncipes, amparada na manutenção e conservação dos principados.
Essas ações visariam um equilíbrio, algo que é próprio da virtù dos grandes
príncipes299
.
Como se constatou, Maquiavel serviu na administração da República de Florença, de
1498 a 1512, na segunda Chancelaria, tendo substituído Adriani, e como secretário do
Conselho dos Dez da Guerra (Dieci di Libertà et Pace), a instituição que na Signoria tratava
da guerra e da diplomacia. Criticam-no alguns teóricos por ele ser muito reflexivo e pouco
ativo. Quando o fez, com força armada não obteve sucesso. O certo é que a história política
deve muito ao seu trabalho inicial. Ele, de fato, tornou-se um conhecedor profundo dos
mecanismos políticos e viajou incessantemente, participando em vinte e três embaixadas das
cortes italianas e européias, conhecendo vários dirigentes políticos, como Luís XII de França, 299
COSTA, P.H.S. "Política, força e virtù em Maquiavel". In: Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia –
Brasil, v.11, n.1, junho/2015/www.ufrb.edu.br/griot - acesso em 11 de Dezembro de 2015, pp. 97.
184
o Papa Júlio II, o Imperador Maximiliano I, e um de seus modelos de ator político: César
Bórgia.
Para deliberar sobre o uso da força imoderadamente, ou até mesmo imoralmente,
fez-se o esforço no primeiro capítulo em apontar as novidades que o Humanismo Cívico
trouxe para o cenário europeu, especificamente para a Itália. O trabalho burocrático de
Maquiavel e logo a seguir seu livrinho indicam uma reflexão política de contracultura. Uma
sociedade basilada e substanciada sobre o poder temporal e espiritual de uma Instituição como
a Igreja Católica não era fácil de se enfrentar. Quem sabe este nem fosse o seu ideal,
porquanto em várias passagens de suas obras refere-se à importância da religião para a vida
política. O combate a passividade contemplativa, tipo eremita, do “deixa tudo nas mãos de
Deus”, passou a um modelo de comportamento ativo. O que no Humanismo ficou conhecido
por “encharcamento das coisas terrenas”. A instabilidade política encontra nos relatórios e
depois nas obras, a verdade dos fatos, ou em outras palavras, a necessidade de se pensar num
mundo possível e real. No entanto, apesar de em inúmeros comentadores e obras
apresentarem o realismo político com a chave única de interpretação, realismo fundando no
terror e na crueldade, Maquiavel pode ser reconhecido também na via do respeito, da
organização, da conjunção e da ocasião para assim utilizar a “força como necessidade”. Isto
posto, pode-se colocar como peça chave para a constituição da ação política a noção de
“verdade efetiva das coisas”, que trata de uma indagação radical e de uma nova articulação
sobre o pensar e o fazer política, que põe fim à ideia de uma ordem natural e eterna300
.
Este é o núcleo fundamental do pensamento de um “Maquiavel entre tantos
Maquiavelismos e Maquiavélicos”. Pelo que se viu desta sua experiência burocrática, este
trabalho versou e apresentou através das provisões dos I Primi Scritti Politici uma estratégia
de garantia da ordem e da defesa da população. Inclusive afirmou-se no segundo capítulo que
dentre os humores centrais, na tensão realista entre popolo e grandi, os primeiros possuem
uma virtù própria, e nela que Maquiavel acredita ser a fonte da formação de um espírito
patriota onde todos lutem pela nação e protejam seus convivas. A lógica da força predisposta
na obra de Claude Lefort nos incentivou a pensar este ideal, ou seja, a Itália, pois é ela que
está em questão, deve ser regida pelas leis, boas leis, leis que convençam o espírito humano,
que leve a obediência, que tenha em vista a boa convivência, não contudo se esquecer das
boas armas, de modo que esta junção, como se demonstrou no segundo capítulo, é a garantia
da segurança interna e externa nos domínios de Florença e de atores políticos que fizerem esta
leitura e esta aposta de política ativa. 300
Cf. WEFFORT, F. Os clássicos da política. São Paulo: Editora Ática, 2006, pp. 16-23.
185
Para Maquiavel, todas as épocas, no aspecto político, têm a mesma estrutura. A
história é o grande livro, repleto de exemplos pelos quais o príncipe poderia se
pautar adequadamente. Entretanto, no âmbito da história, a regularidade dos
fenômenos não é assim tão segura. Não há na política o determinismo universal301
.
Os textos/relatórios que inspiram novas reflexões sobre a obra de Maquiavel são
importantes para o desenvolvimento posterior de temas que o próprio Florentino desenvolve
no Príncipe, nos Discorsi e noutros escritos. L´arte dello stato por exemplo, é diferente
quando serve para manter a liberdade de cidadãos conquistada num governo republicano no
meio de monarquias e cidades medievais atreladas ao Papa. Pode-se perdoar sua metáfora
sexista de Fortuna em outros textos para reconhecer a habilidade de Maquiavel em captar
como o processo causal permanece aberto aos fenômenos políticos e, portanto, prestes à
determinação pela ação humana e escolha pública302
.
A força também foi averiguada em outras obras de Maquiavel. Segui um roteiro e
uma interpretação guiada por Lefort. Como o tema não faz parte de um interesse imediato dos
comentadores, não se encontrou um verbete nos dicionários de Política e do próprio
Maquiavel que foram consultados (Cf. MÉNISSIER, 2012). E se CHEVALLIER aponta na
sua interpretação de Maquiavel que “ [...] a força é justa quando necessária" é preciso
averiguar sempre quando a necessidade se faz. Nos Discorsi, por exemplo, tratando do tema
da necessidade estritamente ligada a ideia de força e natureza, Maquiavel afirma: “uma cidade
que vive livre tem dois objetivos: conquistar-se e manter-se livre” (D, I, 29; II, 5 e 8)303
.
Portanto, o capítulo primeiro teve como vértice de estudo a própria ideia de Maquiavel
recordada nos Primeiros Escritos por Kurt ao indicar que a política tem de ser feita se se quer
manter a liberdade. O termo necessidade acaba sendo o recurso técnico da avaliação da
justificação do uso da força. Se os desejos humanos sempre foram os conflitos que regularam
e ainda regulam os tempos de paz e de guerra, é necessário utilizar-se deste artifício para
legitimar ou não o “recurso a espoliação violenta”, pois conforme MÉNISSIER, “o único
critério para julgar a ação é, então, aquele constituído por seu sucesso ou fracasso. É possível
dizer que para Maquiavel o primeiro passo na direção da virtude consiste na adesão
consciente da necessidade” (2012, pp. 42).
301
DE OLIVEIRA, J. A. “Virtù e Fortuna: racionalismo e agir político na obra O Príncipe de Maquiavel”.
Revista Prisma Jurídico, vol. 11, n. 1, janeiro-junho, 2012, pp. 101-124. 302
KURT, M. Prefácio, pp. 07. In: MAQUIAVEL, N. Política e Gestão Florentina. Tradução e notas, Renato
Ambrosio. Prefácio Kurt Mettenheim. Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Sociais e
Jurídicos da Administração, FGV-EAESP: FSJ. Circulação Restrita. São Paulo: Multhiplic Serviços de
Impressão, 2010. 303
MÉNISSIER, T. Vocabulário de Maquiavel. Tradução de Cláudia Berliner, Rev. Técnica de Patrícia
Fontoura Aranovich, São Paulo, 2012, pp. 40.
186
Deste modo, partindo da ideia do conflito-necessidade-uso da força, sugestionando
uma suposta natureza humana egoísta “ala” Hobbes, e tendo claro com isso a natureza do
homem para Maquiavel, que livremente se adéqua as situações da vida, as provisões
averiguadas no segundo capítulo, no seu ordenamento funcional do regimento interno – tinha
por indulto primário conhecer e descrever e examinar as instituições: Milícia, armas e leis.
Nesta tríade, pode se observar a política dita orgânica, ou seja, aquela que mede os disjuntivos
– amor e força e recorre antes da legitimação da segunda à interiorização das leis. Este
movimento vai da escolha à obediência, passando por todo processo de confecção de bons
homens manuseadores de boas armas, demonstrando a ideia de que Maquiavel – pioneiro do
processo da nova ordem política – participa de situações históricas em que o tratado de paz
está convencionado ao interesse estratégico do líder político para beneficio próprio e de seu
Principado ou República.
Olhando e estudando para um dos modelos de virtù, o pleníssimo Castruccio
Castracani, pode-se ler
“veremos, todavia viste, vês e verás a força mais que romana e a constância do povo
florentino na defesa da dulcíssima liberdade, que, como foi dito, é um bem celeste
que supera toda riqueza do mundo. Todos os florentinos têm no ânimo o firme
propósito de defendê-la como à própria vida, mais ainda do que com a vida, com as
riquezas e com a espada, para deixar aos filhos essa ótima herança que recebemos de
nossos pais, para deixá-la com a ajuda de Deus, saudável e incontaminada”
(SALUTATI, Inventiva Contra Antonio Loshi de Vicenza In: BIGNOTTO, 2003)
Das formas políticas existentes, apenas as repúblicas, concluirá Maquiavel
posteriormente, podem se beneficiar inteiramente da “força e da potência” que resultam dos
desejos populares, sendo o povo o melhor aliado, o Republicanismo, então, seria a melhor
forma de governo aos olhos de Maquiavel, iniciando com o patriotismo em Florença. No
Príncipe, na análise sintética que fizemos, pudemos também observar que a formação destes
homens – no geral – não nos remeteria a contratações de mercenários e estrangeiros, pois a
Itália já havia dado conta de sua destruição devido a esta escolha e este tipo de gente. Os
fatores que, a nosso ver, marcam a formação do exército forte são supostos em dois aspectos.
No primeiro refere-se ao material humano, na grande quantidade de homens que facilitaria o
recrutamento e sua utilização estratégica militar – passando pelo treinamento e
disciplinamento efetivo. O segundo aspecto, não tanto explorado em nosso texto, porém
presente, diz respeito ao dinheiro, que é uma condição inerente, não somente à formação do
exército, mas à disposição de recursos para que a cidade ou o Estado possam investir na
transformação e em melhorias. Pagar o soldo e equipar adequadamente os soldados foram as
187
bases de uma nova formulação de defesa de Florença. A ideia de República como ideal, que
se forma e se delineia nos Discorsi passa a ser um tema pertinente de reflexão na obra do
Florentino. Um outro elemento primordial que foi percebido – é o amor pela cidade. Assim
sendo, os Primeiros Escritos de Política e o Príncipe evocam uma nova tipologia de
selecionamento dos homens, que de certo modo, afastando-se da ideologia cristã medieval,
não aparta totalmente algumas práticas relativas à disciplina que um conscrito ou cavaleiro
deva sempre manter. Em vista de um registro final, foi-nos muito proveitoso estudar a
formação do exército florentino, porquanto ficou também claro que o dizer de Maquiavel –
sintetizou o que esforçadamente e delongadamente descrevemos em nossas “duras penas
modernas”, ou seja, a ideia de que “o Estado não se conserva rezando o pai nosso”304
.
Cabrini (2004, pp. 333) mesmo não desertou intelectualmente da possibilidade de
mesclar a força e a prudência na obra de Maquiavel, ao ponto de demonstrar tal realidade na
excentricidade da retórica, da força da palavra. Aponta-se uma política pragmática e
pedagógica, um tanto quanto “obstinada pelo povo” (2004, pp. 337) o que supõe uma nova
interpretação de Maquiavel. Ou seja, não é o Florentino obstinadamente a favor do “pão e
circo”, dos grandes empreendimentos ou da política feita à “meia luz”. É preciso compreendê-
lo como um transeunte do saber, que toda tarde volta para à companhia de grandes homens
feitos de carne e osso, e de memória.
De manhã, eu acordo com o sol e vou para o bosque fazer lenha; ali permaneço por
duas horas verificando o trabalho do dia anterior e ocupo meu tempo com os
lenhadores. [...] Deixando o bosque, vou à fonte e de lá para a caça. Trago um livro
comigo, ou Dante, ou Petrarca, ou um destes poetas menores, como Tibulo, Ovídio
ou outros: leio suas paixões, seus amores e recordo-me dos meus, delicio-me neste
pensamento. Depois, vou à hospedaria, na estrada, converso com os que passam,
indago sobre as notícias de seus países, ouço uma porção de coisas e observo a
variedade de gostos e de características humanas. Enquanto isso, aproxima-se a
hora do almoço. Finda a refeição, retorno à hospedaria, lá me entretenho jogando
cartas ou tric-trac. Chegando a noite, volto à minha casa e entro no meu gabinete de
trabalho. Tiro as minhas roupas cobertas de sujeira e pó e visto as minhas vestes
dignas das cortes reais e pontifícias. Assim, convenientemente trajado, sou
afetuosamente recebido por eles e me nutro do único alimento a mim apropriado e
para o qual nasci. Não me acanho ao falar-Ihes e pergunto das razões de suas ações;
e eles, com toda sua humanidade, me respondem. (Carta a F. Vettori, de
10/12/1513)305
.
Isso ilustra bem a necessidade que os homens têm de viver sob as leis da Justiça,
mostrando que os homens, todavia, se mantiveram justos, mesmo depois que se tornaram
cheios de vícios. Mas com o tempo, faltando a justiça, faltou também a paz, e daí nasceram as
304
MAQUIAVEL, História de Florença, VII, 6. 305
Maquiavel, N. “Carta de Maquiavel a Francesco Vettori”. In Maquiavel. Tradução Livio Xavier. São Paulo:
Abril, Janeiro 1973.
188
ruínas dos reinos e das repúblicas. Essa Justiça que se foi para o céu nunca mais voltou a
morar entre todos os homens, mas sim somente em algumas cidades em particular, às quais,
enquanto foi bem recebida, as fez grandes e poderosas. Foi ela que elevou as cidades Gregas e
a própria Roma, e que tornou muitas repúblicas e reinos felizes, foi ela ainda que habitou
algumas vezes a nossa pátria engrandecendo e mantendo-a, e ainda agora a mantém e a
engrandece. A organização estatal, que visa à hegemonia da Justiça é o requisito mínimo para
a ordem, a lei, o dever, a gloria e o castigo (Discorsi, II, 23). Creem os intérpretes que aderem
a temática de uma política antiterror em Maquiavel, que a ordem posta nos Discorsi deve ser
respeitada. A Justiça gera nos Estados e nos reinos a união, a união gera a potência e a
manutenção deles. Ela defende os pobres e os fracos, reprime os ricos e poderosos, humilha
os soberbos e os audaciosos, freia os rapaces e os avaros, castiga os insolentes, e dispersa os
violentos. A justiça gera nos Estados aquela equidade que, se quisermos mantê-la, torna um
Estado desejável. Esta é a única virtude, entre todas as outras, que agrada a Deus, e disso
houve sinais especiais, como demonstrou na pessoa de Trajano o qual, ainda que pagão, foi
recebido, por intercessão de São Gregório no número dos eleitos de Deus, e não por outros
méritos senão por ter, sem nenhuma reserva, administrado a justiça (MAQUIAVEL, 2010, pp.
111). A força depende da necessidade e da ocasião. Quando se faz necessário deve-se usar a
força com legitimidade. A ocasião é o indicativo do cálculo sobre o usar ou não. Quem faz
isso tem virtù. As boas leis é o regime educacional da cidadania, o que vale mencionar
também que não existe um Principado, República ou Estado que se conserve sem leis. O ser
humano não está pronto para viver o projeto da autonomia moderna, ou seja, “ser senhor de
si”, pois tal tese significa numa postura primaz a compreensão das leis que regem a natureza
de um modo geral. Em outras palavras, não existe autonomia sem a lei no horizonte da ação.
Por várias vezes se disse na Dissertação – viva no tempo de paz sem se esquecer da guerra. Os
conflitos que movimentam os povos, ora ou outra criam situações de guerra. Estas são as
virulências das virtùs humanas. Este é o dado mais genuíno da tensão dos humores sociais. As
boas armas devem ser manuseadas por bons soldados. E estes por um comandante de
estimada e comprovada virtù. Que os soldados aprendam com o modelo francês a disciplina e
a coragem. Que sejam arautos da pátria. Assim formaram a Milícia, seja em combate à cavalo
ou não. As Infantarias que não mudam de lado no decorrer da guerra. Homens que recebem
duplamente: os florins e o reconhecimento de seus concidadãos. Portanto, a conquista e a
manutenção do Estado, da sua competitividade dependem de uma boa harmonia destes temas.
Só assim a liberdade será uma realidade efetiva, não somente das coisas, mas dos homens e
dos povos...
189
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