RAC IONA IS — SEM PAL AVRA
texto fran oliveira | djalma camposfotos gal oppido | klaus miteldorf | kris knack
RAC IONA IS — SEM PAL AVRA
s e m p a l a v r atexto fran oliveira | djalma campos
fotos gal oppido | klaus miteldorf | kris knack
RAC IONA IS — SEM PAL AVRA
A q u i n ã o , s A n g u e b o m ! C ê i s t e m o q u e v o C ê s q u i s e r e m , e u C ê i s n ã o v A o t e r . . .
RAC IONA IS — SEM PAL AVRA
A q u i n ã o , s A n g u e b o m ! C ê i s t e m o q u e v o C ê s q u i s e r e m , e u C ê i s n ã o v A o t e r . . .
— Mano Brown
RAC IONA IS — SEM PAL AVRA
A revolução cultural vem da periferia. “Sessenta
porcento dos jovens sem antecedentes criminais já
sofreram violência policial. Há cada quatro pessoas
mortas pela polícia três são negras. Nas universidades
brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. Há cada
quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo.” Essas
palavras são do rapper Primo Preto e servem de abertura para a terceira faixa
do CD Sobrevivendo no Inferno, do grupo Racionais MC’S. Mais do que uma
denúncia elas ilustram uma situação que já se tornou comum não só em São
Paulo — uma das maiores metrópoles do Brasil — mas também no resto da
nação. Os negros — que estatisticamente, constituem a maioria da população
no país — ainda não alcançaram a tão sonhada democracia racial. O rapper
termina as frases enunciadas acima com a seguinte citação: “Aqui quem fala é
Primo Preto, mais um sobrevivente!”. Um grito de alerta e, ao mesmo tempo,
de indignação com a forma que os negros brasileiros são tratados tanto pela
polícia como pelo sistema. No Brasil, os policiais recebem orientação para
considerar, sempre, o negro como um cidadão em atitude suspeita. O grau
de “popularidade” que os homens da lei têm na jovem comunidade negra
brasileira é revelado em frases como “não confio na polícia raça do caralho”,
do rapper Mano Brown; ou no polêmico refrão “homens fardados eu não sei
não, insistem e fazer justiça com as própria mãos, se julgam os tais, os donos
da razão” — do grupo de rap pernambucano Faces do Subúrbio, na canção
Homens Fardados.
Oprimida por um sistema que não soube conduzir democraticamente
a questão da educação no país, a juventude negra é minoria nas salas de aulas
das universidades brasileiras. Num país em que 60% da população e composta
por negros esta situação se constitui num grande paradoxo, para não dizer
vergonha nacional e descaso das autoridades da área de ensino. Ao negro
brasileiro ficou relegada a pobreza e a violência dos bairros da periferia. Mas,
como diz o ditado: “Se te derem um limão faça uma limonada”. A raça negra
está se organizando. É da periferia dos bairros mais pobres e violentos do
Brasil que está nascendo uma revolução cultural, baseada numa força que só
os oprimidos conseguem buscar ou descobrir. Através da música, da dança e da
arte — elementos presentes na cultura hip hop —, os “manos” vêm dando seu
recado de inconformismo com a atual “democracia racial”. Porque, afinal, ser
um preto tipo A (negro digno, orgulhoso de sua raça) custa caro.
papo direto e reto
RAC IONA IS — SEM PAL AVRA
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Polêmicos? Pode ser. Radicais? Nem tanto. Racionais?
Sim. A música de Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay,
realmente, aponta para a racionalidade. Ao ouvi-la a viagem
para o outro lado da “ponte” é inevitável. Em suas letras os
guerreiros das zonas sul e norte da cidade de São Paulo fazem
muito mais do que botar ritmo na poesia. O relato sobre si
mesmos ou sobre fatos que, corriqueiramente, acontecem
na periferia aparece com uma riqueza de detalhes capaz de
deixar o mais talentoso roteirista de boca aberta. Crítico de si
mesmo, Brown ora aparece contando sua própria história,
ora se revela como um pregador com visão realista sobre
o que acontece na sua e em todas as quebradas. Não, você
não vai encontrar nas letras dos Racionais o remédio para
todos os males. Para entender os Racionais é preciso ouvir
com a alma e não com os ouvidos. Pare e preste atenção
porque o papo é reto e a mensagem, mesmo que descrita
por meio de parábolas, é direta e certeira como um
míssil teleguiado. Quatro manos em busca de um mesmo
objetivo: dar cara e voz a todas as quebradas do Brasil por
meio da trilha sonora do gueto: o rap!
Ao contrário de Os Cavaleiros do Apocalipse —
simbolicamente esses cavaleiros trouxeram para o mundo o
domínio, a guerra, a peste e a fome — os Racionais querem,
com suas mensagens, amenizar os problemas que acontecem
nas periferias. Recentemente, na música A Carne — de autoria
de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wilson Cappellette —, a cantora
Elza Soares diz que “a carne mais barata do mercado é a carne
negra”. E onde ela é encontrada? Nos guetos, nas quebradas,
no lado de lá dos muros... Mas ainda dá tempo de mudar isso.
Ouça os Racionais. Reflita com os Racionais. E o melhor disso
tudo é que você não precisa concordar com eles. Mas, uma coisa
é certa, depois de ouvi-los o mundo vai lhe parecer um pouco...
diferente! Nesta entrevista — concedida aos jornalistas Djalma
Campos e Fran Oliveira no Green Express, casa de dança
localizada no centro da cidade de São Paulo —, as falas foram
transcritas de acordo como cada um se expressou para manter
a veracidade dos relatos. Em momento algum, isso não se revela
como um desrespeito à chamada língua culta. São formas de falar
e de se comunicar que acabam se transformando em “dialeto da
periferia”. Mesmo porque periferia é periferia em qualquer lugar!
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Como você analisam os casos de artistas
do rap que estão cada vez mais próximos
da grande mídia. Por outro lado, os
Racionais seguem aparecendo em pouquíssimos
veículos de comunicação e concedendo raríssimas
entrevistas...
Mano Brown — É falta de fé! É falta de fé! Eu resumo em
três palavras: falta de fé. Aí, já era... Pode vir com ideologia
do mundo inteiro que eu não acredito. É falta de fé. Eu
acredito nos pretos. Acredito no que a gente pode fazer
sem os caras. Com os caras, não acredito que nada vai ser
igual. Ficar dividindo o dinheiro, o ambiente, dividindo o...
Ih, mano... Não cola! O que a gente fala não é poder negro
só pelo poder. É poder negro com ética. É poder de direito
mesmo, de dominar. Poder... Não é como caras como o
Belo, que é um sujeito pardo e de periferia. [as pessoas]
Dizem: É rico, mas é burro. Nóis, não! A gente não precisa
ser rico, mas burro nóis não vamos ser. Tá ligado?! Aqui
não, sangue bom! Cêis tem o que vocês quiserem, eu cêis
não vão ter...
Uma estatística recente mostra que os homens
vivem 8,5 anos a menos que as mulheres. E
esta estatística mostrou que São Paulo lidera os
índices de violência, com a zona sul em destaque.
Como você, que se considera um sobrevivente,
analisa isso?
Mano Brown — Não morri, e não foi por falta de motivo.
Acho que não tem lugar para todo mundo na zona sul,
entendeu? É uma peneira. No Capão Redondo [bairro da
zona sul de São Paulo, onde Brown foi criado] tem muita
gente. Já ouvi gente que mora na zona sul falando que lá
tem gente demais. Não tem lugar para todo mundo. As
pessoas não agüentam.
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Na letra de uma música de Nada Como um Dia Após Outro Dia, você diz
que o mundo é diferente da ponte pra cá. Sugere que a zona sul faz parte de
um outro mundo. Por que você considera a zona sul de São Paulo um outro
mundo?
Mano Brown — A zona sul é um lugar frio. As pessoas não podem demonstrar emoção
e nem sentimento por nada. Não pode rir, não pode chorar. [as pessoas] Tentam ser mais
discretas. Lá é um lugar diferente. O último lugar que o rap entrou foi na zona sul. Eles nem
gostavam... A zona sul não gostava de rap! Por isso, os Racionais puxaram para o lado da
zona sul no começo, com músicas como Pânico na Zona Sul e tal, tal, tal. Foi o que ajudou.
Mas era tudo fechado para o rap. Desde o começo, as festas lá parece que nunca pegaram.
Para a gente fazer shows na zona sul demorou um tempão. A gente fez na zona norte, na
zona leste, ABC... A zona sul foi o último lugar que a gente fez show.
E foi a zona sul que moldou o Mano Brown que as pessoas conhecem hoje?
Mano Brown — Eu sou o que a zona sul é. Os caras me conhecem. E quando a gente
conheceu os caras, nóis era diferente.
Você vê alguma solução para melhorar o bairro do Capão Redondo? Bairros
como Brasilândia e Cachoeirinha [na zona norte de SP] eram considerados
bocas quentes anos atrás e hoje isso mudou. Não são paraísos de tranqüilidade,
mas são lugares mais calmos em relação ao que eram há 30 anos. Já a zona
sul, parece manter sempre altos níveis de violência.
Mano Brown — Tranqüilo estes lugares não são... Mas a zona sul parece que oferece mais
oportunidade. Não pára de crescer. Lá está cheio de shopping, estão asfaltando tudo, o metrô
está chegando lá... Estão aparecendo mais oportunidades. E está indo mais gente para lá. A
zona norte parece não ter mais para onde crescer. Tá ligado?! Lá tem lugar para crescer. E a
sul tem uma parte rica fudida. É rica memo! Ela oferece oportunidade, mas tem mais gente
do que oportunidade. Tanto em termo de crime como para quem quer trabalhar. Mas acho
que lá tem mais oportunidade de emprego do que pra cá. Quem mora na zona norte tem
que vir para o centro. De Santana para cá, [a saída] é [vir para] o centro. Da zona sul, para
chegar ao centro é uma caminhada. Tem muita área para correr. Tem Vila Olímpia, tem
Brooklin, tem Santo Amaro, Granja Julieta, tem as Marginais, tem a [avenida Luis Carlos]
Berrini, Aeroporto... Tem uma pá de quebrada de dinheiro.
Muitas pessoas no Capão Redondo se orgulham pelo fato de você ter crescido
na região. Se orgulham também por morarem perto de você. E se orgulham
mais ainda pelo fato de você não ter mudado de lá. Por que, mesmo com
possibilidades financeiras, você nunca saiu daquela região? Sua família não
quer abandonar a zona sul?
Mano Brown — Acho que eu não saberia viver em outro lugar. Para mim virou um
barato assim... Eu não tinha nada na vida e hoje tenho isso comigo: o bairro, o rap...
O Mano Brown, o cara, o rapper, foi formado junto com o Capão Redondo. Capão
Redondo, Brown, Racionais... É tudo misturado. Hoje, o que eu sou é Capão Redondo,
é rap, é Racionais, entendeu?! Os caras me olham e me veêm com um jaco da zona oeste
[no dia que concedeu a entrevista, Brown usava uma jaqueta de um time de futebol com
as iniciais da zona oeste]. Agora há pouco me perguntaram: “E aí, ô, tá com jaco da zona
oeste?” Isto sou eu. É como se não pudesse usar o jaco da zona oeste. Os caras [da jaqueta
usada por Brown] são padrinhos de um time que a gente tem lá [no Capão] e eu uso a
roupa. Se uso algo com o nome da zona oeste, os caras já perguntam: “Pô, zona oeste?”
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Entendeu? Como é que eu vou mudar de lá? Eu vou ser sempre um estrangeiro fora. Eu
não vou ser bem aceito fora. E vão pensar: ”Se veio para cá é porque o baguio não tá
bom para ele lá”. E lá [se eu mudar] vão falar: ”Pô, mano, e a fórmula mágica”. [Em
referência à letra da música Fórmula Mágica da Paz.]
Em Jesus Chorou [faixa de Nada Como Um Dia Após o Outro Dia] você faz
uma autocrítica e canta uma letra onde mostra o que imagina que as pessoas
pensam a seu respeito. Como surgiu a idéia de fazer esta música?
Mano Brown — Não imagino. As pessoas pensam isso mesmo, e não só do Mano Brown,
mas do [Ice] Blue, do Edi Rock, e do Kléber [KL Jay]. Mais do Blue e de mim. Com os
caras [Edi e KL Jay], talvez a cobrança seja um pouco menor. Eu acho. Tem cobrança,
mas os caras têm um outro jeito de ser, moram num bairro um pouco diferente do nosso
[na zona norte de SP]. Eu e o Blue, a gente vive num lugar que é o seguinte... É muito
cobrança, muita, muita, muita, muita... Eu sei que as pessoas pensam aquilo que está na letra
da música. Se você sai de lá, você paga um preço. Por ficar, você paga um preço.
E isso o incomoda?
Mano Brown – Não! Incomoda um dia. Dois dias, não. Quando fiz a música eu estava
incomodado.
Ice Blue — Na verdade, a gente vive num lugar que a gente tem que ter cuidado com tudo
o que a gente fala. Não podemos falar a coisa por emoção. A gente não pode demonstrar
sentimento. Mostrar sentimento é mostrar fraqueza. O cara chega para você e diz: Tá rindo
por quê? Tá facinho?
[para Ice Blue] Há pouco tempo, as pessoas o criticavam por você andar pela
periferia com motos importadas. Como você recebia essas críticas?
Ice Blue — Eu penso assim... Na zona sul, hoje, todos os moleques de 14 e 15 anos, da [Vila]
Fundão ou no Vaz de Lima... Bom, se você perguntar qual é o sonho deles, eles vão dizer
que é um Golf vermelho GTI e uma moto 500 cilindradas. Cada um na zona sul, cada
cara, cada favelado, tem uma viagem. Eu queria ter uma 7 Galo. Era meu sonho. Eu via os
ladrão dos anos 80, e pá... Todo mundo de 7 Galo. Quando tive a oportunidade de ter uma
moto, eu comprei logo a top [de linha], a [moto] que era dos malandro. A moto que os caras
andam. O fulano do morro de cima tem um RR. Eu estacionava minha moto, com chave
no contato, e ia trocar uma idéia com os caras. Eu sempre quero andar despreocupado.
Muitos ficam com esta conversa [de inveja], mas continuei andando nos mesmos lugares, nas
mesmas favelas. Não mudou nada.
E tinha muita cobrança?
Ice Blue — Se tinha cobrança, não sei... A gente tem que ser frio para algumas coisas. A
gente não pode abraçar a idéia e ficar se limitando por causa dos outros. Você tem que ser
você. Hoje, eu vejo que existem necessidades muito mais importantes do que ter uma moto
muito louca para andar.
E quais são suas necessidades hoje?
Ice Blue — Tem várias... Tem várias coisas. Se você chega no hospital Campo Limpo,
você olha para as condições do hospital e... Eu me machuquei um dia destes, e os caras me
levaram ao hospital. Mas eles não ofereciam condições de fazer um curativo naquele lugar.
Aí, você começa a pensar: Pô, você é ser humano e não vale nada. Qualquer coisa te atinge.
Vem uma pedra dali e pá... Acabou você!!!
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