UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
NAYARA ELISA DE MORAES AGUIAR
O ESCÁRNIO DE AFONSO X
OS SENTIMENTOS DE UM REI NAS CANTIGAS MEDIEVAIS
Curitiba
2010
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
NAYARA ELISA DE MORAES AGUIAR
O ESCÁRNIO DE AFONSO X
OS SENTIMENTOS DE UM REI NAS CANTIGAS MEDIEVAIS
Monografia apresentada para a disciplina de
Estágio Supervisionado em Pesquisa
Histórica como requisito parcial para
conclusão do Curso de História –
Licenciatura e Bacharelado, do Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Profª Dra. Marcella Lopes
Guimarães
Curitiba
2010
3
Agradecimentos
Devo o primeiro agradecimento ao apoio e orientação da Profª Marcella Lopes
Guimarães. Decidi realizar este trabalho no ano de 2006 e desde lá houveram muitos
percalços e, mesmo assim, a professora sempre esteve presente e envolvida com este
trabalho; agradeço pelas correções e informações que só o melhoraram e pela paciência
com as minhas indisponibilidades de horário.
Em segundo lugar, agradeço ao Andre pela amizade e companheirismo, os
sentimentos mais importantes em um casamento. Agradeço por cinco anos de noites mal
dormidas devido aos trabalhos da faculdade e por acreditar mais em mim do que eu
mesma.
4
Resumo
Afonso X foi rei de Castela e Leão entre os anos de 1252 e 1284. Ficou
conhecido pelo amplo apoio às artes e às ciências e pelas suas obras de cunho
legislativo e literário. O presente trabalho tenciona analisar as cantigas de escárnio e
maldizer compostas pelo rei, ou seja, poemas satíricos que realizam críticas a alguns
cavaleiros que não cumpriram com as obrigações militares, tão importantes em um
reino que necessitava de constantes incursões contra os reinos muçulmanos vizinhos. As
faltas dos cavaleiros, que vão desde a omissão até a rebeldia, servem para analisar o uso
de um veículo literário por parte do rei para demonstrar suas insatisfações, a
mentalidade medieval em relação ao grupo da cavalaria e as condições instáveis das
relações régio-nobiliárquicas no reinado de Afonso X, o Sábio.
Palavras-chave: Afonso X; cantigas medievais, cavalaria.
5
SUMÁRIO
Introdução 05
1. O mundo de Afonso X 11
a) A revolta da nobreza castelhana sob a liderança de D. Nuño González de Lara e
D. Lope Díaz de Haro 12
b) A campanha contra os reis de Múrcia e Granada em 1264 e a Guerra de
Andaluzia 15
c) Disputa com D. Henrique 17
2. Os sentimentos do rei: uma análise das cantigas compostas por Afonso X 19
2.1 Uma análise temática das cantigas de escárnio e maldizer de Afonso X 20
a) Os cavaleiros ausentes 20
b) Os cavaleiros interesseiros 24
c) Os cavaleiros revoltosos 26
2.2 As relações régio-nobiliárquicas no reinado de Afonso X: a questão da
vassalagem 31
Conclusão 33
Fontes consultadas 37
Referências bibliográficas 38
Anexos 40
6
Introdução
Este trabalho pretende analisar sete cantigas de escárnio e maldizer de autoria do rei
Afonso X, de Castela e Leão, que reinou entre os anos de 1252 e 1284, a fim de
perceber como o rei demonstra sua desaprovação em relação à parte da Cavalaria de
Castela e Leão. Apresenta, também, algumas considerações a respeito da natureza das
fontes que inspiraram este estudo: as cantigas medievais e, do mesmo modo, a
metodologia para a sua análise, os autores utilizados e conclusões significativas.
Entre os séculos XII e XV, a literatura medieval foi enriquecida pela poesia oral
musicada, comumente chamada de cantigas medievais. A origem da formatação que
caracteriza esses poemas é a região da Provença, no Langue D’Oc e nas cantigas na
língua galego-portuguesa, também é possível identificar algumas outras influências,
especialmente, a influência da poesia muçulmana. O galego-português foi uma entidade
lingüística de grande importância cultural na Península Ibérica, tanto que a maioria da
poesia ibérica medieval está neste dialeto1.
Apesar das cantigas medievais serem identificadas com a tradição oral, na medida
em que ficavam mais complexas, passaram a ser compiladas em cadernos chamados
Cancioneiros; graças às essas compilações que as cantigas se tornaram acessíveis. Em
galego-português há três cancioneiros identificados como: Cancioneiro da Ajuda,
Cancioneiro da Biblioteca Nacional e Cancioneiro da Vaticana. No Cancioneiro da
Biblioteca Nacional havia ainda uma Arte de Trovar, tratado poético datado do século
XIV2, que descreve diversos aspectos desta arte, inclusive, a divisão temática entre três
tipos de cantigas, que podem ser de amor, de amigo e de escárnio e maldizer. As
cantigas de amor e de amigo possuem temática romântica, a diferença entre uma e outra
é que a cantiga de amor tem como eu lírico o homem e a cantiga de amigo a mulher;
apesar de ser esta a principal diferença, as cantigas de amor e amigo possuem
especificidades relacionadas ao grupo social e ao cenário utilizado pelo eu lírico que as
tornam bastantes diferentes entre si3.
1 VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia Medieval. São Paulo: Global, 1987, p. 10. 2 Apesar da Arte de Trovar não ser contemporânea das cantigas de Afonso X, compostas no século XIII,
nota-se um padrão nas composições que remete a uma divisão como aquela proposta pelo tratado tardio.
Desta forma, a maioria dos estudiosos mantém esta classificação, essa discussão é realizada por António
José Saraiva e Oscar López em “A poesia dos Cancioneiros Primitivos”. In: História da Literatura
Portuguesa. Porto: Porto Editora, Lda, p. 48. 3 Várias obras sobre a Poesia Medieval definem essas diferenças nas quais, resumidamente, o eu lírico,
nas cantigas de amor, se refere a mulheres de uma posição social mais alta e o cenário, geralmente, é
7
Já as cantigas de escárnio e maldizer, grupo ao qual pertencem as fontes deste
trabalho, têm como temática a crítica ou insulto direcionado para uma ou mais pessoas;
nas de escárnio, a ofensa é indireta, não se utiliza o nome da pessoa; na de maldizer, o
nome da pessoa é citado. As críticas e insultos podem ter diversas naturezas, como
define Yara Vieira sobre as cantigas de Afonso X: “As cantigas de escárnio e maldizer
são bastante variadas: vão desde o insulto obsceno até a sátira política e moralista
contra aqueles que o abandonaram”4; essa variação é observada em todo este grupo, há
cantigas que se referem aos grupos sociais mais baixos como as soldadeiras5, a padres
que são promíscuos ou gulosos ou a nobres cavaleiros. Enfim, o que podemos
identificar é que são críticas àqueles que possuem um comportamento que foge dos
padrões idealizados pela sociedade. Mas, a crítica realizada é feita através da
comicidade, afinal as cantigas faziam parte do entretenimento da sociedade de Castela e
Leão e, neste sentido, os poetas utilizavam diversos recursos de linguagem que
tornaram as cantigas cômicas; destas figuras de linguagem a ironia é a mais utilizada
quando se trata de cantigas de escárnio e as palavras de baixo calão são mais utilizadas
nas de maldizer.
O autor Massaud Moisés, na sua obra Literatura Portuguesa, atribui às cantigas de
escárnio e maldizer a relação com membros de grupos sociais desfavorecidos, já que se
utilizam, principalmente, destes recursos em suas composições6. Esta posição do autor,
informada muito rapidamente7, pode ser facilmente questionada se considerarmos, por
exemplo, as cantigas analisadas neste trabalho que são de autoria de um rei. Há vários
casos, além destes, de reis (como D. Dinis, de Portugal) e nobres que compuseram este
tipo de cantiga; e cabe apontar que suas composições não se diferenciam profundamente
da linguagem utilizada por aqueles que pertenciam aos estratos mais baixos de uma
hierarquia da sociedade ibérica. Esta proximidade no formato das composições pode ser
atribuída à proximidade que existia entre esses elementos pertencentes ao mundo lírico.
Vieira aponta a existência de uma possível hierarquia, composta pelos seguintes
elementos:
cortês. Nas cantigas de amigo, o eu lírico feminino, normalmente, é ascendente de uma posição social
mais baixa, o que evoca cenários bucólicos e naturais. 4 VIEIRA, Op. cit., p.141. 5 Termo que define mulheres que eram prostitutas, dançarinas e artistas.
6 MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Editora Cultrix, 1983, pp. 23-32.
7 O livro de Moisés pretende realizar um apanhado geral da literatura de língua portuguesa; portanto, a
sua proposta não permite uma análise pormenorizada.
8
- os trovadores, que eram membros da nobreza e não dependiam da sua arte para
viver;
- os segréis, que compunham cantigas e as interpretavam alugando, desta forma, sua
arte;
- os jograis, que interpretavam as composições de outros.
Yara Frateschi Vieira acredita que esta hierarquia é uma reprodução da hierarquia da
sociedade8, mas dentro de um círculo trovadoresco existia uma interação entre estes
elementos de diferentes estratos sociais, os segréis e os jograis eram os responsáveis por
esta interação, já que eram os intérpretes das cantigas tanto em festas religiosas e feiras,
espaços de sociabilidade em que havia uma grande circulação de pessoas de todas as
origens, quanto nas cortes, restritas à nobreza. Seus serviços eram requisitados pelos
nobres, que os contratavam para entreter as festas; sabe-se que a corte itinerante de
Afonso X abrigava diversos membros desta hierarquia trovadoresca, tanto de origem
ibérica quanto de origem provençal9, o que resultava em sua interação. Podemos
considerar esta presença constante em uma corte real um grande incentivo para a cultura
em geral e, principalmente, para a lírica trovadoresca na Península Ibérica; a
historiografia considerou o reinado de Afonso X um momento importante para as artes e
as ciências da Península e, especialmente, para o movimento trovadoresco que através
da arte desenvolve uma língua de origem ibérica.
Outro apontamento realizado por Massaud Moisés e que deve ser analisado aqui
para uma melhor compreensão do lugar da lírica na sociedade de Castela e Leão é que,
para o autor, as cantigas de escárnio e maldizer possuem um valor documental precioso,
já que: “[...] documenta os meios populares do tempo, na sua linguagem e nos seus
costumes, com uma flagrância de reportagem viva.”10
. Apesar de não concordar com as
considerações realizadas a respeito da ligação entre cantigas de escárnio e maldizer e
pessoas pertencentes a um baixo estrato social, sua conclusão à respeito das
possibilidades que este tipo de cantiga fornece para a análise da cultura e da sociedade
deve ser considerada e ampliada, já que essas possibilidades se estendem a diversos
grupos sociais que tiveram contato com a lírica trovadoresca.
8 VIEIRA, Op. cit., p. 11.
9 Idem, p. 141 e SARAIVA, António José. Iniciação à Literatura Portuguesa. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999, p. 13. 10 MOISÉS, Op. cit., p. 28.
9
Primeiramente, pode-se pensar que a interação entre os diversos membros da
hierarquia trovadoresca aproximava culturalmente aqueles que pertenciam a grupos
sociais diferentes; esta distância, a nível social, não diminuía de forma alguma, mas nas
cantigas tanto a linguagem quanto os temas abordados possuem uma espécie de padrão
e possuíam elementos que remetiam à realidade vivida pelos seus autores. A
convivência dos trovadores com jograis e segréis fornecia tanto a uns quanto a outros, a
possibilidade do contato com o mundo do outro e a sua abordagem nas cantigas,
principalmente, através de paródias de realidades que não eram a sua. É possível afirmar
que além de uma reportagem viva, as cantigas também possuíam o caráter de hilaridade,
entretenimento, de divertimento, seu público deveria dar risada, sendo da nobreza ou da
plebe.
Após esta síntese dos principais elementos da lírica trovadoresca e, em especial,
sua ramificação destinada ao escárnio e ao maldizer urge abordar rapidamente os
autores utilizados para realizar a análise das cantigas escolhidas como fontes.
A primeira referência sobre a bibliografia utilizada no trabalho deve ser feita à
compilação de cantigas de escárnio e maldizer em galego-português organizada por
Manoel Rodrigues Lapa, foi este trabalho que possibilitou o acesso às fontes11
. Lapa,
que possui formação em Letras, estudou e transcreveu todas as cantigas dos
cancioneiros conhecidos, apresenta também alguns comentários sobre cada uma das
cantigas e propõe algumas discussões com outros autores a respeito da sua
interpretação, além de possuir um glossário. Seus comentários foram de extrema
importância para a análise das cantigas e junto à descrição das fontes, no segundo
capítulo deste trabalho, são realizados vários apontamentos relativos às suas análises. O
autor também identifica a semelhança temática entre algumas das cantigas do corpus
documental, o que auxiliou na sua definição.
As fontes deste trabalho possuem a especificidade de serem literárias e muitos dos
autores utilizados como bibliografia são da área de Letras, já que os estudos nas áreas de
Literatura e Lingüística possuem o mérito de fornecer sempre um contexto e aspectos
extremamente relevantes à respeito da linguagem das cantigas. Dentre os autores
utilizados, destaca-se a já citada Yara Frateschi Vieira que, no seu livro Poesia
Medieval, faz uma grande síntese da cultura trovadoresca em galego-português,
11
LAPA, Manoel Rodrigues. Cantigas d’Escárnio e Maldizer – edição crítica e vocabulário. Lisboa:
Edições José Sá da Costa, 1998.
10
apresenta um grande número de cantigas e uma pequena biografia de seus autores e, ao
final, um útil glossário que foi utilizado para melhor compreensão das cantigas. A
utilização de autores da área de Letras se justifica pelo fato de fornecerem outro
instrumental metodológico, possibilitando a percepção de elementos que não seriam
notados.
Outra obra de extrema relevância para o trabalho com as fontes é Sinais: raízes de
um paradigma indiciário, de Carlo Ginzburg, na qual o autor demonstra o método (ou
paradigma, como aponta Ginzburg) idealizado por Giovanni Morelli para a
identificação da autoria real ou falsa de obras de arte no século XIX, este método
consiste em analisar os detalhes de uma obra, realizar uma observação minuciosa de
aspectos que o autor não dava maior atenção. Esta falta de atenção por parte do autor
em determinados aspectos da obra (por exemplo, a pintura de uma orelha) seria sua
marca registrada já que é feita de forma impensada e, portanto, natural. Ginzburg
propõe algo semelhante para a história: a análise de fontes produzidas com
espontaneidade12
e os caracteres negligenciáveis do documento histórico que podem
falar muito sobre o seu autor.
As cantigas de escárnio e maldizer possuem a característica de serem produzidas
com espontaneidade e no caso de Afonso X essa característica fica ainda mais clara. A
produção do rei é vasta, logo, Afonso tinha meios materiais e intelectuais para escrever
sobre as faltas cometidas pelos cavaleiros de diversas formas, então por que escolheu a
lírica trovadoresca para se expressar? Esta é uma das respostas que este trabalho
pretende obter e, para isso, as fontes foram analisadas palavra por palavra, foi na
utilização da linguagem, na escolha das palavras de Afonso X que procuramos
apreender qual era a intenção e os sentimentos do rei.
Para compreender parte da obra de Afonso X, fez-se necessário estudar também o
seu mundo, por isso o primeiro capítulo dedica-se ao estudo do contexto em que as
cantigas foram produzidas e a que episódios elas se referem. Num primeiro momento,
foi realizado um apanhado geral sobre o reinado de Afonso X e, em seguida, uma
análise pormenorizada de episódios que são indicados por Manoel Rodrigues Lapa
como motivadores das composições do rei. Estes episódios são a revolta de parte da
nobreza contra o rei, a disputa entre o rei e seu irmão e batalhas contra os muçulmanos.
Para a composição deste capítulo foi utilizada a obra El Rey Sabio, de Joseph
12
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais.
Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 149.
11
O’Callaghan13
, na qual o autor realiza uma grande descrição do reinado de Afonso X
com base em diversas fontes, incluindo a Crónica de Alfonso X, obra produzida no
reinado de Afonso XI, bisneto do rei sábio14
, e que também foi utilizada. Cabe explicar
que a Crónica não foi utilizada como fonte, pois não foi analisada, sua utilização serviu
para complementação de informações e sua natureza documental foi considerada na
análise. A obra de O’Callaghan foi de grande importância para este trabalho, já que o
autor trata de muitos aspectos do reinado e da vida de Afonso X, baseado em fontes
documentais.
O segundo capítulo do trabalho realiza a descrição e a análise do corpus
documental, com base na metodologia proposta por Ginzburg como já foi colocado.
Nele são realizadas, com base em uma bibliografia composta por historiadores, algumas
considerações a respeito das relações régio-nobiliárquicas e do papel da cavalaria no
reinado de Afonso X.
Este estudo pretende, portanto, realizar uma análise de diversos elementos que as
composições suscitam nos âmbitos culturais, políticos e sociais do reinado de Afonso X.
Para tanto, a bibliografia e a metodologia escolhidas devem servir para que possamos
abordar questões relativas ao às relações de poder na Castela e Leão de Afonso X.
13
O’CALLAGHAN, Joseph. El Rey Sabio. El reinado de Afonso X de Castilla. Sevilha: Universidad de
Sevilha, 1999. 14 BALLESTER, Gonzalo Torrente (org.). Cronica de Alfonso X. Ediciones FE, 1945, vol.1.
12
1. O mundo do rei Afonso X
No ano de 1252 morre o rei de Castela e Leão Fernando III e, no dia 29 de maio
do mesmo ano, na cidade de Sevilha, assume o trono do maior reino da Península
Ibérica na época o primogênito do rei falecido, Afonso15
. Como rei, é chamado de
Afonso X, posteriormente conhecido como o Sábio, e assume um reino em condições
financeiras e sociais relativamente estáveis.
Ao se reportar a qualquer reino ibérico no período medieval, é necessário
apontar que a situação na Península, povoada tanto por cristãos quanto por
muçulmanos, era extremamente delicada. Essa convivência teve momentos pacíficos e
momentos violentos e no período do reinado de Afonso X não foi diferente. As
situações de maior destaque neste sentido são as disputas com os reinos muçulmanos
vizinhos e que serão melhor analisados mais para frente. Outro evento que se destaca no
reinado de Afonso X foi o empreendimento de uma Cruzada rumo ao norte da África no
ano de 1253. Para o rei de Castela e Leão, aquele território, dominado pelos
muçulmanos, lhe pertencia graças a sua ascendência visigoda; apesar de ter havido
algumas incursões na região, o rei não conseguiu dominar o território e desistiu da
conquista16
.
Outro aspecto de destaque no seu reinado foi a tentativa que fez de ser coroado
imperador do Sacro Império Romano. Sua mãe, a rainha Beatriz de Suábia possuía
ascendência imperial e, com a morte do imperador Frederico II, o rei se esforçou para
adquirir aliados e conseguir ser eleito pelos príncipes germânicos como novo
imperador. Para isso empreendeu uma viagem até o Império que exigiu um aumento dos
tributos internos do reino e durante a sua ausência houve ataques muçulmanos a
territórios de Castela e Leão; essas consequências internas desestabilizaram ainda mais
as relações entre o rei e o seu povo e, além do mais, Afonso X não atingiu seu objetivo
de ser coroado imperador17
.
A questão da sucessão foi mais uma das atribulações que atravessaram o reinado
de D. Afonso X. O filho primogênito do rei, Fernando de La Cerda morreu no ano de
1275, começando assim uma grande discussão sobre a sucessão régia, já que Fernando
havia deixado dois filhos que poderiam sucedê-lo, mas o segundo filho de Afonso X, D.
15
BALLESTER, op. cit., p. 20. 16
O´CALLAGHAN, op. cit., p. 207-209. 17
Idem, p. 328.
13
Sancho, também poderia sucedê-lo. O infante Fernando de La Cerda era casado com
Beatriz, irmã do rei da França, Felipe III; este exigia que houvesse o cumprimento do
contrato de casamento do casal, onde estava escrito que os seus filhos seriam herdeiros
naturais de Castela e Leão. Por outro lado, as leis não previam o que deveria ocorrer
caso o herdeiro direto morresse antes do seu pai. A morte do infante ocorreu justamente
quando Afonso X estava no Sacro Império Romano. Durante a invasão muçulmana, o
infante D. Sancho teve uma atuação decisiva para rechaçá-la. Diante de tais
acontecimentos, o infante se revoltou contra o seu pai e conseguiu das Cortes o poder de
governar no lugar do seu pai no fim da vida do rei18
.
O rei faleceu no ano de 1284, vítima de problemas neurológicos. Neste início,
fizemos um apanhado de alguns episódios que marcaram o reinado de Afonso X; mas,
outros eventos são mais relevantes para esse estudo e, portanto, serão explicados de
forma mais detalhada já que a compreensão das cantigas necessita desses
esclarecimentos.
a) A revolta da nobreza castelhana sob a liderança de D. Nuño González de
Lara e D. Lope Díaz de Haro.
A relação entre a nobreza e o rei em Castela e Leão se baseava em uma relação de
dependência, própria do que comumente chamamos de Feudalismo19
. Esta relação se
baseava no pagamento de valores ou na doação de terras para os nobres que, por sua
vez, auxiliavam militarmente o rei; como havia constantes disputas com os reinos
vizinhos, principalmente muçulmanos, essa obrigação militar se configurava, na maioria
das vezes, na defesa da fronteira do reino.
A nobreza em Castela e Leão, definida através de laços sangüíneos, conquistou ao
longo do tempo espaço e poder no contexto político do reino. O episódio que define a
diferenciação deste grupo em relação aos outros aconteceu no início do século XII,
quando o rei Afonso VIII solicitou aos seus nobres que apresentassem uma declaração
escrita de seus costumes que, mediante a aprovação do rei, se tornou uma espécie de
comprovação legal do foro privilegiado da nobreza20
; ou seja, era um grupo que estava
além da justiça e das tributações destinadas ao povo; politicamente, a nobreza sempre
18
Idem, p. 284-286. 19
GUERREAU, Alain. Feudalismo. In: GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval, volume I. Bauru: Edusc, 2006. 20
O’CALLAGHAN, Op. cit., p. 95.
14
fez parte do grupo que auxiliou e aconselhou o rei nas decisões que devia tomar em
relação ao reino.
Para Afonso X, um grupo da nobreza em especial se destacava: a cavalaria, pois era
fundamental em um reino que estava em constantes disputas, resultado do movimento
cristão de Reconquista da Península Ibérica. A importância atribuída pelo rei a esta
categoria pode ser demonstrada na necessidade que sentiu de estabelecer normas e
modelos de comportamento para os cavaleiros em diversas fontes, desde a literatura até
as obras legislativas. O’Callaghan resume as qualidades21
de um bom cavaleiro com
base em uma leitura das Partidas, conjunto de textos legislativos idealizado por Afonso X,
que prioriza uma atitude de obediência ao rei e de honradez às obrigações militares.
Nessa obra legislativa, em especial na Segunda Partida na qual o rei se dedica a definir
e atribuir direitos e deveres para diversos grupos sociais, a cavalaria é classificada como
um grupo acima dos outros quando se trata de honradez: “(...) otrosi los que son
escogidos para caballeros son mas honrados que todos los otros defensores.”22
Devido
à importância crescente da cavalaria nos seus empreendimentos, Afonso X buscou a
manutenção de novas concessões ao grupo.
Apesar de manter antigas e realizar novas concessões, a nobreza pressentia a perda
do seu poder e influência, especialmente se considerarmos o que Afonso escreveu sobre
a superioridade do poder régio no Especulo, outra obra de cunho legislativo na qual o
rei afirma que o poder régio é concedido por Deus e que é o senhor do povo, laço mais
forte que os laços vassálicos23
. Novamente, é possível citar um trecho da Segunda
Partida, no qual é possível verificar como o rei se referia a função que exercia: “ (...)
todos los del regno, maguer sean muchos, por que el rey es et debe seer uno, por eso
deben otrosi todos ser unos com él para sevirle et ayudarle em las cosas que el ha de
facer”24
.
Essa insatisfação resultou em um movimento de diversos nobres que tiveram a
liderança de D. Lope Díaz de Haro e D. Nuño González de Lara; o primeiro era filho de
Diego López de Haro, homem de confiança de Fernando III e que ocupara o influente
cargo de alferes real; quando jovem foi armado cavaleiro pelo primogênito e infante
21
Essas qualidades são boa linhagem, gentileza, sabedoria, inteligência, lealdade, coragem, moderação,
justiça, valor e conhecimentos práticos a respeito de armas e cavalos descritas na página 96. 22
DON ALFONSO EL SABIO. Partida Segunda y Tercera. In: Las Siete Partidas. Madrid: Imprenta
Real, 1807,Tomo II, p. 198. 23
O’CALLAGHAN, Op. cit., p. 50. 24 DON ALFONSO EL SABIO, Op. cit., p.7.
15
herdeiro, Fernando de La Cerda25
, honra que demonstrava a estima e proximidade do rei
pelo novo cavaleiro e sua família. Já a família Lara não gozou de muita influência no
reinado de Fernando III, mas Afonso X tornou-se amigo de D. Nuño González quando
eram muito jovens, tanto que o nobre tornou-se o homem de confiança do rei. Esses
dois nobres - que pertenciam a famílias que no período anterior eram rivais – juntos
lideraram a revolta dos nobres contra o rei.
Além de D. Nuño e D. Lope, outra figura eminente que defende a causa dos nobres
foi o infante D. Felipe, o quarto filho de Fernando III, e irmão favorito do rei26
. Essas
lideranças do movimento revoltoso, portanto, decepcionaram muito o rei já que eram
pessoas que haviam lhe prestado serviços e para as quais havia concedido favores, o rei
demonstra este sentimento de decepção em suas cantigas que servem de fonte para este
trabalho. Na cantiga de número 2627
, por exemplo, o tom de decepção é muito claro ao
declarar que contava com cavaleiros que non vem al maio, referência ao mês de maio
em que os cavaleiros devem se apresentar para cumprir suas obrigações militares.
A revolta de nobres aparentemente tão próximos ao rei merece uma análise das
possíveis motivações. Segundo a Cronica de Alfonso X, desde 1269, os nobres se
reuniam sem o conhecimento do rei, sempre com a liderança de D. Nuño e D. Lope28
.
Em 1271, os nobres se reuniram na Assembléia de Lerma29
com o objetivo de levar ao
rei as reivindicações que por tantos anos foram motivo de embates entre o grupo e
Afonso X e a principal reclamação foi relativa a soldada que não estava sendo paga
com regularidade pelo rei, o infante Felipe até se recusou a ir defender as fronteiras. O
trovador português Gil Pérez Conde30
, exilado em Castela e que prestou serviços
militares a Afonso X, escreve algumas cantigas de escárnio e maldizer em que reclama
da falta de pagamento por parte do rei, como no seguinte trecho:
Quite-mi a mi meu senhor
e dé-mi un bon fiador
por mia soldada;
e irei eu, se el for
na cavalgada.
25
Idem, p. 109. 26
Idem, p. 107. 27
LAPA, op. cit., p. 36-37. 28
BALLESTER, Op. cit., p. 60. 29
O’CALLAGHAN, Op. cit., p. 109. 30 LAPA, Op. cit., p. 113.
16
Além desta, havia outras reclamações que tinham origem em problemas relacionados a
heranças e rivalidades pessoais.
O autor Joseph O’Callaghan acredita que o objetivo dos nobres era adquirir maior
poder pessoal e aumentar sua influência dentro do reino, mas se pensarmos que o
próprio rei não estava efetuando o pagamento que fazia parte dos laços vassálicos no
reino de Castela e Leão, podemos pensar também que os nobres tentavam preservar sua
condição privilegiada, e consequentemente, a tradição feudal castelhana-leonesa. Para o
reino era muito importante a presença destes nobres na defesa do território, tanto que até
a rainha empreendeu esforços para cumprir as exigências da nobreza e para que eles
voltassem a participar das ações militares31
. Mas, os nobres não aceitaram as concessões
realizadas e pediram para sair do reino, acabaram prestando a homenagem vassálica ao
rei de Granada.
A revolta dos nobres é só um episódio que representa a situação de instabilidade das
relações entre a nobreza e o rei Afonso. Os nobres participaram tanto das revoltas
muçulmanas quanto da disputa do rei com o irmão Henrique e as cantigas expressam
esses eventos.
b) A campanha contra os reis de Múrcia e Granada em 1264 e a Guerra de
Andaluzia.
Múrcia e Granada eram reinos muçulmanos cujos reis tornaram-se vassalos do rei de
Castela e Leão; a inserção de reis muçulmanos no sistema de vassalagem evoca a
peculiaridade da situação ibérica, que por um lado representa a força que os reis cristãos
adquiriram ao longo do processo histórico nomeado como Reconquista mas, ao mesmo
tempo, representa a resistência muçulmana que não se submeteu facilmente e conseguiu
se adaptar, resultando na convivência, que foi pacífica ou não, política e religiosa entre
cristãos e muçulmanos, convivência esta que já ocorria no cotidiano ibérico.
Ao assumir o reinado deixado pelo seu pai, o rei Fernando III, a conquista do reino
muçulmano de Múrcia era muito recente, datando do ano de 1244; inclusive, como
infante, Afonso participou do processo de definição das fronteiras da região com o reino
cristão de Aragão. O reino de Granada também possuía laços de vassalagem com os reis
de Castela e Leão32
e a região de Andaluzia reconheceu a soberania destes reis também
31
BALLESTER, Op. cit., p. 159-162. 32
O’CALLAGHAN, Op. cit., p. 207.
17
no reinado de Fernando III. A permanência das populações muçulmanas era importante
para o reino já que pagavam impostos especiais, as parias, que eram repassados para os
nobres na forma das soldadas33
.
Mas, apesar desta inclusão aparente dos muçulmanos no reino de Castela e Leão,
havia o risco permanente de uma sublevação por parte da população como de fato
ocorreu em várias vilas de Andaluzia já no início do reinado de Afonso X entre os anos
de 1252 e 1253, empreendidas com o objetivo de surpreender o novo rei. Os
muçulmanos foram derrotados e as vilas reconheceram, uma a uma, a autoridade de
Afonso X; alguns mudéjares foram expulsos, outros permaneceram, mas sem a mesma
liberdade de antes. Esta instabilidade nas relações com os muçulmanos, fez com que
Afonso X temesse pela segurança de suas fronteiras com reinos muçulmanos, em
especial com Granada34
.
Os primeiros sinais de instabilidade das relações entre Afonso X e Muhammad I ibn
al-Ahmar, rei de Granada, começaram quando o rei castelhano resolveu reforçar as
fronteiras entre os dois reinos. A reação do rei granadino foi atrasar o pagamento do
tributo anual que, na condição de vassalo, estava obrigado a pagar ao rei de Castela e
Leão; este, por sua vez, aumentou a pressão militar na fronteira, atitude que fez com que
o rei muçulmano lhe pagasse o que era devido35
.
Os reinos de Múrcia e Granada, apesar de alguns períodos de estabilidade, sempre
representaram uma ameaça às fronteiras de Castela e Leão. Sob a influência de Ibn al-
Ahmar, de Granada, os muçulmanos de Múrcia e da região de Andaluzia se sublevaram,
assim como os de Granada, contra Castela e Leão atacando Afonso X em três frentes
diferentes, a surpresa e o prejuízo do rei Afonso foram grandes, mas a sua ofensiva foi
dura e nas regiões de Múrcia e Granada a repressão da sublevação foi rápida, ao
contrário do que ocorreu em Andaluzia, onde a resistência foi maior e perdurou até o
ano de 1266, quando Afonso X finalmente derrotou os muçulmanos, os expulsou da
região deixando-a quase desabitada36
.
O vazio demográfico que resultou da vitória castelhana exigiu uma intensa
política de repovoação nestes locais, já que diante de tal cenário tenso entre os reinos
vizinhos se tornava perigosa a falta de proteção necessária para a defesa de territórios.
33
As soldadas ou fonsaderas eram quantias repassadas para os nobres para que pudessem se armar e
armar seus cavaleiros e atender aos chamados do rei para defesa das fronteiras. 34
O’CALLAGHAN, Op. cit., p. 210. 35
Idem, p. 211. 36
Idem, p. 209-210.
18
Esse foi um dos maiores desafios enfrentados por Afonso X: povoar esta região, de
preferência com súditos cristãos37
.
Essas situações de disputas entre cristãos e muçulmanos aparecem em algumas
cantigas de Afonso X, mas naquelas que devem ser analisadas neste trabalho o foco é
em relação aos nobres de Castela e Leão que se uniram ao rei de Granada contra o rei
Afonso X. Após a revolta dos nobres, eles saíram de Castela e Leão e foram para
Granada; a comunicação entre o grupo revoltoso e o rei muçulmano já iniciara nas
primeiras reuniões entre os nobres. A crônica reproduz uma carta enviada pelo irmão de
Afonso X, D. Felipe, para o rei de Granada em que os nobres juram fidelidade à família
dos reis muçulmanos e que se levantariam contra o rei de Castela e Leão quando o seu
novo senhor precisasse38
. Nas cantigas 16 e 2439
, Afonso X utiliza um tom rígido contra
aqueles que são omissos ou lhe traíram nas disputas contras os muçulmanos.
c) Disputa com o infante D. Henrique40
.
Fernando III deixou ao seu terceiro filho, o infante D. Henrique, um senhorio
localizado na região de Morón, região que possuía uma expressiva população
muçulmana, que nos primeiros anos do reinado do seu irmão Afonso, se revoltou. Os
dois irmãos juntos conseguem reprimir a revolta; segundo O’Callaghan, pouco tempo
depois, o rei Afonso X anula a concessão da região feita pelo pai ao irmão e inicia uma
disputa que serviu para aumentar as tensões no reinado41
.
A Crónica do reinado de Afonso X, por sua vez, informa que no ano de 1259, D.
Henrique estava instigando nobres da região da qual era senhor contra o seu irmão.
Razão pela qual o rei Afonso X envia D. Nuño e seus homens para enfrentar seu irmão.
Uma batalha ocorre e D. Henrique foge quando alguns homens enviados por Afonso X
chegam para ajudar D. Nuño na batalha. O caminho que o irmão do Rei segue é
diferente do caminho de outros que se revoltaram contra o rei, D. Henrique ao fugir
desta batalha sai de Castela e Leão e não volta antes da morte de Afonso X. Primeiro,
viaja até a Inglaterra e depois para Túnez, local onde se instala sob a proteção do emir e
no qual adquire grande fortuna, mais um evento que demonstra as relações maleáveis
37
Idem, p. 25. 38
BALLESTER, Op. cit., p. 163-169. 39
LAPA, Op. cit., p. 29-30; 35. 40
Na bibliografia utilizada, encontra-se a grafia Enrique, como em O’Callaghan, e Henrique, em Manoel
Rodrigues Lapa. Manteve-se a grafia utilizada por Rodrigues Lapa. 41
O’CALLAGHAN, Op. cit., p. 30.
19
entre muçulmanos e cristãos no medievo42
. Desentende-se com o emir, que lhe deixa
partir com vida apenas depois de vencer dois leões, segundo a Crónica; se envolve na
disputa entre os guelfos e gibelinos e é encarcerado por Carlos de Anjou, no ano de
1268, ganha a liberdade apenas no ano de 1294, no reinado de Fernando V. A
interessante e tumultuada vida de D. Henrique remete a outro elemento da cavalaria que
não será tratado neste trabalho: o cavaleiro andante, que não teve oportunidade na sua
terra e que tinha sede de aventura.
O embate com o irmão, D. Henrique, não foi longo nem ao menos ameaçou de
alguma forma territórios do reino de Castela e Leão. Apesar da disparidade entre a
afirmação de O’Callaghan e a Crónica sobre o papel do rei na razão da desavença entre
seu irmão e ele, as duas versões são passíveis da análise que este capítulo está
possibilitando: a instabilidade das relações entre o rei e a nobreza. A atitude atribuída a
D. Henrique por O’Callaghan, de se revoltar contra a decisão do rei que lhe prejudicava,
está de acordo com a noção de que o rei acreditava que suas decisões eram superiores e
deveriam ser obedecidas de forma incondicional, já D. Henrique se opunha para garantir
seus direitos. A atitude descrita pela Crónica é diferente, mas também representa a
oposição da nobreza em relação ao rei.
42
Ibidem.
20
2. Os sentimentos do rei: uma análise das cantigas compostas por Afonso X.
As sete cantigas que servem de fonte para esse trabalho serão analisadas uma a
uma, com o intuito de apreender os sinais43
deixados por Afonso X e compreender a
visão do rei de Castela e Leão acerca de sua relação com os seus súditos, em especial
com o grupo dos nobres cavaleiros, as imagens que Afonso utilizava em suas cantigas e
o que elas significavam. As fontes se tornaram acessíveis a partir da compilação de
todas as cantigas de escárnio e maldizer em galego-português conhecidas na
contemporaneidade, formulada por Manoel Rodrigues Lapa, na qual o autor realiza
algumas análises que serão apresentadas e discutidas junto com a descrição das
cantigas.
Lapa também identifica uma espécie de conjunto temático dentre as cantigas
escritas pelo rei de Castela e Leão, que tem como tema a indignação contra cavaleiros
que não lhe auxiliaram nas disputas contra muçulmanos e que são o objeto do estudo.
Para a análise das cantigas enumeradas como 2, 4, 6, 16, 24, 26 e 35, de autoria do rei
Afonso X foram estabelecidos alguns temas que se remetem ao conteúdo das fontes e
que permitem uma análise pertinente com a discussão que este trabalho propõe sobre a
relação entre o rei de Castela e Leão e os nobres44
. Algumas cantigas possuem
elementos que as incluem em mais de um tema estabelecido e uma delas, a de número
2645
, está presente em todos os temas; esta é a maior cantiga do corpus documental -
aliás, para o padrão das cantigas é bastante longa - e serve como uma grande síntese das
diversas queixas realizadas pelo rei. Segundo Lapa, a sua análise é difícil por duas
razões. Em primeiro lugar, a cantiga está extremamente deteriorada nos cancioneiros
dos quais foi copiada e, em segundo lugar, cada uma das suas quinze cobras46
, para
Lapa e os autores que utiliza como bibliografia47
, se refere a cada um dos nobres que,
sob a liderança de D. Nuño de Lara e D. Lope Díaz de Haro, desde 1269, ano em que o
43
Neste trabalho, o termo “sinal” será utilizado no sentido estabelecido por GINZBURG, Carlo. Sinais:
raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. Morfologia e História. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p. 143-179. 44
Em relação à escolha destes eixos temáticos, eles foram estabelecidos de forma que facilitassem a
análise e a discussão da bibliografia, mas, de forma alguma, representam um enquadramento estático das
fontes que podem ser analisadas sob inúmeros outros aspectos e temas. 45
Idem, p. 36-37. 46
A palavra cobra define o que comumente chamamos de estrofe, palavra significa verso e a finda é o
trecho que encerra a cantiga segundo Yara Frateschi Vieira, na obra já citada Poesia Medieval, na página
18. A terminologia será mantida neste trabalho por ser específica das cantigas em galego-português e
aparecerá sempre em itálico. 47 Esses autores são LÓPEZ-AYDILLO e Carolina MICHÄELIS.
21
rei se desentendeu com D. Nuño, se reuniam para discutir sua insatisfação com o
reinado de Afonso X48
e que acabaram se revoltando contra o rei. Como não há citação
do nome destas pessoas, mas sim características, não é um trabalho fácil descobrir quem
são ou fazer uma análise pormenorizada levando em consideração uma referência extra-
textual. Analisando a cantiga, percebe-se que estas cobras podem, realmente, ser uma
referência a quinze pessoas; mas, ao mesmo tempo, podem fazer referência a uma ou
duas pessoas; da mesma forma, pode não ser sobre ninguém em especial, apenas uma
digressão sobre aqueles que não atenderam ao seu chamado.
2.1) Uma análise temática das cantigas de escárnio e maldizer de Afonso X.
a) Os cavaleiros ausentes
O primeiro dos temas que foi possível identificar no conteúdo das cantigas é
daqueles cavaleiros que foram omissos em relação ao seu papel militar. Sobre a questão
militar é necessário apontar alguns aspectos que já foram estudados no capítulo
contextual, cabe esclarecer a situação especial da Península Ibérica, em que os reinos
cristãos e muçulmanos travavam constantes disputas territoriais. Neste sentido, as
cavalarias dos reinos cristãos da Península Ibérica possuíam esta função específica, a de
atender aos chamados de seus reis para combater os “infiéis”, estas campanhas militares
ocorriam com freqüência e faziam parte do cotidiano dos reinos ibéricos.
A primeira cantiga a ser analisada será a de número 2 na edição de Rodrigues
Lapa49
. Esta pequena cantiga possui três cobras, cada uma possuindo três palavras e
uma finda. Rodrigues Lapa sugere que a cantiga se remete a um episódio em especial, a
campanha contra os reis de Múrcia e Granada em 1264. Na cantiga, o rei esclarece que a
campanha militar que empreende está incompleta porque alguns cavaleiros não estão
presentes e cita os nomes daqueles que não o acompanharão: Pero Garcia, Pero
d’Espanha e Pero Galego. O destaque destes três nomes se deve, aparentemente, por sua
falta ser uma surpresa tanto para o rei quanto para outras pessoas, já que na primeira
palavra da segunda cobra Afonso jura por Santa Maria, do qual era tão devoto, que os
três cavaleiros não irão com ele; como se quisesse, através do juramento, provar que
48
Cronicas de Alfonso X, Op. cit., p. 60. 49 LAPA, Op. cit., p. 21-22.
22
suas palavras são verdadeiras. Seu lamento pela ausência dos três cavaleiros fica ainda
mais claro ao esclarecer que perde combatentes de valor.
O tom destas três cobras é de surpresa, tanto que não são apontadas razões para a
falta cometida pelos cavaleiros, o rei apenas enfatiza sua ausência; é possível supor que
a referência ao nome “Pero” adicionado de nomes de locais ou de sobrenomes comuns
indica que o autor utilizou de uma generalização que pode significar que vários
cavaleiros estavam sendo omissos ou indica, de forma subliminar, a ausência de
cavaleiros específicos. Já a finda possui outro tom, em que o rei afirma que outros irão
com ele, demonstrando que a ausência destes cavaleiros não alterará o bom andamento
da campanha; é perceptível a tentativa de Afonso em diminuir a importância dos
cavaleiros através deste último trecho, assim como busca demonstrar que há outros
cavaleiros que o apóiam.
As cantigas de número 4 e 650
se completam no sentido. As duas se referem ao
mesmo personagem, Don Meendo de Candarei, que Lapa não conseguiu referências
mais precisas sobre quem seja através de suas pesquisas. Sobre as duas cantigas, Lapa
confirma o sentido de completude e atribui à composição da cantiga número 4 o uso,
pelo autor, do recurso da ironia. Já sobre a composição de número 6, que possui três
cobras, com duas palavras e um refrão cada, esclarece que Afonso se utiliza de um
provérbio popular cujo significado é algo semelhante a “quem leva o cavalo, não deixa
a sela” para representar o descaso de Don Meendo ao não ir à guerra.
Na cantiga de número 4, o rei Afonso X informa que D. Meendo de Candarei
lhe pedia, com freqüência, valores financeiros51
; com o complemento da cantiga número
6 podemos perceber que, como ocorria nas relações feudais, a concessão de valores aos
nobres por parte de Afonso X implicava reciprocidade. Essas quantias oferecidas
serviam como garantia de que o nobre se armaria, armaria aos seus cavaleiros e que
estaria disposto a cumprir um papel militar, sempre remetendo ao contexto ibérico de
constante disputa entre reinos cristãos e muçulmanos. A referência de Afonso X ao
aspecto militar está na utilização da frase que, segundo Lapa, é um provérbio popular,
quen leva o baio, non leixa a sela e que pressupõe que quem leva um benefício deve
cumprir o serviço que lhe é delegado; num sentido figurado pode significar que apesar
do rei ter dado dinheiro para Don Meendo, o nobre não o auxiliou no momento
50
LAPA, Op. cit., p. 22-23. 51 Aspecto que será melhor abordado no item b sobre Cavaleiros interesseiros.
23
necessário52
; o uso dos termos baio e sela remetem aos seus usos militares. A ausência
de D. Meendo é retratada por Afonso X num tom cômico, chama o nobre, ironicamente,
de amigo de Souto Maior e informa que depois da experiência com D. Meendo passa a
conhecer a atitude interesseira e omissa. Ou seja, o cavaleiro não estava presente
quando foi necessário para o rei; indo contra a ordem das relações feudais, afinal não
presta o serviço pedido pelo senhor em troca do favor financeiro.
Como já foi comentado, a cantiga número 26, que está na página 36, do livro de
Manoel Rodrigues Lapa possui elementos que se remetem a todos os eixos temáticos
que foram destacados neste trabalho incluindo a omissão dos cavaleiros. O refrão non
vem al maio já representa a ausência dos guerreiros, afinal significa que não atenderam
ao chamado para comparecer perante o rei e cumprir suas obrigações militares; como
essa apresentação ocorria em maio, D. Afonso faz referência a este mês em que seu
chamado foi ignorado. Outro exemplo está na primeira cobra em que temos um homem
que retirou seus cavaleiros da guerra e voltou para sua terra para guardar dinheiros, a
cobiça transformou esse cavaleiro num covarde que fugiu do combate. Também fala
daquele que ostenta uma vestimenta sofisticada e de outro que com rapidez ostentava a
sua bandeira com seu escudo, mas que não tinha o brio do pai, quando se tratava de
respeitar os serviços delegados. Há também o cavaleiro que não cumpre a obrigação de
levar homens armados e preparados para a guerra e que não faz os pagamentos de sua
gente - provavelmente, Afonso X se refere aqui ao pagamento que deveria ser
concedido aos cavaleiros para que esses se equipassem - ou “O que tragia o pendon sen
sete e cinta ancha e mui grande topete” o que pode significar uma referência a uma
pessoa que aparentava muito poder e coragem, mas essas qualidades não passavam de
aparência.
Outro exemplo é do cavaleiro que foge dos “martinhos”, termo definido no
glossário elaborado por Lapa como um livre combatente mouro53
, e que vai para casa
beber seus vinhos. Tem aquele que foge das fronteiras e aquele que causava medo aos
mouros – o que [ar] roubou dos mouros – e foi para sua casa roubar cabritos54
; aquele
que da guerra se foi com espanto sendo mais um exemplo de covardia; cita um que
estava com muito medo da guerra a ponto de estar espargendo vedo que - depois de
várias discussões sobre o significado da expressão - Lapa concluiu que significa
52
A atribuição de tal interpretação é sustentada também pela temática da cantiga número 4. 53
LAPA, Op. cit., p. 342. 54 O significado da expressão é literal. No glossário, Lapa define a palavra roubar como assaltar, na
página 373.
24
“borrando-se de medo” e havia mais um cavaleiro que expunha o seu pendão, mas nem
no mês de março não atendeu o chamado do rei e, provavelmente, também não
atenderia no mês de maio.
Finalmente, a última cobra, se refere a um cavaleiro que “(...) da guerra foi per
retraúdo macar em Burgos fez pintar escudos”. Lapa define retraúdo como censurado;
dentro do contexto, é possível concluir que a censura é por pintar escudos, ou seja, se
preparar para a guerra e se comprometer, expondo os símbolos de sua casa e família
para, finalmente, não atender ao chamado real. Nesta cantiga, há duas palavras que
fazem referência a um aspecto muito relevante quando se tratava do grupo
nobiliárquico: a linhagem. Em outra palavra já citada, o rei afirma que o cavaleiro não
tinha o brio do pai, enquanto o outro ostentava os escudos da família de forma
indiscriminada; a ancestralidade é um elemento de extrema relevância na sociedade
feudal, os nobres têm um nome familiar a zelar. Outro documento de autoria de Afonso
X, as Siete Partidas, demonstra a importância dada à continuação de uma tradição
familiar: “Et por esto sobre todas las otras cosas cataron que fuesen homes de buen
linage, porque se guardasen de facer cosa por que podiesen caer em vergüenza [...] por
eso los llamaron fijosdalgo, que muestra atanto como fijos de bien.”55
Ou seja, aqueles
que eram de uma linhagem de fijosdaldo deveriam preservar esta característica e não
recair na vergonha. As cantigas apresentam modelos ao inverso e este é mais uma falta
grave dos nobres cavaleiros de Castela e Leão, o desrespeito à sua linhagem. Podemos
pensar inclusive no fato de que D. Lope Díaz de Haro, um dos líderes da revolta contra
o rei Afonso X, foi filho de um eminente nobre que auxiliou tanto Fernando III quanto o
seu filho; ou seja, era filho de um nobre conselheiro do rei e se revolta contra o seu
senhor, é possível pensar que talvez uma destas palavras seja dedicada a D. Lope.
A cantiga 26 enumera diversas características que representam o mal cavaleiro e
permite várias análises, mas o que está explícito é que todos são omissos; neste sentido,
podemos realizar uma comparação entre as cantigas 2, 6 e 26 em relação ao que o rei
pensava e como abordou a omissão cavaleiresca. A cantiga número 2 apresenta um tom
de surpresa, já a cantiga número 6 não apresenta surpresa por parte do eu lírico, mas
sim, comicidade; no caso da cantiga de número 26, o tom do rei é mais duro,
principalmente, pelo vocabulário utilizado. No caso de Don Meendo, podemos supor
que o rei não confiava muito no nobre, nunca o levou muito a sério e também se tratava
55
DON ALFONSO EL SABIO, Op. cit., p.199.
25
de apenas um cavaleiro; D. Meendo formaliza o estereótipo de um personagem
divertido, com características exageradas propositalmente para intensificar a comicidade
da cantiga.
Já os casos com mais de um cavaleiro, indicam um movimento mais amplo de
insatisfação e que sabemos pelo contexto que efetivamente ocorreu. Para esses
cavaleiros, o rei não hesita em atribuir um dos piores defeitos para o grupo de
cavaleiros: a covardia; um bom exemplo está na décima terceira cobra da cantiga 26 em
que o rei afirma que um dos cavaleiros da guerra se foi con gran medo. A covardia dos
cavaleiros remete ao medo e à fuga dos medrosos e o rei a cita quando seu tom é menos
descontraído, quando parece mais aborrecido do que divertido com o que narra. A fuga
ou a ausência dos cavaleiros na guerra pode ter outra explicação, além da covardia,
diante da análise de outro tema identificado, a dos cavaleiros revoltosos.
b) Os cavaleiros interesseiros
Sobre o tema do interesse financeiro e soberba nos cavaleiros descritos por Afonso
X podemos destacar as cantigas 6 e 26, que já foram analisadas parcialmente, e as
cantigas 4 e 24.
Sobre a cantiga número 4, já foi dito que em relação a cantiga número 6 há uma
completude, até porque se referem ao mesmo personagem, D. Meendo de Candarei; é
composta por uma cobra, com seis palavras. Nela, Afonso X se dirige a D. Meendo
dizendo que conversaram em outro dia e que o rei perdeu o que trazia: o rei é irônico ao
dizer, desta forma, que o nobre lhe pediu uma grande quantidade de dinheiro, que lhe
foi concedida. Ainda sendo irônico, Afonso X declara que não quer atender ao pedido
de D. Meendo para ter uma nova conversa, indicando que o nobre irá pedir mais
dinheiro. O rei ainda usa o termo amigo, forma irônica de se referir ao nobre. Ou seja, a
cantiga faz alusão a uma pessoa com proximidade suficiente em relação ao rei para lhe
pedir verba pessoalmente. Segundo a cantiga, essa quantia foi concedida algumas vezes,
demonstrando uma faceta do reinado de Afonso: certos súditos tinham a possibilidade
de pedir dinheiro para o rei. O tom jocoso utilizado indica que no caso de D. Meendo,
esta possibilidade era utilizada de forma abusiva pelo nobre. A cantiga número 6,
demonstra que o nobre, apesar de receber o auxílio do rei, não lhe foi útil no momento
em que o rei precisou.
26
A cantiga de número 2456
é composta por quatro cobras com seis palavras e um
refrão cada. Na análise de Lapa esta é mais uma cantiga que expressa a revolta de
Afonso X em relação aos cavaleiros covardes e traidores da Guerra de Andaluzia;
destaca o termo faroneja e seu significado, que no seu entender tem relação com a “(...)
frouxidão cautelosa daquele a quem faltava o ardor combativo”57
. A sua estrutura é
bem simplificada; parece se referir a um cavaleiro em especial, mas não cita o seu nome
como em outras cantigas. Nas duas primeiras palavras, o rei se dedica a esclarecer que
este cavaleiro, em um primeiro momento, parecia disposto a participar da guerra, já que
aceitou a quantia chamada de soldada58
, que em Castela e Leão os nobres recebiam uma
vez por ano para armar seus cavaleiros e defenderem as fronteiras contra os
muçulmanos. Na terceira e quarta palavra das cobras, Afonso X questiona se o nobre
hesita por não ter coragem de ir à guerra, a hesitação é expressa com a palavra faroneja:
como se o cavaleiro pressentisse a guerra que o afugenta. No refrão, o rei amaldiçoa o
cavaleiro pela sua covardia usando o termo “maldito seja!”. É perceptível pelo uso das
palavras que o tom da cantiga é de revolta e até de raiva, principalmente, se pensarmos
que Afonso X é o autor das Cantigas de Santa Maria, obra que representa sua profunda
devoção, mesmo assim ousa amaldiçoar um súdito devido à desobediência. Outro
vocábulo expressivo que utiliza é meiga, que segundo a interpretação de Lapa, tem o
sentido de artimanha.
Um elemento de análise desta cantiga, que também aparece em outras, mas que
nessa possui certo destaque é uma característica contextual do reinado de Afonso X: o
pagamento que fazia para os homens que deveriam auxiliá-lo na defesa do território do
reino, assim como o fato de alguns nobres se utilizarem de tal pagamento e não
participarem da guerra; a partir destes elementos podemos levantar certas questões
relativas à relação de Afonso e seus súditos e como as constantes disputas com os
muçulmanos eram percebidas no cotidiano ibérico.
Percebe-se, através das fontes e da bibliografia, que a soldada possuía relevância
no contexto militar de Castela e Leão. As obrigações militares dos nobres, que eram
súditos de Afonso X, deveriam ser precedidas por um valor que serviria para preparar-se
para a guerra. Nas cantigas apontadas, é possível constatar que alguns cavaleiros
aceitavam este valor do rei, mas que não cumpriam suas obrigações militares. É o que
56
LAPA, Op. cit., p. 35. 57
Ibidem. 58 Palavra que aparece na primeira palavra da terceira cobra, com o mesmo significado aparece ainda a
palavra dinheiros.
27
ocorre nas cantigas 4 e 6, trata-se de um nobre ganancioso, que a cada vez que se
encontra com o rei solicita mais dinheiro; na cantiga 24, o nobre aceitou o valor da
soldada, mas no momento da guerra se acovardou.
Na cantiga 26, mais uma vez, identificam-se vários exemplos de nobres que são
gananciosos e egoístas; na primeira cobra, há aquele que deixa de ir à guerra para voltar
para as suas terras e guardar dinheiros, na sexta cobra o que não repassava o
pagamento de sa gente – referência provável aos guerreiros que deveriam ser levados na
defesa das fronteiras e nas guerras -, há ainda aquele que foge da guerra e a sa terra foi
bever los vinhos; ou seja, critica, como sempre, a covardia, a soberba, o egoísmo,
aqueles que permanecem no conforto de suas terras.
c) Os cavaleiros revoltosos
Dentre os temas selecionados, o da revolta entre os cavaleiros do rei Afonso X pode
ser considerado o mais relevante, porque a revolta pode ser a motivação para as outras
faltas apontadas nas cantigas. Além das cantigas número 2 e 26, incluímos neste eixo
temático as de número 16 e 35.
A próxima a ser analisada é a de número 1659
, composta por quatro cobras com sete
palavras cada e uma finda. Nesta cantiga, Lapa comenta que se trata de mais uma
cantiga sobre traidores e confronta as conclusões de Carolina Michäelis em sua obra
Zeits. Mas o destaque de seu comentário é a importância dada a um vocábulo em
específico, a palavra leixar; para Lapa a presença de tal vocábulo ao longo de toda a
cantiga representa uma crítica ao “(...) ao abandono moral, a frouxidão daquele
carácter de cobarde”60
.
Esta cantiga possui uma série de dificuldades relativas ao vocabulário, ou seja,
apenas as informações fornecidas por Rodrigues Lapa não foram suficientes para torná-
la mais compreensível, sendo que em alguns momentos foi necessária uma análise de
contexto para seu melhor entendimento. Na primeira cobra, D. Afonso X já cita Don
Foan, termo usado em algumas cantigas em galego-português, inclusive de autoria do
rei D. Dinis de Portugal, para definir um sujeito falastrão61
, uma tradução possível é D.
59
LAPA, Op. cit., p. 29-30. 60
Ibidem. 61 Sobre o uso do termo D. Foan por D. Dinis ver VAZ, Otacílio. Do que riu o rei? – As cantigas de
escárnio e mal-dizer do Rei Dom Dinis de Portugal (1279-1325). Monografia (Curso de Licenciatura e
28
Fulano, Afonso X utiliza o termo demonstrando desprezo pelo cavaleiro que é a razão
de seu escárnio. O tal nobre, quando chega ao local de disputa e verifica a situação da
batalha sente grande vontade de voltar para sua terra, por essa razão filia seu coração ao
adaíl e deixa a guerra. A palavra adaíl, como é explicado no glossário fornecido na obra
de Lapa62
, significa oficial militar que pode ser tanto um traidor quanto um líder das
forças inimigas. Foi, portanto, o adaíl que convenceu o cavaleiro a deixar (leixar) a
guerra; e para aumentar o significado de tal atitude covarde por parte de Don Foan e do
militar, Afonso deixa claro que o nobre abandonou os princípios de prez e esforço
(dignidade63
e esforço).
Num segundo momento da cantiga, o rei enfatiza a praticidade e segurança da
atitude de Don Foan, utiliza o mesmo recurso de oposição entre atos considerados
corretos e as atitudes de Don Foan ao opor a conveniência (boõ sen64
) do nobre à
lealdade. Já na terceira cobra, o tom utilizado pelo rei é mais rígido, deixa de utilizar a
ironia que apresenta nas duas primeiras cobras, para ser mais direto nas suas
colocações: por exemplo, quando declara que o adaíl possui grande sabedoria ao
convencer o nobre a “(...) en tal guerra leixar seu senhor”. Na quarta cobra, Afonso
enfatiza mais uma vez, como ao longo de toda a cantiga, o caráter influenciável de Don
Foan e o seu apego à situação de bem estar que a distância das obrigações militares
propicia. O mais interessante nesta parte da cantiga é a referência feita a Deus em dois
momentos, quando Afonso utiliza a expressão se Deus me perdon e numa possível fala
de Don Foan em que utiliza outra expressão, Par Deus; referências que encontram uma
oposição na quinta cobra, em que o rei declara que irá recomendar ao Demo prez deste
mundo e armas e lidar. A oposição entre Deus e o Diabo faz parte do recurso de
antítese, já a ironia, tão utilizada pelo eu lírico do rei em suas cantigas de escárnio e
maldizer, também está presente na cantiga quando o rei coloca a referência a Deus na
voz do nobre covarde e recomenda os “bons valores” ao Demônio.
A cantiga possui um tom direto, suas críticas estão explícitas; a utilização de termos
opostos entre si servem para que se depreenda tanto o perfil do súdito valoroso, quanto
de um súdito infiel na visão do rei: o cavaleiro que obedece a seu senhor tem coragem
Bacharelado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2007. 62
LAPA, Op. cit., p. 289-392. 63
Utilizei, para diversos vocábulos das cantigas, além do glossário de Lapa, que já foi referenciado,
aquele organizado por Yara Frateschi Vieira no seu trabalho Poesia Medieval; o vocábulo prez está na
página 203. 64 Idem, p. 204.
29
para enfrentar a guerra e é digno e esforçado, sua oposição é representada pelo cavaleiro
que foge da guerra e valoriza seu próprio bem estar em detrimento do bem estar do
reino, além de desobedecer a uma ordem real. Estes perfis estabelecidos pelo rei servem
para analisar outras cantigas, pois nela estabelece os seus parâmetros em relação ao bom
e ao mal cavaleiro e o que espera de seus homens.
A cantiga de número 35, que se encontra na página 42 da edição de Rodrigues Lapa,
possui onze cobras com três palavras cada e uma finda. Nesta cantiga, D. Afonso X
escreve para uma pessoa em especial, um fidalgo chamado Don Gonçalo. A exposição
do nome de uma pessoa na cantiga, acrescido da interpretação que Manoel Rodrigues
Lapa realiza das intenções do rei ao escrever para este Don Gonçalo caracterizam-na
como cantiga de escárnio ou maldizer. Realizando uma leitura inicial não é possível
perceber o porquê desta classificação, mas depois de realizar uma leitura mais detalhada
e colocar a cantiga dentro de um contexto maior podemos classificá-la como cantiga de
maldizer. Na contextualização que Manoel Rodrigues Lapa realiza, o autor acredita que
este Don Gonçalo seja D. Gonçalo Eanes de Vinhal, fidalgo que estava na campanha da
Múrcia no ano de 1243 e morreu em combate no ano de 1280.
A cantiga começa com D. Afonso explicando que Don Gonçalo pretende ir até
Sevilha para encontra sua amiga65
e contar a ela suas experiências de viagens, além de
exaltar outras aventuras das quais o cavaleiro participa, ou seja, descreve momentos que
faziam parte do cotidiano de um nobre que se dispõe a servir militarmente seu senhor e
no contexto ibérico isto significava constantes viagens e batalhas. Na terceira cobra, o
rei declara que sabe da coragem de Don Gonçalo e a tem em grande estima; é por esse
tipo de elogio que esta cantiga parece não ser de escárnio e maldizer a princípio. Mas na
cobra seguinte já é possível perceber a sutil crítica de Afonso por trás de uma fala de
exaltação, sutileza que também é percebida por Lapa: nela o autor dá um conselho ao
cavaleiro, que ele se olhe no espelho e que não busque mercee de Joam Coelho. Apesar
do trecho não ser muito claro podemos fazer algumas suposições, ao pedir que o
cavaleiro se olhe no espelho o rei poderia estar sugerindo que fizesse uma análise dos
seus atos, algo relacionado, provavelmente, à mercee de Joam Coelho, pessoa que não
deveria ser da confiança de Afonso e que deveria estar conquistando a atenção de Don
Gonçalo, cavaleiro de valor para o rei. É importante esclarecer que esta cantiga, tanto
para Lapa como para Michäelis, tem como base contextual as disputas entre o rei
65
O termo amiga é usado no sentido utilizado pelas cantigas de amigo, com cunho romântico.
30
Afonso X e seu irmão, o infante D. Henrique; neste sentido, Joam Coelho
provavelmente é um partidário do infante, segundo a Cronica, alguns vassalos do
infante lhe apoiaram e podemos supor que Coelho fosse um desses vassalos66
.
Na quinta e na sexta cobra, o rei volta a fazer elogios ao cavaleiro relacionados ao
seu desempenho com a espada e a sua coragem que garante a vitória daqueles que o
acompanharam nas batalhas, assim como elogia sua constituição física e educação.
Todos estes elogios fazem referência às virtudes de um bom cavaleiro e é neste sentido
que Jean Flori fala de uma ética cavaleiresca na qual podemos incluir a habilidade com
a arma e uma boa apresentação67
. Mas, logo em seguida, alerta Don Gonçalo para que
mantenha sua boa reputação e evite se transformar em um escatimoso ponteiro68
já que
o rei ouviu falar que Don Gonçalo baralhaste com o tal Joam Coelho. É na décima
cobra que Afonso realiza sua sutil crítica de maneira mais clara, primeiramente, pede
que o cavaleiro não o leve a mal, mas que na mão de Don Gonçalo havia duas espadas;
para Lapa as duas espadas significam que o cavaleiro sustentava a filiação a dois
partidos opostos, o do rei e do seu irmão Henrique. Esta posição dúbia do cavaleiro
apontada criticamente pelo rei permite a classificação da cantiga como de escárnio e
maldizer. Na finda, o rei declara que o cavaleiro sempre traz as duas espadas agudas e
amoadas, o que quer dizer que sempre está à disposição tanto de um partido como de
outro.
Esta cantiga se diferencia das outras pelo seu tom. Percebemos, no corpo
documental deste trabalho, aquelas com tom jocoso e aquelas em que o rei demonstra
sua raiva e indignação; neste caso em especial se trata de uma crítica também, mas é
realizada com sutileza como já foi apontado. Cabe questionar porque Afonso não estava
tão indignado com uma suposta traição como demonstrou estar em outras situações.
Don Gonçalo, ao contrário de outros nobres, não deixou o rei sem suporte quando se
tratava de cumprir suas obrigações militares, tanto que Afonso chega a elogiar seu
desempenho nas batalhas; este fato pode ter influenciado para amenizar o tom do rei.
Outro fator é contextual, a disputa com o infante D. Henrique não tinha a mesma
proporção das disputas pelas fronteiras, que caso fossem negligenciadas poderiam
resultar na perda do reino.
66
Cronica de Alfonso X, Op. cit., p. 36. 67
FLORI, Jean. Cavalaria. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do
Ocidente Medieval, volume I. Bauru: Edusc, 2006, p. 196. 68
Segundo Lapa, um capcioso enredador.
31
Como já foi tratado no capítulo anterior, parte da nobreza castelhana e leonesa
manteve uma relação instável com o rei Afonso X. As motivações para tal instabilidade
são inúmeras e o resultado é a revolta, assim como a aproximação deste grupo do rei
muçulmano de Granada. Portanto, sua ausência na defesa de fronteiras e em disputas de
territórios contra os muçulmanos é a primeira demonstração de insatisfação com o
reinado de Afonso; a cantiga número 26, segundo as observações de Lapa, se refere
especificamente a esses nobres que durante vários anos - sob a liderança de D. Nuño de
Lara e D. Lope Díaz de Haro e com a participação do irmão do rei, o infante D. Felipe,
se organizaram para defender suas posições. Como, nesta cantiga, o rei não cita
nenhuma traição supõe-se que sua composição date de um período anterior à ida deste
grupo de nobres para o reino de Granada. O rei demonstra que os nobres não lhe davam
apoio na situação militar do reino e podemos considerar esta ausência uma forma de
demonstrar insatisfação com a situação, esta análise não se aplica apenas a cantiga de
número 26, mas também à cantiga 2, apesar do tom utilizado pelo rei ser diferente:
enquanto na cantiga 2 o rei demonstra surpresa, na cantiga 26 demonstra indignação.
A covardia é a falta mais grave que um cavaleiro pode cometer. Nas Partidas,
Afonso enfatiza que a sociedade está dividida entre os que rezam, os que trabalham e os
que guerreiam69
; se, para o rei, o grupo é definido justamente pela função de defender o
reino, então a covardia se apresenta como uma alteração na ordem social. Além da
função social definida por Afonso X na sua obra legislativa, podemos pensar também na
mentalidade medieval do rei, na qual a ética cavaleiresca, apontada por Jean Flori, está
presente como própria do grupo dos bellatores. Em seu trabalho, A Cavalaria, o autor
ao tratar da questão da investidura de armas no caso de um castelão ou de um grande
senhor “(...) sua entrada na carreira das armas se insere em um conjunto muito mais
vasto de funções, obrigações, serviços e relações de poder”70
. Diante deste aspecto, é
possível compreender a indignação de Afonso X em relação aos nobres que lhe
abandonaram e traíam, não se trata apenas de algumas faltas em campanhas militares;
trata-se também de cavaleiros que não respeitam, na visão do rei, a ética de seu grupo ao
não atender a uma ordem de seu líder militar e ao não cumprir sua função de proteção
da religião católica e dos indefesos. A falta destes cavaleiros toma, então, outra
dimensão.
69
DON ALFONSO EL SABIO, Op. cit., p. 197. 70 FLORI, Jean. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras,
2005, p. 39.
32
Em relação às outras cantigas percebemos o tema da traição, como na de número 16
em que o nobre em questão é fraco de espírito ao se deixar levar por um oficial militar
que lhe convence a voltar para o conforto de suas terras; em relação àquele que é má
influência é possível levantar duas hipóteses, pode se tratar de alguém que não quer ir à
guerra simplesmente por preguiça ou falta de coragem, ou de uma pessoa que tem
motivações políticas, que deseja atingir o rei ou que acredita que a guerra não é
relevante. Este elemento que é má influência também está presente na cantiga 35, mas
nela o contexto é muito diferente. O tal Joam Coelho referido pelo rei, aparentemente,
influencia um bom cavaleiro do rei para que ele auxilie o infante D. Henrique na disputa
com Afonso X. Como já foi dito, o contexto parece amenizar esta situação, apesar de
também ser uma traição.
2.2) As relações régio-nobiliárquicas no reinado de Afonso X: a questão da
vassalagem.
A análise das fontes levantou certas questões a respeito do que podemos chamar
instituições medievais: a cavalaria, a figura do rei e o sistema de vassalagem. As
cantigas não tocam diretamente no assunto, mas podemos inferir certos aspectos
importantes da sua leitura. No geral, temos um rei, o senhor feudal, e os cavaleiros, seus
vassalos; os vassalos que deveriam prestar serviços ao seu senhor, e no caso da
Península Ibérica estes serviços configuram-se como batalhas contra muçulmanos, não
atendem ao seu chamado, não executam o seu serviço. Se considerarmos o Feudalismo
um sistema ou uma instituição, devemos considerar a possibilidade de haver exceções
às regras. Mas, sabemos que os casos descritos pelas cantigas não são casos esparsos, e
sim, fruto de um movimento de insatisfação da nobreza com o rei; neste sentido, cabe
questionar se os laços feudais constituem alguma importância nesta configuração.
Em seu trabalho História da Idade Média: textos e testemunhas, Maria
Guadalupe Pedrero-Sánchez reúne diversas fontes do mundo medieval; a autora separa,
dentre as fontes que se remetem ao Feudalismo, um trecho das Siete Partidas no qual
Afonso X explica como um homem se pode fazer vassalo um do outro e de que maneira
se deve dar e receber o feudo. Para uma exemplificação do pensamento de Afonso a
respeito da vassalagem cabe transcrever aqui o seguinte trecho: “ Homenagem tanto
quer dizer como tornar-se homem de outrem e se fazer como seu para dar-lhe
segurança sobre a coisa que promete dar ou fazer, que a cumpra, e esta homenagem
33
não somente tem lugar em pleito de vassalagem mas em todos os outros pleitos e
posturas que os homens ponham entre si com intenção de cumpri-las.”71
Esse trecho
das Partidas fornece outra dimensão além da vassalagem.
Jacques Le Goff, no texto O ritual simbólico de vassalagem, ao tratar das
diferenças entre os rituais simbólicos de investiduras em diferentes pontos da
Cristandade Medieval, explica que o próprio ritual na Espanha já evoca uma maior
submissão por parte do vassalo em relação ao seu senhor daquela verificada em outros
locais e isto porque, nas investiduras da região, o vassalo deveria beijar a mão do seu
senhor72
, exatamente, como é descrito por Afonso X em outro trecho presente na obra
de Pedrero-Sánchez. A subordinação ao senhor estava intrínseca na relação com o
vassalo em Castela e Leão, fazia parte de uma tradição antiga. Mas, o rei Afonso X
considerava que esse laço que implicava em dominação comprometia não somente a
relação de vassalagem, e sim, “[...] outros pleitos e posturas que os homens ponham
entre si[...]” incluindo a relação entre o rei e o súdito.
A condição de vassalagem implicava em subordinação, mas esta subordinação se
apresentava na forma de prestação de serviços, em troca o senhor deveria fornecer sua
proteção ao vassalo, portanto, apesar de ser uma relação hierárquica ela também era
uma relação de dependência e este aspecto fazia parte da ordem vigente. Segundo Le
Goff: “Homenagem, fé e investidura articulam-se de maneira necessária e constituem
um ritual simbólico cuja intangibilidade está ligada à força e, neste caso, mais ligada
ao carácter quase sagrado da tradição do que à coerência interna do sistema.”73
. A
defesa da posição da nobreza, que apesar de ser composta por vassalos e súditos era
detentora de poder e com o alargamento do poder régio encolhia, se configurou na sua
omissão em relação aos serviços de defesa do território.
71
PEDRERO-SANCHÉZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média: textos e testemunhas. São
Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 97 72
LE GOFF, Jacques. O ritual simbólico da vassalagem. In: Para um novo conceito de Idade Média.
Lisboa: Editorial Estampa, Lda, 1979, p. 357. 73
Idem, p. 340.
34
Conclusão
É interessante iniciar a conclusão deste trabalho comentando o que inicialmente
foi pensado em relação ao seu tema. Num primeiro momento, acreditei que cantigas
escritas por um rei medieval sobre cavaleiros que não lhe obedeciam ou que não
estavam dentro dos padrões ideológicos do seu grupo social representavam a decadência
de valores outrora importantes para a formação moral da sociedade medieval. Ao longo
do processo de análise das fontes e da leitura da bibliografia percebi que a minha leitura
estava permeada por séculos de idealizações e concepções tardias do medievo. Não se
tratava da decadência dos valores cavaleirescos: se tratava de uma parte da realidade.
Afonso X, o rei sábio, trouxe através de suas cantigas diversos aspectos do seu
reinado, com a peculiaridade de serem vistos através dos olhos do rei; inclusive, aqueles
que passariam despercebidos para alguém com tamanha importância. Através das
palavras utilizadas por Afonso nas fontes analisadas foi possível perceber que as
cantigas, para o rei, eram uma forma de expressão de sentimentos e que estes
sentimentos estavam relacionados com os temas de suas composições; nas Partidas,
Afonso afirma que para se livrar do peso das preocupações, um rei deveria se dedicar à
música e à literatura74
.
As cantigas remetem à situação de disputas entre reinos cristãos e muçulmanos
na Península Ibérica e aos problemas que Afonso possuía internamente com a revolta de
parte da nobreza; foi possível perceber que para o rei a política e os sentimentos não
estavam completamente dissociados, por exemplo, quando o rei demonstra sua raiva ao
falar da ausência de alguns dos seus homens de confiança na guerra e a hilaridade da
situação de um cavaleiro que sempre pede dinheiro.
As cantigas, portanto, apresentam esta especificidade. São composições com um
caráter lúdico, voltadas para o entretenimento e, ao mesmo tempo, são um instrumento
político que foi utilizado com inteligência objetivando disseminar aquilo que o rei
aceitava como correto. Osvaldo Ceschin, na introdução da sua obra Poesia e História
nos Cancioneiros Medievais. O Cancioneiro do Infanção, explica “Por guardar certo
cunho didático, todo sirventês, de algum modo denuncia costumes, vícios, erros,
injustiças e defeitos que procura ridicularizar, para corrigir. A própria sátira pessoal
tem também esta função, embora de forma não explícita.”75
; a comicidade evocada pelo
74
O’CALLAGHAN, op. cit., p. 51. 75
CESCHIN, Osvaldo Humberto Leonardi. Poesia e história nos cancioneiros medievais. O
Cancioneiro do Infanção. São Paulo: FFLCH/USP, 2004, p. 24.
35
escárnio e maldizer, especialmente, na utilização das figuras de linguagem fornecem
este elemento de reflexão a respeito da utilização pedagógica das cantigas pelo rei. Suas
composições, transmitidas pelos jograis para diversos ambientes, seriam primeiramente
apresentadas nas suas cortes, espaço de sociabilidade da nobreza e, em especial, da
cavalaria; portanto, as cantigas foram utilizadas como anti-exemplo, aqueles cavaleiros
seriam motivo de riso e crítica dos seus companheiros do grupo dos bellatores. Neste
sentido, a escolha do rei ao expressar a situação através de cantigas, além de possuir um
caráter pessoal que possibilita certa liberdade da expressão de sentimentos, possui
também o seu caráter político, demonstrando como não é possível dissociar a cultura da
política.
As conclusões também são no nível da análise das relações de poder no reinado
de Afonso X. As composições suscitaram uma série de perguntas relativas à relação
entre o rei e a cavalaria e ao realizar um estudo do contexto foi possível perceber a
instabilidade desta situação. Diante das respostas fornecidas pela análise das fontes e
que nos permitem esclarecer esta faceta dos pensamentos de um rei é possível apontar
alguns aspectos das relações entre Afonso X e a nobreza. Primeiramente, percebemos
que havia expectativas relacionadas ao comportamento da cavalaria e as cantigas de
Afonso X demonstram que a realidade não correspondia a esta expectativa.
O rei criticava seus cavaleiros porque não atendiam aos seus chamados para
cumprir com os serviços militares, ou seja, eram desobedientes e porque alguns
chegavam ao local de batalha e fugiam para as suas terras, logo eram covardes. Jean
Flori afirma que houve uma idealização da cavalaria que não correspondia à realidade.
Podemos perceber que Afonso X também idealizava a cavalaria, de forma muito
semelhante àquela indicada por Flori, que exaltava a obediência e a coragem do
cavaleiro. Mas é necessário considerar a política centralizadora de Afonso X; logo, é
possível analisar as suas críticas sob duas perspectivas diferentes: Afonso X era um
homem do medievo e estava inserido na mentalidade da ética idealizada da cavalaria; ao
mesmo tempo, era rei e buscava atingir um poderio cada vez maior e, conseqüentemente
uma maior obediência dos seus súditos, dado verificável através do estudo do contexto.
Ao mesmo tempo, em relação à atitude da nobreza, cito Fátima Fernandes que define
que as “Relações pessoais que se desenrolam apoiadas numa rede muita ampla, a da
36
solidariedade linhagística, com regras próprias que ultrapassam os limites físicos dos
reinos”76
e, neste sentido, acrescento a autoridade do rei.
A instabilidade das relações régio-nobiliárquicas é apresentada nas cantigas
através de uma nova perspectiva. Nelas, o rei indica as faltas de seus cavaleiros como se
fossem uma exceção à regra, estes maus súditos se opõem ao que é valorizado tanto
como vassalos, quanto como cavaleiros e súditos de Castela e Leão. Para tanto, Afonso
evoca os ancestrais honrados dos cavaleiros e demonstra sua surpresa e decepção com
as faltas cometidas. Essa instabilidade provinha tanto de grupos, como retratado na
cantiga 26, como isoladamente, como nas cantigas 4 e 6; de qualquer forma suas
conseqüências eram agudas se pensarmos na falta que os nobres cavaleiros e seus
grupos de guerreiros faziam para a proteção da fronteira e as constantes batalhas. Os
fatos isolados indicam como a instabilidade das relações do rei com a nobreza
culminaria em uma revolta organizada por parte deste grupo e na homenagem vassálica
feita por estes nobres ao rei muçulmano de Granada.
À luz destes elementos de reflexão relativos à importância das cantigas como
documento das relações sociais no medievo e da instabilidade entre o rei e a nobreza é
possível perceber a presença de poderes com tendências opostas: se por um lado, a
nobreza representa os antigos costumes e a tradição que lhe eram favoráveis por lhe
garantir uma maior participação na esfera de influência dos reinos medievais; por outro
lado, a política centralizadora de Afonso X participava de tendências novas que
passaram a tomar forma no século XIII e que culminaram com as poderosas monarquias
de dois séculos mais tarde.
A convivência, pacífica ou não, de tendências opostas entre si não é um caso
raro; assim como foi constatado na análise sobre a idealização da cavalaria e sua
desconstrução por parte de Afonso X. Podemos considerar estas oposições como facetas
da convivência dinâmica no século XIII, de tendências que são opostas entre si e que
representam a diversificação do pensamento medieval. Esta convivência que, como já
foi observado, em alguns momentos era pacífica e em outros não, eram bastante
freqüentes no reinado de Afonso X, fato que demonstra a sua riqueza cultural,
permitindo a preservação da tradição e inserção de novidades.
Estes resultados permitem concluir que o reinado de Afonso no âmbito político e
das relações régio-nobiliárquicas foi instável e através da biografia do rei sabemos que a
76
FERNANDES, Fátima Regina. A nobreza, o rei e a fronteira no medievo peninsular. En la España
Medieval, nº 28, 2005, p. 156.
37
revolta da nobreza o prejudicou já que perdeu poder dentro do próprio reino culminando
com a crise sucessória, em que seu filho, o futuro rei Sancho IV, é nomeado pelas
Cortes de Castela e Leão como o responsável pelo reino no ano de 1282, mesmo tendo
se tornado rei somente após a morte de Afonso X. Mas permitem também, realçar a
riqueza cultural do reino de Afonso; muito já se falou sobre a produção científica e
literária e a nova bibliografia permite pensar na relação próxima que a cultura possuía
com a política, resultado do apreço de Afonso X pela literatura a ponto de torná-la o
modo de sua expressão maior.
38
Fontes consultadas
1. Fontes primárias
LAPA, Manoel Rodrigues. Cantigas d’Escárnio e Maldizer – edição crítica e
vocabulário. Lisboa: Edições José Sá da Costa, 1998, pp. 21-23; 29-30; 35-37;42-43.
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39
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40
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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. Tradução Amalio
Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
41
Anexos
Cantiga nº 2
Pero que ei ora mêngua de companha
nen Pero Garcia nen Pero d’Espanha
nen Pero Galego non irá comego.
E ben vo-lo juro par Santa Maria:
que Pero d’Espanha nen Pero Garcia
nen Pero Galego non iran cõmego.
Nunca cinga espada con bõa bainha,
se Pero d’Espanha nen Pero Galinha
Galego, Galego, outren irá comego.
Cantiga nº 4.
Don Meendo, vós veestes
falar migo noutro dia;
e na fala que fezestes
perdi eu do que tragia.
Ar querredes falar migo
e non querrei eu, amigo.
Cantiga nº 6.
Don Meendo, Don Meendo,
por quant’ ora eu entendo,
quen leva o baio, non leixa a sela.
Amigo de Souto Maior,
daquesto soon sabedor:
quen leva o baio, non leixa a sela.
Don Meendo de Candarei,
per quant’ eu de vós apres’ ei,
quen leva o baio, non leixa a sela.
Cantiga nº 16.
Don Foan, de quand’ ogano i chegou
primeirament’ e viu volta e guerra,
tan gran sabor ouve d’ ir a sa terra
42
que logu’ enton por adaíl filhou
seu coraçon; e el fez-lh’i leixar,
polo mais toste da guerr’ alongar,
prez e esforço – e passou a serra.
En esto fez come de boõ sen:
en filhar adaíl que conhocia;
que estes passos maos ben sabia;
e el guardô-o logu’ enton mui ben
deles e fez-lhi de destro leixar
lidar [os outros e el ir sa via].
O adaíl é mui [gran] sabedor,
que o guiou per aquela carreira:
por que [o] fez desguiar da fronteira
e en tal guerra leixar seu senhor;
e direi vos al que lhi fez leixar:
ben que poderá fazer por ficar,
e feze-o poer aalen a Talaveira.
Muito foi ledo, se Deus me perdon,
quando se viu daqueles passos fora
que vos já dix’, e diss’ en essa ora:
- Par Deus, adaíl, muit’ ei gran razon
de sempr’ en vós mia fazenda leixar;
ca non me mova d[aqu]este logar,
se já mais nunca cuidei passar Lora.
E ao Demo vou acomendar
prez deste mundo e armas e lidar,
ca non é jog’ o de que omen chora!
Cantiga nº 24.
O que foi passar a serra
e non quis servir a terra,
é ora, entrant’ a guerra,
que faroneja?
Pois el agora tan muito erra,
maldito seja!
O que levou os dinheiros
e non troux’ os cavaleiros,
é por non ir nos primeiros
43
que faroneja?
Pois que vem cõnos prestumeiros,
maldito seja!
O que filhou gran soldada
e nunca fez cavalgada,
é por non ir a Graada
que faroneja?
Se é ric’omen ou á mesnada,
maldito seja!
O que meteu na taleiga
pouc’ aver e muita meiga
é por non entrar na Veiga
que faroneja?
Pois chus mol[e] é que manteiga,
maldito seja!
Cantiga nº 26.
O que da guerra levou cavaleiros
e a sa terra foi guardar dinheiros,
non ven al maio.
O que da guerra se foi com maldade
[e] a sa terra foi comprar erdade,
non vem al maio.
O que da guerra se foi com nemiga,
pero non veo quand’ é preitesia,
non ven al maio.
O que tragia o pano de linho,
pero non veo polo San Martinho,
non ven al maio.
O que tragia o pendon en quiço
e non ten de seu padre o viço,
non ven al maio.
O que tragia o pendon sen oito
e a sa gente non dava pan coito,
non ven al maio.
44
O que tragia o pendon sen sete
e cinta ancha e mui gran topete,
non ven al maio.
O que tragia o pendon sen tenda,
per quant’ agora sei de sa fazenda,
non ven al maio.
O que se foi com medo dos martinhos
e a sa terra foi bever los vinhos,
non ven al maio.
O que, com medo, fugiu da fronteira,
pero tragia pendon sen caldeira,
non ven al maio.
O que [ar] roubou os mouros malditos
e a sa terra foi roubar cabritos,
non ven al maio.
O que da guerra se foi com gran medo
contra sa terra, espargendo vedo,
non ven al maio.
O que tragia pendon de cadarço,
macar non veo eno mês de março,
non ven al maio.
O que da guerra foi per retraúdo,
macar em Burgos fez pintar escudo,
non ven al maio.
Cantiga nº 35.
Don Gonçalo, pois queredes ir daqui para Sevilha,
por veerdes voss’ amiga, e[u] nõno tenh’ a
[maravilha:
contar-vos-ei as jornadas légoa [e] légoa,
[milh[a] e milha.
E ir podedes a Libira e torceredes já quanto,
E depois ir a Alcalá se[n] pavor e se[n] espanto
Que vós ajades d’i perder a gamacha nen
[no manto.
45
E ua cousa sei eu de vós e tenho por mui gran brio,
e poren vo-lo juro muit[o] a finas e a fio:
que sempre avedes a morrer en invern’ o[u]
[en estio.
Eu poren[de] vo-lo rogo e vo-lo dou em conselho
que vós, entra[n]te a Sevilha, vos catedes no
[espelho
e non dedes nemigalha por mercee de Joan Coelho.
Por que vos todos amassem sempre vós muito
[punhastes,
boõs talhos en Espanha metestes, pois i chegastes,
e quen se convosco filhou, sempre vós d’ El
[gaanhastes.
Sen esto, fostes cousido sempre muit’ e mesurado,
De todas cousas comprido e apost’ e ben talhado,
E [e]nos feitos ardido e muito aventurado.
E pois que vossa fazenda teedes ben alumeada
e queredes ben amiga fremosa e ben talhada,
non façades dela capa, ca non é cousa guisada.
E pois que sodes aposto e fremoso cavaleiro
g[u]ardade-vos de seerdes escatimoso ponteiro,
ca dizen que baralhastes com [Don] Joan
[Coelheiro.
Con aquesto que avedes mui mais ca outro
[compristes;
u quer que mão metestes, guarecendo, em saístes;
a quen quer que cometestes, sempre mal o
[escarnistes.
E non me tenhades por mal, se en vossas
[armas tango:
que foi das duas [e]spadas que andavam en uu
[mango?
Ca vos oí eu dizer: - Con estas pato ei e frango.
E ar oí-vos eu dizer que a quen quer que chegassen
Com esta vossa espada, que nunca se trabalhassen
Jamais de o guareceren, se o ben non agulhassen.
46
E por esto [vos] chamamos nós o das duas
[espadas,
por que sempre as tragedes agudas e amoadas,
con que fendedes as penas, dando grandes
[espadadas.
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