i
Arenildo dos Santos Silva
PELAS TRILHAS DOS FILHOS DO SOL E DA LUA: Memrias das Pinturas Rupestres de Monte Alegre, Par,
Amaznia, Brasil
Dissertao de Mestrado
Belm, Par 2014
ii
Arenildo dos Santos Silva
PELAS TRILHAS DOS FILHOS DO SOL E DA LUA: Memrias das Pinturas Rupestres de Monte Alegre, Par,
Amaznia, Brasil
Dissertao apresentada como requisito parcial
para obteno do ttulo de Mestre em
Antropologia (Concentrao em Arqueologia)
pela Universidade Federal do Par.
Orientadora: Prof Dra. Denise Pahl Schaan.
Co-orientador: Prof Dr. Agenor Sarraf Pacheco.
Belm, Par 2014
iii
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
__________________________________________________________
Silva, Arenildo Dos Santos, 1980-
Pelas trilhas dos filhos do sol e da lua:
Memrias das pinturas rupestres de Monte
Alegre, Par, Amaznia, Brasil / Arenildo dos
Santos Silva. - 2014.
Orientador: Denise Pahl Schaan;
Coorientador: Agenor Sarraf Pacheco.
Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal
do Par, Instituto de Filosofia e Cincias
Humanas, Programa de Ps-Graduao em
Antropologia, Belm, 2014.
1. Pinturas rupestres Monte Alegre (PA). 2.
Arqueologia Monte Alegre (PA). 3. Monte Alegre
(PA) Antiguidades. I. Ttulo.
CDD 22. ed. 709.0113098115
____________________________________________________________
iv
Arenildo dos Santos Silva
PELAS TRILHAS DOS FILHOS DO SOL E DA LUA: Memrias das Pinturas Rupestres de Monte Alegre, Par,
Amaznia, Brasil
Dissertao de Mestrado
Banca Examinadora:
________________________________________________ Prof Dra. Leila Mouro
Examinador Externo
________________________________________________ Prof Dra. Marcia Bezerra de Almeida
Examinador Interno
________________________________________________ Prof. Dr. Fabiano de Souza Gontijo
Examinador Suplente
________________________________________________ Prof Dra. Denise Pahl Schaan
Orientadora
________________________________________________ Prof. Dr. Agenor Sarraf Pacheco
Coorientador
Belm, Agosto 2014
v
Aos Montealegrenses (Pinta-Cuias), especialmente
aos moradores do entorno das serras de Monte
Alegre pelos saberes vivenciados e
compartilhados.
vi
SONO E SEGREDO
Indesatveis ns
Bas do Tempo
As pedras guardam em si sono e segredo
E resistindo assim a todos os degredos
Futuramente
Zombaro de ns.
Antonio Juraci Siqueira
vii
AGRADECIMENTOS
A escrita desta dissertao foi possvel pelo apoio e dedicao de vrias pessoas, que
contriburam de formas distintas para que eu pudesse concretiz-la.
Meus pais, Adinaldo e Antonia, que sempre respeitaram minhas escolhas e me
apoiaram em tudo que fiz.
Minha esposa Aldacy, com quem dividi preocupaes, tristezas e alegres descobertas
ao longo da pesquisa.
Meus filhos Arthur e Augusto, seus sorrisos me fortaleceram nos momentos difceis.
Meus irmos, Arinaldo, Arinei e Suly, e outros parentes e amigos, que mesmo de
longe, sempre torceram por mim.
A famlia de dona Francisca, Edimilson e Lorena que abriram a porta do seu lar e
acolheram-me durante toda a minha permanncia em Belm para cursar o mestrado.
A Professora Leila Mouro que desde a graduao em Histria tem acompanhou a
trajetria da minha formao com palavras sbias e sugestes valiosas para o
desenvolvimento da pesquisa.
Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Antropologia, da Universidade
Federal do Par UFPA, alguns em especial:
Professora Denise Pahl Schaan, que orientou este trabalho sempre com muito
compromisso e exercitando pacincia e tolerncia diante da minha inexperincia e
dificuldade durante este trabalho, compartilhando comigo ensinamentos e reflexes,
demonstrando-me seriedade e profissionalismo na prtica arqueolgica e na vida.
Professora Marcia Bezerra, que sempre nas suas aulas brilhantemente buscava
relacionar os temas de cada docente aos temas abordados em sala. Sou grato pela leitura
cuidadosa e valiosa contribuies ao projeto de qualificao desta dissertao. Sua
dedicao, com a causa nobre de ensinar, um grande exemplo.
Professor Agenor Sarraf Pacheco que alm de um grande mestre sempre foi um
grande amigo nos momentos mais crticos da minha caminhada e na co-orientao deste
trabalho.
Durante a elaborao da dissertao pude contar com amigos (as) que me deram
informaes, indicao de livros e apoio tcnico, assim agradeo ao Rhuan, Afonso e Antonia
viii
que contribuiu na elaborao de mapas, ao Jernimo e Hermes pelas dicas de leituras, ao
Reginaldo Salles pelo compartilhamento de documentos histricos.
Sou devedor de gratido ao Nelsi Sadeck pelas coisas de Monte Alegre sempre
compartilhadas de forma alegre, mas no menos crtica e responsvel.
A professora Viviane Menna Barreto e ao Luiz Carlos Shikama pela parceria na
elaborao da revista em quadrinho Gurupatuba que um subproduto desta pesquisa.
A equipe de produo audiovisual 24 Cinquenta Filmes que neste trabalho foi
composta pelos cinegrafistas Breno Pimentel e Arnei Barreto, pelo assistente de produo
Felipe Silva, pelo diretor de fotografia Andr dos Santos e do roteirista Dario Viseu.
Sou grato tambm a Secretaria de Estado de Meio Ambiente SEMA, na pessoa da
Patrcia Messias, gerente do Parque Estadual Monte Alegre PEMA, que autorizou a
realizao da pesquisa e sempre que possvel concedeu apoio na realizao da mesma.
A Prefeitura Municipal de Monte Alegre e a Secretaria Estadual de Educao SEDUC
por terem concedido licena remunerada para cursar o mestrado. A SEDUC em especial pela
concesso de bolsa.
Por ltimo, mas no menos importante, s pessoas da Vila do Erer que me
receberam em longas conversas regadas a um bom cafezinho, em especial, ao seu Humberto
Assuno, Lzaro Ribeiro, Joo Ucha, Arnaldo Carvalho (in memoriam), Dona Aldenora,
Joo Batista (in memoriam), Dona Cleonice, professor Iraclio, professor Luiz Gonzaga, Dona
Rosilda dos Santos, Luiz Almeida (in memoriam), Magno Assuno, Z Preto, Beque, Ronaldo
Silva, Ileda Silva, Auriene Almeida, e ao meu escudeiro pelas trilhas e subidas s serras de
Monte Alegre, Jairo Silva.
A estas pessoas e s outras que, tambm contriburam para a realizao desta
pesquisa, mas que neste momento, a minha memria no permitiu lembrar, o meu mais
sincero agradecimento.
ix
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre o conjunto de narrativas a cerca das pinturas rupestres da regio das serras de Monte Alegre, Par, na busca de compreender os significados que o patrimnio arqueolgico assume no mbito das relaes sociais contemporneas, em especfico, aquelas construdas segundo a lgica de populaes tradicionais. O estudo inicia com um dilogo histrico atravs das primeiras narrativas sobre estas imagens registradas por viajantes e naturalistas desde o sculo XIX, depois traz para discusso os trabalhos e conhecimentos produzidos pela cincia arqueolgica nas ltimas dcadas, e por ltimo, adiciona tambm as vozes de moradores da Vila do Erer e arredores sobre estas iconografias. A dissertao se construiu a partir do interstcio entre a Antropologia, Arqueologia e Histria, pois, as informaes que subsidiaram a pesquisa foram obtidas atravs de relatos de viajantes, dos trabalhos de pesquisa arqueolgica, de entrevistas, observao e do convvio com moradores da vila. O resultado um emaranhado de vozes distintas que se tecem, cruzam e ecoam na formao de um caleidoscpio de narrativas compostas por fragmentos de mundos, pautados nas experincias, na relao com a vida social e o presente vivido. As trilhas percorridas apontam reflexes acerca da poltica do patrimnio na Amaznia, e mais amplamente ponderaes da pesquisa tendo em vista uma prxis descolonial da cincia. Palavras-Chave: Monte Alegre; narrativa; patrimnio arqueolgico; arqueologia pblica.
ABSTRACT The present work aims to reflect on the set of narratives about the cave paintings of the mountain ranges region of Monte Alegre, Par, in the seek to understand the meanings that the archaeological heritage takes within contemporary social relations, in particular, those built according to the logic of traditional populations. The study begins with a historical dialogue through the first narratives on these images recorded by travelers and naturalists since the nineteenth century, afterwards it brings for discussion the works and knowledge produced by archaeological science in recent decades, and finally, it also adds the voices of residents of the Village of Erer and surroundings about these iconographies. The dissertation was constructed from the interstitium between Anthropology, Archaeology and History, because the information that supported the research were obtained from reports of travelers, works of archaeological research, interviews, observation and the living together with residents of the village. The result is a tangle of distinct voices which weave, intersect and echo in the formation of a kaleidoscope of narratives composed by fragments of worlds, guided in the experiences, in the relationship with the social life and the lived present. The paths taken indicate reflections about the heritage policy in the Amazon, and more widely reflections of the search according to a decolonial praxis of science. Keywords: Monte Alegre; narrative; archaeological heritage; public archeology.
x
Lista de Figuras
Figura 1 - Reproduo de imagens das pinturas rupestres em alguns lugares da cidade de Monte
Alegre: a) Hidroviria; b) Bar da Orla; c) Banco da Praa da Orla; Palco da Praa Central, 26 Out. 2013
............................................................................................................................................................... 17
Figura 2 - Mapa do Municpio de Monte Alegre - Par ......................................................................... 18
Figura 3 - Dona Yurika e filhas. Fonte: lbum da minha famlia. .......................................................... 19
Figura 4 - Ilustrao do transporte nos rios amaznicos em 1848. Fonte: Wallace 1979 .................... 44
Figura 5 Estampas 3 e 4. Fonte Hartt (1871) ...................................................................................... 62
Figura 6 - Estampas 5 e 8. Fonte: Hartt (1871) ..................................................................................... 65
Figura 7 - Estampas 6 e 7. Fonte: Hartt (1871) ..................................................................................... 65
Figura 8 - Painel da Serra da Lua, na Serra do Erer, 28 set. 2013 ....................................................... 72
Figura 9 - Painel do Pilo na Serra do Paituna, 7 Nov. 2013 ................................................................. 73
Figura 10 - Caverna da Pedra Pintada, 13 Jun 2013 .............................................................................. 74
Figura 11 - Mapa com os principais stios com pinturas rupestres das serras ...................................... 78
Figura 12 - Pinturas rupestres de crculos concntricos, marcas de mo, e uma figura invertida com
cabea raiada, Serra da Lua, Monte Alegre. Fonte: Roosevelt at al. 1996 ........................................... 86
Figura 13 - Logomarca do XV congresso da SAB. Fonte: Sabnet 2009 .................................................. 86
Figura 14 - Local aps uma escavao arqueolgica. Foto: Nelsi Sadeck ............................................. 90
Figura 15 - Seu Humberto no Painel de pinturas do Pilo. Foto: Andr dos Santos, 11 Out. 2013 ...... 98
Figura 16 Seu Lzaro prximo a Pedra do Mirante. Foto: Andr dos Santos, 14 Out. 2013 .............. 99
Figura 17 - Seu Joo Grande prximo pedra do Mirante. Foto: Andr dos Santos, 14 Out. 2013 ... 100
Figura 18 - Ronaldo Silva e ao fundo a srra do Erer. Foto: Andr dos Santos, 13 Out. 2013 ............ 101
Figura 19 - Patrcia Messias no Painel do Pilo. Foto: Andr dos Santos, 26 Out. 2013 ..................... 102
Figura 20 - Nelci Sadeck a sombra de uma mangueira na vila do Erer. Foto: Andr dos Santos, 15 Out
2013 ..................................................................................................................................................... 103
Figura 21 - Trecho da rodovia MA-01 cortada pelo igarap do Erer, local chamado de Urubu, 16 Mai.
2013 ..................................................................................................................................................... 108
Figura 22 - Imagem da entrada da MA 01, ao fundo a serra do Erer, 16 Mai. 2013 ........................ 108
Figura 23 - Imagem de aves sobrevoando o Campo do Desterro, 16 Mai. 2013 ................................ 109
Figura 24 - O Domo de Monte Alegre. Fonte: Par 2009 .................................................................... 110
Figura 25 - Imagem da casa de dona Dina, 16 Mai. 2013 ................................................................... 111
Figura 26 - Cabine telefnica da dona Dina, 16 Mai. 2013 ................................................................. 112
Figura 27 Centro da vila do Erer: (1) Capela; (2) barraco de festa; (3) prdio da APRORE; (4)
Fbrica de polpa; (5) rea recreativa; (6) escola do Erer, 16 Mai. 2013 ........................................... 115
file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927383file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927385file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927386file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927387file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927392file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927392file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927393file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927395file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927396file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927397file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927399file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927400file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927400file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927402file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927403file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927404file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927405file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927406file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927407file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927407
xi
Figura 28 - Prdios destinado fabricao de artesanato e beneficiamento da polpa do miriti no
Erer .................................................................................................................................................... 120
Figura 29 - Jovem Jairo Silva, 13 Jun. 2013 ......................................................................................... 124
Figura 30 - Pedra do Pilo, 13 Jun. 2013 ............................................................................................. 125
Figura 31 - Casa alugada na vila do Erer, 16 Jun. 2013 ..................................................................... 127
Figura 32 - Auriene e dona Ilda , 28 jun. 2013 ................................................................................. 128
Figura 33 Criana brincando durante uma atividade da SEMA, ao fundo a serra do Erer, 07 Jun.
2013 ..................................................................................................................................................... 129
Figura 34 - Luiz Shikama e Nolisson, serra do Sol, 08 nov, 2013 ....................................................... 132
Figura 35 - Pintura rupestre no painel do Pilo, chamada de "calendrio", 13 Jun. 2013 ................. 135
Figura 36 - Turistas visitando a Serra da Lua. Foto: Nelsi Sadeck ....................................................... 136
Figura 37 - Pinturas apontadas como cruz e estrela na Pedra Pintada e na Pedra do Mirante, 13 Jun.
2013 ..................................................................................................................................................... 137
Figura 38 - Pintura rupestre em forma da palma de uma mo, serra da Lua, 13 Jun. 2013............... 137
Figura 39 - Rochedo do Pilo, Serra do Paituna, 07 Nov. 2013 ........................................................... 137
Figura 40 - Caverna Tititira, Serra do Erer, 13 Jun. 2013 ................................................................... 137
Figura 41- Pintura na Serra da Lua que pareceu com o Mapinguari para uma visitante, 13 Jun. 2013
............................................................................................................................................................. 137
Figura 42 - Pintura no painel da Serra do Sol, na Serra do Erer, 08 Nov. 2013 ................................. 137
file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927411file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927412file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927415file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927417file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927417file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927418file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927419file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927420file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927421file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927421file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927422
xii
Lista de abreviaturas
ACS Agente Comunitrio de Sade.
AP Antes do tempo Presente.
APA rea de Proteo Ambiental
APRORE Associao de Produtores Rurais de Erer.
CANP Colnia Agrcola Nacional do Par
CH Cincias Humanas.
DETRAN Departamento de Trnsito do Estado do Par.
EJA Educao de Jovens e Adultos.
FAPESPA Fundao de Amparo a Pesquisa do Estado do Par
FIT Faculdades Integradas do Tapajs.
FNMA Fundo Nacional do Meio Ambiente.
FUNBIO Fundo Brasileiro para a Biodiversidade.
GEP Grupo Espeleolgico do Par.
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica.
IBPEX Instituto Brasileiro de Pesquisa e Extenso.
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao
IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional.
PEMA Parque Estadual Monte Alegre.
PPCE Programa Par Faz Cincia na Escola.
PRONAPA Programa Nacional de Pesquisas Arqueolgicas.
PRONAPABA - Programa Nacional de Pesquisas Arqueolgicas na Bacia Amaznica.
xiii
MPEG Museu Paraense Emilio Goeldi.
SAB Sociedade Brasileira de Arqueologia.
SEDUC Secretaria de Estado de Educao.
SEMA Secretaria de Estado de Meio Ambiente.
SETRAN Secretaria de Estado de Transportes.
UC Unidade de Conservao.
UFOPA Universidade Federal do Oeste do Par.
UFPA Universidade Federal do Par.
URE Unidade Regional de Educao.
xiv
Sumrio
INTRODUO: Preparando-se Para as Trilhas ...................................................................... 16
CAPTULO I: Ferramentas Terico-Metodolgicas Usadas Antes de Chegar s "Trilhas ....... 25
CAPTULO 2 Trilhas e Vozes de Viajantes .............................................................................. 39
CAPTULO 3: Trilhas e Vozes da Cincia ................................................................................... 70
3.1 Em Busca da Preservao das Pinturas Rupestres .......................................................... 89
CAPTULO 4: Trilhas e Vozes Locais .......................................................................................... 94
4.1 Vivncias e Cruzamentos com os Caminhos e Trilhas das Serras ................................... 95
4.2 - Primeiros Passos do Caminhar em Campo: o Estar l com o Outro .............................. 106
4.3 - As Pinturas Rupestres na Interpretao de Moradores ................................................. 133
4.4 - Expectativas Frustradas e Sonhos Possveis ................................................................... 147
(IN)CONCLUSO: Repensando Trilhas Possveis .................................................................... 153
Referncias Bibliogrficas .....................................................................................................158
Anexos .................................................................................................................................... 168
16
INTRODUO: Preparando-se Para as Trilhas
Pelas Trilhas dos Filhos do Sol e da Lua: memrias das pinturas rupestres de
Monte Alegre, Par, Amaznia, Brasil, ser representada metaforicamente como uma
escalada que se prope antropolgica. Explico. um convite a conhecer o conjunto de
narrativas produzidas em distintos contextos histricos e por diferentes agentes sociais
acerca das pinturas rupestres de Monte Alegre. uma trilha desafiadora, mas ao chegar aos
diversos pontos do territrio patrimonializado, como acontece com um visitante, espero que
a viagem permita outras descobertas, especialmente voltadas compreenso do dilogo
entre Antropologia, Arqueologia e Histria. (Bezerra 2011b, Schaan e Marques 2012)
As trilhas continuamente direcionaro um caminhar na tentativa de compreender
significados, valores, memrias, sonhos e vivncias de distintos sujeitos que tiveram suas
vidas tocadas por conhecerem as pinturas rupestres, em especial, os moradores da
comunidade1 do Erer e arredores. Esta pesquisa teve como objetivo registrar, analisar,
estudar e comparar o conjunto de narrativas expressas por viajantes, naturalistas,
arquelogos, monitores de turismo e moradores locais sobre as pinturas rupestres das
serras2 de Monte Alegre, na perspectiva de trabalhar todos esses saberes de forma no
hierarquizada, verificando possveis relaes entre eles. Bas Filho (2009)
A expresso Filhos do Sol e da Lua contida no ttulo uma referncia ao registro
feito no sculo XIX por Herbert Smith (1879) acerca das crenas e rituais dos indgenas do
Erer em torno de um eclipse, onde humanos e a lua so vistos como seres vivos e
interdependentes. O desenvolver da vida humana nas fases de criana, adulto e velho foi
comparada com as formas que a lua assume durante este fenmeno, pequeno, grande e
1 Ressalto previamente que o sentido empreendido pelo termo comunidade, utilizado neste trabalho, se
remete diretamente a ideia de uma mobilizao de um grupo social apoiada em critrios poltico-organizativos, sendo, portanto um grupo que se forma no seio de uma sociedade sem, entretanto, constituir, por si s, uma sociedade (Godelier, 2009 apud Bas Filho, 2009:565). A comunidade uma espcie de referncia simblica desejada ou imaginada -, mas preciso tambm enfoc-la como uma estratgia discursiva articulada a determinadas prticas concretas, vinculadas, por sua vez, a objetivos polticos, por vezes difusos, em outros casos, bastante definidos (Frgoli, 2003 apud Schaan e Marques, 2012:118-119). Sigo tambm Bezerra (2011:58) quando se refere a comunidade de pequena escala em funo das fronteiras claramente marcadas, dos estreitos laos de parentescos entre os moradores. 2 Utilizarei o termo serras para se referir as trs principais serras: Erer, Paituna e Aroxi. Estas compem o
complexo de Serras de Monte Alegre, embora no sejam as nicas serras com pinturas rupestres, elas apresentam um nmero significativo.
17
fino; eles acreditavam que rituais eram necessrios para afastar os espritos malficos que
imaginavam ficar expostos durante o eclipse.
Entretanto, at a concretude desta pesquisa etnogrfica algumas experincias
anteriores foram necessrias para chegar ao contorno e trilhas que sero apresentados nas
pginas seguintes. Assim, para imergir nesse percurso e sentir os passos seguidos e que hoje
compem os fios da minha memria, inicialmente peo o exerccio de sua faculdade mental
de imaginao.
Imagine-se um adolescente de dezessete anos morando em uma pequena cidade do
interior amaznico que, tendo passado cinco anos estudando fora, ao retornar
surpreendido com a reproduo de pinturas, que nunca vira antes, impressas nos prdios
pblicos, praas e carros oficiais do governo municipal de sua cidade. Pense essas pinturas
como figuras totalmente estranhas, nunca vistas antes e sem nenhum significado para voc.
Figura 1 - Reproduo de imagens das pinturas rupestres em alguns lugares da cidade de Monte Alegre: a) Hidroviria; b) Bar da Orla; c) Banco da Praa da Orla; Palco da Praa Central, 26 Out. 2013
3
Abusando um pouco mais da sua capacidade imaginativa, peo para voc imaginar a
capacidade de algumas pessoas, pelo entusiasmo e orgulho que possuem por estas
iconografias, possam contagiar e despertar em voc e em outros sujeitos um forte interesse
3 As fotografias utilizadas na dissertao foram capturadas por mim durante o perodo de campo. Ao utilizar
material de outra procedncia, fao a indicao apropriada.
18
inicial em conhecer um pouco mais sobre essas imagens. Para entender o porqu de tanta
imaginao vou narrar o pouco da minha prpria trajetria de vida.
O cenrio desta histria o municpio de Monte Alegre localizado na regio noroeste
do Estado do Par, na calha norte do rio Amazonas, com uma rea superior a 18 mil km2. O
municpio se estende no sentido norte-sul e constitui limite territorial a oeste com Alenquer,
a norte e nordeste com Almeirim, a sul e sudoeste com Prainha. No censo de 2010, a
populao era estimada em 55.462 habitantes (IBGE 2014). A sede da cidade de Monte
Alegre est s margens do rio Gurupatuba, medindo aproximadamente 623 km em linha reta
de Belm (Carvalho 2010).
Figura 2 - Mapa do Municpio de Monte Alegre - Par
19
Nasci e cresci vivendo entre ladeiras e mirantes da cidade Pinta-Cuia4. Vivi num
ambiente familiar com grandes contadores de narrativas fantsticas. Guardo em minha
memria s vezes em que eu e meus irmos amos passar frias5 na casa de meu av Joo,
na comunidade de Linha 1, e quando chegava noite, aps o jantar luz de lamparina,
ficvamos ouvindo aquelas histrias contadas por meus tios e meu av que enchiam nossa
imaginao de cenrios e seres fantsticos, com povoados e gentes que viviam e realizavam
as coisas mais surpreendentes. Acredito que isso contribuiu, em certa medida, para que eu
optasse pela formao de historiador e antroplogo.
No percurso, tanto de ida como de volta das frias, ficou em minhas lembranas
tambm a presena imponente daquela serra gigantesca, chamada Serra do Erer. De longe
nutria o desejo de um dia poder olh-la de perto e tambm escal-la. Recordo que no lbum
de fotografia de minha famlia da dcada de 1980, at hoje existe uma imagem que minha
me dizia ser da Serra da Lua. Esta foto era das filhas do seu Moacir e dona Yurika, um casal
de bancrios que moravam em Monte Alegre e fizeram o registro em uma viagem s serras.
4 Pinta-Cuia nome dado ao povo de Monte Alegre em referncia ao trabalho de pintar cuia que era feito pelas
ndias montealegrenses no perodo Colonial. Com o passar do tempo, o termo assume um carter identitrio e passou a denominar as pessoas naturais do lugar (Silva, 2011) 5 Frias entre aspas porque, como em muitas famlias pobres do interior amaznico ainda hoje, os pais
aproveitavam o recesso escolar dos filhos para estes ajudarem no trabalho de produo da farinha de mandioca e outros produtos.
Figura 3 - Dona Yurika e filhas. Fonte: lbum da minha famlia.
20
Temos este registro porque minha me trabalhava como domstica na casa deles e
ganhou a foto. A imagem despertava curiosidade e imaginao. Na minha capacidade
imaginativa de criana, associava o nome Serra da Lua com um cenrio lunar daqueles que
se via na televiso. Hoje sei que o cenrio da fotografia no foi a Serra da Lua e sim, o
interior escuro e mido de uma caverna que logo ficaria conhecida internacionalmente por
Caverna da Pedra Pintada.
Estudei o fundamental menor, 1 a 4 srie, na Escola Municipal Professora Aracoele
Pinheiro. Em seguida, minha me me matriculou na Escola Imaculada Conceio onde
conclui o ensino fundamental em 1994. Nesta poca, participava de encontros religiosos
com as Testemunhas de Jeov, o que me motivou a desenvolver habilidades na arte do
ensino. No ensino mdio, influenciado pela atividade de evangelizao, optei pelo curso de
Magistrio. Estudei no Colgio Estadual Francisco Nobre de Almeida, fundado em 1980, o
mesmo ano do meu nascimento. Veja como as histrias de tempos distintos se tocam na
construo de uma memria individual e coletiva.
Dos trs anos do curso de magistrio, alm das teorias e prticas pedaggicas,
constitui grandes amizades com alunos e professores. Entretanto, no recordo de nenhuma
inferncia significativa em toda a trajetria estudantil que tenha sido marcante na minha
memria com relao s pinturas rupestres das serras de Monte Alegre neste perodo. Hoje
tenho conhecimento de que o professor de Geografia, Rosivaldo Carvalho, cuja famlia
morou na vila do Erer perto das serras, levava seus alunos para conhecerem as pinturas.
No tive o privilgio desse exerccio pedaggico na poca, porque o professor Rosivaldo
ministrava aulas apenas para o curso de Cincias Humanas (CH).
Com a concluso do Magistrio em 1997, a despeito de o diploma de professor
habilitar-me para atuar no ensino das sries iniciais, no queria encerrar minha trajetria
estudantil ali. E assim como outros montealegrenses, tive de sair do municpio para
continuar os estudos. A universidade pblica mais prxima encontrava-se na cidade de
Santarm. Em 1998, por influncia da igreja na qual me congregava, decidi que iria
aprofundar meus conhecimentos na rea do ensino, por isso fiz e fui aprovado no vestibular
para o curso de Pedagogia da Universidade Federal do Par (UFPA), Campus de Santarm. J
no ambiente universitrio assim como em outros ambientes, quando falava que era de
21
Monte Alegre, as pessoas geralmente buscavam reiterar a informao com as perguntas: Tu
s de Monte Alegre, ? E as pinturas rupestres das serras?.
As pinturas rupestres eram uma temtica recorrente que sempre emergia quando eu
falava que era montealegrense. Muitas vezes ficava constrangido por nada poder falar sobre
as pinturas, mesmo porque nunca tinha ido v-las de perto. Neste perodo de adaptao em
Santarm, procurei me associar aos montealegrenses que tambm estavam estudando na
UFPA, quando conheci a jovem Mnica Luz Costa. Ela cursava Direito nas Faculdades
Integradas do Tapajs (FIT) e Pedagogia na UFPA, o mesmo curso no qual eu acabara de
ingressar. Recordo neste perodo, que as msicas do festival de boi da cidade de Parintins,
no estado do Amazonas, faziam sucesso na mdia nacional e internacional. Dentre estas
msicas, havia uma chamada Amaznia Quaternria. Lembro que, em uma das minhas
conversas com Mnica, ela falou que aquela msica era baseada nas pesquisas
arqueolgicas feitas em Monte Alegre; indiretamente essa convivncia fez meu interesse
pela msica regional e pela histria de Monte Alegre aumentar.
Em outubro de 2004, j como professor pedagogo da rede estadual de ensino em
Monte Alegre conheci a pesquisadora estadunidense Anna Roosevelt, que foi a Monte
Alegre, quando fui indicado pela diretoria da rdio comunitria Gurupatuba a entrevist-la,
mediante a interveno do senhor Nelsi Sadeck. Anna Roosevelt, a princpio, ficou com
receio de receber um reprter, mas como o Nelsi era amigo dela, e ele disse que eu era
algum de sua confiana, ela aceitou conceder a entrevista. Nelsi, pelo seu entusiasmo,
conhecimento e trajetria de vida, seria a pessoa que passaria a me influenciar no apreo e
na busca de conhecer as pinturas rupestres do municpio.
Neste perodo, o interesse em conhecer as pinturas rupestres de Monte Alegre s
aumentava. Como eu estava fazendo a Especializao em Metodologia do Ensino de Histria
e Geografia, busquei algumas matrias em revistas sobre as pesquisas de Anna Roosevelt e
fiz um roteiro com algumas perguntas. Lembro que o senhor Nelsi me confessou depois que
a Anna Roosevelt ficou surpresa com as perguntas, visto que se tratava de um reprter de
rdio comunitria no interior da Amaznia.
Diante da boa receptividade, aproveitei a oportunidade e mostrei meu interesse em
ir s serras com a equipe de Roosevelt. Mais uma vez o Nelsi intermediou a conversa nesse
sentido e foi assim que fui s serras pela primeira vez. Hoje considero esta oportunidade um
22
privilgio mpar visto que esta pesquisa tem como rea de concentrao a arqueologia. Mas,
naquele momento, confesso que no recordo muito bem o que eles foram fazer ali. Apenas
lembro-me de um grupo de alunos de Santarm que ela levou para uma espcie de
aprendizado. Recordo da presena de um pesquisador brasileiro, o qual dizia que aqueles
alunos eram peso morto. Atualmente analiso que ali se apresentavam duas concepes
distintas do fazer arqueolgico, uma interessada em envolver as pessoas da regio e outra
que via nisso um atrapalho para a execuo da pesquisa. Lembro que eles estavam fazendo
uma espcie de localizao de alguns pontos via satlite. Nesta viagem o meu foco maior foi
preparar uma matria que contemplasse o trabalho da pesquisadora, o que no me permitiu
contemplar melhor as pinturas. (Brasil 1996)
No ano desse episdio, atuava como professor no curso Normal (antigo Magistrio),
entretanto este curso estava sendo extinto devido exigncia da nova legislao da
educao (LDB 9394/96) que primava pela atuao de professores na educao bsica
apenas com a formao em nvel superior. Com isso, comecei a prever que as cargas
horrias nas disciplinas pedaggicas seriam extintas, e to logo estaria sem carga horria e
fora da sala de aula. (Pacheco, Schaan e Beltro 2012)
Esse possvel impasse na carreira me fez buscar uma formao em outra rea. Em
2005, a UFPA lanou um edital de vestibular para o curso de Histria em regime intervalar
para o Campus de Soure, no arquiplago de Maraj. Cursei Histria de 2006 a 2010 naquela
cidade. Conheci muitos professores brilhantes com quem aprendi muitos contedos
relacionados histria a partir da colonizao europeia. Na disciplina Brasil I, ministrada
pelo professor Jorge Watrin, tive o privilgio de conhecer o professor Agenor Sarraf, um
marajoara que ama a sua terra e que muito me influenciou na minha formao acadmica,
inclusive na minha escrita6. Agenor sempre se mostrou acessvel e disposto a me ajudar.
Entretanto a vontade de conhecer a pr-histria amaznica e montealegrense no
seria sanada com o curso de Histria. Mas foi no trabalho de concluso do curso que vi a
oportunidade de aproximar arqueologia, histria e educao. J atuando como professor de
Histria em Monte Alegre, senti a dificuldade de trabalhar a histria local em sala de aula,
diante da escassez de material didtico. O meu projeto de pesquisa precisava contribuir
6 Esse tpico da apresentao tem como inspirao a escrita do texto O garoto, um anel de ouro e muitas
histrias de Agenor Sarraf, publicado no 2 volume do Projeto Remando por Campos e Florestas (Pacheco, Schaan e Beltro 2012).
23
neste sentido. Na ocasio, a Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Par (FAPESPA)
em parceria com a Secretaria de Estado de Educao (SEDUC), lanou um edital para
financiamento de projetos para professores pesquisadores, no Programa Par Faz Cincia na
Escola (PPCE). Vi neste edital a oportunidade de produzir algo que contemplasse meus
anseios e de outros professores. O professor Agenor, que na ocasio ministrava aulas num
curso de Especializao em Histria do Brasil em Santarm, ajudou-me na formatao da
proposta. O projeto previu a elaborao de um livro para o pblico infanto-juvenil e um
vdeo-documentrio. Estes materiais foram inclusive apresentados como trabalho de
concluso do curso de Histria, sob a orientao da professora Leila Mouro. Pelas aes
deste projeto tive os primeiros contatos com os moradores do Erer.
No processo de pesquisa, produo do livro e do documentrio os dilogos iniciais
com alguns entrevistados do Erer foram de suma importncia. Em 2011, decidi que
continuaria a minha formao intelectual com a mesma temtica. Pela ocasio do
lanamento do livro Remando por Campos e Florestas volume 1, publicao organizada
pelos professores Denise Schaan, Agenor Sarraf e Jane Beltro, Agenor me apresentou a
professora Denise e disse que provavelmente eu seria seu futuro orientando. Fui aprovado
na seleo de mestrado e o previsto pelo professor Agenor se concretizou. Com a aprovao
no mestrado em Antropologia, tendo como rea de concentrao a Arqueologia, procuro
apresentar, nessa dissertao, um dilogo entre Antropologia, Arqueologia e Histria;
valorizando especialmente as narrativas de diferentes sujeitos sociais, relembrando o que
ensina o antroplogo James Clifford (2011:244): vejo o trabalho de campo como o lugar de
cruzamento criativo, assim como de disciplinarizao dessas fronteiras.
Neste trabalho, portanto, procuro compreender o modo pelo qual as narrativas sobre
as pinturas rupestres foram sendo construdas historicamente por diferentes sujeitos sociais,
tendo em vista a memria e os significados que atribuem s imagens. O fio condutor da
anlise ser entender como uma memria coletiva foi sendo construda em torno das
pinturas rupestres. Busco, ainda, ressaltar as centralidades culturalmente diferenciadas do
patrimnio, quando efetivadas por comunidades tradicionais na Amaznia.
Assim, organizei esta dissertao em quatro trilhas (captulos), alm da introduo.
Depois de sistematizar o material emprico levantado, quatro caminhos temticos se
mostraram possveis de discusso para sua compreenso. Na primeira trilha, apresento as
24
ferramentas terico-metodolgicas as quais irei utilizar no percurso das trilhas seguintes. Na
segunda trilha, proponho um revisitar analtico sobre rastros deixados por viajantes e
naturalistas que passaram por Monte Alegre e de algum modo registraram as suas
impresses sobre as pinturas rupestres; as impresses das pessoas do lugar e outros
aspectos do modo de viver das pessoas da poca. Na terceira trilha, dialogo com trabalhos
arqueolgicos direcionados regio das serras, na tentativa de verificar as mudanas e
continuidades nos discursos cientficos em consonncia com os registros histricos visto na
caminhada inicial. Na quarta trilha, trago para o dilogo as vozes de alguns moradores de
Monte Alegre, principalmente os do Erer e regio circunvizinha ao Parque Estadual de
Monte Alegre (PEMA)7 sobre impresses em torno das pinturas, a criao do PEMA e
atividades de turismo. Depois de ter percorrido as trilhas, apresento minhas percepes
diante dos dilemas, promessas e atitudes, especialmente do poder pblico local em relao
ao processo de criao do PEMA, discutindo tambm procedimentos adotados pelo trabalho
arqueolgico na regio. (Par 2001)
So esses os caminhos que norteiam a elaborao de nossa subida. Agora prepare o
flego, pois vamos comear a escalar.
7 A rea das serras do Erer, Paituna e Aroxi tornaram parte do Parque Estadual Monte de Alegre a partir da Lei
6.412 de 09 de novembro de 2001.
25
CAPTULO I: Ferramentas Terico-Metodolgicas Usadas Antes de Chegar s
"Trilhas
Antes e durante a realizao do percurso desta dissertao foram escolhidas
ferramentas e reflexes tericas que embasaram a minha trilha de pesquisa.
Estabelecer um dilogo terico entre Antropologia, Arqueologia e Histria uma
tarefa desafiadora, porm enriquecedora. Estas disciplinas fizeram trocas e aproximaes na
construo do conhecimento e no seu reconhecimento enquanto cincias oitocentistas.
Segundo Boaventura Santos (1988) o modelo de racionalidade que preside a cincia
moderna constituiu-se a partir da revoluo cientfica do sculo XVI e foi desenvolvido nos
sculos seguintes basicamente no domnio das cincias naturais; s no sculo XIX que este
modelo se estende s cincias sociais emergentes.
O sculo XIX foi marcado por modificaes e direcionamentos em todos os campos
do conhecimento, especialmente na aplicao de novas regras e mtodos para orientao
da pesquisa cientfica. Os principais centros da Europa estavam passando por marcantes
transformaes causadas pela produo industrial, legitimada pelo domnio burgus e pela
urbanizao das cidades. A efervescncia cultural do perodo contribuiu para impulsionar
mudanas no modo de pensar e, consequentemente, nas cincias sociais com os primeiros
estudos j com foco iluminista (Ribeiro 2007).
O livro A origem das Espcies de Charles Darwin8 de 1859 repercutiu nas cincias
humanas, cincias biolgicas e na religio. A arena entre criacionismo e evolucionismo
estava montada e os embates deram-se incio. Independente da opo e crena do
indivduo, esta obra apontou para a necessidade de uma nova abordagem dos estudos sobre
o passado e sobre a origem da humanidade (Funari 2006, Ribeiro 2007).
A Antropologia, como disciplina cientfica, surge nesse perodo e, assim como a
Histria, depositam na pesquisa arqueolgica uma perspectiva de tentar resolver questes
sobre antiguidade humana e sua evoluo histrica. A Arqueologia foi fundamental para o
evolucionismo cultural, por ter descoberto artefatos que atestavam a antiguidade da
humanidade. Os artefatos de pedra ajudaram a construir o discurso sobre diversos estgios
8 A coautoria da teoria evolucionista foi reconhecida posteriormente ao ingls Alfred Russel
Wallace.
26
da histria humana. Os dois principais centros cientficos da poca eram Europa e Estados
Unidos.
Na Europa a Arqueologia estava mais ligada Histria, especialmente Pr-Histria,
e nos Estados Unidos a Arqueologia era considerada um dos domnios da Antropologia
(Ribeiro 2007). Tanto que Pedro Paulo Funari (2006) distingue a Arqueologia de acordo com
o local de origem em Arqueologia dos Estados Unidos e Arqueologia europeia. Essas
Arqueologias influenciaram a formao terica de arquelogos brasileiros e,
respectivamente o seu fazer profissional.
A Arqueologia como disciplina surgiu no centro do Imperialismo do sculo XIX.
Assim como a Antropologia, no incio ela tambm serviu como um instrumento para
expanso do domnio das potncias coloniais europeias, que buscavam riquezas explorando
outros lugares. Neste contexto, a Arqueologia estudava objetos e monumentos do perodo
clssico e pr-histrico na Europa e, na Amrica, os artefatos deixados pelos povos pr-
contato. No coincidncia que ainda hoje, a imagem do arquelogo esteja ligada a filmes
de aventureiros em busca de tesouros perdidos (Barreto 2010, Funari 2006). Neste perodo,
o conhecimento arqueolgico advinha do artefato em si, do objeto pelo objeto. O estudo
deste era o nico meio de obter informaes sobre o passado. Os artefatos eram
classificados em estgios cronolgicos da evoluo humana (Trigger 2004).
A relao entre Antropologia, Arqueologia e Histria nesse perodo era intrnseca.
Comumente, as cincias estavam influenciadas por uma viso evolucionista. A Antropologia,
com base nos dados depurados dos artefatos, tencionou reconstruir a Histria humana
atravs da cultura que evolua do estgio primitivo, passando pela barbrie at o ltimo
estgio, o civilizado(Eriksen e Nielsen 2007). Este modelo cientfico ficou conhecido como
Evolucionismo Cultural. Este modelo influenciou a formao do pensamento arqueolgico
nos anos posteriores.
Da antropologia cultural boasiana surgem as primeiras crticas ao evolucionismo.
Franz Uri Boas (1858-1942) atravs do histrico-culturalismo buscava explicar a diversidade
humana. A concepo de cultura boasiana tem como fundamento o relativismo, baseado no
reconhecimento de que cada ser humano v o mundo sob a perspectiva da cultura em que
27
cresceu, pois, cada ser est apegado aos grilhes da tradio da sua prpria cultura (Boas
2007). Essa corrente terica dominou a arqueologia americana por cerca de 40 anos.
Atravs da abordagem que ficou conhecida por histrico-cultural (Alarco 1996), ou
Arqueologia da Histria da Cultura (Ribeiro 2007) a Arqueologia refora ainda mais o status
de Cincia. A respeito desta abordagem, o arquelogo portugus Jorge de Alarco afirma:
A Arqueologia histrico-culturalista parte, como alis, qualquer forma de arqueologia, dos vestgios materiais do passado: objectos e estruturas (de habitat, funerrias, rituais e outras). Pretende, antes de mais, determinar-lhes as funes; depois classific-los em tipologias, isto , reduzir a diversidade dos objectos (ou estruturas) unidade de determinados modelos ou normas que os homens tinham em mente ao fabricarem os objectos ou ao construrem as estruturas. A classificao pois, um dos objectivos principais da Arqueologia histrico-culturalista, que logo se orienta para a procura de paralelos, isto , de vestgios semelhantes. As semelhanas permitem, por outro lado, definir culturas e, por outro lado, rastrear contactos e influncias (1996:09).
A Arqueologia histrico-cultural centrava-se no estudo da distribuio geogrfica
dos artefatos e suas relaes com grupos histricos, reconstruindo cronologias, enumerando
as culturas e ressaltando atributos tcnicos dos artefatos. As mudanas culturais eram
explicadas por fatores externos, atravs de migraes de povos ou difuso (Barreto 2010,
Funari 2006, Reis 2004).
Esta abordagem se diferenciava do evolucionismo pela busca da distribuio
geogrfica dos artefatos e suas relaes com grupos histricos, onde se procurava
reconstruir cronologias minuciosas e descritivas e a extenso geogrfica de culturas
arqueolgicas. O conceito de cultura arqueolgica do arquelogo alemo Gustaf Kossinna
(1858-1931). Ele entendia cultura arqueolgica como um conjunto de conhecimentos,
crenas, arte, moral, costumes e hbitos adquiridos pelo ser humano em sociedade, obtidos
na escavao (Ribeiro 2007:132). O conjunto de caractersticas culturais apreendidas
indicavam etnicidade. A etnicidade era a fonte da identificao de povos e territrios, de
modo que uma antiga posse era justificada para a retomada e invaso de territrios. Para
esse arquelogo alemo, a Arqueologia era a mais nacional das cincias.
Este paradigma da Arqueologia recebeu influncia das teorias difusionistas e
migracionistas, pois as mudanas culturais eram explicadas por causas externas, pelas
migraes de povos ou pela difuso geogrfica das culturas (Barreto 2010).
28
Enquanto isso, no contexto europeu da dcada de 1920, a Antropologia teve
significativa contribuio atravs do trabalho de Bronislaw Kasper Malinowski (1884-1942)
na Melansia, cuja pesquisa etnogrfica buscou compreender a cultura de um grupo estudo
a partir do ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida, sua viso de seu
mundo (Malinowski 1978-34). No campo da historiografia, a contribuio vinha da escola
francesa dos Annales. Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram em 1929 uma revista de
estudos, a Annales dhistoire conomique et sociale, onde rompiam decididamente com o
culto aos heris e a atribuio da ao histrica aos chamados homens ilustres,
representantes das elites (Bloch 2002, Febvre 1989). As novas contribuies da Histria e
Antropologia influenciariam a Arqueologia americana dcadas mais tarde.
A partir de 1945, o neoevolucionismo foi reconhecido como uma tentativa de
alguns antroplogos americanos de naturalizar o domnio do pas ps-segunda guerra
mundial. A posio hegemnica que os Estados Unidos usufruam era defendida como um
resultado inevitvel de um processo evolutivo. O que diferenciava do modelo evolucionista
do sculo XIX, era o fato dos neoevolucionistas acreditarem que as mudanas culturais
ocorriam por imposio de fatores fora do controle humano, e no necessariamente como
resultado da criatividade individual. A natureza humana em si era vista como conservadora,
resistente a mudanas, homeostase (Trigger 2004:288).
As ideias neoevolucionistas tiveram bastante influncia na Arqueologia
desenvolvida no Brasil a partir da dcada de 1950, principalmente na Amaznia pelos
arquelogos norte-americanos Clifford Evans e Betty Megers (Barreto 1999-2000). As
anlises destes arquelogos consistiam em apontar o norte e o centro da cordilheira dos
Andes como grandes centros de inovao9 na histria da ocupao humana no continente e
dali teriam difundido para outras reas, inclusive a bacia amaznica. (Neves 2006)
A partir da dcada de 1960, inicia-se na arqueologia uma nova abordagem, cunhada
de Nova Arqueologia ou Arqueologia Processual. A partir desta abordagem, a Arqueologia
procurava criar bases tericas e metodolgicas para assegurar o mesmo status das outras
cincias (Barreto 2010).
9 Por centro de inovao entende-se aqui os locais onde se desenvolveram inicialmente elementos tais como a
agricultura, a produo cermica e o Estado (Neves 2006:59)
29
Um dos principais precursores foi Lewis Robert Binford (1930-2011). Este acreditava
que a arqueologia devia ter os mesmos objetivos da Antropologia. Com o seu artigo
Archaeology as Anthropology, publicado na American Antiquity, Binford clama pela unio
das duas disciplinas e pelo embasamento das perspectivas arqueolgicas relacionadas s
interpretaes antropolgicas. Para apontar as possibilidades e responsabilidades que a
Arqueologia poderia representar, ele escreveu neste artigo:
Arqueologia deve aceitar uma maior responsabilidade no mbito dos objetivos da antropologia. At pela grande quantidade de dados que os arquelogos controlam que so utilizados na soluo de problemas relacionados com a evoluo cultural ou mudana sistmica, ns estamos no apenas deixando de contribuir para o mbito dos objetivos da antropologia, mas retardando a realizao destes objetivos. Ns, como arquelogos temos disponvel uma ampla gama de variabilidade e uma grande amostra de sistemas culturais. Etngrafos esto restritos aos pequenos e formalmente limitados sistemas culturais existentes. (Binford 1962:224, traduo minha)10.
Binford defendia que o mesmo objetivo tradicionalmente buscado pela
Antropologia: explicar o amplo espectro de semelhanas e diferenas no comportamento
cultural (Trigger 2004:287); tambm deveria ser o objetivo da Nova Arqueologia. Ele
acreditava que a Arqueologia deveria contribuir mais com a Antropologia no sentindo de
compreender a cultura dos povos que deixaram vestgios e reconstruir o comportamento
humano que os originaram. Para ele, a Arqueologia deveria buscar explicar as similaridades
e diferenas na atividade cultural humana, e por perodos de tempo ainda maiores do que os
etnlogos estudavam.
Nesta abordagem, a Arqueologia deveria ultrapassar os limites da abordagem
anterior que consistiam na tcnica de coleta, descrio e classificao tipolgica dos
artefatos, com o fim de estabelecer uma sequncia histrico-cultural, para se assumir como
10 Archaeology must accept a greater responsability in the furtherance of the aims of
anthropology. Until the tremendous quantities of data which the archaeologist controls are used in the solution of problems dealing with cultural evolution or systemic change, we are not only failing to contribute to the furtherance of the aims of anthropology but retarding the accomplishment of these aims. We as archaeologists have available a wide range of variability and a large sample of cultural systems. Ethnographers are restricted to the small and formally limited extant cultural systems(Binford 1962:224).
30
cincia responsvel em entender os processos de mudana cultural e na reconstituio do
sistema adaptativo das sociedades do passado (Trigger 2004).
Diferentemente da abordagem Histrico-Cultural, que parecia esquecer as pessoas
que produziam os objetos, os novos arquelogos deveriam utilizar os dados na perspectiva
de servirem para formular hipteses e generalizaes sobre o comportamento humano. A
verificao de hiptese e generalizaes daria uma dimenso mais cientfica Arqueologia,
assim como em outras cincias.
Nos anos de 1980 acirraram-se as crticas abordagem processual por
desconsiderar as transformaes prprias da sociedade e suas modificaes no tempo,
relegando o processo histrico ao segundo plano. O antievolucionismo, a necessidade de
compreender os propsitos das aes humanas, a individualizao dos grupos e a
contextualizao histrica foram os elementos que compuseram a base e os anseios da
abordagem arqueolgica que ento surgia nos anos 1980. Ian Hodder (1948-) o principal
precursor desta abordagem denominada de Contextual ou Ps-Processual.
Nesta abordagem, a Arqueologia tenta reencontrar a Histria, buscando entender
as sociedades estudadas numa perspectiva diacrnica e no somente sincrnica. As
sociedades preteridas so estudas arqueologicamente na tentativa de se compreender as
suas especificidades e no uma busca de leis padronizadoras. Esta aproximao com a
Histria e seus debates tericos se deu tardiamente. Segundo Ribeiro (2007), alguns
conceitos que foram adotados pela Arqueologia Processual foram formulados pela
historiografia dos anos 1940 e 1950 pela cole de lAnnales. A Arqueologia retoma debates
que a historiografia havia realizado com no mnimo 30 anos antes.
Uma das influncias da Nova Histria francesa, que aos poucos foi sendo
incorporada pela Arqueologia, consiste na compreenso que as interpretaes arqueolgicas
no podem ser frutos de uma neutralidade objetiva, ou seja, reconhecesse a subjetividade
do arquelogo como algo intrnseco a sua anlise, percebendo-se a si mesmo como sujeito
do seu tempo, com olhar e percepo historicamente condicionada e cuja interpretao se
altera por tais fatores.
31
Assim, a Antropologia, a Arqueologia e a Histria desde o sculo XIX, na busca pelo
reconhecimento enquanto cincias modernas foram reconstruindo suas bases tericas e o
fazer cientfico, ora se aproximando, ora se distanciando. Entretanto, assim como outras
cincias humanas, estas tambm contriburam para o processo de dominao e colonizao
do mundo no-ocidental, na construo da dicotomia Ocidente e o resto (Hall 1995),
ocidente/oriente (Said 2007).
A Antropologia, a Arqueologia e a Histria contriburam para edificao do
monoplio ocidental que foi imposto como o padro para o resto do mundo na
modernidade. Enrique Dussel analisa como o eurocentrismo da modernidade universalista
e faz uma representao em sete elementos:
1. A civilizao moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar inconscientemente uma posio eurocntrica). 2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, brbaros, rudes, como exigncia moral. 3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (, de fato, um desenvolvimento unilinear e europia o que determina, novamente de modo inconsciente, a falcia desenvolvimentista). 4. Como o brbaro se ope ao processo civilizador, a prxis moderna deve exercer em ltimo caso a violncia, se necessrio for, para destruir os obstculos dessa modernizao (a guerra justa colonial). 5. Esta dominao produz vtimas (de muitas e variadas maneiras), violncia que interpretada como um ato inevitvel, e com o sentido quase-ritual de sacrifcio; o heri civilizador reveste a[s] suas prprias vtimas da condio de serem holocaustos de um sacrifcio salvador (o ndio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruio ecolgica, etc.). 6. Para o moderno, o brbaro tem uma culpa (por opor-se ao processo civilizador) que permite Modernidade apresentar-se no apenas como inocente mas como emancipadora dessa culpa de suas prprias vtimas. 7. Por ltimo, e pelo carter civilizatrio da Modernidade, interpretam-se como inevitveis os sofrimentos ou sacrifcios (os custos) da modernizao dos outros povos atrasados (imaturos), das outras raas escravizveis, do outro sexo por ser frgil, etc. (Dussel 2005:29)
Aproximando desta anlise de Dussel, outros intelectuais americanos como
Cristbal Gnecco (2009) e Edgardo Lander ( 2005) apontam que no decorrer de sua histria,
a cincia realizada na Amrica no descolou totalmente de processos e aspectos polticos,
onde as estruturas de colonialidade nos seus meios de construir o conhecimento foram
constitudas por violncias epistmicas s outras formas de pensar. Neste sentido, a
Antropologia pode e tem contribudo para o rompimento desta lgica colonialista do saber
cientifico quando, atravs da especificidade de seus mtodos, dialoga e aponta outras
32
epistemologias do saber. A Antropologia desenvolve sua histria no dilogo com os saberes
dos outros e o saber cientfico sobre esses (Goldman 2006:163).
Para Santos (1994) o paradigma emergente da cincia ps-moderna deve apostar
num dilogo com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por eles. Para
Salzano (2009) j est mais que na hora da Antropologia romper com a segmentao.
Gnecco (2009) e Lander ( 2005) avanam na reflexo e apontam que o momento da cincia
romper com a colonialidade do saber.
No contexto brasileiro, debates e pesquisas direcionadas aos temas patrimnio,
memria e identidade inevitvel adentrar nas sinuosidades das relaes de fora e poder.
No que concerne a Arqueologia, Funari alerta para a capa da ilusria objetividade cientfica
e o poder arqueolgico:
Uma rgida hierarquia, no interior das instituies acadmicas, estabelece a legitimidade cientfica dos projetos de pesquisa. Da que os critrios poltico-ideolgicos por detrs de cada pesquisa, de cada ascenso ou estagnao acadmica, sejam sempre apresentados, pelos detentores do poder arqueolgico, como se fossem critrios totalmente objetivos, cientficos, comprovveis, portanto, exteriores ao domnio do conflito social, incontestveis (Funari 2006:107).
As relaes entre arquelogos e comunidades locais que moram em torno de stios
arqueolgicos tem resultado em reflexes acerca da responsabilidade social e tica da
profisso. O arquelogo Klaus Hilbert problematiza as relaes que se estabelecem entre as
comunidades locais, os arquelogos e os resultados dos programas de educao patrimonial:
Primeiro, os arquelogos procuram convencer as pessoas da importncia e dos inestimveis valores da cultura material arqueolgica que est na sua propriedade. Depois distribuem cartilhas em linguagens infantis, elaboram programas de educao patrimonial sem sentido para a comunidade local, at a ameaam com multas e priso em caso de desobedincia s leis, e depois, quando finalmente os moradores do stio arqueolgico do sinal de ter incorporado o discurso dos educadores patrimoniais, esses objetos to valiosos e importantes, so levados embora pelos arquelogos (Hilbert 2006:100).
Este processo descrito por Hilbert foi reproduzido em Monte Alegre com relao s
pinturas rupestres, com uma pequena, mas significativa particularidade, os paredes com
pinturas no puderam ser levados do local. O que no exime, na perspectiva de Funari
33
(2006), ao inevitvel posicionamento e comprometimento do arquelogo perante a
sociedade e tomada de conscincia de sua decorrente responsabilidade.
A regio das serras de Monte Alegre conhecida nacional e internacionalmente
pela presena de vrios painis com pinturas rupestres. Vrias pesquisas foram realizadas
atestando o valor destas para compor a histria da presena humana na Amaznia e na
Amrica (Hartt 1885, Roosevelt et al. 1996, Silveira, Pinheiro e Pinheiro s.d., Wallace [1848]
1979).
Entretanto, tanto arquelogos como profissionais das mais diversas formaes
foram registrando desde o sculo XIX aes depredativas, saques, pichaes nos
objetos arqueolgicos da rea (Andrade 2012, Consens 1989, Hartt 1871b, Pereira 2012b,
Silveira, Pinheiro e Pinheiro s.d.). A preocupao por parte de visitantes, autoridades e,
sobretudo pesquisadores com os danos e perdas que estas aes causavam aos stios das
serras de Monte Alegre contriburam para a criao de uma lei a qual instituiu a rea como
uma Unidade de Conservao na categoria de parque em 2001, o PEMA. As pinturas
rupestres foram legalmente reconhecidas como patrimnio arqueolgico.
O patrimnio arqueolgico ou herana arqueolgica, segundo Schaan (2009b: 109-
110) compem um conjunto de bens culturais produzidos pelos seres humanos e que so,
em determinado momento histrico, considerados como significativos, e cuja preservao e
proteo so reivindicadas, pelos menos por parte da sociedade, como relevante.
Os argumentos a favor da preservao e conservao do patrimnio apontam, na
maioria dos casos, para o distanciamento entre as comunidades locais e os objetos do
passado. Os especialistas acabam tendo a exclusividade da fruio com os objetos e os que
no esto nesse grupo so excludos. Seguindo Bezerra (Bezerra 2013), na retrica
patrimonial, as epistemologias das pessoas do lugar so aniquiladas pelo discurso da
cincia, ao ponto de ser impossibilitada a percepo sensorial como o toque. As pinturas
rupestres que sempre fizeram parte do universo de percepo das pessoas do entorno das
serras no podem mais serem tocadas por eles.
Entretanto, mesmo diante da lei patrimonializando a rea, aes vistas como
danosas s pinturas ainda continuam. Em vista deste problema, surge uma questo que
34
merece reflexo. Por que pessoas danificam as pinturas que so um bem de todos? Para
responder preciso adentrar e conhecer as dimenses que o patrimnio arqueolgico
assume no cotidiano de diferentes grupos sociais, entender como se define patrimnio e
problematizar a relao de poder que se estabelece por quem usufrui e define o que deve
ser preservado do passado.
Na Arqueologia considerada ps-processualista, posturas hermenuticas
possibilitam compreender a insero do processo de produo de conhecimento
arqueolgico em um contexto social e histrico (Trigger 2004). Nesta perspectiva, emitir
assertivas, fazer uso e atribuir significado aos objetos do passado no uma prerrogativa
apenas de arquelogos (Silva 2002). Pessoas que moram prximas s pinturas rupestres das
serras de Monte Alegre tiveram, antes da lei do PEMA, e ainda tem relaes afetivas,
econmicas e de lazer que no podem ser descartadas no fazer de um conhecimento
coletivo e participativo. O desafio que se prope estabelecer relaes mais simtricas e
dialgicas entre arquelogos e os diversos agentes sociais envolvidos no processo de
construo do conhecimento sobre o passado (Moraes 2012).
A Arqueologia Pblica tm proporcionado reflexes epistmicas e discusses ticas
sobre o fazer da cincia arqueolgica. Esta perspectiva do fazer Arqueologia conceituada
pela arqueloga Marcia Bezerra como uma:
Vertente da Arqueologia preocupada em compreender as relaes entre distintas comunidades e o patrimnio arqueolgico, considerando o impacto do discurso acadmico em sua viso de mundo, o lugar de suas narrativas na construo do passado e a gesto comunitria dos bens arqueolgicos (...), a Arqueologia Pblica , ao mesmo tempo, produto e vetor de reflexes acadmicas, de aes polticas e de estratgias de
gesto (Bezerra 2011b: 62).
Com esta perspectiva de ao poltica e social que pretendo dialogar com as
narrativas dos moradores do entorno das serras onde esto as pinturas rupestres de Monte
Alegre, onde a prtica arqueolgica pode no apenas reconhecer o outro, mas a sua
participao em todo o processo de construo do conhecimento, assim como o
gerenciamento comunitrio do patrimnio arqueolgico.
Na busca do reconhecimento do outro, a adoo do mtodo etnogrfico no
mbito de pesquisas arqueolgicas possibilita condies para uma cincia preocupada em
35
descolonizar sua prtica, considerando os usos sociais e polticos do passado, tal como na
Arqueologia Pblica. Para Santos (1988), a Antropologia atravs de seu mtodo contribuiu
para problematizar o status quo metodolgico das cincias sociais e a noo de distancia em
que estas se assentavam. Logo outras cincias fariam uso da observao participante
(Malinowski 1978) para estudar o outro. Entretanto, o mtier do fazer etnogrfico (Cardoso
de Oliveira 2006) tambm foi sendo reconfigurado. Clifford Geertz a partir de 1980 proclama
com uma pretensa originalidade11 a ideia de que agora somos todos nativos, podendo o
outro estar alm-mar ou no fim do corredor (Geertz 2012: 154).
Nesse sentido, a presente pesquisa foi baseada nos pressupostos de abordagem da
arqueologia pblica e etnogrfica (Bezerra 2003, Castaeda 2008, Pyburn 2009) tendo como
objetivo compreender as relaes e significaes atribudas ao patrimnio na
contemporaneidade, e em especfico, analis-las conforme o contexto de rea
patrimonializada e as relaes que implicam com as populaes que moram prximas aos
stios. (Peirano 1997)
Nessa conjuntura de pesquisa estiveram em inter-relao interesses de distintos
agentes sociais e governamentais, num local que se tornou objeto de uma poltica pblica de
patrimonializao. A rea das serras foi demarcada como domnio e controle da SEMA num
processo de formao de patrimnio (Gonalves 2003). Segundo Maria Fonseca (2003) a
concepo de patrimnio precisa ser ampliada para alm da pedra e cal que quase sempre
resulta no tombamento de bens que referem os grupos identificados com a classe
dominante (Choay 2001).
Nesta perspectiva, a categoria de patrimnio foi vista para alm de uma poltica de
governo que privilegia qualidade como a da monumentalidade, seguindo a admoestao de
Marcel Mauss que recomenda:
antes de tudo, [ necessrio] formar o maior catlogo possvel de categorias; preciso partir de todas aquelas das quais possvel saber que os homens se serviram. Ver-se- ento que ainda existem muitas luas mortas, ou plidas, ou obscuras no firmamento da razo (Mauss 1974:205).
11
Peirano (1997) aponta que Malinowski em 1939 atribui valor a monografia sobre os camponeses chineses do seu orientando chins, Hsiao-Tung. Malinowski escreveu sobre o trabalho: It is the result of work done by a native among natives. ( o resultado do trabalho feito por um nativo entre os nativos - traduo minha) (Malinowski 1939 apud Peirano 1997, 72).
36
A Antropologia contribui de forma original na construo e no entendimento da
categoria patrimnio, pois consiste na ambiguidade da noo de cultura, permanentemente
exposta s mais diversas concepes do nativo. Neste sentido, na pesquisa busquei seguir o
antroplogo Jos Reginaldo Gonalves que aponta o patrimnio como categoria de
pensamento que vem a ser pensada etnograficamente, tomando-se como referncia o
ponto de vista do outro (Gonalves 2003: 28).
Marta Anico caracteriza a ps-modernidade como um perodo de transio e de
transformao social, onde a crescente patrimonializao de elementos das culturas locais
contribuiu para o alargamento do campo patrimonial que passa a integrar no s o
patrimnio associado a prticas culturais elitistas, mas tambm um patrimnio cotidiano,
material ou intangvel, relacionado com as memrias e as histrias orais, abrindo assim
caminho integrao de um vasto conjunto de bens culturais na categoria de patrimnio,
fruto de uma crescente elasticidade conceitual, mas tambm temporal (Anico 2005: 80).
As semnticas, usos e a importncia do patrimnio se reconfiguram a partir de
lgicas nativas da cultura. De modo que as mltiplas dimenses do patrimnio perpassam
por novos usos e sentidos que ele assume sob o prisma de determinada cultura. A relao
com os objetos que representam o passado tambm refeita a partir da multiplicidade de
variveis que participam nos processos de apropriao, interpretao e de construo de
significados culturais.
Neste processo, o patrimnio como conservao nostlgica e autntica do passado
passa a representar os modos de ver e compreender o mundo dos grupos sociais ao passo
que as polticas patrimoniais se orientaram no sentido da incorporao de elementos
culturalmente representativos. O passado construdo pelo presente, configurando-se como
parte integrante de uma cultura contempornea. Para Anico, so as condies do presente
que lhe conferem sentido e um significado, significado esse que pode ser construdo e
negociado por diversos atores sociais, cujas relaes de poder nem sempre so simtricas
(2005: 77).
O interesse cultural em torno do passado encontra condies e possibilidades
quando este ainda est no presente e permite tambm vislumbrar aes futuras. Alm disso,
a memria tem o trabalho de reconstruir o acontecimento vivido (Bosi 1994, Halbwachs
2003), atribuindo significados constitudos atravs da experincia cotidiana das pessoas.
37
Segundo Rodrigues, a memria por ser entendida como processos sociais e histricos, de
expresses, de narrativas de acontecimentos marcantes de coisas vividas, que legitimam,
reforam e reproduzem a identidade do grupo (Rodrigues 2012).
Na pesquisa utilizo a categoria de patrimnio, contextualizado etnograficamente a
partir das relaes de identidade e memria. Segundo Halbwachs (2003), a identidade
reflete todo o investimento que um grupo faz, ao longo do tempo, na construo da
memria. Portanto, a memria coletiva est na base da construo da identidade. Esta
refora o sentimento de pertena identitria e, de certa forma, garante coeso e
continuidade histrica do grupo.
Entender os significados e usos que os moradores do entorno das serras de Monte
Alegre atribuem as pinturas rupestres perpassa por reflexes sobre os dilogos que se
estabelece entre as categorias de patrimnio, memria e identidade. O que os relatos
histricos permitem perceber das interpretaes dos moradores do lugar a partir do sculo
XIX? O que hoje ainda faz parte da memria coletiva? Que dimenses o patrimnio
apresenta no processo de criao do PEMA? Como a arqueolgica pode contribuir para uma
vivncia menos assimtrica entre pesquisador e comunidades locais?
Portanto, o patrimnio como categoria de pensamento, contextualizado
etnograficamente, permite entender como as pessoas interagem entre si e com os objetos e
lugares, quando se considera efetivamente o lugar do outro no processo de
descolonizao do passado e da arqueologia (Bezerra 2011b, 2012, Bezerra 2013, Castaeda
2008, Pyburn 2009). Assim, busquei abordar discusses que inserem tanto no campo da
antropologia, quanto da arqueologia e da histria, os significados que o patrimnio pode
assumir na cultura de um povo.
Para construir as duas trilhas dos captulos seguintes, a pesquisa foi feita em
documentao histrica com anlise antropolgica, observando uma prtica que tem se
manifestado comum entre diversos antroplogos e historiadores. Nesse sentido, bastante
inspiradora a atitude de Manuela Carneiro da Cunha (1986: 08), analisando
antropologicamente material histrico, ou seja, incluindo o implcito, o no-dito, o simblico,
no pensamento poltico e na estrutura social do Brasil de sculos passado. Na leitura dos
documentos, procurei visibilizar as impresses dos viajantes e cientistas sobre as pinturas
rupestres, tal como fazem os antroplogos com as informaes produzidas no trabalho de
38
campo. Ao longo das vrias leituras procurei relaes entre as interpretaes dos viajantes,
arquelogos e populao local. Em alguns casos o resultado foi bastante satisfatrio, como
no cruzamento do percurso da Hartt no sculo XIX e os locais onde a arqueloga Anna
Roosevelt fez suas pesquisas no final do sculo XX.
Na ltima trilha analisarei os resultados da experincia etnogrfica que foram
adquiridos atravs da observao participante, dos registros em dirio de campo e
entrevistas. Uma descrio mais detalhada dos procedimentos metodolgicos ser realizada
no incio da trilha. Agora renove o flego, pois vamos continuar a caminhada pelas trilhas
dos relatos dos viajantes.
39
CAPTULO 2 Trilhas e Vozes de Viajantes
Todo visitante cuidadoso, ao iniciar uma trilha a um lugar desconhecido procura
obter informaes antes de comear a viagem. Hoje com a internet, ficou mais fcil buscar
mapas e roteiros tursticos. comum tambm procurar sugestes e dicas com pessoas que
j visitaram o lugar. Entretanto, imagine como deveria ser difcil e ao mesmo tempo
desafiador para um estrangeiro, geralmente europeu, deixar o seu lar e familiares para
realizar uma viagem na Amaznia do sculo XIX. Nesta trilha, seguiremos os rastros deixados
por alguns naturalistas que registraram as pinturas rupestres e as percepes das pessoas de
Monte Alegre.
No sculo XV, a expanso europeia, que partiu fundamentalmente da Pennsula
Ibrica, inicia uma nova etapa da histria da humanidade, mas tambm a conquista dos
grandes descobrimentos cientficos, com os avanos tecnolgicos e as transformaes que
acarretaram. A busca por novas rotas e territrios desconhecidos foi impulsionada por
lendas, riquezas e a propagao do catolicismo como f universal (Pizarro 2012).
Contudo, o perodo histrico iniciado em fins do sculo XVIII e que percorre todo o
sculo XIX reveste-se de caractersticas totalmente distintas daquelas que povoaram as
representaes dos viajantes, marinheiros e cronistas do sculo XVI. As narrativas
fantsticas, vigentes no perodo anterior, do lugar a uma espcie de racionalidade que leva
s ltimas consequncias a dominao cega do homem sobre a natureza e sobre os outros
homens.
A cincia era a forma suprema do conhecimento para os filsofos, porque parecia criar verdades seguras, baseadas na observao e no experimento. Sua confiana no mtodo cientfico era tanto, que acreditavam ser a prpria fora do iluminismo e do progresso; em princpio, no havia nenhum mbito da vida ao qual no pudesse se aplicar. Eles pensavam que este homem novo, que estava sendo criado pelo mtodo cientfico, era um ser que entendia e, consequentemente, dirigia a natureza(Hamilton 1995:27, traduo minha)12.
A referncia cultural dos viajantes estrangeiros passa a ser a de um tempo que se
convencionou chamar de modernidade, envolvendo amplas transformaes no plano da 12 Science was the supreme form of knowledge for the philosophes because it seemed to create secure truths based on observation and experiment. Their confidence in scientific method was such that they believed it was a force for enlightenment and progress: there was in principle no domain of life to which it could not be applied. They believed that a new man was being created by this scientific method, one who understands, and by his understanding masters nature (Hamilton:1995, 27).
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sociedade e da cultura (Barreiro 2002). Deste modo, a ideia de Ocidente foi se
consolidando como mais do que uma designao geogrfica, foi se transformando num
conceito de poder frente ao Outro, no-ocidental, o brbaro, como aquele que no se
enquadrava ao padro homogeneizador de europeu (Hall 1995).
Nas primeiras dcadas do sculo XIX, o panorama poltico brasileiro decorrente do
processo de descolonizao, do rompimento administrativo com a coroa portuguesa e da
formao do Estado Nacional, corroborou para uma espcie de redescoberta do Brasil pelos
viajantes. Durante este sculo, esse movimento intensificado e todas as ento provncias
brasileiras so visitadas. Por onde passavam produziam-se relatos minuciosos sobre
mltiplos aspectos da vida social do pas (Barreiro 2002:8)
A regio amaznica tambm se constituiu um roteiro muito procurado pelos
viajantes neste perodo em virtude dos atrativos da sua biodiversidade, bem como pelas
especificidades do modo de viver do povo amaznida. Algum tempo antes, nos dois
primeiros sculos da conquista europeia, criaram-se narrativas fantsticas sobre o universo
amaznico como o lugar do paraso perdido, habitado por ndias guerreiras, as lendrias
Amazonas, da mitologia grega, ou o lugar do eldorado, a cidade encantada feita de ouro
(Ugarte 2003).
Estas e outras narrativas compuseram o imaginrio ocidental povoado por vises
estigmatizadas sobre os povos amaznicos e seu modo de vida na floresta tropical. Estas
narrativas foram disseminadas pelos conquistadores no sculo XVI fascinando reis e plebeus
na Europa ibrica, mas ainda hoje ecoam no espao amaznico, e at pouco tempo foi
reforado por uma produo cientfica neo-evolucionista sobre o desenvolvimento cultural
na regio (Heckenberger 2006).
Quem so esses viajantes, naturalistas e cientistas que percorreram a regio
amaznica entre os sculos XVIII e XIX? Estes homens eram das mais diferentes
nacionalidades e tinham distintas formaes acadmicas. Seu olhar sobre o Novo Mundo era
de pessoas que falavam a partir do mundo europeu. A Europa era o padro de civilizao,
cincia e progresso a ser seguido. Eram homens filhos da modernidade e da racionalidade
cientfica que definia de imediato seu paradigma de superioridade: a superioridade da
civilizao, da racionalidade (Pizarro 2012).
41
O discurso do viajante cientista sobre a Amaznia condiciona a identidade que a
define como um imenso tesouro a ser explorado, onde seus habitantes indgenas so vistos
como incapazes de faz-lo. O naturalista se constitui como um sujeito privilegiado da
modernidade, efetivando a produo do conhecimento, que naquele contexto era sinnimo
de cosmopolitismo. Estes homens de cincia, salvo quando enviados como agentes
governamentais, segundo Margarita Pierini, se consideravam quase que eleitos, dotados
de uma misso que ultrapassa os domnios utilitrios, possudos pelo esprito do progresso
que se encarna neles para o bem da humanidade (1994:165).
Neste contexto, a produo de conhecimento implica, de qualquer modo, formas
de transferncias de poder para o centro. Atravs dos viajantes, as potncias colocavam em
funcionamento suas estratgias para conquistar um lugar proeminente na geopoltica do
conhecimento, na expresso de Walter Mignolo (2003). Por isso, alguns naturalistas
tiveram suas viagens financiadas e/ou autorizadas por governos e instituies de pesquisa,
outros viajavam com recursos prprios e com o dinheiro que adquiriam com a venda das
colees coletadas enviadas a Europa ainda em campo.
Quase trs sculos depois do primeiro contato com os europeus, a regio
amaznica, e nela o povo de Monte Alegre e as pinturas rupestres foram objetos de registro
por alguns desses viajantes. As serras, onde podem ser encontradas as pinturas rupestres,
foram objeto de visitao de viajantes, religiosos, cronistas e naturalistas.
Este segundo captulo tem como objetivo principal proporcionar ao leitor uma
apresentao de um cenrio que historicamente foi tecido e se constitui de mudanas e
permanncias, a fim de possibilitar a configurao histrica das narrativas desses viajantes,
encontradas em documentao onde so descritas as pessoas e as pinturas rupestres da
regio de Monte Alegre e, em especial, do lugar onde realizei minha pesquisa, a vila do
Erer. O olhar estrangeiro evidenciou elementos da cultura das pessoas da poca assim
como suas prprias impresses sobre as pinturas rupestres e das pessoas do lugar na poca.
Comecemos ento, esta empreitada antropolgica e pessoal pelo primeiro viajante a fazer
referncia s pinturas rupestres que encontrei documentao histrica.
O ingls Alfred Russel Wallace, em 1848, escreveu sobre as pinturas rupestres no
livro Viagem pelos rios Amazonas e Negro. Mas o que o tornou famoso foram seus escritos
sobre a ideia da evoluo dos seres vivos pela seleo natural, que foram apresentados em
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conjunto com as ideias de Charles Darwin, em uma comunicao sobre a origem das
espcies, em 1 de julho de 1858, na Linnean Society, na Inglaterra (Ferri 1979, Lima
2013)13.
Aos vinte e cincos anos, o jovem Wallace decide iniciar sua carreira de viajante
naturalista pela Amaznia. O ressarcimento das despesas com a viagem foi realizado atravs
da venda das colees coletadas. No entanto, o objetivo de Wallace extrapolava o interesse
de obter vantagem econmica com a comercializao de espcies raras da fauna e flora da
floreta tropical no lucrativo mercado de colecionadores de Londres, mas um objetivo mais
relevante era buscar a chave de interpretao para a origem da vida orgnica na terra
(Lima 2011:4).
A escolha de Wallace pela Amaznia foi feita mediante alguns fatores. Dentre estes
se destacam: Os laos comerciais estabelecidos entre Portugal e a Inglaterra (Basile 1990)14;
e as leituras da literatura de viajantes precursores, como o naturalista Alexander Von
Humboldt (1769-1869) que no havia conseguido explorar o rio Amazonas, mas, sobretudo
os escritos de William H. Edwards (Edwards 1847). Este ltimo indicou as principais
qualidades que um viajante poderia encontrar na Amaznia: o fcil acesso, o clima
saudvel, a hospitalidade que possibilitava a economia de recursos e por ser uma regio
que no havia sido amplamente coletada (Lima 2013). Wallace viu na Amaznia o meio de
ganhar a vida com a coleta de objetos de histria natural.
A viagem de Liverpool at a ento vila de Salinas foram vinte noves dias,
desembarcando numa manh de maio de 1848. Nesta viagem, Wallace foi acompanhado
pelo ontomlogo, tambm ingls, Henry W. Bates15. Entretanto, ao chegar ao Par, algumas
das viagens exploratrias ao interior da Provncia foram realizadas separadamente. Em 1850
os dois se separaram em definitivo16: Bates seguiu pelo Solimes enquanto Wallace viajou
pelo alto rio Negro e do Uaups (Ferri 1979:10). Antes disso, a partir de junho de 1849,
chegou ao Par o irmo mais novo de Wallace, Herbert, para ajud-lo no trabalho de coleta.
13
O ensaio de Wallace sobre a sobrevivncia dos mais aptos e o sumrio das ideias de Darwin de 1842 foi apresentado como um trabalho conjunto na referida Sociedade (Ferri 1979). 14
O prncipe regente D. Joo por conta de reformas econmicas e administrativas admitiu a vinda de estrangeiros mais livremente com a abertura dos portos brasileiros em 1811, inclusive concedendo licena para participar da explorao de minerais. 15
Bates era dois anos mais jovem que Wallace e permaneceu por quase onze anos coletando material zoolgico e botnico na Amaznia, ele retornou para Inglaterra em 1859. 16
Alguns dos provveis motivos da separao so apontados por Lima (2013).
43
Para Monte Alegre, Wallace foi acompanhado de seu irmo (Bates [1863]
1944:365). Wallace faz uma descrio detalhada de tudo o que observava e despertava
interesse e/ou estranhamento. Ele relata as dificuldades e as condies desconfortantes do
transporte em barcos e canoas que singravam a Amaznia naquele perodo. No havia um
servio regular para passageiros e nem o advento do vapor (Loureiro 2007)17. Reclama do
mau cheiro do poro, os buracos no convs e a falta de amurada18 (Wallace [1848] 1979:91).
A multiplicidade de canais, a vazante da mar, encalhamento, as tempestades e a falta de
vento levam esse ingls a registrar e a admitir o saber e o domnio dos moradores da regio
e a sua prtica da espia19.
Aliado a essas dificuldades, ele registra o uso de bebidas embriagantes pelos
indgenas que o acompanhavam e uma rede de comrcio e locais de troca que pontilhavam
as margens do rio entre casas, povoados e vilas durante todo o percurso da ento Cidade do
Par, como ele chamava Belm, at Santarm20. Wallace precisou estabelecer relaes de
amizade, negociaes com os nativos e integrar-se s estruturas materiais e coletivas do
mundo que pretendia explorar (Lima 2013:73). A viagem iniciou nos primeiros dias de
agosto de 1848.
Naquele tempo, foram necessrios 28 dias para completar este percurso que, hoje,
por via area, pode ser realizado em
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