UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA
O ESPAO DA INFNCIA NAS CRNICAS DE CARLOS HEITOR CONY
ANDR MOTA FURTADO
FORTALEZA 2007
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA
O ESPAO DA INFNCIA NAS CRNICAS DE CARLOS HEITOR CONY
ANDR MOTA FURTADO
FORTALEZA 2007
Dissertao apresentada Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Literatura. Elaborada sob a orientao da Prof. Dr. Fernanda Maria Abreu Coutinho
Lecturis salutem
FICHA CATALOGRFICA ELABORADA POR Telma Regina Abreu Camboim Bibliotecria CRB-3/593 [email protected] Biblioteca de Cincias Humanas UFC_____ F987e Furtado, Andr Mota. O espao da infncia nas crnicas de Carlos Heitor Cony/ por Andr
Mota Furtado. 2007. 205 f. : il; 31 cm. Cpia de computador (printout(s)). Dissertao(Mestrado) Universidade Federal do Cear,Centro de
Humanidades,Programa de Ps-Graduao em Literatura, Fortaleza(CE), 27/07/2007.
Orientao: Prof. Dr. Fernanda Maria Abreu Coutinho. Inclui bibliografia.
1-CONY,CARLOS HEITOR,1926- CRTICA E INTERPRETAO.2-INFNCIA NA LITERATURA.3-ESPAO E TEMPO NA LITERATURA.I-Coutinho, Fernanda Maria Abreu , orientador.II.Universidade Federal do Cear. Programa de Ps-Graduao em Literatura.III- Ttulo. CDD(21 ed.) B869.8408 31/07
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Fernanda Maria Abreu Coutinho Universidade Federal do Cear (UFC) Orientadora
Prof. Dr Marlia Rothier Cardoso Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) 1 Examinadora
Prof Dr Vera Lcia Albuquerque de Moraes Universidade Federal do Cear (UFC) 2 Examinadora
AGRADECIMENTOS
Professora Doutora Fernanda Coutinho, pela grandiosa
contribuio, durante a jornada, proporcionada por sua
incansvel e terna orientao.
Professora Doutora Marlia Rothier, pela gentileza de ter
aceito o convite, e por todas as excelentes sugestes, feitas de
sua leitura atenta e aguda.
Professora Doutora Vera Moraes, pelas valiosas observaes,
apresentadas durante o Exame de Qualificao.
A Carlos Heitor Cony, pelos subsdios dados a este trabalho, em
suas atenciosas entrevistas.
Aos meus colegas e professores do Programa de Ps-Graduao
em Letras da Universidade Federal do Cear.
A todos que, de alguma forma, me ajudaram na realizao desta
pesquisa, em especial, Maria do Amparo e ao Jos de Castro.
DEDICATRIA
A minha me, pela lio de vida.
A meu pai, pela garra em perseguir seus objetivos.
Viviane, pela compreenso e apoio, em todas as etapas da pesquisa.
Cho da infncia. Algumas lembranas me parecem fixadas nesse cho movedio...
Lygia Fagundes Telles Aos 92 anos, prximo ao fim, meu pai buscava ainda a imagem daqueles que dele haviam cuidado em criana. que nunca deixamos de ser crianas. Com o tempo, vamos nos tornando crianas envelhecidas, engelhadas; mas a nossa fragilidade continua sendo a da infncia, a nossa carncia continua sendo a da infncia.
Moacyr Scliar J no existe a casa em que nasci, mas esse facto -me indiferente porque no guardo qualquer lembrana de ter vivido nela. Tambm desapareceu num monto de escombros a outra, aquela que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais ntimo e profundo, a pobrssima morada dos meus avs maternos...
Jos Saramago Poderia falar de quantos degraus so feitas as ruas em forma de escada, da circunferncia dos arcos dos prticos, de quais lminas de zinco so recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que no dizer nada. A cidade no feita disso, mas das relaes entre as medidas de seu espao e os acontecimentos do passado.
Italo Calvino
RESUMO
A pesquisa em pauta analisa, atravs de uma perspectiva hermenutica, de vertente
comparatista, o tema da infncia no mbito da literatura. A partir da leitura da obra em
crnica, publicada em livro, de Carlos Heitor Cony, objetiva-se compor uma
representao pueril, sob o ponto de vista da categoria narrativa espao, desenvolvida
nas subcategorias: espao fsico, social e psicolgico. De incio, a dissertao prende-se
a uma construo argumentativa do termo crnica confessional da infncia, atravs da
ligao entre os vocbulos crnica, memria e infncia; a fim de, na seqncia, aplic-lo
empiricamente e de maneira especfica na edificao dos espaos infantis privados
e pblicos representados, respectivamente, pelas palavras-chave, casa e rua, nas
crnicas do autor em foco. Por meio desse recorte em relao temtica infantil,
verificou-se que o locus do passado processa-se bem mais em sentido figurado. Tanto
pelas relaes sociais como por uma apresentao de um espao mental dos
personagens; evidenciando-se, portanto, de maneira secundria, a demarcao fsica da
geografia das imagens da infncia na obra em crnica de Carlos Heitor Cony.
Palavras-chave: crnica, memria, infncia, espao.
RSUM
La recherche en question analyse, travers une perspective hermneutique, versant
comparatiste, le thme de lenfance dans le domaine de la littrature. partir de la
lecture de loeuvre en chronique, publie dans des livres, de Carlos Heitor Cony, nous
avons pour but composer une reprsentation purile, sous le point de vue de la catgorie
narrative de lespace, dveloppe dans les sous-catgories: lespace physique, social et
psychologique. Initialement, ce travail satatache une construction argumentative du
terme chronique confessionnelle de lenfance, travers le rapport entre les mots
chronique, mmoire et enfance; afin que, dans le squence, nous lemployons
empiriquement et de manire spcifique dans ldification des espaces enfantins
privs et public reprsents, respectivement, par les mots-cls, maison et rue, dans les
chroniques de lauteur cibl. travers cette coupure par rapport la thmatique
enfantine, nous avons vrifi que le locus du pass arrive plutt dans un sens figur.
cause des rapports sociaux et par une prsentation dun espace mental des personages;
soulignant, par consquent, de manire secondaire, la dlimitation physique de la
gographie des images de lenfance dans loeuvre en chronique de Carlos Heitor Cony.
Mots-cls: chronique, enfance, mmoire, espace.
SUMRIO INTRODUO...............................................................................................................10 1. O ESPAO DA MEMRIA E A CRNICA CONFESSIONAL DA INFNCIA...13 2. O ESPAO DA CASA................................................................................................39
2.1 O MENINO CONY..........................................................................................57
2.2 O MENINO E O PAI.......................................................................................69
2.3 O MENINO E A ME...................................................................................105
2.4 O NO-ESPAO DA ESCOLA...................................................................110
2.5 O ESPAO DA LEITURA............................................................................117 3. O ESPAO DA RUA................................................................................................123
3.1 O MENINO E O RIO DE JANEIRO DOS ANOS 30...................................135
3.2 O MENINO E OS TIPOS POPULARES DO LINS DE VASCONCELOS.149
3.3 O ESPAO INTERPARES...........................................................................156 CONSIDERAES FINAIS........................................................................................172 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..........................................................................175 ANEXOS.......................................................................................................................184
Anexo A Entrevista 1........................................................................................184 Anexo B Entrevista 2........................................................................................191 Anexos fotogrficos C, D, E, F, G, H, I, J, L....................................................196
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Entre parnteses, o ano da primeira edio
AF Da arte de falar mal (1963)
AFA O ato e o fato (1964)
PS Posto Seis (1965)
QA Quinze Anos (A juventude como ela ) (1965)
AA Os anos mais antigos do passado (1998)
HB O harm das bananeiras (1999)
PSJ O presidente que sabia javans (2000)
SL O suor e a lgrima (2002)
TN O tudo e o nada (2004)
INTRODUO
A representao do imaginrio infantil, ao longo do tempo, uma presena
constante nas manifestaes artsticas e especificamente quanto literatura um mote
recorrente tanto na prosa como na poesia.
Na prosa brasileira, a crnica uma espcie literria que nitidamente enfoca
o tema. E entre os melhores cronistas do pas, Carlos Heitor Cony , sem dvida, um
dos que mais se destacaram, ao trazer os aspectos da infncia e memria para o centro
de sua produo literria.
Essa faceta da obra deste autor carioca ser o tema de investigao do
presente ensaio. O olhar para sua obra em crnica, de teor confessional, deu margem
observao de que, dentre as categorias da narrativa, uma das mais expressivas no texto
a do espao. Nesta dissertao, opta-se, assim, pelo exame das variadas dimenses do
espao como elemento de construo textual.
Coloca-se ento como problema de investigao para o texto dissertativo em
questo um exame da configurao dos espaos infantis pblicos e privados gerados
pelas crnicas de confisso. Em outras palavras: em que medida esse locus da infncia
se estrutura na linguagem de Carlos Heitor Cony.
A leitura das crnicas suscitou uma indagao de base: por que Carlos
Heitor Cony pouco utiliza a descrio fsica na construo dos espaos da infncia
evocados pelos textos?
Na tentativa de solucionar o problema, lanam-se duas hipteses: a da opo
do autor pelo tratamento do espao de natureza scio-psicolgica; e a da apresentao
tanto dos personagens como do ambiente que os rodeia estar vinculada a textos
essencialmente narrativos, nos quais o fato o que gera a ao narrativa mais
importante que as especificaes descritivas do espao no qual se circunscreve a
histria.
Neste caso especfico, a pesquisa objetiva investigar tanto a construo
espacial, como a sua imagem vinculada criana, nos textos que remetem, de alguma
forma, ao passado do autor. Dito de outro modo: empenha-se em compor uma
representao da infncia, atrelada construo dos diferentes tipos de espaos fsicos,
sociais e psicolgicos; cabendo assinalar, tambm, que a composio dessa geografia
pessoal encaminhar o leitor a uma decifrao do mapa do Brasil, em boa parte do
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sculo 20 e at do 21, por intermdio dos hbitos de crianas e adultos relacionados
idade pueril.
Ao propor um elo entre os vocbulos crnica, memria e infncia, tenciona-
se cunhar a expresso crnica confessional da infncia a partir de reflexes
metalingsticas, como as do prprio autor em foco cujo sentido refira-se anlise e
interpretao sobre a memria da infncia, em crnica.
Estruturalmente, a dissertao compe-se de trs captulos. O primeiro
terico pode ser fracionado em trs grandes tpicos: o inicial aborda o conceito da
crnica brasileira texto que aqui adquiriu uma feio prpria, j que dialoga com o
jornalismo e a literatura. J o segundo tpico, centrado nas observaes de Philippe
Lejeune estudioso francs da autobiografia e seus gneros afins, bem como nas
contribuies tericas de brasileiros como Wander Melo Miranda, Eliane Zagury, entre
outros apresenta questes de teor memorialstico, a fim de se criar um vnculo com
ltimo tpico do captulo: a relao entre crnica, infncia e memria.
No captulo segundo, o elemento espao soma-se aos termos crnica,
memria e infncia. luz de tericos como Antonio Candido, Antonio Dimas, Gaston
Bachelard, Michel Butor, Vtor Manuel, a categoria literria espao posta em questo,
mais precisamente no mbito da casa da infncia. A morada do menino Cony.
Na pintura da temtica infantil, buscam-se as contribuies, principalmente,
de Philippe Aris pesquisador que estudou a infncia como uma construo histrica
e tambm de D. W. Winnicott e John Bowlby. Estes, atravs de estudos de natureza
psicolgica.
Quanto ltima parte da pesquisa, mencionem-se as observaes
relacionadas ao meio urbano, cidade mais precisamente cidade do Rio de Janeiro
espao cultural onde se desenrolam muitas das crnicas enfocadas. Nesta parte do
trabalho, em que predominam os temas infncia e cidade, sobrelevam-se as
contribuies dos tericos Raymond Williams e Nicolau Sevcenko; o primeiro, ingls, e
o outro, brasileiro. Portanto, todas as anlises nesta altura da pesquisa esto atreladas
aos temas infncia e urbe, sempre com o olhar na prpria vida do escritor.
O procedimento metodolgico, em relao aos captulos segundo e terceiro,
situa o tema pesquisado numa perspectiva hermenutica, pelo vis da Literatura
Comparada. As crnicas de Carlos Heitor Cony so cotejadas tanto entre si como do
ponto de vista intertextual, ou seja, em confronto com as produes de autores
brasileiros ao longo dos sculos 19, 20 e 21. Ressalte-se que, dada a sua importncia
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para a ilustrao da pesquisa sobre espao na infncia, algumas crnicas figuram nos
dois captulos.
O corpus do trabalho se efetua na obra em crnica, publicada em livro, do
autor. So textos, que se tornaram pblicos, primeiramente, na imprensa brasileira, ao
longo da atividade intelectual de Carlos Heitor Cony. Todavia, apesar do estudo pautar-
se em todos os livros de crnicas, necessrio ressaltar que nas coletneas Os anos mais
antigos do passado e O harm das bananeiras mais do que em quaisquer outras o
autor revive sua infncia com mais nitidez. E, por isso, as crnicas que as compem
sero amiudamente citadas nesta pesquisa.
Ao se fazer um exerccio comparativo durante as anlises do ensaio,
pretende-se, ento, chegar a um juzo de valor acerca do ttulo proposto. Espera-se que a
pesquisa contribua, de alguma forma, para os estudos literrios que se inclinam a esse
fabuloso tema que a infncia.
1. O ESPAO DA MEMRIA E A CRNICA CONFESSIONAL DA INFNCIA
O embrulho cor-de-rosa continua em minha mo. No tenho vontade de abri-lo, libertar lacraias que esperam, silenciosas, para me devorar. A memria no precisa de matria. Do pequeno trajeto que fiz, do armrio at esta poltrona, lembrei coisas de h muito submersas nos meus pores. Devo cavar a esmo, memria devassando ngulos adormecidos ou mortos, em escala impossvel de precisar: um minuto de memria equivalendo a anos de matria.
Carlos Heitor Cony, Matria de memria
Muito se tem discutido a respeito do gnero crnica no meio acadmico.
Publicaes de livros, teses, dissertaes, monografias ou artigos, de um modo geral,
tentam encontrar uma definio satisfatria para a crnica, enfatizando seu hibridismo
em relao literatura e ao jornalismo caracterstica principal do gnero. Contudo, de
consensual e definitivo tem-se, apenas, que a proposta inicial da crnica foi, e continua
sendo, um texto produzido para ser publicado em peridicos da imprensa.
A crnica como hoje conhecida surgiu no sculo 19, da pena
(literalmente) do folhetinista. Tpica figura do sculo 19, o folhetinista era aquele
profissional da imprensa, pago para escrever em determinado espao do jornal o
chamado folhetim. O hibridismo da crnica j acontecia naquela poca; e, por isso, a
produo destes textos era confiada a escritores reconhecidamente talentosos, como, por
exemplo, Jos de Alencar e Machado de Assis. de se concluir, portanto, que j no
sculo 19 o folhetim diferenciava-se do texto estritamente jornalstico.
Dirigindo-se normalmente s leitoras, Jos de Alencar publicava suas
crnicas sob o ttulo Ao correr da pena, no Correio Mercantil e no Dirio do Rio de
Janeiro. Interessante frisar que em folhetim do dia 24 de setembro de 1854, no Correio
Mercantil, ele comenta sobre a atitude profissional do folhetinista, na coluna de jornal:
Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao assunto srio, do riso e do prazer s misrias e s chagas da sociedade; e isto com a mesma graa e a mesma nonchalance com que uma senhora volta as pginas douradas do seu lbum, com toda finura e delicadeza com que uma mocinha loureira d sota e basto a trs dzias de adoradores! Fazerem do escritor uma espcie de colibri a esvoaar em ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graa, o sal e o esprito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho! (Alencar, 2004: p.25-26)
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Em seu famoso folhetim conceitual, publicado na revista O Espelho, em 30
de outubro de 1859, Machado de Assis aps comentar que o folhetinista a fuso
admirvel do til e do ftil, o parto curioso e singular do srio, consorciado com o
frvolo (Assis, 1986: p.959) fixa, tal como Alencar, a metfora do folhetinista-
colibri:
O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal; salta, esvoaa, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; at mesmo a poltica.
Assim aquinhoado pode dizer-se que no h entidade mais feliz neste mundo, excees feitas. Tem a sociedade diante de sua pena, o pblico para l-lo, os ociosos para admir-lo, e a bas-bleus para aplaudi-lo.
Todos o amam, todos o admiram, por que todos tm interesse de estar de bem com esse arauto amvel que levanta nas lojas do jornal, a sua aclamao de hebdomadrio. (Assis, 1986: p.959)
Walter Galvani, no belo ensaio Crnica: o vo da palavra, cria uma
imagem metafrica para o cronista, to interessante quanto a figura do folhetinista-
colibri apresentada pelos citados escritores oitocentistas. O folhetinista-colibri
transformou-se no cronista-gaivota: entendo que ofcio de cronista como vo de
gaivota, rente s ondas, at o ponto e a hora de fisgar o peixe. E ento vem o mais
difcil: voar mais e mais, sem deix-lo cair. (Galvani, 2005: p.22) A imagem de
Galvani ilustrativa, pois tanto ressalta a busca do tema, captado do cotidiano pelo
cronista, como a obrigao de criar um texto leve, mas artstico. Em momento posterior
de seu ensaio, o jornalista e escritor gacho esclarece melhor o assunto, ao transfigurar
metaforicamente sua experincia pessoal. Idias essas, que podem ser vinculadas, sem
prejuzo de valor, a outros cronistas:
Sou como uma gaivota, l do alto examinando o que ocorre na superfcie do mar ou na beira da praia.
Ah, eis o meu assunto, l est ele, vivo, respirando, esperando apenas que eu o tome entre as mos e o transforme em algo legvel ou, por muita sorte, em trabalho e, quem sabe com alguma competncia , possa lhe dar uma inesperada consistncia artstica, literria, transform-lo em valor cultural permanente. O que uma simples crnica, ento, poder se abrigar em alguma antologia futura ou se assentar em alguma estante preciosa, ao lado de textos de Rubem Braga ou, porque no, de Pero Vaz de Caminha? (Galvani, 2005: p.28)
Oportuno destacar o ltimo perodo enunciado por Galvani, momento em
que ele explica, em tom anedtico, a tendncia natural de crnicas que, por serem
acentuadamente literrias, podem figurar em livro. Tal como Galvani, comentando
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sobre a esttica desses textos breves, Lus Peaz cria tambm uma imagem metafrica,
ao fazer um paralelo entre o jornalista stricto sensu e o cronista. Ele afirma ento:
No texto jornalstico, o jornalista entra com um serrote e um martelo em cada mo, s. Na crnica, ele se abastece de inmeras ferramentas, pode at nem utiliz-las, mas elas esto ali. Se a pressa no for muito grande ele utiliza... Um graminho, uma suta, um formo, uma serrinha menor, um esquadro, a trena, e no raramente a sua colher de pau. (Peaz, 2006: p.22)
, portanto, pelo uso dessas ferramentas mencionadas por Lus Peaz que o
cronista busca criar o teor literrio em seu texto, podendo ele, como j comentado
anteriormente, ser transcrito em livro; meio este de publicao, bem distante daqueles
textos breves do sculo 19, escrito pelos folhetinistas. Alis, bom ressaltar aqui que
nos primrdios do gnero, diferentemente da crnica moderna, cabia quase tudo,
naquele espao do folhetim oitocentista. Para citar dois exemplos, nas colunas eram
encontradas tanto narrativas ficcionais romances que, publicados em fragmentos,
adquiriram em seguida autonomia como textos de crtica literria.
Adotando um ponto de vista histrico, a pesquisadora do folhetim Marlyse
Meyer1, no ensaio Volteis e versteis. De variedades e folhetins se fez a chronica,
resume esquematicamente o folhetim, explicando que a referida coluna brasileira
possua as mesmas caractersticas do originrio folhetim francs. Dividindo-o em
categorias especficas, Marlyse Meyer esboa as caractersticas do que se passou na
Frana-matriz e finaliza suas idias, relacionando-as com o Brasil oitocentista:
1. Feuilleton: espao vazio no rodap de jornais ou nas revistas, destinado ao entretenimento. 2. No mesmo espao geogrfico: o roman-feuilleton. 3. Varits e diferentes feuilletons (contos, notcias leves, anedotas, crnicas, crticas, resenhas, etc. etc. etc...). 4. Todo e qualquer romance publicado en feuilleton, ou seja, aos pedaos. E no Brasil? [...] Basta um relance pela imprensa do sculo XIX para v-lo, em todas as suas modalidades. Tal e qual na matriz. (Meyer, 1992: p.99)
Em outro estudo chamado Estaes, Marlyse Meyer debruou-se na
Seo de Livros Raros da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e obteve boas
informaes acerca da atividade intelectual de Machado de Assis em A estao. O
1 Cf. tambm a seguinte publicao: MEYER, M. Folhetim: uma histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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mencionado peridico, com publicao quinzenal, era um jornal de modas, que possua
uma seo literria. A pesquisadora comenta que
Em matria de literatura, os novos so autores freqentemente resenhados e publicados entre eles, alm de Machado de Assis, prosa ou versos de Jos do Patrocnio, Mello Morais Filho, Lcio de Mendona, Tefilo Dias, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira etc. (Meyer, 2001: p.85)
Nessa seo literria, Marlyse Meyer encontrou, casualmente, escritos
machadianos. Lendo os peridicos de diferentes pocas2, constatou que Machado de
Assis, entre outras atividades intelectuais no jornal, publicou diversos contos e o
romance Quincas Borba, fico estampada nesse peridico que comparada pela
estudiosa sua publicao posterior em livro. Para ficar apenas num exemplo, dessa
relao entre o Quincas Borba do folhetim e o do livro, direi s que a tarefa ia se
revelando muito estimulante, e j de sada permitia observar diferenas notrias na
passagem do jornal ao livro: por exemplo, divergiam inteiramente os vinte primeiros
captulos entre um e outro. (Meyer, 2001: p.96)
Em seu comentrio sobre Machado de Assis, Marlyse Meyer coloca uma
interessante questo que a alterao do texto original quando h uma nova publicao.
Essa reviso uma prtica muito comum entre os escritores. Na busca de criar um texto
ideal, acabam suprimindo ou enxertando frases e/ou vocbulos, bem como
reestruturando a sintaxe do escrito.
Em se tratando especificamente da crnica, aspecto importante tambm para
destaque que este gnero restringe-se s imposies do tamanho que lhe oferecido
no peridico; ficando limitado a um espao fixo. Sua produo, portanto, est
subordinada a um certo nmero de caracteres. Eis uma grande diferena entre o cronista
que acaba, por fora da situao, virando jornalista e o escritor stricto sensu.
Muitos so os escritores que tambm publicaram, ou publicam, na imprensa.
Os j mencionados (Jos de Alencar e Machado de Assis) e ainda Lima Barreto, Rachel
de Queiroz, Graciliano Ramos, Joo Clmaco Bezerra, Clarice Lispector e Joo Ubaldo
Ribeiro so alguns exemplos de romancistas que se tornaram jornalistas pelo vis da
crnica. So intelectuais que assumem normalmente posturas diferenciadas no exerccio
dirio ou semanal da escrita jornalstica. Escrevem para um pblico especfico, o leitor
2 Segundo Marlyse Meyer, o peridico funcionou regularmente entre 15 de janeiro de 1879 e 15 de fevereiro de 1904.
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mais exigente de jornal ou revista, utilizando uma linguagem que foge aos modelos
convencionais da mera veiculao da notcia, buscando, em geral, o registro literrio.
Cristiane Costa, na pesquisa de flego Pena de aluguel: escritores
jornalistas no Brasil 1904-2004, trata justamente dessa dupla funo (escritor e
jornalista) exercida por alguns intelectuais brasileiros. A autora parte de uma pergunta
formulada pelo cronista Joo do Rio, que indaga sobre o fato do jornalismo,
especialmente no Brasil, ser um fator bom ou mau para a arte literria.3 Ao comentar
sobre o momento literrio do incio do sculo 20, ela afirma que:
Os jornais e revistas tinham como trunfo servirem de berrio, vitrine, pedestal e mesmo de trampolim para o homem de letras, encarregando-se do recrutamento, da visibilidade e dos mecanismos de consagrao dos escritores. Era a imprensa que dava as condies de sobrevivncia e de divulgao para a produo dessa massa crescente de intelectuais brigando por um lugar ao sol. (Costa, 2005: p.25)
Essa divulgao proporcionada pela imprensa apenas um dos pontos
positivos das respostas que Joo do Rio obteve. Lembra Cristiane Costa que os outros
so: pagamento, experincia, exerccio e legitimao. E os negativos, para contrastar,
classificam-se em: mercantilismo, banalizao, esterilidade, falta de tempo e
favorecimento. Contudo, a pesquisadora ressalta o fator econmico na diviso de dois
pensamentos daqueles escritores do perodo:
As respostas mais freqentes so, sem dvida, as que pem em lados opostos arte e dinheiro. A polarizao entre os que ainda acreditavam numa arte pura e ciumenta e os que defendiam o papel primordial do jornalismo na formao de um escritor tpica de um momento literrio que experimenta as novas regras da arte. (Costa, 2005: p.26)
Na sua concluso, depois de dizer que impossvel elaborar uma resposta
nica para a referida pergunta de Joo do Rio, porque cada momento literrio ou
jornalstico [como tambm cada escritor] tem seus prprios dilemas (Costa, 2005:
p.345), a autora comenta a relao contraditria entre arte e mercado, porque so
Diferentes, como cara e coroa, mas interligadas. Isso porque as condies estruturais que permitiram a profissionalizao do trabalho intelectual no Brasil, nos ltimos cem anos, desenvolveram-se paralelamente
3 Essa indagao uma das cinco perguntas que faz parte da enquete feita por Joo do Rio com os principais intelectuais de sua poca, os primeiros anos do sculo vinte. Posteriormente, as respostas foram reunidas por Joo do Rio no seguinte livro: RIO, J. do. O momento literrio. Curitiba: Editora Criar, 2006.
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massificao dos meios de comunicao. Mas no constituio de um efetivo mercado para a literatura, que, de cara, exclui praticamente 75 % da populao. (Costa, 2005: p.346)
Observando especificamente, neste momento, o cronista e a relao
emissor/receptor, nota-se que esse profissional da escrita, at de forma natural, acaba
como que se policiando ao se comunicar com um pblico especfico. Tem conscincia
do seu papel na imprensa e sabe a quem se destinaro seus textos. Dialoga muitas vezes
na sua prpria criao, com uma parte dos leitores, os mais interessados. Aqueles que
enviam correspondncia por carta ou, mais comumente hoje em dia, atravs do correio
eletrnico o e-mail. Esse dilogo observvel ao acompanhar a trajetria da crnica
no Brasil.
Situadas principalmente na dcada de 30, as crnicas de Humberto de
Campos representam, de forma clara, essa relao entre cronista e leitor de jornal. So
dezenas de textos em que o referido escritor faz da sua crnica uma carta pblica, em
resposta aos remetentes, expondo, no jornal, problemas pessoais os mais variados.
Nestas crnicas, Humberto de Campos funciona comumente como um
conselheiro sentimental. Exemplo disso Blsamo para um corao, em que uma
mulher deseja suicidar-se porque fora obrigada a casar com um tio alcolatra, agressivo
e ciumento. O texto reproduz diversos fragmentos das cartas recebidas pelo cronista e
dirige-se, logo no incio, diretamente angustiada mulher: Minha senhora. Leio a sua
carta, e detenho-me nesta passagem: J tenho pensado na morte e estou mesmo
resolvida a suicidar-me [...]. (Campos, 1983: p.39) Em pargrafos posteriores, o
cronista afirma sua postura na crnica-carta: tenho, pois, minha senhora, que ser, at
certo ponto, indiscreto. No me viesse, annimo, o seu grito e mandar-lhe-ia, em
segredo, o conselho que me pede. Mas a resposta urgente e tem que ser pblica.
(Campos, 1983: p.40) J nas ltimas linhas do texto, Humberto de Campos aconselhar
interlocutora que viva feliz, rebelando-se contra o marido.
Em outra crnica denominada Carta a Maria Cerqueira, o escritor afirma
que recebeu a missiva de uma meretriz indignada com a pobreza por que passam muitas
pessoas. Autodenominada de prostituta analfabeta, resta a um Humberto de Campos
atordoado, solidarizar-se com Maria, porm sem conseguir expressar conselho algum.
Ele, ento, reproduz o seguinte fragmento da carta recebida:
Eu no estou aqui porque quero [a mulher escreve de um prostbulo], nem as outras infelizes. E quem nos sustenta so os homens da
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sociedade... Cad emprego para quem quer trabalhar honrada? Cad remdio para se tomar quando est doente? A mulher e a filha do pobre s arranjam alguma coisa se prostituindo. Por isso a rua est cheia delas. E s eu sei o que choro de noite quando me lembro de mim. (Campos, 1983: p.71)
Este testemunho real de uma meretriz dos anos 30, em comparao com o
Brasil do sculo 21, mostra que em pouco mudou a situao social brasileira. Atravs
dos textos de Humberto de Campos acima transcritos, percebe-se a possibilidade de
haver uma cumplicidade entre cronista e leitor, podendo at chegar ao ponto de
tornarem-se amigos.
Nos anos 50, e incio dos 60, o bomio Antonio Maria4, radialista e
compositor brasileiro, expressou tambm, em seus textos breves, o dilogo entre
cronista e leitor.
O bem-humorado autor possui um texto ilustrativo para exemplo, o qual
estampa no ttulo Carta de leitores. Crnica essa, feita de fragmentos de cartas dos
leitores, includos os nomes (ou pseudnimos) dos remetentes, como tambm de
pequenos comentrios de Antonio Maria. Normalmente engraado, ele faz, s vezes,
pouco caso da situao, atravs da ironia. Nessa crnica, a ordem do texto estrutura-se
da seguinte forma: h o nome (ou pseudnimo) do remetente, seu questionamento ou
comentrio e, em seguida, a fala do escritor. A fim de exemplificar o texto, transcreve-
se abaixo um trecho da crnica:
LUCRCIA: Reconheo que sou uma mulher muito m. Um dia, pinguei duas gotas de molho de pimenta no colrio do meu marido. Seu crime varia de gravidade, de acordo com a regio onde ele praticado. Na Bahia, por exemplo, m, cruel, desprezvel mesmo, seria a esposa que pingasse duas gotas de colrio no molho de pimenta do marido.
CLUDIA RBIA: ... sou, enfim, uma mulher muito bonita. Que devo fazer para ingressar no cinema? Comprar a entrada. O fato de voc ser bonita no quer dizer que entre de graa nos cinemas. (Maria, 2005: p.33)
Para finalizar essa questo a respeito da relao entre cronista e leitor, em
outra crnica (Amor e torresmos), Antonio Maria escreve um comentrio muito
interessante que, de certa forma, ratifica tudo o que foi dito aqui sobre o assunto. Afirma
ento:
No sei at quando terei que atender a esse consultrio sentimental. Mas o que que vou fazer se as leitoras acham que sei das
4 O autor, na verdade, escreveria crnicas at 1964, ano de sua morte.
20
coisas? Minhas amigas, vocs deviam escrever a Nelson Rodrigues, que um lanterneiro de almas. Ele, sim, Nelson! J vi almas batidas, com o cap e os pra-lamas em frangalhos, sarem novas em folha como se viessem da fbrica. (Maria, 2005: p.94)
Pelo fragmento, o autor se mostra incapaz de solucionar aquelas questes,
formuladas pelos leitores (normalmente as mulheres), eximindo-se da tarefa, e ainda
indicando um colega de imprensa (Nelson Rodrigues), que poderia sanar todas os
problemas sentimentais daquelas pessoas.
Quanto postura no seu espao de jornal, o cronista, mesmo escrevendo um
texto literrio que, de forma geral, ameniza a dura realidade estampada nos jornais,
sofre, geralmente, injunes ideolgicas do peridico no qual trabalha; realidade que
pode lev-lo a entrar em discordncia com o peridico que abriga seu texto. Este um
fato muito comum quando as crnicas so de teor poltico. Para citar um exemplo,
lembre-se a poca da ditadura militar brasileira, perodo em que jornais e revistas
tinham posies ideolgicas variadas, sendo contra ou a favor do regime que se
instaurava no pas. O jornalista, ento, ou seguia o pensamento poltico do jornal ou
revista em que trabalhava, ou entrava em conflito com o peridico.
Desta poca, pode-se recordar um episdio envolvendo dois romancistas
que, trabalhando na imprensa, tiveram problemas com o jornal Correio da Manh.
Carlos Heitor Cony que, incumbido de criar uma crnica diria para o jornal, inicia,
dois dias depois do golpe militar de 1964 em dois de abril uma srie de textos
agressivos contra o novo regime poltico brasileiro.5
Contudo, ao publicar um texto intitulado Ato Institucional II, o escritor
instalou um mal-estar na redao do jornal, que j no queria mais censurar o regime
vigente. A crnica em questo criava doze artigos, satirizando o mecanismo poltico
institudo pelo militar marechal Castelo Branco para governar o pas o Ato
Institucional.
Carlos Heitor Cony, ento, que poca estava sendo processado pelo
ministro da guerra Costa e Silva, envia uma carta a Antonio Callado, redator-chefe do
jornal, pedindo demisso do cargo. Este, ao entregar o pedido de Cony gerncia do
Correio da Manh, acaba, em apoio ao colega, apresentando tambm seu prprio
pedido de demisso. Os dois escritores deixam, ento, de fazer parte do Correio da
Manh.
5 Estas crnicas polticas, que ficaram datadas, foram enfeixadas no livro O ato e o fato, publicado no mesmo ano de 1964.
21
Este episdio, acontecido com Carlos Heitor Cony e Antonio Callado
apenas um exemplo de que a ideologia dos meios de comunicao pode gerar
empecilhos a seus colaboradores, independentemente de o pas estar num perodo de
ditadura militar. Atualmente vive-se uma democracia no Brasil, porm fcil perceber
as posies polticas dos meios de comunicao; seja em apoio ao governo ou no.
Apesar dessa questo ideolgica da mdia, sabe-se que existem revistas, jornais e
programas radiofnicos ou televisivos que so a-partidrios, isto , no chegam no
campo da poltica partidria, preferindo, geralmente, tratar de temas artsticos ou
culturais.
A propsito de comentar acerca do subjetivismo do cronista, cita-se abaixo
uma definio sobre o gnero crnica enunciada pela pesquisadora Margarida de Souza
Neves:
A crnica, pela prpria etimologia chronus/crnica , um gnero colado ao tempo. Se em sua acepo original, aquela da linhagem dos cronistas coloniais, ela pretende-se registro ou narrao dos fatos e suas circunstncias em sua ordenao cronolgica, tal como estes pretensamente ocorreram de fato, na virada do sculo XIX para o sculo XX, sem perder seu carter de narrativa e registro, incorpora uma qualidade moderna: a do lugar reconhecido subjetividade do narrador. (Neves, 1992: p.82)
A autora encerra seu comentrio lembrando o status adquirido, no sculo
20, pelo eu do cronista. Um subjetivismo que dar uma nova configurao ao gnero,
aqui j distante dos rodaps dos jornais oitocentistas. O prprio Carlos Heitor Cony
possui uma metacrnica (A crnica como gnero e como antijornalismo) que tambm
enfatiza esse subjetivismo do cronista. O escritor explica que
A crnica s gnero menor em termos de literatura. Admite-se como inabalvel a certeza de que a literatura tende a ser perene, intemporal. No faltam tericos para garantir que a arte, nela incluindo a arte literria, existe para superar a morte. E, se a literatura busca a infinitude, a crnica crnica mesmo, expresso de finitude. temporal, fatiada da realidade e desvinculada do tempo maior que o da literatura como arte.
Mas da no se deve concluir que ela seja uma defunta. Dizem que se trata de produto tpico do jornalismo brasileiro, mas no exclusivo. Sendo por definio um texto datado, tem fases, sacrifica-se a modismos, mas, devido elegncia ou habilidade de seus cultores, consegue sobreviver em diferentes manifestaes pleonasticamente crnicas: como gnero (crnica) e como vinculada a um tempo (crnica tambm).
Temos a crnica esportiva, a social, a policial, a poltica, a econmica. Elas se diferenciam do "artigo" porque basicamente centrada num eixo permanente: o "eu" do autor. Da que o gnero romntico por definio e necessidade. (Cony, 1998: p.07)
22
O interessante desse comentrio terico de Cony que alm de dissertar
sobre os temas perenidade e forma da crnica tambm se expressa sobre a
subjetividade do autor, afirmando que por isso mesmo o gnero romntico por
definio e necessidade.
Ao caracterizar a crnica como gnero anfbio, vinculando-a ao
jornalismo e literatura, Afrnio Coutinho acrescenta ao debate o prprio
temperamento do escritor como importante fator de autonomia sua produo. O
terico explicita a questo, quando diz que a crnica atinge [...] o melhor de sua
realizao formal quando consegue fundir os supostos contrrios a literatura e o
jornalismo com um teor autnomo pela fora da personalidade do escritor refletida em
seu estilo e em suas idias. (Coutinho, 1986: p.134)
Quanto ao contedo, j mencionado em pginas anteriores, a crnica, como
expresso jornalstica de muitos escritores, via de regra, trata de assuntos do cotidiano
citadino um trao indiscutvel do gnero. Lembrando, novamente, os folhetins do
sculo 19: Jos de Alencar e Machado de Assis, por exemplo, escreviam suas colunas,
as quais tinham, como objetivo primeiro, o de reportar sobre os principais fatos da
semana. Logo, fica evidente que desses folhetins que ocupavam normalmente o
rodap da pgina de jornal poderiam surgir temas circunstanciais do momento, o que
proporciona vantagens, na compreenso do escrito, ao leitor contemporneo
publicao do peridico.
Entretanto, o cronista, principalmente o dirio, na persistncia de comentar
sobre o dia-a-dia de sua poca inteno primitiva da crnica oitocentista acaba
esgotando assuntos por demais ditos, como, por exemplo, a poltica, os costumes do
povo, a descrio de lugares.
Isso gera uma situao recorrente por que passa o cronista, a falta de
assunto como tema do texto, a qual remonta ao sculo 19. Na sua coluna do dia 13 de
maio de 1855, publicada no Correio Mercantil, Alencar inicia seu folhetim da seguinte
forma:
Estou hoje com bem pouca disposio para escrever. Conversemos. A conversa uma das coisas mais agradveis e mais teis que
existe no mundo. (Alencar, 2004: p.319)
23
Em crnica do dia 21 de outubro do mesmo ano, seguindo essa tendncia
usual dos cronistas de produzir um texto metalingstico, ele comea sua coluna de
forma mais contundente que a anterior:
Estava olhando para o fundo do meu tinteiro sem saber o que havia de escrever [...].
[...] De fato o que um tinteiro? primeira vista a coisa mais insignificante do mundo; um
traste que custa mais ou menos caro, conforme o gosto e matria com que feito. (Alencar, 2004: p.423-24)
Aps uma reflexo banal sobre o tinteiro, o autor trata de temas do
momento como um leilo que iria ocorrer e as apresentaes no teatro lrico. Alencar
volta ao assunto do tinteiro, ao finalizar sua crnica, de forma primorosa:
Comeo de novo a olhar o fundo do meu tinteiro para ver se ainda h alguma coisa.
Esperai! L vejo surgir o quer que seja, - um pequeno ponto, um ponto quase imperceptvel e confuso, que vai pouco a pouco se tornando mais distinto, como uma vela que desponta no horizonte entre a vasta amplido dos mares.
Talvez nos traga coisas interessantes e curiosas; notcias que vos compensem da insipidez destas pginas ingratas.
Oh! O ponto cresce, cresce! Vai tomando a fisionomia de uma espcie de porteiro de secretaria, ou de bedel de academia.
Agora vejo-o distintamente; um amigo velho! Bem-vindo, meu bom amigo, bem-vindo amigo sincero dos
folhetinistas e dos escritores, bem-vindo, ponto final! No h remdio, seno ceder-vos o lugar que vos compete; ei-
lo, ( . )
(Alencar, 2004: p.429-30)
Tratando-se, portanto, do tema da falta de assunto, Alencar produziu um
final de texto criativo. O fragmento representa bem a angstia profissional dos
escritores para concluir uma produo. A passagem rica de imagens. O ponto final,
aqui, comparado a um barco surgindo no horizonte, a um porteiro de secretaria e a um
bedel de academia. A conveno lingstica do ponto final figura como metfora do
xito do cronista, escritor que publica constantemente suas crnicas, estando preso a um
determinado tempo, geralmente o de um dia ou de uma semana.
Esse folhetinista do sculo 19, que traava um painel do seu habitat, num
processo de aprimoramento do gnero, transformou-se em um cronista de linguagem
mais literria, abordando uma diversidade de temas na sua coluna de jornal.
24
Contudo, esse livre cronista, que tem autoridade para comentar
artisticamente acerca de qualquer coisa, incluindo at o tema da falta de assunto, tem
perdido espao no jornal, nos ltimos anos. o que comenta Marcelo Coelho, colunista
do caderno Ilustrada, da Folha de So Paulo, no ensaio Notcias sobre a crnica:
Tenho a impresso [...] de que a crnica perdeu bastante espao e prestgio nos jornais e nas revistas. Ainda que esse tipo de texto sempre tenha sido considerado mais ou menos intil perto das notcias mais concretas, dos textos de opinio, das reportagens investigativas, etc., parece que a crnica ficou ainda mais intil do que era, digamos, h trinta ou cinqenta anos. (Coelho, 2005: p.155)
O que Marcelo Coelho esclarece em seguida que, na verdade, seria mais
exato falar numa modificao do gnero (Coelho, 2005: p.156) do que em um seu
declnio. No decorrer de seu ensaio, o escritor lembra as crnicas de Carlos Heitor Cony
publicadas na Folha de So Paulo, para defender seu ponto vista de que o texto de
Cony, por ser o que chama de crnica clssica, um exceo regra:
Pensando na Folha, acho que o lugar da crnica clssica, do gnero carioca/mineiro tal como foi praticado a partir do Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, etc., tem sido a coluna Rio, na pgina 2, com os textos de Carlos Heitor Cony. Ali o que se tem, no todos os dias da semana, porque algumas vezes o que Cony escreve texto poltico, de opinio, mas na maior parte dos dias o caso clssico da crnica em que de fato o autor pode comear de qualquer lugar, usar qualquer assunto, no demonstrar nenhuma tese, voltar a um tema antigo, pouco importa, porque o texto extrai toda sua alta qualidade literria dessa mesma desimportncia que, no caso de Cony, muitas vezes se expressa na forma do arbitrrio, do capricho, da mais inspirada e artstica idiossincrasia. (Coelho, 2005: p.158-59)
Marcelo Coelho chama ateno para a literariedade particular de Cony, ao
tratar de assuntos variados, muitas vezes baseados em seu prprio passado. Ao falar
sobre os talentosos cronistas brasileiros, afirmando que so excees em suas
respectivas pocas, Marcelo Coelho faz um comentrio elogioso sobre o livro O harm
das bananeiras, de Cony. Essa uma obra que exemplifica a chamada crnica
clssica do autor. Logo, motivo para Marcelo Coelho afirmar que:
E quem quer que folheie um livro como O harm das bananeiras, de Carlos Heitor Cony, ou leia sua crnica diria na Folha de S. Paulo, verifica que contamos, nos dias de hoje, com um artista em tudo comparvel aos maiores mestres desse gnero. O talento excepcional existe em qualquer poca, mesmo na nossa. (Coelho, 2005: p.156)
25
Em uma viso generalizante, no se restringindo aos seus comentrios sobre
Cony, o que Marcelo Coelho desenvolve em seu ensaio so as seguintes idias: 1) A
notcia de jornal, opondo-se de TV, no costuma mostrar uma verdade absoluta, mas
sim posies diversas, com uma linguagem simples e acompanhada de imagens. 2)
Houve um aumento do nmero de colunistas opinativos (o autor cita os exemplos de
Jos Simo e Arnaldo Jabor) em detrimento do cronista clssico. Essas idias,
segundo ele, fizeram com que a crnica perdesse espao no jornal. Resumindo, ento,
seu pensamento, ele explica que
[...] h um grande aumento no espao para os articulistas, estes cada vez mais tomam partido, e cada vez menos tomam distncia diante dos fatos, e h um grande aumento no espao para as notcias relativizantes, para as notcias distantes, irnicas, no jornal; mas simtrico a isso o processo de diminuio do espao da crnica. No sei se isso constitui um problema, ou se um problema importante; nenhum cronista, ao menos, est obrigado a resolv-lo. possvel ser cronista, alis, sem cultivar o gnero; a nica obrigao incontornvel no esgotar a pacincia do leitor. (Coelho, 2005: p.162)
O trecho a seguir, de A crnica como gnero e como antijornalismo
acrescenta discusso um comentrio do prprio Cony:
A imprensa moderna, altamente competitiva e cara, no chegou a mutilar o gnero, mas direcionou-o estratgia geral do que hoje se chama comunicao. Numa palavra: exige que tudo o que veiculado no jornal ou revista, das condies do tempo ao desempenho das bolsas, seja til ao leitor, seja aquilo que nas redaes chamado de servio. Da que sobra um espao reduzido ao cronista sem assunto, sem informao e sem outro servio que no o estilo mais sofisticado que s ser apreciado por determinados leitores e no pela massa consumidora do jornal ou revista. (Cony, 1998: p.07)
Cony, de certa forma, ratifica o pensamento de seu colega da Folha de So
Paulo, pois tanto ele quanto Marcelo Coelho dissertam sobre a reduo do espao do
cronista na imprensa brasileira, devido sua aparente inutilidade no universo
capitalista contemporneo.
Esse cronista clssico, escrevendo sobre temas os mais variados, no se
limitando apenas a tratar de fatos ocorridos durante a semana como acontecia
geralmente com os folhetins oitocentistas volta-se ao seu prprio passado, a fim de
represent-lo em crnica. O autor, ento, seleciona e rememora, no texto do jornal,
etapas vivenciadas por ele, os momentos que mais o marcaram durante o tempo. nesta
busca pelo passado que a infncia manifesta-se como um grande tema da crnica
26
brasileira, j que essa fase o auge de uma poca marcante da vida humana, cuja falta
resgatada pela lembrana, em textos de teor memorialstico.
Interessante que, em crnica publicada no dia 6 de novembro de 1971, no
Jornal do Brasil, Clarice Lispector aborda, poeticamente, a questo do no vivido como
fator instigante ao surgimento da imaginao. Afirma ela, ento, no fragmento6
Lembrar-se do que no existiu da referida crnica:
Escrever tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforo de memria, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrana em carne viva. (Lispector, 1999: p.385)
Observa-se que a escritora produz um texto apoiado na metalinguagem. O
trecho discorre sobre a criao do escritor, pessoa propagadora de imagens que no
existiram; mas que, por serem intensas, so como vivncias para o autor.
Pelo esgotamento de assunto e a obrigao do cronista em ocupar o espao
que o jornal lhe confere, a infncia aparece como tema freqente nessas colunas de
jornal. o que afirma Carlos Heitor Cony:
[...] no jornal a gente obrigado a escrever e muitas vezes no tem um assunto importante para argumentar, para opinar ou para gozar, e a a gente volta, ento, para esse imenso patrimnio que a infncia de cada um. No sou apenas eu, tem outros escritores tambm, sobretudo aqueles que se dedicam mais crnica, esto sempre apelando para a infncia, porque um territrio neutro. Muitas matrias j esto vencidas, j esto passadas, e d ento a oportunidade da gente fazer sempre uma .... No vou dizer encher lingia, mas a gente tem que ocupar aquele espao que o jornal nos d de uma forma um tanto quanto possvel digna e com um certo charme. (Anexo B: p.202)
Tal como outros cronistas, Carlos Heitor Cony , ento, um escritor que
costuma retratar sua prpria infncia em crnicas. Aos oitenta e um anos, de se
ressaltar que durante sua trajetria intelectual ele nunca deixou de publicar crnicas.
Com sessenta anos de jornalismo7, tratou de temas bem variados nestas pequenas
produes, as quais possuem certa flexibilidade conteudstica.
Inserindo Carlos Heitor Cony nessa variabilidade de assuntos, percebe-se
uma infinidade de idias, em suas crnicas de circunstncia ou no. De forma breve, e 6 Nas crnicas de Clarice Lispector, publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973 e enfeixadas no livro A descoberta do mundo, comum a organizao textual em subdivises temticas. 7 Em 1947, Carlos Heitor Cony estria na imprensa cobrindo as frias do pai, que era jornalista no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. A substituio do pai faria com que Cony no mais sasse da imprensa.
27
refletindo diacronicamente desde Da arte de falar mal, de 1963, at O tudo e o nada, de
2004, relacionam-se os seguintes temas na obra em crnica do autor: poltica8, novas
tecnologias, artes, religiosidade crist, histria do mundo e do Brasil, vida literria e
jornalstica, geografia e cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, itinerrio de viagens,
relacionamento amoroso, pessimismo, vida pessoal do presente e do passado, entre
outros.
no ltimo tema citado, a vida pessoal do passado, isto , as lembranas
vividas, que se enquadra a crnica confessional da infncia, como ser explicada nas
pginas subseqentes. A abordagem do locus de um passado distante, neste momento
inicial da pesquisa, restringe-se prpria re-inveno da infncia por fragmentos da
memria corrompida. o espao mental trabalhado pelo narrador adulto, isto , o
espao para a narrativa madura e estilizada. Viso moderna, em retrospectiva, do que
vivenciou. Cony ratifica a questo, quando diz que
[...] a memria da infncia parcial e seletiva. A memria no absolutamente confivel. A de ningum, no s a minha, mas a de ningum. Ela j uma soma de determinadas constataes, de revises interiores, de maneira que, embora a gente procure ser, digamos assim, autntico, no sentido de fiel aos fatos, sempre h uma corrupo posterior, ou seja, a viso do adulto quando criana. (Anexo A: p.197)
Impossvel, numa pesquisa que analise a infncia do autor, no comentar
sobre a autobiografia gnero literrio surgido com a publicao de Confisses, do
filsofo iluminista Rousseau, na segunda metade do sculo 18.
Nas crnicas de Carlos Heitor Cony, encontra-se, como j aludido neste
texto, um resgate da vida pueril. Elas buscam o passado distante do prprio autor
inserindo-se, por conseguinte, no terreno da autobiografia. Philippe Lejeune um dos
principais tericos da autobiografia e seus gneros vizinhos (dirio ntimo, memrias,
auto-retrato, biografia, romance autobiogrfico e poema autobiogrfico) afirma que,
para existir um relato autobiogrfico, tudo tem que partir da identidade entre autor,
narrador e personagem: o chamado pacto autobiogrfico. Este pacto uma condio
sine qua non para a figurao do gnero. Na anlise de uma obra, para efeito de
8 O autor escreveu crnicas polticas tanto contra o regime militar j dito em pginas anteriores como contra os presidentes eleitos aps a fim da ditadura. Destaquem-se, nos ltimos anos, as crticas feitas a Fernando Henrique Cardoso (personagem central de todas as crnicas do livro O presidente que sabia javans) e Lula, atualmente no segundo mandato consecutivo, o quadrinio 2007 - 2010.
28
verificao do pacto, o pesquisador em ltima instncia deve remeter-se ao nome do
autor na capa do livro.
Ao definir a autobiografia, Lejeune afirma que ela um relato
retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua prpria existncia, quando
enfatiza sua vida individual, em particular a histria de sua personalidade. (Lejeune,
1975: p.14)
Ao estabelecer seu conceito de autobiografia, Lejeune o articula com os
seguintes elementos: narrao em prosa, retrospeco da narrativa, assunto de uma vida
individual e identidade da pessoa real, do narrador e do personagem principal. So
elementos que existem, obrigatoriamente, na construo do texto autobiogrfico. Pois,
na falta de um deles, o texto muda de feio, podendo ser classificado em algum gnero
vizinho (dirio ntimo, memrias, auto-retrato, biografia, romance autobiogrfico e
poema autobiogrfico).
Wander Melo Miranda, discutindo o assunto, afirma que
A questo da autobiografia no se coloca, para Lejeune, como uma relao estabelecida entre eventos extratextuais e sua transcrio verdica pelo texto, nem pela anlise interna do funcionamento deste, mas sim a partir de uma anlise, no nvel global da publicao, do contrato implcito ou explcito do autor com o leitor, o qual determina o modo de leitura do texto e engendra os efeitos que, atribudos a ele, parecem defini-lo como uma autobiografia. (Miranda, 1992: p.30)
O contrato de leitura fator determinante para o estabelecimento da
autobiografia: um discurso organizado, intencional e literrio, porque no se limita
apenas transcrio de dados individuais. o que comenta, ainda, o pesquisador
mineiro sobre o problema da veracidade dos textos:
Entretanto, mesmo em sentido restrito, a autobiografia tende a assimilar tcnicas e procedimentos estilsticos prprios da fico. Isso evidencia o paradoxo da autobiografia literria, a qual pretende ser simultaneamente um discurso verdico e uma forma de arte, situando-se no centro da tenso entre a transparncia referencial e a pesquisa esttica e estabelecendo uma gradao entre textos que vo da insipidez do curriculum vitae complexa elaborao formal da pura poesia. (Miranda, 1992: p.30)
Na verdade, h um trnsito entre a autobiografia e a fico, proporcionado
pela escritura. Mesmo havendo um pacto de sinceridade, a escrita autobiogrfica pode
escorregar para a fico, e vice-versa. Cony comenta, enftico, que essa escrita hbrida
proporcionada pelo desgaste da memria devido ao tempo, pois a verdade que,
29
depois de um certo tempo, a memria vai sendo corrompida pela vida atual. A memria
comea a ser modelada, uma espcie de texto final que mudado. (Anexo A: p.201)
Fernanda Coutinho, ao falar das lembranas infantis como traos marcantes
na vida do indivduo, acrescenta ao assunto o seguinte comentrio:
Transportados para o domnio da escrita, estes traos poderiam ser anotados tanto em relatos ficcionais quanto nos autobiogrficos e ainda nas obras hbridas, que terminam sendo as de configurao mais freqente, uma vez que as fronteiras entre o confessional e o fictcio no se delineiam com facilidade. (Coutinho, 2003: p.49-0)
Como se v, a estudiosa chama ateno para a dificuldade de delimitao do
que seja autobiogrfico ou no, em relao a certas obras literrias.
Um outro aspecto interessante a ser destacado nas autobiografias que elas trazem ao leitor vrios quadros de gnero, que so, como no se desconhece, representaes da vida cotidiana. Atravs delas, pois, tem-se o traado do perfil cultural de uma determinada poca. (Coutinho, 2003: p.48)
Ao se fazer um paralelo entre os gneros autobiografia e memrias
depreende-se que a distino no ntida. Contudo, apenas didaticamente, diz-se que
autobiografia uma auto-representao, enfatizando uma vida individual; j as
memrias voltam-se para a histria dos acontecimentos vividos e testemunhados de uma
poca. As memrias teriam um carter mais abrangente, enquanto a autobiografia seria
mais especfica, centralizada num eu confessional.
Necessrio comparar o ltimo comentrio acima, de Cony, com um
fragmento de Ba de Ossos (primeira edio de 1972), obra inicial de Pedro Nava,
escritor que talvez tenha sido o maior autor brasileiro a cultivar o gnero memrias.
Destaca ele, na passagem abaixo, a tradio familiar e o surgimento do literrio, a partir
da rememorao dos fatos:
A memria dos que envelhecem (e que transmite aos filhos, aos sobrinhos, aos netos, a lembrana dos pequenos fatos que tecem a vida de cada indivduo e do grupo com que ele estabelece contatos, correlaes, aproximaes, antagonismos, afeies, repulsas e dios) o elemento bsico da construo da tradio familiar. Esse folclore jorra e vai vivendo do contato do moo com o velho porque s este sabe que existiu em determinada ocasio o indivduo cujo conhecimento pessoal no valia nada, mas cuja evocao uma esmagadora oportunidade potica. (Nava, 2002: p.09, grifo nosso)
30
Em boa parte de Ba de Ossos, Pedro Nava faz uma abordagem genealgica
de seus antepassados. Ao comentar sobre seu av paterno, que no conheceu, ressalta,
novamente, a unio do verdico com o literrio:
Era a primeira face do espelho a severa e sem risos que meu av assumia para ir de manh, de sua casa para o trabalho. No difcil imaginar como ele faria esse caminho se juntarmos verdade o verossmil que no seno um esqueleto de verdade encarnado de poesia. (Nava, 2002: p.58, grifo nosso)
Conhecendo o av s por imagens e pelo discurso dos familiares, percebe-se
que Nava, pelo fragmento transcrito, coloca em pauta o fator imaginao, trabalhando
com a realidade e a verossimilhana, no processo da escrita.
Com relao a esse av homnimo que era comerciante, o mdico-escritor
mostra que teve conhecimento dele apenas por retratos, cartas e relato dos familiares.
Pelas observaes j feitas at aqui, entende-se quo frgil o gnero
autobiogrfico. O prprio Lejeune, em Je est un autre, reconhece a autobiografia como
uma iluso. H, na verdade, uma existncia de dois sujeitos, em que um tenta sem
sucesso reconstituir o outro. Lejeune afirma que
Na verdade, no somos nunca causa da nossa vida, mas podemos ter a iluso de nos tornarmos seu autor, escrevendo-a, com a condio de esquecermos que somos to pouco causa da escrita quanto da nossa vida. A forma autobiogrfica d a cada um a oportunidade de se crer um sujeito pleno e responsvel. Mas basta descobrir-se dois no interior do mesmo eu para que a dvida se manifeste e que as perspectivas se invertam. Ns somos talvez, enquanto sujeitos plenos, apenas personagens de um romance sem autor. A forma autobiogrfica indubitavelmente no o instrumento de expresso de um sujeito que preexiste, nem mesmo um papel, mas o que determina a prpria existncia. (Lejeune, 1980: p.242 apud Miranda, 1992: p.40-1)
Logo, entende-se que a autobiografia uma escrita seletiva do passado.
Interessante relacionar a autobiografia com o romance autobiogrfico, gnero que no
obedece ao pacto autobiogrfico. Trazendo-se as questes memorialistas para o texto
de Carlos Heitor Cony, esse escritor, ao ser indagado sobre a possibilidade de serem um
auto-retrato amaneirado os personagens Joo Falco e Augusto, respectivamente de
Informao ao crucificado e de A casa do poeta trgico, responde a pergunta,
chamando a ateno para o pastiche: eu no digo que os personagens so clones do
autor, mas so pastiches dele. o autor se escondendo de uma coisa ou de outra. [...] No
31
meu caso, eu j tendo um pouco mesmo para o gnero memorialstico. (Cadernos de
Literatura Brasileira, 2001: p.43) Esta idia de pastiche relaciona-se com o conceito de
pacto fantasmtico nas formas mistas, caso do romance:
O pacto fantasmtico cada vez mais expandido, criando novos hbitos de leitura. O leitor convidado a ler romances no apenas como fices que remetem a uma verdade de natureza humana, mas tambm como fantasmas reveladores de um indivduo, o autor. (Miranda, 1992: p. 37)
Ana Cludia Viegas, estudando as caractersticas de A inveno de si na
escrita contempornea, em alguns romances publicados no sculo 21, explica que as
narrativas Joana a contragosto, de Marcelo Mirisola, e Nove noites, de Bernardo
Carvalho, so romances que se enquadram na autofico, pois h o permanente
deslocamento entre as noes de verdade e fico . (Viegas, 2006: p.14) H um
jogo nessas narrativas ficcionais em 1 pessoa, nas quais se mesclam autor textual e
autor emprico.
Na verdade, essa autofico, dita por Ana Cludia Viegas, representa a
mesma idia do j comentado pacto fantasmtico de Lejeune. Est-se aqui no hbrido
terreno entre fico e realidade. Nas ltimas linhas de seu ensaio, a pesquisadora
sintetiza seu pensamento, explicando que
Nas escritas de si contemporneas, como os auto-retratos que circulam na web e as autofices dos romances em primeira pessoa, o sujeito se cria ficcionalmente e encena sua dimenso emprica. A criao de auto-imagens aproxima vida e arte, fico e realidade, estabelecendo com o leitor, em vez de um pacto autobiogrfico, um pacto fantasmtico, cujo contrato de leitura no promete a revelao de verdades, mas o desdobramento do autor em diversos personagens. (Viegas, 2006: p.21-2)
Trazendo as idias discutidas at aqui para a obra de Carlos Heitor Cony,
no obstante sua afirmao de que tende para as memrias fala esta, j mostrada em
linhas atrs: o autor no memorialista. Comparando-o com Pedro Nava, v-se que,
apesar de ambos resgatarem o passado, Nava diferencia-se de Cony na medida em que
possui um projeto literrio memorialista organizado e de flego, isto , o autor quis e
fez sua literatura, pautando-se, praticamente, na sua vida e em sua famlia. No caso de
Carlos Heitor Cony, a problemtica de anlise aumenta, porque este resgate se d de
maneira difusa e por vezes mesclada com a fico, j que o autor no elaborou um
projeto intencional de memrias.
32
Levando a questo do memorialismo para a crnica, gnero que abriga o
corpus da pesquisa, relaes podem ser feitas entre este gnero anfbio e o dirio. Tal
como a crnica, o dirio o registro do efmero e do descontnuo por uma escrita
refratria a qualquer organizao. (Miranda, 1992: p.35) As duas formas buscam
momentos transitrios do dia-a-dia, instantes comuns da vida, inclusos de maneira
desordenada no texto. Quanto s diferenas entre elas, tm-se dois aspectos: o processo
de comunicao e o meio de publicao. No caso do dirio, o receptor o prprio
emissor, podendo haver de forma autorizada a publicao, em livro, dos escritos,
deformando, por conseguinte, seu conceito primitivo. No caso da crnica, o emissor
escreve para vrios destinatrios. Muitos deles, at conhecidos pelo escritor, costumam
ser emissores tambm, quando enviam seus comentrios, sugestes, elogios ou crticas
aos escritores fato j explicitado em pginas anteriores. Quanto ao meio de
comunicao, a crnica encontra-se, normalmente, em jornais ou revistas, podendo, tal
como o dirio, ser publicada em livro meio que no garante, necessariamente, sua
posteridade no campo da literatura.
Na verdade, o que mais relevante para a crnica adquirir uma
permanncia, na historiografia literria, o prprio valor intrnseco do texto os
aspectos de ordem textual. Nesse processo de coleta, o escritor que, geralmente, rene
as crnicas mais literrias e no circunstanciais; resolvendo ento, de alguma forma,
agrup-las ou pela temtica, ou pelo estilo, ou pela ordem cronolgica ou, em
desobedincia a tudo isso, usando o critrio da aleatoriedade.
Antes de abordar mais especificamente os textos referentes ao tema da
infncia na crnica de Carlos Heitor Cony, apresentam-se aqui alguns comentrios de
Ftima Cristina Dias Rocha sobre a crnica confessional de Clarice Lispector. Em
Identidade e autobiografismo nas crnicas de Clarice Lispector, a pesquisadora parte
da hiptese de que nas crnicas, Clarice tanto constri uma identidade autobiogrfica,
quanto desfaz a iluso autobiogrfica por ela encenada, deixando visveis as tnues
fronteiras entre o cunho confessional do narrado e a livre inveno ficcional. (Rocha,
2006: p.102) Isso porque a escritora, nesses textos de confisso, cria um discurso
metalingstico, explicando ao leitor seu prprio ato de imprimir na escrita sua vida
pessoal. Ela declara seus dilemas no texto. Algumas vezes, confessa prazerosamente os
fatos pessoais; j, em outros momentos, lamenta e afirma no gostar de falar de si.
Para citar um exemplo, em crnica publicada no Jornal do Brasil do dia 22
de junho de 1968, no fragmento Ser cronista, diz que sem perceber, medida que
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escrevia para aqui, [para o jornal], ia me tornando pessoal demais, correndo o risco
daqui em breve de publicar minha vida passada e presente, o que no pretendo.
(Lispector, 1999: p.113)
Clarice Lispector, nesses textos breves, revela fatos da sua famlia num
tempo do passado, relata sua infncia, lembrando, por exemplo, a figura do pai.
Contudo, vale destacar, que essa escrita sempre propondo, em lugar do binmio
falar/revelar, um outro: falar/encobrir, a autora tenta neutralizar a temida pessoalidade
de suas crnicas. (Rocha, 2006: p.105) J a escritura confessional de Carlos Heitor
Cony situa-se no binmio falar/revelar. O cronista, ao resgatar sua vida passada
nesses textos de jornal, revela-se com uma postura oposta de Clarice Lispector.
Relembrando fatos da infncia, por exemplo, Cony quer ser pessoal mesmo. Muitas
vezes vai direto ao passado sem o menor receio de confessar o que passou.
Diferentemente de Clarice Lispector, no h a escrita arrependida, a qual volta atrs do
j dito.
Da obra em crnica de Carlos Heitor Cony, publicados respectivamente em
1998 e 1999, Os anos mais antigos do passado e O harm das bananeiras so os livros
que merecem destaque nesse universo da literatura do eu. As publicaes estabelecem
um pacto com o leitor, embora, se comparado ao pacto autobiogrfico de Lejeune,
esteja numa realidade distante, pois, alm de serem textos curtos, publicados no dia-a-
dia da imprensa, no h, em algumas delas, a identidade entre autor, narrador e
personagem, como ser explicado posteriormente.
H certa demonstrao de sinceridade com o leitor nos elementos
paratextuais destas obras. Em Os anos mais antigos do passado, percebe-se que o ttulo
bastante apropriado para englobar textos de confisso. No prlogo da quarta edio,
h um comentrio breve do autor, que mostra a permanncia do passado em sua
memria, e seu resgate pelo texto. Afirma ele que: fantasmas antigos teimam em me
assombrar. Dou-lhes a oportunidade de um instante a mais. Em paga, que eles me
tragam remorsos de menos.
J em O harm das bananeiras existe, na capa, uma foto do autor, de batina,
poca do seminrio j mostrando, ento, os indcios autobiogrficos. E o ttulo faz
referncia a uma crnica homnima, que relembra o despertar da sexualidade de
meninos dos anos 30.
Tanto na orelha como na contracapa, as duas publicaes fazem referncia
seja por fragmento de crnica ou no infncia de Cony. No existe tambm uma
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ordenao nos textos com relao a temas. Apenas uma ressalva: em Os anos mais
antigos do passado, o primeiro e ltimo texto so crnicas da infncia narradas na 3
pessoa. Cony recria, aqui, sua infncia ao pr um menino diante da janela, observando o
mundo com certo receio de fazer parte dele.
Apesar de todos esses ndices de cunho autobiogrfico, os livros esto longe
de serem coletneas completas da chamada crnica confessional da infncia. O passado
do autor apenas o tema mais recorrente das duas obras, pois existem outros, j
assinalados neste trabalho, como o cotidiano da cidade, a poltica, sua rotina, histrias
de suas viagens, entre outros. As obras, tambm, no compem todas as crnicas que
versam sobre a infncia. So apenas algumas, entre muitas outras, pois, em qualquer
livro de crnica do autor, existe, com exceo de O ato e o fato, pelo menos uma com
esta temtica.
Perguntado se h traos de sua personalidade nas crianas, nas crnicas cujo
foco narrativo em 3 pessoa, Cony diz:
A gente pode contar na primeira ou na terceira pessoa, eu prefiro contar alguns fatos na primeira pessoa, outros na terceira, sobretudo quando a lembrana, a recordao um pouco corrompida pelo tempo, quando me lembro, uso em primeira pessoa, agora quando o fato est espedaado em mim, quando eu no me lembro bem do fato e quero agregar outros elementos, uso a terceira pessoa porque basicamente o narrador continua sendo eu, mas agreguei, absorvi outros. (Anexo B: p.203)
Esta explicao do prprio autor em anlise talvez seja um dos melhores
comentrios acerca da crnica confessional da infncia. Ele mostra, de forma objetiva,
a fuso que h entre o dado autobiogrfico e o elemento ficcional. Estes textos, por
vrios motivos j explicados, no so memrias nem muito menos uma autobiografia.
As chamadas crnicas confessionais da infncia so relatos de fragmentos,
narrados na 1 ou 3 pessoa gerados pelo esgotamento de assunto da histria da
infncia de uma pessoal real muitas vezes ficcionalizados escritos para a
transitoriedade dos peridicos; podendo ser abrangidos, de maneira catica, ou
organizados em coletneas de crnicas, restritas a um autor especfico, ou no.
Acrescentando aqui palavras de Lejeune a essa discusso sobre os relatos
pueris, observe-se que, em A Infncia fantasma, ele aponta que esses se apresentam
muitas vezes como uma procura inicitica, da qual se pem em cena as dificuldades. A memria fragmentada, as lembranas flutuam, so raras a princpio, depois uma trama chega a relig-las, mas a dvida persiste sobre as
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circunstncias ou os pormenores. O autobigrafo vai exprimir seus escrpulos. (Lejeune, 1998: p.36)
Nota-se que Lejeune lembra o aspecto do esquecimento, da fragmentao da
memria, que muitas vezes impulsiona o escritor a confessar, no prprio texto, que no
se recorda com nitidez da sua infncia. No obstante essa fragmentao memorialstica,
a infncia um tema relevante nos escritos confessionais. Comentando o assunto,
Fernanda Coutinho afirma que:
Sabe-se que as autobiografias, uma forma geral, representam um exerccio do sentimento do tempo para quem as elabora, quer dizer, o eu que rememora estabelece uma confluncia entre diversos momentos de sua vida. Os relatos de memria so, portanto, uma oportunidade de se perceber a pregnncia dos eventos infantis na mente adulta. (Coutinho, 2003: p.48)
Fazendo uma ponte dos escritos confessionais da infncia de hoje com os
textos do sculo 19, pode-se encontrar a origem dessa crnica confessional da infncia,
explicitada anteriormente, nos j comentados folhetins oitocentistas. Contudo em
manifestao inferior da crnica moderna. A fim de confirmar, empiricamente, o aqui
exposto, cita-se um fragmento folhetinesco de Machado de Assis, publicado no dia 23
de outubro de 1892, na Gazeta de Notcias:
Lembra-me (era bem criana) que, nos primeiros tempos do gs no Rio de Janeiro, houve uns dias de luz frouxa, de onde os moleques sacaram este dito: o gs virou lamparina. E o dito ficou e imps-se, e eu ainda o ouvi aplicar aos amores expirantes, s belezas murchas, a todas as cousas decadas.
Ah! se eu for a contar memrias da infncia, deixo a semana no meio, remonto os tempos e fao um volume. Paro na primeira estao, 1864, famoso ano da suspenso de pagamentos (ministrio Furtado); respiro, subo e paro em 1867, quando a febre das aes atacou a esta pobre cidade, que s arribou fora do quinino do desengano. Remonto ainda e vou a...
[...] No; cuidemos s da semana. A simples ameaa de contar as
minhas memrias diminuiu-me o papel em tal maneira, que preciso agora apertar as letras e as linhas. (Assis, 1997: p.34)
Como se percebe pelo fragmento, Machado de Assis comenta um episdio
de sua infncia: a questo do fraco gs da cidade carioca, fazendo com que os garotos
logo afirmassem jocosamente que o gs virou lamparina, termo que serviria de
metfora para todas as cousas decadas. Contudo pela obrigao de escrever sobre os
fatos da semana, Machado de Assis comenta, em tom humorado, que no deve contar as
memrias da infncia. Interessante que ele se desvia de um assunto do cotidiano os
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bonds eltricos para resgatar um fato de sua infncia, porm mostra-se preocupado em
no gastar o espao do jornal, a ele destinado, escrevendo suas memrias.
Pelo exemplo do folhetim de Machado de Assis, depreende-se que a crnica
confessional da infncia s pde desenvolver-se com afinco, a partir do momento em
que j no existia a obrigao do escritor em relatar os fatos semanais.
Deixando um pouco de lado a questo da infncia e folhetim, e partindo
agora para a idia de representao do real posta na linguagem, isto , no espao
simblico constitudo pelos signos lingsticos (significante e significado); Nanami
Sato, em Jornalismo, literatura e representao, afirma que o texto apenas um lugar
que simboliza o real. Isso porque em vez de revelar o real, pode-se dizer que a
representao, ao dar-lhe suporte, substitui a totalidade e a encarna, em vez de remeter a
ela. (Sato, 2005: p.31)
Levando esta perspectiva da representao para a crnica, na segunda parte
de seu ensaio, Nanami Sato, depois de enfatizar a marca subjetiva do gnero, comenta a
incluso da fico nesses pequenos relatos. Explica que:
A possibilidade de o cronista inventar incidentes, contar histrias traz para as pginas do jornal um fazer literrio por excelncia que permite criar um outro real. Dar abrigo a emoes e a fatos inventados ou recuperados pela memria parece ser a grande arma da crnica na captura do interesse do leitor, convidando-o para um tipo diferente de mergulho no real, mais ameno e prazeroso, qui mais profundo. Para o leitor, a crnica funcionaria como descanso, pois, a partir de um evento qualquer, em linguagem que tende para a ambigidade, para a plurivocidade, o cronista tece um texto que pode atingir a categoria de fico pura ou confrontar diferentes tempos para fazer uma construo metonmica da imagem do presente por meio de pequenos incidentes. (Sato, 2005: p.33-4)
A pesquisadora ressalta o carter ficcional de algumas crnicas como
criadores de um texto prazeroso. A crnica, nesta perspectiva, afasta-se da tradicional
idia do gnero de relato sobre os acontecimentos reais. At mesmo nas crnicas
confessionais, o dado ficcional pode aparecer como uma ajuda para a construo
literria de um texto ideal. Na crnica confessional da infncia, o elemento ficcional
pode entrar, por exemplo, atravs do esquecimento ou por uma estilizao do autor.
Na perspectiva do jornalismo stricto sensu, Cristiane Costa, no captulo
Real e ficcional, de seu j referido livro, depois de mostrar alguns exemplos da falta
de tica de jornalistas que se afastaram dos dados objetivos, falseando indevidamente as
reportagens, afirma que:
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A exatido factual tambm pode esconder distores, porque jornalistas no apenas reproduzem os fatos, mas do sentidos a verses dos acontecimentos em suas reportagens. Eventualmente, uma histria pode ser escrita a partir de ngulos diferentes e vrios deles serem verdadeiros. Por isso, relatar o fato de forma fidedigna muito diferente de descobrir a verdade sobre o fato, aprende-se com a prtica. A mentira muito clara para quem a comete. Mas a verdade complexa para quem a busca. (Costa: 2005: p.286)
Tal como na literatura do eu, percebe-se, no jornalismo, o desvirtuamento
da apresentao do real, isto , da sua primordial funo. A situao torna-se mais
complexa, no mbito do jornalismo, j que uma reportagem pode ser contada por
diferentes ngulos, como explica a pesquisadora. E com isso pode haver alteraes de
acordo com cada verso.
Saindo do terreno jornalstico, bom lembrar que, normalmente, os
escritores publicam suas memrias na fase da senilidade: ltimos momentos de sua
existncia, nos quais j tm muito para narrar pelo acmulo de experincias vividas.
Prximo do fim, acabam eles regatando o que viveram, a partir de um desejo que
culmina, conforme acepo de Eliane Zagury, no fluxo memorial desreprimido9.
Levando-se a questo para a obra de Carlos Heitor Cony, confirma-se o
exposto acima pelo fato de as obras Os anos mais antigos do passado e O harm das
bananeiras serem, praticamente, suas ltimas coletneas de crnicas. Alm disso, no
se deve esquecer o Quase-memria: quase-romance, livro considerado sua obra-prima,
publicado em 1995, depois de um jejum de escrita romanesca que durou vinte e um
anos. Essa obra, como j se percebe tanto pelo ttulo como pelo prlogo do autor
intitulado Teoria Geral do Quase , ento, uma mistura de histria, memria e
fico. Contudo, para efeito de publicao, ela foi intitulada de romance, pela editora,
na ficha catalogrfica. Esse livro apia-se no vocbulo quase, que funciona como
ponto revelador entre real e ficcional. um adequado termo que aparece no ttulo, no
prlogo e no prprio texto da obra. Levando o assunto para as crnicas de Cony, podem
ser encontradas, neste terreno, crnicas quase-reais ou quase-ficcionais.
Isto posto, salienta-se que a crnica confessional da infncia de Cony so,
apenas, pedaos isolados e selecionados de lembranas que aconteceram e que ele
trouxe aos leitores muitas vezes repetindo a mesma temtica em vrios textos. So
textos, os quais podem ser ficcionalizados, configurando-se entre o vivido e o
imaginado. necessrio ressaltar que mesmo havendo em algumas crnicas que
remontam infncia do autor uma criao artstica, predominantemente, fantasiosa 9 Cf. ZAGURY, E. A escrita do eu.
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sempre existe, nessas crnicas confessionais da infncia, algo de real. Nem que seja s
na sua essncia. o que afirma o prprio escritor:
[...] em linhas gerais, cada crnica em que eu rememoro a infncia tem um ponto, pelo menos parte de um ponto verdadeiro; embora no seja cem por cento real, digamos assim, nos seus aspectos pontuais, de lugar, de tempo; mas no sentido de substrato, ou seja, o fato em si, a observao que eu transmito, que eu guardei, essa foi autntica e verdadeira, no foi fico. (Anexo A, p.197)
A feio da crnica confessional da infncia, de Cony, foi o que se
selecionou e permaneceu na memria e que para ele significativo, por isso a
necessidade do autor de exp-la ao pblico. No por meio de um modo referencial de
escritura, mas sim com uma linguagem literria saborosa e criativa.
2. O ESPAO DA CASA
O homem qualquer homem uma casa habitada por um poeta que, sabendo ou no sabendo, tem um sentido trgico. Poeta que inventa o seu prprio poema, poeta condenado a habitar a casa que ele prprio, e de repente as paredes se desmancham e no mais casa, sobrando o co porta, uma porta que no existe mais, o co coberto de cinzas guardando o nada. Carlos Heitor Cony, A casa do poeta trgico
A partir desse momento da pesquisa, os captulos que se seguem
focalizaro questes relativas aos principais espaos criados pelo texto artstico, da
crnica confessional da infncia, abordados por Carlos Heitor Cony, nos seus livros.
De incio, tem-se que destacar que no h uma larga bibliografia versando o
tema espao na literatura e, mais especificamente, na crnica confessional da infncia.
O que se nota, muitas vezes, a anlise superficial do espao, podendo chegar a ponto
de ocorrer sua diluio, na observao de outros elementos literrios.
Em Espao e romance, pequeno estudo relativo ao assunto, Antonio Dimas
diferencia espao e ambientao, afirmando:
[...] na medida em que no se deve confundir espao com ambientao, para efeitos de anlise, exige-se do leitor perspiccia e familiaridade com a literatura para que o espao puro e simples (o quarto, a sala, a rua, o barzinho, a caverna, o armrio etc.) seja entrevisto em um quadro de significados mais complexos, participantes estes da ambientao. Em outras palavras ainda: o espao denotado; a ambientao conotada. O primeiro patente e explcito; o segundo subjacente e implcito. O primeiro contm dados da realidade que, numa instncia posterior, podem alcanar uma dimenso simblica. (Dimas, 1994: p.20)
O que chama ele de espao puro e simples integra o primeiro conceito da
categoria: o denominado espao fsico. Contudo, j numa segunda instncia, em
conexo com os personagens e
Sem o teor eventualmente esttico do espao fsico, o espao social configura-se sobretudo em funo da presena de tipos e figurantes [...] e o espao psicolgico constitui-se em funo da necessidade de evidenciar atmosferas densas e perturbantes, projetadas sobre o comportamento, tambm ele normalmente conturbado, das personagens [...]. (Reis e Lopes, 1988: p.205)
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Levando-se em considerao os trs modelos (espao fsico, espao social e
espao psicolgico) que compem a categoria espao para a crnica confessional da
infncia de Carlos Heitor Cony, sero investigados at que ponto os espaos
engendrados nos textos tm funo relevante para o desenvolvimento das idias do
cronista. Em que medida essa eventual funcionalidade dos espaos dialoga com outros
elementos da narrativa (tempo, personagens, narrador, enredo); ou se, ao contrrio, essa
questo do espao, na escritura do autor, no passa de mera ilustrao, circunstncia
menor, acessria.
No processo de rememorao do passado, o prprio tema da infncia
condiciona, inevitavelmente, a construo de tipos espaciais, no necessariamente
registrados pela mera descrio fsica.
Para a construo do espao no enredo, a descrio seja fsica ou
psicolgica pode tornar-se um tipo de discurso relevante. Vtor Manuel, em sua
Teoria da Literatura, elenca espaos, ao explicar a funo informativa que existe em
determinadas descries. Afirma ele que
[...] Esta funo manifesta-se quer no retrato das personagens [...] quer na caracterizao do espao social um espao indissocivel da temporalidade histrica , quer na pintura do espao telrico e geogrfico [...] em geral representado nas suas conexes com o espao social e concebido como um factor (sic) que condiciona ou determina os estados e as aces (sic) das personagens. (Silva, 1986: p.741)
Essa descrio funcional, ressaltada por Vitor Manuel, um elemento
importante quando se analisam os aspectos espaciais de um texto literrio.
Em O discurso e a cidade, nos ensaios Degradao do espao e De
cortio a cortio, Antonio Candido analisa, respectivamente, as obras LAssomoir, de
mile Zola, e O cortio, de Alusio Azevedo. No segundo ensaio, depois de explicar
que O cortio paga tributo a LAssomoir devido a vrias semelhanas entre as
narrativas, Candido, referindo-se ento ao romance de Alusio Azevedo, observa que
Na composio, o cortio o centro de convergncia, o lugar por excelncia, em funo do qual tudo se exprime. Ele um ambiente, um meio, fsico, social, simblico , vinculado a certo modo de viver e condicionando certa mecnica das relaes. Mas alm e acima dele o romancista estabeleceu outro meio mais amplo, a natureza brasileira, que desempenha papel essencial, como explicao dos comportamentos transgressivos, como combustvel das paixes e at da simples rotina fisiolgica. (Candido, 2004: p.117)
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Candido atribui grande valor ao cortio de Joo Romo, que funciona como
um centro regulador da histria, um lugar relevante na narrativa, onde os personagens
so dependentes dele. Num mbito maior, o crtico explica que a prpria natureza do
Brasil poderosa sobre o comportamento humano, o qual muitas vezes representado
nesse romance de maneira degradante. Desenvolvendo-se o cortio na natureza
brasileira, ele chega a ponto de transformar-se num organismo auto-suficiente. Como
exemplo, transcreve-se abaixo um trecho do captulo terceiro, a fim confirmar o exposto
at aqui:
Eram cinco horas da manh e o cortio acordava, abrindo, no os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu, de uma assentada, sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolncia de neblina as derradeiras notas da ltima guitarra da noite antecedente
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