Textos Selecionados, XXVIII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Coimbra, APL,
2013, pp. 397-413, ISBN: 978-989-97440-2-8
Para variar, o léxico da bebedeira
Raïssa Gillier & Sandra Pereira
Centro de Linguística da Universidade de Lisboa
Abstract
The Thesaurus of Dialectal Portuguese (TEDIPOR) aims to make available in a database an important amount of dialectal, ethnographic and cultural information that is disappearing or is often difficult to access. To demonstrate the usefulness of this tool, all the designations concerning the concepts bebedeira, bêbedo and embebedar(-se) were gathered and are analysed under a lexical approach. Many of them are not attested by dictionaries. The geographical distribution of the concepts bebedeira, bêbedo and taberna shows that it is possible to identify dialectal areas for some of the designations. Both the lexical and geographical analyses illustrate the potential of TEDIPOR.
Keywords: Dialectology, lexicography, vocabulary, geolinguistics, database Palavras-chave: Dialectologia, lexicografia, vocabulário, geolinguística, base de dados
1. Uma ferramenta dialectal
O presente artigo centra-se na apresentação da base de dados dialectal TEDIPOR, o
Tesouro Dialectal Português. Esta base de dados será integrada num macro projecto dialectal
que inclui ferramentas semelhantes que estão a ser desenvolvidas para estudar o Português do
Brasil e o Galego: o Tesouro do léxico patrimonial Galego e Português. Esta parceria vai
permitir o enriquecimento da base de dados desenhada para Portugal (cf. Álvarez et al., 2009).
O TEDIPOR pretende reunir, numa única base de dados, uma grande riqueza de
informação dialectal de diferentes variedades dialectais faladas em Portugal. Devido às
mudanças sociais e tecnológicas das últimas décadas que estão a contribuir para o
desaparecimento do mundo rural tradicional, um número incontável de palavras dialectais está
a extinguir-se gradualmente. Assim, o primeiro objectivo do TEDIPOR é preservar um
conjunto de itens lexicais, bem como o seu significado e localização geográfica, que
pertencem a um estilo de vida em desaparecimento. Em segundo lugar, pretende-se reunir
informação dispersa e muito heterogénea (monografias dialectais, atlas linguísticos, bases de
dados, etc.) que antes da existência do TEDIPOR era de consulta difícil ou mesmo impossível.
TEDIPOR é um projecto desenvolvido no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL) e Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada (CELGA), financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (PTDC/CLE-LIN/102650/2008). Para mais informações,
cf. http://www.clul.ul.pt/en/research-teams/330-tedipor-thesaurus-of-dialectal-portuguese .
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398
Além de proporcionar o acesso a estes materiais, a base de dados tem como finalidade
preservar o conteúdo de teses académicas, que na sua grande maioria nunca foram publicadas,
tornando-as disponíveis para os investigadores interessados (ver, por exemplo, Álvarez Pérez,
2010, 2011). O terceiro objectivo é oferecer aos futuros utilizadores da base de dados a
possibilidade de aceder e utilizar a localização geográfica dos dados para a construção de
mapas que manifestam a sua distribuição regional (cartografia). Esta será uma valiosa
contribuição para os estudos dialectais e geolinguísticos, pois disponibiliza uma grande
quantidade de informação que, até então, era também de difícil acesso.
O trabalho está organizado da seguinte forma: na secção 2, descrevemos as fontes do
TEDIPOR; a secção 3 é dedicada à análise de dados, centrada em dois aspectos diferentes - a
abordagem lexical (3.1.) e a abordagem cartográfica (3.2.); finalmente, as conclusões são
apresentadas na secção 4.
2. TEDIPOR: fontes
As fontes incluídas no TEDIPOR são variadas. A base de dados incorpora os conteúdos
dos glossários de 64 monografias dialectais, apresentadas às Universidades de Lisboa e de
Coimbra entre os anos 1940 e 1970.
As monografias não são semelhantes na forma como a informação é apresentada. Por esta
razão, segue-se uma metodologia rigorosa, a fim de tornar os materiais homogéneos.
Geralmente, os glossários contêm formas lexicais e os seus significados, muitas vezes
ilustrados por meio de exemplos, refrões, canções, provérbios, entre outros. Ocasionalmente,
há opiniões e comentários sociológicos sobre o uso de alguns conceitos num determinado
município. Frequentemente, as monografias apresentam fotos ou desenhos que mostram cultos
e costumes típicos, lugares ou ferramentas. Todos os dados etnográficos foram incluídos na
base de dados e estão disponíveis para o utilizador1.
Outras fontes também serão integradas no TEDIPOR. Trata-se, em particular, de dados e
informações de atlas linguísticos (nomeadamente o ALEPG - Atlas Linguístico-Etnográfico de
Portugal e da Galiza), inquéritos dialectais (ILB - Inquérito Linguístico Boléo), monografias e
artigos que contêm informações dialectais (Revista Lusitana, por exemplo).
1 Para informações mais detalhadas sobre a estrutura da base de dados, veja-se Álvarez et al. (2009).
PARA VARIAR, O LÉXICO DA BEBEDEIRA
399
3. TEDIPOR: os dados
Alguns dos campos semânticos frequentemente abordados nas monografias dialectais
dizem respeito à agricultura tradicional (como a produção de cereais, a vinha e o lagar do
vinho, a produção de azeite, a cultura do linho, etc.), a ferramentas e máquinas agrícolas, ao
moinho e ao fabrico do pão, entre outros. Outros domínios semânticos descrevem as
características físicas e psicológicas dos seres humanos, as doenças ou as relações sociais, por
exemplo. Para demonstrar a utilidade e riqueza do TEDIPOR, escolheram-se três conceitos
associados ao campo semântico do vinho e da vinha: bebedeira, bêbedo e embebedar(-se). As
diferentes designações para estes conceitos evidenciam a visão social deste tipo de
comportamento.
Por outro lado, a análise dos dados a seguir apresentados pretende ser uma demonstração
de duas perspectivas diferentes (lexical e cartográfica) que podem ser abordadas com os
materiais do TEDIPOR.
3.1. Abordagem lexical
O principal objectivo é listar as diferentes designações (dialectais) dos conceitos
bebedeira, bêbedo e embebedar(-se). Para alcançar este propósito, analisaram-se as
monografias e os dados do ALEPG e agruparam-se todos os termos e expressões definidos sob
as designações de bebedeira, bêbedo e embebedar(-se). O segundo objectivo é verificar se os
dicionários registam as várias denominações que podem ser encontradas no TEDIPOR. Desta
forma, foram escolhidos quatro dicionários do Português Europeu2:
- o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (cf. Casteleiro, 2001), da
Academia das Ciências de Lisboa, publicado em 2001;
- o Dicionário Priberam, disponível apenas na versão online3;
- o Dicionário Porto Editora, disponível em suporte de papel e numa versão
electrónica4;
- o Novo Diccionário da Língua Portuguesa, de Cândido Figueiredo, disponível em
http://www.dicionario-aberto.net/ .
Os resultados apresentados nas tabelas 1, 2 e 3 são listados pelo número decrescente de
ocorrências. A fim de facilitar a visualização dos dados, as palavras contidas nas células
2 Quando nos referimos a ausência / presença de determinado conceito nos dicionários, estamos a restringir-nos exclusivamente a estes. 3 http://www.priberam.pt/DLPO/ . 4 http://www.infopedia.pt/.
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400
brancas dizem respeito às denominações registadas nos dicionários com o mesmo significado;
as células cinzentas referem-se aos termos descritos nos dicionários com um sentido diferente;
e as designações não registadas pelos dicionários são precedidas de um asterisco (*),
representadas também em células cinzentas.
A análise incide sobre a motivação semântica para algumas das designações, uma vez que
não é possível analisar cada uma delas. Por vezes, é difícil traçar a motivação semântica das
palavras, dado que se trata de palavras novas ou palavras que não são reconhecidas por um
falante da variedade padrão. Nalguns casos, seguem-se as sugestões de Kröll (1952-1956) e
(1963) mas muitas destas designações não estão incluídas no seu estudo.
Além disso, tenciona-se demonstrar a riqueza do vocabulário (novo) contido no
TEDIPOR que não está registado nos dicionários, bem como a sua potencial relevância para a
lexicografia portuguesa.
A Tabela 1 mostra as designações encontradas no TEDIPOR para o conceito bebedeira.
Designação Frequência Designação Frequência Designação Frequência
bebedeira 144 raposa 1 má 1
borracheira 47 bezana 1 bicuda 1
piela 21 embriaguez 1 briosa 1
cadela 12 estar com a
pinga
1 chumbeira 1
perua 9 pinga 1 gaita 1
carraspana 9 estar com a
égua
1 trincadeira 1
tachada 4 perna 1 brasa 1
grossura 4 touca 1 quentura 1
cabra 4 rosca 1 tesa 1
trombose 4 nassa 1 repolho 1
bêbeda 3 mona 1 careta 1
gateira 3 senisga 1 ramada 1
pifão 3 camoeca 1 zurra 1
torta 3 moafa 1 *caçar a piela 1
cardina 3 marmelo 1 *canita 1
turca 3 ter carga a
mais
1 *barco de
chicharro
1
rapioca 3 alegrete 1 *gachinha 1
gatosa 3 terebentina 1 *camadão 1
manta 3 carrete 1 *levar
cadilhos
1
*jorca 3 mamona 1 *cacharola 1
PARA VARIAR, O LÉXICO DA BEBEDEIRA
401
piteira 2 Tola 1 *rijona 1
chiba 2 bezerra 1 *ruça 1
gata 2 Pele 1 *pilhona 1
torcida 2 chispa 1 *pelonha 1
carga 2 torga 1 *taruça 1
carripana 2 turina 1 *lapiana 1
verga 2 serpentina 1 *maricuca 1
serapilheira 2 gaiola 1 *marrasqueira 1
erisipela 2 toura 1 *piléria 1
*catrina 2 senhora 1 *friosa 1
alegrão 1 carraspeira 1 *rucega 1
cabeleira 1 birra 1
Tabela 1. Designações de bebedeira.
Os dados demonstram que 63 por cento das designações encontradas no TEDIPOR não
estão registadas com o significado de embriaguez em qualquer um dos dicionários
selecionados: 40 por cento estão listadas com outro significado e 23 por cento não estão
atestadas.
A palavra mais recorrente no corpus é bebedeira, provavelmente a palavra mais genérica
para designar embriaguez. Outras denominações gerais são borracheira, piela, embriaguez,
carraspana e bezana, embora as duas últimas sejam classificadas como coloquiais, de acordo
com os dicionários.
Um recurso comum para designar a embriaguez são os nomes dos animais, como revelam
os seguintes termos: cadela, perua, cabra, chiba, raposa, senisga, gata e gateira (formado a
partir da base nominal gata + o sufixo -eira). Outras denominações encontradas no corpus são
bezerra, turina, toura, mona, (estar com a) égua e *canita. Deve fazer-se uma referência a
*canita, uma vez que esta palavra e cadela referenciam o mesmo animal. Contudo, *canita é
um diminutivo formado a partir do étimo latino can + -ito(a), razão pela qual não foi agrupada
sob cadela. Um facto interessante é que todas estas denominações tomam como referente o
animal-fêmea, de modo a preservar o género feminino dos termos que designam a embriaguez.
Além disso, é interessante notar que, à excepção de perua, todos os animais referidos
pertencem ao grupo dos mamíferos.
Outro campo semântico recorrente diz respeito aos nomes de doenças. A semelhança
entre alguns sintomas da doença e aqueles sentidos enquanto se está bêbedo ou mesmo aqueles
sentidos depois (ressaca) pode ser apontada como a motivação semântica para estes termos.
Deste modo, é fácil de compreender a metáfora subjacente a gatosa (incontinência) ou
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402
carraspeira (aspereza na garganta provocada por constipação). Designações como trombose,
erisipela e má podem ser o resultado da expansão da motivação primária. A visão social do
consumo de álcool como má conduta, podendo culminar em doença, também pode ser
apontada como a motivação para os termos relacionados com as doenças. Apesar de o termo
terebentina não se enquadrar directamente neste grupo semântico, existe uma certa relação
com o conceito de saúde: trata-se da imagem negativa do álcool, dado que o consumo de
terebintina é inadequado e tóxico para o ser humano.
Muitos termos estão relacionados com a vinha: ramada, trincadeira, *catrina e
*gachinha. A denominação *gachinha é um diminutivo de *gacha (*gacha + -inho (a)), uma
alteração de gacho para o género feminino. No que diz respeito a *catrina, trata-se da redução
da forma catarina, que denomina uma casta de videira. Outra palavra respeitante à produção
de vinho é serpentina, que designa o tubo metálico do alambique.
Algumas palavras referem-se ao corpo humano, em alusão ao efeito causado em certos
órgãos devido ao excessivo consumo de álcool. Desta forma, perna sugere o andar
cambaleante característico dos bêbedos. Não é surpreendente que as formas restantes se
refiram globalmente à cabeça – tola, cabeleira, torga – visto que vários efeitos da bebedeira se
relacionam com esta parte do corpo (visão turva, dificuldade em falar, cabeça pesada, etc.).
*Cacharola é eventualmente uma variante de cachola (cabeça), classificada como popular
pelos dicionários.
Embora a designação pele pertença ao campo semântico do corpo humano, parece mais
apropriado colocá-la no mesmo conjunto que os termos touca, manta, serapilheira e
*camadão. Todos estes podem ser agrupados sob a etiqueta "coberturas", dado que prevalece a
sensação de peso causada pela embriaguez. Provavelmente os primeiros termos que surgiram
referiam-se à cabeça (touca, por exemplo) e, posteriormente, surgiram palavras mais
abrangentes. A mesma sensação de peso pode ser atribuída ao termo chumbeira,
provavelmente derivado de chumbo.
A perda e falta de equilíbrio como consequência da embriaguez são as ideias que motivam
as designações torta e rosca. Outros termos como carga, *ter carga a mais, carripana, *barco
de chicharro, carrete, *levar cadilhos estão relacionados com os primeiros termos referidos,
estando associados à noção de carga e peso que provoca um andar instável.
PARA VARIAR, O LÉXICO DA BEBEDEIRA
403
Alguns termos como rapioca (festa), alegrão (grande alegria), alegrete (alegria) e gaita
podem ser genericamente associados ao campo semântico das festividades, dado que está
implícita a ideia de alegria e euforia comummente sentida por alguém que bebeu demais.
Birra é uma denominação que tem em conta a atitude e o comportamento das pessoas sob
a influência de álcool. Os sintomas físicos causados pelo álcool geram denominações como
brasa e quentura, especialmente relacionados com a sensação de calor.
Designações como repolho e marmelo estão obviamente relacionadas e ambas se referem
a produtos hortícolas. No entanto, a motivação para estes termos não é facilmente perceptível,
uma vez que nenhum dos referentes é usado para produzir álcool. Uma possível explicação
pode ser a expansão do campo semântico da vinha para outros vegetais e frutos.
De seguida, na Tabela 2, apresentam-se as designações para o conceito bêbedo.
Designação Frequência Designação Frequência
bêbedo 153 toino 1
borracho 49 tombado 1
borrachão 29 almareado 1
embriagado 10 fragoso 1
relaxado 7 turino 1
descarado 5 embargado 1
grosso 5 *coiraço 1
alcoólico 4 *mosquito de cartola 1
tarraço 3 *estar cego e mudo 1
drogado 2 *ir a cavalo na égua 1
bebedanas 2 *jorcado 1
borracheiro 2 *beberote 1
*pielo 2 *clochar 1
cuba 2 *afenafe 1
*estar encharcado na jorra 2 *monte de esterco 1
caneco 1 *monte de bagaço 1
embebedado 1 *chingato 1
égua 1 *chambuço 1
ébrio 1 *pioleira 1
torto 1 *chimbeco 1
carregado 1 *chimeco 1
pingado 1 *ataloado 1
bebedolas 1 *chumba 1
alambriado 1 *não estar católico 1
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pegado à pinga 1 *estar meio feijoteiro 1
coirão 1 *resinado 1
pesado 1
Tabela 2. Designações de bêbedo
A tabela mostra que apenas 30,2 por cento das formas estão registadas nos dicionários;
26,4 por cento destas designações estão atestadas nos dicionários com um sentido diferente do
nome/adjectivo bêbedo; e 43,4 por cento dos termos não estão incluídos nos dicionários.
As formas que mais ocorrem são bêbedo, borracho, borrachão e embriagado. Outras
palavras que designam exclusivamente bêbedo são: alcoólico, bebedanas, embebedado, ébrio,
bebedolas e pegado à pinga. Algumas formas não atestadas com este significado, como
*beberote (eventual deturpação de beberrote?) e borracheiro, são muito semelhantes aos
primeiros referidos e o seu significado pode ser facilmente apreendido.
Muitos termos são normalmente aplicados para designar características psicológicas, tal
como descarado, relaxado, toino e almareado (enjoado). Estas designações evidenciam a
atitude e comportamento de alguém bêbedo.
No que diz respeito às características físicas, as palavras grosso, torto, *tombado, pesado,
carregado e *chumba (forma feminina de chumbo) e a expressão *estar cego e mudo
expressam a ideia da perda de habilidades, assim como a ideia de peso.
Os nomes de animais, de que são exemplo égua e turino, são um campo semântico
recorrente para designar uma pessoa embriagada, à semelhança do que se observou para as
designações de bebedeira. A metáfora *mosquito de cartola refere-se aos pequenos mosquitos
que andam em redor do vinho que está na cartola, designação açoriana para este recipiente
específico. Outras variantes, como tarraço, caneco e cuba, também pertencem ao campo
semântico dos vasilhames: tarraço e caneco são recipientes para beber e cuba é um barril
onde o vinho é colocado.
A palavra coirão tem dois significados, já que designa o nome de uma qualidade de uva e
também significa bêbedo. *Coiraço aparenta ser uma palavra derivada da anterior, embora os
dicionários não a registem.
As palavras *afenafe e *clochard não estão registadas nos dicionários porque são
estrangeirismos: *afenafe é formado a partir da expressão inglesa ‘half and half’ (que significa
meio bêbedo) e *clochard refere-se ao termo francês clochard, cujo significado é sem-abrigo.
Na Tabela 3 listam-se as designações para o conceito embebedar(-se).
PARA VARIAR, O LÉXICO DA BEBEDEIRA
405
Designação Frequência Designação Frequência
embebedar 6 *beber chá de Setembro 1
apanhar um pifão 2 *borrichar 1
andar na copofonia 1 *empielar 1
apanhar uma torta 1 *estar com ela 1
apanhar uma carraspana 1 *estar ligado à terra 1
estar com o petróleo 1 *estar chingarro 1
estar com os copos 1 *estar chingato 1
estar quente 1 *encatrinar-se 1
emborrachar-se 1 *puxar fogo 1
inchar-se 1 *puxar porção 1
*apanhar um repolho 1 *trabalhar no arame 1
*arranjar uma sopeira 1
Tabela 3. Designações de embebedar(-se).
Tal como se pode observar, cerca de 56,5 por cento das expressões não estão registadas
nos dicionários. Aproximadamente 4,3 por cento das variantes são descritas pelos dicionários,
mas não com o significado de embebedar(-se). Menos de 40 por cento das formas podem ser
encontradas com definições coincidentes.
No que concerne as designações para embebedar(-se), os resultados demonstram que as
expressões multipalavras5 são muito mais frequentes do que a simples forma verbal.
Relativamente às formas simples, embebedar e emborrachar-se são termos recorrentes que
designam exclusivamente ficar bêbedo.
Embora o verbo *borrichar não esteja atestado nos dicionários, trata-se provavelmente de
uma variante de emborrachar (cf. Kröll, 1952: 24). A forma *empielar parece ser derivada do
substantivo piela, uma designação comum de embriaguez, como demonstra a Tabela 1. O
verbo inchar-se significa ficar grande ou grosso (note-se que grosso pode significar bêbedo),
mas os dicionários não o relacionam com o verbo embebedar(-se).
Apesar de não serem apresentadas como entrada nos dicionários, consideraram-se
atestadas as seguintes expressões: apanhar um pifão, andar na copofonia, apanhar uma torta,
apanhar uma carraspana, estar com o petróleo, estar com os copos, estar quente. A aceitação
destas expressões é justificada pelo facto de serem compostas por um verbo copulativo –
normalmente apanhar, andar e estar – e um substantivo, atestado nos dicionários, que designa
bebedeira.
5 Do inglês Multiword Expression (MWE), adotamos a tradução presente em Ranchhod & Carvalho (2006).
XXVIII ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LINGUÍSTICA
406
Por outro lado, as expressões *apanhar um repolho, *estar com ela, *estar ligado à terra,
*estar chingarro e *estar chingato não foram consideradas atestadas porque os substantivos
presentes nessas construções não designam embriaguez de acordo com os dicionários.
Outras expressões compostas por verbos transitivos, tais como *arranjar uma sopeira,
*beber chá de Setembro, *puxar fogo, *puxar porção e *trabalhar no arame mostram a
riqueza lexical do TEDIPOR, embora os dicionários não registem estas expressões.
Examinando os três conceitos abordados (bebedeira, bêbedo e embebedar(-se)), conclui-
se que a maior parte das designações não está atestada nos dicionários. Contudo, é possível
estabelecer relações entre as designações obtidas para os conceitos analisados.
Por exemplo, piela é uma designação muito comum de embriaguez registada em todos os
dicionários. Assim, alguém que apanha uma piela pode ser chamado de *pielo e o acto de
alguém se embebedar pode ser denominado *empielar. O mesmo pode ser verificado
relativamente a resina (embriaguez) e *resinado (pessoa que apanha uma resina).
Observando as palavras que não ocorrem nos dicionários, surgem por exemplo *catrina e
*encatrinar-se. A primeira forma é um substantivo que designa a embriaguez e o segundo é o
verbo que descreve o acto de beber demasiado. Se se olhar para as formas *repolho e
*apanhar um repolho verifica-se a mesma situação: *repolho é um substantivo que significa
embriaguez e a expressão inclui esse substantivo para significar embebedar(-se).
Outro paralelelismo pode ser estabelecido entre as formas que não estão registadas nos
dicionários. Por exemplo, alguém que apanha uma *chumbeira é chamado de *chumba, do
mesmo modo que alguém é *jorcado quando apanha uma *jorca.
Assim, embora os dicionários não refiram muitos dos termos encontrados no TEDIPOR,
eles existem na língua portuguesa mantendo relações semânticas e morfológicas entre si.
A breve descrição dos resultados referentes aos conceitos bebedeira, bêbedo e
embebedar(-se) demonstra a abundância de (novos) dados dialectais que não são relatados nos
dicionários. Para cada conceito, o TEDIPOR revela (i) termos apresentados nos dicionários
(por exemplo, bebedeira, bêbedo, embebedar); (ii) palavras apresentadas em dicionários sem
este significado (por exemplo, trombose, cuba, inchar-se); e (iii) novas variantes que não estão
registadas nos dicionários (por exemplo, *taruça, *chambuço, *borrichar).
PARA VARIAR, O LÉXICO DA BEBEDEIRA
407
3.2. Abordagem cartográfica
Nesta secção, pretende-se mostrar a distribuição geográfica das designações de três
conceitos: bebedeira, bêbedo e taberna. Este último conceito substitui o verbo embebedar(-se)
que não aparece na base de dados do ALEPG e foi escolhido para manter a mesma área
semântica.
Uma vez que o número de denominações e suas ocorrências são muito elevados,
concentramo-nos exclusivamente nos dados de ALEPG. Além disso, não é possível apresentar
os resultados de cada conceito. Por esta razão, apenas designações que tinham mais de quatro
ocorrências foram mapeadas. Os símbolos nos mapas representam uma área de ocorrência da
designação, em vez de um local específico.
Os mapas da Figura 1 representam a distribuição das designações do conceito bebedeira
no território português.
Figura 1. Distribuição geográfica do conceito bebedeira.
Açores
Madeira
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408
Bebedeira é a designação mais comum, ocorrendo de forma contínua e uniforme ao longo
do território continental e insular, como demonstra o mapa.
No que diz respeito a borracheira, encontra-se no norte co-ocorrendo com bebedeira.
Apesar de alguns pontos de fronteira isolados surgirem no sul, é claro que esta palavra é
predominante no território do norte. Além disso, este termo não ocorre nas ilhas.
A distribuição de piela não é tão bem definida como os dois termos referidos
anteriormente. Parece haver duas áreas distintas: uma no noroeste, mais concentrada, do
interior para o litoral, e outra no centro, que é menos coesa do que a primeira, desde o litoral
até à fronteira com Espanha.
A designação cadela aparece na região central, estando ausente nos pontos extremos.
Pode igualmente ser encontrada em algumas ilhas dos Açores.
Em relação ao termo trombose, a sua distribuição é restrita às ilhas açorianas.
Mudando para as designações do conceito bêbedo, a sua distribuição é mapeada na Figura
2.
Figura 2. Distribuição geográfica do conceito bêbedo.
PARA VARIAR, O LÉXICO DA BEBEDEIRA
409
É claramente visível que bêbedo é a designação mais frequente, uma vez que está
espalhada por todo o país, incluindo as ilhas.
A denominação borracho6 forma uma área alargada no centro do país, sendo
especialmente concentrada no norte. No entanto, também ocorre em alguns pontos da fronteira
sul, provavelmente devido à influência da palavra espanhola "borracho", que também significa
bêbedo.
Embriagado só surge na região central do território continental, formando uma área
isolada, embora não coesa. Além disso, está presente também nos Açores e Madeira.
A ocorrência de relaxado é limitada à região do sul, ainda que não esteja distribuída
de maneira contínua.
No que diz respeito à distribuição de descarado, ela é muito restrita ao extremo sul do
território nacional.
É fácil estabelecer um paralelo entre os dois mapas (Figuras 2 e 3) relativos às
designações de bebedeira e bêbedo. A distribuição deste par é semelhante, uma vez que é
amplamente difundido e pode ser encontrado em território continental e insular. A mesma
associação pode ser feita para as denominações borracheira e borracho: embora a área de
borracho se prolongue para o sul, ambos os termos ocorrem principalmente na região norte.
6 As variantes borrachão e borrachola foram agrupadas sob o lema borracho.
XXVIII ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LINGUÍSTICA
410
Açores
Madeira
O mapa na Figura 3 apresenta a distribuição das designações de taberna no território
Português.
Figura 4. Distribuição geográfica do conceito taberna.
A designação taberna ocorre em todo o território, incluindo os dois arquipélagos.
Venda forma duas áreas distintas: uma no noroeste do país e uma outra muito mais
expandida no sul. No que diz respeito às regiões insulares, este termo aparece na Madeira e em
três ilhas dos Açores.
A palavra tasca surge como uma faixa estendida ao longo da costa, desde a fronteira oeste
da Galiza para o centro. Alguns pontos difusos podem ser vistos no sul. Além disso, está
presente também na Madeira e em duas ilhas do grupo central dos Açores.
Quanto ao termo loja, o mapa mostra que esta é uma designação específica do noroeste.
Apesar de ser mais alargado para a região centro-litoral, este co-ocorre aproximadamente com
a zona norte de venda. Ele também pode ser encontrado no território dos Açores, mas está
PARA VARIAR, O LÉXICO DA BEBEDEIRA
411
ausente na Madeira. Ambas as designações loja e venda dizem respeito a um lugar onde, além
da venda e consumo de álcool, se podem comprar outros produtos. Pelo contrário, tasca
refere-se exclusivamente a um espaço para o consumo de álcool.
Botequim é uma designação característica dos arquipélagos – Açores e Madeira – que não
está presente no território continental.
A cartografia das designações destes três conceitos revela uma mais-valia do TEDIPOR,
demonstrando ser uma ferramenta importante para a geolinguística, pois permite a criação de
mapas e, consequentemente, a identificação de áreas dialectais.
4. Considerações finais
Em conclusão, o TEDIPOR é uma ferramenta disponível para a comunidade científica e
para a sociedade em geral, que se revela vantajosa para vários domínios de pesquisas
linguísticas: lexicografia (especialmente em relação à incorporação de vocabulário dialectal
em dicionários e outros produtos lexicográficos), sociolinguística, gramática histórica,
dialectologia, linguagem padrão versus variedades dialectais, terminologia, onomástica,
etimologia, entre outros.
Neste trabalho procurámos sublinhar a importância do TEDIPOR demonstrando que esta
base de dados contém vocabulário rico e detalhado, que muitas vezes não está incluído nos
quatro dicionários consultados. Além disso, ficou demonstrado como o TEDIPOR pode ser
usado para cartografar diferentes designações de um mesmo conceito de modo a identificar
áreas dialetais.
Paralelamente, a aplicabilidade desta base de dados não se limita ao campo filológico,
uma vez que o TEDIPOR é um instrumento de pesquisa valioso para o estudo das mudanças
tecnológicas, da disseminação da cultura, da geografia e da história, ou seja, para as ciências
sociais e humanas em geral, uma vez que a diversidade dialectal está relacionada com
diversidade cultural, etnográfica e sociológica.
XXVIII ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LINGUÍSTICA
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Referências
A. Dicionários
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (2012). http://www.priberam.pt/dlpo/
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Editorial Verbo / Academia das Ciências de Lisboa.
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http://www.dicionario-aberto.net/ .
B. Outra literatura
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http://www.clul.ul.pt/en/research-teams/205-linguistic-and-ethnographic-atlas-of-portugal-
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Kröll, H. (1963) Aditamentos às «Designações Portuguesas para ‘Embriaguez’», In Revista
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Lexicais e Sintácticas, 1ª Escola de Verão da Linguateca. Porto (disponível em:
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PARA VARIAR, O LÉXICO DA BEBEDEIRA
413
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Portugal. Porto – Lisboa, vols. I-XXXVIII. (disponível em: http://cvc.instituto-
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