A Saga de Mitrax
Parte do Mundo
Autor:
Sérgio Roberto de Paulo
m belo dia, lá pelo distante ano de 1082 da Era dos
Grandes Reis e Rainhas, quando o mago Aldebaran estava examinando uns papéis em
seu escritório, algo mais ou menos inusitado aconteceu. Inusitado, mas muito bem parte
do cotidiano, pois ele foi interrompido por um som que vinha da porta. Praticamente
sem se mexer, ergueu apenas os olhos, que se destacaram por cima do pergaminho que
segurava nas mãos.
O som provinha da maçaneta, que tinha formato alongado e parecia uma
pena. Ela parecia tremer, baixando e subindo periodicamente. Tal inusitado movimento
veio acompanhado de um baque surdo, do outro lado da porta. O mago não pode deixar
de sorrir, pois sabia exatamente a origem daquilo: certamente um ser de não elevada
estatura tentava abrir a porta. Portanto, Aldebaran se preparou para enfrentar a criatura
que irromperia recinto adentro dali a alguns segundos.
E, é claro, foi o que aconteceu. A porta se abriu num solavanco e tudo o que
ele pode observar, do referencial em que estava, foi alguns cachinhos castanhos vindo
em sua direção. Logo depois, duas mãozinhas apareceram na borda da mesa e, depois
ainda, dois olhinhos castanhos.
-Aldebaran, me conta uma história! – disse a menininha.
O mago baixou sutilmente o pergaminho e respondeu, suavemente:
-Agora estou ocupado, jovem princesa.
-Uma só! – insistiu ela.
Mas aqueles papéis eram muito importantes. Tratava-se de relatórios sobre os
avanços do inimigo. Teria que estudá-los com urgência.
-Talvez mais tarde, sim?
Constatando que o mago não cederia, a menininha sumiu por trás da mesa,
deu meia volta e, cabisbaixa, caminhou lentamente em direção à porta. Muito
lentamente. O mago deu um suspiro, olhando para o teto. Bem, já estava dormindo
apenas três horas por dia, poderia dormir duas esta noite.
-Uma só, estás me ouvindo?
Imediatamente, a menina se transfigurou. Saiu correndo e, de um salto, subiu
numa poltrona que havia ali. Os dez segundos seguintes foram dedicados a se ajeitar.
Primeiro, ela se acomodou na beira frontal do móvel, ficando com as pernas a balançar.
Depois, aquela posição não lhe pareceu boa o suficiente, então foi se achegando para
trás. Depois arrumou o vestido e estirou os braços. E os braços da poltrona eram muito
distantes, assim, ela apenas repousou a ponta dos dedos sobre eles. Finalmente, ela se
recostou, mas, como o encosto do móvel também era distante, ficou praticamente
deitada.
Abandonando o pergaminho sobre a mesa e se voltando a ela, o mago sorriu,
e iniciou a história:
“Era uma vez, um reino muito, muito distante. Lá, havia uma mendiga.”
-Uma mendiga! – repetiu a princesinha, animada.
“Ela vivia na capital, uma cidade de enormes proporções. Andava ela pelas
ruas, mendigando. Passava pelas casas, que poderiam ser feitas de pedra, ou de madeira,
ou mesmo de palha, isso não importa.”
-Isso não importa! – tornou a repetir ela.
“Sim, jovem princesa. E, enrolada em um manto, para se proteger do frio da
madrugada, ela arrastava os seus pés sobre as ruas e vias, que poderiam ser calçadas ou
não, o que também não importa.”
-Isso também não importa!
“Por ela passava toda uma multidão. Pessoas dos mais variados tipos. Ricos e
pobres. Altivos ou cabisbaixos. Seus nomes também não contavam. Por ela passavam as
mais vistosas carruagens. Ou poderiam ser cavalos levando soldados em armadura, ou
mesmo veículos feitos de aço, mágicos, que andavam por si mesmos, mas isso ainda
não importava. No céu poderia haver estrelas impassíveis, dragões, ou mesmo balões
voadores. Mas o que isso importava?”
-O que isso importava? – indagou ela, refletindo sobre a história, com um
sorriso nos lábios e olhos bem abertos.
“E as roupas que as pessoas vestiam, pequena princesa, iam desde
magníficos mantos de veludo adornados com ouro a trapos que se desfaziam. Ou
mesmo poderiam se vestir com peles de animais ou, ainda, de cetim esvoaçante, caso
fizesse calor. Mas sendo quente ou frio, o que importava?
Aqueles transeuntes poderiam estar ali, apressados ou passeantes, pelos mais
diferentes motivos: ou poderiam estar atrasados para um evento importante, ou
poderiam estar a fazer compras, ou até perdidos nas sendas do destino. Mas, pequena
Jara Anaor, o que eles faziam ali também não importava.
Pelas ruas as quais a mendiga passava poderiam conter tendas de vendedores,
pois a cidade poderia ser um centro mercadológico, ou mesmo um cais infestado de
piratas mal cheirosos, que não escovam os dentes, ou um desses locais em que as
mulheres somente podem deixar os olhos à mostra, ou ainda uma metrópole
desenvolvida, sustentada por anjos, onde trafegam milhares de homens mecânicos,
impulsionados pela força do vapor. Mas mesmo isso, cara princesa...”
-Não importava! – exclamou ela, completando a frase do mago.
-Isso mesmo! – concordou ele.
-E o que importava, Aldebaran? – perguntou a princesa, com uma vozinha
fina de criança.
“Bem, o que importava era como as pessoas se portavam diante dela. E o
primeiro foi um soldado”.
-Um soldado! – exclamou ela, admirada.
“Sim, pequena Jara, um soldado. Ele poderia estar usando uma armadura de
prata, ser um lanceiro. Ou então uma jaqueta de couro e uma velha espada na bainha.
Mas talvez ele fosse um ágil arqueiro, que estivesse metido em apenas roupas leves.
É claro que, sendo ela uma mendiga, mendigou. Estendeu suas mãos sujas, de
onde se entrevinha unhas escuras, com as palmas voltadas para o céu, e disse:
-Procuro uma alma de bom coração.
O soldado poderia tê-la encarado com um olhar piedoso, ou mesmo lhe dado
uma moeda, mas, ao invés disso, foi apenas rude e disse:
-Sai da minha frente, mendiga!
E disse isso sem sequer tê-la visto direito, sem olhar para o seu rosto, sua
expressão, seu possível sofrimento, sua deveras magnanimidade ou seu desalento. Mas
ela, a mendiga, aquela pobre mulher que vagava por aquelas paragens, longe de sentir
mágoa ou ira, viu que o soldado portava um colar. Do que era feito esse objeto não
importava, mas, na sua extremidade havia um pequeno objeto oval. O que era jamais
poderia ser sabido ao certo, mas era possível que fosse um daqueles compartimentos
onde uma imagem se coloca dentro. Que imagem seria aquela também não é possível se
dizer, mas ela poderia ser o retrato de uma pessoa amada, não poderia?”
-Sim, poderia! – respondeu a princesa, animadamente.
“Tens razão, princesa. Poderia. E a mendiga percebeu isso. E, a julgar pela
rudez do soldado, existe a possibilidade de que a amargura o corroesse por dentro. A
amargura proveniente de uma dor profunda, advinda da perda de um ente amado. O que
achas, querida Jara, não poderia?”
-Sim, poderia! – exclamou ela, exibindo seus olhos vivos.
“Sim, poderia. E a mendiga viu essa possibilidade. Assim, deixou que o
soldado se fosse, sem que se sentisse infeliz ou humilhada, apenas o abençoando. E
continuou o seu caminho. Foi andando pisando um chão de mármore, ou de terra batida
ou simplesmente areia. Até que encontrou o homem de negócios. Ele poderia ser um
rico mercador, usando turbante e uma túnica de fino tecido, ou mesmo um afamado
homem de outro mundo, portando vestes jamais vistas, algo que se amarrasse no
pescoço e descesse ao longo do peito. Poderia usar óculos ou não. Poderia ter a pele
clara ou escura. Poderia falar a mais complicada das línguas ou, sem estudo, quase não
falar direito. Mas o fato é que era um homem ocupadíssimo, preocupadíssimo,
importantíssimo. Naturalmente, a mendiga lhe dirigiu as mesmas palavras:
-Procuro uma alma de bom coração.
Mas o homem a mirou de cima a baixo, examinando-a por um breve instante,
considerando-a sem importância. Depois se foi, sem nada dizer ou fazer. Mas ela
compreendeu, apenas pelo seu jeito de ser, que – de tão importante que se tinha – é
claro que ela não lhe faria diferença. Entendeu também que não era por simples
maldade, mas pelos milhões de grilhões que o dinheiro nos trás.
O terceiro que ela encontrou foi outro mendigo. Mas ela nada pode falar, pois
ele tratou logo de expulsá-la de onde estava. Mas a nossa heroína viu nos seus olhos o
amargor do abandono, e o medo de que ela pudesse lhe tirar o pouco que obtinha. Já o
quarto, Jara Anaor, foi um trabalhador comum. Ele até lhe ouviu e pensou por alguns
segundos, mas, com temor nos olhos, também se foi sem nada dizer. E ela viu no seu
semblante que o dinheiro que tinha possivelmente seria para comprar o pão para a sua
família.”
-Possivelmente! – repetiu ela.
“E assim, princesa, a mendiga continuou a vagar pelas ruas, ao longo de dias
e dias, abordando pessoa a pessoa, e vendo o que havia nas suas mentes e corações.
Pouco ganhava, às vezes, uma moeda, atirada com desdém. Mas, longe de ficar
desesperançosa e amarga, aquela mendiga em especial sentiu pena de todos os
transeuntes, pois viu que, no fundo, eram solitários, sem fazerem parte do mundo.
Mas, um dia, pequena princesa, aconteceu algo realmente digno de nota. Ela
encontrou um menino, e, ao dizer aquelas palavras mágicas para ele, ele não lhe atirou
moedas e jóias. Antes, ele abriu um sorriso sincero, pois nada tinha que dar. Ela viu
então que, ali, somente poderia encontrar uma única alma e viu que finalmente estava
diante do que procurava. Assim, ela se revelou. Descobriu-se do manto e se mostrou em
sua plenitude. Pois aquela, na verdade, não era uma mendiga, mas uma poderosa rainha
à procura de uma alma de coração.”
-Uma poderosa rainha! – admirou-se a menina, com os olhos arregalados.
-E é por isso, jovem princesa, que não deves destratar quem quer que seja... –
continuou o mago. Em seguida, ele aproximou o rosto da menina e comprimiu um único
olho, como costumava fazer, e completou: - Nunca se sabe quando são reis ou rainhas
disfarçados!
Depois, Aldebaran limitou-se a sorrir, embebido em alguns segundos de
silêncio.
-Acabou? – perguntou a princesinha, parcialmente feliz por alguém
finalmente ter lhe contado uma história, mas um tanto triste por esta ter acabado.
-Sim, acabou – respondeu o mago, ainda a sorrir e usando um tom próprio
para as crianças. – Contudo, como é de costume, não posso deixar de contar uma
história sem que isso termine num enigma.
-Um enigma! – exclamou a menina, dando um pulo na poltrona e batendo
palminhas. Jara Anaor adorava enigmas. – Qual?
-Bem – disse o mago, coçando o queixo, como se cofiasse um cavanhaque
que ali não existia, - viste a mendiga falar com muitos personagens, passar por muitos
lugares, o que nos dá muitas pistas, mas... – então ele aproximou o rosto da princesa e,
novamente, comprimindo levemente apenas um dos olhos, completou: - Qual era a cor
do manto da mendiga?
-A cor do manto? – repetiu ela, com um misto de espanto pela pergunta e
excitação diante do desafio.
-Sim, precisamente. O enigma é descobrires a cor do manto da mendiga que
na verdade era uma poderosa rainha disfarçada. E, se o conseguires, haverá uma
recompensa!
-Uma recompensa? – indagou, animada.
-Sim, uma recompensa. Lembras-te daqueles biscoitos que Gui nos trouxe?
Bem, ainda há alguns deles numa caixa muito bem guardada. Pois se me descobrires
corretamente a resposta ao enigma, então poderás ficar com a caixa!
-Huuuummm! – exclamou ela, lambendo os beiços.
-Pois sabes a resposta agora? – indagando o mago, com um ar de desafio.
-Agora? – retrucou ela, indecisa e pensando. – Agora não!
-Pois então passa a pensar e, quando tiveres a resposta, vem buscar os
biscoitos!
A menina continuou a pensar. Olhou para um lado e para o outro, com o
canto dos olhos. Depois disse:
-Posso ir agora?
-Mas é claro! – exclamou o mago, achando graça da menina.
De um pulo, ela desceu da poltrona, saindo como um raio da sala. Empolgada
pelo mistério do enigma, passou a correr por todo o castelo. Subiu os três lances de
escada que a separavam do nível dos jardins, pois sabia que lá a encontraria. E, de fato,
quando saiu ao ar livre, deparou-se com ela. Sua mãe, a rainha, estava de joelhos no
chão. Não que orasse ou coisa parecida, mas se ajoelhava diante de uma roseira,
podando-a e retirando as flores que se foram. Jara, a princesa, se debruçou como pode
sobre o parapeito vazado que ali havia, colocando-se na ponta dos pés. Mas fez mais:
depositou os cotovelos sobre os mesmos e escorou a cabeça nas palmas das mãos,
ficando pendurada na amurada de pedra. Suspirou, pois pensava na rainha. Ela bem que
poderia ter sido aquela mendiga. Assim, ficou a sonhar.
A rainha, agora não estava sorrindo. Antes, parecia preocupada com alguma
coisa, pois nem a percebeu. Justo ela que Jara desconfiava ter olhos na nuca. E ficou um
longo tempo a observá-la, enquanto ela cuidava das flores. Até que teve uma idéia. Um
sacolejo tomou conta da sua cacholinha. Ela sorriu, excitada, e saiu correndo
novamente. Novamente entrou no castelo e foi atravessando corredores, salões e
passarelas. Foi passando pelas mais diferentes pessoas, altas, baixas, gordas e magras.
Alguns tinham a pele escura, outros, clara como a neve. Alguns sorriam, outros
ralhavam. Alguns estavam sujos devido ao trabalho, outros limpos como gatos.
E Jara Anaor, a princesa, passou pela Tia Fifi, que espirrava ao varrer o chão,
passou pelos três filhotes de troll, que brincavam com a sua irmãzinha, que novamente
fugira do berço. Através da torre onde estava o seu quarto, viu o grande dragão
vermelho do seu pai, rasgando o céu suavemente. Mas, continuou a correr sem parar,
pois enquanto o fazia, rememorava a história de Aldebaran. Passou pelos copeiros, que
tiraram os seus chapéus e se inclinaram para saudá-la, passou por um bando de
tapeceiros que, ocupados em recolocar uma enorme peça numa parede, nem a notaram.
Saiu do castelo e continuou a correr. Na rua, passou pelo mestre bibliotecário,
por vendedores sem fim. Passou por um bando de gnomos que contavam suas
aventuras. Passou pela grande maquete do Sol. Subiu as escadarias do Templo, pois
queria fazer uma coisa que adorava: ver o crepúsculo. Virou-se e abriu os braços diante
daquela beleza. Então, fechou os olhos e sorriu. Não porque os raios a acariciassem.
Não. Era porque desvendara o enigma. Sorriu, pois sabia que, quando quisesse, poderia
ir lá buscar os biscoitos, pois agora descobrira o mistério da cor do manto.
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