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O ELEITORADO, OS PARTIDOS E O REGIME AUTORITRIO BRASILEIRO1
I
A possibilidade de compreender e avaliar a histria recente dos partidos polticos
no Brasil supe, naturalmente, a possibilidade de diagnosticar com correo certos
aspectos mais fundamentais do processo poltico vivido pelo pas. Contrariamente aos
modismos correntes em determinados quadrantes das cincias sociais contemporneas,
receosos de "evolucionismos" ou interpretaes "lineares", sou da opinio de que se
impe, na busca de diagnsticos como esse, enfrentar o desafio de se elaborar uma teoria
adequada da mudana poltica na poca moderna, para que se possa, assim, eventualmente
capturar a lgica em jogo em qualquer processo particular.
Seria obviamente imprprio pretender discutir aqui os muitos problemas
envolvidos na formulao de tal teoria, especialmente as dificuldades de ordem
epistemolgica que surgem na articulao entre a dimenso histrica dos fenmenos
sociais e os desgnios "estruturais" e formalizantes contidos em qualquer esforo terico
dificuldades estas que se colocam de forma particularmente clara quando se trata de uma
teoria da mudana.2 Creio ser indispensvel, porm, tratar de explicitar o que entendo
corresponder natureza do regime autoritrio brasileiro de 1964, e parece til, com esse
propsito, apresentar sucintamente as grandes linhas de certa reflexo terica que procurei
desenvolver em trabalhos anteriores com respeito ao tema geral da mudana poltica a
partir da crtica literatura sobre "desenvolvimento poltico.3
1 Preparado originalmente para o painel Transformaes Sociais no Brasil Ps-64 do CongressoInternacional de Americanistas realizado em Manchester, Inglaterra, em outubro de 1982. Posteriormentepublicado em Bernardo Sorj e Maria Hermnia Tavares de Almeida (orgs.), Sociedade e Poltica no BrasilPs-64, So Paulo, Editora Brasiliense, 1983, e includo em Fbio W. Reis, Mercado e Utopia: TeoriaPoltica e Sociedade Brasileira, So Paulo, Edusp, 2000.2 Ver, a respeito, "Mudana, Racionalidade e Poltica", tambm em F. W. Reis, Mercado e Utopia..
3 Ver especialmente "Solidariedade, Interesses e Desenvolvimento Poltico" e "Brasil: 'Estado eSociedade' em Perspectiva", tambm em F. W. Reis, Mercado e Utopia.
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A discusso a empreendida, partindo da anlise abstrata dos dilemas envolvidos na
ao coletiva e em qualquer forma de organizao poltica, baseia-se nas relaes entre
"sistemas de interesses" e "sistemas de solidariedade" tal como estabelecidas por
Alessandro Pizzorno em artigo de anos atrs4 para chegar noo de "mercado poltico"
como aquela que permite sintetizar tais relaes. Propem-se, ao cabo, trs fases ouestdios analiticamente distinguveis no processo de desenvolvimento poltico,
denominadas "poltica pr-ideolgica", "poltica ideolgica" e "poltica ps-ideolgica". O
critrio para a distino entre tais estdios o grau de expanso do "mercado poltico", o
qual est condicionado pelo carter mais ou menos envolvente ou restritivo das formas de
solidariedade prevalecentes, que por sua vez condicionam as feies assumidas pela
confrontao de interesses no processo poltico. A anlise dos obstculos expanso
concomitante da solidariedade territorial e do "mercado poltico" permite incorporar
coerentemente os fatores de ordem estrutural, institucional e scio-psicolgica geralmente
considerados de maneira fragmentria na literatura dedicada ao tema do desenvolvimento
poltico.
Assim, a expanso da solidariedade territorial e do mercado poltico numa
coletividade expanso cujo grau mximo corresponderia condio hipottica descrita
como poltica ps-ideolgica, caracterizada pelo livre jogo de interesses individuais
vista como embaraada sucessivamente, nas duas outras fases, por obstculos de natureza
estrutural e sociopsicolgica tpicos de cada fase. A poltica pr-ideolgica ou tradicional
se distingue pela proeminncia assumida por problemas relativos emergncia e
consolidao da aparelhagem estatal enquanto ncleo de poder efetivo e coextensivo, que
se refere capacidade de fazer valer as decises que dele emanem, coletividade como
um todo, em suas dimenses social e territorial. Os obstculos que se opem ao processo
correspondente, o qual chamo "institucionalizao do poder", referem-se ao substrato
material (condicionado por problemas de ordem ecolgica e por fatores como a estrutura
de comunicaes e a intensidade e o carter das transaes econmicas) necessrio ao
desenvolvimento e penetrao dos instrumentos organizacionais e dos smbolos de toda
ordem nos quais se funda a pretenso de determinada aparelhagem governamental de vir a
constituir-se em centro de decises efetivas em todo o mbito de determinado territrio.
4 Alessandro Pizzorno, "Introduzione allo Studio della Partecipazione Politica", Quaderni di Sociologia, 15,3-4, julho-dezembro de 1966.
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Um segundo tipo de obstculos plena vigncia do mercado poltico refere-se
existncia de focos particulares de solidariedade capazes de competir, por sua natureza,
com a prpria coletividade pela lealdade de seus membros. No contexto representado pela
passagem da poltica tradicional ideolgica, este tipo de obstculos assume especial
relevncia, situando o problema da "institucionalizao da autoridade" em conexo com airrupo de demandas de igualdade e com o questionamento concomitante da ordem
poltica erigida no estdio anterior. 0 substrato para a emergncia de tais problemas est
dado pelo processo de mobilizao social e pelo aparecimento de grupos tais como as
classes sociais, enquanto focos de solidariedade universalstica, em substituio aos
vnculos de natureza pessoal e clientelstica tpicos da poltica pr-ideolgica. Tais grupos
se caracterizam por serem grupos "multifuncionais" de objetivos difusos, que
correspondem a subculturas envolventes, distinguindo-se, ademais, pela natureza no
voluntria (ou baseada em adscrio, para recorrer expresso com freqncia utilizada
na traduo do termo ingls ascription) da participao de seus membros. Um aspecto
crucial da dinmica da expanso do mercado poltico situado pela emergncia do problema
da igualdade concomitantemente com a relevncia assumida por tais grupos tem a ver
precisamente com as presses no sentido de levar s ltimas conseqncias o processo
deflagrado pela mobilizao social, em que as relaes reguladas por princpios
adscritcios so parcialmente substitudas por outras reguladas pelos princpios
potencialmente igualitrios do mercado.
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Na perspectiva propiciada por esse esquema, o ponto de partida para a discusso
dos regimes autoritrios em geral consiste em conceb-los como vicissitudes da poltica
ideolgica. As condies mais favorveis ocorrncia de regimes autoritrios do tipo que
tem caracterizado, em tempos recentes, alguns pases da Amrica Latina e da Europa
meridional encontram-se nas fases intermedirias da poltica ideolgica maisprecisamente, nas circunstncias que se ajustam noo de "pretorianismo de massas", de
Samuel Huntington.5 A, a emergncia dos interesses e dos focos de solidariedade
correspondentes classe trabalhadora e aos "setores populares" em geral vem pr em
xeque os arranjos institucionais antes precrios que resultam da incorporao prvia das
classes mdias ao processo poltico. A marca decisiva da poltica ideolgica como tal
sendo o surgimento das classes sociais (e de outros grupos multifuncionais, tais como os
grupos ou identidades tnicas) como o foco principal do processo poltico, o pretorianismo
de massas e o autoritarismo do tipo em questo como resposta a ele corresponde a um
momento ou configurao de traos particular, que diz respeito mobilizao das classes
populares. Diversos fatores, entre os quais avulta em importncia o grau em que a
assimilao prvia das classes mdias se tenha consolidado sob a forma de um controle
efetivo do processo poltico por parte delas ou resultado, ao invs disso, em sua insero
insegura numa estrutura sociopoltica em que se preserve o carter basicamente tradicional
e oligrquico, respondem pelas chances de que o processo geral se encaminhe seja no
rumo do "tipo ideal" de poltica ideolgica (sob a forma, por exemplo, da poltica de
partidos ideolgicos, tal como se encontra na Frana da IV Repblica ou na Itlia da
mesma poca), seja no do padro de regimes bonapartistas ou de outros regimes "fortes"
controlados pelos militares. Ademais, a alternativa assim expressa pode no ser uma
verdadeira alternativa, correspondendo antes a duas etapas distintas, nas quais a poltica de
partidos ideolgicos culminaria desenvolvimentos que passariam atravs do bonapartismo
ou do autoritarismo, entre outros "arranjos" possveis.
5 Samuel P. Huntington, Political Orderin Changing Societies, New Haven, Yale University Press, 1968,especialmente captulo 4.
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Como quer que seja, distintas formas ou variaes do prprio autoritarismo iro
depender da medida em que o processo de mobilizao e ativao poltica das classes
populares tenha podido desdobrar-se anteriormente aos eventos que levem ao efetivo
estabelecimento do regime autoritrio. Traos de um regime autoritrio tais como o fato de
depender amplamente da coero direta ou de poder contar, ao contrrio, com amanipulao ideolgica e simblica, bem como muito do que tem a ver com os prospectos
de estabilidade e permanncia do regime, podem ser referidos ao amadurecimento e
capacidade de afirmao poltica dos setores populares. Isso pode ser visto como forma
diferente de dizer que muito dos prospectos de institucionalizao que eventualmente se
abrem para os regimes autoritrios ou seja, de que estes venham a mostrar-se capazes de
se organizarem de maneira a assegurar estabilidade sociopoltica sobre a base de uma
"frmula poltica" que permanea autoritria e restritiva no que diz respeito participao
dos setores populares depende da realizao mais ou menos cabal daquilo que a
perspectiva marxista tende a ver como o processo de formao de classe relativamente
classe trabalhadora e, portanto, do conjunto de traos ideolgicos, intelectuais e
sociopsicolgicos (envolvimento e conscincia poltica, informao sobre assuntos de
interesse poltico, capacidade de vincular e estruturar informao sobre questes de
natureza heterognea e de perceber ou estabelecer sua relevncia poltica) que tenderiam a
associar-se com o cumprimento daquele processo.
II
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O quadro composto pelas principais proposies envolvidas nessa concepo das
relaes entre mobilizao social e formao de classe, de um lado, e a viabilidade, as
chances de estabilizao e outras caractersticas dos regimes autoritrios, de outro, tem,
como parece claro, uma feio geral bastante ortodoxa e mesmo clssica. Apesar de
numerosas polmicas mais ou menos carregadas de equvocos que se podem encontrarnesse terreno6 como, de resto, em tudo o mais nas cincias sociais , tais proposies se
acham pelo menos implcitas, por exemplo, na famosa passagem de Marx sobre os
camponeses franceses encontrada em O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte, a qual pode
ser lida como um enunciado da relao entre a mobilizao social e a formao de classes
sociais efetivas, alm de inscrever-se num contexto em que se trata precisamente de
explorar a relao entre tais processos e a ocorrncia de experimentos autoritrios de certo
tipo.7 Parece possvel, contudo, avanar alm desse ponto se se traduzem aquelas
proposies nos termos de alguns instrumentos conceituais contemporneos e se examina,
a partir da, sua articulao em forma analiticamente mais precisa.
6 Tenho em mente especialmente certo tipo de crtica dirigido por autores marxistas, particularmente latino-americanos, chamada teoria da modernizao e ao uso feito de conceitos como o de mobilizao social.Um exemplo dessa perspectiva pode ser encontrado em Francisco Weffort, 0 Populismo na PolticaBrasileira,Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, captulo 6, especialmente pp. 128 e seguintes e 136.7 Veja-se, por exemplo, Robert C. Tucker (ed.), The Marx-Engels Reader,Nova York, W. N. Norton, 1972,pp. 515-516.
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Um modelo conceitual claramente relevante o modelo da "centralidade"
desenvolvido por cientistas polticos americanos para dar conta dos dados sobre a
participao poltica nos Estados Unidos. Tal como empregada nos estudos americanos, a
noo de centralidade da posio social global de um indivduo algo complexa,
envolvendo uma dimenso "objetiva" e outra "subjetiva". A dimenso objetivacorresponde, de um lado, posio socioeconmica (a subdimenso "vertical" da
centralidade objetiva), bem como, de outro, a coisas tais como experincia urbana e
amplitude da rede de interao social (a subdimenso "horizontal"), enquanto a dimenso
subjetiva diz respeito a aspectos sociopsicolgicos e intelectuais tais como o grau de
informao sobre questes polticas e o sentimento de definio algo imprecisa de
desenvoltura e segurana subjetiva nos contatos sociais.8 Para nossos propsitos,
importante salientar a maneira pela qual a noo de centralidade se mostra paralela de
mobilizao sociopoltica, que tambm envolve tanto uma dimenso estrutural-ecolgica,
basicamente referida ao processo de urbanizao (com a correspondente intensificao da
comunicao social), quanto dimenses de natureza sociopsicolgica, intelectual e
ideolgica, tendo a ver com fenmenos como maior capacidade de "empatia", maior
envolvimento sociopoltico geral, maior propenso a atitudes politicamente inconformistas
etc. Na verdade, uma das crticas que tm sido dirigidas ao uso feito da noo de
mobilizao social refere-se tendncia a mesclar, com o emprego de um termo nico,
dimenses diversas de um processo de grande complexidade, tendncia esta que
normalmente redunda em se supor que uma direo ou forma especfica de ativao
poltica (inconformista, "contestadora", "radical") seja a conseqncia predeterminada das
mudanas de tipo estrutural-ecolgico que conformam o substrato daquele processo.
8 A clssica apresentao sinttica da teoria da centralidade se encontra em Lester W. Milbrath, PoliticalParticipation, Chicago, Rand McNally, 1965. Para a definio da dimenso subjetiva do conceito, veja-se p.111.
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De outro lado, como bem sabido tendo sido elaborado no notvel artigo de
Pizzorno acima citado9 , o modelo da participao poltica referido centralidade pode
ser contrastado ao modelo da participao baseado na idia de conscincia de classe.
Enquanto o primeiro sustenta que a participao maior quanto maior o grau de
centralidade da posio dos indivduos, o ltimo prope que "a participao poltica maior quanto maior (mais intensa, mais clara, mais precisa) a conscincia de classe".10
de interesse assinalar que, apesar de ambos os modelos destacarem a relao quer da
centralidade da posio social ou da conscincia de classe com a intensidade da
participao poltica, sem nada afirmarem com respeito direo desta ltima (ou seja, seu
carter "radical" ou "conservador"), eles correspondem de perto a duas maneiras de ver o
problema da participao poltica que so moeda corrente fora do campo das cincias
sociais e que se interessam sobretudo precisamente pela direo da participao. Elas
poderiam designar-se como o modelo da "participao divergente" e o da "participao
convergente". 0 primeiro corresponderia a uma concepo difundida da poltica ideolgica,
na qual partidos e movimentos polticos se distribuiriam claramente ao longo de um eixo
esquerda-direita e apelariam a fraes ideologicamente orientadas do eleitorado (ou da
populao em geral) que se ajustariam estrutura das classes sociais. J o segundo envolve
uma concepo idealizada e conservadora do processo poltico na qual, medida que os
indivduos sejam cabalmente mobilizados e venham a se tornar sofisticados e "racionais"
na avaliao daquele processo, caberia esperar que eles viessem a se tornar tambm cada
vez mais integrados ao sistema sociopoltico, prontos a apoiarem os "verdadeiros
interesses da nao".11
9 Pizzorno, "Introduzione".10 Ibidem, p. 261.
11 Ilustrao exemplar dessa perspectiva se tem na mensagem dirigida pelo presidente Ernesto Geisel aoCongresso brasileiro em maro de 1976, onde a possibilidade da existncia de partidos polticos "autnticos"no Brasil remetida a um momento futuro em que o pas venha a ter um eleitorado composto de cidados"conscientes, racionais e sociabilizados".
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Pois bem. Diferentemente do mero contraste entre os modelos da centralidade e da
conscincia de classe, os padres e formas de participao poltica deparados no desenrolar
do processo de mobilizao parecem exigir, para sua adequada explicao, uma articulao
relativamente complexa daqueles dois modelos que: 1) corrobora a relevncia explicativa
do conceito de mobilizao sociopoltica, destacando uma forma especfica de associaoentre as dimenses estrutural-ecolgica e intelectual-psicolgica (ideolgica) daquele
conceito tal como se traduzem em termos das dimenses de "centralidade"; 2) permite ter
em conta no apenas a intensidade da participao poltica, mas tambm sua direo
conformista ou inconformista. Concretamente, a proposio bsica a de que os fatores
correspondentes s diferentes dimenses da noo de centralidade exercem um papel
causal no apenas diretamente com respeito participao poltica (ou especificamente
eleitoral), mas tambm ao condicionarem, em ampla medida, as probabilidades de que o
modelo de conscincia de classe possa ele prprio atuar sobre aquela participao.
Vejamos como se pode desdobrar analiticamente essa proposio.
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Se tomamos as duas subdimenses "objetivas" da noo de centralidade (a vertical,
que diz respeito a posio socioeconmica, e a horizontal, que diz respeito sobretudo a
experincia urbana), podemos ver que os limites extremos de posies altamente
"perifricas" ou altamente "centrais" correspondem respectivamente aos estratos baixos
rurais e aos estratos altos urbanos. Pareceria adequado supor que os representantes dessasposies extremas deveriam situar-se tambm em plos opostos no que se refere a opinies
e inclinaes polticas, com os ltimos exibindo alto grau de conservadorismo e apego ao
status quo e os primeiros, alto grau de insatisfao frente a um sistema que os marginaliza
de diversas maneiras. Sabidamente, porm, tal suposio seria equivocada no que diz
respeito aos estratos baixos rurais. Pois, neste caso, a condio objetivamente marginal ou
perifrica se encontra com freqncia associada a uma atitude geral de deferncia e a
formas de lealdade de tipo clientelstico ou inter-classes, traos estes que favoreceriam
antes propenses conformistas. Nas reas rurais ou semi-rurais, assim, seria de esperar que
maiores freqncias de inclinaes inconformistas viessem a encontrar-se em nveis
intermedirios da estrutura social, suficientemente favorecidos do ponto de vista
socioeconmico para escapar s limitaes intelectuais e psicolgicas prprias da condio
consistentemente marginal ou perifrica, mas no a ponto de que os vested interests em
relao ao sistema existente prevaleam de vez na determinao de suas opinies ou seja,
no tanto que estas sejam determinadas por completo em direo conservadora, segundo o
modelo da conscincia de classe. Tal modelo teria melhores condies de operar nas
demais categorias que se podem distinguir, os estratos altos rurais e os diversos nveis da
estrutura social urbana. Nestes, teramos fatores diversos de centralidade objetiva seja a
posio socioeconmica favorvel ou os estmulos e a intensidade de comunicao
prprios do meio urbano, ou ambos produzindo resultados em termos de abertura
psicolgica e acesso a informao que contrastam em graus variados com a contrapartida
subjetiva da condio de marginalidade consistente e permitem, na mesma medida, a
determinao das opinies e do comportamento poltico pela considerao do interesse
prprio, isto , segundo o modelo da conscincia de classe. Contudo, a qualificao
contida na expresso "em graus variados" importante, pois mesmo o ambiente dos
maiores centros urbanos (particularmente num contexto de intensa migrao rural) no est
isento da presena de marginalidade objetiva e subjetiva e de seu squito de
desinformao, deferncia e conformismo. Na verdade, um quadro adequado dos
processos em jogo revelaria, no ambiente urbano como no rural, um limiarde participao
social geral e envolvimento intelectual-psicolgico aqum do qual teramosconservadorismo porfalta de atuao dos mecanismos associados conscincia de classe
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e alm do qual teramos ou inconformismo ou conservadorismo pela atuao desses
mecanismos com a importante reserva adicional quanto forma incipiente ou rudimentar
que tal atuao pode assumir.
Assim, o esquema de interpretao proposto se afasta do modelo da "participao
convergente" (com a afinidade deste ao modelo da centralidade) por pretender ler nosdados pertinentes que, medida que se neutralizem os fatores de marginalidade subjetiva,
teremos no a tendncia expresso de valores consensuais, mas antes a expresso de
interesses correspondentes s vrias posies na estrutura social, ou s vrias classes
sociais. Mas ele se afasta tambm do modelo da "participao divergente" e do mero
recurso ao modelo da conscincia de classe, na medida em que reconhece a existncia e o
vigor dos fatores de marginalidade subjetiva e de mecanismos que bloqueiam a tomada de
conscincia do carter no igualitrio da estrutura social, mecanismos estes que atuam
segundo os padres previstos pelo modelo da centralidade.
III
Voltemo-nos agora para o tema dos partidos polticos no Brasil. 0 perodo que vai
de 1945 a 1964 propicia um contraste com a situao atual ao qual se faz necessrio
recorrer como ponto de partida, mesmo porque alguns dos tpicos repetidamente presentes
no discurso poltico brasileiro de nossos dias a respeito dos partidos polticos referem-se
inicialmente aos partidos que ento existiram.
Um desses tpicos, talvez o favorito e certamente o de maior alcance do ponto de
vista de uma avaliao como a que aqui se procura fazer, diz respeito ao suposto
"amorfismo" que caracterizaria a estrutura partidria brasileira daquele perodo. Com
efeito, amide se sustenta que os partidos ento existentes no seriam seno criaes
artificiais, sem bases sociais autnticas e sem diferenciao ideolgica ntida. Tais
caractersticas seriam a contrapartida ou o reflexo de traos que marcariam o prprio
eleitorado, o qual visto, em geral, como politicamente amorfo e inconsistente, pouco
envolvido ou interessado em questes polticas e destitudo de verdadeira "conscincia
poltica". Em ltima anlise, segundo essa viso, os partidos se distinguiriam apenas pelo
grau em que, atravs de expedientes mais ou menos esprios, se mostravam capazes de
atrair diferentes parcelas daquele eleitorado politicamente alheio e manipulvel. Como
avaliar tal diagnstico, e que relevncia tem para os problemas de ps-64?
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O sistema partidrio existente entre 1945 e 1964 chegou a incluir 13 partidos, de
importncia muito variada na cena poltica do pas. 1945 marca o fim da ditadura de
Getlio Vargas, que exercera o poder supremo desde 1930. Mas da iniciativa do prprio
Vargas que brotam, na transio para a fase democrtica da vida brasileira que ento se
inaugura, dois dos mais importantes partidos do perodo: o Partido Social Democrtico(PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
No PSD se organizam os interesses que gravitavam em torno da mquina poltico-
administrativa da ditadura varguista. Em especial, ele congrega homens que haviam atuado
como interventores de Getlio Vargas junto ao governo dos estados, bem como com
variaes regionais as lideranas de bases rurais que haviam tradicionalmente ajudado a
compor a estrutura clientelstica da poltica brasileira. De orientao conservadora, mas
afeito ao jogo do poder, o pessedismo, que tem seu principal ncleo em Minas Gerais,
rapidamente adquire a imagem que viria marcar o poltico mineiro e, de certa forma,
impregnar de maneira negativa a prpria idia de poltica no Brasil: a do poltico hbil,
pragmtico e pouco escrupuloso.
O PTB, por seu turno, organiza-se com o objetivo de atrair as massas trabalhadoras
urbanas em expanso, manejando como trunfo a imagem de "pai dos pobres" adquirida por
Vargas em conexo com suas iniciativas na rea trabalhista, especialmente a legislao do
trabalho introduzida como parte da estrutura corporativa montada durante o Estado Novo
(1937-45). Essa estrutura se mantm intacta posteriormente, atrelando os sindicatos de
trabalhadores ao Ministrio do Trabalho e compondo com os quadros petebistas as
alavancas de controle poltico do movimento trabalhista por Getlio Vargas e figuras a ele
ligadas especialmente Joo Goulart, poltico gacho que se afirma no cenrio poltico
nacional como ministro do Trabalho de Vargas no mandato presidencial que este obtm
nas urnas em 1950. Em termos gerais, o perodo que vai de 1945 a 1964 pode ser descrito
como correspondendo ao controle do processo poltico brasileiro pela coalizo formada
por PSD e PTB.
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O principal partido a opor-se a tal coalizo a Unio Democrtica Nacional
(UDN), que se estabelece em torno dos lderes da oposio liberal ao regime varguista ao
final do perodo ditatorial. Atraindo empresrios, profissionais liberais e classes mdias
urbanas, a UDN exerce no perodo um papel marcado por grande ambigidade: sendo
originria e retoricamente liberal e representando o porta-voz de estridente oposiomoralista ao condomnio PSD-PTB, no deixou, porm, de favorecer e estimular a
interveno dos militares no processo poltico sempre que tal interveno pareceu servir
aos interesses do partido, e prceres udenistas vieram a ser alguns dos nomes civis mais
expressivos a integrarem o governo surgido do movimento poltico-militar de 1964.
Dentre vrios outros partidos ou movimentos de expresso meramente regional,
merece destaque o Partido Social Progressista (PSP), controlado por Adhemar de Barros e
de significativa presena em So Paulo, o principal estado da Federao. Singulariza-se o
PSP por combinar um apelo marcadamente populista com a montagem de eficiente
mquina eleitoral baseada na manipulao de prebendas facultada pelo acesso ao poder
estadual. 0 populismo paulista tem, porm, no perodo, outra vertente de muito maiores
conseqncias para o jogo poltico nacional, a saber, o movimento constitudo ao redor de
Jnio Quadros. Ascendendo meteoricamente, em larga medida margem da estrutura
partidria, desde sua eleio para a Cmara Municipal de So Paulo, Quadros viria a
alcanar a Presidncia da Repblica e a ter participao importante nos eventos que
culminaram no levante militar de 1964. Seu apelo poltico baseava-se numa imagem de
autenticidade popular de cunho apoltico ou mesmo antipoltico, bem como numa
veemente mensagem de moralizao poltico-administrativa.
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Precisamente o xito das lideranas e movimentos populistas, bem como o da
prpria coalizo PSD-PTB (a expressar, de certa forma, o acoplamento entre massas
supostamente manipulveis e elites que lhes so heterogneas por sua origem social,
acoplamento este que caracterizaria o populismo latino-americano em geral), serve como
ponto focal das denncias de amorfismo e inconsistncia acima mencionadas com respeitoao eleitorado e aos partidos. Seja qual for a parcela de verdade contida em tais denncias,
que poderemos apreciar melhor adiante, cumpre assinalar a existncia, j no perodo
examinado, de indcios que se contrapunham com nitidez a elas. Assim, h, por um lado,
evidncias que mostram, durante o curto perodo em que o Partido Comunista Brasileiro
pde atuar legalmente e participar abertamente do processo eleitoral (at 1947), a nascente
"ideologizao" das camadas populares do eleitorado brasileiro em seus setores "de ponta".
Dados analisados por Azis Simo relativamente ao comportamento eleitoral dos
trabalhadores da cidade de So Paulo nas eleies de 1947 para a Assemblia Legislativa
paulista revelam que, enquanto o PCB e o PTB obtinham conjuntamente uma ampla
proporo do voto trabalhador, o PCB tinha claramente a preferncia dos trabalhadores
industriais: ele recebia proporo muito maior dos votos apurados nos distritos eleitorais
que incluam maiores porcentagens de trabalhadores industriais e que se localizavam nas
regies da cidade que haviam sofrido maior penetrao industrial, exibindo, em muitos
casos, uma tradio industrial proveniente de finais do sculo passado.12
12 Aziz Simo, "0 Voto Operrio em So Paulo", em Anais do I Congresso Brasileiro de Sociologia, SoPaulo, Sociedade Brasileira de Sociologia, 1955.
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Mas tambm com respeito ao PTB, apesar de sua inspirao varguista e dos
desgnios de manipulao normalmente imputados a suas lideranas, podemos encontrar
indcios que vo em direo diferente. Assim, o partido cresce consistentemente em sua
penetrao durante o perodo considerado, evidenciando que sua mensagem ou pelo
menos sua imagem encontra certo tipo de ressonncia no eleitorado que no se poderiadescartar sem mais. Alm disso, como mostraram anlises como as de Glucio Soares e
Antnio Octvio Cintra, os correlatos dessa penetrao em termos tanto dos estratos
sociais em que ela ocorre diferencialmente quanto das percepes e opinies polticas
esto longe de ajustar-se ao que se presumiria com base na tese do "amorfismo", ainda que
comportem ambigidades.13 Na verdade, a apreciao global que cabe extrair dos dados
pertinentes congruente com a tese de Celso Furtado a respeito da "dialtica do
populismo", segundo a qual os mecanismos acionados com intuitos manipuladores pelas
lideranas populistas terminam por configurar-se, em medida significativa, em fatores de
real mobilizao poltica dos setores populares.14 E no outra a razo de que, realizado o
movimento poltico-militar de 1964 como reao s ameaas percebidas num quadro em
que avulta precisamente aquela mobilizao, o regime autoritrio tenha pouco depois
julgado conveniente extinguir pela fora os partidos ento existentes, buscando substitu-
los por uma estrutura partidria mais apta a servir aos seus propsitos.
IV
Essa extino se d em 1965, com o Ato Institucional n o. 2. Sua razo imediata foi
a vitria obtida, naquele ano, por candidatos do PSD para o governo dos importantes
estados de Minas Gerais e da Guanabara. Por meio dos dispositivos legais ento
implantados, o governo imps ao pas o bipartidarismo, congregando na Aliana
Renovadora Nacional (ARENA) as foras de apoio poltico-parlamentar ao regime e
forando, pelo rigor das exigncias para a constituio de novos partidos, os polticos
oposicionistas que haviam sobrevivido aos expurgos e cassaes a se agruparem num
nico partido de oposio, o Movimento Democrtico Brasileiro (MDB).
13 Vejam-se, por exemplo, Glucio Ary Dillon Soares, "The Policial Sociology of Uneven Development inBrazil", em Irving L. Horowitz (ed.), Revolution in Brazil, Nova York, E. P, Dutton, 1964; e AntnioOctvio Cintra, "Partidos Polticos em Belo Horizonte: Um Estudo do Eleitorado",Dados, no. 5, 1968.14 Veja-se Celso Furtado,Dialtica do Desenvolvimento, Riode Janeiro, Fundo de Cultura, 1964, pp. 83-85.
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Cabe indagar das razes dessa opo pelo bipartidarismo. Elas certamente incluem
a viso idealizada do bipartidarismo existente em alguns dos pases ocidentais mais
avanados economicamente, viso esta que pode ser considerada como integrando o
iderio liberal-democrtico a que os mentores do regime de ps-64 jamais chegaram a
renunciar abertamente e que aparentemente impediu a opo por um sistemaunipartidrio, cuja imposio teria ento sido possvel. Por outro lado, tal como realizada,
a imposio de um bipartidarismo formal, se salvava as aparncias quanto ao iderio
liberal verbalmente professado pelo regime, parecia ter condies de redundar num
unipartidarismo de fato. Expurgadas as hostes oposicionistas das lideranas mais
aguerridas e eleitoralmente vigorosas do populismo anterior; obtida a coeso do
dispositivo poltico-partidrio governamental atravs da atuao conjugada do
estabelecimento de linhas ntidas de separao entre os "pr" e os "contra", da
manipulao da mquina do governo e do recurso a instrumentos de presso ou coero
aberta; empreendido, atravs de campanhas e iniciativas de diversos tipos (incluindo a
introduo do ensino de "educao moral e cvica" em todos os nveis do sistema
educacional), o esclarecimento pblico contra a corrupo e os artifcios demonacos de
movimentos e figuras de inspirao alheia "ndole do povo brasileiro"; as condies
pareciam criadas para que o regime viesse a contar, a curto prazo e de maneira estvel,
com os frutos eleitorais de polticas desenvolvidas com seriedade e eficincia nos diversos
campos de atuao governamental. E os votos dados ao partido do governo num quadro de
disputa bipartidria seriam fator importante de legitimao, mesmo e talvez sobretudo
no cenrio internacional.
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Como quer que seja, a implantao do bipartidarismo revelou-se, a posteriori, uma
deciso de importantes conseqncias para a dinmica do regime, embora certamente no
as conseqncias previstas por ele. Ela redundou, com efeito, numa simplificao drstica
do universo defrontado pelo eleitor e de suas opes ao tomar a deciso eleitoral. Do ponto
de vista da conscincia poltica dos estratos populares, tal simplificao se superps"convenientemente" ao simplismo das percepes e opinies polticas com a
conseqncia de que, passado o momento inicial de perturbao e surgindo as
oportunidades para que o partido de oposio pudesse dirigir ao eleitorado uma mensagem
aguerrida, projetando certa imagem de tonalidades populares, viesse ele a capitalizar
eleitoralmente as mesmas tendncias que haviam anteriormente produzido o populismo.
Facilitada pelo quadro poltico-partidrio bipolar, que passou a fornecer claro molde
institucional para contraposies simples corno as que se do na conscincia popular entre
categorias tais como "ricos" e "pobres", povo" e "governo, 15 tal retomada das tendncias
anteriores se deu em 1974, quando o MDB catalisou pela primeira vez as preferncias
populares e obteve inequvoca vitria nas eleies para o Senado. Abre-se, a partir da,
nova fase nas manobras institucionais do regime, que buscam agora neutralizar o potencial
de mobilizao do voto popular com que o MDB passa a contar sobretudo nos centros
urbanos, culminando na liquidao forosa do bipartidarismo e na restaurao de uma
estrutura multipartidria por meio de poderosos incentivos legais e polticos.
Do ponto de vista analtico, a imposio do bipartidarismo representou, como os
resultados sucintamente descritos sugerem, um experimento de grande interesse, no qual a
prpria simplificao artificial das opes permite a cristalizao mais clara de certas
tendncias bsicas. Essa cristalizao, por outro lado, se d de maneira a desmentir a tese
do "amorfismo" do eleitorado, apesar dos matizes cuja considerao os dados disponveis a
respeito impem. Examinaremos resumidamente, a seguir, algumas concluses das
anlises de tais dados, destacando a "morfologia" do apoio partidrio tal como pode ser
traada em termos das dimenses bsicas envolvidas na noo de centralidade
anteriormente discutida e alguns aspectos poltico-ideolgicos subjacentes identificao
partidria e a sua diferenciao nas diversas camadas socioeconmicas. As proposies a
serem apresentadas referem-se a dados coletados atravs de surveys executados em quatro
cidades por ocasio das eleies de 1976.16
15 Veja-se Fbio W. Reis, "As Eleies em Minas Gerais", em Bolivar Lamounier e Fernando H. Cardoso(orgs.), Os Partidos e as Eleies no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, para apresentao de materialemprico pertinente.
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O Quadro 1 procura dispor graficamente a maneira pela qual a identificao com
um ou outro dos partidos existentes em 1976 se distribui pela estrutura social. Comecemos
pelos limites inferiores do sistema que o esquema sugere, ou seja, aqueles que tm a ver
com a fronteira mesma entre a excluso total e algum grau de participao. O zero
absoluto corresponde aqui condio de cidadania de segunda classe em que as pessoas sevem privadas do prprio direito formal ao voto. A proibio legal do voto dos
analfabetos, at h pouco existente no Brasil, colocava-os obviamente nessa condio.
Assinale-se, porm, que a excluso se manifesta em formas que vo alm da privao da
possibilidade de votar: os dados mostram que mesmo a identificao subjetiva com
qualquer dos partidos (a simples preferncia por qualquer deles) declina de maneira
desproporcional entre os analfabetos. Mas de interesse igualmente ressaltar que os
analfabetos no so os nicos nessa categoria. 0 complexo de fatores que compem a
condio marginal contm outros mecanismos pelos quais novos contingentes das camadas
socioeconmicas inferiores da populao so excludos do sufrgio, tais como as
dificuldades de qualquer ordem para manter regularizada a documentao exigida do
votante, que tendem a incidir diferencialmente nos diversos estratos socioeconmicos,
mais marcadamente nos estratos mais baixos. Por outro lado, congruentemente com a
viso de que temos maior marginalidade no plo rural da dicotomia rural-urbano, os dados
mostram que, dentre as quatro cidades estudadas, o efeito conjunto de analfabetismo e
exigncias burocrticas quanto a excluir da participao eleitoral maior em Presidente
Prudente, que melhor corresponde ao plo rural e onde a proporo dos que no votam por
qualquer razo alcana 31 por cento da amostra.
16 A anlise detida do material correspondente pode ser encontrada em Fbio W. Reis (organizador), OsPartidos e o Regime: A Lgica do Processo Eleitoral Brasileiro, So Paulo, Smbolo, 1978, que foi oprimeiro resultado de pesquisa realizada por ocasio das eleies municipais de 1976 nos municpios de Juizde Fora, MG; Presidente Prudente, SP; Niteri, RJ; e Caxias do Sul, RS. A pesquisa, executada emcolaborao entre o Departamento de Cincia Poltica da UFMG, o Centro Brasileiro de Anlise ePlanejamento (CEBRAP), o Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e oDepartamento de Cincias Sociais da UFRGS, foi coordenada conjuntamente por Bolivar Lamounier, OlavoBrasil de Lima Jnior, Hlgio Trindade e Fbio W. Reis. Parte do texto que se segue uma adaptao deminhas contribuies a esse volume: "Classe Social e Opo Partidria: As Eleies de 1976 em Juiz deFora" e "Concluso: Em Busca da Lgica do Processo Eleitoral Brasileiro". Alm desses captulos, o volumecontm ainda os seguintes trabalhos, aos quais se referem todas as menes aos co-autores a seremencontradas adiante: Bolivar Lamounier, "Presidente Prudente: O Crescimento da Oposio num RedutoArenista"; Olavo Brasil de Lima Jnior, "Articulao de Interesses, Posio Socioeconmica e Ideologia: AsEleies de 1976 em Niteri"; Hlgio Trindade, "A Polarizao Eleitoral numa Comunidade Agro-Industria1Moderna"; e Judson de Cew, "A Deciso Eleitoral em Caxias do Sul.
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Se vamos alm e buscamos avaliar as conseqncias da condio perifrica ou
marginal do ponto de vista do contedo da participao, ou de como afeta o apoio a cada
um dos partidos, a primeira indagao se refere aos efeitos, nesse sentido, da prpria
excluso formal do direito de voto. Alguns dados de Juiz de Fora so especialmente
elucidativos a respeito. Tomando a renda familiar em categorias que se dispersam desdeaqueles que contam com um salrio mnimo ou menos por ms at os que contam com
mais de 20 salrios mnimos, v-se que as freqncias dos que deixam de votar por
qualquer razo diminuem quase linearmente desde nada menos de 34 por cento entre os
primeiros a 11 por cento entre os ltimos. Isso contrasta agudamente com a variao dos
votos dados ARENA, que crescem de 29 a 54 por cento entre as mesmas categorias,
enquanto os votos dados ao MDB permanecem praticamente constantes ao redor da
proporo mdia de 28 por cento. Tal padro indica de maneira muito clara que a perda do
sufrgio se daria sobretudo em detrimento do MDB, excluindo da participao
contingentes significativos de eleitores potenciais daquele partido.
Mas as coisas so mais complexas. Pois, alm da excluso formal do direito de
voto, os traos intelectuais e psicolgicos que se associam posio perifrica de setores
dos estratos baixos tendem com freqncia, na verdade, a resultar em maior incidncia de
preferncia pela ARENA. Comeando pelo lado rural ou semi-rural das cidades estudadas,
isso se verifica em Presidente Prudente, como destaca Bolivar Lamounier, entre as
camadas muito baixas do eleitorado, quer se trate de analfabetos, daqueles que se situam
em posio especialmente desvantajosa do ponto de vista ocupacional ou dos que declaram
Quadro 1
DIMENSES DE "CENTRALIDADE" E DISPOSIES POLITICO-ELEITORAISNAS ELEIES BRASILEIRAS DE 1976 (DADOS DE SURVEYSEXECUTADOSNOS ESTADOS DE MINAS GERAIS, SO PAULO, RIO DE JANEIRO E RIOGRANDE DO SUL)
MEIO RURAL MEIO URBANO
POSIO -Atuao do modelo -Atuao do modelo deSOCIOECO- de consciencia de classe: conscincia de classe:MICA ALTA envolvimento e conser- conservadorismo e are-
vadorismo; arenismo alto nismo altos; alta estrutura-o ideolgica
- Minorias (ocasional-mente maiorias: Niteri)emedebistas liberais; alta
estruturao ideolgica
- Reduo da marginali- - Minorias universitrias
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dade subjetiva, incongru- independentes ou emede-ncias educao-renda, bistas; alta estruturaopresena de algum incon- ideolgica formismo: reduo dos n- - Setores mdios educados; Cveis de arenismo, ncleos indeterminao: carreira Eemedebistas entre seg- pessoal ou inconformismo, Nmentos ilustrados da clas- arenismo ou emedebismo Tse mdia (B. Lamounier, (Niteri vs. J. de Fora) RPres. Prudente) A
LLimiar de - Setores populares, atuao Iparticipao ----------------------------------| do modelode de conscincia D
| de classe; emedebismo alto; A| estruturao ideolgica re- D| duzida E|--------------------------------------------------------
C- reas especiais dos R
POSIO - Marginalidade sub- setores populares: margi- ESOCIO- jetiva, alheamento, nalidade subjetiva, desin- S
ECONMICA desinformao; defe- formao e deferncia; CBAIXA rncia e conservado- ocasionalmente arenismo Erismo; arenismo alto alto (Niteri) N(Pres. Prudente) T
ECENTRALIDADE CRESCENTE
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no contar com servios bsicos em seus locais de residncia: em todos esses casos,
aumenta a taxa de identificao com a ARENA, tal como ocorre nos nveis mais altos da
estrutura social, entre empregadores e administradores. Mas o mesmo padro se depara
tambm no lado urbano do sistema. Em Niteri, por exemplo, antiga capital do Estado do
Rio de Janeiro, encontram-se taxas igualmente altas de preferncia pela ARENA nas
posies consistentes quanto aos nveis de renda e educao: quer se trate de posies
consistentemente altas ou consistentemente baixas, as propores de votos "arenistas"
aumentam quando comparadas com as que se do nas posies inconsistentes ou
intermedirias aumentam, vale dizer, nas posies extremas da estrutura social, como
assinala Olavo Brasil de Lima Jnior.
Parece desnecessrio insistir na ligao de tal incremento de "arenismo" nos nveis
mais baixos com a carncia de informao e o distanciamento psicolgico face ao mundo
poltico que diversos aspectos dos dados em questo revelam existir no extremo inferior da
estrutura social. Assim, a anlise dos dados de Juiz de Fora revela a maneira pela qual a
falta de informao condiciona, nos estratos mais baixos da populao, a ocorrncia
bastante freqente (muito mais freqente do que as que se observam medida que se sobenos nveis de renda) de uma imagem positiva da ARENA como sendo a favor do voto
direto para a escolha do presidente da Repblica e demais autoridades executivas.
Contudo, os dados de Niteri comprovam inequivocamente a ligao mencionada, pois
mostram que a proporo de "arenistas" entre os eleitores de baixo nvel educacional
tanto maior quanto maior o desinteresse pela poltica, enquanto precisamente o oposto se
d entre os arenistas de nvel educacional alto. parte o alheamento e o erro puro e
simples das informaes de que dispem os setores em questo sobre os partidos, bastante claro que a explicao para o padro observado se encontra na atitude de
deferncia que ajuda a compor a sndrome da marginalidade subjetiva. Nessa perspectiva,
o fato mesmo de que se tenha alto "arenismo" nos nveis socioeconmicos mais altos se
torna um fator favorvel ao seu aparecimento tambm em certas reas dos extremos
inferiores.
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Se deixamos a zona de fronteira entre participao e excluso em que nos
movemos at aqui, o aspecto a assinalar inicialmente se refere a posies que, na escala
bidimensional de centralidade objetiva, podem ser vistas como um patamar relativamente
incipiente de participao e envolvimento, mas ainda assim suficientemente distante da
condio de marginalidade subjetiva para ocasionar o surgimento de certo grau deinconformismo. Refiro-me aos estratos intermedirios do setor rural ou semi-rural do
sistema, que se ilustram com o que Bolivar Lamounier designa como os "segmentos
ilustrados" da classe mdia de Presidente Prudente, onde parecem concentrar-se os ncleos
de penetrao do MDB no ambiente maciamente pr-Arena daquela cidade. Os dados
analisados por Lamounier indicam que esses redutos oposicionistas minoritrios
correspondem sobretudo a situaes caracterizadas por certa incongruncia entre o nvel de
escolaridade relativamente alto com que contam as pessoas e sua condio econmica,
particularmente seu nvel de renda, comparativamente insatisfatrio. Por outro lado,
Lamounier sugere que o padro de distribuio social das preferncias partidrias deparado
em Presidente Prudente, com a penetrao intersticial do MDB nessas posies da
estrutura social, seria prprio das condies que caracterizam, de maneira mais geral, o
que ele chama de "metrpoles perifricas", entre as quais se poderia incluir mesmo uma
grande cidade como Salvador, capital do Estado da Bahia. Apreciada luz do uso aqui
feito das noes de "central" e "perifrico", essa sugesto acena com a possibilidade de se
complicar a dimenso "horizontal" do esquema proposto, que passaria a incluir mais que a
mera oposio entre rural (ou semi-rural) e urbano.
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O ponto seguinte a destacar diz respeito s variadas situaes em que se daria a
atuao do modelo da conscincia de classe. Naturalmente, a pretenso de apreender a
conscincia de classe por meio de dados como os de que aqui se trata defronta de imediato
o velho problema da oposio entre as classes como grupos sociais efetivos e os estratos
que se podem distinguir ao se submeterem dimenses variadas (escolaridade, rendafamiliar) a cortes mais ou menos arbitrrios. Cabe fazer, entretanto, duas ponderaes. Em
primeiro lugar, a questo de saber at que ponto existe a possibilidade de se falar de
classes sociais efetivas a respeito de certas categorias que se podem distinguir na estrutura
social brasileira precisamente uma das questes substantivas de interesse a que se
dirigem estudos como os que procuram relacionar o processo eleitoral-partidrio e o
regime autoritrio, seu significado e suas perspectivas. Em segundo lugar, sem negar a
importncia da questo metodolgica mas sem pretender dirigir-se a ela, a suposio a que
aqui se recorre apenas a de que a forma (ou a direo) de certas relaes bsicas, como as
que se do entre a identificao partidria e posies sociais" mais ou menos
arbitrariamente distinguidas, ganha significado e coerncia se tais posies so vistas
como a traduo ou a expresso, embora defeituosa e longnqua, de classes sociais
subjacentes.
Se isso aceitvel, a primeira observao de cunho substantivo que cabe fazer
reitera, por um aspecto, o que se acaba de dizer: nas diversas posies da estrutura social
em que se pretende encontrar a atuao do modelo de conscincia de classe (setor rural
alto, setores urbanos baixo e alto), tal pretenso se dirige especificamente forma das
relaes deparadas entre posio social e opo partidria. Assim, possvel apontar alto
"arenismo" nos estratos altos da populao de Presidente Prudente. Igualmente, nas demais
cidades se pode observar clara correlao positiva (se se prescinde por um momento de
algumas complicaes a respeito da varivel educao, a serem mencionadas adiante) das
preferncias "arenistas" com indicadores de posio social tais como renda, ocupao e
identificao subjetiva com determinada "classe", correlao esta que expressa o
predomnio do MDB nos estratos baixos e da ARENA nos estratos altos.
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Indo alm da forma assim exibida pelas relaes, porm, no se pretende que os
dados permitam dizer que as variaes na opo partidria segundo as posies sociais
podem ser sempre postas em correspondncia com contedos ideolgicos que manifestem
o tipo de afinidade com cada posio particular que se esperaria da afirmao plena do
modelo de conscincia de classe. Ao contrrio, o esquema geral de interpretao aquiutilizado, baseado na combinao do modelo da centralidade com o modelo da conscincia
de classe, pretende propor que os mecanismos associados centralidade objetiva e
subjetiva condicionam no somente a possibilidade de que atue ou no o modelo de
conscincia de classe (como no que se refere aos fatores que bloqueiam a manifestao
desta na condio propriamente marginal), mas tambm o grau em que atuar nos casos
em que efetivamente atue. Por outras palavras, mesmo ultrapassado o limiar que separa a
participao da excluso "absoluta" (isto , uma vez que se tenha deixado a condio de
marginalidade total e penetrado, em alguma medida, o universo sociopoltico que conta),
os fatores de centralidade continuam a "corrigir" ou a "entortar", se se preferir a
operao do modelo de conscincia de classe. Assim, nas condies brasileiras, mais
central a posio global (ou seja, mais urbana, mais alta), maior a possibilidade de
"intensidade" e "clareza" da conscincia de classe e, para os setores populares, a vigncia
plena do modelo de conscincia de classe dependeria da eliminao dos resduos de
marginalidade subjetiva (acentuada precariedade do acesso educao, hbitos de
deferncia, privatismo etc.) que acompanham sua condio objetiva.
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Tal proposio se corrobora de maneira muito clara nos graus variados de
estruturao ideolgica que os dados revelam existir junto a diferentes categorias da
populao das cidades estudadas. Assim, se se toma a dimenso "vertical" da centralidade,
correspondente posio socioeconmica, tanto no plo mais urbano como no mais rural
do conjunto de cidades se pode observar muito maior estruturao ideolgica nas camadasaltas do que nas camadas baixas da populao. As primeiras exibem no apenas maior
propenso a estarem conscientes e informadas das questes que agitam a cena poltica,
mas tambm a adotarem posies em princpio coerentes sobre as diversas questes. Alm
disso, elas do traduo mais "adequada" a tais posies no que se refere identificao ou
preferncia partidria ou seja, os mais "inconformistas" tendem em maior medida a
apoiar o MDB nas camadas altas (ainda que sejam a minoritrios) do que nas camadas
baixas, o mesmo se dando com o apoio ARENA por parte dos mais "conformistas". Por
outro lado, se se toma a dimenso "horizontal" da centralidade, indcios bastante claros
sugerem a operao de um padro geral anlogo, a evidenciar, independentemente da
posio socioeconmica, maior estruturao do universo poltico-ideolgico no plo
urbano do que no plo rural.
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Ressalte-se que tal padro geral, em atuao tanto no plano horizontal quanto no
vertical, d-se no obstante o fato de que seja possvel observar igualmente nos dados
indcios de que a natureza especfica das questes de que se trate tem, por si mesma,
conseqncias para a opo por um partido ou outro. Assim, nos estratos socioeconmicos
mais baixos, certas questes mais "prximas", ou que parecem afetar mais diretamente ascondies da vida cotidiana das pessoas, parecem tambm ligar-se mais claramente
opo partidria do que as "remotas" questes de natureza poltico-institucional (ou seja,
aquelas que tm a ver sobretudo com a prpria natureza autoritria da vida poltica
brasileira da atualidade, incluindo itens como o controle militar do processo poltico, os
instrumentos excepcionais e arbitrrios em poder do Executivo, as restries impostas s
campanhas eleitorais etc.). Para ilustrar, isso se pode constatar em especial com respeito a
um item aparentemente de alta sensibilidade para a conscincia popular: o da avaliao das
condies da assistncia mdica acessvel localmente, o qual mostra forte relao com a
opo partidria, nos estratos populares, no sentido que se esperaria, ou seja, avaliaes
negativas se associam com a opo pelo MDB e avaliaes positivas com a opo pela
ARENA. Constataes desse tipo apontam, naturalmente, para a existncia de formas
diferenciais de se processar a estruturao do universo sociopoltico nas diferentes classes
ou camadas da populao, bem como nos contextos sociais diversos representados por
ambientes rurais ou urbanos. Mas, obviamente, este um dos aspectos ou dimenses da
questo geral de que aqui se trata, e tais formas diferenciais de estruturao ideolgica se
vinculam com o problema do "grau", "intensidade" e "clareza" para tomar ainda uma vez
as expresses de Pizzorno da conscincia de classe. Por outras palavras, a conscincia de
classe ir crescer precisamente em funo da medida em que exista a capacidade de
integrar a percepo ou definio das questes de natureza diversa e a posio assumida
com respeito a cada uma, de sorte que se possa chegar a uma viso dos interesses gerais da
classe que no apenas leve a que se tenha opinio quanto s questes de diferentes tipos ou
nveis, mas tambm oriente e permita fundar coerentemente tais opinies. Ora, os dados
revelam que essa capacidade existe em maior grau, em geral, nas posies mais altas e
"centrais".
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Concluamos esta apresentao sumria das constataes das anlises em questo
com breve referncia s categorias mencionadas no Quadro 1 como contando com alta
escolaridade, seja os "setores mdios educados" ou as "minorias universitrias". Com
efeito, a considerao do grau de educao formal dos eleitores, sobretudo em conjugao
com as faixas de idade, permite apreciar interstcios especiais que se compem na estruturasocial. Naturalmente, a educao se encontra correlacionada com variveis como renda
familiar, e o nvel educacional pode ser tomado como indicador de posio social geral.
Apesar disso, seus efeitos tendem a ser peculiares por diversas razes, tais como: 1) a
educao formal traduz-se imediatamente em graus diversos de sofisticao intelectual, de
relevncia direta para as opinies e atitudes polticas; 2) ela se articula de maneira
relativamente complexa com as aspiraes quanto a condies gerais de vida e com a
avaliao do xito na realizao de tais aspiraes, articulao esta que condicionada
pela idade dos eleitores; 3) sobretudo no nvel universitrio, a experincia educacional
tende a corresponder exposio direta a um ambiente singularmente sensvel
politicamente, a qual tende a dar-se tambm em determinada faixa de idade. Como quer
que seja, os dados aqui considerados indicam que o impacto especfico do nvel
educacional sobre o grau de conformismo ou inconformismo poltico assume formas algo
sinuosas e instveis. Na atualidade, contudo, parece predominar a tendncia de que a
educao opere como fator de conformismo poltico e de apoio ao partido do governo,
tendncia esta que, com exceo do setor universitrio, se afirma de maneira
especialmente marcada entre os jovens. Isso representa, por ambos os aspectos, a inverso
de tendncias observadas no passado, e parece dever interpretar-se sobretudo como
conseqncia de expectativas ocupacionais mais favorveis para os setores educados da
populao criadas pela expanso econmica que o regime autoritrio se mostrou capaz de
assegurar por algum tempo. Assim, feitas as devidas e importantes reservas quanto
parcela da juventude diretamente envolvida no clima poltico das universidades, o
empenho politicamente desmobilizador que caracteriza o regime vigente parece ter tido
razovel xito junto aos jovens educados, substituindo, ao que tudo indica, cogitaes
sociais e polticas por preocupaes de carreira pessoal em muitos deles.17
V
17 Alguns dos dados contrastantes a respeito do papel poltico da escolaridade so examinados em Fbio W.Reis, "Classe Social e Opo Partidria".
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Os padres examinados, ajustando-se com clareza, por um lado, s proposies
acima formuladas sobre a articulao entre os modelos da centralidade e da conscincia de
classe, mostram-se, por outro lado, grandemente relevantes do ponto de vista das
condies gerais dos regimes autoritrios e das feies por eles assumidas. Eles exibem,
em primeiro lugar, algumas das ameaas inerentes poltica ideolgica perante as quais osregimes autoritrios representam, do ponto de vista das foras conservadoras, uma reao
que cabe ver como mais ou menos "oportuna" ameaas a serem encontradas sobretudo
nas formas emergentes de conscincia de classe que marcam as disposies e o
comportamento poltico dos estratos trabalhadores da populao dos centros urbanos.
Alm disso, contudo, eles exibem igualmente, ao lado das fontes "naturais" de apoio de
que tais regimes dispem nas classes mdias e altas, as fontes potenciais de apoio com que
podem contar por meio de algum tipo de manipulao ideolgica ou de vnculos
clientelsticos entre as camadas mais baixas e mais estritamente "marginais" dos setores
populares, tanto no campo quanto nas cidades. Ademais desse fator, que aponta
nitidamente para mecanismos de deferncia social, importante salientar, entretanto, no
que se refere ao Brasil, o carter emergente e altamente limitado da operao do modelo de
conscincia de classe mesmo junto "vanguarda" urbana dos estratos populares. Os dados
acima considerados mostram com clareza que mesmo os membros dessa "vanguarda"
apresentam um grau grandemente precrio de estruturao ideolgica em sua percepo do
universo sociopoltico. Tal estado de coisas provavelmente o que responde pela
ocorrncia aparente de formas pouco plausveis de se relacionarem os propsitos e os
efeitos reais de certas polticas perseguidas pelo regime autoritrio brasileiro: de fato, h
indcios de que o regime desfrutou de maior aquiescncia, pelo menos de natureza passiva,
enquanto afirmou de maneiraseIf-righteous sua face mais dura do que quando comeou a
manifestar preocupao em decorrncia de problemas ligados coeso interna do
sistema de poder que no podemos examinar aqui com temas tais como abertura poltica
e redistribuio econmica.
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Ao fim e ao cabo, a realidade no que diz respeito s percepes e disposies
populares parece consistir numa condio ambgua em que, embora o inconformismo seja
real, de carter consistente (ainda que sobre a base de contraposies antes simplrias,
como a que se estabelece entre "ricos" e "pobres", anteriormente mencionada) e persistente
o bastante no longo prazo de sorte a tornar o populismo uma fatalidade se alguma forma deabertura poltica conseqente vier efetivamente a ocorrer, ele tambm de natureza
desinformada e no ideolgica e as inclinaes oposicionistas da maioria parecem
destitudas de contedo em termos de questes especficas de qualquer natureza, bem
como da percepo de praticamente qualquer articulao entre questes polticas diversas.
Isso redunda, naturalmente, em que com freqncia inexiste a percepo da relevncia
poltica de qualquer questo ou, do ngulo oposto, da relevncia da poltica para as
condies da vida cotidiana.
No momento, como se indicou acima, o governo brasileiro se empenha em
restaurar uma estrutura multipartidria capaz de lhe permitir manter o controle do processo
eleitoral na complicada dinmica em que se desdobra o regime autoritrio. Toda uma
complexa estratgia, envolvendo mesmo a reabsoro de lideranas do perodo populista
proscritas em 1964, foi posta em prtica com o objetivo de romper a unidade oposicionista
do antigo MDB e garantir simultaneamente a viabilidade da linha partidria de apoio ao
regime no Legislativo e fora dele. Embora bem sucedida em ampla medida, essa estratgia
sofreu tropeos importantes, destacando-se o surgimento no previsto do Partido dos
Trabalhadores em torno de novas lideranas sindicais paulistas e a recente reincorporao
ao partido sucessor do MDB (o Partido do Movimento Democrtico Brasileiro, PMDB) do
Partido Popular (PP), que congregou fugazmente setores liberais e que os mentores do
regime e da reformulao partidria esperaram viesse a representar um partido de centro e
um setor oposicionista confivel, com que o governo pudesse vir a negociar e a compor-se.
A situao atual de grande fluidez, a qual agravada pelo carter de reao espasmdica
aos eventos que marca muitas das medidas adotadas pelo regime, e pode evoluir em
direes diversas a partir das importantes eleies (para cargos que vo desde
governadores de Estados e senadores at vereadores) previstas para novembro de 1982.
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8/6/2019 M&U11-O eleitorado, os partidos e o regime autoritrio brasileiro
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Como quer que seja, parece claro que indagaes como as suscitadas acima tm
conseqncias importantes para os prospectos defrontados pelos regimes autoritrios de
virem a ser capazes de legitimar-se e dar soluo ao problema de sua eventual
estabilizao ou institucionalizao. Seria certamente instrutivo, por exemplo, comparar,
luz de tais indagaes, as vicissitudes da poltica autoritria em pases como o Brasil e aArgentina, que, do ponto de vista global, apresentam importantes diferenas quanto
mobilizao e ativao polticas dos setores populares.18 Alm disso, uma aproximao
interessante pode tambm realizar-se entre o problema da mobilizao dos setores
populares ou da classe trabalhadora em pases como Brasil e Argentina (e talvez Espanha e
Grcia, por exemplo), de um lado, e, de outro, os problemas da formao de identidades
coletivas e de ativao poltica de categorias tais como negros, trabalhadores estrangeiros,
mulheres, jovens e outras nos pases desenvolvidos da Europa ocidental e nos Estados
Unidos. Tratando-se de problemas que surgem em sociedades dotadas de estruturas
polticas institucionalizadas e estveis, estes ltimos propiciam interessante corroborao
da idia de que a poltica ideolgica envolve a tendncia inerente expanso do mbito de
interesses cuja realizao buscada atravs da operao do aparato institucional da
sociedade. Ou, se posso recorrer ao vocabulrio introduzido no incio, eles corroboram a
proposio de que, em qualquer momento determinado do desdobramento da poltica
ideolgica, o aparato institucional tender a mostrar-se como poder institucionalizado
antes que como autoridade institucionalizada aos olhos de pelo menos algumas categorias
de atores que procuram admisso plena ao mercado poltico.
18 Isso transparece com muita clareza, por exemplo, se se comparam os dados argentinos de um surveyrealizado em 1965 (apresentados em Jeane Kirkpatrick, Leader and Vanguard in Mass Society, Cambridge,MIT Press, 1971, p. 159) com os dados de um survey sobre "Representao e Desenvolvimento no Brasil"executado em 1973 por Philip Converse, Peter McDonough e Amaury de Souza junto populao do"ncleo" socioeconomicamente mais desenvolvido do Brasil (os quais foram gentilmente postos minhadisposio para uma anlise preliminar que pode ser encontrada em Fbio W. Reis, Political Developmentand Social Class, tese de doutorado, Harvard University, 1974, captulos VI e VII). Pode-se ver, porexemplo, que as pessoas de "classe baixa" do estudo de Kirkpatrick revelam muito maior sensibilidade paracom a importncia do governo nacional para sua vida cotidiana do que categorias comparveis da amostra
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