O que leva os alunos a serem (in)disciplinados?
Uma análise sociológica centrada em contextos diferenciados de interacção pedagógica
Maria Preciosa Silva Isabel Pestana Neves Centro de Investigação em Educação Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Versão pessoal revista do texto final do artigo publicado em: Revista de Educação, XII (2), 37-57 (2004). Homepage da Revista de Educação: http://revista.educ.fc.ul.pt/
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O que leva os alunos a serem (in)disciplinados? Uma análise sociológica centrada em contextos diferenciados de interacção pedagógica
Maria Preciosa Silva Isabel Pestana Neves
Centro de Investigação em Educação Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
INTRODUÇÃO
O estudo descrito neste artigo integra-se na investigação desenvolvida pelo Grupo
ESSA - Estudos Sociológicos da Sala de Aula – que tem tido como preocupação
central a pesquisa de práticas pedagógicas que, sem diminuir o nível de exigência
conceptual, possam contribuir para a melhoria do aproveitamento escolar dos alunos,
nomeadamente daqueles que pertencem a grupos sociais mais desfavorecidos. Tendo
por base esta preocupação, foram procuradas neste estudo razões, subjacentes ao
contexto pedagógico da aula de Ciências, que pudessem explicar os comportamentos
de (in)disciplina observados em alunos de duas turmas do 6º ano de escolaridade. A
partir da análise dessas razões, vistas na perspectiva de professores e alunos, tentou-se
também compreender quais as características sociológicas da prática pedagógica que
mais poderiam favorecer a criação de um ambiente de disciplina.
A indisciplina escolar, apesar de ser uma questão recorrente ao longo da História da
Educação, tornou-se nos últimos tempos um assunto que preocupa não só professores
e pais mas, de um modo geral, todos aqueles que estão interessados nos problemas da
educação. A prova da actualidade e relevância deste assunto são os inúmeros artigos
científicos que têm sido publicados nos últimos tempos e de que são exemplos Estrela
e Amado (2000), Estrela (2002), Ferreira (2002), Jesus (2001), Oliveira (2002),
Raposo (2002).
Uma adequada resolução dos problemas de natureza disciplinar, nomeadamente dos
que se manifestam ao nível da sala de aula, será fundamental para ajudar a ultrapassar
uma das questões essenciais do sistema de ensino – a sua qualidade. Como se tem
verificado em estudos realizados em Portugal, de que Amado (1991) é um exemplo, a
indisciplina representa um dos factores responsáveis pelo insucesso escolar, já que
integra comportamentos e atitudes que perturbam e inviabilizam o processo de ensino-
aprendizagem. Além disso, a indisciplina constitui, igualmente, para muitos
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professores, um factor de stress. A Organização Internacional do Trabalho indica
mesmo a docência como uma profissão de risco (Jesus, 2001). Para muitos
professores, especialmente para aqueles que estão em início de carreira, uma parte
considerável das suas dificuldades reside no controlo dos comportamentos
perturbadores das actividades das turmas, sendo uma fonte de desconforto e de mal-
estar docente, com todos os efeitos negativos que lhe estão associados e dos quais se
destaca o menor investimento na organização do ensino, com inevitáveis
consequências ao nível da aprendizagem dos alunos e do seu sucesso escolar. Como
afirmam Carita e Fernandes (1997), a indisciplina perturba os professores, afecta-os
emocionalmente, mais até do que os próprios problemas de aprendizagem com que
têm de se confrontar.
O problema da indisciplina é, efectivamente, um fenómeno complexo que não só se
manifesta dos mais diversos modos e graus de intensidade como tem subjacente
múltiplos factores, uns de ordem social, familiar e pessoal e outros de ordem escolar.
Se pensarmos na escola como um sistema aberto, facilmente se compreende que
aquilo que se passa no seu interior, incluindo a sala de aula, é o reflexo do meio que a
envolve e da sociedade em geral, já que a escola não consegue ficar imune ao que a
rodeia. As desigualdades económicas e sociais, a crise de valores e o conflito de
gerações, são exemplos de alguns factores que podem explicar os desequilíbrios que
afectam tanto a vida social, como a vida escolar e, por conseguinte, a disciplina
escolar.
É nesta panóplia de factores de origem tão diversa que se têm procurado explicações
para o problema da indisciplina (Denscombe, 1985; Estrela, 1992; Cangelosi, 1993;
Varma, 1993; Amado, 2000), não sendo por isso de admirar que o número de
explicações apresentadas seja elevado. Contudo, se os factores responsáveis pela
indisciplina são variados, as perspectivas seleccionadas para o seu estudo também o
são. No estudo da indisciplina, tanto se tem optado por perspectivas psicológicas,
como por perspectivas sociológicas e pedagógicas.
No presente estudo, optou-se por uma abordagem de natureza sociológica, cujo
quadro de referência foi a teoria de Bernstein, embora se tivessem considerado
também alguns conceitos do domínio da pedagogia. Pretendeu-se deste modo uma
inter-relação entre conceitos deste último domínio e conceitos do domínio da
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sociologia de forma a conseguirem-se directrizes de análise que esbatessem a
classificação usualmente forte entre estes dois campos.
Tendo em conta este quadro teórico de referência, definiu-se como problemática
orientadora do estudo a análise da relação entre os comportamentos de (in)disciplina
ocorridos na aula de Ciências da Natureza e as características sociológicas da prática
pedagógica dos professores e ainda as razões subjacentes a essa relação. Na pesquisa
dessas razões, analisou-se: (a) as modalidades de prática pedagógica que os alunos
consideravam mais propícias a um clima de (in)disciplina; (b) a posse, por parte dos
alunos, das regras de reconhecimento da prática pedagógica das professoras; (c) a
posse, pelos alunos, das regras de realização passiva para a prática reguladora das
professoras; e (d) as disposições sócio-afectivas (gosto) para a prática pedagógica das
professoras.
No presente artigo começa-se por fazer uma breve referência aos principais conceitos
que serviram de suporte teórico ao estudo, passando depois à metodologia utilizada.
Neste ponto, procura-se salientar as características dos sujeitos do estudo e o processo
utilizado nas diferentes análises seleccionadas. Seguidamente procede-se à
apresentação e interpretação dos resultados e, por fim, indicam-se as principais
conclusões.
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
O conceito de indisciplina
Procurar uma definição de indisciplina implica tomar consciência de que se está
perante um conceito vago e impreciso. Como afirmam Estrela e Amado (2000), a
clarificação de conceitos como o de indisciplina não é simples nem pacífica já que
estão evolvidos quadros de referência multidisciplinares, ângulos diversos através dos
quais este fenómeno pode ser perspectivado, e tomadas de posição relativamente a
paradigmas de abordagem que estão longe de ser consensuais, pois consoante o
paradigma em que nos posicionamos assim temos tendência a dar mais ênfase a uns
aspectos do que a outros.
Neste estudo, a indisciplina é entendida como a manifestação de actos/condutas, por
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parte dos alunos, que têm subjacentes atitudes que não são legitimadas pelo professor
no contexto regulador da sua prática pedagógica e, consequentemente, perturbam o
processo normal de ensino-aprendizagem. Considera-se, tal como refere Amado
(1998), que ao falar-se em indisciplina nem sempre se está perante o mesmo
fenómeno, mas sob uma diversidade de fenómenos por detrás de uma mesma
designação. Por isso se admite, tal como este autor, que existem diferentes níveis de
indisciplina e que o aumento desses níveis ocorre sempre que os actos cometidos
pelos alunos, pela sua natureza ou pela sua reincidência depois da advertência do
professor, conduzem a uma progressiva diminuição da assimetria de poder na relação
professor-alunos.
Amado (1998, 2000) considera três níveis de indisciplina. O primeiro nível, que
intitula de “desvios às regras de produção”, abrange os incidentes a que é imputado
um carácter “disruptivo” por causarem “perturbação” ao bom funcionamento da aula.
O segundo nível, “conflito interpares”, contempla os incidentes que traduzem
essencialmente dificuldades de relacionamento entre os alunos, podendo também
traduzir-se em fenómenos de “violência” e “bullying”. Finalmente, o terceiro nível,
“conflitos da relação professor-alunos”, inclui os comportamentos que, de algum
modo, põem em causa a autoridade e o estatuto do professor, abrangendo também a
violência e o vandalismo contra a propriedade da escola.
Modalidades de prática pedagógica
De acordo com o modelo do discurso pedagógico de Bernstein (1990, 2000), qualquer
prática corresponde a uma realização específica do discurso pedagógico oficial no
contexto da sala de aula, traduzindo, assim, uma forma de institucionalização do
código elaborado da escola. Segundo este quadro teórico, a definição de prática
pedagógica assenta na caracterização das relações de poder e de controlo que regulam
o contexto de transmissão-aquisição na sala de aula, considerando-se não só a relação
entre o transmissor (professor) e o aquisidor (aluno) no processo de ensino-
aprendizagem, mas também as relações que se estabelecem entre os diferentes
aquisidores e ainda as relações que exprimem a organização espacial e discursiva em
que se consubstancia a relação pedagógica. Por sua vez, estas relações de poder e de
controlo podem ser caracterizadas, respectivamente, através dos conceitos de
classificação e de enquadramento. A classificação refere-se ao grau de manutenção de
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fronteiras entre categorias (professores, alunos, espaços, conteúdos de aprendizagem,
etc.), enquanto que o enquadramento se refere às relações sociais entre categorias, isto
é, à comunicação entre elas. A classificação é considerada forte quando há uma nítida
separação entre essas categorias, o que dá origem a hierarquias em que cada categoria
tem um estatuto e voz específicos e, portanto, um determinado poder. Contrariamente,
a classificação é fraca quando há um esbatimento das fronteiras entre categorias. O
enquadramento é considerado forte quando a(s) categoria(s) superior(es) tem o
controlo na relação e é considerado fraco quando a categoria(s) inferior(es) tem
alguma forma de controlo nessa relação. Entre os extremos de classificações fortes e
fracas e de enquadramentos fortes e fracos há toda uma graduação possível. A
classificação e o enquadramento podem, dentro de certos limites, variar
independentemente. Por exemplo, a uma classificação forte pode corresponder um
enquadramento fraco.
Segundo Bernstein, de um ponto de vista analítico, podemos considerar em qualquer
modelo de prática pedagógica, na relação professor-alunos, dois sistemas de regras: as
regras discursivas e as regras hierárquicas. As primeiras dizem respeito à ordem
discursiva e reportam-se à selecção, sequência, ritmagem e critérios de avaliação do
discurso presente na interacção pedagógica e, por conseguinte, dizem respeito ao
controlo que os transmissores e aquisidores podem ter no processo de transmissão-
aquisição desse discurso. As regras hierárquicas referem-se às formas que as relações
hierárquicas tomam na relação pedagógica. São por isso regras que regulam as
relações sociais e, portanto, referem-se ao controlo que transmissores e aquisidores
podem ter sobre as normas de conduta social. Embora tanto as regras discursivas,
associadas ao contexto instrucional, como as regras hierárquicas, associadas ao
contexto regulador, estejam presentes em qualquer modelo de prática pedagógica, os
valores de enquadramento correspondentes a estas regras podem variar desde muito
forte até muito fraco. Esta variação de enquadramentos é responsável por diferentes
modalidades de prática pedagógica. Se num determinado contexto pedagógico, por
exemplo, (sala de aula) a classificação é forte e o enquadramento é fraco, no que se
refere à relação professor-aluno, isso significa, por um lado, que as relações de poder
são assimétricas entre os referidos agentes, ou seja, é o professor que detém o poder e,
por outro lado, no que se refere às relações de controlo, significa que, relativamente às
regras discursivas, são os alunos que detêm grande parte do controlo. Exemplificando:
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para a selecção, significa que os alunos têm algum controlo sobre os conteúdos a
aprender; para os critérios de avaliação, significa que eles estão implícitos e, por essa
razão, o aluno parece ter controlo sobre eles. Relativamente às regras hierárquicas
significa que a interacção predominante é do tipo pessoal. Esta modalidade de prática
pedagógica corresponde a uma prática auto-reguladora associada a modelos
progressistas. Se no contexto pedagógico a classificação é forte, na relação professor-
alunos, mas o enquadramento varia, quer dizer que o professor continua a manter o
poder, mas, por exemplo, nas regras discursivas, a selecção e a sequência dos
trabalhos dos alunos pode ser determinada pelo professor (enquadramento forte), o
ritmo de aprendizagem dos alunos pode ser tido em conta (enquadramento fraco) e os
critérios de avaliação podem ser muito explícitos (enquadramento muito forte).
Quanto às regras hierárquicas a interacção pode ser igualmente de natureza pessoal.
Neste caso, estamos perante uma modalidade de prática pedagógica mista. Contudo,
se os enquadramentos forem globalmente fortes, passamos a ter uma modalidade de
prática pedagógica de natureza didáctica, associada a modelos ditos tradicionais.
Pode dizer-se que as regras discursivas são princípios que se institucionalizam na
prática instrucional específica (PIE) e que as regras hierárquicas são princípios que se
institucionalizam na prática reguladora específica (PRE). A PIE tem subjacente a
PRE, isto é, quando se ensina um conteúdo (por exemplo biologia) ensinam-se
simultaneamente um conjunto de atitudes e valores que têm expressão na forma como
se ensina.
De acordo com a literatura da especialidade (Morais et al, 1993; Morais, Neves et al,
2000), as modalidades de prática pedagógica mista, com critérios de avaliação bem
explícitos, têm evidenciado potencialidades para o desenvolvimento de competências
cognitivas e sócio-afectivas favoráveis ao sucesso de todos os alunos. Contudo,
coloca-se a questão: será que os próprios alunos consideram estas modalidades de
prática favoráveis a um ambiente de aprendizagem? Gostam eles destas práticas? Se a
resposta dos alunos a este tipo de questões não for afirmativa, embora as modalidades
de prática possam ter grandes potencialidades, muito dificilmente aquilo que se
pretende será atingido. É preciso que os alunos gostem e adiram às práticas dos
professores. Se estes permitirem que os alunos tenham algum controlo na
determinação das normas de conduta social vigentes na aula (enquadramento fraco no
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contexto regulador), poderão conseguir uma maior adesão dos alunos e, deste modo,
criar um ambiente de disciplina que será favorável ao desenvolvimento das
competências que pretendem. O tipo de controlo que os professores utilizam na
relação pedagógica com os seus alunos, quer a propósito de situações inerentes ao
contexto regulador, quer mesmo a propósito de situações inerentes ao contexto
instrucional, poderá ser uma condição essencial para se evitar a indisciplina.
Orientação específica de codificação e disposições sócio-afectivas
Central à teoria de Bernstein está o conceito de código, o qual é definido como “um
princípio regulador, tacitamente adquirido, que selecciona e integra significados
relevantes (significados), a forma da sua realização (realizações) e os contextos
evocadores (contextos)” (Domingos et al, 1986, p.245). A aquisição do código, por parte
do sujeito, faz-se tacitamente no decorrer das relações sociais, em particular através de
práticas comunicativas que são práticas interaccionais especializadas. Segundo Bernstein
(1990), a unidade de análise dos códigos é a relação entre contextos; no entanto, o código,
enquanto regulador dessa relação, é simultaneamente regulador da relação dentro dos
contextos. Neste sentido, os códigos devem gerar princípios que permitam distinguir entre
vários contextos e princípios que regulem a produção de realizações especializadas dentro
de um determinado contexto. Estes princípios constituem respectivamente as regras de
reconhecimento e de realização. As regras de reconhecimento permitem, assim, distinguir
entre contextos através da identificação das características específicas de cada um dos
contextos. As regras de realização criam meios para a selecção dos significados
apropriados ao contexto (realização passiva) e para a produção do texto legítimo
(realização activa). Decorrente disto se infere que, para haver uma determinada produção
textual, correspondente a um determinado nível de desempenho, num contexto específico,
é necessário a aquisição prévia, num grau mínimo, das regras de reconhecimento e de
realização. Por exemplo, se um sujeito distingue um dado contexto de outros é porque
reconhece que esse contexto tem características específicas que o diferenciam dos outros
e, por conseguinte, dizemos que tem as regras de reconhecimento desse contexto. No
entanto, se o sujeito não é capaz de seleccionar os significados relevantes do contexto
(realização passiva) e não é capaz de os relacionar a fim de produzir o texto legítimo
(realização activa), não tem um desempenho num grau satisfatório. Mesmo que consiga
seleccionar os significados inerentes ao contexto (realização passiva), se depois não
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consegue relacioná-los de modo a produzir o texto legítimo (realização activa), não
consegue, igualmente, revelar um grau satisfatório de desempenho. Para que,
efectivamente, este desempenho se verifique é necessário que o sujeito tenha adquirido,
simultaneamente, as regras de reconhecimento e de realização. Segundo Bernstein (1990,
2000) as regras de reconhecimento regulam as regras de realização, embora a aquisição
de qualquer uma destas regras seja, em certa medida, independente da outra. Tal como é
evidenciado na figura 1 um sujeito só terá a orientação específica de codificação para um
dado contexto se tiver adquirido as regras de reconhecimento e de realização para esse
contexto. Contudo, pode ainda acontecer que, embora tenha adquirido a orientação
específica para esse contexto, o nível de desempenho nem sempre seja satisfatório. Neste
caso, tal facto pode dever-se à ausência de disposições sócio-afectivas favoráveis à
produção do texto legítimo nesse contexto. Ter disposições sócio-afectivas favoráveis a
um contexto significa ter gosto, aspirações, motivações, valores e atitudes apropriadas a
esse contexto. Se nem todos os indicadores das disposições sócio-afectivas confluírem no
mesmo sentido, será com base na combinação entre eles e no peso que o sujeito lhes
atribui que se definirão as disposições sócio-afectivas. Por exemplo, o sujeito pode não
gostar do texto que é requerido num determinado contexto, mas se tiver aspirações e
valores muito fortes relativamente aos benefícios que consegue obter com esse texto, as
disposições sócio-afectivas poderão ser favoráveis. Se não gostar do texto requerido e,
simultaneamente, as aspirações, motivações e valores para a sua produção forem fracos,
as disposições sócio-afectivas serão desfavoráveis.
ORIENTAÇÃO ESPECÍFICA DE CODIFICAÇÃO DISPOSIÇÕES SÓCIO-AFECTIVAS
REGRAS DE RECONHECIMENTO
REGRAS DE REALIZAÇÃO
Selecção dos Produção significados textual
(real. passiva) (real. activa)
Desempenho do aluno COMPETÊNCIAS COGNITIVAS E
SOCIO-AFECTIVAS
Figura 1 – Orientação de codificação, disposições socio-afectivas e desempenho do aluno em contextos específicos de aprendizagem.
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Admitamos que o texto requerido a um aluno é a manifestação de um conjunto de
atitudes/condutas legitimadas pela sua professora no contexto da sala de aula e
capazes de favorecerem a aprendizagem. O texto requerido, neste caso, é um texto
de disciplina. Contrariamente, a manifestação de atitudes e condutas não legitimadas
pelo professor no contexto da sua aula será um texto de indisciplina. De acordo com
os conceitos e relações conceptuais atrás expostos, poder-se-á dizer que a
indisciplina poderá resultar do facto dos alunos não terem as regras de
reconhecimento e/ou as regras de realização para a prática pedagógica do professor,
o que significa não terem a orientação específica de codificação para essa prática.
Além disso, poderá ainda resultar do facto de os alunos não possuírem disposições
sócio-afectivas favoráveis para a prática do professor. A conjugação destes
diferentes aspectos poderá justificar diferentes situações de indisciplina. Se um
aluno não tem as regras de reconhecimento da prática do professor isso significa que
não é capaz de distinguir essa prática de outras e, por isso, poderá não saber agir
correctamente. Contudo, pode acontecer que reconheça a prática do professor, mas
não conheça as atitudes e condutas que deve ter no contexto dessa prática, ou seja,
pode não ter as regras de realização passiva para a prática do professor. Se tiver as
regras de reconhecimento e de realização terá também a orientação específica de
codificação e, por conseguinte, terá a possibilidade, se assim o entender, de produzir
o texto requerido (revelar-se disciplinado). Caso contrário, não será possível a
produção deste texto. É de salientar que, embora um aluno possa ter a orientação
específica de codificação, o seu desempenho pode ser de indisciplina se as
disposições sócio-afectivas não forem favoráveis à produção do texto requerido.
Para que o aluno tenha um desempenho legítimo, coerente e sistemático é preciso
que tenha não só a orientação específica de codificação para a prática do professor
como também as disposições sócio-afectivas para essa prática.
METODOLOGIA
A perspectiva metodológica que orientou o estudo foi de natureza compreensiva-
interpretativa. Foi usada uma linguagem externa de descrição derivada da linguagem
interna de descrição desenvolvida por Bernstein (1990, 2000), isto é, recorreu-se a
uma metodologia baseada numa relação dialéctica entre o teórico e o empírico de
modo a que as preposições teóricas, a linguagem de descrição e a análise empírica
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interagissem e a precisão e profundidade da realidade, que se pretendia conhecer,
aumentasse.
Os sujeitos do estudo
Os sujeitos deste estudo foram duas turmas do 6º ano de escolaridade (11- 12 anos)
de uma mesma escola, adiante designadas por turma X e turma Y, e respectivas
professoras de Ciências da Natureza. A selecção destas turmas foi intencional. No 5º
ano, as duas turmas eram muito indisciplinadas na disciplina de Ciências. No 6º ano,
uma dessas turmas manteve a mesma professora de Ciências (turma X) e continuou
muito indisciplinada, enquanto a outra turma mudou de professora nesta disciplina
(turma Y) e alterou globalmente o seu comportamento, passando a ser disciplinada.
De salientar que os comportamentos de indisciplina, observados na turma X, se
integravam nos três níveis de indisciplina propostos por Amado (1998, 2000), com
predomínio de incidentes no 3º nível. Isto significa que, apesar de se terem
verificado comportamentos de indisciplina resultantes do desrespeito pelas regras
consideradas fundamentais pela professora para o funcionamento da aula e de terem
ocorrido muitos incidentes entre os próprios alunos, a grande maioria das situações
de indisciplina observadas visava atingir a professora, nomeadamente as relações de
poder professora-alunos. Contrariamente, na turma Y, os poucos incidentes que se
observaram integravam-se nos dois primeiros níveis, nunca se tendo observado
comportamentos que visassem atingir premeditadamente a professora e que, de
algum modo, pusessem em causa as relações de poder professora- alunos.
Ambas as turmas apresentavam uma média de idades muito próxima dos padrões
normais (turma X= 11.7; turma Y=11.6), verificando-se igualmente, quanto ao
género, um equilíbrio não só ao nível de cada turma, mas também entre as duas
turmas (turma X- 12 rapazes e 15 raparigas; turma Y- 8 rapazes e 11 raparigas).
Relativamente à classe social, predominava a classe trabalhadora em ambas as
turmas, embora a turma Y tivesse uma composição social mais heterogénea, já que a
classe média estava representada por 1/3 dos alunos da turma.
As professoras do estudo encontravam-se, ambas, no 10º escalão, tendo a da turma X
feito o estágio clássico e a da turma Y a profissionalização em exercício. A primeira é
licenciada em Ciências Biológicas e a segunda em Ciências Físico-Químicas.
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Aspectos metodológicos gerais
Uma vez que este estudo tinha por objectivo analisar as relações entre os
comportamentos de (in)disciplina dos alunos e as características sociológicas da
prática pedagógica dos professores, começou-se, num primeiro momento, por fazer
um levantamento das características do contexto pedagógico da aula de Ciências das
duas professoras, recorrendo-se a uma entrevista semi-estruturada. Através desta
entrevista, procurou-se recolher dados sobre o discurso regulador específico mais
valorizado pelas professoras e presente nas suas práticas, assim como as
competências cognitivas valorizadas pelo discurso instrucional e desenvolvidas
igualmente com as suas práticas. Além disso, procurou-se ainda caracterizar
sociologicamente a prática reguladora das professoras ao nível das regras
hierárquicas e a prática instrucional usada na transmissão-aquisição do discurso
instrucional, ao nível das regras discursivas. De sublinhar que os dados disponíveis
apontavam para que as duas professoras tivessem práticas pedagógicas muito
diferentes.
Após este primeiro levantamento das características do contexto pedagógico da aula
de Ciências, procedeu-se a uma caracterização mais objectiva da prática pedagógica
das professoras com base na análise de dados provenientes da observação de aulas.
Para esta observação foram construídos instrumentos que contemplavam relações
tanto ao nível do contexto regulador (regras hierárquicas na relação professora-
alunos e relações entre espaços), como ao nível do contexto instrucional (regras
discursivas na relação professora-alunos e relações intradisciplinares e entre
conhecimentos académico e não académico). Para cada uma destas relações foram
definidos vários indicadores e, para cada um deles, uma escala descritiva
correspondente a diferentes valores de enquadramentos ou de classificações
consoante se estivesse, respectivamente, no plano interaccional ou organizacional.
Posteriormente, analisaram-se as transcrições dos registos audio das aulas
observadas, tendo em conta, primeiro, o tipo de relação que estava presente em cada
frase ou conjuntos de frases afins e o tipo de indicador a que poderiam corresponder
e, depois, enquadrou-se a situação descrita num dos graus da escala concebida. No
final da análise das aulas fez-se um quadro-resumo com todos os registos
organizados. Com base nesse quadro determinou-se para cada relação em análise, a
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partir dos indicadores que lhe estavam associados, a frequência de situações
correspondentes a cada um dos graus da escala. No final verificou-se em que graus
dessa escala é que tinham sido observadas mais situações e definiu-se uma linha de
tendência para cada relação1.
Como era igualmente nosso objectivo analisar, na perspectiva dos alunos, a
existência de uma possível relação entre a (in)disciplina e a prática pedagógica e
razões associadas a essa relação, foi construído um questionário que, após várias
pilotagens, foi aplicado, em situação de entrevista, à totalidade dos alunos das duas
turmas. O questionário continha uma questão introdutória em que os alunos eram
solicitados a assinalar os aspectos do contexto pedagógico que, em seu entender,
poderiam ser responsáveis pelas situações de indisciplina verificadas na aula de
Ciências, encontrando-se seguidamente estruturado em duas partes. A primeira parte
continha três cenas, ilustradas em banda desenhada, sobre situações de indisciplina
seleccionadas a partir da observação de aulas de Ciências da turma X
(indisciplinada) e a segunda parte contemplava duas cenas, também em banda
desenhada, representativas de práticas pedagógicas diferentes2. A primeira cena da
segunda parte ilustrava três modalidades distintas de prática reguladora, uma de
enquadramento muito forte (E++), outra de enquadramento forte (E+) e outra de
enquadramento fraco (E-). A segunda cena ilustrava duas modalidades de prática
instrucional, uma de enquadramento forte (E+) e outra de enquadramento fraco (E-).
Para cada uma das cenas referidas foram feitas várias questões que visavam, no
conjunto, obter dados acerca: (a) das concepções dos alunos sobre a modalidade de
prática pedagógica mais propícia a um clima de (in)disciplina; (b) da posse, pelos
alunos, das regras de reconhecimento da prática pedagógica da respectiva
professora; (c) da posse, pelos alunos, das regas de realização passiva para a prática
reguladora das professoras; (d) das disposições sócio-afectivas para a prática
pedagógica das professoras. Deste modo, os dados da questão introdutória
permitiram analisar, na perspectiva dos alunos, uma possível relação entre a
(in)disciplina ocorrida nas aulas de Ciências e as características do contexto
pedagógico, enquanto que os dados provenientes das alíneas a), b), c) e d)
permitiram aprofundar algumas razões subjacentes a esta relação3.
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Procedimentos de análise
Relação entre a (in)disciplina e a prática pedagógica
A fim de verificar se existia efectivamente uma relação entre a (in)disciplina
observada e a prática das respectivas professoras, procurou-se conhecer as
concepções dos alunos sobre os aspectos do contexto pedagógico que poderiam ser
responsáveis pelas situações de indisciplina ocorridas. Para o efeito, na questão
introdutória do questionário aplicado aos alunos, estes foram solicitados a indicar,
por ordem de importância, 4 razões apresentadas.
Questão: Nem sempre os alunos da tua turma se portam bem na aula de Ciências. Porque razão isso acontece?
A- Porque não gostam da maneira como a professora de Ciências dá as aulas.
B- Porque não gostam da maneira como a professora de Ciências trata os alunos.
C- Porque não gostam dos assuntos que são tratados na aula de Ciências.
D- Porque não gostam das regras de comportamento que são estabelecidas na aula de Ciências.
A primeira destas razões diz respeito à prática instrucional, a segunda à prática
reguladora, a terceira ao discurso instrucional e a quarta ao discurso regulador. A
selecção deste tipo de razões resultou da análise das respostas dos alunos a esta
mesma questão, mas em aberto, na pilotagem do questionário.
Na análise dos resultados a esta questão verificou-se a sequência indicada por cada
aluno e determinou-se, em termos de frequência e percentagem, o número de alunos
que tinham colocado, em primeiro lugar, cada uma das razões apontadas.
Possíveis razões para a (in)disciplina
Por forma a encontrar possíveis razões explicativas da relação entre (in)disciplina e
prática pedagógica, procedeu-se, a partir das respostas aos diferentes tipos de
questões contidas nas duas partes do questionário (ver Quadro I), ao levantamento
das concepções dos alunos sobre a modalidade de prática mais favorável à
(in)disciplina, assim como à determinação da posse, por parte dos alunos, das regras
de reconhecimento, das regras de realização passiva e das disposições sócio-
afectivas para a prática pedagógica das professoras.
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Quadro I - Análise do questionário relativamente a possíveis razões justificativas das situações de (in)disciplina.
QUESTIONÁRIO
Possíveis razões explicativas da (In)disciplina
Concepções sobre
práticas favoráveis à (In)disciplina
Orientação específica de codificação Disposições sócio-
afectivas Regras
de reconhecimento
Regras de
realização passiva
Co
nte
xto
R
eg
ula
do
r
Situações ilustrativas de
indisciplina na aula de Ciências.
(Anexo 1)
Os alunos assinalam o tipo de controlo que
acham mais favorável a um
clima de disciplina.
Os alunos identificam a actuação mais
frequentemente utilizada pela professora na
situação apresentada.
Os alunos seleccionam as
regras de conduta social
mais valorizadas
pela professora.
Situações representativas de três modalidades
diferentes de prática reguladora
(E++,E+, E-).
(Anexo 2)
Os alunos indicam a
modalidade de prática
reguladora que acham mais favorável à
(in)disciplina.
Os alunos identificam a
prática reguladora que mais se
assemelha à da sua professora.
Os alunos indicam a
modalidade de prática
reguladora que mais gostam
Co
nte
xto
I
nst
ruci
on
al
Situações representativas de duas modalidades opostas de prática
instrucional (E+,E-).
(Anexo 3)
Os alunos indicam a
modalidade de prática
instrucional que acham mais favorável à
(in)disciplina.
Os alunos identificam a
prática instrucional que mais se
assemelha à da sua professora.
Os alunos indicam a
modalidade de prática
instrucional que mais gostam
Concepções dos alunos sobre a modalidade de prática mais favorável à (in)disciplina Na análise das concepções dos alunos sobre a modalidade de prática reguladora
que consideravam mais favorável a um clima de disciplina, recorreu-se a dois tipos
de questões. Por um lado, os alunos foram solicitados a indicar, para cada uma de
três situações de indisciplina representadas (as três cenas da primeira parte do
questionário), qual dos tipos de controlo (imperativo, posicional e pessoal)
consideravam mais adequado para a professora resolver a situação de indisciplina
em causa; por outro lado, foram também solicitados a indicar, de entre três
modalidades de prática reguladora representadas (ver questão 4 do Anexo 2), qual
a que achavam mais favorável a um clima de disciplina.
15
Para ilustrar o padrão das questões em que se pedia que os alunos identificassem o
tipo de controlo mais adequado à resolução de situações de indisciplina, veja-se, a
título de exemplo, a questão 4 do Anexo 1.
Na análise das respostas dos alunos a estas questões, sempre que um aluno assinalou,
no conjunto das três situações de indisciplina representadas, as frases que tinham
subjacente o controlo imperativo ou posicional, considerou-se que achava a prática de
enquadramento muito forte como a mais propícia a um clima de disciplina. Se o aluno
assinalou, em duas situações, o controlo imperativo ou posicional e na outra situação
o controlo pessoal, considerou-se que privilegiava uma prática de enquadramento
forte na criação do clima de disciplina. Finalmente, se assinalou, nas três situações ou
pelo menos em duas delas, o controlo pessoal, considerou-se que valorizava uma
prática reguladora de enquadramento fraco para a criação do clima de disciplina. No
entanto, para determinar a modalidade de prática reguladora que os alunos
efectivamente associavam a um clima de disciplina, teve de se conjugar estes dados
(relativos à prática inferida a partir do tipo de controlo indicado pelos alunos) com a
modalidade de prática reguladora indicada como favorável à disciplina (questão 4 do
anexo 2). Para o efeito, considerou-se que a prática era de enquadramento forte se nos
dois tipos de questões fosse de enquadramento muito forte (E++) e forte (E+) e,
contrariamente, considerou-se que a prática era de enquadramento fraco se, nos dois
tipos de questões, o enquadramento fosse fraco (E-) ou ainda se numa das questões
fosse fraco (E-) e na outra fosse forte (E+).
Para conhecer as modalidades de prática reguladora e de prática instrucional que os
alunos associavam a um clima de (in)disciplina procedeu-se à análise de conteúdo das
respostas dadas pelos alunos às questões 3 do Anexo 2 e às questões 3 e 4 do Anexo
3.
Na análise dos dados recorreu-se à determinação, em termos de frequência e
percentagem, do número de alunos de cada turma que referiu, com justificação
adequada, cada uma das modalidades de prática (E++, E+ ou E- na vertente
reguladora; E+ ou E- na vertente instrucional).
Reconhecimento da prática reguladora Como se pode verificar através do Quadro I, a posse do grau de reconhecimento da
16
prática pedagógica, na sua vertente reguladora, foi obtida a partir do tipo de controlo
que os alunos indicaram como sendo o mais provável que a sua professora tivesse
utilizado em três situações de indisciplina representadas (ver, por exemplo, questão 3
do Anexo1) e a partir da modalidade de prática reguladora que consideraram mais
semelhante à da sua professora (Questão 1, Anexo 2).
As opções incluídas nas questões sobre o controlo usado na resolução das situações de
indisciplina apresentadas, tinham subjacente um tipo específico de controlo.
Interessava, neste caso, verificar se os alunos identificavam o tipo de controlo mais
frequentemente utilizado pela sua professora.
Ao nível das regras hierárquicas, o tipo de controlo mais utilizado pela professora da
turma X (indisciplinada) era o imperativo e o posicional, pelo que se os alunos desta
turma assinalassem, por exemplo, na questão 3 do anexo 1, a alínea B, que tem
inerente o controlo posicional, e a opção D que tem inerente o controlo imperativo,
considerava-se que os alunos reconheciam o controlo utilizado pela professora e,
consequentemente, a sua prática reguladora. No caso da turma Y (disciplinada), o
controlo mais utilizado pela professora era o pessoal e o posicional, com destaque
para o primeiro. Assim, se os alunos assinalassem as opções A e B, isso significava
que reconheciam o controlo mais utilizado pela sua professora e a sua prática
reguladora. Sendo a análise do reconhecimento proveniente de três questões com este
padrão construiu-se uma escala de 4 graus que conjugou os resultados das três
questões: Grau 0 – o aluno nunca indicava o controlo mais utilizado pela sua
professora; Grau 1 – o aluno indicava uma vez esse controlo; Grau 2 – o aluno
indicava-o duas vezes; Grau 3 – o aluno indicava-o três vezes. Como anteriormente
referido, o reconhecimento da vertente reguladora da prática pedagógica também foi
obtido a partir da análise das respostas à questão em que os alunos eram solicitados a
indicar e justificar, de entre as modalidades de prática reguladora representadas, a que
achavam mais parecida com a da sua professora. Neste caso as respostas dos alunos
foram analisadas tendo em conta uma outra escala de três graus: Grau 0 – o aluno não
identificava a modalidade de prática mais semelhante à da sua professora; Grau 1 – o
aluno identificava a prática mas não justificava ou a justificação não era plausível;
Grau 2 – o aluno identificava a prática e apresentava uma justificação plausível. Para
conjugar todos os dados construiu-se ainda uma outra escala de apenas dois graus,
17
sendo os resultados finais do reconhecimento da prática reguladora expressos nestes
dois graus, em termos de frequência e de percentagem.
Reconhecimento da prática instrucional O reconhecimento da prática instrucional foi determinado a partir da questão em que
os alunos indicavam, justificando, a prática instrucional que consideravam mais
semelhante à da sua professora (questão 1, Anexo 3). Na análise das respostas
considerou-se uma escala de três graus: Grau 0 – o aluno não identificava a prática da
professora; Grau 1 – o aluno identificava a prática mas não apresentava uma resposta
coerente; Grau 2 – o aluno identificava a prática e justificava coerentemente. Os
resultados foram igualmente expressos em termos de frequência absoluta e
percentagem.
Realização passiva para a prática reguladora A posse das regras de realização passiva para a vertente reguladora da prática
pedagógica foi obtida a partir de três questões, cada uma associada a uma cena
representativa de uma situação de indisciplina observada na turma indisciplinada. Em
cada uma destas questões os alunos seleccionavam e indicavam, por ordem de
importância, os comportamentos e as atitudes que consideravam responsáveis por
aquelas situações de indisciplina. As três questões possuíam um padrão idêntico (ver
questões 1 e 2 do Anexo 1).
Na determinação da realização passiva teve-se em atenção a concordância entre as
atitudes mais valorizadas pelas professoras e as mais valorizadas pelos alunos. A
professora da turma indisciplinada (turma X), perante as mesmas questões
apresentadas aos alunos, indicou que as atitudes que mais valorizava eram, por ordem
decrescente de importância, o respeito pelo professor, o respeito pelas regras, o
respeito pelos alunos e a responsabilidade, pelo que se considerou que os alunos
desta turma tinham a realização passiva se indicassem uma sequência em que nos
dois primeiros lugares estivessem o respeito pelo professor e o respeito pelas regras.
Na outra turma, a professora referiu o respeito pelo professor, o respeito pelos
colegas, a responsabilidade e o respeito pelas regras, pelo que se considerou que os
alunos desta turma tinham a realização passiva se indicassem, nos dois primeiros
lugares da sequência, o respeito pelo professor e o respeito pelos colegas. No entanto,
18
como os alunos podiam indicar sequências incompletas, correspondentes a graus
intermédios de realização passiva, concebeu-se uma escala de três graus de realização
passiva a fim de se contemplar estas situações: O grau 0 correspondia a uma
sequência em que nos dois primeiros lugares estavam as atitudes menos valorizadas
pela professora e, por conseguinte, as que esta tinha referido em último lugar ou então
estava apenas uma destas atitudes; o grau 1 correspondia a uma sequência em que, no
primeiro lugar, estava uma das atitudes mais valorizadas pela professora, ou seja, uma
das que esta tinha indicado nos dois primeiros lugares; o grau 2 correspondia a uma
sequência que apresentava nos dois primeiros lugares as duas atitudes mais
valorizadas pela professora, independentemente da ordem.
Depois de determinado o grau de realização passiva dos alunos em cada uma das três
situações representadas, ou seja, em cada um dos três micro-contextos pedagógicos,
concebeu-se uma nova escala, também com três graus, que pretendeu conjugar todos
os resultados obtidos e que traduz o grau de realização passiva alcançado por cada
aluno no contexto da prática reguladora da sua professora. Deste modo, os resultados
finais são traduzidos nestes graus e expressos em termos de frequência e percentagem.
Disposições sócio-afectivas As disposições sócio-afectivas, quer para a vertente reguladora quer para a vertente
instrucional da prática pedagógica, foram obtidas a partir de uma questão em que os
alunos tinham de indicar e justificar, de entre as diferentes modalidades de prática
(instrucional e reguladora) representadas, a que mais gostavam (ver questão 2 do
Anexo 2 e questão 2 do Anexo 3). Como se tratava de uma questão que implicava não
só a selecção da prática do agrado dos alunos como também uma justificação para
essa selecção, considerou-se que o aluno só mostrava uma disposição sócio-afectiva
favorável para uma dada prática se apresentasse uma justificação coerente com a
preferência indicada. A título de exemplo apresenta-se a referida questão para cada
uma das modalidades de prática e a respectiva resposta dada por um aluno.
VERTENTE REGULADORA
Questão: Se pudesses escolher gostavas que a tua professora de Ciências fosse como a da Marta [E+], como a do Pedro [E++] ou como a do André [E-]? Porquê?
Resposta do aluno: Gostava que fosse como a do André, porque era boa, simpática, carinhosa connosco e assim ensinava melhor.
19
VERTENTE INSTRUCIONAL
Questão: Se pudesses escolher a tua aula de Ciências, gostarias que ela fosse como a do Flávio [E+] ou como a da Jacinta [E-]? Porquê?
Resposta do aluno: Jacinta, porque os alunos estão mais à vontade, podíamos tirar dúvidas de coisas diferentes e conversar com os colegas sobre dúvidas num trabalho de grupo.
Nestas duas respostas a justificação é coerente com a prática indicada pelo aluno pelo
que se considerou que este preferia uma prática pedagógica de enquadramento fraco
em ambas as vertentes da prática da professora. Todas as respostas foram analisadas
tendo por base este critério e os resultados foram expressos em termos de frequência e
percentagem.
RESULTADOS
Análise comparativa da prática pedagógica das professoras
Em termos gerais, a prática pedagógica das duas professoras revelou-se diferente. No que
diz respeito ao contexto regulador, a principal diferença situou-se ao nível das regras
hierárquicas. A professora da turma X usava um controlo predominantemente de natureza
imperativa e posicional, caracterizando-se a regra hierárquica por um enquadramento
muito forte, enquanto a professora da turma Y optava por um controlo frequentemente do
tipo pessoal, caracterizando-se, esta regra, por um enquadramento fraco.
Também se verificou que as duas professoras não tinham uma prática específica para
o discurso regulador, embora a professora da turma Y discutisse com os alunos as
regras de conduta social, essenciais para o funcionamento das aulas, ao contrário da
outra professora.
Ainda no que diz respeito ao contexto regulador, na relação entre o espaço da professora e
o dos alunos, não se evidenciaram grandes diferenças entre a prática das duas professoras,
embora a classificação fosse menos forte no caso da prática da professora da turma Y, já
que esta se deslocava com alguma frequência entre os alunos.
No que diz respeito ao contexto instrucional, as diferenças entre a prática das duas
professoras também se revelaram notórias. A professora da turma X tinha uma prática
instrucional caracterizada, no que diz respeito às regras discursivas sequência
e selecção, por um enquadramento muito forte. Comparativamente, o enquadramento
20
para a ritmagem já era menos forte, tornando-se mesmo fraco ao nível dos critérios de
avaliação. Contrariamente, a prática instrucional da professora da turma Y, relativamente
à selecção, sequência e ritmagem caracterizava-se por um enquadramento, em termos
gerais, pouco forte. É, no entanto, de salientar que, ao nível dos critérios de avaliação, o
enquadramento era forte.
No que diz respeito à relação entre os conhecimentos académico e não académico, as
diferenças são notórias. No caso da professora da turma X, não é feita uma relação entre
estes dois tipos de conhecimento, enquanto no caso da outra professora, esta relação,
entre os dois tipos de conhecimento, é feita com alguma frequência. Quanto às relações
intra-disciplinares, a diferença entre a prática das duas professoras é pouco evidente. No
caso da professora da turma Y a inter-relação entre os diferentes assuntos abordados era
maior do que no caso da outra professora, embora a diferença não fosse marcante.
Em síntese, pode dizer-se que a prática pedagógica implementada pela professora da
turma X (indisciplinda) se aproximava de um modelo didáctico; a prática pedagógica
implementada pela professora da turma Y (disciplinada) aproximava-se de um modelo
de prática mista, com características próximas das que têm sido referidas, em
investigações, como favoráveis à aprendizagem dos alunos (Morais et al, 1993;
Morais, Neves et al, 2000).
Relação entre a (in)disciplina e a prática pedagógica
Como se pode verificar pela análise do gráfico da figura 2, o clima de indisciplina
observado na turma X e o clima de disciplina observado na turma Y parecem estar
sobretudo relacionados com a prática pedagógica da professora, já que os alunos da
turma X, bastante indisciplinados, associam essa indisciplina à prática pedagógica,
nomeadamente à prática reguladora, enquanto que os alunos da turma Y,
disciplinados, atribuem eventuais incidentes de indisciplina ao discurso,
nomeadamente ao discurso regulador, ou seja, às regras de conduta estabelecidas para
o funcionamento da aula. De salientar que, pela análise destes dados, a indisciplina
parece estar intimamente relacionada com o contexto regulador. Apesar da turma X
associar a indisciplina mais à prática e a turma Y associá-la mais ao discurso, ambas
relacionam esta questão com o contexto regulador, o que nos leva a reflectir sobre a
importância das regras de conduta que devem ser estabelecidas na aula e o modo
21
como isso deve ser feito, ou seja, leva-nos a reflectir sobre a importância do contexto
regulador na consecução de um clima de disciplina favorável à aprendizagem.
0
20
40
60
80
PR PI DI DR
Frequência de
respostas dadas (%)
Aspectos do contexto pedagógico
Turma X
Turma Y
PR – Prática reguladora
PI – Prática instrucional
DI – Discurso instrucional
DR – Discurso regulador
Figura 2 – Aspectos do contexto pedagógico a que os alunos atribuem a indisciplina.
Possíveis razões para a (in)disciplina
Como se pode verificar pela análise dos gráficos das figuras 3 e 4 a (in)disciplina
observada em ambas as turmas parece estar relacionada com a posse, por parte dos
alunos, das regras de realização passiva para a vertente reguladora da prática
pedagógica das professoras e com as disposições sócio-afectivas para essa prática.
0
10
20
30
40
50
60
Frequência de
respostas dadas (%)
Graus de realização passiva
Turma X
Turma Y
Figura 3 – Regras de realização passiva para a prática reguladora das professoras.
22
0
20
40
60
80
100
PRE- PRE+ PRE++ PIE- PIE+
Frequência de respostas (%)
Diferentes modalidades de prática pedagógica
Turma X
Turma Y
PRE - – Prática reguladora de enquadramento fracoPRE + – Prática reguladora de enquadramento fortePRE ++ – Prática reguladora de enquadramento muito fortePIE - – Prática instrucional de enquadramento fracoPIE + – Prática instrucional de enquadramento forte
Figura 4 – Preferência evidenciada pelos alunos para diferentes modalidades de prática pedagógica.
Os alunos da turma X (indisciplinados) possuem globalmente um grau de realização
passiva inferior aos alunos da turma Y (disciplinados) o que significa que na turma X
muitos alunos não sabem como se devem comportar na sala de aula, ou seja, não
sabem seleccionar os significados apropriados ao contexto regulador da prática da sua
professora, enquanto que na turma Y a grande maioria dos alunos consegue
seleccionar, num grau que permite um desempenho aceitável, esses significados
(figura 3). Relativamente às disposições sócio-afectivas (figura 4) ambas as turmas
revelaram preferir uma prática pedagógica, quer na sua vertente instrucional, quer na
sua vertente reguladora, de enquadramento fraco, ou seja, uma prática, em geral, mais
centrada no aluno, e em que as relações professor-alunos são de natureza pessoal, o
que mostra que a turma X (indisciplinada) preferia uma prática com características
opostas das que estavam presentes na sua aula de ciências e que a turma Y
(disciplinada) preferia uma prática que era relativamente próxima da prática da sua
professora. No caso da turma X, o desfasamento entre o que os alunos preferiam e o
que na realidade recebiam parece ser uma das prováveis razões para a indisciplina
ocorrida. Contrariamente, a proximidade entre o que os alunos da turma Y preferiam e
o que recebiam parece ser uma das principais razões para o clima de disciplina que se
fazia sentir nesta turma.
As concepções dos alunos sobre a modalidade de prática pedagógica mais favorável a
um clima de (in)disciplina permitem reforçar a relação verificada entre a (in)disciplina
23
e a prática pedagógica. Os gráficos das figuras 5 e 6 ilustram esta ideia.
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
Disciplina Indisciplina Disciplina Indisciplina
Resp. amb.
PRE++
PRE+
PRE-
Turma X Turma Y
PRE ++ – Prática reguladora de enquadramento muito forte PRE + – Prática reguladora de enquadramento forte PRE - – Prática reguladora de enquadramento fraco Resp.amb. - Respostas ambíguas
Figura 5 - Concepções dos alunos sobre as modalidades de prática reguladora mais propícias a um
ambiente de (in)disciplina.
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
Disciplina Indisciplina Disciplina Indisciplina
Resp. amb.
PIE-
PIE+
Turma X Turma Y
PI E + – Prática instrucional de enquadramento forte PIE - – Prática instrucional de enquadramento fraco Resp.amb. - Respostas ambíguas
Figura 6 - Concepções dos alunos sobre as modalidades de prática instrucional mais propícias a um ambiente de (in)disciplina.
24
Os alunos da turma X consideraram que uma prática mais centrada no professor, em
que os alunos assumem um papel passivo, sem possibilidade de intervenção (prática
instrucional de enquadramento forte) e onde as relações professor-aluno são sobretudo
de natureza imperativa e posicional (prática reguladora de enquadramento forte),
favorece a indisciplina e uma prática onde o aluno tem um papel mais activo no
processo de ensino-aprendizagem (prática instrucional de enquadramento fraco) e
onde as interacções professor-alunos são de natureza pessoal (prática reguladora de
enquadramento fraco) favorece a disciplina. O facto destes alunos (turma X)
beneficiarem de uma prática com características opostas à que consideravam propícia
a um ambiente de disciplina vem reforçar a relação que neste caso parecia existir entre
indisciplina e prática pedagógica e, por outro lado, vem reforçar também o significado
do sentimento desfavorável que estes alunos mostraram ter pela modalidade de prática
que recebiam. Se os alunos não gostavam da prática que recebiam e, além disso, ainda
a consideravam propícia à indisciplina, é provável que o seu desempenho no contexto
regulador resultasse da prática pedagógica da professora. Este conhecimento das
concepções dos alunos alerta-nos para as características sociológicas da prática
pedagógica que, na opinião dos alunos, são importantes na criação de um clima de
disciplina. De salientar que a turma Y (disciplinada) considerou também que as
modalidades de prática instrucional (figura 6) e reguladora (figura 5) mais favoráveis
a um ambiente de disciplina eram as de enquadramento fraco, o que vem corroborar a
relação disciplina-prática pedagógica, já que esta turma recebia uma prática com este
tipo de características.
É de referir que o reconhecimento da prática pedagógica, por parte dos alunos, não se
afigurou como uma razão fortemente justificativa da (in)disciplina observada, já que a
grande maioria dos alunos das duas turmas reconheceu as características da vertente
instrucional e reguladora da prática pedagógica das professoras.
CONCLUSÕES
Ao pretender-se investigar uma possível relação entre a (in)disciplina observada em
duas turmas do 6º ano de escolaridade e a prática pedagógica das respectivas
professoras de Ciências da Natureza e ainda as razões subjacentes a essa relação,
definiram-se os seguintes objectivos de estudo: a) identificar os aspectos do contexto
pedagógico que, na opinião do alunos, eram responsáveis pelas situações de
25
indisciplina ocorridas; b) conhecer as concepções dos alunos sobre as modalidades de
prática pedagógica mais favoráveis a situações de (in)disciplina; (c) analisar a posse,
por parte dos alunos, das regras de reconhecimento da prática pedagógica das
professoras; d) analisar a posse, pelos alunos, das regras de realização passiva para a
prática reguladora das professoras; e e) analisar as disposições sócio-afectivas (gosto)
para a prática pedagógica das professoras.
Tendo como quadro conceptual de referência a teoria de Bernstein, nomeadamente os
conceitos de código pedagógico, orientação específica de codificação e disposições
sócio-afectivas, que permitiram respectivamente a análise sociológica da prática
pedagógica das professoras e a análise dos comportamentos de (in)disciplina dos
alunos, partiu-se da ideia de que as duas turmas beneficiavam de práticas pedagógicas
bastante diferentes e que isso levaria os alunos a uma aquisição diferencial da
orientação específica de codificação para a prática pedagógica do professor e a
disposições sócio-afectivas distintas para essa prática. Se a prática pedagógica não
favorecesse a aquisição, por parte dos alunos, da orientação específica de codificação
para a prática do professor estar-se-iam a criar condições favoráveis à indisciplina,
enquanto que se a prática favorecesse a aquisição da orientação específica de
codificação estar-se-iam a criar condições favoráveis à disciplina. Contudo, a
indisciplina não resultaria apenas do grau de orientação específica de codificação que
os alunos poderiam ter para a prática do professor, mas da interacção entre esta e as
disposições sócio-afectivas dos alunos para essa prática. Mesmo que os alunos
tivessem a orientação específica de codificação para a prática do professor era
necessário que as suas disposições sócio-afectivas para essa prática fossem favoráveis
para que existissem condições propícias a um clima de disciplina.
De acordo com os resultados do estudo uma prática pedagógica que envolva
activamente os alunos e em que os critérios de avaliação sejam explícitos e as
interacções professor-alunos sejam de natureza pessoal parece ser propícia a um clima
de disciplina. Esta relação pode ser devida ao facto de, por um lado, os alunos
gostarem deste tipo de prática, podendo ficar mais motivados para a aprendizagem e,
por outro lado, porque esta prática tem características que facilitam a aquisição da
orientação específica de codificação dos alunos para essa prática, condição essencial
para que possam ter um desempenho adequado no contexto regulador, ou seja, para
26
que possam ser disciplinados. Esta evidência, embora contrária à opinião de muitos
professores que consideram que a disciplina se mantém essencialmente à custa de um
controlo imperativo, tem sido já referida por vários autores, entre os quais se destaca
Amado (2000) e Estrela (1992). Segundo Woods, citado em Amado (2000), os alunos
consideram que “o trabalho pode ser, ao mesmo tempo, pesado, odioso e agradável e
que a diferença tem menos a ver com o conteúdo da actividade do que com as
relações com o professor [...]”. Este autor salienta o facto das relações do professor
com os alunos serem marcantes e conduzirem a um clima relacional positivo se
facilitarem a confiança mútua entre ambos, de modo a não haver receios de parte a
parte ou, ainda, se conduzirem a uma aproximação afectiva que facilite o
conhecimento, a ajuda e a cooperação. Também Estrela (1992) salienta a importância
da interacção pessoal na criação de uma verdadeira auto-disciplina. Diz a autora que,
se não houver uma confiança mútua entre professor e alunos, apenas se pode verificar
a “passagem da disciplina imposta à disciplina consentida”, sem que a verdadeira
auto-disciplina seja alcançada. Assim sendo, e tomando em linha de conta os
resultados deste estudo, uma prática reguladora em que predomine um controlo inter-
pessoal terá maiores potencialidades para criar um clima relacional positivo.
Embora os resultados apresentados não possam ser generalizáveis, eles sugerem a
importância das características da prática pedagógica, nomeadamente da sua
componente reguladora, na promoção de um ambiente de disciplina. Além disso, ao
sugerirem que a indisciplina pode passar pelos alunos não perceberem como se devem
comportar de acordo com o que é legitimado pelo professor (baixo grau de realização
passiva), permitem também alertar os professores para a importância do
estabelecimento e definição de regras inerentes ao discurso regulador da sala de aula.
Este poderá ser um contributo do estudo, já que se trata de uma tarefa que, muitas
vezes, é feita mecanicamente e por isso sem os resultados esperados.
Apesar da indisciplina ser um assunto bastante discutido e sobre o qual se tem escrito
muito, pensamos ainda ter contribuído, com este estudo, para suscitar mais elementos
de reflexão e questionamento sobre esta temática. Ao conceptualizar a (in)disciplina e
a sua relação com a prática pedagógica numa perspectiva inovadora, de base
sociológica, o estudo poderá sugerir mais caminhos de investigação sobre o
comportamento dos alunos em sala de aula. Além disso, o estudo poderá reforçar
27
resultados de outras investigações sobre a relação entre a prática pedagógica e a
aprendizagem dos alunos. De acordo com essas investigações, modalidades de prática
pedagógica mista, em que, por um lado, o aluno tem um papel activo no processo de
ensino-aprendizagem e as interacções entre os sujeitos são de natureza pessoal mas,
por outro lado, os critérios de avaliação são explícitos, têm-se revelado promotoras de
sucesso, tanto em termos científicos, como em termos sócio-afectivos (Morais et al,
1993; Morais, Neves et al, 2000). Uma vez que o presente estudo mostrou que este
tipo de prática parece ser favorável à aquisição de um grau de orientação específica de
codificação promotor de comportamentos de disciplina e que os alunos gostam dele,
considerando-o inclusivamente propício a um ambiente de disciplina, está-se a
reforçar a importância deste tipo de prática, nomeadamente a sua importância na
criação de ambientes de aprendizagem favoráveis ao sucesso escolar dos alunos. O
estudo pode ainda ajudar a reflectir sobre a relevância de se ter em conta a actuação
conjunta de professores e alunos na análise dos contextos educacionais. Quando as
análises se centram apenas numa destas componentes (professores ou alunos) o
conhecimento real do contexto pode sair enviesado. Neste caso, como se teve em
conta as duas componentes, ou seja, como se teve em conta as características das
práticas implementadas pelas professoras e o modo como os alunos se posicionavam
face a essas práticas, conseguiu-se possivelmente uma visão mais aprofundada e
abrangente do contexto em análise e, consequentemente, do significado da relação
entre (in)disciplina e prática pedagógica.
Notas
1. Uma descrição pormenorizada desta análise encontra-se em Silva (2002).
2. A título de exemplo, apresentam-se, em anexo, uma das cenas da primeira parte do questionário
(Anexo 1) e as duas cenas da segunda parte do mesmo questionário (Anexos 2 e 3).
3. A versão completa do questionário pode ser consultada em Silva (2002).
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Educação e Cultura, 6 (1), 9-26.
Silva, M. P. (2002). (In)disciplina e prática pedagógica. Um estudo sociológico no contexto da aula de
ciências. Tese de Mestrado em Educação, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Varma, V. (1993). Management of behaviour in schools. Londres: Longman.
Anexo 1
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Parte 1 Cena 2
Anexo 1
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Parte 1
Cena 2
1- Por que razão o Zé Gato está a ser indisciplinado?
Coloca uma cruz Coloca uma cruz Coloca uma cruz Coloca uma cruz ( ( ( ( x ) ) ) ) nas situações que considerares de indisciplina (podes nas situações que considerares de indisciplina (podes nas situações que considerares de indisciplina (podes nas situações que considerares de indisciplina (podes assinalar mais do que uma frase).assinalar mais do que uma frase).assinalar mais do que uma frase).assinalar mais do que uma frase).
1- Porque como não passa para o caderno o que está no quadro, não está a ser responsável .[Responsabilidade]
2- Porque ao atirar papelinhos à professora, não está a respeitar a professora. [Respeito pelo professor]
3- Porque como está sem atenção às explicações da professora, não respeita as regras da turma. [Respeito pelas regras]
4- Porque ao distrair os colegas com a sua brincadeira, não está a respeitar os colegas. [Respeito pelos colegas]
Objectivo: Analisar o grau de evidência das regras de realização passiva para a prática reguladora das professoras
2- Se indicaste mais do que uma frase anteriormente, coloca-as por ordem de importância (da mais importante para a menos importante), utilizando para isso os números atribuídos a cada frase.
Objectivo: Analisar o grau de evidência das regras de realização passiva para a prática reguladora das professoras
3- Se a tua professora de Ciências se tivesse apercebido do que se passou, o que é que ela teria dito ao Zé Gato?
Coloca uma cruz Coloca uma cruz Coloca uma cruz Coloca uma cruz ( ( ( ( x ) ) ) ) na resposta que indica melhor a reacção da tua professora.na resposta que indica melhor a reacção da tua professora.na resposta que indica melhor a reacção da tua professora.na resposta que indica melhor a reacção da tua professora.
A- Zé, o melhor é dares-me o invólucro dessa caneta, porque assim estás a distrair-te e não prestas atenção à aula. [Controlo pessoal]
B- Zé, vais acabar com essa brincadeira , porque as regras da turma são para cumprir. [Controlo posicional]
C- Zé, isso é uma falta de respeito para comigo e para com os teus colegas, porque estás a prejudicar o nosso trabalho. [Controlo pessoal, com explicitação]
D- Pára imediatamente com isso e guarda o invólucro da caneta. [Controlo imperativo]
Objectivo: Analisar o grau de evidencia das regras de reconhecimento do contexto regulador da prática pedagógica da professora
4- Indica qual das reacções – A, B, C e D –achas que é mais adequada para levar o Zé Gato a melhorar o seu comportamento?
Objectivo: Conhecer a concepção dos alunos acerca da modalidade de prática pedagógica mais propícia a um clima de disciplina
Anexo 2
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Parte 2 Cena 1
Anexo 2
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Parte 2
Cena 1
1- Achas que a tua prof. de Ciências tem uma actuação mais parecida com a professora da Marta [E+], com a professora do Pedro [E++]ou com a professora do André [E-]? Porquê?
Objectivo: Analisar o grau de evidência das regras de reconhecimento do contexto regulador da prática pedagógica das professoras
2- Se pudesses escolher gostavas que a tua professora de Ciências da Natureza fosse como a da Marta [E+], como a do Pedro [E++], ou como a do André [E-]? Porquê?
Objectivo: Conhecer as disposições sócio-afectivas (gosto) para o contexto regulador da prática pedagógica das professoras
3- Com qual das professoras – do Pedro [E++], da Marta [E+]ou do André [E-] – é que achas que os alunos da tua turma teriam piorpiorpiorpior comportamento? Porquê?
Objectivo: Conhecer a concepção dos alunos acerca da modalidade de prática pedagógica mais propícia a um clima de indisciplina
4- Com qual das professoras – do Pedro [E++], da Marta [E+]ou do André [E-] – é que achas que os alunos da tua turma teriam memememelhorlhorlhorlhor comportamento? Porquê?
Objectivo: Conhecer a concepção dos alunos acerca da modalidade de prática pedagógica mais propícia a um clima de disciplina
Anexo 3
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Parte 2 Cena 2
Anexo 3
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Anexo 3
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Parte 2
Cena 2
1- Achas que as tuas aulas de Ciências são mais parecidas com as do Flávio [E+]ou com as da Jacinta [E-]? Justifica.
Objectivo: Analisar o grau de evidência das regras de reconhecimento do contexto instrucional da prática pedagógica das professoras
2- Se tu pudesses escolher a tua aula de Ciências, gostarias que ela fosse como a do Flávio [E+]ou como a da Jacinta [E-]? Porquê?
Objectivo: Conhecer as disposições sócio-afectivas (gosto) para o contexto instrucional da prática pedagógica das professoras 3- Em qual destas aulas – do Flávio [E+]ou da Jacinta [E-]– é que achas que os
alunos poderão ter piorpiorpiorpior comportamento? Porquê?
Objectivo: Conhecer a concepção dos alunos acerca da modalidade de prática pedagógica mais propícia a um clima de indisciplina
4- Em qual destas aulas – do Flávio [E+]ou da Jacinta [E-]- é que achas que os alunos poderão ter melhor melhor melhor melhor comportamento? Porquê?
Objectivo: Conhecer a concepção dos alunos acerca da modalidade de prática pedagógica mais propícia a um clima de disciplina
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O que leva os alunos a serem (in)disciplinados? Uma análise sociológica centrada em contextos diferenciados de interacção pedagógica.
Resumo
O artigo descreve um estudo que visa, por um lado, a análise da relação entre os
comportamentos de indisciplina observados na aula de Ciências da Natureza e a
prática pedagógica das respectivas professoras e, por outro lado, a compreensão das
razões que estão subjacentes a essa relação. Foi seleccionado um quadro de referência
teórica – teoria sociológica de Bernstein – que facultou os conceitos necessários à
caracterização da prática pedagógica das professoras e à interpretação das razões
justificativas dos comportamentos de (in)disciplina. Os sujeitos deste estudo foram
duas turmas do 6º ano de escolaridade de uma mesma escola e respectivas professoras
de Ciências da Natureza. Os resultados mostram que existe uma relação entre a
indisciplina ocorrida nas aulas de Ciências e a prática pedagógica e que essa relação
pode ser justificada pelo facto dos alunos não possuírem as regras de realização para a
prática reguladora das professoras e não terem as disposições sócio-afectivas para as
vertentes reguladora e instrucional da prática pedagógica das professoras.
Palavras chave: Prática pedagógica; Comportamentos de indisciplina; Orientação específica
de codificação; Disposições sócio-afectivas.
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What leads students to have disruptive behaviours? A sociological analysis in distinct contexts of pedagogic interaction
Abstract
The paper describes a study which analyses the relation between teachers’ pedagogic
practice in the science classroom and students’ disruptive behaviours and seeks to
understand reasons underlying that relation. Bernstein’s theory of pedagogic discourse
gave the concepts to characterise teachers’ pedagogic practice and to interpret
disruptive/non-disruptive behaviours. The sample was made up of two classes of the
6th year of schooling (ages 11- - 12+) of the same school and respective science
teachers. The results show a relation between disruptive behaviours in the science
classroom and pedagogic practice. They also show that this relation may be justified
by the fact that students have not acquired realisation rules to teachers’ regulative
practice and also by not having the socio-affective dispositions to the regulative and
instructional dimensions of teachers’ pedagogic practice.
Key-words: Pedagogic practice; Disruptive behaviours; Specific coding orientation; Socio-
affective dispositions.
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