7/22/2019 Nelson Rodrigues [=] Um menino de paixões de ópera
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Nelson RodriguesNelson RodriguesNelson RodriguesNelson Rodrigues
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Bem me lembro dos meus cinco, seis anos. O
vizinho era, então, todo o meu horizonte humano. Ainda vejo as pessoas que moravam ao nosso lado,
ou em frente, ou na esquina. Os sujeitos se
cumprimentavam assim: – “Bom dia, vizinho.
Como vai, vizinho?”. E a simples palavra tinha
uma tensão, um frêmito, uma magia. Era como se
“vizinho” fosse um enfático nome wagneriano, umaespécie de Lohengrin prodigioso.
O mundo era aquela meia dúzia de vizinhos.
E justamente a Lili veio morar duas ou três casas
adiante da minha. Hoje ninguém se chama Lili. Lili
é um nome nostálgico, obsoleto, espectral. Naquele
tempo, não. Em cada rua havia uma Lili, ou duasou, até, três. Havia um pó-de-arroz que se
chamava Lili . Minto. Não era Lili , era Lady .
Também havia Odetes por toda a parte. Ao passo
que, hoje, somos um povo de poucas Odetes.
Lili. Conheci o nome antes da pessoa. Um
dia, eu estava na mesa, tomando café com
macaxeira. E, então, alguém falou em Lili. Achei o
nome lindo. Lili. Aquilo ficou gorjeando em mim.
Faço, porém, a ressalva: – aos cinco, seis anos,
não se faz nenhuma seleção auditiva. Para mim,
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qualquer nome era bonito. Morava na rua Dona
Maria um “seu” Sepúlveda. Era capitão da GuardaNacional e tinha bigodões. Sepúlveda, ou qualquer
outro nome, vem com um halo de mistério, de
graça e de espanto. Que vontade tive de me
chamar Sepúlveda!
E Lili foi, exatamente, a minha primeira
paixão de menino. Antes de vê-la, eu a amei. Ameio puro nome, o puro som. Era a primeira Lili da
minha infância. Cinco anos tinha eu. Ou seis. Vá
lá, seis. Sentia que aquele nome insinuava um
mistério ou, mais do que isso, um destino. Fui
varado por um sentimento de pena e de medo.
Como se Lili fosse alguém que já morreu e que sóaparece, por um momento, na memória dos
espelhos.
Até que, uma manhã, ou tarde, sei lá, eu a
vi. E, de repente, Lili deixou de ser apenas um
som. Passava a ter um olhar, um perfil, um gesto.
E era gorda. Lili gorda. Hoje, ninguém vê uma
gorda sem lhe acrescentar um ponto de
exclamação. Vivemos uma época tão sem busto,
tão sem quadris, que ninguém entenderia a Lili de
1918. Os homens eram magros, tinham a face e o
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peito cavos. Mas a mulher podia ser gorda, ou,
melhor, devia ser gorda. A partir dos catorze anos,os quadris e os bustos explodiam. Simples
adolescentes tinham os flancos tão pesados que
precisavam se pôr de perfil para atravessar as
portas. Lili era a gorda em flor, como a mulher do
Lemos, e outras, e outras.
Agora já sei a minha verdadeira idade, naépoca: seis anos. Sim, tinha seis anos quando fui
matriculado na escola pública, turno da manhã. A
casa de Lili ficava no caminho da escola. E não era
bem casa, ou por outra, eu só me lembro da janela,
em que ela se debruçava, pendida de sonho. (Eu
diria que, em nossos dias, a televisão matou a janela.) Mas, como ia dizendo: todas as manhãs
passava eu com o meu livro, o meu caderno, meu
lápis e a merenda (geralmente uma banana).
Quando via Lili, baixava a cabeça, transido de
vergonha, e deslizava rente à parede. O patético da
escola era quando eu passava na ida e quando
passava na volta. Se ela estava na janela, a minha
felicidade era mortal.
Lembro-me de que, uma manhã, a professora
me chamou para o quadro-negro. Eu devia
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desenhar uma flor, ou pintar, não sei. Quando fui
apanhar o giz, a professora me puxou: – “Menino,você não lava as orelhas, menino?”. E fez um
escândalo para a classe: – “Nunca tomou banho?”.
Exultava: – “Olha aqui o pescoço! Vem cá. Deixa
eu ver as unhas. Mostra, anda!”. Naquele
momento, tive a sensação da nudez pública. Nunca
me senti tão nu. A professora está dizendo: – “Seaparecer aqui outra vez de orelha suja, fica de
castigo”. E eu só pensava em Lili. Que alguém
fosse dizer a Lili: – “Menino porco”. (Estou
falando muito de mim mesmo.)
Mais alguns dias e começo a ouvir gritos.
Gritos de mulher varavam a rua, de ponta a ponta.Toda a vizinhança veio para a janela. E ouvi
alguém dizer: – “É a Lili que está apanhando”. A
menina tinha um pai de Amor de perdição , sim,
um pai de Camilo Castelo Branco. Minha mãe
pergunta: – “Está sentindo alguma coisa?”. Eu
devia estar branco. Pouco depois saí para a escola.
E pela primeira vez parei na calçada de Lili. O pai
batia de cinto. Da rua, ouvia-se o cinto cantar na
carne. A menina berrava: – “Não, papai, não!”. E
o velho, possesso: – “Engole o choro! Engole o
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choro!”.
Aquilo ficou em mim para sempre. Engole ochoro. Eu, fascinado, não saía do lugar. E, súbito, o
velho parou de bater. Lili ficou gemendo, baixo e
doce: – “Papaizinho, papaizinho!”. E havia uma
voluptuosidade triste no seu lamento. Só então saí
correndo para o colégio.
Chego no colégio. A professora me chama: –“Deixa eu ver. Vem cá. Limpou as orelhas? E o
pescoço?”. Baixei a vista: – “Tomei banho, sim”.
Pegou-me pelo braço e me sacudiu: – “Diga sim,
senhora. Não tem educação?”. E eu: – “Sim,
senhora”. Mas ela ainda bufava: – “Você não se
esfrega direito. Precisa aprender a tomar banho”.Passou. Fui para meu banco. Até o fim da aula teci
toda uma fantasia fúnebre. Sonhava com a minha
morte. Se eu morresse, Lili teria pena de mim,
amor por mim.
Quando eu passei pela casa de Lili, ela estava
na janela. Cantarolava: – “Cobre, me cobre, que
eu tenho frio”. Claro que me escapava toda a
insinuação erótica do verso. Vim namorando o
som. “Cobre, me cobre, que eu tenho frio.” Em
casa, falavam da surra de Lili. Conheci, então,
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toda a história. Lili amava um rapaz do bairro,
Paulinho Varanda. (Encantou-me esse nome bucólico, ventilado, paisagístico.) E o pai não
queria o namoro.
Paulinho Varanda não seria pior nem melhor
do que ninguém. Mas tinha um defeito hediondo
para a época: era tuberculoso.
Estou vendo o Paulinho Varanda. Tinha acara crivada de espinhas como bexiga. Ficava
horas na esquina, estivesse a pequena na janela ou
não. Quando estava resfriado, enrolava um lenço
no pescoço. Ainda o ouço tossindo. E tinha, na
tosse, o olho enorme do asfixiado. Talvez Lili o
amasse por isso mesmo, pela tuberculose e pelasespinhas. Devia morrer de ternura quando o via
torcer-se e retorcer-se, em acessos medonhos.
Um dia, na volta da escola, o Paulinho
Varanda me segura. Pergunta: – “Quer ganhar um
tostão?”. Respondi, assustado: – “Quero”. E ele: –
“Está vendo aquela moça? Que está na janela? Vai
lá e entrega isso. Toma”. Deu-me o tostão e um
bilhete. Numa felicidade total, corri. Disse: –
“Aquele moço mandou”.
Lili apanhou rápido o bilhete e fugiu da
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janela.
Até hoje não sei o que dizia o bilhete. Deviaser um apelo muito triste, ou um adeus, quem
sabe? Só sei que, de noite, toda a rua começou a
ouvir os gritos de Lili. Desta vez, não era surra.
[O GLOBO, 12.12.1967]
APEDEUTEKA GUINEFORT 2014
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