O CANTO E A EVOLUÇÃO LITÚRGICAAssessor: Pe. José Marcos de Medeiros Dantas
“Quanto eu chorei por teus hinos e cânticos, aos suaves acentos das vozes de tua Igreja, que me penetravam de
vivas emoções” (Santo Agostinho, Confissões)
A música, pela suavidade da melodia, pela harmonia dos acordes e dos arranjos
instrumentais, pela beleza dos solos, pelo empolgamento dos coros, encanta. (...)
Por força dos sons e do ritmo, ela provoca a participação, ao mesmo tempo, em termos
de emoção, de animação e de unanimidade, ajustando-nos e nos projetando na
imensidão do mistério de Deus, no seio da Trindade-comunhão, em Jesus Cristo, cuja
presença evoca com peculiar eficácia” (Doc. 43, sobre a animação da Música Litúrgica no
Brasil)
O canto na história de Israel e na comunidade primitiva
De origem nômade o povo de Israel é resultado de uma encruzilhada de culturas e civilizações. Os
primeiros patriarcas conviveram desde a Babilônia – hoje região correspondente ao Iraque – ao Egito. Em
seguida experimentaram a terra prometida, pouco maior que o atual Estado de Israel, perpassando pelo
exílio de babilônico de Nabucodonosor até reingressar a terra atual.
Neste longo espaço de tempo muitas culturas influenciaram o povo de Israel: babilônicos, assírios, egípcios, persas, fenícios, gregos e romanos. E foi em meio a esse entrelaçamento cultural que este povo teve
seu desenvolvimento litúrgico, formando uma identidade musical que tem nos Salmos e Cânticos a
maior representatividade.
Na tradição litúrgica do povo de Israel, os músicos são
descendentes da tribo de Levi. Os levitas músicos eram
encarregados do canto e de tocar os instrumentos. Para serem
admitidos a esse ofício litúrgico, os candidatos passavam por uma
dupla prova acerca de suas aptidões musicais e sobre a
pureza de origem, embora, na prática, fossem considerados
como classe inferior. Os grupos eram tradicionalmente
constituídos por famílias. Tinham um primeiro chefe de música que
organizava o serviço de sua secção no culto e um mestre do
coro que dirigia a salmodia e dava a entrada aos instrumentos.
Exemplo de Cânticos na Liturgia Judaica
Cântico de Moisés e Miriam (Ex 15);
o livro do Cântico dos Cânticos;
os Salmos de Davi e Salomão;Magnificat;
o Benedictus;Nunc Dimittis;
os hinos apostólicos cuja centralidade é o Cristo.
O canto torna-se um instrumento que conduz uma intercomunicação
do fiel com o transcendente.
O surgimento do canto litúrgico na época dos Santos Padres
Para os Santos Padres o canto contribui pedagogicamente tanto para o processo de conversão quanto à cura física e espiritual.
Esta práxis pedagógica foi relevante para o surgimento do primeiro ensaio de pastoral da música litúrgica, efetuado já nos séculos IV-V
por Ambrósio de Milão e seu discípulo Agostinho de Hipona. O primeiro, após uma
rica experiência espiritual no Oriente, introduziu no Ocidente um novo estilo de
entoação dos salmos, mais vivo e dinâmico, feito alternadamente por versos entre os dois
coros da assembleia.
Entretanto, foi o próprio Agostinho o
propagador do canto litúrgico popular. Ele
não apenas incentivou o povo a cantar, mas
também sabia escutar e apreciar, fazendo
inúmeros comentários a respeito dos Salmos nos quais enfatizava o canto como uma via para a edificação das
almas.
Neste período em que viveu Agostinho (séc. IV e V) a comunidade cristã alcançou o ápice da organização ministerial em relação
às assembleias, brotando o chamado pluralismo litúrgico-musical e,
provavelmente, as Scholae Cantorum . Surgem ainda nesta diversidade os rituais dos Sacramentos, o Ofício Divino, o Ano
Litúrgico e, consequentemente, a introdução nos ritos de várias formas de canto.
O que foi a Scholae Cantorum?Foi uma Escola inicialmente
formada por clérigos, incluindo em suas fileiras o
“cantor” e um ou mais solistas. Foi fundada por
Gregório Magno na Basílica de São Pedro, em Roma, no século VI. Além do canto e
da música, os cantores estudavam a gramática e outras artes necessárias à
compreensão do texto sagrado (CNBB, op. cit. , p. 162).
O canto na época Medieval
A romanização da Igreja e da Liturgia trouxe grande organização
e aperfeiçoamento tanto no rito como no espaço litúrgico.
Na época de Gregório Magno, as Scholae Cantorum tornaram-se mais aprimoradas,
alcançando o seu ápice. Situadas entre o povo e o presbitério eram formadas de mestres altamente capacitados na área do canto que executavam
melodias ricas e complexas. Era o surgimento do canto gregoriano ou “canto chão”, também
denominado de monódico. Este era o canto da Urbe, próprio dos ambientes romanos e seus
especialistas comumente eram monges e clérigos.
Curiosamente, entre os séculos V-VIII onde o canto gregoriano adquiriu maior relevo, gradativamente os
demais estilos foram perdendo sua força, com
exceção do canto ambrosiano, que
permaneceu vivo na tradição. O canto chão
tornou-se oficial no âmbito eclesial, sendo considerado
o modelo supremo da música sacra, ou o mais
perfeito grau na expressão da Liturgia Romana .
Posteriormente, surge a Polifonia ou canto polifônico. Ao contrário do canto chão,
esta “privilegia uma arte refinada na mistura dos
timbres e harmonias, tornando as músicas mais estéticas que litúrgicas”
(CNBB, 2002, p. 60). Foi neste contexto que no século XI
apareceu à figura do monge Guido d’Arezzo. Homem de espetacular inteligência, a
partir de um hino dedicado a São João Batista, elaborou as escalas, a tonalização e as pautas musicais, tais como
temos hoje.
A música ritual no período moderno: do Concílio de
Trento ao Sínodo de Pistóia
O Concílio de Trento em detrimento do perigo da
Reforma Protestante buscou salvaguardar a tradição
litúrgica, fazendo as devidas reformas, especialmente, no que diz respeito à doutrina
dos Sacramentos.
No campo da música ritual, constata-se uma forte influência da arte
barroca como uma atmosfera de triunfo e
de festa, com exuberância pontifical
de chefes de coro e organistas, destacando-se mais que o próprio
presidente da celebração. O órgão
torna-se um instrumento rei, sendo concorrente até mesmo
do altar (cf. CNBB, 2002, p. 61).
no século XVIII a Igreja começa a sentir um anseio de maior participação comunitária. Grande era a insatisfação. Surge então o Sínodo de Pistóia (1786) com o propósito
de reformar alguns pontos, dentre os quais a participação dos fiéis e no referente a
música, melodias mais simples e adequadas à linguagem popular.
O Movimento LitúrgicoA reforma de Guéranger na abadia beneditina
de Solesmes fez eclodir o Movimento Litúrgico, fundamentalmente importante para
uma abertura litúrgica mais eficaz e participativa, levando os fiéis a alimentarem
melhor a própria vida espiritual.
No Brasil este movimento chegou através de grupos provenientes da Ação Católica em 1933. Contudo, não teve êxito
entre as camadas populares,
restringindo-se aos seminários,
mosteiros e à própria Ação
católica.
A música litúrgica do Vaticano II aos dias de hoje
Se o movimento litúrgico foi a febre eclesial, o Vaticano II foi
a grande revolução. A constituição dogmática
Sacrossanctum Concílium não apenas renovou a liturgia, mas
também tornou dinâmica e participativa, especialmente em relação ao rito que ao ser
traduzido para a língua vernácula, fez da assembléia não uma mera espectadora,
mas também parte integrante e essencial da celebração do
Mistério Pascal.
Outro aspecto relevante foi a compreensão do canto e da música como uma vivência simbólica da experiência da fé do Povo de Deus. Ambos são símbolos importantes do mistério de Cristo e da
Igreja e não meros ornamentos exteriores.
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