8º ENCONTRO ABCP
01 a 04 de Agosto de 2012 - GRAMADO, RS
ÁREA TEMÁTICA: RELAÇÕES INTERNACIONAIS
LIBERDADE DE CONVIÇÃO: O MULTICULTURALISMO E SUAS REPERCUSSÕES NO ESPAÇO INTERNACIONAL
Riva Sobrado de Freitas (UNOESC/UNESP)
Danielle Jacon Ayres Pinto (UNICAMP)
2
LIBERDADE DE CONVIÇÃO: O MULTICULTURALISMO E SUAS
REPERCUSSÕES NO ESPAÇO INTERNACIONAL
Riva Sobrado de Freitas1
Danielle Jacon Ayres Pinto2
1. INTRODUÇÃO
Quando nos propusemos à analisar a liberdade de expressão, o
multiculturalismo e a repercussão dessa dinâmica no espaço internacional, tínhamos
em mente as indagações, já há algum tempo referidas, pelo professor Boaventura
da Sousa Santos quanto à legitimação dos Direitos Humanos no Sistema
Internacional.
Em verdade, tratando-se os Direitos Humanos de uma linguagem do sistema
internacional, originada, contudo, no Ocidente, a questão suscitada tocaria a real
possibilidade destes direitos estarem aptos a promover a necessária tutela à
Dignidade Humana, respeitando plenamente as suas diversidades culturais,
religiosas, valores e visões distintas do mundo.3
Para Boaventura,4 como os Direitos Humanos não se originam de uma matriz
universal, devem ter sua legitimidade e validação colocadas à prova de modo a
evitar que os Direitos Humanos acabem por se constituir em instrumento para a
1 Pesquisadora da Pós-graduação em Direitos Fundamentais da UNOESC, Professora aposentada Assistente-Doutor de Direitos Humanos e Direito Constitucional II da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Pós-doutora em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, Portugal.
2 Coordenadora do curso de Relações Internacionais do IESB-PREVE – Bauru, Professora da disciplina de Política Externa e Teoria das Relações Internacionais. Graduada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra (revalidado pela USP) e atualmente doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Campinas – UNICAMP.
3 Santos (2003). 4 Santos (2003).
3
propagação do imperialismo cultural e da hegemonia de países avançados sobre
segmentos sociais carentes ou países de economia débil.
Dessa forma, pareceu-nos interessante recuperar nesta pesquisa a tradição
francesa, berço das primeiras declarações dos Direitos do Homem, de caráter
universalista, no que se refere à construção do Estado Laico e à afirmação da
Liberdade de Crença do século XVIII aos dias atuais, com vistas a constatar os
ensinamentos de Boaventura quanto ao respeito ao pluralismo cultural e à proteção
da eficácia material da Liberdade de Convicção Religiosa.
Para tanto, em primeiro plano buscamos retomar alguns conceitos técnicos
sobre a Liberdade de Expressão e a Liberdade de Crença, identificando suas
semelhanças e distinções, para referenciar a importância da sua eficácia material à
promoção da Dignidade Humana.
Identificamos, de outra parte, a relevância da afirmação do laicismo na
modernidade, como forma de garantir o exercício da convicção religiosa plena, até a
atualidade, com a sua evidente flexibilização e reflexos para a garantia das religiões
minoritárias.
Posteriormente tratamos da experiência francesa, sem desconsiderarmos a
realidade social na qual se evidencia antigo preconceito contra os adeptos do
islamismo, analisando as restrições a eles impostas, como as proibições do uso do
véu islâmico e do nigah, em escolas públicas, hospitais, edifícios públicos e meios
de transporte públicos, com a curiosa alegação de que seu uso configuraria
proselitismo e desrespeito às liberdades dos outros.
Com essas observações, voltamos a Boaventura5 para concordar que os
Direitos Humanos somente serão universalmente válidos nas relações
internacionais, se forem retomados sob uma política emancipatória de respeito ao
multiculturalismo.
2. DIGNIDADE HUMANA E LIBERDADE: A LIBERDADE DE PENSAMENTO E A LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA, DISTINÇÕES E SEMELHANÇAS
5 Santos (2003).
4
Em um primeiro plano procuraremos indicar a natureza do conceito
operacional que ora utilizamos para o termo Dignidade Humana.
Partimos da afirmação de que a Dignidade Humana equivale a um valor
existente na sociedade e que corresponde a uma ideia de justiça e de adequação
essencial ao desenvolvimento da vida humana em sua plenitude. Naturalmente, a
opção por considerá-la um valor social flexibiliza substancialmente seu conteúdo,
possibilitando alterá-lo em conformidade com as transformações sociais no tempo e
no espaço em que estiver situado.
Dessa forma, ao longo da história observamos conteúdos distintos para
Dignidade Humana, consoante as variáveis políticas e sociais, havendo pois
diferentes expectativas para Dignidade Humana, em constante revisão, de modo a
corresponder aos novos valores sociais.6
Uma das primeiras aspirações na modernidade (séc. XVIII), no que se refere
à Dignidade Humana foi a afirmação da liberdade enquanto valor essencial à
condição humana. Um espaço sem ingerência de terceiros, de modo a garantir a
qualquer indivíduo a realização de seus próprios objetivos, sem o dever de
obediência a outrem.
Naturalmente, a consciência da liberdade enquanto um poder de
autodeterminação necessário à dignidade do ser humano é contemporânea a
concepções ideológicas liberais do século XVIII, marcado pela afirmação da
burguesia frente ao absolutismo da monarquia de então. É importante ressaltar que
a liberdade para os gregos era unicamente a prerrogativa conferida aos cidadãos de
participar das decisões políticas e nisto diferenciava-se do liberalismo clássico.7
Entretanto, de qualquer forma, ainda que eivada em sua origem (séc. XVIII) dos
aspectos ideológicos do paradigma liberal vigente, as liberdades permaneceram
como um direito de escolha até os dias atuais, apenas sofrendo alterações quanto
às técnicas de tratamento implementadas pelos Estados contemporâneos.
Neste sentido, a liberdade, quanto ao seu conteúdo, caracteriza-se por não
haver submissão a outrem, no fato de não estar sob o controle de terceiros, de não
6 Martins Costa (2002) com um conceito bem mais restrito de Dignidade Humana. Para ela, este conceito refere-se apenas à ‘última ratio da argumentação’, com o objetivo apenas de vedar o que está no limite da inumanidade. 7 Coulanges (1971).
5
sofrer restrições impositivas, venham estas do Estado ou de outro indivíduo.
Observamos portanto uma inequívoca conotação de restrição que recai sobre uma
esfera social dentro da qual o indivíduo pode exercer a sua autodeterminação.8
Este aspecto redutivo em relação à intervenção de terceiros é ressaltado por
George Burdeau9 quando discorre sobre liberdade: “liberdade é a ausência de todo e
qualquer constrangimento.” Salienta o autor que esta poderá ser física ou espiritual,
explicando que no segundo caso seria considerada como sentimento de
independência. Ressalta, também, a importância da liberdade como a faculdade de
participar da elaboração das normas necessárias à manutenção da ordem social.
Para o autor, o homem seria efetivamente livre, à medida que o Poder não lhe
pudesse impor atitude para a qual não houvesse dado consentimentos.
Para Haroldo Laski,10 a liberdade é “[...] ausência de coação sobre a
existência daquelas condições sociais que, na civilização moderna, são as garantias
necessárias da felicidade individual.”
Verificamos que Laski também faz referência ao aspecto restritivo da
liberdade, opondo limites à intervenção de terceiros, muito embora nos moldes já de
um paradigma de Estado Social.
Isaiah Berlin11 apresenta duas expectativas para o conceito de liberdade: a
liberdade negativa, opositora a todo o tipo de ingerência, e, nesse aspecto, em nada
difere da grande maioria dos doutrinadores (freedom of) e a liberdade positiva,
identificada pela expressão freedom to, enfocando a liberdade enquanto participação
política. Nesse aspecto, identifica-se com Burdeau.
Muitos outros autores ainda poderíamos relacionar, mas, com certeza,
verificaríamos a presença de ambas conotações atinentes à liberdade: a) o aspecto
de negação a qualquer coação ou intervenção e b) a possibilidade apenas de
submissão a normas para as quais diretamente ou por intermédio de seus
representantes houvesse dado consentimento.
Concluímos então que a liberdade consiste em um direito de escolha,
exercido em determinada situação, circunstância ou espaço social, na qual o
8 Burdeau (1972). 9 Burdeau (1972, p. 10). 10 Laski (1945, p. 17). 11 Berlin (1981).
6
indivíduo ou um segmento social (para os casos de liberdade coletiva) exercem
plenamente a sua autodeterminação.
3. LIMITES AO EXERCÍCIO DA LIBERDADE
Entre as variáveis de comportamento em face do dever-ser estatal,
identificamos apenas três possibilidades de ação para o indivíduo: ou ele está
obrigado ao cometimento de um ato; ou está proibido a empreendê-lo; ou, ainda,
para aquela circunstância estabelecida por lei existe a garantia de escolha da
conduta mais adequada. Trata-se, este último caso, da liberdade: um direito à
autodeterminação reconhecido pelo Estado.
Entretanto, mesmo havendo previsão legal para escolha, a liberdade não
poderá ser exercida de forma ilimitada. É fundamental o entendimento de que a
escolha, por definição, apresenta limites quanto ao seu exercício. Qualquer conduta
que ultrapasse os limites dessa esfera de autodeterminação poderá ser objeto de
repressão. Assim, por exemplo: a liberdade de Manifestação do Pensamento
estabelecida pelo ordenamento jurídico, não autoriza a calúnia ou a injúria, condutas
estas situadas para além da possibilidade de escolha garantida pela liberdade de
expressão. Nesse sentido, poderíamos observar ainda outro exemplo: a liberdade de
Culto Religioso. Esta não é compatível com o sacrifício de criancinhas, ainda que
este esteja previsto em algum ritual religioso. São, pois, condutas inadmissíveis,
reprovadas pela sociedade, que teriam ultrapassado os limites da liberdade de culto
religioso, possível portanto de ação estatal.
A liberdade, quando inserida e tutelada pelo ordenamento jurídico faz
contraponto com a legalidade, por ele mesmo estabelecida, que lhe oferece os
limites de atuação e escolha. Objetiva-se que o indivíduo poderá, no exercício da
liberdade, escolher livremente até encontrar uma lei que lhe imponha uma obrigação
ou uma proibição. Deverá então autodeterminar-se até que uma lei disponha em
sentido contrário a sua escolha. A proibição e a obrigação quando objeto de lei
(espécie normativa originada do legislativo) constituem os limites ao exercício da
liberdade.
7
Dessa forma, temos o núcleo da liberdade tutelada diretamente pela
Constituição, por se tratar de Direito Fundamental. Entretanto, os contornos que lhe
estabelecem limites estão disponibilizados mediante leis do ordenamento jurídico
que impõem obrigações ou proibições.
É importante entretanto ressaltar que estes limites deverão se originar em leis
em sentido estrito, ou seja Ato Normativo originado do Congresso Nacional. O
sentido para este entendimento é preciso: A limitação para o exercício da liberdade
somente poderá advir de decisão para a qual houve consentimento popular. Assim,
somente a lei enquanto decisão oriunda da soberania popular (diretamente ou
mediante seus representantes) teria legitimidade para opor limites ao exercício da
liberdade. Por extensão, consoante Ferreira Filho12 outros atos normativos primários
seriam capazes também de estabelecer tais limites: medidas provisórias e leis
delegadas.
Verificamos, pois, que os limites ao Direito de Escolha somente poderão ser
interpostos pela vontade popular, expresso por intermédio de leis, buscando sempre
a defesa do interesse da coletividade, na proteção do Direito de todos. Decretos
regulamentares, portarias e outros dispositivos não teriam legitimidade popular para
tanto e seriam tentativas infrutíferas face à legalidade exigível para o caso em tela.
4. LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO E EXPRESSÃO DO PENSAMENTO E
LIBERDADE DE CONVICÇÃO POLÍTICA E RELIGIOSA: SEMELHANÇAS E DISTINÇÕES
A Liberdade de Pensamento enquanto modalidade de liberdade considerada
em si mesmo, portanto, antes de sua comunicação dirigida à sociedade, pouco
interesse tem despertado na diversidade dos doutrinadores na área do direito. Em
verdade compreende-se tratar de matéria unicamente atinente ao próprio indivíduo e
sua esfera intelectual, sem interesse à sociedade e ao ordenamento jurídico.
Em que pese esta afirmação desconsiderar a importância dos formadores de
opinião (proselitismo) ou através da mídia, a força da propaganda, para além de
eventuais manipulações dos fatos veiculados, capazes de condicionar o pensamento
12 Ferreira Filho (1988).
8
e a formulação de opiniões em geral, ainda hoje tal entendimento é veiculado de
forma recorrente. A preocupação com a tutela da liberdade na própria elaboração do
pensamento tem sido relegada a segundo plano.
Entretanto, parece não haver dúvidas no que se refere à tutela do
pensamento quando ele se desloca do foro íntimo, ou simples função psíquica, para
a palavra manifesta. Tutela-se, portanto, a Liberdade de Manifestação do
Pensamento quando dirigida ao público, ou em caráter sigiloso. De igual maneira
esta proteção alcança a palavra escrita, ainda quando veiculada pela imprensa.
Observamos então que a Liberdade de Pensamento ganha expressão
enquanto uma liberdade primária, da qual outras liberdades são derivadas.13 O Ser
Humano, social por excelência, sente a necessidade de transmitir seu pensamento,
de forma direta e imediata, quando se encontra em presença de outro homem.
Temos então a Liberdade de Pensamento que poderá ter caráter público ou sigiloso.
Entretanto, quando houver entre o Ser Humano que emite o pensamento e a pessoa
que o recebe, um vínculo de comunicação (imprensa, televisão, rádio, etc.) temos
para o caso descrito o desdobramento de mais um aspecto da proteção: a Liberdade
de Imprensa, ou a tutela do Direito de Informar, essencial à consolidação da
democracia nos Estados contemporâneos. Consistem ambos no direito de veicular
livremente o pensamento e os fatos, sem submetê-los à censura de qualquer
natureza.
Como decorrência do Direito de Informar (liberdade individual) afirma-se o
direito da coletividade à informação. Observa-se, portanto, o deslocamento da
liberdade individual (liberdade de imprensa) para o direito de caráter coletivo: o
Direito da coletividade à informação.14
5. LIBERDADE DE CONVICÇÃO FILOSÓFICA E RELIGIOSA
Entre as liberdades que focam o pensamento, ressaltamos a necessidade
ainda de uma distinção. Esta refere-se aos casos em que o pensamento abandona a
singeleza de um simples pensar, sem grandes comprometimentos, para transformar-
13 Colliard (1972). 14 Greco (1974).
9
se em uma convicção de cariz filosófico ou religioso. Nesses casos, as repercussões
são profundas e transformadoras na órbita do comportamento humano. Uma
convicção, tenha ela a natureza filosófica ou religiosa, não se restringe apenas ao
foro íntimo, implica a externalização de um agir em sociedade, consoante a ideologia
adotada. Torna-se inclusive muito difícil a identificação de uma convicção.
Invariavelmente, aquele que a possui evidencia o comportamento pertinente ou uma
atitude intelectual de sua escolha.
Assim, por exemplo, aquele que adotou por convicção a filosofia Vegan,15 terá
o hábito de alimentar-se sem a ingestão de alimentos derivados de animais, por
convicções éticas de respeito a estes. Também vai apresentar-se vestido com
tecidos não especistas, como couro, seda, lã, etc. Verificamos, portanto, que a
convicção não constitui apenas um pensamento fortuito, facilmente cambiável, mas,
ao contrário, implica a reprodução de hábitos comportamentais próprios a esta
convicção. Não se trata de proselitismo, ou do simples ato de manifestar o
pensamento. Falamos de uma interação em sociedade pautada pela convicção.
Situação equivalente há de ser observada quando a convicção recai sobre as
religiões em geral. É comum encontrarmos padres fora de seus templos católicos
envergando vestimentas sacerdotais, como batinas e crucifixos; judeus exibindo em
festas ou em público, nas ruas, sua Kipa e a utilização das burcas por mulheres
muçulmanas.
Ao observarmos tais fatos somos levados a concluir que o respeito à
liberdade de convicção (filosófica, política ou religiosa) não pode se restringir apenas
à Liberdade de Culto Religioso ou à Liberdade para a criação de partidos políticos
ou agremiações para a veiculação de ideologias. Sem dúvida, a tutela dessas
liberdades é fundamental à garantia da liberdade de convicção. Entretanto, o que se
ressalta aqui é a necessidade de uma proteção mais ampla para a Liberdade de
Convicção. Esta deve compreender o respeito à exteriorização de um
comportamento, para além dos templos religiosos, consentâneo com a convicção,
como forma de garantia da dignidade de cada um, em sua diversidade.
15 Vegan é a terminologia utilizada na língua inglesa; no português utiliza-se a palavra vegano. Porém, termo esse bem menos conhecido do que o primeiro citado. Para saber mais sobre essa filosofia acessar o site <www.americanvegan.org>.
10
Ainda, como Liberdade de Convicção, apontamos também a importância do
direito de criar a sua própria religião, bem como de não seguir nenhuma, adotando o
ceticismo.
6. ESTADO LAICO E LIBERDADE DE CONVICÇÃO: O LAICISMO
Com vistas à delimitação de um conceito operacional para o termo Estado
Laico, ou para Laicismo, é importante esclarecermos em um primeiro momento
tratar-se de vocábulo de origem latina. Países de tradição anglo-saxônica preferem a
palavra secularismo para designar conteúdo semelhante.16
De qualquer maneira estamos a tratar do Estado Leigo, ou de uma cultura
leiga: o Laicismo, já emancipada de uma dogmática religiosa, como até então havia
imperado.
É importante ressaltarmos que a moral religiosa cristã havia florescido desde
as invasões bárbaras de modo a transformar-se em força organizadora hegemônica
e elemento de unificação capaz de superar os entraves da sociedade feudal para
contribuir decisivamente à implantação do Estado Absolutista.
Com a Renascença foram desprestigiados os dogmas religiosos e as
“verdades absolutas reveladas”, para ganhar importância as ciências naturais e a
busca pelas verdades relativas, passíveis de serem superadas mediante
comprovações científicas e pelo exame crítico.
A partir do século XVII já é possível observar uma separação que
gradualmente demarca os espaços ocupados pelo pensamento político e pelo
ideário religioso, favorecendo a afirmação de uma cultura laica.
No século XVIII, a criação do Estado Moderno, em oposição ao absolutismo
das monarquias de então, revela, de maneira inequívoca, a opção por uma
racionalidade leiga, baseada em ideias iluministas que, entre tantas propostas,
também repelem qualquer subordinação a preceitos religiosos, afirmando a
autonomia entre o pensamento político e o religioso.17
16 Zanone (2002). 17 Durante algum tempo defendia-se a ideia de que Grocius tinha sido o iniciador do Jus-naturalismo moderno. Entretanto difunde-se atualmente a noção de que este começa com Hobbes, porque se tem
11
O Estado laico situa-se portanto ligado a esta nova racionalidade política que
ganha expressão no século XVIII e surge em oposição ao Estado Confessional.
Este, por sua vez, pode ser identificado como aquele que estabelece uma relação
íntima, de natureza jurídica com determinada religião. Isto o leva a privilegiar os
adeptos desta igreja em detrimento de outros.
É interessante que se observe, entretanto, que o Estado Confessional,
embora faça de maneira explícita a opção por uma religião, não proíbe a existência
em seu território de outras religiões, ou, até mesmo, a tolerância quanto à descrença
religiosa. Nesses Estados, as demais religiões seriam apenas toleradas.18
Podemos citar como exemplo a nossa Constituição Política do Império (art.
5º). Consoante esta constituição havia previsão expressa para a participação do
Estado na designação e subvenção de ministros religiosos (art. 102º, II e XIV).
Entretanto, quanto ao Estado leigo é interessante notar que este não adota
uma ideologia laicista. De forma alguma se identifica com uma ideologia irreligiosa
ou antirreligiosa. O Estado Laico não implica uma irreligiosidade, assim como o leigo
não necessariamente incrédulo. A convivência entre as esferas temporal e espiritual
traduz-se em autonomia e reciprocidade. Essa separação não significa portanto
confronto entre Estado e Igreja.19
No que se refere à reciprocidade e autonomia entre religião e política, um
autor de grande importância para a modernidade deve ser lembrado: John Locke.
Manifesta-se este autor em sua obra Epístola sobre a tolerância, afirmando que o
poder político não deve emitir juízos sobre religião, por não ter legitimidade ou
competência para elaborar conceitos em matéria de fé. De outra parte indica que a
Igreja deve se restringir ao campo exclusivamente espiritual por meio do culto a
Deus, sem qualquer ingerência em bens terrenos e, sobretudo, em utilizar-se da
força enquanto elemento de persuasão. A adesão à fé, segundo o autor, deve advir
espontaneamente pela formação livre de uma convicção religiosa.20
Ainda no que se refere às relações entre Estado e Igreja, convém fazer
menção a documentos de importância que foram firmados com o escopo de colocado em dúvida a originalidade filosófica de Grocius, considerando a filosofia do fim do renascimento. (BOBBIO, [19--], p.1-2). 18 Robert (1977). 19 Zanone (2002). 20 Locke (1689).
12
esclarecer a natureza desta autonomia. Assim, os documentos do Concílio
Ecumênico Vaticano II, por exemplo, fazem referência explícita à independência que
deve existir entre a comunidade política e a Igreja. Quanto aos Estados, o que se
verifica é que a grande maioria tem reivindicado, desde o século XVIII, os princípios
laicos. Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, vem respaldar tais objetivos
quando em especial reconhece (art. 18º) a cada indivíduo o direito à mais ampla
liberdade de convicção religiosa, tratando também de outras liberdades conexas,
como: a liberdade de culto; observância de cultos religiosos, abarcando, inclusive, a
liberdade de manifestar de forma particular ou pública sua crença ou religião,
inclusive no ensino.
Entretanto, em que pese as informações dos doutrinadores em sua grande
maioria, para além dos documentos ao longo da história que propugnam pela defesa
da independência do Estado Laico em questões religiosas, o que se observa nos
dias atuais é um certo abrandamento no que se refere à tradição anticlericalista que
marcou o século XVIII. Observa-se, não sem alguma preocupação, certa tolerância
por parte dos Estados leigos quanto à influência religiosa na vida pública.21
Em verdade, a partir da constatação de que a comunidade política é
composta em sua pluralidade por crentes, que exercem seu direito de voto, torna-se
inviável a vedação total de alguma ingerência das Igrejas na vida pública.
Entretanto, é pertinente que se esclareça precisamente em que termos esta
nova relação de autonomia e reciprocidade (Estado/Igreja) deve ser revista, de
modo a não inviabilizar todo um caminho já percorrido na defesa da liberdade de
convicção religiosa.
Quando investigamos os caminhos percorridos pelo Estado Laico concluímos
pela sua relevância na proteção da sociedade civil, especialmente, porque tem
neutralidade e isenção suficientes para impedir qualquer ingerência indesejada
oriunda de religiões (especialmente as majoritárias) sobre os indivíduos em geral.
De outra parte, e isto nos parece substancial, apenas o Estado Leigo,
independente de ligações religiosas, estaria apto para garantir a autonomia de todas
21 Zanone (2002).
13
as opções religiosas, sobretudo as minoritárias, impedindo, de maneira eficaz,
qualquer imposição ou controle originado de Igreja oficial ou majoritária.
Atualmente, na sociedade contemporânea uma nova forma de interação entre
Estado e Igreja deve ser cogitada. Entretanto, não pode o Estado Laico, sob pena do
comprometimento da Liberdade de convicção (seja ela religiosa, política, seja
filosófica) se render a influências religiosas, especialmente quando estas forem
suficientemente fortes para se sobrepor às opções políticas em favor das liberdades
já conquistadas, ou da Dignidade Humana em sua diversidade.
7. A EXPERIÊNCIA FRANCESA CONTEMPORÂNEA NA EFICÁCIA MATERIAL
DA LIBERDADE DE CONVICÇÃO
O desconforto dos europeus ante a presença islâmica, a partir de atentados
terroristas, especialmente o ocorrido em 11 de setembro de 2001, e de outra parte
uma notada impotência no que se refere à promoção da segurança de seus
cidadãos tem ensejado em diferentes países uma rejeição explicíta aos adeptos da
religião mulçumana.
Observa-se uma manifesta opção pela sua exclusão social, utilizando-se, de
modo a silênciá-los, da supressão de sua identidade religiosa, com a proibição
recorrente da utilização dos símbolos religiosos que os identificam.
Providências governamentais e medidas na órbita da educação têm
repercutido a proibição da burca e do nigah nas ruas e em centros comerciais em
vários países europeus, para além da proibição de tais símbolos em
estabelecimento de ensino público, sob a argumentação de que constituem práticas
atentatórias aos valores democráticos. Quando essas decisões adentram os
estabelecimentos de ensino, constatamos sua repercussão no acesso ao ensino.
Como já tivemos a oportunidade de proceder à análise da Liberdade de
Convicção religiosa, sabemos que esta não se restringe à liberdade para um simples
pensar fortuito de foro íntimo. Uma convicção implica a externalização de
comportamentos e atos com ela compatíveis.
Entendemos ainda que sua manifestação é mais abrangente do que a simples
expressão verbal dessa crença. Engloba atitudes, vestimentas, alimentação, cultos,
14
práticas religiosas e toda a sorte de comportamentos consentâneos com a convicção
adotada.
De maneira alguma estamos afirmando que o exercício da convicção há de
se realizar de forma a ferir o ordenamento jurídico ou a ordem pública de um
determinado país. Toda a liberdade é limitada, e consiste na possibilidade de se
autodeterminar senão em virtude de lei que lhe imponha, ou um comportamento
obrigatório, ou uma proibição.
Então, quando a ordem constitucional de um país tutela uma liberdade, o
exercício dessa escolha, prevista na constituição, deve ser respeitado, ou então
temos uma situação de flagrante inconstitucionalidade.
Consoante as afirmações apresentadas no texto e pela importância que
proibições desta natureza possam significar à Dignidade Humana, no que se refere
à expressão da convicção religiosa, com repercussões até para a liberdade de
ensino é que passamos então ao estudo de casos emblemáticos da realidade
francesa, de modo a identificar traços marcantes da sua trajetória de Estado Laico
na tutela da Liberdade de convicção religiosa.
8. ASPECTOS DO LAICISMO FRANCÊS E LIBERDADE DE CONVICÇÃO RELIGIOSA
A afirmação da cultura laica em França ganha relevo já no século XVIII com a
Revolução Francesa de 1789. A partir de então, por força e vigor das ideias
iluministas que inspiraram a construção da racionalidade moderna, o que se
constata é a clara opção pela separação entre o pensamento político e o
pensamento religioso.
Esta tendência na cultura de maneira geral e com repercussão na construção
do Estado Moderno, haveria de ser identificada, com maior ou menor intensidade
nas revoluções liberais.
Entretanto, apesar da preferência pela introdução de uma racionalidade laica,
a separação entre Estado e Igreja foi gradualmente demarcada na França mediante
a implementação progressiva de atitudes governamentais e iniciativas na legislação,
levadas a efeito, não sem resistência e confronto, em especial com a Igreja Católica.
15
Já em 26 de agosto de 1789 o povo francês estabelece a Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão, cujos preceitos influenciaram as constituições
vindouras. Nesta declaração (art. 10º) fica expressamente reconhecida a liberdade
de convicção religiosa, cuja externalização não deveria comprometer as barreiras
legais e a ordem pública22
Observa-se, portanto, a demarcação de limites para a atuação das igrejas e
do Estado em relação à sociedade civil,23 evidenciando de outra parte a neutralidade
do Estado, à medida que tutela a liberdade individual para qualquer adesão
religiosa.
Sabemos que a Declaração de Direitos do Homem foi fortemente influenciada
pelo Direito Natural, marcado pelo cristianismo. Todavia, já se constata à época a
presença das ideias racionalistas capitaneadas por Grocius (De Iure Belli at Paces).
A “vontade de Deus” já havia sido substituída pela razão humana.
Em continuidade à afirmação do laicismo, em 1791 a Constituição francesa
estabeleceu a Liberdade de Culto em acréscimo à Liberdade Religiosa.
Posteriormente, outras medidas foram introduzidas, dando seguimento aos
processos de autonomia Estado/Igreja, como o registro de nascimento e morte que
migrou para o Estado e a instituição do casamento civil. A partir do século XIX, o
poder público assume a responsabilidade pelos hospitais e cemitérios até então sob
o controle da Igreja Católica.24
Entretanto, parece-nos que o embate de maior visibilidade e relevância no
processo de emancipação foi a laicização do ensino, a partir das ideias de Jules
Ferry, que revolucionou a educação em França. Em 1880, o ensino primário
tournou-se público, gratuito e obrigatório.25
Sem dúvidas, estas medidas dirigidas à formação das novas gerações em
bases distintas de dogmas religiosos foram essenciais à consolidação da cultura
laica francesa e desencadearam logo a seguir outras providências legislativas em
acréscimo, por força da implantação do projeto de Jules Ferry. Em 1886, por
intermédio de dispositivo legal foram exigidos professores leigos no ensino primário
22 Silva (1989). 23 Duverger (1971). 24 Werebe (2004). 25 Werebe (2004).
16
público; retiraram-se os crucifixos de sala de aula e toda a propaganda quer política,
quer religiosa foi abolida da atividade docente.
Certamente a Igreja Católica sentiu-se desprestigiada e desencadeou, de
maneira implacável, atitudes persecutórias quanto a Jules Ferry. De qualquer forma,
naquele momento as transformações já eram irreversíveis.26
Finalmente, em 1905 ocorreu a separação oficial entre Estado e Igreja, por
força de lei. A partir de então a imparcialidade do Estado tornou-se obrigatória.
Analisando a trajetória francesa, quanto ao reconhecimento da Liberdade de
Convicção, o que se percebe é que a sua efetivação jamais teria ocorrido sem o
processo de laicização do Estado na França.
Esta constatação nos leva a cogitar se a Liberdade de Convicção religiosa,
política ou filosófica, haveria de ser viável em países cuja emancipação do
pensamento político não levou à implementação do Estado Laico.
Claude-Albert Colliard, em sua obra, Liberté Publique, faz algumas digressões
sobre a liberdade de crença que talvez possa vir em auxílio.
O autor27 descreve a Liberdade Religiosa como aquela constituída por duas
expressões. A primeira diz respeito ao seu conteúdo e a segunda refere-se aos seus
limites.
O primeiro aspecto, denominado de “valor indiferença”28 faz alusão à
neutralidade do Estado, que há de agir com a necessária indiferença, quanto à
externalização da crença (ou convicção política ou filosófica).
De outra parte, a Liberdade de Convicção possibilita a seu titular, reivindicar a
proteção do Estado a qualquer momento, sempre que houver contra ela qualquer
turbação.
Menciona ainda Colliard29 o direito do titular exigir também do Estado que
considere a sua consciência de modo a eximi-lo de alguma obrigação incompatível
com a sua crença religiosa. Essa possibilidade, admitida em diferentes
ordenamentos jurídicos (i.e. Brasil) ficou conhecida como escusa de consciência.30
26 Werebe (2004). 27 Colliard (1972). 28 Colliard (1972, p. 336). 29 Colliard (1972). 30 Bastos (1997).
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Analisando os ensinamentos de Colliard, concluímos que apenas a
neutralidade do Estado quanto às pressões religiosas é suficiente para garantir
completude à Liberdade de Convicção.
Quer nos parecer que, enquanto houver isenção por parte do Estado, seja ele
laico, seja confessional, haverá o respeito à Liberdade de Crença.
Considerando em contrapartida o “abrandamento” do laicismo nos dias atuais,
flexibilizando sua neutralidade e adequando as decisões ao sabor das pressões
exercidas pelas comunidades religiosas (os crentes votam e ocupam cadeiras no
parlamento), vemos, com muito receio, o futuro da liberdade religiosa, com
repercussões inevitáveis para a Dignidade Humana.
De outro lado, o Estado Laico contemporâneo enfrenta outro desafio na
atualidade, por força dos ataques terroristas que repercutiram no mundo inteiro,
levando à identificação do Islamismo com a prática do terrorismo, estigmatizando os
muçulmanos como possíveis terroristas. Especialmente na França, onde há um
grande contingente populacional de origem muçulmana (segunda religião na
França), esta questão acabou por tomar alguns rumos que pretendemos descrever e
discutir.
O colonialismo francês tem sido apontado como fator decisivo para o
preconceito bastante arraigado contra os muçulmanos no território da França. A
população muçulmana, formada na sua grande maioria por imigrantes, para além da
sua situação econômica precária sofre, sistematicamente, discriminações explícitas
em hospitais, escolas e repartições públicas, sob o argumento do laicismo das
instituições do Estado.31
Em verdade, como já pudemos observar, as restrições de neutralidade devem
ser direcionadas ao Estado e suas instituições. O Estado francês declarou-se laico.
A sociedade civil, entretanto, que acorre as suas dependências (hospitais, escolas,
repartições públicas) devem ser respeitadas na externalização da sua liberdade de
religião, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.
E que não se alegue o desrespeito ao Princípio da Igualdade, uma vez que
este princípio já se flexibilizou (igualdade material)32 de modo a proporcionar
31 Jerónimo (2010). 32 Ver a respeito Celso Antônio Bandeira de Melo (1984), quando menciona os critérios de discriminação para aplicação da igualdade material.
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tratamentos distintos a situações diferentes em sua aplicação. Esta atitude
supostamente rigorosa é descabida e preconceituosa.
Todo este desconforto eivado de preconceito em relação aos adeptos do
islamismo, com atentados terroristas de 11 de setembro, praticados por grupos
islâmicos radicais, transformaram esta rejeição em desconfiança, estiolando ainda
mais as relações já tensas, aumentando os conflitos sociais.
Esta situação levou os parlamentares do governo francês à propositura de
projeto de lei, proibindo externalização da Liberdade de crença religiosa, vedando a
utilização de símbolos religiosos por parte dos cidadãos (véu islâmico, taipa, estrela
de david, crucifixos, etc.). Certamente, esta proposta sofreu oposição de todas as
religiões, em especial a Igreja Católica.33 Entretanto, o que se deve indagar é sobre
a constitucionalidade da eventual Lei com tal conteúdo.
Já procedemos a análise da liberdade religiosa e constatamos que para além
do aspecto íntimo da opção, é da sua essência a externalização de atitudes. Não
podendo exibir símbolos religiosos necessários à sua identidade de adepto, a sua
relação de pertinência com a religião fica comprometida.
De outra parte, é bom lembrarmos os ensinamentos de Colliard.34 Para o
autor faz parte da liberdade de crença o direito de exigir, por parte do Estado,
providências distintas para o adepto, de modo inclusive a aximí-lo de obrigações a
todos impostas (i.e. excusa de consciência).
Trata-se, portanto, de qualquer lei ou projeto de lei desta natureza, de
incontestável inconstitucionalidade. Maior coerência legislativa haveria na
desconstitucionalização desta liberdade, com a consequência de assumir perante a
comunidade internacional o ônus de tal retrocesso.
Entretanto, em janeiro de 2010, uma comissão ad hoc foi instituída pelo
Parlamento em França, e esta recomendou a proibição do uso da burca e do nigah
em hospitais, transportes públicos, escolas e edifícios públicos, novamente
reiterando velhos argumentos supostamente laicos, indicando que os símbolos
islâmicos constituem uma afronta aos valores republicanos franceses.35
33 Werebe (2004). 34 Colliard (1972). 35 Jerónimo (2010).
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Dessa forma, distorcendo os preceitos laicos, necessariamente dirigidos ao
Estado e não à sociedade civil, a França mascara sob tal argumento, o seu
preconceito contra os adeptos do islamismo e também a sua impotência para
promover segurança aos seus cidadãos em território francês, diante da ameaça do
terror.
9. CASO BELGIN DOGRU CONTRA A FRANÇA EM 2008
Trata-se do caso de uma jovem aluna muçulmana que passou a utilizar o véu
islâmico em escola pública francesa. Belgin, matriculada no primeiro ano do ensino
secundário, recusou-se a despir o véu nas aulas de Educação Física mesmo contra
as alegações de seu professor que justificava, para a solicitação de retirada do véu,
questões de saúde, segurança e presença nas aulas em questão.
No exercício da sua convicção religiosa, a aluna compareceu às aulas de
educação física trajando o véu islâmico e foi impedida de tomar parte às atividades
por não estar adequadamente vestida. Para além desta providência, não lhe foi
também conferida a comprovação da sua presença, o que lhe levou a ser acusada
de não assiduidade.
Belgin, na busca de evitar a sua reprovação optou por usar apenas um
chapéu, uma balaclava (tipo de gorro) em substituição ao véu islâmico. Mesmo
assim, foi expulsa da escola pública, por acusação de haver ultrapassado os limites
do direito de manisfestar suas convicções religiosas dentro do recinto escolar, para
além da falta de assiduidade.
A partir de então, Belgin passou a ter aulas em casa, por correspondência.36
Naturalmente houve interposição de recurso por parte dos pais da aluna.
Primeiramente em relação ao Comitê Disciplinar da Escola, que decidiu expulsá-la.
Não houve sucesso; sequer consideraram a tentativa de Belgin para compatibilizar a
situação conflituosa quando da sua opção pela balaclava.
Posteriormente, houve a propositura de ação perante o Tribunal
Administrativo de Caen, para anular a referida decisão. Com os argumentos relativos
36 Jerónimo (2010).
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à incompatibilidade do vestuário, o Tribunal indeferiu a pretensão e ainda acusou
Belgin de proselitismo, por ter criado uma aura de tensão no ambiente escolar.
Houve ainda o recurso ao Tribunal Administrativo de Recurso de Nantes. Este
confirmou a decisão do Tribunal anterior.37
Esgotadas todas as alternativas, Belgin recorreu ao Tribunal Europeu de
Direitos do Homem, alegando interferência na sua crença religiosa e, ainda, violação
do seu direito à instrução.
O Tribunal aceitou suas alegações quanto às restrições atinentes à Liberdade
Religiosa, mas confirmou a proferida pela França, não restando alternativas à aluna.
10. CONCLUSÃO: POSSÍVEIS REPERCUSSÕES DA EXPERIÊNCIA FRANCESA NO MUNDO OCIDENTAL
Observando o comportamento do Estado francês no trato dos conflitos
religiosos e na interpretação contemporânea do laicismo verificamos duas questões
preocupantes:
a) Em primeiro plano a intransigência e o desrespeito à liberdade de convicção
religiosa mediante decisões e iniciativas legislativas de flagrante
inconstitucionalidade;
b) De outra parte a evidente deturpação conceitual do Estado laico, em uma
tentativa extremada de “flexibilizá-lo”, transferindo à sociedade civil a
neutralidade a ela dirigida. O Estado francês é laico, a sociedade civil não.
Há ainda de se lamentar a tibieza do Tribunal Europeu de Direitos Humanos,
para além da conivência com tal desrespeito.
Entendemos que a jurisdição deste Tribunal é, meramente subsidiária, no que
se refere às questões delicadas de relacionamento entre Estado e Igreja. Entretanto,
a defesa deste Tribunal é justamente a defesa plena da Dignidade Humana.
Furtando-se à verdadeira possibilidade de efetuar a dupla tutela quanto à defesa dos
Direitos Humanos, em verdade não há justificativas para sua existência.
37 Jerónimo (2010).
21
Outro aspecto a merecer reflexão diz respeito à possibilidade de legitimação
desse novo paradigma francês, alcançando outros países europeus de modo a se
alastrar de maneira generalizada, pelo mundo ocidental.
Especialmente em momentos de crise na economia mundial que repercute
com gravidade, inclusive em países de capitalismo avançado, o preconceito contra
as diferenças religiosas facilmente pode alcançar questões sociais, culturais e
sexuais, recaindo especialmente em minorias economicamente carentes.
Certamente a diversidade, caso não tenha a suficiente proteção, poderá se
transformar em fonte de conflito de grande expressão.
A indicar certa razoabilidade em nossas preocupações constatamos, já na
atualidade semelhante comportamento em países europeus que passaremos a
indicar.
a) Em 2009, o povo suiço demonstrou claramente em referendo popular sua
opção pela proibição da construção de torres nas Mesquitas (minaretes). Para
tanto, propugnaram inclusive por uma revisão constitucional. Essas torres têm
a finalidade de chamar os adeptos religiosos muçulmanos para realizar as
suas orações.
Neste episódio, felizmente, o referendo teve sua legalidade contestada
pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem;38
b) Em 2010, uma Comissão instituída pelo Parlamento francês recomendou
proibições do uso da burca e do nigah (tipo de véu islâmico que cobre o corpo
e o rosto da mulher), nas escolas públicas, hospitais, meios de transporte, etc.
A Comissão manifestou-se ainda pela proibição destes símbolos nas ruas e
centros comerciais. Felizmente, neste aspecto, retrocedeu pelo temor de que
as medidas, na sua integralidade, fossem objeto de censura pelo Couseil
d’Etat ou pelo tribunal Europeu dos Direitos do Homem;
c) Em 1998, na faculdade de Medicina Cerrahpara – Universidade de Istambul, a
aluna Leyla Sahir foi impedida de fazer exame escrito na disciplina de
Oncologia por estar usando o véu islâmico.
38 Jerónimo (2010).
22
As repercussões deste episódio acabaram culminando na sua
suspensão da universidade pelo período de um semestre. Leyla então
abandonou a Turquia e transferiu-se para a Universidade de Viena;
d) Belgin Dogru em 2008 foi retirada das salas de aula e obrigada a realizar os
seus estudos por correspondência, conforme já relatamos;
e) Evidenciando as discussões acerca do Estado laico, no que se refere ao seu
conteúdo e sua neutralidade, verificamos em 2009 o caso Lautsi, em relação
à Itália.
Soile Lautsi protestou contra a presença de crucifixos em salas de aula
de Escola Pública Italiana em Albano Terme, onde estudavam seus
dois filhos. Lautsi entendeu que esta prática violaria os princípios do
laicismo segundo os quais pretendia educar seus filhos e interpôs ação
perante o Tribunal Administrativo de Veneza.
O Tribunal Administrativo indeferiu o pedido de Soile Lautsi, com o
argumento de que o crucifixo constitui um símbolo de cultura da
história italiana, bem como um símbolo dos princípios da igualdade, da
tolerância e da laicidade estatal. Felizmente estas decisões foram
rejeitadas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos.
Torna-se evidente portanto as contradições e incoerências no tocante ao
laicismo contemporâneo.
Entretanto, em que pese as distintas interpretações, parece-nos essencial a
neutralidade no trato da diversidade religiosa, e, de outra parte, da responsabilidade
estatal na proteção da externalização da fé adotada. Entendemos que tais
comportamentos possam advir inclusive de um Estado Confessional quando, apesar
de externar suas preferências religiosas, atue com a devida neutralidade quanto às
crenças minoritárias, sem opor obstáculos às suas manifestações, como a utilização
de símbolos religiosos, cultos e a própria organização institucional de uma nova
Igreja.
Ao procedermos à análise de experiência francesa quanto ao laicismo e à
liberdade de crença, fomos levados à verificação de casos análogos, no Brasil.
Embora não tenhamos no território brasileiro uma herança colonial (do ponto de
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vista de país dominador) ou outros fatores que nos induzam a um preconceito
religioso relevante, encontramos um episódio digno de menção.
f) O caso Siegfried Ellwanger.
O caso que ora evocamos com brevidade refere-se ao editor Siegfried
Ellwanger, que escreveu e publicou livros pregando e justificando o ódio
aos judeus. Acusou-os de responsabilidade pelas mais variadas mazelas
e problemas mundiais, inclusive pela eclosão da 2ª Guerra Mundial, da
qual teriam sido os maiores responsáveis.
Encita, portanto, em seus livros, à segregação e à aversão do povo judeu.
Menciona, ainda, o que ele identifica como “inclinação racial parasitária”
do caráter e do povo judeu.
Seus livros foram: Holocausto Judeu ou Alemão? Nos bastidores da
Mentira; Os conquistadores do Mundo: os verdadeiros criminosos de
Guerra.
Embora fique evidente a intolerância religiosa, a questão no Brasil ganhou
conteúdo de discriminação racial, por se estender para além de uma
simples rejeição ao judaísmo, abarcando o preconceito contra o povo
judeu.
Dois princípios constitucionais, ambos atinentes à Dignidade Humana
foram evocados lado a lado: a Liberdade de Expressão do Pensamento
(por meio da palavra escrita) e, de outra parte, a Discriminação Étnica
contra os Judeus.
O caso Siegfried Ellwanger no Judiciário:39 um breve relato40 processado
contra o crime imprescritível de racismo:
- Em primeira instância Siegfried foi absolvido por ter entendido a juíza
singular, tratar-se meramente do exercício da Liberdade de Expressão
39 Para saber mais sobre esse caso consultar o site do Supremo Tribunal Federal do Brasil <www.stf.gov.br>. 40 Lei n. 7716/95; art. 20º: “Praticar, induzir ou incitar pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou o preconceito de raça, religião, etnia, procedência nacional. Pena de reclusão de dois a cinco anos.”
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do Pensamento, sem constituir crime de discriminação contra a
comunidade judaica (O crime seria prescritível);
- Em momento posterior impetrou-se, em favor do réu um Habeas
Corpus, afirmando com base argumentativa que o povo judeu não
constitui raça. Logo o réu, consoante esta justificativa, não poderia ser
apenado pelo crime de racismo (haveria portanto crime prescritível).
Entretanto, eivado de bom senso, o Superior Tribunal de Justiça, mediante
seu relator entendeu que houve delito contra a comunidade judaica,
englobando o racismo em tal comportamento (em havendo racismo, o
crime seria imprescritível);
- Finalmente, o caso Siegfried Ellwanger chegou ao Supremo Tribunal
Federal. A partir de então incorreram aos autos os mais contraditórios
argumentos, claramente eivados de ideologias, as mais distintas, não
apenas sobre a conceituação de racismo41 mas também quanto aos
limites no exercício da Liberdade de Expressão do Pensamento.
O Ministro Moreira Alves, em seu voto afirmou categoricamente que os
Judeus não constituem uma raça, indicando que tal constatação
poderia ser verificada em razão de dados físicos, como a cor da pele,
formato dos olhos, textura do cabelo, etc. Não havendo raça, o crime
não poderia ser enquadrado como racismo (haveria prescrição);
- Já o Ministro Ayres Brito, considerou em seu voto que a “Liberdade de
Expressão seria a maior expressão da liberdade”. A seu ver seriam
excludentes de qualquer abusividade a Liberdade de Expressão, bem
como a crença religiosa, a convicção filosófica e a política.42
Quando procedemos à leitura deste ficamos cogitando se estas
liberdades poderiam ser realmente exercidas de forma ilimitada? Como
41 Ver a esse respeito as afirmações do professor Miguel Reale Júnior sobre o conceito contemporâneo de racismo (REALE JÚNIOR, 2003, p. 223-248). 42 Para o autor, os princípios não podem ser aplicados segundo o critério do all or nothing. Em uma interpretação face aos conflitos entre princípios em caso concreto, ainda que um deles tenha maior peso e relevância isto não invalidará o menor peso relativo quanto ao outro princípio (DWORKING, 1989, p. 30).
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ficariam então os crimes de calúnia e injúria? Seriam admissíveis, por
exemplo, cultos religiosos com sacrifícios humanos? Tratou-se apenas
de uma retórica em prol da Liberdade de Expressão, o voto do
Ministro?
Felizmente tais fundamentos não informaram a unanimidade dos votos.
A Liberdade de Expressão, em que pese a sua relevância à Dignidade
Humana, não constitui justificativa para acobertar manifestações
preconceituosas, capazes de incitar violência e intolerância contra
grupos humanos. Assim, deve ser também compreendido o racismo de
forma ampla, até porque, já há muito tempo se sabe que as teorias
racistas não têm fundamentos biológicos.43 O racismo, portanto,
decorre da convicção de que há hierarquia entre grupos humanos,
preconceito que pode vir a justificar além da segregação, a eliminação
de pessoas, incompatível com o pluralismo que há de existir em
Estados Democráticos.
11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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26
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