UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
DOUTORADO EM MÚSICA
O GESTO VOCAL EM MÚSICA
WILLA SOANNE MARTINS
RIO DE JANEIRO, 2013
O GESTO VOCAL EM MÚSICA
por
WILLA SOANNE MARTINS
Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Música do Centro de Letras e Artes da
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, como requisito parcial para a obtenção
do título de Doutor, sob a orientação do Professor
Doutor Sérgio Azra Barrenechea
Rio de Janeiro, 2013
Martins, Willa Soanne.
M386 O gesto vocal em música / Willa Soanne Martins, 2013.
141f. ; 30 cm + CD-ROM
Orientador: Sérgio Azra Barrenechea.
Tese (Doutorado em Música) – Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
1. Berio, Luciano, 1925-2003 – Sequenza III. 2. Canto. 3. Gesto vocal.
I. Barrenechea, Sérgio Azra. II. Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro. Centro de Letras e Artes. Curso de Doutorado em Música. III. Título.
CDD – 783
À Esmeralda Rosa
(in memoriam)
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e ao Programa de Pós-Graduação
em Música.
À Capes pela concessão de bolsa de estudo de o apoio à pesquisa.
A todos os Professores Doutores do Programa de Pós-Graduação em Música que
fizeram parte da minha trajetória acadêmica, em especial ao meu orientador Sérgio
Barrenechea e também Mirna Rubim, Clayton Vetromilla, José Nunes Fernandes, Martha
Ulhôa, Marcos Vieira Lucas e Marco Tulio. Aos funcionários da secretaria, principalmente ao
Sr. Aristides Domingos Filho.
Aos professores da Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro Pauxy
Gentil-Nunes, Marcos Vinicio Nogueira, Leonardo Fuks e Rodrigo Cicchelli.
Ao apoio dos amigos e especialmente à colaboração de Daniela Ferrari e Gisele
Abrantes.
Ao meu pai Kallikrates Martins, à minha mãe Sonia Brandão e ao meu marido
Marcelo Palhares.
“Algo sem significado não faz qualquer sentido,
mas algo que não faz qualquer sentido pode ser significativo ”
Luciano Berio
RESUMO
MARTINS, Willa Soanne. O Gesto Vocal em Música. 2012. Tese de Doutorado (Doutorado
em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Propõe-se nesta tese uma investigação a cerca do gesto vocal no âmbito da música,
principalmente no repertório de música contemporânea, tendo-se chegado a uma definição
através das considerações do compositor Luciano Berio e dos autores Wilhelm Wundt e
George Herbert Mead da psicolinguística. A partir da conceituação do termo gesto vocal,
pode-se averiguar também no teatro e na poesia aproximações deste conceito com a expressão
vocal dos artistas do século XX. A fim de demonstrar-se a correlação entre gesto vocal e
expressão vocal, foi feita uma análise descritiva de gestos vocais na obra Sequenza III para
voz solo feminina de Luciano Berio, baseada na teoria de classificação de emoção do
psicólogo Robert Plutchik.
Palavras-chave: Canto. Gesto Vocal. Luciano Berio. Sequenza III.
ABSTRACT
MARTINS, Willa Soanne. The Vocal Gesture in Music. Doctoral Thesis (Doutorado em
Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro.
It is proposed in this thesis an investigation about the vocal gesture in the context of
music, mainly in contemporary music, bringing a definition through considerations by
composer Luciano Berio and authors Wilhelm Wundt and George Herbert Mead from
psycholinguistics. Subsequently, it is possible to observe similar occurrences of this very
concept in theatre and poetry, through the vocal expressions of the 20th Century artists. In
order to demonstrate the correlation between vocal gesture and vocal expression, a descriptive
analysis of the vocal gestures is presented through Sequenza III for solo female voice by
Luciano Berio, based on the theory of emotion classification by the psychologist Robert
Plutchik.
Key-words: Singing. Vocal Gesture. Luciano Berio. Sequenza III.
RÉSUMÉ
MARTINS, Willa Soanne. Le Geste Vocal en musique. 2012. Tese (Doctorat em Musique) –
Programe de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro.
Il est proposé en cette thèse une investigation sur le geste vocal dans le contexte de la
musique, surtout celle concernant a la production XX siècle, après une définition par des
considérations de compositeur Luciano Berio et des auteurs de la psycholinguistique Wilhelm
Wundt et George Herbert Mead. Aprés la définition du terme geste vocal, on trouve des
rapproche de ce concept dans le théâtre et la poésie avec l´expression vocale des artistes du
XX siècle. Afin de démontrer la corrélation entre le geste vocal et l'expression vocale, une
analyse descriptive des gestes vocaux dans le travail Sequenza III pour voix solo féminin
Luciano Berio est demontrée, basée sur la théorie de la classification de l'émotion
psychologue Robert Plutchik.
Mots-clé: Chante. Geste Vocal. Luciano Berio. Sequenza III.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................15
1. Formulação do problema...................................................................................15
2. Objetivos, delimitação e relevância...................................................................17
3. Referencial teórico.............................................................................................18
4. Metodologia e organização da tese....................................................................19
CAPÍTULO 1. CONCEITUAÇÃO DO GESTO VOCAL A PARTIR DA
PSCIOLINGUÍSTICA....................................................................................21
1.1 A psicolinguística..............................................................................................21
1.2 O gesto vocal segundo a psicolinguística..........................................................23
1.3 Gesto Vocal e música contemporânea..............................................................28
CAPÍTULO 2. DECLARAÇÕES DE LUCIANO BERIO ACERCA DO GESTO VOCAL.33
2.1 Comentários acerca das declarações de Luciano Berio ....................................33
2.2 Sequenza III e o gesto vocal...............................................................................35
CAPÍTULO 3. GESTO VOCAL E APROXIMAÇÕES COM O TEATRO E A POESIA......45
3.1 Teatro.................................................................................................................45
3.2 Poesia.................................................................................................................51
CAPÍTULO 4. ANÁLISE DESCRITIVA DE GESTOS VOCAIS NA OBRA SEQUENZA III
DE LUCIANO BERIO ..................................................................................67
4.1 Gesto vocal e emoção.............................................................................................67
4.2 Análise dos comportamentos vocais e padrões de emoção através da Roda das
Emoções de Plutchik..............................................................................................69
4.3 Classificações das emoções referentes às expressões de Sequenza III a partir do
modelo da Roda das Emoções de Plutchik.............................................................79
4.4 Gesto Vocal de Sequenza III e Emoções................................................................81
4.4.1 Emoções básicas........................................................................81
4.4.2 Díades primárias........................................................................94
4.4.3 Díades secundárias.....................................................................99
4.4.4 Díades ternárias........................................................................100
4.5 Comportamentos vocais.......................................................................................107
4.6 Padrões de emoção ..............................................................................................112
4.7 Conclusão.............................................................................................................116
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................123
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................125
ANEXO 1. Partitura de Sequenza III de Luciano Berio (1966) ............................................131
ANEXO 2. Cd com a gravação de Sequenza III de Luciano Berio.......................................141
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1. Parte da bula da partitura Sequenza III de Luciano Berio....................................41
FIGURA 2. Parte da bula da partitura Sequenza III de Luciano Berio ...................................41
FIGURA 3. Expressão de emoções, sorriso natural x sorriso “galvanizado”, de Darwin.........69
FIGURA 4. Teoria da estrutura de personalidade de Galen-Wundt........................................70
FIGURA 5. Micro expressões faciais......................................................................................72
FIGURA 6. Expressões de “agressividade” e “medo” num gato............................................73
FIGURA 7. Esfera de Cores de Wundt.....................................................................................75
FIGURA 8. Representação esquemática da Esfera de Cores de Wundt...................................75
FIGURA 9. Modelo em 3D da Roda das Emoções de Plutchik..............................................76
FIGURA 10. Modelo bidimensional da Roda das Emoções de Plutchik................................ 76
FIGURA 11. Rodas das Emoções de Plutchik com díades primárias..........................................77
FIGURA 12. Roda das Emoções de Plutchik ilustrada ...........................................................78
FIGURA 13. Símbolos de explosão de riso (bursts of laughter)............................................108
FIGURA 14. Gráfico de cores das emoções da partitura de Sequenza III, página 1..............119
FIGURA 15. Gráfico de cores das emoções da partitura de Sequenza III, página 2..............120
FIGURA 16. Gráfico de cores das emoções da partitura de Sequenza III, página 3..............121
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS
EXEMPLO MUSICAL 1. Cavatina Quel guardo il cavalieri, da ópera Don Pasquale, G.
Donizetti, compasso 28.............................................................................................................32
EXEMPLO MUSICAL 2. Sequenza III de Luciano Berio, trecho inicial do 1º.
Sistema......................................................................................................................................38
EXEMPLO MUSICAL 3. Dois momentos musicais extraídos de Sequenza III para voz solo
de Luciano Berio.....................................................................................................................40
EXEMPLO MUSICAL 4. Sequenza III para voz solo de Luciano Berio, p.1, fragmento
extraído do 3º.sistema.............................................................................................................42
EXEMPLO MUSICAL 5. Pierrot Lunaire. Trecho inicial da partitura da canção no. 7 de Pierrot
Lunaire “Der kranke Mon”, “A Lua Doente”, tradução de Augusto de Campos..................................53
EXEMPLO MUSICAL 6. Riso aberto ..................................................................................109
EXEMPLO MUSICAL 7. riso tenso, riso nervoso e frenética.............................................110
EXEMPLO MUSICAL 8. Sequência de risotenso, urgente, riso tenso, urgente e
aliviada....................................................................................................................................110
EXEMPLO MUSICAL 9. Tensa murmurando..................................................................... 111
EXEMPLO MUSICAL 10. murmurando...............................................................................111
EXEMPLO MUSICAL 11. gemendo ....................................................................................111
EXEMPLO MUSICAL 12. ecoando .....................................................................................112
EXEMPLO MUSICAL 13. frenética .....................................................................................113
EXEMPLO MUSICAL14. tensa ..........................................................................................113
EXEMPLO MUSICAL 15. serena.........................................................................................113
EXEMPLO MUSICAL 16. desmaiando................................................................................113
EXEMPLO MUSICAL 17. amável........................................................................................114
EXEMPLO MUSICAL 18. lânguida ....................................................................................114
EXEMPLO. MUSICAL 19. sonhadora com vogal a.............................................................114
EXEMPLO MUSICAL 20. sonhadora com vogal a..............................................................114
EXEMPLO MUSICAL 21. sonhadora e distante..................................................................114
EXEMPLO MUSICAL 22. aliviada.......................................................................................115
EXEMPLO MUSICAL 23. muito tensa e extremamente tensa..............................................115
EXEMPLO MUSICAL 24. muito tensa e extremamente tensa..............................................115
EXEMPLO. MUSICAL 25. distante......................................................................................116
EXEMPLO MUSICAL 26. impassível ..................................................................................116
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1. Comportamentos vocais e padrões de emoção com tradução.............................68
QUADRO 2. Formação de díades, emoções opostas e suas cores...........................................79
QUADRO 3. Níveis emoções e comportamentos vocais e padrões de emoção.......................80
QUADRO 4. Extasia- Alegria – Serenidade ............................................................................82
QUADRO 5. Angústia – Tristeza – Pensativo..........................................................................85
QUADRO 6. Terror – Medo - Apreensão.................................................................................88
QUADRO 7. Assombro - Surpresa – Distração.......................................................................90
QUADRO 8. Vigilância – Expectativa – Interesse...................................................................92
QUADRO 9. Amor ..................................................................................................................94
QUADRO 10. Submissão ........................................................................................................96
QUADRO 11. Remorso ...........................................................................................................97
QUADRO 12. Otimismo ..........................................................................................................99
QUADRO 13. Desespero .........................................................................................................99
QUADRO 14. Orgullho..........................................................................................................100
QUADRO 15. Aliviada...........................................................................................................100
QUADRO 16. Resignação .....................................................................................................101
QUADRO 17. Vergonha.........................................................................................................102
QUADRO 18. Ansiedade........................................................................................................103
QUADRO 19. Morbidez ........................................................................................................107
15
INTRODUÇÃO
1. Formulação do problema
A compreensão diferenciada de cada estilo de época para que se interprete o repertório
de acordo com suas especificidades estéticas é uma prática comum aos intérpretes
profissionais da música de concerto. Na interpretação do repertório vocal costuma-se levar em
consideração os diferentes aspectos referentes ao período histórico da obra, tais como a
presença ou não de vibrato, forma de execução dos ornamentos, presença ou não de
portamento, dicção com mais ou menos articulação, ou seja, elementos que influenciem no
resultado estético da emissão vocal. No caso do repertório da música contemporânea -
denominação normalmente utilizada para se referir às composições experimentais do século
XX e XXI, desenvolvidas principalmente pelos integrantes da escola de Darmstadt – por ter
uma estética inovadora e ainda em constante desenvolvimento, é considerado mais trabalhoso
e complexo no que se refere à interpretação e compreensão.
1Historicamente, a música contemporânea tem sido considerada por muitos
cantores, ter uma linguagem musical de difícil entendimento e que coloca
exigências irrealistas sobre a voz. (...) Isso pode ter ocorrido porque cantores
geralmente não estão familiarizados com o repertório, tendo ouvido apenas
algumas peças que parecem ter os seus piores medos. Parte dessa literatura
certamente contém dissonância, timbres melódicos abruptos, e conceitos
matemáticos de construção.
(MABRY, 2002:14)
De fato, é um repertório trabalhoso tendo em vista a pedagogia conservadora
predominante nos conservatórios atuais, mais voltada ao repertório de concerto tradicional,
então o intérprete aspirante a este repertório deve se dedicar a uma nova práxis musical e ter
uma postura diferenciada para com a obra, explorando suas habilidades criativas, assim como
1 Historically, contemporary music has been considered by many singers to have a musical language
that is difficult to fathom and places unrealistic demands on the voice.(…) This may have occurred
because singers are generally unfamiliar with the repertoire, having heard only a few pieces that
seemed to bear out their worst fears. Some of this literature certainly contains dissonance, angular
melodic timbres, and mathematical concepts of construction.
16
dispor de um estudo e análise diferenciados do normalmente conferidos a outros repertórios.
É também um repertório complexo, pois, como afirma Sharon Mabry (2002), propõe novas
organizações estruturais, instrumentações não tradicionais, utilização de sistemas escalares
incomuns e principalmente experiências sonoras, explorando novos timbres, muitas vezes
incorporando sons da natureza, ruídos e no caso da música vocal, efeitos vocais, ou seja,
ruídos e sonoridades da voz não comuns em música tais como tosse, soluço, choro, risada,
inspirações, expirações, cliques, estalos e sons vocais multifônicos.
Essa nova complexidade interpretativa que extrapola as práticas comumente adotadas
no canto lírico tradicional também estabelece uma nova forma de envolvimento do cantor
para com a obra no que diz respeito à expressividade interpretativa emocional. Tanto ouvinte
quanto intérprete estão familiarizados ao repertório tradicional e assimilam facilmente as
convenções de interpretação identificando e atribuindo emoções de forma imediata à melodia,
às harmonias, tendo como grande facilitador a poesia. Já as composições de música
contemporânea rompem com estas convenções musicais e tratam o texto poético de forma
diferenciada, podendo chegar inclusive à fragmentação deste em sons vocálicos e
consonantais, dissolvendo o seu sentido semântico em sentido puramente sonoro.
Existe, portanto, uma grande diferença no fenômeno da escuta que ocorre na música
tradicional, diferente daquele que ocorre na música contemporânea que, para Humberto Eco
(1976) reside na diferença da finalidade da obra, seus meios e sistemas. Eco explica que na
audição de uma sonata clássica, por exemplo, os ouvintes esperam encontrar probabilidades
em cujo âmbito é fácil predizer a sucessão e a superposição dos temas, assim como também o
sistema tonal estabelece regras de probabilidade com base nas quais o ouvinte terá prazer e
com as quais cria a expectativa de uma determinada resolução do desenvolvimento musical
para a tônica. Já nas composições do que Eco denomina “nova música”, ou seja, as
composições experimentais do século XX, de poética aberta, estas buscam um discurso nas
quais a possibilidade de resultados diversos são o fim primeiro. Ao visar ao máximo de
imprevisibilidade, afirma Eco, visa-se ao máximo de desordem, na qual não só os mais
comuns, mas todos os significados possíveis resultam inorganizáveis. Mas Eco acredita que
“a tendência à desordem, que caracteriza positivamente a poética da abertura, deverá ser
tendência à desordem dominada, à possibilidade abrangida por um campo, à liberdade velada
por germes de formalidade presentes na forma que se oferece aberta às livres escolhas do
fruidor.” (ECO, 1976: 129).
Desta forma, entende-se que o ouvinte não habituado à música contemporânea pode,
numa primeira audição, ter a sensação de não reconhecer quaisquer emoções representadas
17
pela obra, pois os antigos padrões estéticos construídos a partir de probabilidades já
conhecidas não estão presentes, no entanto outros parâmetros foram construídos no intuito de
despertar novas experiências de fruição emocional pela escuta, a partir da livre escolha do
ouvinte e menos dependente das probabilidades esperadas em uma escuta tradicional.
Na música vocal, tem-se em Sequenza III (1966) para voz solo de Luciano Berio um
exemplo emblemático das possibilidades expressivas da voz numa composição
contemporânea, onde existem diversas expressões de emoção descritas ao longo da partitura
através de padrões de emoção e comportamentos vocais. A alternância entre estas expressões
é tamanha que a torna uma peça extremamente difícil de ser executada de memória até mesmo
por Cathy Berberian, considerada a mais importante cantora de música contemporânea e a
quem a obra foi dedicada e destinada. A nova proposta de possibilidades expressivas da voz
consiste na representação de uma grande alternância de emoções, muitas vezes de forma
abrupta, resultando num caleidoscópio de sons, provocando no ouvinte e no cantor, uma
constante inquietação.
Luciano Berio utiliza o termo gesto vocal em oposição ao termo efeito vocal
normalmente utilizado para se referir a “qualquer uso incomum da voz cantada”. 2 (MABRY,
2002:123). Nas obras vocais de Berio, sons como a respiração, suspiros, risadas não são por
ele consideradas como efeitos, e sim gestos vocais capazes de carregar um significado. (apud
OSMOND-SMITH, 1985). Atribui tamanha importância que ressalta que estes devem ser
considerados e percebidos em seu contexto. Para compreender-se melhor esse termo, é
imprescindível que se observe os gestos vocais na obra Sequenza III, pois nela, a expressão
vocal está interligada diretamente aos sons da expressão de reações humanas (falas,
onomatopeias, interjeições, murmúrios, sons que denotam emoção como risos, choros,
soluços, suspiros).
A partir do ponto de vista de Luciano Berio do gesto vocal em música que se levanta a
hipótese de que a sua melhor compreensão pode ser a chave mestra para transpor as barreiras
que impedem uma plena assimilação e fruição da expressividade do repertório contemporâneo
vocal, tanto do cantor executante como do ouvinte.
2. Objetivos, delimitação e relevância
Ao iniciar o levantamento bibliográfico em música a fim de pesquisar mais
profundamente o termo gesto vocal no contexto musical, constatou-se que há uma falta de
2 (...) any nonstandard use of the singing voice.
18
clareza de definição deste termo, tanto por parte de Berio quanto por parte de outros autores,
tendo como consequência a utilização de forma imprecisa da terminologia ou até mesmo
diferentes acepções.
Encontra-se no campo da psicolinguística uma fundamentação clara e definida para
este termo que, através de uma revisão bibliográfica de textos dessa área do conhecimento,
será discutido e conceituado. Portanto, o objetivo principal deste estudo é fundamentar através
da psicolinguística e de declarações de Luciano Berio, uma definição precisa e prática para o
termo gesto vocal, principalmente no âmbito da música, expandindo o seu entendimento
também para a expressão vocal de áreas afins como o teatro e a poesia. Também busca-se
demonstrar a relação entre emoção e gestos vocais em música através de uma análise
descritiva dos gestos vocais encontrados na obra Sequenza III (1966) de Luciano Berio,
fundamentada a partir da classificação de emoções de Robert Plutchik. Desta forma espera-se
contribuir para um entendimento mais aprofundado e organizado acerca das possibilidades
expressivas da voz.
A pesquisa é direcionada a todos os interessados em música vocal, desde cantores
como compositores, principalmente àqueles atuantes no repertório contemporâneo e àqueles
que queiram investigar o gesto vocal em outros repertórios de gêneros diversos, inclusive
oriundos dos âmbitos populares e folclóricos.
3. Referencial teórico
Têm-se como núcleo teórico inicial os estudos acerca do gesto vocal do alemão
Wilhelm Maximilian Wundt (1832-1920) médico, filósofo e psicólogo, considerado um dos
fundadores da moderna psicologia experimental e responsável por desenvolver a teoria do
gesto vocal. Posteriormente a ênfase recai nos estudos do filósofo Georg Herbert Mead (1863-
1931), norte-americano, professor na Universidade de Chicago, que ampliou o conceito de
gesto vocal apresentado por Wundt.
No que tange a musicologia, o presente trabalho será norteado basicamente pelo
estudo do pensamento do compositor italiano Luciano Berio acerca da voz na música
contemporânea e sua concepção de gesto vocal. Será observada a sua obra Sequenza III
(1966) para se compreender melhor suas ideias através de uma análise descritiva de cada
gesto vocal e da emoção a ele correspondente.
A escolha desta obra se deu não só por sua inegável importância para o repertório
contemporâneo, mas também pela peculiaridade de propor representar mais de 36 padrões de
19
emoção diferentes e nove comportamentos vocais referentes à emoção, através dos gestos
vocais. As instruções da partitura (bula) também são muito esclarecedoras, pois, dentre outras
indicações, especifica de que forma devem ser produzidos os gestos vocais.
Sobretudo, em Sequenza III é possível explicitar as hipóteses dessa tese, pois Berio a
compôs numa estrutura semelhante à de uma invenção a três vozes: segmentação do texto,
gesto vocal e expressões, que se desenvolvem simultaneamente num paralelo de três camadas
diferentes, permitindo que seja possível observar de que forma se manifesta a inter-relação de
texto e expressões com o gesto vocal.
Para fundamentar o estudo desses padrões de emoção e classificá-los, tem-se como
referencial um dos principais teóricos das emoções, Robert Plutchik (1927 - 2006), Ph. D.
pela Universidade de Columbia, tendo sido professor emérito da Albert Einstein College of
Medicine e professor adjunto da Universidade do Sul da Flórida. Ele é autor ou co-autor de
mais de 260 artigos, 45 capítulos e oito livros dos quais editou sete. Principalmente nos
interessa a sua teoria psicoevolucionária integrativa da emoção (1980), considerada uma das
mais importantes e completas teorias classificatórias de respostas emocionais, tendo criado
um modelo chamado de Roda das Emoções que foi utilizado no entendimento das
representações emocionais das diversas expressões contidas em Sequenza III.
Também se observa a pertinência do gesto vocal nas práticas vocais do teatro do
século XX através de Constantin Stanislaviski (1863-1938), Antonin Artaud (1896-1948) e
Eugenio Barba (n.1936), assim como na poesia, citando poetas como Filippo Tommaso
Marinetti (1876-1944), Kurt Schwitters (1887-1948), dentre outros, traçando as relações
destas artes com a música contemporânea.
Espera-se, com a escolha de referências advindas de teóricos de áreas e períodos
históricos diferentes, ter-se informações mais completas e ricas que se complementem para
uma fundamentação clara do termo gesto vocal no contexto da música.
4. Metodologia e organização da tese
Revisão bibliográfica a partir dos textos dos autores citados, assim como analítico-
descritiva a partir da observância dos gestos vocais na partitura de Sequenza III. A pesquisa
foi organizada em quatro capítulos que compreendem uma revisão da literatura da
psicolinguística pertinente ao termo gesto vocal, seguindo-se de sua contextualização em
música e suas aproximações com a expressão vocal no teatro e poesia, finalizando-se com
uma análise descritiva dos gestos vocais na obra Sequenza III de Luciano Berio.
20
21
CAPÍTULO 1
CONCEITUAÇÃO DO GESTO VOCAL A PARTIR DA PSCIOLINGUÍSTICA
1.1 A Psicolinguística
A origem dos conceitos basilares da psicolinguística, segundo Camara Jr. (1995),
encontra-se inicialmente nos estudos do linguista alemão Wilhelm Humboldt3 (1767-1835) e
retomados posteriormente pelo psicólogo alemão Wilhelm Wundt (1832-1920) na virada do
século XIX para o XX. Wundt foi um dos fundadores da moderna psicologia experimental,
ciência esta que, dentre outros assuntos, busca fornecer hipóteses que expliquem como o
processamento linguístico se estrutura na mente dos seres humanos. Apesar de não se
considerar um linguista, se dedicou a lançar as bases da psicologia da linguagem como
disciplina auxiliar da linguística. Ele considerava impossível a psicologia cognitiva se
desenvolver independente da linguística e se dedicou a promover a interação entre essas duas
ciências.
O termo psicolinguística, porém, somente surge na década de 50 para se referir aos
estudos feitos até então das relações entre linguística e psicologia. “Nessa fase, os estudos
abarcados por esse campo interdisciplinar constituíam uma tentativa de encontrar respostas
para questões comuns às duas disciplinas” (MELO, 2005:9). Na psicologia, compreendiam
estudos de como a mente humana se organizava de forma análoga à linguagem e através dela.
Na linguística, são estudos preocupados em dar uma fundamentação científica para os
fenômenos da linguagem através da psicologia. Leonor Scliar-Cabral (2008) ressalta que “a
grande contribuição da psicolinguística foi a de se propor explicar, através de métodos
3 Humboldt expõe suas idéias sobre a filosofia da linguagem no estudo “Ueber die Verschiedenheiten
des menschlichen Sprachbaues”, Gesammelte Werke, VI (Berlin, 1841-1852). (VOLOSINOV,
1993:49) O conceito humboltiano se opunha a ideia de que a linguagem fosse um ergon, ou seja, um
produto congelado da atividade expressiva do homem, e acreditava que fosse um enèrgeia, que se
explica ser a manifestação ativa de um organismo vivente, da personalidade do falante, de seu
comportamento, numa palavra, de sua vida. (MELO, 2005:17)
22
experimentais, como o ouvinte transforma o sinal acústico da fala em significado e como, ao
falar, percorre o caminho inverso” (SCLIAR-CABRAL, 2008:5).
Na Psicologia, os estudiosos buscavam compreender o funcionamento da
linguagem como um meio para se chegar a uma melhor compreensão da
mente humana, pois acreditavam que esta se organizava de forma análoga à
linguagem e através dela. Vislumbravam-se, então, duas correntes: a
mentalista, que explorava o pensamento através da linguagem, e a
comportamentalista, que buscava entender o comportamento linguístico,
reduzindo-o a uma série de mecanismos de estímulo-resposta. Na linguística,
a busca pela teoria psicológica apareceu especialmente pelos introdutores do
método histórico, que tentavam fundamentar suas explicações sobre as
mudanças linguísticas no associacionismo psicológico. A demonstração feita
por Wundt de que a linguagem poderia ser em parte explicada com base em
princípios psicológicos motivou a adesão de muitos linguistas, especialmente
porque as propostas e métodos do psicólogo obedeciam ao rigorismo
científico, o que contribuiria para uma abordagem mais científica da
linguagem. (CASTRO, 2007: 119).
A psicolinguística surge então como uma disciplina que estuda cientificamente os
processos mentais relacionados com a produção da linguagem, proporcionando o
entendimento dos processos de aquisição da linguagem. Conforme ressalta Tatiana Slama-
Cazacu (1979), a psicolinguística não deve ser vista como um ramo ou uma corrente da
psicologia ou da linguística, e sim como um campo interdisciplinar.
O marco de fundação da psicolinguística foi atribuído ao seminário de verão da
Universidade de Indiana, promovido pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais (Social
Science Research Council - SSRC), que reuniu linguistas e psicólogos em discussões
interativas, consolidando opiniões de forma a se criar um consenso geral acerca das teorias e
metodologias desenvolvidas por psicólogos com aplicação nos estudos das estruturas
linguísticas estudadas naquele momento pelos linguistas. Renzo Titone (1983) acredita que o
termo psicolinguística tenha surgido pela primeira vez em um artigo de N. H. Proncko, em
1946 acerca do relacionamento entre o pensamento e a linguagem.
A partir de sua fundação oficial, vários modelos teóricos seguiram-se dando
embasamento às experiências no estudo da psicolinguística, sendo que os mais importantes no
âmbito da aquisição e desenvolvimento da linguagem são: o modelo behaviorista de B. F.
Skinner4 (1957), o inatismo
5, defendida por N. Chomsky (1959), o modelo funcional de
4 Esta teoria argumenta que a aquisição da linguagem é atingida por meio da “experiência”. (MELO,
1999:25). 5 “(...) a linguagem humana é inata e biologicamente determinada, fazendo parte de uma herança
genética do homem.” (CHOMSKY apud MELO, 1999:30).
23
Halliday6 (1975) e a abordagem pragmática
7 defendida principalmente por J. Dore (1974) e
E. Bates (1976).
Atualmente a psicolinguística é uma ciência que evolui através de novas pesquisas,
principalmente pelo uso da tecnologia, proporcionando maior precisão nas aferições dos
resultados, e pela aproximação da Psicolinguística e a Neurolinguística8.
Nesta pesquisa, é dada ênfase ao período embrionário da psicolinguística e aos seus
fundamentos iniciais, onde os primeiros esforços de união entre psicologia e linguística
fizeram surgir o conceito de gesto vocal. Neste período, que corresponde ao início do século
XX, afirma Titone (1983), as relações entre essas duas ciências manifestaram-se em dois
sentidos opostos: da parte dos linguistas, os teóricos do método histórico em linguística já
tentavam explicar suas teorias acerca das mudanças linguísticas recorrendo às teorias
psicológicas, principalmente à teoria associacionista9. Do outro lado, psicólogos como Wundt
e Mead interessaram-se pelos fenômenos da linguagem procurando neles um entendimento da
psique humana. É baseado nesses dois nomes da psicologia que fundamentaremos o conceito
de gesto vocal.
1.2 O gesto vocal segundo a psicolinguística
Na coleção de livros Völkerpsychologie (1904) de Wilhelm Wundt está o que até hoje
é considerada a origem da teoria e prática em psicolinguística, principalmente na parte em que
trata da linguagem e seus padrões de desenvolvimento. No primeiro livro, capítulo III - Die
Sprachlaute (Wundt, 1904:248), o autor trata da análise dos sons naturais da voz humana
como choro, riso, suspiro, expressões de raiva e sentimentos assim como imitações de sons de
objetos e animais. O fundamental para essas análises, afirma Frank Vonk (1993) foram as
conclusões que Wundt chegou acerca do desenvolvimento das funções expressivas dos sons
6
Introduz a interpretação sócio semântica do desenvolvimento da linguagem, analisando o
comportamento vocal e depois o verbal da criança, tomado em si mesmo, isto é, fora da interação com
o outro. (MELO, 1999:36). 7 “A abordagem pragmática está voltada para o uso das estruturas linguísticas e adota o ‘ato de fala’
como sua unidade de análise. Na definição de Searle (1969 apud Dore, 1974:343) ‘atos de fala são
atos de fazer afirmações, de dar ordens, de perguntar, de prometer, etc” (MELO, 1999:39). “Esta
concepção da aquisição da linguagem é importante porque integra os aspectos funcionais e formais do
comportamento linguístico. Neste modelo, as intenções linguísticas são uma estrutura cognitivo-
pragmática distinta das categorias gramaticais que as expressam.” (MELO, 1999:40). 8 Neurolinguística é a ciência que estuda a elaboração cerebral da linguagem.
9 “A teoria associacionista propôs que a aprendizagem se realiza através do ensaio-e-erro e que a
motivação ocorre por meio da ‘lei do efeito’”. (LA ROSA, 2003:170).
24
vocais na linguagem dos animais e também da criança, principalmente por que, quando fala
sobre a imitação dos sons, introduz a concepção de Lautgebärde, que consiste nos
movimentos faciais e corporais acompanhados de movimentos sonoros dos órgãos da fala.
Esse conceito conduz ao de gesto vocal que, para Wundt, ocorre quando uma impressão
objetiva e a imitação de sons – onomatopeias – estão conectadas, resultando numa imitação
vocal espontânea de processos externos. Ou seja, “a origem do gesto vocal é um movimento
dirigido pré-consciente, com a finalidade de se imitar uma impressão do mundo externo” 10
.
(VONK, 1993:237).
A noção de gesto vocal para Wundt reside no domínio do movimento expressivo dos
órgãos articulatórios que resulta em sons vocais de atos do cotidiano como respirar, comer e
tossir. Delbrück (1901) exemplifica o que Wundt exatamente pretende descrever através do
Lautgebärden: “se eu, por exemplo, escuto um sino tocar, o objeto me afeta e meu corpo
começa a tremer. Minha mão acompanha o movimento do sino e minha boca e lábios abrem e
fecham”.11
O som leva a um processo motor e muscular (bammeln) em associação a um
processo objetivo (movimento) e a imitação do som. Então: “... a impressão viva produz uma
ação ou um movimento de reflexo parecido com o dos órgãos articulatórios, um gesto vocal,
que é adequado ao estímulo objetivo como é o gesto de apontar ou descrever do surdo-mudo
para o objeto ao qual quer chamar a atenção do seu interlocutor.” 12
(apud VONK, 1993:238).
Os estudos de Wundt conduzem ao entendimento de que o gesto vocal tem uma
função expressiva e principalmente perlocutória, ou seja, produz efeitos no interlocutor, e foi
esse caráter mais profundo do gesto vocal que despertou o interesse de George Herbert Mead
(1863-1931) e se tornou o centro de suas pesquisas em psicologia.
Mead foi um filósofo norte-americano que a partir da linha do interacionismo
simbólico13
, ampliou os estudos de Wundt sobre gesto vocal e linguagem, lançando um novo
entendimento no que se refere à fundamentação da ontogênese da linguagem, isto por que seu
10
The origin of the vocal gesture is still a pre-conscious drive movement to imitate the outer
impression. 11
If I, for example, hear a bell ring, the object affects me and my body stars to tremble. My hand
accompanies the movement of the bell and my mouth and lips open and close. 12
…the lively impression produces a drive or reflex–like movement of the considerado um dos
fundadores do pragmatismo articulatory organs, a vocal gesture wich is as adequate to the objective
stimulus as is the pointing or depicting gesture of the deaf-mute to the object, to wich He wants to
draw the the attention of his opposite. 13
Originada na Escola de Chicago, o interacionismo simbólico é um ramo da sociologia que trata das
relações humanas. Defende a influência na interação social, dos significados particulares trazidos pelo
indivíduo à interação, assim como os significados que ele obtém a partir dessa interação.
25
pensamento se fundamenta na proposição de que a mente e o self14
(si mesmo) se formam a
partir de processos sociais.
Sobre a o papel da linguagem humana, Mead teoriza que esta é fundamental na
constituição da conduta racional do self. A linguagem, explica Titone (1983), é um fenômeno
objetivo de intercâmbio que emerge dentro de um grupo social, estabelecendo-se como fator
determinante na organização da ação humana.
São componentes da linguagem, conforme categoriza Titone, o som articulado, a voz
ou vocalidade e o gesto físico. O som articulado ou articulação é um fenômeno fisiológico (a
modificação da emissão do ar soprado através da ação dos órgãos vocais) que está
subordinado a funções expressivo-linguísticas. A voz é um complexo de características
qualitativas que acompanham o som articulado, como as variações de altura do som, o volume
ou a intensidade, o ritmo de expressão, o tom, a entonação, etc, que podem assumir um valor
tanto emotivo quanto semântico. Já o gesto físico pode ser de dois tipos: os autísticos, de
caráter psicológico, que expressam os sentimentos inconscientes de estados psíquicos não
controlados, tais como tiques, caretas instintivas, etc., e são extremamente individuais; e os
gestos intencionais, que são recursos usados pelo falante para reforçar, suprir ou completar os
símbolos orais, com caráter linguístico. A maioria dos gestos físicos intencionais está ligada
ao temperamento, às modalidades de vida, à cultura de um povo.
Para Mead (1967) o gesto físico é o nível mais elementar da ação de um ser, pois seu
mecanismo se limita a apenas gerar estímulos e em razão de tais limitações, o seu significado
não pode ser internalizado e nem o significado das reações que tal estímulo provocou em
outros indivíduos envolvidos. Isto impede que o gesto físico se transforme em símbolo
significante, ou seja, o indivíduo não tem uma ação consciente quando o executa,
consequentemente, não desenvolveu uma linguagem. Mead considera que a ação gestual não
pode ser considerada uma linguagem propriamente dita, porque nela os significados ainda não
estão na mente. Somente através do símbolo significante surge a consciência de si e, portanto,
o self. Nas palavras de Cláudio Dalbosco:
14
O que é, então, o self? Há, de um lado, o self social, o me; e, de outro lado, há o self observador, o
eu. De acordo com Mead é a conversação do eu com o me que constitui o self. O self não pode
portanto, ser caracterizado apenas como um eu, ou como um me (ou como um mim ou um si), mas sim
como uma relação especial: uma conversação social do eu com o me. Essa conversação social
envolvendo o eu e o me é o sujeito. Aos poucos ela vai dando origem ao pensamento, que Mead
caracteriza como uma “conversação interna de gestos” (ABIB, 2005:101 ).
26
O gesto [físico] contém uma dimensão comunicativa mínima.
Convertido em estímulo para outro indivíduo, sempre provocará
uma reação nele, pondo os indivíduos em contato entre si,
criando expectativas e moldando as mais diferentes formas de
reação a serem adotadas. Como forma elementar de
comunicação, o gesto impele à ação; no entanto, considerando os
exemplos empregados por Mead para caracterizá-la, trata-se
ainda de uma ação que se volta prioritariamente à auto-
conservação de quem a profere, dizendo respeito, portanto, a uma
reação instintiva que está diretamente ligada à supressão de
necessidades básicas e imediatas de seus portadores. Por isso,
mesmo apresentando um certo nível de comunicação, a ação
gestual não pode ser considerada uma linguagem propriamente
dita, porque nela os significados ainda não estão na mente. Ela
caracteriza, pois, o âmbito de ação de um indivíduo biológico
que, agindo por sinais, não possui a capacidade de internalizar os
significados veiculados por tais sinais. Para Mead está claro,
nesse sentido, que um indivíduo biológico que age gestualmente
ainda não é portador de uma mente e, por isso, não é um
indivíduo que age comunicativamente de modo consciente.
Sendo assim, a linguagem humana que permanecesse somente no
nível gestual, ela não poderia dar origem ao Self. (DALBOSCO,
2007:22, grifo nosso)
Para Mead, a origem da linguagem verbal (e do self) está no gesto vocal, fazendo parte
do desenvolvimento da própria espécie humana. O autor defende que o gesto vocal surgiu
inicialmente como uma expressão de uma emoção, e no desenvolver da filogenética,
transformou-se numa forma de expressar também um significado intelectual, ou seja, a
primeira manifestação objetiva de linguagem do ser humano foi o gesto vocal.
Conforme explica Dalbosco:
Como um fenômeno imitativo, o gesto vocal é uma ação que apresenta ao
sujeito agente a capacidade de adoção da atitude do outro, mas agora não
mais de forma meramente mecânica e instintiva, como estava representada
no gesto [físico]. Ao atingir o estágio do gesto vocal, a ação humana
desenvolve uma capacidade mínima de escuta que lhe torna possível ver a si
mesma por meio da internalização de sons provindos do exterior e,
principalmente, pronunciados por seus semelhante.” (DALBOSCO,
2007:24)
Mead compreende que o único tipo de gesto que permite um estímulo similar no
emissor e no receptor é o gesto vocal. Um gesto só pode carregar um significado definido a
ambos se suscitar uma resposta similar para os dois envolvidos numa ação particular social. A
natureza oral do gesto vocal permite ao indivíduo que o está pronunciando ouvi-lo da mesma
forma que o outro escuta e é justamente essa peculiaridade auditiva que permite explicar o
porquê do gesto vocal ser o único gesto que permite a apreensão das atitudes das outras
pessoas como se fosse a nossa própria conduta e ainda a nossa capacidade de desenvolver a
27
capacidade de compartilhar o significado com o outro. Mead acredita que o que diferencia o
ser humano dos animais é justamente esta capacidade de compartilhar o mesmo significado e
a tendência de reagir de forma coletiva. Para exemplificar esse fenômeno, Mead elaborou uma
situação hipotética onde um homem que está num teatro percebe uma fumaça e grita “fogo”.
Logo as pessoas reagem ao seu gesto vocal ora tentando apagar o fogo ou fugindo. O próprio
homem tende a responder ao seu próprio gesto vocal da mesma forma como as pessoas
respondem efetivamente ao seu próprio gesto. Se o senso coletivo for de todos terem a atitude
de apagarem o fogo, ele tende a apagar o fogo também, se as pessoas correm do fogo, ele
tende a correr do fogo. Ou seja, o homem e as pessoas a sua volta compartilham o mesmo
significado.
É importante ressaltar que o gesto vocal não é o símbolo significante. “O símbolo
significante nada mais é do que a capacidade de internalização dos gestos vocais e a sua
posterior externalização com novos significados.” (DALBOSCO, 2007:25).
O gesto vocal está na origem do processo individual de aprendizado e
desenvolvimento linguístico sendo influenciado pelo ambiente social em que se vive e como
uma evolução dos gestos corporais para os gestos vocais, e uma conversão destes em
símbolos-significantes, produzindo uma capacidade além da antecipação do comportamento
do outro. Sobre isto, resume: “a existência da mente ou da inteligência só é possível em
termos de gestos como símbolos significantes” 15
(MEAD, 1967:47). Isto ocorre por que o
indivíduo executor pode apreender externamente o gesto vocal e ter capacidade de reação de
suas próprias ações.
Mead acredita que “não se pode dizer nada que seja absolutamente particular;
qualquer coisa que alguém diga que tenha alguma significação é universal.” 16
(MEAD,
1967:146) e por isso o indivíduo tem a sensação de que a sua expressão individual suscite no
emissor a mesma reação que provoca nele mesmo. É isto que permite ao indivíduo provocar
uma reação determinada em outro de forma consciente. Mead compara esta intensão com a
atitude do ator, que se utiliza artificialmente de símbolos que despertam determinadas reações
na plateia. E ainda admite a possibilidade do indivíduo se utilizar do mesmo mecanismo em
seu cotidiano. “Em ocasiões atuamos e nos perguntamos que efeito terá nossa atitude, e é
15
Only in terms of gestures as significant symbols is the existence of mind or intelligence possible. 16
You cannot say anything that is absolutely particular; anything you say that has any meaning at all is
universal.
28
possível que empreguemos deliberadamente certo tom de voz para provocar certo resultado.”
17 (MEAD, 1867:147).
O ser humano pode ver a si mesmo por meio da escuta de seu próprio gesto vocal e
por isso, o gesto vocal proporciona uma interação de sons que ultrapassa o âmbito da reação
imediata e instintiva. O gesto vocal então é responsável pelo desenvolvimento da
racionalidade da linguagem e da própria evolução da interação humana e dos processos
sociais. Isto acontece por que, quando o gesto vocal passa a ter uma significação sólida
comum, ele gera uma atitude análoga entre o indivíduo que o executa e o que a ele reage,
resultando num novo estímulo. Com o uso constante dos gestos vocais, o indivíduo provoca
em si mesmo a reação que despertou nas outras pessoas e, tal reação é tal como a da atitude
do outro, pois esta foi progressivamente incorporada a sua práxis individual de forma natural.
Nos dias atuais, estes estudos de Mead acerca do gesto vocal são válidos e aceitos,
influenciando estudos recentes no campo da psicolinguística, conforme se pode observar nas
considerações de Garcia e Freitas (2007). As autoras consideram o gesto vocal como uma
expressão das primeiras manifestações de emoção como o choro de um bebê, pois entendem
que estas já são uma primeira forma de comunicação e que na fase adulta, os gestos vocais se
traduzem pelas entonações. “O desenvolvimento do Sistema Nervoso Central estimulado pela
vivência social evolucionou o gesto vocal primitivo em voz articulada, surgindo então, a fala”
(FREITAS, 2007:16). Completam ainda, que as entonações estão diretamente ligadas à fala
condicionadas a um habitus vocal, ou seja, seu espaço social. (FREITAS, 2007:17).
O conceito de gesto vocal e suas propriedades destacadas por Wundt e Mead vêm de
encontro àquele do gesto vocal presente em música, como será visto no decorrer desta
pesquisa, principalmente pelo seu caráter perlocutório, como afirmado por Wundt, premissa
reafirmada e ampliada pelos estudos de Mead, que faz com que o gesto vocal tenha um
conteúdo compartilhável por todos que o escutam.
1.3 Gesto Vocal e música contemporânea
O repertório da música contemporânea para voz - principalmente de compositores
como Luciano Berio, Luigi Nonno, John Cage, György Ligeti, dentre outros, integrantes ou
norteados pelos ideais da escola de Darmstadt - exige diversas habilidades conforme Mabry
(2002) especifica detalhadamente através de oito conceitos que, apesar de admitir serem
17
We do at times act and consider just what the effect of our atitude is going to be, and we may
deliberately use a certain tone of voice to bring about a certain result.
29
comuns ao repertório de qualquer período musical, adquirem um significado especial quando
se trata do repertório do século XX.
Em primeiro lugar, Mabry destaca a necessidade da maturidade vocal que deve ser
adquirida com a cuidadosa escolha do repertório, para que se consiga adquirir a desenvoltura
na execução de variadas técnicas vocais. Estas devem ser desenvolvidas dentro dos limites do
intérprete e expandidas de forma progressiva. Em segundo, destaca a prática em dicção já que
a música contemporânea se utiliza muitas vezes de um profundo conhecimento do alfabeto
fonético internacional (IPA) 18
para a execução de diversos fonemas que exigem muita
habilidade de clareza e precisão de dicção. Em terceiro, Mabry ressalta a extensão, resistência
e flexibilidade vocais, pois “algumas peças abrangem um ampla extensão vocal, contêm
sinuosas linhas vocais com vários saltos largos, ou requerem um comando de uma dinâmica
vocal extrema indo do ppp ao fff. Outras são feitas com floreios vocais, trilos, glissandos
extravagantes ou efeitos vocais como rir, sussurrar ou entoar”. 19
Em quarto, o intelecto e
imaginação que na música contemporânea significa a oportunidade de desenvolver a
capacidade para “diferentes cores vocais, interjeições faladas, técnicas estendidas da voz
como sprechstimme, tocar instrumentos enquanto canta ou determinado movimento cênico”
20. Também um ouvido treinado é necessário para esse repertório, visto que muitas obras
possuem poucas referências de tom, assim como liberdade mental e vocal, pois algumas obras
possuem momentos ad libitum levando o intérprete a improvisar. Mabry afirma que a
disciplina musical é importante para a interpretação tanto de obras tradicionais quanto
contemporâneas e que o processo de planejamento e análise pode ser um método de
aprendizagem para o cantor aumentar a sua qualidade enquanto intérprete de música
contemporânea, resultando em independência, individualismo e auto-confiança, oitavo e
último conceito listado por Mabry. Neste momento, o intérprete, já familiarizado e envolvido
com o repertório começa a ter mais liberdade para experimentar novas formas de
interpretação de acordo com os estilos. Mabry sugere ainda que o interprete trabalhe
diretamente com os compositores, escute gravações de exemplos relevantes do repertório e
18
O alfabeto fonético internacional (international phonetic alphabet – IPA) foi adotado em 1888 com
a finalidade de criar um sistema padrão de símbolos fonéticos para representar cada som específico da
linguagem oral. 19
Some pieces cover a wide vocal range, contain angular vocal lines with large skips, or require a
command of a extreme vocal dynamics from ppp to fff. Others are built on vocal flourishes, roulades,
extravagant glissandos or vocal effects such as laughing, whispering or intoning. 20
… a variety of vocal colors, spoken interjections, extended vocal techniques such as Sprechstimme,
the playing of a musical instrument while singing, or designated stage movement.
30
inclua com regularidade recitais de vários estilos de música contemporânea em sua agenda de
concertos. (MABRY, 2002:12).
Apesar de todas as exigências técnicas, é um repertório que permite ao cantor expandir
as possibilidades da expressão vocal, principalmente através do gesto vocal, ampliando os
canais de comunicação entre público e intérprete. Como vimos, o gesto vocal tem a
característica importante de promover o compartilhamento do símbolo significante, pois o
sujeito é capaz de internalizar o seu próprio gesto vocal e depois criar novos significados e
novamente compartilhar com o outro. Isso faz com que o uso do gesto vocal em música possa
ter a mesma função daquela da linguagem e ser capaz de provocar determinadas reações
emocionais no ouvinte e também com ele interagir, principalmente quando aplicado ao
repertório da música contemporânea a que nos referimos, onde o experimentalismo de novas
sonoridades envolve sons vocais emotivos e cotidianos.
Porém, o gesto vocal nem sempre é reconhecido como elemento musical. Sons
resultantes das emoções como risos, suspiros, sussurros em música são normalmente ouvidos
pelo público em geral como sons da fala que intervém no fluxo do canto, principalmente se
estes estão atrelados a uma interpretação teatral, passando a serem considerados apenas como
recursos cênicos, como algumas risadas, soluços e lamentos, presentes em obras dramáticas
como óperas e musicais. De um modo geral, estes sons são tradicionalmente considerados
qualquer outra coisa estranha ao canto, menos que sejam parte do discurso musical, mesmo
quando reiteram o sentido textual. Mas estes, principalmente no contexto da música
contemporânea, são um elemento novo em música que propõe uma nova forma de ouvir esses
“ruídos” vocais, como parte integrante da linha do canto, consequentemente da estrutura da
forma musical.
A incorporação de sonoridades tradicionalmente excluídas do discurso musical é capaz
de expandir o horizonte de possibilidades auditivas das capacidades expressivas da voz sendo
utilizadas em toda a música do século XX, não só de concerto como popular, neste caso indo
dos improvisos do jazz e imitações dos sons dos instrumentos desse gênero, passando pelo
canto-falado das canções de cabaré e musicais, indo até os guturais e agudos falsetados do
rock ou pop, como nos diversos ruídos vocais de Michael Jackson (ataques glóticos, “a”s
expirados, aspirados e os famosos “gritinhos”).
Considerar os gestos vocais em uma obra como elemento musical e emocional amplia
consideravelmente o entendimento de sua expressividade. O gesto vocal por si só, transmite
uma mensagem com sentido claro e ainda possibilita a capacidade de compartilhamento e
interação entre intérprete e ouvinte. Quando este vem associado a uma palavra (como no
31
exemplo de Mead onde o sujeito grita fogo!, carrega significados compartilhados pelo grupo
de pessoas envolvidas. O gesto vocal provoca reações emocionais no ouvinte, e a elaboração
dessas reações, que se pretende despertar na plateia, que constitui o trabalho interpretativo do
cantor.
Quando se menciona o gesto vocal do cantor, é importante ressaltar que este não se
confunde com a movimentação corporal tais como movimento de mãos, um andar ou uma
postura. Também não é o movimento corporal, necessário para a realização da técnica vocal
como a respiração e articulação dos lábios, e muito menos os que não são visíveis como o
movimento das pregas vocais. O gesto físico nem sempre colabora com a poética musical e
pode inclusive contradizê-la, como no caso do cantor que possui uma técnica vocal em que se
mantém um sorriso constante, mesmo em uma ária triste ou trágica. Da mesma forma, os
gestos físicos feitos em consequência da técnica vocal, o gesto físico do movimento cênico e
interpretativo e o gesto vocal, podem ser totalmente distintos uns dos outros numa mesma
execução. O mais recomendado é que o movimento da técnica vocal interfira o quanto menos
possível para que o intérprete possa de forma intencional ter controle de sua interpretação e
das reações que pretende despertar na plateia.
Na música contemporânea, o gesto vocal foi largamente utilizado e valorizado de
forma a criar obras musicais com uma variedade enorme de timbres. As composições passam
a explorar a gestualidade vocal num nível mais profundo e intencional. Lúcia Santaella
(2005), afirma que composições que exploram a gestualidade são aquelas que colocam ênfase
na matéria sonora, mais do que na forma. No caso do gesto vocal, dá-se ênfase na
materialidade da voz. Afirma ainda “o próprio som é gesto” e que é neste ponto que o nível
mais profundo de comparação entre o sonoro e o visual fica mais evidente, já que a ênfase na
materialidade, na energia sonora, cria uma ligação tão íntima com a organicidade, com a
gestualidade, até o ponto de se dar a penetração no plano gestual do som em si. Essa
valorização da materialidade do som ampliou a estética vocal e suas possibilidades
expressivas.
Na música de concerto tradicional, o gesto vocal também está presente, mas os sons
vocais normalmente foram concebidos e interpretados fora do contexto musical. Estes são
normalmente sons e ruídos inseridos num contexto cênico a fim de se acentuar o sentido
musical e textual, mas não foram pensados como parte integrante da música. Aparecem na
partitura ou como uma anotação cênica ou com uma altura musical definida, ou das duas
formas, como no ex. musical 1 onde a risada indicada por alturas definidas com o texto ah ah!
e indicação diretamente escrita ride (ri) em “ride e getta il libro” . Apesar de cênicos, estes
32
sons podem ser executados a partir do conceito de gesto vocal, tornando a interpretação mais
autêntica e menos automatizada.
Exemplo musical 1. Cavatina Quel guardo il cavalieri, da ópera Don Pasquale, G. Donizetti,
Ed. Ricordi, p. 41, compasso 28.
Os compositores da música contemporânea deram um espaço maior ao uso desses
gestos vocais, que ao invés de usados como recursos cênicos passam a ser elementos da
composição, e em algumas obras inclusive, são o epicentro de toda uma estruturação formal,
como em Sequenza III de Luciano Berio, objeto de estudo no próximo capítulo.
33
CAPÍTULO II
DECLARAÇÕES DE LUCIANO BERIO ACERCA DO GESTO VOCAL
2.1. Comentários acerca das declarações de Luciano Berio
Em entrevista a Bálint András Varga, Berio relata suas primeiras experiências com a
voz humana em música e deixa claro as suas intenções na utilização dos sons vocais ao
compor suas primeiras peças para voz, especialmente Sequenza III e A-Ronne (1974-1975):
Não estou interessado no som por si só – e menos ainda no efeito sonoro,
vocal ou instrumental. Eu trabalho com palavras porque eu encontrei um
novo sentido nelas analisando-as acústica e musicalmente. Eu redescobri a
palavra. Mesmo considerando a respiração e suspiros, estes não são efeitos,
mas gestos vocais que também carregam um significado: eles devem ser
considerados e percebidos em seu contexto. 21
(apud OSMOND-SMITH,
1985:141).
Berio reconhece as capacidades expressivas da voz em todas suas manifestações: “A
voz, tudo o que faz, mesmo o ruído mais simples, é inescapavelmente significativa: ela
sempre desencadeia associações e sempre carrega dentro de si um modelo, seja natural ou
cultural” 22
(BERIO, 2006:50). Essa capacidade expressiva da voz está diretamente
relacionada ao gesto vocal e em suas obras vocais, principalmente em Sequenza III, Berio
afirma “a ênfase é colocada no simbolismo do som dos gestos vocais, na ‘nuvem de
significado’ que lhes acompanham, nas associações e conflitos que cada um que cria.” 23
.
Estas características do gesto vocal fazem o ouvinte interagir com a obra da mesma forma
21
I am not interested in sound by itself – and even less in sound effects, whether of vocal or
instrumental origin. I work with words because I find new meaning in them by analyzing them
acoustically and musically. I rediscover the word. As far as breathing and sighing are concerned,
these are not effect but vocal gestures which also carry a meaning: they must be considered and
perceived in their proper context. 22
The voice, whatever it does, even the simplest noise, is inescapably meaningful: it always triggers
associations and it always carries within itself a model, whether natural or cultural. 23
In Sequenza III the emphasis is placed on the sound symbolism of vocal gestures, on the ‘shadows
of meaning” that accompany them, on the associations and conflicts to which they give rise. (fonte:
1988 – extraído do encarte de Cd Berio Senquenzas Ensemble InterConterporaine ).
34
como defende Mead: através de seu caráter perlocutório, ou seja, provocando tanto no
emissor e como no receptor um mesmo estímulo. Pode-se concluir então que o conceito de
gesto vocal a que Berio se referia é similar ao da psicolinguística, utilizando-o como elemento
em música em suas obras vocais.
(...) o potencial musical da voz está em toda a sua característica articulatória,
em todos os seus gestos. Musicalmente, a voz não é apenas um instrumento
nobre, é também a soma de todos os seus aspectos e comportamentos, do
mais respeitável ao mais trivial, e o mais estranho em música. Na tosse, por
exemplo, não existe qualquer traço de música, mas mesmo assim, eu
acredito que podemos adotar comportamentos vocais do cotidiano no sentido
musical, assim como movimentos do dia-a-dia do corpo podem ser
desenvolvidos de forma coreografada. (BERIO, 2006:68). 24
Em Sequenza III, pode-se entender e reconhecer expressões de emoção através dos
gestos vocais mesmo sem a compreensão da poesia, pois a fragmentação do texto remete o
ouvinte ao balbuciar das primeiras palavras de uma criança, ou seja, a origem da linguagem
primitiva do ser humano, gerada pela emoção, que constitui a motivação primordial do gesto
vocal. Em Sequenza III, assim como em outras obras do gênero, deve-se apreender e
compreender a obra a partir da expressividade das emoções, geradora da voz que conduz ao
gesto vocal.
É importante ter-se consciência da materialidade do som vocal e sua origem nas
emoções humanas para a interpretação de obras que utilizem técnicas estendidas para que
sejam embasadas de forma mais consciente e menos experimental. Afinal, a música se
diferencia dos sons ordinários por sua intenção de ser arte, de ser algo dizível, expressivo de
uma ideia, e os efeitos vocais não passam de sons vazios de significados se não forem
pensados e criados enquanto gesto vocal. Nas palavras de Patti Edwards em sua análise de
Sequenza III, “Quando se discute gesto em relação à música contemporânea, este toma
sentido de uma característica da ideia musical usada para um propósito estrutural e
emocional.” 25
(EDWARDS, 2004:21).
24
(…) the musical potential of the voice is everywhere, in all of its articulatory features, in all of its
gestures. Musically, a voice is not only a noble instrument; it is also the sum of all its aspects and
behaviors, from the most respectable to the most trivial, and the most estranged from music. In
coughing, for instance, there is no trace of music, but nevertheless I believe that we can endow daily
vocal behaviors with musical sense, just as everyday motions of the body can be developed
choreographically. 25
When discussing gesture in relationship to contemporary music, it takes on the meaning of a
characteristic musical idea used for structural or emotional purposes.
35
O propósito estrutural do gesto vocal fica evidenciado na seguinte explicação de
Berio:
Vamos imaginar uma sequência – um looping – de mudanças contínuas de
gestos vocais básicos (risada, soluço, choro, tosse, e outros) estereótipos
vocais que não são normalmente associados com a experiência musical. Eles
podem ser feitos para interagir pelo uso de um critério de combinação
envolvendo gestos e técnicas, assim como com uma posição de ressonância
vocal, velocidade e natureza articulatória, e assim por diante. Uma mulher
rindo, por exemplo, pode ter algo em comum com a performance de uma
soprano coloratura. Os eventos vocais sobre este looping tem diferentes
graus de associação, e do riso, por exemplo, pode se tornar o fator gerador
principal em uma paisagem descontínua vocal que, no entanto, ainda não
tem o gesto mais difícil e intenso: palavras. 26
(BERIO, 2006:68).
Baseado no pensamento de Berio e na revisão teórica feita do conceito de gesto vocal
da psicolinguística pode-se supor que Berio foi influenciado pela conceituação de Mead e que
tornou o gesto vocal um dos principais elementos utilizados em sua música vocal, conferindo
aos sons vocais do cotidiano da fala e interjeições um nível profundo de expressividade, não
permitindo que sejam confundidos como simples experimentações sonoras. A utilização do
conceito de gesto vocal em suas obras foi uma das suas principais contribuições no âmbito da
música vocal do século XX, possivelmente influenciando o pensamento da produção
subsequente.
2.2. Sequenza III e o gesto vocal
A utilização do gesto vocal como elemento composicional já se percebe nas primeiras
composições para voz de Berio, como na obra eletroacústica Thema: Omaggio a Joyce
(1958). Inicialmente o interesse surgiu a partir dos ruídos possíveis do próprio texto literário.
Ao requisitar que a cantora Berberian fizesse uma leitura do capítulo XI (Sereias) do livro
Ulysses (1922) de James Joyce, os próprios recursos linguísticos empregados no texto como
onomatopeias e aliterações, resultam numa sonoridade propositalmente ruidosa, geradora de
sons vocais compatíveis ao universo da gestualidade vocal, recordando que o gesto vocal,
26
Let us imagine a sequence-a loop-of continuously changing basic vocal gestures (laughter, sobbing,
crying, coughing, and so forth) – vocal stereotypes that are not normally associated with musical
experiences. They can be made to interact by the use of combinatorial criteria involving gestures and
techniques, as well as positioning of vocal resonance, speed and nature of the articulations, and so
forth. A woman laughing, for example, can have something in common with the performance of a
coloratura soprano. The vocal events on this loop have different degrees of association, and laughter,
for instance, can become the main generating factor in a discontinuous vocal landscape which,
however, still lacks the most challenging and intense gesture: words
36
segundo Wundt originou-se inicialmente, dentre outras ações humanas, da imitação dos sons
da natureza.
Bronze by gold heard the hoofirons, steelyrining.
Imperthnthn thnthnthn.
Chips, picking chips off rocky thumbnail, chips.
Horrid! And gold flushed more.
A husky fifenote blew.
Blew. Blue bloom is on the
Gold pinnacled hair.
A jumping rose on satiny breasts of satin, rose of Castille.
Trilling, trilling: Idolores.
Peep! Who's in the... peepofgold?
Tink cried to bronze in pity.
And a call, pure, long and throbbing.
Longindying call.
Decoy. Soft word.
But look!
The bright stars fade. O rose!
Notes chirruping answer.
Castille. The morn is breaking.
Jingle jingle jaunted jingling.
Coin rang. Clock clacked.
Avowal. Sonnez. I could. Rebound of garter. Not leave thee. Smack.
La cloche! Thigh smack. Avowal. Warm.
Sweetheart, goodbye!Jingle. Bloo.Boomed crashing chords.
When love absorbs. War! War! The tympanum.
A sail! A veil awave upon the waves.
Lost. Throstle fluted. All is lost now.
Horn. Hawhorn.When first he saw. Alas!
Full tup. Full throb.
Warbling. Ah, lure! Alluring.
Martha! Come!Clapclop. Clipclap. Clappyclap.
Goodgod henev erheard inall.
Deaf bald Pat brought pad knife took up.
A moonlight nightcall: far: far.
I feel so sad. P. S. So lonely blooming.
Listen!The spiked and winding cold seahorn.
Have you the? Each and for other plash and silent roar.
Pearls: when she. Liszt's rhapsodies. Hissss.
(Fonte: de Ulysses de James Joyce versão e-book disponível no site:
http://www.planetpdf.com/ebookarticle.asp?ContentID=ulysses&gid=6185, p.461.)
Da leitura deste texto foi feita a gravação que serviu de matéria prima para Thema. O
material sonoro passou por diversos procedimentos da prática composicional da época
comuns às obras eletroacústicas, resultando em sons fragmentados, com sentido semântico
37
decomposto e recriação das sonoridades da voz gravada. A fragmentação proposital do texto
já é um dos primeiros esforços de tirar da palavra a responsabilidade pela compreensão da
obra e passá-la para a o som da voz manipulada. Através dos recursos eletrônicos, Berio
tentou construir uma execução que seria impossível de ser realizada pela voz humana devido
à velocidade de mudança entre os sons fonéticos. Thema confirma a admiração de Berio pelo
virtuosismo da agilidade vocal na articulação de fonemas que levaria à caleidoscópica
Sequenza III.
Já em Visage (1961), obra para fita magnética composta a partir de improvisos vocais
de Berberian, o interesse por sons vocais do cotidiano aparece de forma mais evidente. Ela foi
requisitada a criar diversos gestos vocais (suspiros, choros, risadas, gemidos, dentre outros)
partindo de sua própria expressão vocal e estes sons foram manipulados eletronicamente por
Berio, nos permitindo reconhecer apenas uma única palavra: parole. Em comentários escritos
em nota por Berio às gravadoras Candide e Turnaout que reproduzem a gravação de Visage, o
compositor a descreve como uma metáfora do comportamento vocal, com um discurso
essencialmente onomatopeico. Sobre isso, George Flynn (1975) afirma que a intenção de
Berio em utilizar o termo gesto vocal para se referir aos sons vocais em suas composições era
criar uma reação inicial à superfície vocal. Ou seja, Berio tinha como motivação chamar
atenção para a voz representada por esses sons vocais do cotidiano que agora estavam sendo
apresentados num contexto musical, na expectativa de que esses ouvintes conseguissem ser
levados para um nível de escuta poética através dessas metáforas do comportamento vocal (e
também emocional). Em suas palavras:
Ouvintes dispostos a deixar a música falar em outros termos podem desejar
sondar abaixo da superfície para um segundo nível de complexidade de
formas e imagens poéticas. A audição cuidadosa revelará a relação de
envolvimento entre sons vocais e não vocais – como eles se combinam ou
contrastam, imitam ou colidem, surgem ou retrocedem; como simples gestos
e texturas poeticamente se conectam enquanto contribuem para gestos ou
formas maiores que, por sua vez, formam seções claramente definidas
(embora contíguas), a partir do qual toda a peça evolui. 27
(FLYNN, 1975:
389).
27
Listeners willing to let the music speak on other terms may wish to probe below the surface for a
complex second level of poetic images and forms. Careful listening will reveal the evolving
relationships between vocal and nonvocal sounds – how these sounds match or contrast, imitate or
collide, emerge or recede; how single gestures and textures poetically connect as they contribute to
larger gestures or shapes that, in turn, make up clearly defined (though contiguous) sections out of
which the entire piece evolves.
38
Em Sequenza III, o uso do gesto vocal está expresso em toda a sua obra interagindo
com o texto e os mais de 40 padrões de emoções (patterns of emotions) e comportamentos
vocais (vocal behavior), escritos diretamente na partitura e sublinhados, logo acima das ações
vocais (vocal actions) e símbolos de registros vocais como se vê no ex. musical 2.
Exemplo musical 2. Sequenza III de Luciano Berio (1966), trecho inicial do 1º. sistema.
39
Segundo as instruções da partitura, o executante deve não tentar representar ou fazer
uma pantomima dos padrões de emoção (“tenso”, “urgente”, “distante e sonhadora”...), mas
deve deixar essas sugestões de forma espontânea para sua ação vocal (principalmente
aspectos de cor, acento e entonação) e atitudes corporais, experimentadas de acordo com o
seu código pessoal de emoções, sua flexibilidade vocal e sua dramaturgia.
O aspecto mais virtuosístico de Sequenza III é a extrema mobilidade dos
comportamentos vocais e a velocidade de transição de um padrão de emoção ao outro e dessa
forma o texto não pode ser disposto de forma literal. Sobre isso Berio comenta:
Eu tentei assimilar no processo musical muitos aspectos do comportamento
vocal do cotidiano, inclusive os triviais, sem, no entanto deixar que isso me
distanciasse de certos aspectos intermediários e também do canto em si.
Para exercitar o controle sobre uma gama tão vasta de comportamentos
vocais, eu tive que quebrar e aparentemente abandonar o texto, para então
ser capaz de restaurar os fragmentos em diferentes níveis expressivos, e
recompô-los em unidades que não são mais discursivas e sim musicais. 28
Se nesta obra a música é estruturada através de ações vocais que exprimem sons
vocais resultantes das reações humanas do cotidiano, elementos estes normalmente vistos
como não musicais, estamos diante de um novo elemento estrutural da composição, o gesto
vocal. O efeito vocal, ou seja, simplesmente a execução de sons vocais incomuns, não faz
parte do pensamento de Berio, pois como já citado, ele não se interessa pelo som por si só e
menos ainda no puro efeito vocal e sim se preocupa em explorar os gestos vocais, pois eles
carregam significados de acordo com o seu contexto. As possibilidades expressivas da voz
pura e todos os significados que pode carregar em si mesma, em todos os níveis de
associações é o foco das obras de Berio.
Fui sempre sensível, demais até, ao excesso de conotações que a voz tem
em si. A voz, do ruído mais insolente ao canto mais refinado, significa
sempre alguma coisa, remete sempre para algo diferente dela e cria uma
gama muito vasta de associações: culturais, musicais, cotidianas, emotivas,
fisiológicas, etc. (apud OSMOND-SMITH, 1981: 80).
28
I tried to assimilate into a musical process many aspects of everyday vocal behaviour, trivial ones
included, though without allowing this to distance me from certain intermediate aspects and indeed
real singing. To exercise control over so vast a range of vocal behavior I had to break up and
seemingly to lay waste to the text, so as to be able to recover fragments from it on different expressive
levels, and to recompose them into units that are no longer discursive but musical. (fonte: 1988 –
extraído do encarte de Cd Berio Senquenzas Ensemble InterConterporaine, p.12 ).
40
Segundo Berio, Sequenza III tem uma estrutura similar a uma “invenção a três vozes”
– segmentação do texto, gesto vocal e expressões (apud OSMOND-SMITH, 1985:96),
conforme detalhamos a seguir.
A primeira voz desse contraponto – o texto - aparece no plano inferior do sistema e
foi escrito pelo poeta Markus Kutter. O texto no seu original em inglês é o seguinte:
Give me a few words for a woman
to sing a truth allowing us
to build a house without worrying before night comes.
O texto é usado de duas formas: literal e fragmentado em sons consonantais e
vocálicos, como podemos ver, por exemplo, nos dois momentos musicais distintos em que
encontramos a expressão emotiva apreensiva. No primeiro momento aparece com o texto
fragmentado nos fonemas /fo/ (i) be (u) to (e) /fo/ (i), e na segunda e última vez em que
aparece está ligada às palavras: to, me, to, sing e a.
Exemplo musical 3. Dois momentos musicais extraídos de Sequenza III (1966) para voz solo
de Luciano Berio.
Berio encomendou à Kutter um texto “feito de palavras ‘universais’ que se
compreendesse facilmente e que se fixassem docilmente na memória”29
(apud OSMOND-
SMITH 1995:95) e também que fosse “modular”, ou seja, constituído de frases curtas e
permutáveis para que ele pudesse trabalhar a mobilidade sintática e semântica. Berio queria
que as palavras tivessem uma função cênica, mas, no entanto que essa cena acontecesse no
29
( …) made up of “universal” words, that could be easily understood and would lodge themselves in
the memory.
41
imaginário do ouvinte. Dessa forma o texto, mesmo fragmentado, poderia ser compreendido
por qualquer pessoa de forma orgânica e imediata. Admitia que fosse natural que Sequenza
III agradasse inclusive às crianças, pois a obra propõe, dentre outras coisas, a ligação com
uma realidade não estritamente musical (apud OSMOND-SMITH, 1995).
Interessa-me a música vocal que imita e, em certo sentido,
descreve aquele prodigioso fenômeno que é o aspecto central da
linguagem: o som que se torna sentido. Por isso é importante que
se tenha uma consciência também acústica do material verbal para
poder voltar para a esfera do sentido e reconquistá-lo através da
dimensão acústica. (apud OSMOND-SMITH, 1981:103).
Esta consideração é fundamental para que a segunda voz, o gesto vocal, possa ser
representada musicalmente. O gesto vocal é representado pelas indicações de ações vocais ao
longo da partitura explicados pela bula (fig. 1 e 2) assim como os gráficos indicativos do
movimento sonoro a ser executado, expresso pelas linhas horizontais e verticais, bolas pretas
e brancas, alturas musicais definidas ou sugeridas, e assim por diante, que se encontra no
meio do sistema.
Figura. 1. Parte da bula da partitura Sequenza III (1966) de Luciano Berio
Figura 2. Parte da bula da partitura Sequenza III (1966) de Luciano Berio
42
A terceira voz são os estados de emoção e comportamentos vocais dispostos ao longo
da partitura representados pelas expressões e risadas descritas na bula, que aparecem no
plano superior da partitura destacadas de forma sublinhada, tais como no ex. musical 4, onde
lê-se as palavras: tense, giddy, nervous, muttering, tense l., urgente e relieved.
Exemplo musical 4. Sequenza III (1966) para voz solo de Luciano Berio, p.1, fragmento
extraído do 3º sistema.
Os padrões de emoção, segundo Berio, reforçam de maneira alusiva e não concreta, o
caráter gestual de cada momento. O texto fragmentado tem como objetivo um caráter mais
musical do que discursivo e permite que o elemento principal dessa obra - a representação de
reações emocionais através da voz – se destaque através do gesto vocal. É através deles que o
potencial expressivo da voz se manifesta. Berio afirma:
Em Sequenza III existem algumas lacunas curiosas. A obra não tem
memória de música vocal; Falta uma autonomia linguística porque não
existe a possibilidade de uma compreensão linear do texto. Ela carece de
uma autonomia musical especifica porque o significado dos eventos reside
no gesto vocal cotidiano, consequentemente tem uma carência de referência
de uma reciprocidade de uma complexidade histórica formalizada na qual,
na história da musica vocal, marca a relação entre texto e musica. Essas
ausências, eu sinto, são um convite para se ouvir de novo, e testemunhar o
miraculoso espetáculo do som se tornando sentido, talvez o sentido que nós
não encontramos antes: um convite a seguir a transição desconexa de gestos
e sons vocais para um significante estado de urgência. Algo sem significado
não faz qualquer sentido, mas algo que não faz qualquer sentido pode ser
significativo.30
(BERIO, 2006:70).
30
In Sequenza III there are certain curious absences. The work has no memory of vocal music; it lacks
linguistic autonomy because there is no possibility of linear comprehension of the text. It lacks a
specifically musical autonomy because the meaning of the event lies in the everyday vocal gestures;
consequently, it lacks a reference to the complex history of reciprocal formalizations which, in the
history of our vocal music, marks the relationship between text and music. These absences, I feel, are
a invitation to listen afresh, and to witness that miraculous spectacle of sound becoming sense –
perhaps a sense that we have not encountered before: an invitation to follow the transition from
43
A estrutura em que foi construída Sequenza III proporciona um melhor entendimento
das relações entre gestos vocais e emoções e como a voz pode ser trabalhada a partir de sons
aparentemente sem sentido e transformado em uma obra carregada de significados,
associações e conflitos, características intrínsecas do gesto vocal. Pode-se concluir então que
a principal “voz” desta “invenção a três vozes” é o gesto vocal e este é o principal responsável
pela representação da carga emotiva contida em toda a obra.
unrelated vocal sounds and gestures to a meaningful state of urgency. Something meaningless doesn’t
make any sense, but something that doesn’t make any sense can be meaningful.
44
45
CAPÍTULO 3
GESTO VOCAL E APROXIMAÇÕES COM O TEATRO E A POESIA
3.1 Teatro
As técnicas de encenação teatral incluem, além da preparação corporal, também a
preparação vocal, abordando aspectos não só apenas técnicos como emissão vocal, dicção,
projeção e volume, como também a forma como a voz irá exprimir a emoção do texto. Pode-
se dividir as várias técnicas de encenação teatral em dois polos: orgânico e artificial.
(GROTOVSKY apud GONÇALVES, 2011). No polo artificial incluem-se técnicas em que o
ator não tem qualquer identificação com a personagem que representa, e sua atuação visa
unicamente exercer um determinado efeito sobre a percepção do espectador, criando a sua
interpretação a partir de um referencial externo, um modelo imaginado pelo poeta/autor.
(DIDEROT apud GONÇALVES, 2011). No polo orgânico, que tem como mentor Constantin
Stanislavski, defende-se a identificação do ator com a personagem. Inicialmente propôs
através teoria da linha das forças motivas interiores, que o ator acessasse em si mesmo
emoções análogas à da personagem e a partir da memorização dessas emoções baseasse sua
representação, mas, no desenvolver de sua pesquisa, passou a defender que seria mais
eficiente para uma atuação orgânica a memorização de ações físicas e vocais, desenvolvendo
o método das ações físicas.
No que se refere especificamente à voz Stanislavski defende que o aparelho vocal deve
ser preparado para “reproduzir – instantaneamente e exatamente – sentimentos delicadíssimos
e quase intangíveis, com grande sensibilidade e o mais diretamente possível”
(STANISLAVSKI, 1991:45), pois somente o texto não é capaz de transmitir todas as suas
intenções. O autor almejava que os atores obtivessem habilidades que os permitissem se
distanciar de interpretações banalizadas e desenvolver capacidades criativas pessoais.
Stanislavski, principalmente no período que compreende a fundação do Estúdio da
Ópera em 1918 até a sua morte em 1938, dedicou-se a elaborar procedimentos técnicos que
desenvolvessem o potencial expressivo do aparelho vocal, não só através do domínio dos
46
aspectos técnicos, como dicção e projeção, mas também das entonações e ritmos da fala.
Através do método das ações físicas, propõe que o ator cumpra o que denomina de tarefas do
palco, que são ações comportamentais e reações da personagem, incluindo tanto ação física
como vocal, que devem se guiar por um tempo-ritmo que pulsa no corpo do ator através de
movimentos e palavras, assim como da imobilidade e silêncio. Ou seja, o ator deve criar as
emoções da personagem através da memória física (sensações e sentidos), e a partir delas,
encontrar semelhanças entre a ação do personagem e suas experiências de vida. Isso permite
que se chegue aos processos interiores do emocional do ator, gerando consequentemente,
gestos vocais. Nas palavras de Stanislavski:
Busquei as tarefas e ações físicas com base na experiência vital humana.
Para crer em sua veracidade, tive que apoiá-las em vivências internas e
justificá-las com circunstâncias supostas do personagem. Quando encontro e
sinto estas motivações internas então minha alma se assemelha, em certo
grau, à alma do personagem. 31
(apud GONÇALVES, 2011).
Este método procura principalmente despertar a organicidade das ações físicas e
vocais, ampliando as possibilidades criativas do ator a partir da sua própria subjetividade
emocional. Sobre isso, afirma:
Quando o ator já esgotou todas as vias e métodos de criação, chega a um
limite além do qual a consciência humana não pode estender-se. Aí começa
o reino do inconsciente, da intuição, que não é acessível ao cérebro, mas aos
sentimentos; não ao pensamento, mas às emoções criadoras. A técnica bruta
do ator não pode alcançá-lo. Só é acessível à sua natureza-artística.
(STANISLAVSKI, 1994:94).
A ação vocal do ator deve ter como motivação a intenção, e para desenvolvê-la o autor
considera importante a criação da linha do subtexto. O subtexto é “a expressão manifesta,
31
Busqué las tareas y acciones físicas en base a la experiencia vital humana. Para crer en su veracidad,
las tuve que apoyar en vivencias internas y justificarlas con circunstancias supuestas del personaje.
Cuando encuentro y siento esas motivaciones internas entonces mi alma se asemeja en cierto grado al
alma del personaje. (Trad. Gonçalves, 2011)
“Jimenez e Ceballos (1990, p.286), respectivamente editor e diretor editorial do coletânea de escritos
de/sobre Stanislavski organizados no livro El Evangelio de Stanislaski segun sus Apostoles,
realizaram esta publicação com base nos manúscritos provenientes do arquivo de K.K. Aleksieyeva;
cujo os originais se encontram no Departamento de Manúscritos da Biblioteca Nacional da URSS.
Stanislaski anotou a mão a data de 1936 com os subtítulos: Trabalho sobre o Personagem. O contato
como processo orgânico (ampliação do capítulo intitulado: O contato) . Tarefas Físicas (linha). O
sentir real da vida na obra e no personagem. Na edição espanhola, fonte de referência do presente
trabalho, foi reduzido o título para O Método das Ações Físicas. Pelos títulos pode-se concluir que
Stanislavski pretendia, originalmente, incluir esse material na primeira parte do livro que então
preparava para a publicação: Il lavoro dell’attore sull se stesso (no original: Robota aktera nad soboj)
nos capítulos X e XIV. No entanto, mudou de ideia e destinou esses manuscritos a outro livro em
projeto: Il lavoro dell’attore sul personnagio.” (Gonçalvez, 2011: 49)
47
intimamente sentida, de um ser humano em um papel, que flui ininterruptamente sob as
palavras do texto, dando-lhes vida e uma base para que existam.” (STANISLAVSKI,
2010:163).
Somente quando os nossos sentimentos mergulham na corrente subtextual é
que a ‘linha direta de ação’ de uma peça ou de um papel passa a existir. Ela
se manifesta não só por movimentos físicos, mas também pela fala: pode-se
representar tanto com o corpo como também pela fala: pode-se representar
tanto com o corpo como também com o som, com as palavras.
(STANISLAVSKI, 2010:164).
Da mesma forma em que aqui se defende o gesto vocal como elemento fundamental
na música vocal contemporânea por proporcionar uma expressividade às ações vocais, o autor
também defende a importância do subtexto para o dizer do texto teatral. Para o autor:
O subtexto é uma teia de incontáveis, variados padrões interiores, dentro de
uma peça e de um papel, tecida com ses mágicos, com circunstâncias dadas,
com toda sorte de imaginações, movimentos interiores, objetos de atenção,
verdades maiores e menores, a crença nelas, adaptações, ajustes e outros
elementos semelhantes. É o subtexto que nos faz dizer as palavras que
dizemos numa peça. (STANISLAVSKI, 2010:163).
O autor então afirma de forma conclusiva que “uma palavra, apresentada isoladamente
e vazia de conteúdo interior, nada mais é senão um nome exterior. O texto de um papel se for
composto apenas disso, não passará de uma série de sons vazios” (STANISLAVSKI,
2010:164), assim como um efeito vocal é igualmente vazio de conteúdo interior se não tiver
origem no emocional do executante e não chega a se tornar um gesto vocal.
Outro autor que também reconhece a importância de técnicas teatrais que
desenvolvam uma linguagem que explore toda a materialidade da voz, suas vibrações,
modulações e registro vocais foi Antonin Artaud (1993). Para ele, através desses elementos
as palavras devem assumir diferentes significados na interpretação de acordo com a
sonoridade da voz.
Sei muito bem que também as palavras têm possibilidades de sonorização,
modos diversos de se projetarem no espaço, que chamamos de entonações.
E, aliás, haveria muito a dizer sobre o valor concreto da entonação no teatro,
sobre a faculdade que têm as palavras de criar, também elas, uma música
segundo o modo como são pronunciadas, independentemente de seu sentido
– de criar sob a linguagem uma corrente subterrânea de impressões, de
correspondências, de analogias. (ARTAUD, 1993:32).
Falar poeticamente exige um envolvimento orgânico da voz e Artaud considera que
para isso acontecer o ator deve exercitar o domínio físico da afetividade, e que por meio do
cultivo de sua emoção em seu corpo o ator recarregue sua densidade. (ALEIXO, 2007:23).
48
Reconheçamos que o que já foi dito não está mais por dizer; que uma
expressão não vale duas vezes, não vive duas vezes; que toda palavra
pronunciada morre e só age no momento em que é pronunciada, que uma
forma usada não serve mais e só convida a que se procure outra, e que o
teatro é o único lugar do mundo onde um gesto feito não se faz duas vezes.
(ARTAUD apud ALEIXO 2007:24).
Da mesma forma é o gesto vocal em música, pois este também é emitido uma única
vez e sua repetição será sempre diferente, pois é produzido de acordo com a emoção daquele
momento e o fator humano está sempre em constante mudança. Também ele é uma expressão
que não vale duas vezes e não vive duas vezes tendo assim uma semelhança com a linguagem
poética teatral segundo os autores citados.
Artaud reconhece no ator uma preparação física baseada na emoção, ou seja, uma
habilidade para que este seja “um atleta do coração”, que tenha “uma espécie de musculatura
afetiva que corresponde a localizações físicas dos sentimentos” (ARTAUD, 1993:129).
Admite ainda a relação da respiração com os sentimentos, onde afirma categoricamente que
para cada sentimento, movimento do espírito e alteração da afetividade humana corresponde
uma respiração própria. Artaud defende a ligação das emoções e as ações vocais como forma
ideal de expressão vocal do ator. Critica ainda o estilo francês32
de encenação:
Ninguém mais sabe gritar na Europa, e especialmente os atores em transe
não sabem mais dar gritos. Quanto às pessoas que só sabem falar e que se
esqueceram de que tinham um corpo no teatro, também se esqueceram de
usar a garganta. Reduzidas a gargantas anormais, não é nem mesmo um
órgão mas sim uma monstruosa abstração que fala: os atores, na França,
agora só sabem falar. (ARTAUD, 1993:137)
O grito e a fala que Artaud combate é aquele advindo de clichês aprendidos, copiados
e reprisados repetidas vezes em inúmeras apresentações (polo artificial), e prefere aquele que,
assim como o conceito de gesto vocal aqui apresentado, é uma ação vocal cheia de
significados, intrinsecamente ligada às emoções do intérprete. O corpo à que se refere é o
veículo do ator para acessar emoções individuais e consequentemente atingir uma expressão
vocal orgânica e não de uma “garganta anormal”, fictícia, que o ator não possui.
Trabalhando através da glossolalia, Artaud conseguiu desenvolver sua técnica teatral
explorando uma sonoridade vocal incomum. A glossolalia “é a capacidade humana de
produzir uma vocalização cuja caraterística constituidora é justamente a ausência de
referencialidade e, na quase totalidade dos casos, a inexistência de estruturas rígidas e pré-
definidas.” (OLIVEIRA JUNIOR, 2004:18). Artaud trabalha o som das palavras desvinculado
32
Artaud se opunha ao teatro naturalista francês de sua época por ser retórico e subordinado ao texto.
49
de seu sentido semântico, permitindo que a voz se molde através de entoações das sílabas e da
sensibilidade do próprio executante. Mas esses sons não são desprovidos de conteúdo
significativo. Valente assim explica: “Apesar de isentas de qualquer infra-estrutura gramatical
ou semântica essas não-línguas comunicam uma dada mensagem que pode ser compreendida”
(VALENTE, 1999:162). É o mesmo fenômeno que de quando se escuta um estrangeiro falar
um idioma que não conhecemos. Não conseguimos compreender as palavras, sua semântica,
mas notamos as entoações e as intenções emocionais de sua fala. Da mesma forma
interpretam-se os sons dos animais e se compreende a intenção de um determinado latido, se é
amistoso ou não. É como a linguagem com que se comunicam as crianças em fase de
desenvolvimento. É o balbuciar daqueles mentalmente sãos que em razão de alguma injúria
(tumor, AVC, traumatismos, etc..), perderam a capacidade de articular a linguagem
claramente, mas também é a manifestação da linguagem dos anjos no transe religioso. É,
portanto, uma linguagem guiada por gestos vocais.
É importante se ressaltar que, no entanto, “Artaud nunca quis desconstruir a
linguagem; quis substituir a linguagem concreta: a linguagem da glossolalia, combinação de
sons encantatórios no texto escrito ou falado e a linguagem do espaço, no lugar daquilo que
antes havia sido o teatro de texto” (COELHO, 2000:48). A glossolalia, portanto, propicia um
novo envolvimento do ator com a sua expressão vocal, pois não há como pré-conceber as
entonações, ritmos das palavras a partir do sentido textual. O que irá guiar sua ação teatral
será uma proposta totalmente nova de liberdade da expressividade vocal individual que deve
ter como ponto de partida o puro som das palavras e os sentimentos únicos que evoca no
executante.
Jerzy Grotowski (2011), em seus estudos a partir de 1959 desenvolvidos através do
Teatro Laboratório33
na Polônia, afirma que o ator deve ser consciente de seus bloqueios
físicos e psíquicos a fim de propiciar um fluxo criativo e orgânico das ações físicas e vocais,
processo que denomina de via negativa.
Grotowski afirma que o ator deve sempre buscar reações vocais espontâneas ao invés
daquelas que são friamente calculadas e para isso desenvolveu exercícios de imaginação vocal
para que o ator possa aumentar as possibilidades do aparelho vocal. Um desses exercícios é
proferir sons incomuns, imitando os sons naturais e ruídos mecânicos (pingar da água, o
assoviar dos pássaros, o barulho de um motor, etc.). “ Primeiro esses sons devem ser
33
“Não se trata de um teatro no sentido usual da palavra, mas sim de um instituto dedicado a
investigar o universo da arte teatral e, em particular, da arte do ator.” (GROTOWSKI, 2011:7)
50
imitados. Em seguida, encaixados num texto falado em que possam despertar a associação do
som que você deseja transmitir (“colorindo” as palavras).” (GROTOWSKY, 2011:118)
Também seu aluno e principal divulgador das técnicas de Grotowski, Eugenio Barba
(1991), reconhece o potencial expressivo da voz, partindo da consciência emocional do ator.
Em 1964, Barba fundou o Odin Teatret na Dinamarca onde desenvolveu estudos práticos
teatrais para voz onde o objetivo era preservar as reações orgânicas espontâneas da voz e
estimular a fantasia vocal individual de cada ator, pois Barba entende que “a voz é uma força
material e que, semelhante a uma mão invisível, ela parte do nosso corpo e age de maneira
que todo o organismo vive e participa desta ação” (ALEIXO, 2007:31).
Não mais efeito calculado, voz mecanicamente impostada, mas reações-
respostas à imagem que servia de estímulo. Começamos a falar de ações
vocais. Aquilo que para nós, anteriormente, tinha sido um postulado: a voz é
um processo fisiológico - tornou-se, então, realidade palpável que engaja o
organismo inteiro e o projeta no espaço. A voz era um prolongamento do
corpo, que através do espaço golpeava, tocava, acariciava, cercava,
empurrava ou sondava à distância ou a poucos centímetros. Uma mão
invisível que se estendia do corpo para agir no espaço, ou mesmo renunciar à
ação. E também esta renúncia era dirigida pela mão invisível. Mas, para que
a voz pudesse agir, tinha que saber onde era o ponto ao qual se dirigir, quem
era este ponto e por que se dirigia a ele (BARBA, 1991:62).
Fernando Aleixo (2007) propõe que haja um investimento maior numa técnica teatral
que leve a um processo que priorize o ator e seus referenciais, com ênfase na abordagem da
manifestação corporal da voz a partir da sua dimensão sensível. Só assim, defende, ter-se-á
como consequência uma dimensão dinâmica da voz enquanto um movimento corporal sonoro,
pois a dimensão dinâmica é, em suas palavras, presença, intervenção e espaço. “É a voz
como ação e movimento que atua no espaço perceptivo permitindo instaurar relações poéticas
intercorpóreas” (ALEIXO, 2007:43).
Da mesma forma o cantor, principalmente aquele que se dedica ao repertório
contemporâneo, pode desenvolver uma preparação vocal de sua interpretação musical com
ênfase na sua manifestação particular corpórea da voz em conjunto com a dimensão do
sensível de suas emoções pessoais e atribuir a sua ação vocal uma nuvem de significados
particular através do gesto vocal, e não através de uma interpretação a partir de conceitos pré-
concebidos, copiados e banalizados, que só resultam em efeitos vocais vazios.
As teorias de preparação vocal de Stankislaviski, Artaud, Grotowski e Barba se
aproximam em muito com o conceito de gesto vocal. Possuem a mesma intenção de resultado
que é a exploração da emoção do ator privilegiando uma emissão vocal orgânica, necessária a
51
uma interpretação autêntica e idealmente expressiva. Da mesma forma que os atores devem
evitar a reprodução mecânica dos risos, choros, soluços e da própria palavra falada, também o
cantor deve evitar utilizar os efeitos vocais de forma banalizada ou como uma pura
experimentação ingênua dos sons, desprovidas de qualquer intenção poética e emocional. O
cantor deve, através do gesto vocal, expressar sua arte vocal também como, citando Artaud,
um “atleta do coração”, ao invés de se deixar vencer pela praticidade inexpressiva da
monstruosa abstração de uma garganta anormal.
3.2 Poesia
A eclosão de inovações na música contemporânea do século XX resultou em uma
congruência de pensamentos semelhantes que aproximam diferentes áreas da arte.
Especialmente entre música e poesia, onde sempre existiu uma conexão através das obras
para canto, esta aproximação foi muito mais contundente. Pierrot Lunaire34
(1912) de Arnold
Schoenberg (1874-1951) é uma obra que expressa perfeitamente a interferência entre estas
artes, principalmente por ter influenciado profundamente todo o subsequente repertório
musical para voz. Ao colocar um narrador para declamar alturas definidas em partitura, mas
ordenando-o que não as cantasse, Pierrot Lunaire estabeleceu uma importante ponte entre
poesia e música, exigindo uma nova expressão vocal do intérprete - neste caso, sempre uma
cantora.
Aquilo que na voz-falada (Sprechtimme) for apresentado como melodia
através das notas (salvo alguma exceção especialmente assinalada) não se
destina a ser cantado. O executante deve levar conta a altura do som indicada
para transformá-la em uma melodia-falada (Sprechmelodie). (apud
CAMPOS, 1998:47)
Schoenberg discorreu sobre uma série de recomendações a serem obedecidas pelo
narrador que se tornaram as bases do que foi chamado de Sprechgesang, ou, canto-falado,
modalidade em que a voz não é nem canto e nem fala:
34
Pierrot Lunaire ("Pierrot lunático" ou "Pierrot ao luar"), Op. 21, é um ciclo de canções para voz e
pequeno conjunto instrumental, baseadas nos 21 poemas do poeta francês Albert Giraud traduzidos
por Otto Erich Hartleben como Dreimal sieben Gedichte aus Albert Girauds 'Pierrot lunaire', ("três
vezes sete poemas do 'Pierrot Lunaire'”) Foi estreada na Alemanha no Berlin Choralion-saal em 16 de
outubro de 1912 tendo como intérprete Albertine Zehme.
52
Isto se obtém, desde que ele:
I – mantenha estritamente o ritmo, como se cantasse, isto é, sem maior
liberdade do que se poderia permitir numa melodia-cantada
(Gesangsmelodie);
II – se torne consciente da diferença entre som-cantado
(Gesangsmelodie) e som-falado (sprechton): o som-cantado conserva
a altura do som invariavelmente fixa, o som-falado dá a altura, mas a
abandona imediatamente através de quedas ou subidas. O executante
deve, porém, se precaver para não cair numa modalidade de fala
“cantada”. Não é isso, absolutamente, o que é desejado. O que se
pretende não é de modo algum, uma fala realístico-natural. ao
contrário, a diferença entre a fala comum e uma fala que coopera com
uma forma musical deve se tornar clara. Mas também não se deve
evocar uma canção.
(apud CAMPOS, 1998:47)
Ao escrever todas as alturas musicais para a execução de sua obra, conclui-se que a
intenção do compositor não era que uma atriz declamasse a obra, e sim uma cantora,
obedecendo rigorosamente as indicações da notação. Porém, como a declamação é uma arte
estudada por poetas e atores, é uma obra que exige à intérprete o desenvolvimento de novas
habilidades vocais. O desenho melódico apresentado na partitura (ex. musical 5 - Rezitation)
se assemelha às entonações de uma voz declamada. Mas essa declamação não é livre e sim
guiada pelas alturas musicais, requisitando conhecimentos musicais, limitando a interpretação
a apenas músicos.
No mesmo período em que Pierrot Lunaire estreou, estava em voga uma nova forma
de fazer poesia que valoriza os aspectos fonéticos da linguagem humana. É uma poesia
voltada unicamente para o uso dos aspectos fonéticos ou sonoros da expressão humana, que
em geral não permite reconhecer qualquer palavra. Surge a poesia fonética, explorada por
futuristas e dadaístas.
53
Exemplo musical 5. Trecho inicial da partitura da canção no. 7 de Pierrot Lunaire “Der kranke Mond”,
“A Lua Doente”, tradução de Augusto de Campos. (CAMPOS 1998:46).
Pode-se observar um paralelismo entre música e artes através do poeta Filippo
Tommaso Marinetti (1876-1944), considerado o fundador do futurismo, e compositores como
Francesco Balilla Pratella (1988-1955) e Luigi Russolo (1885-1947), seus contemporâneos.
Marinetti publicou um famoso manifesto no jornal Le Figaro (1909), de Paris, onde expôs sua
oposição às fórmulas acadêmicas vigentes. Exaltou a necessidade de abandonar as fórmulas
tradicionais da poesia em prol de uma nova expressividade em arte que fosse capaz de
representar o dinamismo da sociedade moderna industrial. Estava surgindo então a arte
poética baseada no ruído das máquinas da revolução industrial e também nos motores e
buzinas da mais recente novidade: o automóvel. Idealizou uma arte voltada para o indivíduo
inserido nessa nova realidade rumorosa, conforme as palavras de Marinetti em seu manifesto:
54
11. Nós cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer
ou pela sublevação; cantaremos as marés multicores e polifônicas das
revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos
arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas; as estações
esganadas, devoradoras de serpentes que fumam; as oficinas penduradas às
nuvens pelos fios contorcidos de suas fumaças; as pontes, semelhantes as
ginastas gigantes que cavalgam os rios, faiscantes ao sol com um luzir de
facas; os piróscafos aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de
largo peito, que pateiam sobre os trilhos, como enormes cavalos de aço
enleados de carros; e o vôo rasante dos aviões, cuja hélice freme ao vento,
como uma bandeira, e parece aplaudir como uma mutidão entusiasta.
(...)
É na Itália, que nós lançamos pelo mundo este nosso manifesto de violência
arrebatadora e incendiária, com o qual fundamos hoje o “Futurismo”,
porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, de
arqueólogos, de cicerones e de antiquários (...). Admirar um quadro antigo
equivale a despejar nossa sensibilidade numa urna funerária, no lugar de
projetá-la longe, em violentos jatos de criação e de ação.
(MARINETTI, 1980:34)
Marinetti, através do conceito de parole in liberta, introduziu as onomatopeias como
elemento com a finalidade de se chegar a uma linguagem que incorporasse elementos
sensoriais. O poema futurista é declamado, quase cantado. É considerado precursor da poesia
fonética. Esta declamação pode ser executada de diversas formas: acompanhada de diferentes
ruídos, produzidos por instrumentos não musicais ou com o corpo; através de várias
declamações simultâneas; com a introdução de elementos visuais de forma performática. À a
execução vocal cabe a parte fonética que se traduzia em livres palavras, gemidos, gritos,
sussurros, etc. No manifesto em prol dos músicos futuristas no Le Figaro em 1911, o
compositor Balilla Pratella declara sua adesão ao Futurismo no Manifesto dos Músicos
Futuristas.
Eu repudio o título de maestro, como marca de igualdade na mediocridade e
na ignorância, confirmo aqui a minha entusiástica adesão ao Futurismo,
apresentando aos jovens corajosos, aos temerosos, estas minhas irrevogáveis
CONCLUSÕES:
(...).
7. Proclamar que o reino do cantor deve acabar e que a importância do
cantor com relação à obra de arte corresponde à importância de um
instrumento da orquestra.
(PRATELLA, 1980:50)
55
Nesta sétima “conclusão” de Pratella, vê-se que o Futurismo propõe que a música
vocal não seja feita em função do cantor e sim em função da voz, o que permite que se
explore a sonoridade da voz da mesma forma que com os instrumentos.
Também em 1911 publica A Música Futurista - Manifesto Técnico onde declara que a
sinfonia futurista tem como formas máximas o Poema Sinfônico, orquestral e vocal e a Ópera
Teatral. Neste tipo de composição, “a voz humana mesmo sendo o maior meio de expressão,
porque é nossa e provém de nós, será espalhada ao redor pela orquestra, atmosfera sonora,
repleta de todas as vozes da natureza, representadas através da arte.” (PRATELLA, 1980:60).
Propõe uma fusão da música e poesia através do canto quando afirma:
O operista, criando ritmos ao ligar as palavras, já cria musicalmente e é autor
único da própria ópera. Musicando ao contrário, a poesia dos outros, ele
renuncia estupidamente à sua particular fonte de inspiração original, à sua
estética musical, e assume de outros a parte rítmica das suas melodias.
O verso livre é o único apto, não estando obrigado a limitações de ritmos e
de acentos que se repetem monotonamente em formas restritas e
insuficientes. A onda polifônica da poesia humana encontra no verso livre
todos os ritmos, todos os acentos e todos os modos para poder exprimir-se,
exuberantemente como numa fascinante sinfonia de palavras. Tal liberdade
de expressão rítmica é própria da música futurista.
(...)
Canto natural, espontâneo, sem a medida dos ritmos ou dos intervalos,
artificiosa limitação da expressão, que nos faz lamentar a eficácia da palavra.
(PRATELLA, 1980:60)
Já Russolo, em 1913 propõe em L'Arte dei Rumori inserir o ruído em música. Neste
manifesto proclama os novos rumos da música de seu tempo:
Em primeiro lugar, a arte musical buscava a suavidade límpida da pureza do
som. Então isso amalgamava sons diferentes com a intenção de acariciar os
ouvidos com harmonias suaves. Nos dias de hoje a arte musical almeja as
amalgamas mais estridentes, estranhas e dissonantes do som. Assim, estamos
nos aproximando do ruído sonoro. Esta revolução da música é acompanhada
pela proliferação crescente das máquinas que compartilham o trabalho
humano. Na atmosfera pulsante das grandes cidades, bem como nas antigas
cidades silenciosas do interior, as máquinas de criam hoje um número tão
grande de ruídos diversos, que o som puro, com a sua pequenez e sua
monotonia, agora deixa de despertar alguma emoção. 35
(RUSSOLO, 1967: 5)
35
First of all, musical art looked for the soft and limpid purity of sound. Then it amalgamated different
sounds, intent upon caressing the ear with suave harmonies. Nowadays musical art aims at the
shrilliest, strangest and most dissonant amalgams of sound. Thus we are approaching noise-sound.
This revolution of music is paralleled by the increasing proliferation of machinery sharing in human
labor. In the pounding atmosphere of great cities as well as in the formerly silent countryside,
56
E ainda:
Essa evolução para o ruído de som só é possível hoje. O ouvido de um
homem do século XVIII nunca poderia ter aguentado a intensidade
discordante de alguns dos acordes produzidos por nossas orquestras (cujos
músicos são três vezes mais numerosos); por outro lado os nossos ouvidos se
agradam dele, pois eles estão sintonizados com moderna vida, rica em todos
os tipos de ruídos. Mas nossos ouvidos longe de estarem satisfeitos,
continuam pedindo por maiores sensações acústicas. No entanto, o som
musical é muito restrito na variedade e qualidade dos seus tons. A orquestra
mais complicada pode ser reduzida a quatro ou cinco categorias de
instrumentos com sonoridades diferentes: instrumentos de cordas de arco,
instrumentos de cordas percutidas, instrumentos de sopro de metal,
instrumentos de sopro de madeira e instrumentos de percussão. A música
marca o tempo neste pequeno círculo e em vão tenta criar uma nova
variedade de sonoridades. É preciso romper a todo custo a partir deste
círculo restrito de sons puros e conquistar a infinita variedade de ruídos
sonoros. 36
(RUSSOLO, 1967:6)
Também os poetas do dadaísmo, movimento iniciado na Alemanha em Berlim, se
voltaram para uma poesia fonética desvinculada de valor semântico, mas o objetivo destes é a
crítica social através da subversão e da ironia. O próprio nome do movimento faz referência
ao balbuciar das primeiras tentativas de fala, os sons primitivos do ser humano. “... o
dadaísmo procura dessacralizar a língua, através do humor e da ironia fundados numa
linguagem pré-verbal” (VALENTE, 1999:155).
Em 1947, narra Marlene Fortuna (2000), o romeno Isidore Isou propõe uma nova
estética vocal contra o esgotamento da escrita, que foi chamado de ‘o letrismo de Isou, que
explora acusticamente sons como arroto, tosse, espirro, ou seja, sons não-verbais e também a
onomatopeia como forma de desconstrução da linguagem, criando um alfabeto de ruídos
vocais do letrismo. Fortuna destaca ainda o movimento “zaum”, um setor radical do
futurismo russo, que trabalha com uma proposta de linguagem sem sentido e palavras
destituídas de significado. “Se o dadá se baseia na linguagem das crianças em sua procura de
uma comunicação pré-gramatical, o zaum da língua transmental recupera a linguagem dos
machines create today such a large number of varied noises that pure sound,with its littleness and its
monotony, now fails to arouse any emotion. 36
This evolution toward noise-sound is only possible today. The ear of an eighteenth century man
never could have withstood the discordant intensity of some of the chords produced by our orchestras
(whose perfor mers are three times as numerous); on the other hand our ears rejoice in it, for they are
attuned to modern life, rich in all sorts of noises. But our ears far from being satisfied, keep asking
for bigger acoustic sensations. However, musical sound is too restricted in the variety and the quality
of its tones. The most complicated orchestra can be reduced to four or five categories of instruments
with different sound tones: rubbed string instruments, pinched string instruments, metallic wind
instruments, wooden wind instruments, and percussion instruments. Music marks time in this small
circle and vainly tries to create a new variety of tones. We must break at all cost from this restrictive
circle of pure sounds and conquer the infinite variety of noise-sounds.
57
loucos e dos folclores dialetais, procurando fixar a partir daí sua transracionalidade”
(MENEZES apud FORTUNA, 2000:32).
A poesia fonética dos futuristas e dadaístas assemelha-se aos sons da linguagem dos
anjos da glossolalia explorada no teatro por Artaud e o compositor Dieter Schnebel, que em
suas pesquisas em meados do século XX, realizou incursões no âmbito da glossolalia e da
fonética, que resultaram em diversas obras vocais que mesclam música e poesia. Neste caso, a
proposta de aproximação com a poesia parte do compositor, criando obras que transitam entre
as duas artes ou até mesmo criando uma nova arte a partir da impossibilidade de definição
categórica como uma ou outra. É o caso da obra Glossolalia onde Schnebel elabora uma obra
que ele situa a expressão vocal entre a palavra e a música, mas, ressalta, não é uma e nem
outra.
O princípio da Glossolalie é muito simples: fala como música e música
como linguagem. A peça possui uma introdução e uma coda, mas não se
pode saber onde precisamente começa ou termina. Na introdução são
expostas as formas simples da fala; são assim expostas as formas simples da
música como linguagem.
Falar como música: fala é um processo que possui categorias musicais – se
fala lentamente, rapidamente, alto, baixo.
Música como linguagem: se escutarmos os instrumentos tradicionais,
teremos um conjunto de músicas sérias. Se escutarmos os utensílios de
cozinha, teremos um outro grupo, e a música se torna uma linguagem. 37
(SCHNEBEL, 1974:103)
Schnebel também explora a voz e sua capacidade de fala e música em obras onde
utiliza agrupamentos vocais como em Für Stimmen... Missa est, com textos extraídos da
bíblia. Já começando pelos títulos, explora sons vocais por vezes impronunciáveis enquanto
palavras, mas possíveis enquanto gesto vocal como ! (madrasha 2) para três grupos vocais, e
o silábico amn para sete grupos vocais. Em três destas peças em que o compositor utiliza o
material verbal, descreve Stoianova, têm-se processos diferentes de transmutação e
37
Le príncipe de Glossolalie est três simple: parler comme musique et musique comme la langage. La
pièce a une introduction et une coda, mais on ne peut savoir au juste où commence et oú finit
exactemente la pièce. Dans l’introdution sont exposées les formes simples de parler; sont aussi
exposées les formes simples de musique comme langage.
Parler comme musique: parler est um processus qui a dês catégories musicales – on parle lentement,
on parle vite; on parle haut, on parle bas.
Musique comme langage: si on écoute des instruments traditionnels, on a un ensemble de musiques
sérieuses; si on écoute des ustensiles de cuisine, on a un autre ensemble, et la musique deviant un
langage.
58
metamorfose dos materiais verbal e musical, num mesmo jogo de processos de
engendramento sonoro. Ela conclui que se trata de processos de constituição de enunciados
musicais através da anulação do significado, decomposição do texto e da transmutação de
sonoridades da fala em música. A superposição linear de vozes relativamente compreensíveis
e de material fonético derivam de um texto traduzido em sete idiomas diferentes em amn e dt
316 . Já em ! (madrasha 2) há uma diluição e absorção dos elementos fonéticos no fluxo
sonoro de um enunciado averbal. (STOIANOVA, 1974:93).
Stoianova afirma que Schnebel “foi um dos primeiros a pesquisar a decomposição do
texto-portador de significados e o levantamento da divisão entre o dispositivo verbal e
musical, pelo engendramento de um enunciado onde todo o conteúdo será transformado em
gesto musical.” (STOIANOVA, 1974: 95).
A partir desses fonemas se compõe não somente a música, mas também a
linguagem, seguida da intenção da peça de transformar o texto como
material e conteúdo em música para que, musicalizado, ele fale: desses
fonemas pode-se compor a música e as palavras perdidas na música; o
conteúdo pode ser transformado em gestos musicais. 38
(SCHNEBEL apud
STOIANOVA, 1974:97).
Stoianova explica que a fusão da palavra decomposta em som por Schnebel quer
traduzir a gestualidade a partir do texto por que a palavra, por si mesma, pode transportar até a
música principalmente quando a delineação de sua semântica repousa sobre os elementos
fonéticos. (STOIANOVA, 1974:100).
Na década de 1940 é a poesia sonora, que faz uma aproximação com a música, tendo
diversos pontos em comum com a música concreta. Com o mesmo propósito da poesia
fonética, a poesia sonora se difere por assumir “a voz e sua materialidade pura, explorada no
seu aspecto sonoro, por intermédio da manipulação dos recursos da eletroacústica”
(VALENTE, 1999:95), traçando um paralelo às experimentações dos compositores
concretistas nos estúdios da RTF (Radio France) liderados por Pierre Schaeffer39
e Pierre
Henry. Segundo Haroldo de Campos e Augusto de Campos “a poesia concreta é o primeiro
38
A partir de ces phonèmes on compose non seulement la musique, mais aussi Le langage, suivant
l’intention de la pièce de transformer le texte comme matériau et contenu em musique pour que,
musicalisé, il parle: de ses phonèmes on peut composer de la musique et des paroles mises em
musique; le contenu peut être transforme em gestes musicaux. 39
Pierre Schaeffer, engenheiro electrotécnico e locutor, iniciou as primeiras experiências no estúdio
por volta de 1948-1949, mas somente em 1951, a prática se estabelece através da criação do Grupo de
Pesquisa de Música Concreta (Groupe de Recherche de Musique Concrète – GRMC) e a associação ao
compositor Pierre Henry. Desta época são as composições mais expressivas como Symphonie pour un
homme seul e a ópera Orpheé 51, esta última utilizando aparelhos como o Morphophone e os
Phonogènes, que funcionavam com gravações em fita magnética.
59
movimento internacional que teve, na sua criação, a participação direta, original, de poetas
brasileiros” (apud SAMPAIO 1991:122), o que demonstra a grande repercussão mundial
desse gênero de vanguarda.
Os maiores representantes da poesia sonora, segundo Heloísa Valente (1999) foram
Henri Chopin, Arthur Pétronio, Bernard Heidsieck, François Dufrêne, Pierre e Ilse Garnier e
Arrigo Lora-Torino. Suas obras muitas vezes são confundidas com obras musicais, mas essa
arte cabe aos compositores da música concreta. Nesta corrente vanguardista não só a voz e
seus ruídos são utilizados como matéria musical registrada em fita magnética, como a voz é
alterada por diversos procedimentos técnicos como decupagem, filtragem de freqüências e
mudança de velocidade da fita magnética. Tais procedimentos foram ampliados com a
evolução dos computadores que possibilitaram não só a manipulação da voz como a criação
de sons computadorizados, levando a procedimentos que fundiam a voz com outros sons
gravados ou criados artificialmente, e até mesmo a capacidade de se recriar a voz através dos
sons sintéticos.
A poesia Ursonate (1922-32), do multi-artista alemão Kurt Schwitters ou Merz,
pseudônimo com o qual assinava suas obras, também demonstra a proximidade entre música e
poesia, pois organiza inúmeros fonemas vocais em uma forma sonata. O poema é estruturado
como uma composição musical de quatro movimentos, um prelúdio, um final e uma variação
improvisada sobre o quarto movimento.
A seguir, demonstra-se através do 1º. Movimento de Ursonate, a sua estruturação,
ressaltando as partes por grifo. Fez-se um corte, também em grifo, do desenvolvimento até a
parte final, para que se visualize melhor sua estrutura. O primeiro movimento é composto de
Introdução, uma primeira parte com tema 1, tema 2, tema 3 e tema 4, a exposição, o
desenvolvimento, que compreende a parte mais extensa da poesia, e o final. Foram grifadas
também algumas observações de ações vocais como indicações de “cantado”, “gritando”, ou
seja, ruídos vocais contrapostos com o canto, criando uma diversidade de sonoridades vocais
que vão além da fragmentação fonética.
60
URSONATE de Kurt Schwitters40
Introdução:
Fümms bö wö tää zää Uu,
pögiff,
kwii Ee.
1
Oooooooooooooooooooooooo, 6
dll rrrrr beeeee bö
dll rrrrr beeeee bö fümms bö, (A)
rrrrr beeeee bö fümms bö wö,
beeeee bö fümms bö wö tää,
bö fümms bö wö tää zää,
fümms bö wö tää zää Uu:
5
primeira parte:
tema 1:
Fümms bö wö tää zää Uu,
pögiff,
Kwii Ee.
1
tema 2:
Dedesnn nn rrrrr,
Ii Ee,
mpiff tillff too,
tillll,
Jüü Kaa?
2
tema 3:
Rinnzekete bee bee nnz krr müü?
ziiuu ennze, ziiuu rinnzkrrmüü,
3
rakete bee bee, 3a
tema 4
Rrummpff tillff toooo? 4
exposição:
Ziiuu ennze ziiuu nnzkrrmüü, ü3
40
Extraído de http://www.costis.org/x/schwitters/ursonate.htm
61
Ziiuu ennze ziiuu rinnzkrrmüü
rakete bee bee? rakete bee zee. ü3a
desenvolvimento:
Fümms bö wö tää zää Uu,
Uu zee tee wee bee fümms. ü1
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete (B)
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete
Beeeee
bö
ü3+
3a
fö
böwö
fümmsbö
böwörö
fümmsböwö
böwörötää
fümmsböwötää
böwörötääzää
fümmsböwötääzää
böwörötääzääUu
fümmsböwötääzääUu
böwörötääzääUu pö
fümmsböwötääzääUu pö
böwörötääzääUu pögö
fümmsböwötääzääUu pögö
böwörötääzääUu pögiff
fümmsböwötääzääUu pögiff
kwiiEe.
1
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete (C)
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete
Beeeee
bö
ü3+
3a
fö
böwö
fümmsbö
böwörö
fümmsböwö
böwörötää
fümmsböwötää
böwörötääzää
fümmsböwötääzää
böwörötääzääUu
fümmsböwötääzääUu
böwörötääzääUu pö
fümmsböwötääzääUu pö
1
62
böwörötääzääUu pögö
fümmsböwötääzääUu pögö
böwörötääzääUu pögiff
fümmsböwötääzääUu pögiff
kwiiEe.
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete (C)
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete
rakete rinnzekete
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böwörötääzää
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fümmsböwötääzääUu
böwörötääzääUu pö
fümmsböwötääzääUu pö
böwörötääzääUu pögö
fümmsböwötääzääUu pögö
böwörötääzääUu pögiff
fümmsböwötääzääUu pögiff
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1
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rakete rinnzekete
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böwörö
1
63
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böwöböpö
böwöböpö
böwöböpö
böwöböpö
böwöböpö
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böwöröböpö
böwöröböpö
böwöröböpö
böwöröböpö
böwöröböpö
böwöröböpö
böwörötääböpö
böwörötääböpö
böwörötääböpö
böwörötääböpö
böwörötääböpö
böwörötääböpö
böwörötääböpö
böwörötääzääböpö
böwörötääzääböpö
böwörötääzääböpö
böwörötääzääböpö
böwörötääzääböpö
böwörötääzääböpö
böwörötääzääUu böpö
böwörötääzääUu böpö
böwörötääzääUu böpö
böwörötääzääUu böpö
böwörötääzääUu böpö
böwörötääzääUu böpö
böwörötääzääUu pögö
böwörötääzääUu pögö
böwörötääzääUu pögö
böwörötääzääUu pögö
böwörötääzääUu pögö
böwörötääzääUu pögö
böwörötääzääUu pöggiff
böwörötääzääUu pöggiff
böwörötääzääUu pöggiff
böwörötääzääUu pöggiff
böwörötääzääUu pöggiff
böwörötääzääUu pöggiff
fümmsböwötääzääUu pöggiff
fümmsböwötääzääUu pöggiff
fümmsböwötääzääUu pöggiff
fümmsböwötääzääUu pöggiff
fümmsböwötääzääUu pöggiff
fümmes bö wö tää zää Uu,
pöggiff,
kwiiee
kwiiee
kwiiee
kwiiee
64
kwiiee
kwiiee.
Dedesnn nn rrrrr, (E)
Ii Ee,
mpiff tillff toooo,
Dedesnn nn rrrrr,
desnn nn rrrrr
nn nn rrrrr
nn rrrrr
Iiiii
Eeeee
m
mpe
mpff
mpiffte
mpiff tilll
mpiff tillff
mpiff tillff toooo,
Dedesnn nn rrrrr, Ii Ee, mpiff tillff toooo,
Dedesnn nn rrrrr, Ii Ee, mpiff tillff toooo, tillll
Dedesnn nn rrrrr, Ii Ee, mpiff tillff toooo, tillll,Jüü-Kaa?llll,Jüü-Kaa?
(cantado)
_____________ corte________________________
(final)
Fümms bö fümms bö wö Fumms bö wö tääää?
Fümms bö fümms bö wö Fumms bö wö tää zää Uuuu?
Rattatata tattatata tattatata
Rinnzekete bee bee nnz krr müüüü?
Fümms bö
Fümms böwö
Fümms bö wö täää????? (gritando)
Processos de elaborações musicais como a gravação da voz a partir da leitura de um
texto literário, dar importância aos fonemas e a inclusão dos ruídos da fala se assemelham
muito aos procedimentos utilizados na poesia sonora. “O experimentalismo levado a cabo
pela poesia e pela música contribui para um esfacelamento das fronteiras entre as duas artes”,
afirma Valente e ainda conclui que “ uma característica da arte do século XX em geral é
justamente a tendência à eliminação de fronteiras nos domínios artísticos, o que propiciou o
surgimento da chamada arte multimídia.” Também reconhece a importância da música nesse
65
processo: “ podemos constatar que a música, de sua parte, também contribuiu para esse novo
redimensionamento. O conceito de voz musical, por exemplo expandiu-se
consideravelmente.” (VALENTE, 199: 156). Apesar dessa grande aproximação, essas artes
não se confundem e nem se fundem, mas trabalham de forma similar e com os mesmos
recursos em paralelo. Da mesma forma considera Menezes:
A diferença entre a poesia sonora e a música está, então, no método de cada
uma dessas linguagens: a poesia sonora tem como ponto de partida a voz
extraída de seu uso cotidiano, tendo como referência o trabalho realizado
pelas vanguardas históricas (os foneticistas); a música concreta e eletrônica
teriam como procedimento a organização dos sons vocais obedecendo a uma
eufonia segundo critérios estabelecidos pelo compositor (apud VALENTE,
199: 156)
De fato, apesar de, tanto poesia quanto música terem sido marcadas nessa época por
uma série de experimentações no âmbito vocal nos levando a resultados auditivos muito
semelhantes, e apesar de um mesmo autor compor música vocal e poesia, baseados numa
nova estética vocal, percebe-se que a inspiração, a forma e a motivação artística que move
cada arte assim como a preparação de cada artista executante – declamador ou cantor – são,
apesar de equivalentes, expressas de forma particularmente diferenciadas, cada um com as
suas determinações técnicas específicas e submetidas as habilidade particulares da formação
de cada intérprete.
O que se deve frisar é a grande afinidade não só da poesia com a música como com os
pensamentos da psicolinguística e também com a nova forma de pensar a preparação vocal
nas artes cênicas. As artes no século XX ganharam um novo fôlego em relação à expressão
vocal através de diversas correntes experimentalistas. Tornaram-se cada vez mais artes
interligadas: a poesia está na música, a música está no teatro, o teatro se utiliza da poesia e
literatura para dar vida a suas personagens. O gesto vocal com sua carga de significados
emocionais se precipita sob todas essas artes. É proclamada pelos psicolinguistas, se reflete na
música através de compositores como Luciano Berio, está no âmago do subtítulo do texto
teatral, se expressa pela motivação emocional da ação vocal e impulsiona a glossolalia no
teatro e na poesia dos futuristas e dadaístas.
66
67
CAPÍTULO 4
ANÁLISE DESCRITIVA DE GESTOS VOCAIS NA OBRA
SEQUENZA III DE LUCIANO BERIO
4.1 Gesto vocal e emoção
A intrínseca relação entre gesto vocal e emoção leva ao entendimento, a partir do
exposto no capítulo inicial, que estes estão interligados por uma relação de causa e efeito. As
reações emocionais do ser humano produzem o gesto vocal que por sua vez causa um
estímulo tanto no interlocutor quanto no próprio emissor e ambos reagem emocionalmente a
ele. Em música o gesto vocal possibilita uma intensificação da comunicação expressiva da
obra entre cantor e ouvinte. Na música vocal contemporânea, não só intensifica como é o
principal elemento expressivo, o canal de abertura direta da emotividade proposta na obra
pelo compositor, interpretada pelo intérprete e fruída pelo ouvinte.
Em Sequenza III de Luciano Berio as possibilidades de análise descritiva do gesto
vocal possibilita que se observe as relações de causa e efeito entre gesto vocal e emoção. As
emoções em Sequenza III são descritas pelas expressões, representadas por nove
comportamentos vocais e 36 padrões de emoção descritos ao longo da partitura destacados
com uma linha sublinhada. O gesto vocal é descrito pelas alturas e durações disposta na
partitura e as indicações de registro e ações vocais através de símbolos. Entende-se por
registro vocal as possibilidades de configuração fisiológica da voz como, por exemplo, voz
falada, cantada, sussurrada, entre outras categorizações. (SUNDBERG,1987).
A fim de se promover um melhor entendimento do significado de cada expressão, foi
feita uma livre tradução das expressões, disposta no quadro 1 de acordo com a sua
classificação: comportamento vocal e/ou padrão de emoção.
68
Quadro 1. Comportamentos vocais e padrões de emoção com tradução
Comportamentos vocais Padrões de emoção
risada frenética (frantic l.)
risada (laughing)
risada nervosa (nervous l.)
risada aberta (open l.)
risada tensa (tense l.)
ecoando (echoing)
ofegante (gasping)
murmurando (muttering)
gemendo (whimpering)
ansiosa (anxious)
apreensiva (appreehensive)
confusa (bewildered)
calma (calma)
tímida (tímida)
distante (distant)
distante e sonhadora (distant and dreamy)
sonhadora (dreamy)
sonhadora e tensa (dreamy and tense)
extasiada (ecstatic)
extremamente intensa (extremely intense)
extremamente tensa (extremely tense)
desmaiando (faintly)
enfraquecendo (fading)
frenética (frantic)
tonta (giddy)
impassível (impassive)
progressivamente desesperada (increasingly desperate)
intensa (intense)
alegre (joyful)
lânguida (languorous)
nervosa (nervous)
nobre (noble)
aliviada (relieved)
serena (serene)
acalmando-se (subsiding)
amável (tender)
tensa (tense)
urgente (urgent)
muito excitada e frenética (very excited and frantic)
muito tensa (very tense)
lamentando (whining)
melancólica (wistful)
engraçada (witty)
Tensa murmurando (tense muttering)
Tensa murmurando é a única expressão que resulta de uma junção de comportamento
vocal e padrão de emoção.
Em Sequenza III, o gesto vocal está expresso através de várias gradações de emoções
descritas através dos comportamentos vocais e padrões de emoção e por isso, é necessário que
se selecione uma teoria norteadora de classificação de emoções para que as semelhanças e os
contrastes de cada expressão possam ser analisados.
69
4.2 Análise dos comportamentos vocais e padrões de emoção através da Roda de
Plutchik
O estudo das emoções humanas vem de longa data, envolvendo teorias e experimentos
acerca da origem e seu desenvolvimento, tipos, classificações e reconhecimento das emoções.
Já Galeno (129-199), a mais de 2000 anos, tentava tipificar o temperamento dos seres
humanos e classificou-os em quatro: sanguíneo, colérico, melancólico e fleumático, cada um
compreendendo uma série de emoções correspondentes.
.
Figura 3. Expressão de emoções, sorriso natural x sorriso “galvanizado”, de Darwin (1872).
Em 1872, Charles Darwin publicou o livro A expressão das emoções no homem e nos
animais (2009), considerado o primeiro estudo científico da expressão emocional. Para
Darwin, as expressões emocionais são consequência da evolução da adaptação do ser humano
às funções de comunicação e sobrevivência (PLUTCHIK, 1991:xix). Seu entendimento é de
que as mesmas emoções básicas são encontradas em todos os seres humanos. Desenvolveu
diversos métodos científicos para conduzir suas pesquisas, experimentos estes considerados
os primeiros acerca de como as pessoas podem reconhecer a emoção através das expressões
faciais. Um desses métodos era o de galvanização, onde eletrodos conectados na superfície da
pele provocavam movimentações musculares identificáveis, estabelecendo quais músculos
estariam envolvidos na expressão emocional, como se pode ver na demonstração da fig. 3,
onde na letra a) tem-se um sorriso executado de forma natural e o de letra b) provocado
através da estimulação dos eletrodos. A demonstração comprova um resultado bastante
análogo, fortalecendo a hipótese de que existem movimentos específicos de determinados
músculos para cada emoção. Este experimento foi feito com uma série de outras expressões
de emoção, assim como diversas outras experiências foram desenvolvidas e utilizadas por
70
Darwin para o estudo e reconhecimento das emoções através das expressões faciais,
influenciando até hoje os estudos da psicologia. (GOODWIN, 2005:158).
No início do século XX, em 1903, Wundt, além de se dedicar às origens da
psicolinguística, também se voltou às pesquisas acerca das emoções humanas e propôs que o
esquema dos quatro temperamentos de Galeno fosse pensado de forma bipolar, ou seja, o tipo
fleumático se opondo ao colérico e o sanguíneo se opondo ao melancólico, e ainda concebeu a
mistura entre os quatro tipos, levando a uma estrutura circular de representação. Este círculo é
conhecido como esquema de personalidade de Galen-Wundt, um dos primeiros estudos a
considerar que a personalidade varia em níveis de similaridade de uma para a outra, e que
cada emoção tem seu oposto correspondente. (PLUTCHIK, 1980:177).
Na teoria de personalidade de Galen-Wundt temos um esquema com diversos
temperamentos associados a cada personalidade. Da esquerda para a direita, em sentido
horário tem-se melancólico (ansioso, preocupado, infeliz, desconfiado, sério, pensativo),
colérico (ruboriza rapidamente, egocêntrico, exibicionista, “cabeça-quente”, histriônico e
ativo), sanguíneo (brincalhão, amistoso, sociável, cuidadoso, esperançoso e contente) e
fleumático (racional, conservador, controlador, persistente, estável e calmo).
Figura 4. Teoria da estrutura de personalidade de Galen-Wundt. (PLUTCHIK 1980:177).
71
O interesse pelo estudo das emoções por parte dos psicólogos somente foi
intensificado e passou a reunir contribuições relevantes à pesquisa a partir da década de 1960.
No mesmo período surgiram estudos interdisciplinares entre música e psicologia no intuito de
investigar a relação entre música e emoção, inclusive proporcionando aproximações
multidisciplinares como estudos dos processos de linguagem e cognição, assim como
enfoques em educação musical, historicismo, sociedade e cultura, como os estudos de autores
como Leonard Meyer (1956), John Blacking (1973), C. Jacobs (1960), John Sloboda (2001), e
Michel Imberty (1979).
Diversos enfoques diferentes são estudados desde então, tais como as possibilidades
expressivas e comunicativas da música, as capacidades terapêuticas da escuta e também da
prática musical, processos de percepção da escuta, a influência da emoção na execução
musical do intérprete, elementos emocionais do gosto musical, entre outros.
No que se refere às teorias classificatórias das emoções, o pensamento
predominominate no decorrer do século XX e também as teorias mais modernas têm como
origem o modelo bipolar das emoções de Wundt, evolucionando para a premissa de que
existem algumas emoções que são básicas e não básicas (derivadas da mistura das básicas).
Quais, quantas e como são formadas essas emoções variam de acordo com cada autor. No
entanto, apesar da grande diversidade de diferentes esquemas de emoções básicas, a grande
maioria dos teóricos concorda que existem emoções básicas e não básicas e que estas últimas
são resultantes de combinações ou misturas das básicas.
Atualmente, Paul Ekman, (n.1934) é um dos autores mais reconhecidos, dentre outros
motivos, por prestar serviços de assessoria para o seriado de televisão “Lie to me”. Em seus
mais recentes estudos propõe que através das expressões faciais seja possível identificar as
emoções de um sujeito. Para Ekman, existem sete emoções básicas, cada qual representada
por parâmetos pré-definidos de micro-expressões faciais.41
Estas emoções são: alegria,
tristeza, medo, nojo, espanto, desprezo e raiva. As imagens (fig. 5) demonstram os
movimentos faciais que geram as micro-expressões através de configurações específicas dos
olhos, boca e lábios, nariz, maçã do rosto, rugas de expressão, pestana e sobrancelhas.
41
Para maiores informações sobre este autor, visite o site: http://www.paulekman.com.
72
Figura. 5. Micro expressões faciais. Fonte: http://fox.co.ao/Series/Custom.php?seriename=lie-to-me
73
Para esta pesquisa, escolheu-se como referência norteadora o autor Robert Plutchik
por considerar-se uma das teorias das emoções mais completa, considerando não só as
expressões faciais, como fez Ekman, mas também toda a movimentação corporal do indivíduo
em questão. A movimentação corporal traduz as emoções humanas e as suas gradações.
“Variações de posições do corpo são sempre usadas como sinais”. (PLUTCHIK, 1980:272).
O corpo se movimenta na intenção de expressar um significado, reagindo a um estímulo
externo ou aos próprios impulsos emocionais. A cada reação emocional o corpo assume uma
postura. Plutchik ainda acrescenta que “as posturas intermediárias refletem a existência de
conflitos entre impulsos, por exemplo, entre o impulso de atacar e de fugir ou o conflito entre
o impulso de subir ou descer” (PLUTCHIK, 1980:273). Na fig. 6 pode-se ver a postura que
expressa a interação de medo e agressividade. A postura agressiva do gato aumenta em níveis
da esquerda para a direita e a postura de medo aumenta no nível de cima para baixo. As
posturas são uma combinação de ambos, agressividade e medo, em diversas gradações de
níveis.
Figura 6. Expressões de “agressividade” e “medo” num gato. (PLUTCHIK, 1980:273).
74
A emoção de terror, por exemplo, é uma variante de grande intensidade da emoção
medo que, por sua vez, é uma variante mais forte de apreensão. Da mesma forma, melancolia,
tristeza e dor são emoções com uma linha comum direcional, porém com diferentes graus que
só variam em intensidade. Neste modelo que Plutchik denomina de Modelo Multidimensional
das Emoções (MME), ele define oito principais dimensões emocionais. As demais emoções
são consideradas como variantes destas primárias, resultante da soma das emoções básicas
chamadas de "díades".
Sobre a genealogia das emoções básicas, Plutchik acredita que estas são de origem
biologicamente primitivas que surgiram em razão de uma evolução espontânea, a fim de
melhorar a aptidão reprodutiva animal. Argumenta que essas emoções básicas são de extrema
importância, pois são responsáveis pelos reflexos de sobrevivência desencadeando um
comportamento de reação. Por exemplo, a emoção de medo pode desencadear reações como
lutar ou fugir.
São oito as emoções primárias para Plutchik: raiva, medo, tristeza, nojo, surpresa,
antecipação, aceitação e alegria. Foram encontradas algumas variantes de tradução nas
edições nacionais como, por exemplo, anger - irritação ou raiva, trust – aceitação ou
confiança e disgust - como repulsa, aversão ou nojo.
Plutchik desenvolveu um modelo onde as emoções estão dispostas em círculo, criando
então a Roda das Emoções, modelo análogo ao ciclo das cores como a Esfera de Wundt
(fig.7 e 8), que contêm oito cores centrais cujas misturas produzem novos tons. A Esfera de
Wundt é representada por um globo que no alto é branco, à direita é azul, à baixo é preto e à
esquerda é amarelo. Assim como as cores, também as emoções podem se misturar umas com
as outras para formar outras emoções mais complexas e de diferentes intensidades. Essa
comparação de gradação das cores com as gradações das emoções é o ponto diferencial da
teoria de Plutchik para as demais teorias, sendo de grande aplicação na análise descritiva das
expressões de Sequenza III, possibilitando uma compreensão também visual.
75
Figura 7. Esfera de Cores de Wundt desenvolvida em 1874.
Fonte: http://www.colorsystem.com/?page_id=828&lang=en
Figura 8. Representação esquemática da Esfera de Cores de Wundt. Fonte: (KUEHNI, 2008:234)
Plutchik elaborou dois tipos de modelos. Um em formato de cone em 3D onde pode-se
ver as graduações de intensidade (da maior para a menor) de algumas emoções: vigilância-
expectativa-interesse (vigilance-expectancy-set), repugnância-nojo-tédio (loathing-disgust-
boredom), angústia-tristeza-pensativo (grief-sadness-pensiveness), terror-medo-apreensão
(terror-fear-apprehension), assombro-surpresa-distração (amazement-surprise-distraction)
76
Figura 9. Modelo em 3D da Roda das Emoções de Plutchik. (PLUTCHIK, 1991:111)
O outro modelo em 2D demonstra as oito emoções básicas representadas por
segmentos dentro do círculo, e a combinação dessas emoções diretamente vizinhas, chamadas
de díades primárias representadas fora do círculo. Dentro do círculo, em sentido horário:
aceitação, medo, surpresa, tristeza, nojo, raiva, alegria e antecipação. Fora do círculo, sentido
horário: amor, submissão, respeito, decepção, remorso, desprezo, agressividade e otimismo.
Figura 10. Modelo bidimensional da Roda das Emoções de Plutchik. (NEVID, 2007:318).
77
Figura 11. Rodas das Emoções de Plutchik com díades primárias. (PLUTCHIK, 2002: capa).
Este modelo em forma do cone aberto demonstra graficamente de forma facilitada os
diversos níveis de intensidade e a formação das díades primárias, emoções resultantes da
mistura de emoções básicas. Dentro do cone, em sentido horário: êxtase-alegria-
serenidade, admiração-confiança-aceitação, terror-medo-apreensão, assombro-surpresa-
distração, angústia-tristeza-pensativo, repugnância-nojo-tédio, ira-raiva-hostilidade,
vigilância-expectativa-interesse. Fora do cone em sentido horário: amor
(alegria+confiança), submissão (confiança+medo), respeito (medo+surpresa), decepção
(supresa+tristeza), remorso (tristeza+nojo) desprezo (nojo+raiva), agressividade
(raiva+antecipação) e otimismo (antecipação+alegria).
78
Plutchik, como já foi mencionado, baseia sua teoria de classificação de emoções não
só nas micro-expressões faciais, como também no movimento corporal. O gráfico a seguir é
baseado no modelo de Plutchik e demonstra de forma ilustrada a visualização dessas emoções
com as expressões corporais.
Figura 12. Roda das Emoções de Plutchik ilustrada.
Fonte: http:www.copypress.comblogyour-fragile-emotions-illustrated.
A mistura entre as emoções básicas próximas ou distantes dá origem às emoções
mais complexas, que apenas ocorrem no ser humano devido à sua capacidade de realizar
operações cognitivas. LeDoux (1996) explica que cada emoção básica ocupa uma posição na
roda e a formação de emoções mais complexas dependem da proximidade e combinação de
cada uma. A combinação de duas emoções básicas é chamada de díades que podem ser
primárias, secundárias e terciárias. As combinações envolvendo emoções adjacentes na roda
79
formam as díades de primeiro grau, aquelas que envolvem emoções separadas por outra
emoção são as díades de segundo grau. No quadro 2, apresenta-se uma visão completa de
formação das díades, de acordo com as combinações descritas por Plutchik (Plutchik,
1980:162), porém elaborada de forma a demonstrar também as combinações das cores.
Quadro 2. Formação de díades, emoções opostas e suas cores.
DÍADES PRIMÁRIAS DÍADES SECUNDÁRIAS DÍADES TERCIÁRIAS OPOSTAS
Alegria + confiança
= amor
confiança + medo
= submissão
Medo + surpresa
=respeito
Surpresa + tristeza
= decepção
tristeza + nojo
= remorso
nojo + raiva
= desprezo
Raiva + expectativa
= agressividade
Expectativa + alegria
= otimismo
Alegria + medo
=culpa
confiança + surpresa
= curiosidade
medo + tristeza
= desespero
Surpresa + nojo
= ?
tristeza + raiva
= inveja
nojo + expectativa
= cinismo
Raiva + alegria
= orgulho
Expectativa + confiança
= fatalismo
Alegria + surpresa
= deleite
confiança + tristeza
= resignação
medo + nojo
= vergonha
Surpresa + raiva
= indiganação
tristeza + expectativa
= pessimismo
nojo + alegria
= morbidez
Raiva + confiança
= dominação
Expectativa + medo
= ansiedade
alegria
x
tristeza
confiança
x
nojo
medo
x
raiva
surpresa
x
expectativa
O estudo das nuances e graduações de emoção fundamentam a classificação das
emoções e através delas pode-se se compreender o seu gesto vocal e a relação com sua
representação musical, como se pode observar a seguir.
4.3 Classificações das emoções referentes às expressões de Sequenza III a partir do
modelo da Roda das Emoções de Plutchik
Os padrões de emoção e comportamentos vocais descritos por Berio em Sequenza III
correspondem a emoções de diferentes complexidades e intensidades. No quadro abaixo,
estão agrupados de acordo com a emoção correspondente e classificados a partir do modelo
da Roda das Emoções de Plutchik.
80
Quadro 3. Níveis de emoções e comportamentos vocais e padrões de emoção.
Níveis de emoção Emoções Comportamentos vocais e padrões de emoção
EMOÇÕES BÁSICAS
E SUAS GRADUAÇÕES DE INTENSIDADE
(MAIOR PARA A MENOR)
Êxtase
Alegria
Serenidade
Extasiada, Intensa
Alegre, Risada, Risada Aberta, Engraçada
Serena, Calma
Admiração
Confiança
Aprovação
Terror
Medo
Apreensão
Risada Nervosa, Risada Tensa, Nervosa
Apreensiva
Assombro
Surpresa
Distração
Confusa
Perplexa
Distante
Angústia
Tristeza
Pensativo
Tensa, Sonhadora e Tensa
Melancólica, Languidez, Lamentando
Distante e Sonhadora, Sonhadora
Repugnância
Nojo
Tédio
Ira
Raiva
Hostilidade
Vigilância
Expectativa
Interesse
Extremamente Tensa, Muito Tensa e Tensa
DÍADES PRIMÁRIAS
Amor Amável
Submissão Ecoando
Respeito
Decepção
Remorso Murmurando, Tensa Murmurando, Gemendo
Desprezo
Agressividade
Otimismo Extremamente intensa
DÍADES SECUNDÁRIAS
Culpa
Curiosidade
Desespero Progressivamente Desesperada
Inveja
Cinismo
Orgulho Nobreza
Fatalismo
DÍADES TERCIÁRIAS
Deleite Alívio, Deleite
Resignação Enfraquecendo, Impassível, Acalmando-se
Vergonha Tímida
Indignação
Pessimismo
Morbidez Desmaiando
Dominação
Ansiedade Ansiosa, Frenética, Risada Frenética, Ofegante, Muito
Excitada, Muito Excitada e Frenética, Urgente, Tonta
81
A partir do quadro 3, pode-se observar de forma prática e visual a relação dos
comportamentos vocais e padrões de emoção e as emoções correspondentes. Analisar os graus
de intensidade das emoções básicas auxilia a percepção da real relação das emoções com os
padrões emocionais de comportamentos vocais. Por exemplo, como se vê em tensa e
sonhadora, estas são pertencentes à mesma “cor”, azul, relativa à tristeza, alterando apenas a
intensidade (angústia e pensativo) embora possam parecer padrões de emoções opostos.
Desta forma segue-se a análise, comparando as semelhanças dos padrões de emoção e
comportamentos vocais a partir da sua correspondência com a emoção e como isso se
manifesta em música.
4.4 Gesto Vocal de Sequenza III e Emoções
Pode-se observar as diversas expressões do gesto vocal e sua mobilidade em função
das diferentes emoções propostas em Sequenza III, através de um esquema que remete ao
quadro das emoções de Plutchik. Tem-se que observar as semelhanças de texto e
representação gráfica na partitura do gesto vocal para entender sua relação com a emoção.
A seguir, agrupam-se os padrões de emoção e comportamentos vocais de acordo com
o nível de emoção (básica, díade primária, secundária e ternária) destacando sua
representação musical com uma descrição do seu gesto vocal e seu texto, com sua cor e
graduação correspondente.
4.4.1 Emoções Básicas
Pôde-se constatar um grande predomínio das emoções básicas alegria, medo, surpresa,
tristeza, raiva e expectativa na partitura. As emoções confiança e nojo não se encontram relacionadas
a qualquer padrão e emoção e comportamento vocal, mas se expressam em sua manifestação mais
complexa, estando na base da formação de emoções complexas, como por exemplo, em amor
(confiança + alegria), submissão (confiança + medo), remorso (tristeza + nojo), dentre outros.
Cada emoção e suas intensidades serão observadas de forma analítica, buscando-se
compreender sua relação com o gesto vocal, a partir dos quadros que se seguem.
82
Quadro 4. Extasia- Alegria - Serenidade
Extasia-Alegria – Serenidade
INTENSA, SERENA, CALMA, ALEGRE,
EXTASIADA, ENGRAÇADA, RISADA ABERTA
PADRÕES DE EMOÇÃO E
REPRESENTAÇÃO NA
PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO GESTO VOCAL
INTENSA
to
e
Uma nota curta com a mesma
representação de altura na região
média da voz.
Registros vocais: cantada.
SERENA
a/wo/n/bl/o
fo
to me
Notas cantadas em alturas na
região média predominantemente.
Em um momento uma das notas é
ligada a um grupo de notas
rápidas, articuladas como um
ornamento com o som [bl].
Registros vocais: voz cantada.
83
CALMA
it/ before
Três notas: uma curta e duas
longas na região aguda.
Registros vocais: cantado.
ALEGRE
u/i/e
a
Notas executadas o mais rápido
possível em sucessão ascendente e
descendente.
Registros vocais: cantado.
EXTASIADA
be/fo/o /ore/
night
fo/ sin
me to give me
for/wo/u/man
Notas numa mesma região vocal,
longas e ligadas.
Registros vocais: voz cantada
alternada com efeito de tremolo
com a mandíbula ou batendo com
a mão na boca rapidamente.
84
ENGRAÇADA
co
u ta ta
i
vogal de livre
escolha
u
Notas curtas e rápidas agrupadas
com desenho melódico ascendente
ou descendente.
Registros vocais: sussurrada,
cantada, falada, clique da boca,
risada e boca fechada.
RISADA ABERTA
vogal de livre
escolha,
a
Notas na região grave curtas.
Registros vocais: gargalhada e
cantado se aproximando da fala.
A emoção alegria corresponde aos padrões de emoção alegre e engraçada, e ao
comportamento vocal risada aberta. Em sua forma mais suave, serenidade, corresponde aos
padrões de emoção calma e serena. Em sua forma mais forte, o êxtase se manifesta através
dos padrões de emoção extasiada e intensa.
85
Intensa, serena, calma e extasiada possuem uma grande semelhança no padrão rítmico
e melódico, basicamente uma altura sustentada em altura média ou aguda. Os padrões alegre,
engraçada e risada aberta possuem gestos vocais caracterizados por uma extrema mobilidade
vocal, sendo compatíveis com expressões emocionais de risadas, como mais uma variante
desse gesto vocal central de toda a obra. Serena é um padrão que, apesar de ser semelhante a
calma também demonstra uma inclinação aos padrões de alegre, engraçada e risada aberta,
pois, é representada por notas longas seguidas de notas com grande mobilidade rítmica.
Portanto, pode-se concluir que ela é o padrão de caráter de transição entre a alegria em sua
forma mais suave até a forma mais intensa, extasiada, que por sua vez transforma as
mobilidade rítmica do tremolo (com a mandíbula ou batendo com a mão na boca), retornando
a nota longa, porém com mobilidade do efeito vocal.
Quadro 5. Angústia – Tristeza - Pensativo
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO NA
PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO
GESTO VOCAL
DISTANTE E SONHADORA
a/e/ e/i/ uto/u
e/i/u/o
e
Notas ligadas na
mesma altura sem
acento na mudança
da sílaba na região
aguda.
Registros vocais:
voz cantada a maior
parte do tempo com
algumas inserções
de som com a boca
fechada ou no início
ou no fim da
melodia.
Angústia -Tristeza-Pensativo
SONHADORA, SONHADORA E TENSA, LAMENTANDO, MELANCOLIA,
LÂNGUIDA, DISTANTE E SONHADORA
86
SONHADORA
a
a, i, us be
Mesma altura
aparecendo uma vez
rapidamente ou
duas vezes, mas de
forma ligada sem
acento com
mudança suave da
vogal ou sílaba.
Registros vocais:
cantado a maior
parte do tempo e
uma vez sussurrado
e boca fechada
transitando para
cantada.
SONHADORA E TENSA
i, a
wing/u/o/to
Notas ligadas, mas
articuladas na
região média da voz
com melodia de
alturas definidas
pela clave de sol.
Registros vocais:
sons com a boca
fechada e voz
cantada, alternados.
LAMENTANDO
me
fo
to
a
Duas representações
breves: uma
alternando risada
com notas de altura
aguda com boca
fechada e outra
como um contorno
melódico quase
estático.
Registros vocais:
gargalhada, boca
fechada, cantada.
87
MELANCÓLICA
us
i/u/a /i
sing n
to u
give me a
o
a
before o
/l/
l / to sing
Melodias com
alturas definidas
sem grande salto
entre as notas e
ligadas.
Registros vocais:
cantado, boca
fechada e trilo com
a língua.
88
LÂNGUIDA
a/i
Uma nota ligada na
região grave com
mudança suave da
vogal a para i.
Registros vocais:
cantada.
Todos os três padrões de emoção relativos a sonhadora são representados por notas
ligadas sem acentuação e numa mesma altura, com pouca ou nenhuma variação silábica e
registro vocal oscilando entre o som de boca fechada e cantado. Sonhadora e distante e
sonhadora são muito similares e estão relacionadas a mesma emoção: pensativo, com a
pequena diferença de intensidade expressa pelo efeito sussurrado. Em sonhadora e tensa, há
uma pequena variação das alturas musicais, mostrando que a indicação tensa atribuiu uma
origem de emoção diversa, no caso, medo.
Lamentando, ora se remete a um soluçar ora a um grito, mantendo como fio condutor
a região aguda. Melancólica permite diversas utilizações de gestos vocais, mas a voz cantada
e boca fechada predominam, assim como em lânguida e não por acaso, pertence à mesma
emoção tristeza.
Quadro 6. Terror – Medo - Apreensão
Terror - Medo - Apreensão
APREENSIVA, NERVOSA, RISADA NERVOSA, RISADA TENSA
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO
NA PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO GESTO
VOCAL
APREENSIVA
fo/i/be/
u/to/e/fo/i
to me to sing a
Notas longas, ligadas
articuladas por vogais e
notas curtas em desenho
ascendente.
Registros vocais:
tremolo dental, som
sussurrado.
89
NERVOSA
Sucessão de notas
descendentes
executadas o mais
rápido possível.
Registros vocais:
boca fechada.
RISADA NERVOSA
vogal de
livre
escolha
Sucessão de notas
descendentes
executadas o mais
rápido possível.
Registros vocais:
gargalhada.
RISADA TENSA
vogal de
livre
escolha
Notas curtas
executadas
rapidamente num
desenho em geral
descendente na
região da voz falada.
Registros vocais:
gargalhada.
CONFUSA
]
u/me
few words;
words
a
Em 2 vezes aparece
com melodias com
notas longas na
região média da voz e
duas vezes de forma
articulada variando a
nota ou não.
Melodias com
duração curta.
Registros vocais:
sussurrado, cantado e
mão sobre a boca
90
Nervosa, risada nervosa e risada tensa demonstram um desenho melódico
descendente e extremamente ágil. Apreensiva e nervosa possuem sons menos ruidosos como
as gargalhadas, sendo expressos por boca fechada, sussurros e som de tremolo dental. Porém
nervosa tem a mesma mobilidade vocal das risadas e também se encaixa na mesma
intensidade da emoção, medo, enquanto apreensiva está ligada a apreensão de uma forma
mais branda, contida da emoção básica medo. Essa forma contida denota menor
movimentação das alturas musicais.
Este exemplo demonstra bem a similaridade dos sons das emoções com os
movimentos corporais. A movimentação corporal associada a apreensão é menor comparada a
emoção de medo e terror (fig. 10) e da mesma forma o gesto vocal se expressa. Na
manifestação mais contida, menor amplitude sonora (sons de boca fechada, tremolos) e menor
mobilidade das alturas, e numa manifestação mais forte, a mobilidade e amplitude do som se
expressam através de risadas, gargalhas e grande agilidade das alturas musicais.
Quadro 7. Assombro - Surpresa - Distração
Assombro –Surpresa - Distração
DISTANTE, PERPLEXA
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO
NA PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO GESTO
VOCAL
DISTANTE
to be us before few
words
Duração de
tempo curta,
notas cantadas
em geral ligadas,
variando a altura
que pode ser
tanto numa
região muito
aguda ou grave
ou média.
Registros vocais:
voz cantada e
som não vocal da
mão ou dedos
batendo na boca
rapidamente.
91
to sing to be
i
PERPLEXA
]
u/me
few words;
words
a
Em duas vezes
aparece como
melodias com
notas longas na
região média da
voz e duas vezes
de forma
articulada
variando a nota
ou não. Melodias
com duração
curta.
Registros vocais:
sussurrado,
cantado e mão
sobre a boca
92
Em distante, relativa à emoção distração, a instrução de bater com os dedos na boca
rapidamente possui relação direta ao movimento corporal, como quando se faz um gesto
físico altístico enquanto presta-se a atenção em outro assunto ou objeto. Da mesma forma,
perplexa, relativa à emoção surpresa, possui instruções para a produção vocal que se remete
ao movimento do cotidiano, pois o ato de cobrir a boca com a mão é muito similar ao
movimento corporal de quando se toma um susto, principalmente quando acompanhado do
som sussurrado.
Quadro 8. Vigilância – Expectativa - Interesse
Vigilância–Expectativa-Interesse
EXTREMAMENTE TENSA, TENSA, MUITO TENSA
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO
NA PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO GESTO
VOCAL
TENSA
to
a few
u
for
us
na
Em geral, representado
por uma única nota
numa região média
podendo ter uma
ornamentação curta ou
não. Em três
momentos, porém
aparece representado
por um grupo de notas
articuladas e com
desenho descendente.
Registros vocais:
cantado a maior parte
do tempo com alguns
rápidos momentos de
boca fechada e um
único de voz
sussurrada associado a
um desenho melódico
rápido.
93
to / a few to me
allowing us
a losing
i
MUITO TENSA
ta ka be
to be for ka
to co be lo u to
la
Notas rápidas e
contínuas.
Registros vocais: voz
falada.
94
EXTREMAMENTE TENSA
be/lo
Diferentes velocidades
de sons periodicamente
articulados.
Registros vocais:
cantado rápido.
Tensa é um bom exemplo de como um padrão de emoção pode ganhar mobilidade
quando intensificado. Em tensa as notas são mais planas e sustentadas, mas tanto muito tensa
e extremamente tensa, ganham uma grande agilidade vocal, assim como amplitude através do
som cantado. São padrões que exigem uma grande habilidade do cantor.
4.4.2 Díades Primárias
Formadas pela soma de emoções adjacentes, as díades primárias podem apresentar
semelhança com as emoções básicas que a compõe, assim como entre as próprias díades de
formação semelhante.
Quadro 9. Amor
AMOR
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO NA
PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO GESTO
VOCAL
AMÁVEL
Aparece em três
momentos como um
grupo notas com
velocidades diferentes,
mas como sons
articulados de forma
periódica, sendo
alturas próximas
lembrando um trilo.
Registros vocais:
cantado, tremolos, e
boca fechada.
95
wing
comes to
me/t/r/uth
wor/ o
few words to
u
to
al/lo/o/wing
ait
l
96
Amável é relacionada ao amor (confiança + alegria), e assim como alegria possui
diversas representações, porém mantem a característica da predominância da voz cantada e
evita sons ruidosos como sussurros, risadas, cliques, estalos, dentre outros. Essa predileção
pela voz cantada e boca fechada como registro é coerente com o que pela escuta consideramos
sons amáveis, mantendo uma altura musical numa região média e sem grandes saltos.
Quadro 10. Submissão
SUBMISSÃO
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO NA
PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO
GESTO VOCAL
ECOANDO
be/ lo
bl
Diferentes velocidades de
sons periodicamente
articulados.
Registros vocais: cantado
Ecoando aparece na partitura duas vezes quase seguidas, como uma repetição mais
suave de extremamente tensa (2º sistema da 3ª página da partitura) separadas por uma nota
longa do padrão serena. Apesar de se assemelhar a extremamente tensa, esta não possui suas
próprias características, pois assume a do padrão que reproduz, por isso esta relacionada a
submissão. Se ecoando estivesse repetindo, por exemplo, murmurando assumiria a forma
idêntica deste padrão. A sugestão é de que se execute ecoando como uma repetição mais
fraca, sem a mesma carga emotiva de extremamente tensa.
97
Quadro 11. Remorso
REMORSO
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO
NA PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO GESTO
VOCAL
MURMURANDO
a/tru/to me
allowing us
to be
Sílabas articuladas na
região da fala com notas
curtas e rápidas.
Registros vocais:
voz falada e um rápido
momento de boca
fechada.
TENSA MURMURANDO
to co us for
be
sing to me
to co be
words
ut a/be few
co
to be co for
us lo/
gi/me/ut
Notas curtas articuladas
o tempo no ritmo da
falar.
Registros vocais:
voz falada.
98
GEMENDO
i
u
Diversas notas curtas e
rápidas em desenho que
sobe e desce como uma
onda ou em um momento
com velocidade diferente
mas periodicamente
articulada
Registros vocais: boca
fechada ou falada
acompanhada de clique
com a boca no segundo
caso melódico.
Tensa murmurando, murmurando e gemendo se utilizam de voz falada muito similar a
voz de um murmúrio ou resmungo ininteligível do cotidiano. Os cliques vocais estão
diretamente ligados a emoção de remorso, de “remoer” um pensamento ou uma tristeza,
sentimentos que estão na formação dessa díade primária.
99
Quadro 12. Otimismo
OTIMISMO
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO
NA PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO
GESTO VOCAL
EXTREMAMENTE INTENSA
few words
before
to be
Notas longas
agudas ligadas
articuladas sem
acento na
mudança da
sílaba.
Registros vocais:
cantado.
Extremamente intensa nos remete a um grande grito de felicidade, agudo, cantado e
com palavras inteligíveis, geralmente que traduzam a razão da felicidade. É como um grito de
vitória “ganhei!”, representando a junção das emoções básicas alegria com expectativa.
4.4.3 Díades Secundárias
Quadro 13. Desespero
DESESPERO
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO NA
PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO
GESTO VOCAL
PROGRESSIVAMENTE DESESPERADA
me/ to/ co
lo /co/ me/ lo
be few
us be fore
give me to
É representado de duas
formas: notas rápidas e
contínuas em desenho
ascendente ou como
uma melodia aguda
cantada com notas
ligadas.
Registros vocais:
cantado.
100
Por ser uma emoção resultante de medo somado a tristeza, desespero é expressa de
forma progressiva demonstra duas formas desta emoção se manifestar: intensificada pela
velocidade e pela ascendência da altura musical.
Quadro 14. Orgulho
ORGULHO
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO
NA PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO
GESTO VOCAL
NOBRE
a truth
Salto de nota em
médio-agudo para
grave profundo.
Registros vocais: inicia
cantado, segue
sussurrado e volta
cantado, se
assemelhando à voz
falada.
As palavras a truth - uma verdade – é o único texto deste padrão de emoção que só
surge uma única vez e é representado por um grande salto da região médio-aguda para muito
grave, em nota longamente prolongada, com uma interferência de voz sussurrada.
4.4.4 Díades Ternárias
Quadro 15. Aliviada
DELEITE
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO
NA PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO
GESTO VOCAL
ALIVIADA
a
Contorno melódico
descendente com a
mesma nota, como
um glissando.
Registros vocais:
sussurrado com a
vogal a.
101
Aliviada possui uma representação melódica em glissando descendente, que executado
com a vogal a, se torna muito similar ao som vocal do cotidiano. Pode-se considerar que
aliviada é puro gesto vocal.
Quadro 16. Resignação
RESIGNAÇÃO
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO
NA PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO GESTO
VOCAL
ENFRAQUECENDO
Ausência de
melodia.
Registros vocais:
ausência de registro
vocal.
IMPASSÍVEL
a/wo/man
Duas notas
repetidas ligadas
sem acento na
região média da voz
seguida de outra na
região grave.
Registros vocais:
cantado e boca
fechada.
ACALMANDO-SE
sing be
fore/na
É representado de
duas formas bem
distintas: num
momento como
notas graves faladas
e sussurradas ou
como notas
cantadas numa
região aguda ou
notas iguais na
região média,
ligadas suavemente.
102
l /be
u/bild/a
Registros vocais:
sussurrado, falada
ou cantado.
O padrão enfraquecendo é a representação do silêncio responsável por terminar a obra.
O silêncio é parte da obra, mesmo que inaudível e apesar de não produzir som vocal, entende-
se que é um gesto vocal, pois existem emoções como a resignação que resultam na ausência
do som. Em um nível menos resignado, acalmando-se e impassível produzem sons de textos
fragmentados falados, sussurrados e até de boca fechada, que poderiam anteceder a emoção
enfraquecendo. São os últimos esforços até a resignação completa representada pelo silêncio.
Quadro 17. Vergonha
VERGONHA
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO
NA PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO GESTO
VOCAL
TÍMIDA
tho/we build
Três notas repetidas
iguais com vogais
diferentes ligadas,
mas sem acento, na
região média da voz
Registros vocais:
cantado e ruído não
vocal: estalar de
dedos suave
Surgindo apenas uma única vez, tímida, possui uma similaridade com uma das
emoções de sua formação: medo.
103
Quadro 18. Ansiedade
ANSIEDADE
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO
NA PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO GESTO
VOCAL
ANSIOSA
vogal de livre
escolha
Quatro notas cantadas
curtas rápidas e melodia de
desenho ascendente.
Registros vocais: explosão
de gargalhada quase
sussurrada.
OFEGANTE
ka
to/e
Notas curtas e rápidas.
Registros vocais: voz
ofegante alternada
rapidamente com voz
cantada, o que ganha
efeito de voz falada
ofegante, devido à
velocidade.
URGENTE
kd ta
be to be
Notas curtas rápidas
algumas devendo ser
executadas de forma
contínua e outras com
velocidade variada e
periódica na região da
voz falada.
Registros vocais: voz
falada, sussurrada,
sons de cliques da boca
e tosse.
104
ta taka
to co
u to to co
for a woman
to build a
house
be co
be lo
to be to
to me to
e /a /a
give me a few
words
be/ to/ be
be/ lo/ a
105
FRENÉTICA
l /r/wor
be-fore
a/r/for/u
u
Em três momentos
aparece como notas
agudas unidas por um
“contorno da
entonação” sempre em
desenho descendente,
acompanhado de
ornamentações
executadas o mais
rápido possível.
Em outro momento
aparece como um
contorno melódico
estático com duas
notas ligadas na região
aguda,
Registros vocais:
alternância entre voz
cantada, som de
inspiração ofegante e
efeito de tremolo e
tremolo com a
mandíbula.
MUITO EXCITADA E FRENÉTICA
To/co/be/ r/ l
e/lo/a/u/o/a
u i/vogal de
livre escolha/
b to co be lo me
/ i
Notas rápidas são
agrupadas, alternadas
com notas curtas com
saltos entre as regiões
graves e médias ou
com notas ligadas por
um contorno melódico
desenhado.
Registros vocais: voz
cantada, sussurrada,
ofegante, gargalhada,
boca fechada, tremolo
e tremolo de
mandíbula.
106
r /
tru/be/lo/co/be/
lo/ me
RISADA FRENÉTICA
vogal de livre
escolha
Desenho ascendente.
Registros vocais:
gargalhada.
TONTA
gi
Seis notas curtas com
saltos e variações de
timbre em tempo curto.
Registros vocais:
cantado rápido, voz
sussurrada e boca
fechada.
Ansiosa e risada frenética possuem representações praticamente idênticas, com notas
curtas e rápidas e registro vocal de gargalhada. Já muito excitada e frenética, frenética e
urgente, são padrões de emoção de extrema agilidade e mobilidade vocal. O padrão ofegante
é mais um caso que, assim como aliviada, é puro gesto vocal, pois é idêntico ao som do
cotidiano da voz ofegante de uma pessoa ansiosa. Tonta se assemelha a ofegante por ter
propriedades semelhantes como o salto de alturas alternadas com sussurros e de forma rápida,
de forma a não se poder compreender o texto.
107
Quadro 19. Morbidez
Morbidez
PADRÕES DE EMOÇÃO E REPRESENTAÇÃO
NA PARTITURA
TEXTO DESCRIÇÃO DO
GESTO VOCAL
DESMAIANDO
me
Nota parada na
região média
longa terminando
com ruído
(clique da boca).
Registros vocais:
voz cantada e
sussurrada.
A morbidez é uma emoção do padrão de emoção desmaiando e surge apenas uma
única vez, simulando a voz enfraquecida de alguém que está preste a desmaiar.
4.5 Comportamentos vocais
Conforme o próprio Berio analisa, o riso é o principal material de trabalhado na obra,
portanto, é o comportamento vocal mais utilizado em Sequenza III. Ele reorganizou os risos
de forma estilizada e virtuosística, com diversas gradações de intensidade, representados por
alturas aproximadas e executados com articulações rápidas de forma a simular
deliberadamente a fala. A intenção então era recriar em música o riso de forma orgânica,
conforme uma ação vocal do cotidiano. Para Berio, não há diferença entre uma mulher que ri
a plena voz e uma soprano coloratura, pois, apesar de no caso da cantora a voz possuir uma
emissão vocal profissional, o impulso e o mecanismo do aparelho fonatório são os mesmos.
(BERIO apud STOIANOVA, 1985).
Para analisarem-se os risos encontrados na partitura, pretendeu-se entender primeiro
como ocorre o processo físico, tanto do riso quanto do seu oposto, o choro, e também o
soluço, presente em ambos.
Lilia Nunes analisou o riso e o choro para uma perfeita execução vocal e descreve
como que esses sons ocorrem. Jane Celeste Guberfain (2012) explica que “segundo Lilia
Nunes, tanto o choro como o riso se manifestam por uma série de inspirações e expirações
108
mais ou menos ruidosas, provocadas por uma contração espasmódica do diafragma.” Ou seja,
são emoções que apesar de opostas, provocam uma reação similar na reação física do corpo.
Sobre o riso, acrescenta: “pode ter uma sequência de sons ascendentes ou decrescentes,
cortando frases ou palavras. Pode ser emitido com qualquer vogal, prolongando a última
sílaba ou cortando sílabas de uma palavra. Conforme a intensidade da emoção, a vogal é
repetida três, quatro, cinco ou mais vezes até atingir a gargalhada, que corresponde a uma
série de oito vogais.” Descreve também as propriedades do soluço, expressão que acompanha
e entrecorta o riso e o choro, normalmente quando são acrescidos de intensidade. “os soluços
podem ser afônicos ou acompanhados de sons graves ou agudos, emitidos com diversas
vogais: às vezes cortam a frase ou prolongam as palavras.” (NUNES apud GUBERFAIN,
2012:45). Para Nunes, o que muda na execução do riso para choro é a intenção emocional.
Em Sequenza III, têm-se diversos comportamentos vocais referentes ao riso e também
ao choro. Do grupo do riso tem-se: riso frenética (frantic laughing), riso nervoso (nervous l.),
riso aberto (open l.), riso tenso (tense l.). Do grupo referente ao choro temos os
comportamentos vocais murmurando (muttering) e gemendo (whimpering). O soluço
corresponde ao ofegante (gasping).
Os risos são expressos pela partitura através da indicação de comportamento vocal
(open l., tense l., nervous l.) e reforçado pelo símbolo específico da bula (fig. 13). Apenas do
caso de frantic, frenética, sendo um padrão de emoção, a indicação de riso vem expressa
apenas pelo símbolo.
Figura13. Símbolo de explosão de riso (bursts of laughter) com o uso de vogal de livre escolha. (fonte:
partitura de Sequenza III de L. Berio)
Através das diversas risadas, Berio procurou explorar a dramaticidade dos contrastes
de emoção ressaltando a importância do gesto vocal na execução desta obra. Valente resume
desta forma o processo de assimilação do riso na música de Berio:
109
O riso como ação vocal cotidiana, reorganizado de maneira virtuosística,
complexa, vale dizer, afastado de sua banalidade; o riso, segmentado em
suas múltiplas gradações, desenvolvido na escritura: estilizado, fixado em
alturas aproximadas; atacado em articulações rápidas, de modo a simular a
articulação da fala. A fixação de notas longas, em contrapartida, permite a
percepção das ínfimas mudanças de timbre, quando da passagem de uma
vogal para outra. Também a transcrição do riso em suas diversas
manifestações (sorriso, gargalhada, riso nervoso, etc.) guiadas não por signos
musicais (meio-forte, forte, piano), mas por comportamentos vocais
(langoroso, terno, tenso, sonhador...), permite à cantora engendrar gestos
vocais que, em si mesmos, destituídos de qualquer referência trágica,
contribuem, no seu conjunto, para a formação de uma imagem trágica
desesperada. (VALENTE, 1999:161).
A risada aberta é representada por notas graves sem muita variação de altura comum
a vogal de livre escolha, e como está disposta em uma única linha, a ação vocal deve ser
falada. Logo após, é seguida de um desenho ascendente e indicação de nota cantada com a
vogal a. É um comportamento vocal que só aparece uma única voz.
Exemplo musical 6. Riso aberto.
Já em riso nervoso o desenho ascendente e muito rápido, se assemelha ao desenho
melódico de riso tenso, descendente e rápido, demonstrando a semelhança na representação
entre esses dois padrões de emoções por seu caráter semelhante. Também há semelhança com
o exemplo musical frenético que neste caso é um riso frenético por estar acompanhado do
símbolo de riso.
110
Ex. musical 7. Riso tenso, riso nervoso e frenética.
As transições de estados emocionais são reforçadas por uma mudança do gesto vocal
variando principalmente a sua altura. Pode acontecer de duas formas: contrastando quando
são dois padrões de emoções diferentes como no caso do ex. musical 7, onde tem-se a
transição de riso tenso para urgente, emoções próximas, contrastando com o padrão de
emoção aliviada. Urgente e riso tenso são representados de forma semelhante, com várias
notas articuladas de forma rápida em região aguda, enquanto aliviada encontra um repouso
num glissando na região grave.
Exemplo musical 8. Sequência de riso tenso, urgente, riso tenso, urgente e aliviada.
As representações de comportamentos vocais referentes ao choro estão presentes logo
no princípio da partitura com tensa murmurando. Murmurando e tensa murmurando são dois
comportamentos vocais semelhantes sendo que o segundo é acrescido do padrão de emoção
111
tensa, diferenciando-os pelo grau de intensidade. Nestes dois casos existe um padrão
semelhante entre eles. As alturas são escritas numa região mais grave da voz, e no caso de
tensa murmurando um símbolo específico (o __) descrito na bula como “som de respiração,
quase sussurrado” ressalta o padrão de emoção tensa.
Exemplo musical 9. Tensa murmurando.
Exemplo musical 10. Murmurando.
O padrão de emoção gemendo vem acompanhado do símbolo (+) que indica “com a
boca fechada” numa região vocal média e de forma cantada.
Exemplo musical 11. Gemendo.
112
Já a indicação ecoando é um comportamento vocal de repetição, como um eco, uma
reverberação do padrão de emoção anterior extremamente tensa.
Exemplo musical 12. Ecoando.
4.6 Padrões de emoção
As emoções, como já foi mencionado anteriormente, são dispostas num esquema
bipolar, ou seja, cada qual possui a sua correspondente oposta, e desta forma, a classificação
das emoções pode ser observada em dois grupos: as positivas e as negativas. Pode-se então,
agrupar-se os padrões emocionais a partir da sua emoção correspondente da seguinte forma:
Os positivos são: calma (calm), distante e sonhadora (distant and dreamy), extasiada
(ecstatic), extremamente intensa (extremely instense), frenética (frantic), intensa (intense),
extremamente intensa (extremely intense), intensa (intense), alegre (joyful), lânguida
(languorous), nobre (noble), aliviada (relieved), serena (serene), acalmando-se (subsiding),
amável (tender), muito excitada e frenética (very excited and frantic), engraçada (witty).
Os negativos são: ansiosa (anxious), apreensiva (appreehensive), confusa
(bewildered), tímida (tímida), sonhadora e tensa (dreamy and tense), extremamente tensa
(extremely tense), desmaiando (fading), tonta (giddy), progressivamente desesperada
(increasingly desperate), nervosa (nervous), tensa (tense), urgente (urgent), muito tensa (very
tense), lamentando (whining), melancólica (wistful) e tensa murmurando (tense muttering). Os
neutros: distante (distant), e impassível (impassive).
Existem muitas semelhanças na representação dos padrões de emoção positivos e
negativos, como se pode ver nos exemplos musicais: frenética e tensa.
113
Exemplo musical 13. Frenética. Exemplo musical 14. Tensa.
Da mesma forma a indicação serena, associada à emoção positiva e representada por
nota longa, se assemelha ao seu oposto relativo à fraqueza como desmaiando. Serena é
representada musicalmente por uma nota cantada sustentada em região aguda, como se pode
ver no ex. musical 16, semelhante a desmaiando, pois também é uma voz cantada, com som
sustentado, mas devido ao seu potencial negativo de fraqueza, essa nota não é tão aguda,
encontrando-se numa região média-aguda além de o som cantado ser enfraquecido pelo som
sussurrado, terminando com o um clique, um ruído feito pela boca. Na mesma altura musical
de desmaiando tem-se amável, relativa à emoção amor, positiva, mas sem o som sussurrado e
se pronunciando a palavra wing seguida de som de boca fechada, conferindo uma doçura e
suavidade ao som. Também em lânguida vê-se uma nota sustentada cantada, mas em região
grave, em relação à serena e amável demonstrando seu caráter preguiçoso, sem esforço que
ao qual esse padrão de emoção se refere.
Exemplo musical 15. Serena Exemplo musical 16. Desmaiando.
114
Exemplo musical 17. Amável. Exemplo musical 18. Lânguida.
Com a indicação sonhadora o compositor tende a manter alguns ou todos os
elementos musicais iguais, tais como a mesma região vocal, registro vocal e desenho
melódico. Sonhadora aparece quatro vezes sendo representada pela mesma altura como nota
cantada. Quando aparece com a altura repetida duas vezes, deve ser executada sem acento na
mudança da sílaba, o que dá o efeito de que é uma única altura.
Exemplo musical 19. Sonhadora com a vogal a. Exemplo musical 20. Sonhadora com vogal a.
Tem-se ainda a variação sonhadora e distante que é sempre representada por notas
ligadas numa mesma altura, variando apenas as vogais e numa região aguda.
Exemplo 21. Sonhadora e distante.
115
Estes dois últimos padrões são muito semelhantes, com a diferença da duração, que
sugere que o caráter distante acrescente uma profundidade nesse padrão de emoção, mas
mantendo a semelhança de gestos vocais para padrões semelhantes.
Assim como as indicações serena e sonhadora são representados por notas sustentadas
e cantadas, tem-se o caso de aliviada que demonstra uma transição do final de um ritmo
acelerado a caminho do repouso numa nota sustentada. Como se pode ver aliviada
corresponde a uma vogal a sussurrada e falada glissando na direção descendente,
assemelhando-se ao som de um suspiro, gesto vocal resultante da emoção de alívio.
Exemplo 22. Aliviada.
Padrões de emoções negativos podem ser acrescidos de intensidade, como no caso de
muito tensa e extremamente tensa, onde no primeiro caso é representado notas rápidas numa
região média da voz numa direção ascendente, e no segundo caso, notas articuladas
igualmente velozes, mas com alturas mais contínuas.
Exemplo musical 23. Muito tensa. Exemplo musical 24. Extremamente tensa.
As emoções neutras representadas por impassível e distante são ambas as notas
cantadas, mas de representações bem distintas, não havendo relação entre si a não ser a pouca
mobilidade da velocidade de execução.
116
Exemplo musical 25. Distante Exemplo musical 26. Impassível.
4.7 Conclusão
A principal constatação nesta análise é a de que as expressões (padrões de emoção e
comportamentos vocais) correspondem às reações emocionais que originam os gestos vocais,
e que a sua disposição espacial de alturas, ritmos, registros vocais e até movimentos corporais
como tapar a boca com a mão ou cênicos como andar pelo palco, foram elaborados de forma a
coincidir com o gesto vocal da emoção correspondente. Constatou-se também que a
representação dos padrões de emoção e comportamentos vocais não é apenas alusiva, mas
procura se aproximar ao máximo aos sons vocais do cotidiano e por vezes é idêntica,
confirmando o pressuposto de que o gesto vocal é a voz principal desta “invenção a três
vozes”.
As emoções estão dispostas de forma a comporem sequências de transições graduais
ou contrastes, curtas ou longas, dispostas a conferir maiores ou menores graus de tensão e
repouso.
Sequências de transições graduais longas estão presentes em diversos momentos,
como na p. 2 sist. 4, 5´, onde padrões semelhantes como frenética-urgente-ofegante, dispostas
sucessivamente, intensificam-se em muito tensa-progressivamente desesperada-
extremamente tensa, demonstrando um processo de intensificação emocional, onde os gestos
vocais são representados por diversas notas de grande agilidade associados a diversos
fonemas resultantes da fragmentação textual e diversos registros vocais diferentes. Logo após
essa longa sessão de um padrão emocional de caráter mais agitado, segue-se uma nova sessão
de sequência de expressões longas e calmas, retornando paulatinamente a um ritmo mais
lento, com gestos vocais representados por notas mais espaçadas, uma menor quantidade de
fonemas a ser pronunciado, proporcionando um registro vocal mais cantado (sist. 5). Se
117
pensados enquanto um conjunto de emoções, pode-se considerar essas duas sessões distintas
como dois grandes momentos de contrastes.
Transições curtas contrastantes e repetidas, tais como o encontrado no sistema p.2,
sist. 2, 30´´, amável-tenso-amável-tenso se repetem em diversos momentos de Sequenza III.
Também sequencias curtas de padrões semelhantes e graduais são comuns, como neste
mesmo caso em que são precedidos dos padrões de emoção excitada, alegre e distante aos
20´´. Este mesmo último exemplo demonstra uma transição decrescente de excitada para
alegre, correspondentes à mesma emoção, sendo excitada uma graduação mais intensa da
principal alegria.
Para que todas as sequências contrastantes e graduais das emoções, seja entre
expressões ou entre grandes sessões, curtas ou longas, sejam facilmente visualizáveis, propõe-
se um gráfico de cores (fig. 14,15 e 16) elaborado da seguinte forma: traça-se uma linha ao
longo da partitura utilizando a cor correspondente à emoção relativa ao gesto vocal. Desta
forma as transições são demonstradas pelas mudanças de cores e podem ser analisadas de
forma mais eficiente e clara através de um gráfico colorido, feito a partir da partitura
Sequenza III.
Neste gráfico pode-se ver que no primeiro sistema da primeira página existe uma
predominância da cor azul, principalmente na tonalidade clara, com pequenas intervenções
das cores amarela e sua cor vizinha, a cor laranja. Estas intervenções continuam ocorrendo no
2º. sistema pela cor laranja e rapidamente verde. A cada intervenção, a cor azul tende a sofrer
alterações de tonalidade, chegando a um azul muito escuro ao final do 2º. sistema.
Progressivamente essas pequenas intervenções vão se tornando cada vez mais longas, como
vê-se no 4º. sistema, onde a cor amarela e violeta aparecem em longos trechos.
Na segunda página já é notadamente visível a predominância do amarelo em
tonalidades variadas e um verde muito claro, embora o azul, em tonalidades diversas, também
apareça, mas não de forma tão predominante.
Na terceira página têm-se alternância de momentos longos de azul e amarelo e laranja,
preparando para o momento final que é o retorno ao azul, passando antes por momentos em
verde claro.
Numa rápida leitura, observou-se que a obra se compõe de uma constante alternância
de emoções, representadas por dois grupos: emoções azuis e emoções amarelas. Estas cores se
encontram em oposição na Roda das Emoções de Plutchik: a cor amarela representando a
alegria no alto da Roda e a azul, a tristeza, abaixo da Roda. As emoções representadas pela
cor azul e suas tonalidades são perturbadas aos poucos pelas emoções representadas pela cor
118
amarela. Na segunda página da obra, a cor amarela e o verde claro predominam,
demonstrando que as emoções representadas pela cor azul sofreram interferência da cor
amarela, resultando inclusive na mistura dessas emoções opostas, a cor verde, ora tendendo ao
azul (verde escuro), ora tendendo a cor amarela (verde claro). O principal gesto vocal de
alegria é o riso em suas diversas formas, seja riso tenso, nervoso ou risada aberta, dentre
outras.
Constatamos também que, conforme pretendia Berio, a obra tem como tema
fundamental a risada e ela toda pode ser resumida a forma como seus diversos tipos (risada
aberta, risada nervosa, etc.) se relacionam de forma gradual, contrastante ou semelhante aos
outros comportamentos vocais e padrões de emoção.
Inicialmente Berio havia proposto uma quantidade maior de tipos de risadas, mas
Cathy Berberian o alertou para o fato de que a diferença entre elas seria tão sutil que
impossibilitaria a execução. Na versão final, Berio restringiu o número de risadas a um
número menor para que fosse possível a percepção das transições entre cada uma delas.
A primeira versão de Sequenza III desenvolvia diversos tipos diferentes de
risadas. Eu descobri que, no fundo, eu não tinha uma boa risada e seria
muito, mas muito difícil diferenciar os risos convulsivo, histérica, doloroso,
ventríloquo, surdo, amarga, ironia, cruel, em branco, aberto, malicioso,
ameaçando... 42
(BERBERIAN apud STOIANOVA 1985:79)
Através deste gráfico colorido de Sequenza III, pode-se examinar o quanto e como o
riso interfere nas emoções humanas e está presente tanto nas emoções positivas quanto nas
negativas.
Espera-se com esse estudo de Sequenza III com um viés focalizado na classificação
das emoções, facilitar o entendimento do intérprete dos gestos vocais e corroborar a uma ação
vocal calcada nas possibilidades emotivas que a voz possa carregar, em todas as suas formas e
em todas as suas expressões. Aos ouvintes, que auxilie a escutar de forma mais profunda e
emocional não só esta obra, mas como todo o repertório que se utilize de gestos vocais.
42 “La première version de Sequenza III développait plusiers types différents de rire. J’ ai découvert
qu’au fond je n’avais pas um bom rire et qu’il était três difficile de différencier les rires convulsif,
hystérique, douloureux, ventriloque, sourd, ironique, cruel, inexpressif, ouvert, malicieux, amer,
menaçant...”
Fig. 14. Gráfico de cores das emoções da partitura de Sequenza III página 1.
Fig. 15. Gráfico de cores das emoções da partitura de Sequenza III página 2.
Fig. 16. Gráfico de cores das emoções da partitura de Sequenza III, página 3.
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Verifica-se através desta pesquisa que o conceito de gesto vocal de Luciano Berio
coincide com a definição da psicolinguística, possibilitando gerar uma compreensão detalhada
e inequívoca para o termo aplicado no contexto da música vocal.
Chegou-se ao entendimento de que o ponto de partida para uma interpretação mais
expressiva de obras vocais contemporâneas que utilizem efeitos vocais é o conceito de gesto
vocal, pois o cantor explora a sua própria reação emocional espontânea para emiti-lo. A
teatralização artificial de risos, suspiros, gemidos, gritos não são gestos vocais e somente são
efeitos vocais. Cada intérprete encontrará sua própria interpretação de forma pensada, sentida
e expressa pela própria individualidade. A expressão orgânica e emocional do interprete para
com a obra se faz, portanto através dos gestos vocais e destes associados aos fragmentos de
textos, sons vocálicos e consonantais, que reforçam a expressividade musical.
Essa ligação intrínseca entre gesto vocal e emoção ficou evidenciada e facilmente
visualizável na análise de Sequenza III, através da classificação das emoções de Plutchik.
Pôde-se observar e comprovar a variedade das qualidades emocionais que podem ser
representadas através dos gestos vocais em música.
Pode-se também inferir que o gesto vocal, enquanto uma expressão vocal de uma
emoção que expressa também um significado intelectual, carrega consigo uma gama de
associações que permite ao indivíduo que o emite suscitar no emissor a mesma reação que
provoca nele mesmo, isto por que o gesto vocal é capaz de transmitir uma mensagem com um
sentido claro através do compartilhamento e interação do intérprete e ouvinte. Essa
peculiaridade permite ao intérprete elaborar um gesto vocal que provoque uma reação
previsível no ouvinte e desta forma tornar expressiva sua interpretação. Isto ocorre porque
não é preciso estar inserido num contexto social para se compreender um gesto vocal e nem
aprender a fazê-lo. Por exemplo, se alguém grita de repente, todos se assustam. Um deficiente
auditivo, apesar de não escutar uma risada, um choro, um suspiro, sabe fazê-los sem nunca os
ter escutado. E pelo mesmo motivo, igualmente choram todos os bebês que nascem. O gesto
vocal é uma ação vocal comum a todos os seres humanos que reagem emocionalmente.
124
Da mesma forma, através do gesto vocal a música contemporânea pode provocar no
ouvinte reações emocionais específicas sem depender de um conhecimento a priori.
O ouvinte que é treinado a reconhecer as sutilezas de uma coloratura do bel canto, que
ora podem representar gargalhas, melancolia, suspiros e choros, talvez não atribua e perceba a
expressividade de uma obra vocal contemporânea por não encontrar os códigos tradicionais
de composição musical, mas inconscientemente responde instintivamente aos gestos vocais.
Não só na música, mas também no teatro e na poesia verifica-se essa nova estética da
voz, coincidindo com o conceito de gesto vocal de Mead. Diversas correntes
experimentalistas do século XX bus tornaram mais interligadas, podendo por vezes até ser
confundida uma com as outras.
O gesto vocal pode ser investigado de forma mais profunda em diversas áreas afins,
como o teatro e a poesia. Podem-se analisar obras específicas e observar a presença do gesto
vocal e classificá-lo de acordo com as emoções representadas através da classificação das
emoções de Plutchik, de forma análoga a que se propôs à obra Sequenza III. A pesquisa
também pode ser estendida a obras de repertórios de outros gêneros, tanto popular quanto
folclóricos, assim como a música de concerto tradicional, fazendo uma relação também com a
música onde a poesia não está fragmentada, ou seja, possua um discurso textual
compreensível semanticamente.
A compreensão do gesto vocal propicia um melhor entendimento das capacidades
expressivas da voz de representação das emoções humanas, para além das regras de
convenções tradicionais da música, contribuindo para uma escuta em um nível mais profundo
e sensível.
125
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