Nilson Vidal Prata
INFORMAO E DEMOCRACIA DELIBERATIVA UM ESTUDO DE CASO DE PARTICIPAO POLTICA NA
ASSEMBLIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Informao da Escola de Cincia da Informao da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Informao.
rea de Concentrao: Produo, Organizao e Utilizao da Informao
Linha de Pesquisa: Informao, Cultura e Sociedade
Orientadora: Prof. Dr. Maria Guiomar da Cunha Frota Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte
Escola de Cincia da Informao da UFMG
2007
Prata, Nilson Vidal. P912 Informao e democracia deliberativa: um estudo de caso de participao poltica na Assemblia Legislativa do Estado de Minas Gerais / Nilson Vidal Prata. Belo Horizonte, 2007. 162 f.
Orientadora: Maria Guiomar da Cunha Frota.
Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Cincia da Informao.
1. Informao. 2. Participao poltica Minas Gerais. 3. Poder Legislativo Minas Gerais. I. Frota, Maria Guiomar da Cunha. II. Ttulo.
CDU: 007:321.7(815.1)
MEMRIA DE MEU PAI, QUE, DE TO BOM, PARTIU JOVEM DEMAIS. AO BRENO, MEU FILHO, A MAIS BRILHANTE LUZ NA MAIS ESCURA NOITE.
SANDRA, ESPOSA E CONFIDENTE, COMPANHEIRA DE TODA A VIDA.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeo a Deus por ter, como sempre, guiado os meus passos pelos caminhos de mais uma etapa da vida.
A duas pessoas devo, antes de tudo, um pedido de desculpas: ao Breno, filho querido que, apesar da ingenuidade de seus sete/oito anos, demonstrou possuir pacincia e compreenso dignas dos mais sbios para suportar minhas ausncias e meus humores, apenas pelo fato de me amar (talvez esta tenha sido a principal lio que aprendi no decorrer desta jornada); e Sandra que, pelas crticas e pelo apoio, me fez ver que tudo tem seu tempo, muito embora no tenhamos tempo para tudo.
Agradeo a meu pai (que infelizmente partiu durante a realizao deste trabalho) e minha me, que lutaram muito para que os filhos tivessem a oportunidade de estudar - coisa que eles prprios nunca tiveram - e tambm aos meus irmos, sempre importantes em minha vida.
Muitos colegas da Assemblia de Minas so merecedores da minha mais profunda gratido, tanto pelo apoio incondicional quanto pela inestimvel interlocuo que me desvelou preciosas dicas, idias e informaes. Sou especialmente grato Sheyla Abreu, Ordlia Arajo, Rosana Froes, ao Guilherme Ribeiro, ao Sabino Fleury, ao Rogrio de Senna, ao Ricardo Martins, Raquel Mansur, Luisa Luna, Daniela Santiago e Cludia Sampaio.
Meus mais sinceros e eternos agradecimentos tambm sempre dedicada e atenciosa Prof Maria Guiomar da Cunha Frota que, encontrando-me como que uma nau deriva, soube serenar o turbilho e conduzir-me a porto seguro.
Agradeo ainda ao Prof. Carlos Aurlio Pimenta de Faria, da PUC Minas, Prof Alcenir Soares dos Reis e aos demais professores e funcionrios da Escola de Cincia da Informao da UFMG, aos colegas da ps-graduao pelo profcuo convvio e a todas as pessoas que, de alguma forma, contriburam para a concretizao deste sonho.
...QUEM NO DISPE DA INFORMAO NECESSRIA A UMA PARTICIPAO
ESCLARECIDA, EQUIVOCA-SE QUER QUANDO PARTICIPA, QUER QUANDO NO PARTICIPA.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
RESUMO
Estuda-se, nesta dissertao, a relao entre informao e democracia deliberativa
para tentar compreender a dimenso informacional que envolve o processo de
participao poltica da sociedade organizada no mbito do Poder Legislativo
estadual. Para tanto, analisam-se as atividades desenvolvidas e a documentao
produzida em cada etapa de um mecanismo de interlocuo com a sociedade
denominado seminrio legislativo, promovido pela Assemblia Legislativa do
Estado de Minas Gerais. No plano terico, exploram-se os conceitos de assimetria
informacional, accountability e competncia informacional, considerados
fundamentais para a compreenso das possibilidades e dos limites de influncia da
informao no campo poltico. Procura-se ainda identificar os principais aspectos da
relao entre informao e democracia com base nos argumentos do elitismo
democrtico, da teoria polirquica e da teoria deliberativa de democracia. Conclui-se
que, no caso estudado, em linhas gerais, foram gerados fluxos informacionais que
propiciaram avanos relativos reduo da assimetria informacional e ampliao
dos nveis de accountability do processo democrtico. Contudo, identificaram-se
aspectos negativos relacionados escassez de informaes sobre os resultados
prticos da deliberao e disperso dos contedos gerados durante o seminrio
legislativo analisado.
Palavras-chave: Informao. Democracia Deliberativa. Participao Poltica. Poder
Legislativo.
ABSTRACT
This dissertation analyses the relationship between information and deliberative
democracy to try to understand the informational dimension that involves the politics
participation process of the society in the scope of the state Legislative Power. For
that, in such way, examines particularly activities and the documentation produced in
each stage of a mechanism of politics participation denominate legislative seminary,
developed by Minas Gerais State Legislature (Brazil). In the theoretical plan, are explored the concepts of information asymmetry, accountability and information
literacy, considered basics for understanding the possibilities and the limits of
influence of the information in the politician field. It still identifies the main aspects of
the relationship between information and democracy theories, especially democratic
elitism, poliarchy and deliberative democracy. The conclusion is that, in the studied
case, general lines, information flows had been generated propitiating advances to
the reduction of the information asymmetry and to the magnifying the levels of
accountability of the democratic process. However, negative aspects had been
identified, related to the scarcity of information on the practical results of the
deliberation and to the dispersion of contents generated during the legislative
seminary analyzed.
Keywords: Information. Deliberative Democracy. Politics Participation. Legislative Power.
SUMRIO
INTRODUO ....................................................................................................... 9 1 ASPECTOS POLTICOS E CONCEITUAIS DA SOCIEDADE DA INFORMAO .................. 15 1.1 Assimetria informacional ................................................................................ 18 1.2 Accountability e informao............................................................................ 24 1.3 Competncia informacional e participao poltica ........................................ 32 2 TEORIA DEMOCRTICA E INFORMAO.................................................................. 37 2.1 A informao e a concepo hegemnica de democracia ............................. 38 2.2 Poliarquia, informao e participao ............................................................ 42 2.3 Informao e concepes contra-hegemnicas de democracia..................... 48
2.3.1 Informao e Pblicos Participativos ................................................ 57 3 EXPERINCIAS DE PARTICIPAO POLTICA NA ASSEMBLIA DE MINAS ................... 65 3.1 Os Seminrios Legislativos ............................................................................ 70 4 METODOLOGIA .................................................................................................... 73 5 SEMINRIO LEGISLATIVO SEGURANA PARA TODOS E INFORMAO.................... 81 5.1 Proposio do Evento .................................................................................... 81 5.2 Etapa Preparatria ......................................................................................... 85 5.3 Comisses Tcnicas Interinstitucionais.......................................................... 91 5.4 Encontros Regionais ...................................................................................... 98 5.5 Etapa Final ..................................................................................................... 102
5.5.1 Reunies Plenrias Parciais ............................................................. 103 5.5.2 Reunies dos Grupos de Trabalho ................................................... 113 5.5.3 Plenria Final .................................................................................... 116
5.6 Implementao das propostas ....................................................................... 123 6 CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... 133 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................... 138 ANEXOS A - RELATRIO DE PROPOSTAS DAS COMISSES TCNICAS INTERINSTITUCIONAIS ........ 143 B - DOCUMENTO FINAL DO SEMINRIO LEGISLATIVO SEGURANA PARA TODOS .......... 153 C - RELAO DE LEIS ORIGINADAS DE SEMINRIOS LEGISLATIVOS ANTERIORES............. 162
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INTRODUO
No Brasil, o fim do regime militar (1964-1985) propiciou condies favorveis restituio de garantias como o sufrgio universal, eleies livres e diretas em
todos os nveis de governo, parlamento ativo, liberdade de imprensa, dentre outras.
Entretanto, por mais que se tenha avanado na reconstruo das instituies
democrticas, a democracia brasileira um fenmeno relativamente recente e
encontra-se ainda em processo de consolidao e aperfeioamento. Neste sentido,
uma das caractersticas marcantes do processo de redemocratizao do pas,
iniciado a partir da segunda metade da dcada de 1980, a paulatina ampliao das
oportunidades de participao poltica de grupos sociais at ento excludos dos
processos decisrios de formulao de polticas pblicas.
No campo normativo, a Constituio Federal de 1988 estabeleceu um rol de
garantias e direitos que possuem potencial para promover a expanso da
participao dos cidados na tomada de decises acerca de temas pblicos. Pode-
se citar, por exemplo, mecanismos como o plebiscito e o referendo, os direitos de
associao e de acesso informao, a possibilidade de iniciativa popular de
projetos de leis, a participao da comunidade na gesto das polticas de sade, de ateno criana e ao adolescente, de educao e cultura, dentre outros. No campo
prtico, principalmente a partir da dcada de 1990, outros mecanismos institucionais
surgiram com o objetivo de propiciar a participao da sociedade civil em determinados espaos da gesto pblica. Talvez a iniciativa conhecida como
Oramento Participativo seja a face mais visvel dessa inovao institucional; contudo, a criao de conselhos gestores de polticas, as consultas e as audincias
pblicas e os comits de bacias hidrogrficas so exemplos de diversas outras
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aes que buscam promover a participao democrtica da cidadania organizada e
o estabelecimento de um novo modelo de relacionamento entre a sociedade e os
poderes estatais.
A ordem constitucional brasileira adotou o clssico modelo tripartite de
organizao do Estado1, baseado no trip formado pelos poderes Executivo,
Legislativo e Judicirio, teoricamente independentes e harmnicos entre si. Mas,
dentre os trs poderes que compem o Estado brasileiro, talvez nenhum seja mais susceptvel aos efeitos da opinio pblica do que o Poder Legislativo. Muitas de
suas posturas e aes so condicionadas pelas preferncias manifestas pela
sociedade ali representada. Essas preferncias constituem valiosa e talvez a
principal fonte informativa de subsdio atuao parlamentar, pois versam sobre
os mais variados temas, refletindo a pluralidade de interesses e problemas que
afetam a vida dos cidados e sobre os quais os representantes devem decidir de
forma justa e legtima. Alm disso, certamente o Legislativo, enquanto locus privilegiado de debate, o poder com maior potencial de abertura participao
poltica dos cidados. Ao contrrio do Executivo, no qual h somente um mandatrio
e, portanto, ao menos em tese, uma nica porta de influncia2, e do Judicirio, em
que essa porta tambm em tese deve manter-se cerrada, pois de seus titulares
1 O modelo de tripartio de poderes foi proposto por Montesquieu, no sculo XVIII. Para mais detalhes, Cf.
Bobbio (1988).
2 Na prtica, certo que tambm o Poder Executivo pode possuir, como de fato possui, vrias portas atravs
das quais a influncia pode ser exercida. Mas h uma diferena bsica em relao ao Poder Legislativo, em que cada parlamentar teoricamente deve representar as preferncias de uma parcela da populao, sendo o embate entre as preferncias dos diversos segmentos sociais resolvido, ainda que no satisfatoriamente, atravs da deliberao na assemblia de representantes. No mbito do Poder Executivo, ao contrrio, os conflitos entre as preferncias, ainda que cheguem ao mandatrio por meio de diversos mecanismos e pessoas-chave, so resolvidos pelo chefe de governo com base principalmente em sua discricionariedade. Como no h outros mandatrios com o mesmo poder discricionrio, pode-se falar ento em uma nica porta de influncia.
11
exige-se iseno, o Legislativo mantm, no mnimo, tantas possibilidades de
influncia quantos forem os parlamentares no exerccio do mandato (ASSIS, 1994). Destarte, elegeu-se como objeto de pesquisa desta dissertao os
mecanismos de participao poltica institudos pela Assemblia Legislativa do
Estado de Minas Gerais (ALMG)3 mais especificamente aqueles denominados seminrios legislativos. A investigao insere-se no plano terico da relao entre
informao e democracia, procurando desenvolver especificamente uma reflexo
que contribua, ainda que modestamente, para a compreenso da dimenso
informacional que envolve o processo de participao poltica dos cidados e de
outras instituies no mbito do Poder Legislativo. Parte-se do pressuposto de que
um importante insumo para o desenvolvimento das atividades de uma Casa
Legislativa so as informaes que a instituio parlamentar recebe, busca ou capta
junto sociedade que representa, as quais traduziriam uma parte significativa das demandas e preferncias dos cidados. Em contrapartida, o Parlamento tambm
seria, ele prprio, um fornecedor de informaes sociedade, as quais traduziriam
uma parte significativa dos resultados institucionais da ao parlamentar. Acredita-se
que este fluxo informacional torna-se mais visvel quando so institucionalizados
mecanismos de interlocuo entre o Legislativo e a sociedade.
A hiptese que norteia este trabalho a de que a implementao, pela ALMG,
de mecanismos de incentivo participao poltica estimula a circulao de
informaes entre os atores envolvidos, gerando um fluxo que pode reduzir o grau
3 A Assemblia de Minas Gerais composta, atualmente, por 77 deputados estaduais. Apesar de tantas
possibilidades de influncia (cada deputado pode ser considerado um canal para recebimento/fornecimento de informaes dos/aos cidados), a instituio sentiu a necessidade de abrir novas portas sociedade mineira, dentre as quais destacam-se os mecanismos aqui utilizados como campo de pesquisa.
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de assimetria informacional e ampliar o nvel de accountability da ordem
democrtica, desde que os cidados participantes possuam competncia
informacional para lidar com temas pblicos complexos.4
O objetivo geral desta dissertao , pois, analisar o fluxo informacional que se estabelece entre a ALMG e o conjunto dos segmentos da sociedade que se dispem a participar de um seminrio legislativo e verificar se tal investigao
emprica pode contribuir para a reflexo terica e a compreenso da relao entre
informao e participao poltica no contexto de regimes democrticos. Os
objetivos especficos da pesquisa so os seguintes: a) identificar como surge a demanda de realizao de um seminrio
legislativo e o papel desempenhado pela informao na etapa preparatria
do evento;
b) identificar os tipos e as origens das informaes fornecidas ALMG pelos participantes no decorrer de todo o processo de realizao de um
seminrio legislativo;
c) identificar os tipos de informaes fornecidas pela ALMG e por outros rgos pblicos aos participantes de um seminrio legislativo, bem como
identificar as formas de divulgao dessas informaes;
d) verificar se as trocas estabelecidas nesse fluxo possuem potencial para gerar informaes que podem ser utilizadas para subsidiar a atuao dos
poderes pblicos;
4 Os conceitos de assimetria informacional, accountability e competncia informacional sero apresentados no
Captulo 1 desta dissertao.
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e) verificar se essas mesmas trocas resultam na gerao de contedos informacionais de interesse pblico que, se colocados disposio da
sociedade em geral, poderiam contribuir para reduzir a assimetria
informacional que caracteriza a relao Estado-cidado e ampliar o grau
de transparncia e accountability da ordem democrtica.
Como metodologia, alm da reviso da literatura que fornece o suporte
terico pesquisa, optou-se pela anlise das atividades desenvolvidas e da
documentao produzida em cada etapa do ltimo seminrio legislativo realizado
pela ALMG, denominado Segurana para Todos Propostas para uma sociedade
mais segura, buscando identificar os momentos crticos de gerao, troca ou
disseminao de informaes.
A dissertao inclui seis captulos. O captulo 1 apresenta algumas questes
polticas relacionadas chamada sociedade da informao e discorre sobre trs
conceitos fundamentais, nos quais est ancorada grande parte das discusses deste
trabalho: assimetria informacional, accountability e competncia informacional.
O captulo 2 constitui uma tentativa de identificar os principais aspectos da
relao entre informao e democracia, com base nos argumentos centrais de trs
correntes tericas que representam importantes momentos do processo de evoluo
da teoria democrtica, a saber: a) o elitismo democrtico, que tem em Joseph Schumpeter o seu principal autor; b) a teoria polirquica, desenvolvida por Robert Dahl e c) a teoria deliberativa de democracia, representada nesta pesquisa por trabalhos de diversos autores que, influenciados pela obra de Jrgen Habermas,
analisam as possibilidades e os limites da participao poltica dos cidados
enquanto instrumento de aperfeioamento das instituies democrticas.
14
O captulo 3 resgata uma parte da histria recente da Assemblia Legislativa
mineira para demonstrar a experincia pioneira da instituio no desenvolvimento e
implementao de mecanismos de interlocuo com a sociedade. O captulo
tambm apresenta uma anlise detalhada dos eventos denominados seminrios
legislativos, modalidade de interlocuo e de aproximao entre a ALMG e a
sociedade que constitui o objeto da presente investigao. A metodologia adotada para a realizao da pesquisa apresentada no
captulo 4 e, no captulo 5, so apresentados os principais resultados decorrentes da
anlise efetuada.
Finalmente, o captulo 6, alm de tecer algumas ltimas consideraes, busca
sintetizar as principais concluses da dissertao.
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1 ASPECTOS POLTICOS E CONCEITUAIS DA SOCIEDADE DA INFORMAO
O perodo compreendido entre as duas ltimas dcadas do sculo XX e o
incio do sculo XXI caracteriza-se como um momento peculiar de sucessivas
mudanas e transformaes de grande impacto econmico, social e poltico. Frente
aos avanos cientficos e ao desenvolvimento de novas tecnologias, tais mudanas
acontecem com rapidez nunca antes experimentada.
Dois fatores intrinsecamente relacionados tm sido apontados como os
principais propulsores das transformaes em curso: o processo de globalizao
econmica e o papel central desempenhado pela informao e pelo conhecimento
no atual estgio de desenvolvimento mundial. Muitos tm sido os termos utilizados
para designar as novas relaes econmicas, sociais e polticas do perodo corrente,
destacando-se, dentre os quais, as expresses sociedade da informao e
sociedade do conhecimento.
Mas o que significa fazer parte desta nova sociedade? No fcil responder
a esta pergunta, precisamente por no haver uma resposta nica. A literatura sobre
o assunto ampla e analisa o fenmeno luz de abordagens distintas e, com
freqncia, divergentes. Webster (1995, p. 29), por exemplo, um autor que levanta dvidas acerca da validade da noo de uma sociedade da informao. Para ele,
as tentativas de caracterizar tal sociedade baseiam-se em uma srie de critrios
vagos e imprecisos, incapazes de demonstrar se a sociedade da informao um
novo formato de organizao social j existente ou se um fenmeno ainda incompleto, que se realizar plenamente em algum momento do futuro. Em seu livro,
Theories of the information society, Webster analisa como as teorias de importantes
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pensadores contemporneos podem nos auxiliar a compreender o advento da
sociedade da informao. Em uma dessas anlises, o autor recorre obra de
Anthony Giddens e demonstra que nela possvel encontrar um importante ponto
para reflexo. Isso porque, para Giddens5, comum supor que somente no final do
sculo XX a sociedade entrou na era da informao. No entanto, historicamente as
sociedades modernas teriam sido, desde sempre, sociedades de informao. Em
relao s sociedades atuais, a diferena residiria basicamente na maior importncia
atribuda hoje informao enquanto recurso estratgico e no nvel de desenvolvimento das tecnologias para process-la, armazen-la e transmiti-la. Isso,
porm, no seria suficiente para criar uma nova sociedade.
Mesmo admitindo-se que a expresso sociedade da informao designa
apropriadamente o atual estgio de desenvolvimento social em diversos pases,
difcil atribuir-lhe um nico sentido ou significado. O desenvolvimento das novas
tecnologias de informao e comunicao (TICs), que propiciou as condies materiais facilitadoras da produo e da divulgao de informaes em larga escala,
tem levado diversos autores a adotar uma viso otimista da sociedade da
informao. Para muitos, conforme critica Fernandes (2003, p. 108), parece que estamos adentrando uma realidade em que todo mundo poder ter acesso a toda a
informao que necessita, porque isto existe ou existir como uma disponibilidade j pronta para nosso usufruto. Lvy (1999) acredita que as TICs podem levar o mundo a funcionar como uma espcie de universo do saber em fluxo, onde o
conhecimento seria flutuante num ambiente caracterizado pela interconexo de
5 Giddens, Anthony. Social Theory and Modern Sociology. Cambridge: Polity, 1987.
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todos com todos em tempo real, favorecendo a orientao, o acesso informao, a
aprendizagem e o desenvolvimento.
Na direo oposta, Snchez Gamboa (1997) destaca que, na sociedade da informao, os contedos informacionais esto sempre direcionados por interesses
humanos, geralmente em proveito dos grupos que controlam essas informaes.
Para ele, as informaes utilizadas nos processos produtivos, na tomada de
decises e na gerao de novas tecnologias so rigorosamente controladas. J as
informaes que geram disperso, confuso, distrao, divertimento, lazer ou
veiculam ideologias desmobilizadoras e concepes fantasiadas do mundo so
democraticamente divulgadas. O autor acrescenta ainda que a revoluo
informacional, enquanto advento que levou ao surgimento da sociedade da
informao, um fenmeno incompleto, pois pouco alterou as relaes de poder no
mbito da sociedade. Ao contrrio, as transformaes provocadas por esta
revoluo, segundo suas ponderaes, beneficiaram principalmente os grupos
privilegiados da sociedade que j detinham o controle do poder econmico e poltico. Alis, tambm em relao aos aspectos polticos da sociedade da informao
possvel identificar opinies divergentes. H correntes de pensamento que
defendem que a nova sociedade ser uma comunidade voluntria, voltada para o
benefcio social. Alguns prevem que a abundncia de informaes levar
construo de uma sociedade mais democrtica atravs da reestruturao das
instituies. Para os mais otimistas, o maior acesso informao desenvolver a
conscincia poltica dos cidados, o que promover a alterao das estruturas de
poder rumo harmonia do sistema poltico. Mas existem tambm autores mais
pessimistas, para os quais
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... os governos utilizaro as novas tecnologias de informao para aumentar seu controle sobre a sociedade. As informaes sero disponibilizadas em maior quantidade e rapidez, porm os grandes grupos econmicos e os detentores do poder poltico somente divulgaro as informaes que lhes interessam. (AKUTSU; PINHO, 2002, p. 728)
Certamente a participao poltica das pessoas depende de vrios fatores,
dentre os quais destacam-se questes relacionadas s condies econmicas e
sociais dos cidados, ao seu interesse pelas causas coletivas, sua sade,
educao, ao tempo de que dispem para participar e liberdade de associao e
organizao. possvel inferir, no entanto, que a informao tambm um importante fator, pois portadora de um potencial estratgico que reside na
possibilidade de sua utilizao como recurso poltico. Neste trabalho, alguns
conceitos so fundamentais para a compreenso dos limites e das possibilidades de
influncia da informao no campo poltico, especialmente como recurso mediador
da relao entre governos e cidados. Estes conceitos so constitudos pela noo
de assimetria informacional, pela relao entre informao e accountability, e pela
idia de competncia informacional. Nas prximas sees tenta-se defini-los e
compreender sua importncia para a reflexo acerca do relacionamento entre
Estado e sociedade em regimes democrticos.
1.1 Assimetria informacional
A palavra assimetria significa falta de correspondncia, em grandeza, forma
ou posio relativa, de partes que esto em lados opostos de uma linha ou que
esto distribudas em torno de um centro ou eixo. Em um sentido mais filosfico,
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indica desarmonia, desigualdade em uma relao, distribuio desigual de um
recurso qualquer.
No mbito deste trabalho, o conceito de assimetria informacional pode ser
definido de forma bastante simples, indicando a desigualdade de condies para
acesso informao de natureza poltica. Refere-se a situaes, reais ou potenciais,
em que determinados indivduos, grupos ou instituies detm condies
privilegiadas de acesso a informaes relativas a questes que, por sua importncia,
influenciam diretamente no processo decisrio de formulao de polticas pblicas.
Nesta acepo, a assimetria informacional pode ser analisada sob dois
enfoques distintos6: um refere-se ao relacionamento dos cidados ou grupos sociais
entre si na competio por meios de influncia na agenda poltica; o outro, diz
respeito relao entre Estado e sociedade.
Para compreender o primeiro enfoque relacionamento dos cidados entre si
preciso lembrar que, conforme mencionado, a informao pode ser utilizada
como um recurso poltico. No entanto, tal uso tende a se dar de forma assimtrica
entre os diversos segmentos sociais, na medida em que o discurso poltico e,
portanto, a informao dele decorrente tem sido tradicionalmente dominado pelas
elites ou por grupos mais favorecidos da sociedade. Isso ocorre em funo da
desigual distribuio de recursos, oportunidades e capacidades entre os cidados,
os quais necessitam
... de informaes polticas diversas, em nveis distintos, desde as mais tcnicas, com explicaes provenientes do sistema de especialistas, at as abordagens mais simples. Uma
6 possvel identificar ainda um terceiro enfoque para a noo de assimetria informacional no mbito da
sociedade da informao, relativo desigualdade informacional entre pases ou regies centrais, detentores de informaes estratgicas, e pases ou regies perifricos do sistema capitalista, onde predominam o analfabetismo e a baixa qualificao da populao. Para anlises mais aprofundadas deste aspecto, Cf. Jardim (1999) e Eisenberg; Cepik (2002).
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vez que as pessoas esto associadas poltica atravs de diferentes backgrounds, interesses e habilidades cognitivas, no h como prescrever um modelo nico de informao politicamente relevante, nem um mesmo padro de excelncia. (MAIA, 2002, p. 59)
Neste sentido, uma outra considerao de Maia (2002) merece destaque, pois a autora acredita que um frum pblico de discusso, produo e troca de
informaes deve refletir essa diversidade poltica e cultural da sociedade e
proporcionar um balano justo de oportunidades para que as vozes que se levantam durante os processos de deliberao pblica possam ser ouvidas e consideradas.
Se a informao suficientemente ampla, ento os cidados podem estar em
melhores condies para decidir sobre as polticas de sua preferncia. Mas se a
informao controlada, imprecisa ou inconsistente, ento o debate pode ser
manipulado e as alternativas se estreitam atravs da desinformao (MAIA, 2002, p. 51).
Assim, um sistema pblico de informao, ao invs de segregar pela
especializao e pelo uso da linguagem tcnica, deveria antes primar pela
aproximao e interao dos cidados entre si. Para permitir melhores
possibilidades de engajamento no debate poltico de atores sociais que se encontram em situao de dessemelhana, torna-se necessria a oferta de
contedos informacionais variados, que contemplem a diversidade cognitiva e de
interesses dos atores em questo.
Certamente, difcil estabelecer a relao exata entre a assimetria
informacional que caracteriza o relacionamento entre os diversos segmentos sociais
e o crescente processo de despolitizao dos cidados comuns. Parece certo,
porm, que excluda da prtica democrtica de discusso pblica, uma grande
parcela da populao no desenvolve interesse pela informao poltica. Tambm
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parece razovel esperar que o acesso a fontes de informao desta natureza
contribua para a reduo dos nveis de alienao ou de apatia em relao a
assuntos que dizem respeito construo do presente da sociedade e definio
de perspectivas para o seu futuro.
Ainda no que se refere a este primeiro enfoque da assimetria informacional
(relao cidado-cidado), razovel argumentar que um maior acesso informao poltica, mesmo que no possa ser direta e imediatamente associado
reduo das desigualdades na distribuio de recursos materiais, certamente
tender a reduzir as desigualdades polticas em favor daqueles que se encontram
em situaes menos favorveis, propiciando-lhes melhores condies para participar
do debate democrtico.
No que concerne ao segundo enfoque da desigualdade de acesso
informao poltica, pode-se facilmente constatar que a relao entre Estado e
cidados caracterizada, a priori, por um elevado grau de assimetria informacional,
tanto em termos quantitativos quanto qualitativos, a favor do primeiro. Ainda que em
certos momentos o Estado se veja em situao de desvantagem informacional em relao a determinados atores sociais, como, por exemplo, os detentores de
conhecimentos tcnicos ou acadmicos, em relao sociedade como um todo o
aparelho estatal encontra-se em situao privilegiada de acesso e controle de fontes
informativas. Tal fato gera risco para a sociedade, pois pode contribuir para que
informaes desfavorveis ao governo sejam escondidas da populao. Alm disso, conforme ressalta Przeworski (1998, p. 12), desde que os governos sabem [o] que os eleitores no sabem, eles dispem de uma enorme janela para fazer coisas que eles, e no os eleitores, querem. H, pois, o risco de que, por deter o
controle da informao pblica, os governantes decidam unilateralmente o que os
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cidados podem saber, ou escolham quais cidados devem saber, ou ainda optem
por uma combinao de ambas as alternativas. Por outro lado, se os cidados
dispem de pouca informao, eles podem preferir deixar o governo agir com amplo
grau de discricionariedade (e, portanto, sem muito controle). Tudo isso resulta num ciclo que termina por realimentar e ampliar a aludida assimetria informacional.
Certamente, a assimetria informacional existente entre Estado e sociedade
possui um componente estrutural, pois governar requer a montagem de uma
mquina administrativa capaz de lidar com conhecimentos especializados que
muitas vezes no interessam ou no so facilmente compreendidos pelo cidado
comum. Mas isso no significa que os governos podem se eximir da
responsabilidade e do dever de manter a populao informada sobre as aes
governamentais e sobre os resultados delas decorrentes. Pelo contrrio, numa
democracia de fundamental importncia que os cidados possuam oportunidades
de acesso a contedos informacionais que lhes permitam compreender os
complexos temas pblicos. A divulgao insuficiente de informaes (ou sua no divulgao) constitui um obstculo tanto para que os cidados sinalizem suas necessidades e preferncias aos governantes, quanto para o acompanhamento do
desempenho destes. A informao a que a sociedade deve ter acesso no pode ser
sinnimo da informao qual o governo permite o acesso. Colocar essa
informao disposio da sociedade constitui uma das tarefas dos governos e
tambm das instituies empenhadas na promoo da cidadania.
Dois importantes conceitos, analisados em profundidade na obra de Jardim
(1999), esto estreitamente relacionados idia da assimetria informacional que perpassa a relao Estado-sociedade: transparncia e opacidade informacional. Em
poucas palavras, pode-se afirmar que a noo de transparncia expressa o direito
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dos cidados informao e o dever do Estado de informar. A idia de opacidade,
ao contrrio, reflete a ausncia ou a insuficincia em diferentes nveis de
interao informacional entre Estado e sociedade. Dito de outra forma, a noo de
transparncia refere-se visibilidade, publicidade das aes estatais por meio da
divulgao de informaes pela administrao pblica. J a opacidade caracteriza-
se pela invisibilidade e pelo segredo oriundos da falta de divulgao ou da
divulgao insuficiente de informaes relativas aos atos oficiais. De acordo com o
autor, uma das caractersticas do Estado brasileiro sua opacidade, e no sua
transparncia:
As escassas possibilidades de acesso informao governamental por outros grupos sociais contribuem para a hegemonia do bloco no poder e a excluso dos setores dominados. O Estado tende a ser invisvel sociedade civil. (JARDIM, 1999, p. 21)
Pode-se considerar que um dos fatores que concorrem para a existncia e
manuteno dessa invisibilidade do Estado a assimetria informacional que o
favorece em seu relacionamento com a sociedade. Tal fato configura um paradoxo
quando se parte do pressuposto de que uma das caractersticas mais marcantes do
Estado democrtico a possibilidade de seu controle pela sociedade. Este controle
requer a transparncia do aparelho estatal, expressa no direito dos cidados
informao governamental e no dever do Estado de assegurar o acesso a essa
informao. Segundo Jardim (1999),
Como campo informativo, o Estado moderno constitui-se numa das maiores e mais importantes fontes de informao, alm de requisitar uma grande quantidade destas para sua atuao. Seu complexo funcionamento relaciona-se diretamente com sua ao produtora, receptora, ordenadora e disseminadora de informaes. O objeto do Estado seria, em ltima instncia, o cidado em suas variadas demandas, inclusive aquelas de natureza informacional. (JARDIM, op. cit., p. 29)
24
O Estado, ento, alm de ser um receptor das informaes emanadas da
sociedade, deve tambm desempenhar o papel de produtor e fornecedor de
informaes aos cidados. A consolidao da democracia depende, entre outros
fatores, da publicidade e da transparncia das aes e decises governamentais,
atravs da disponibilizao de informaes diversas para os cidados. Conforme
ser demonstrado na prxima seo, a variao nos graus de transparncia e de
opacidade do Estado, expressa na quantidade e na qualidade da informao
produzida e divulgada pelos poderes constitudos, exercer influncia direta na
efetividade dos mecanismos de accountability da ordem democrtica.
1.2 Accountability e informao
Accountability um termo que, numa definio bastante simplificada, diz
respeito ao controle dos atos e aes de polticos pelos cidados. Trata-se de uma
espcie de prestao de contas dos governantes e representantes sociedade
que, por sua prpria natureza, constitui um atributo das democracias modernas,
muito embora nem todos os regimes que se consideram democrticos possam ser
considerados accountable.
ODonnell (1998) elabora uma interessante reflexo sobre o tema, estabelecendo uma clara distino entre o que chama de accountability vertical e
accountability horizontal. Para o autor, a accountability vertical refere-se relao
entre os cidados e os ocupantes de cargos pblicos. Assim,
25
Eleies, reivindicaes sociais que possam ser normalmente proferidas, sem que se corra o risco de coero, e cobertura regular pela mdia ao menos das mais visveis dessas reivindicaes e de atos supostamente ilcitos de autoridades pblicas so dimenses do que chamo de accountability vertical. So aes realizadas, individualmente ou por algum tipo de ao organizada e/ou coletiva, com referncia queles que ocupam posies em instituies do Estado, eleitos ou no. (ODONNELL, 1998, p. 28)
J a accountability horizontal diz respeito ao controle mtuo entre rgos e
poderes do Estado, ou seja, constitui todo um aparato de freios e contrapesos (do Ingls, checks and balances) e est relacionada
... existncia de agncias estatais que tm o direito e o poder legal e que esto de fato dispostas e capacitadas para realizar aes, que vo desde a superviso de rotinas a sanes legais ou at o impeachment contra aes ou omisses de outros agentes ou agncias do Estado que possam ser qualificadas como delituosas (ODONNELL, op. cit., p. 40).
Em razo dos propsitos deste trabalho, h aqui um maior interesse em
discutir a dimenso da accountability vertical, muito embora se reconhea que
ambas as dimenses relacionam-se entre si, na medida em que a ao organizada,
determinada e persistente dos cidados que exercem a accountability vertical
certamente pode reforar a efetividade dos mecanismos da accountability horizontal,
atravs da criao de novas agncias de fiscalizao e controle ou do
aperfeioamento da atuao das agncias existentes. Neste sentido, merecem
destaque as palavras de Anastasia e Melo (2002, p. 4), para quem ... a interao entre instrumentos de accountability vertical e horizontal pode ser desenhada de
forma a incrementar concomitantemente a responsabilizao dos governantes pelos
governados e a estabilidade da democracia. Portanto, daqui por diante, a utilizao
o termo accountability deve ser lida basicamente como uma referncia sua
26
dimenso vertical; a diferenciao em relao dimenso horizontal, se necessria,
ser claramente expressa.
A literatura sobre o tema praticamente unnime ao considerar as eleies
como um mecanismo clssico de accountability, desde que sejam razoavelmente livres e justas, pois alega-se que atravs do voto os cidados podem premiar ou punir os polticos, com base em informaes relativas ao desempenho passado dos
candidatos. Assim, a tese central a de que, se os eleitores no ficarem satisfeitos
com o desempenho do governo e de seus representantes, podero votar em outros
candidatos nas eleies seguintes, promovendo a renovao dos postos de poder
poltico atravs da troca de seus ocupantes.
Por outro lado, tambm possvel identificar um relativo consenso entre os
tericos do assunto no sentido de que somente as eleies no constituem
mecanismo suficiente para uma accountability efetiva. Conforme ressalta Przeworski
(1998, p.16), ... a influncia que os cidados exercem atravs das eleies pode ser apenas a de menor importncia prtica se comparada a inmeros outros
instrumentos. Para o autor, atravs do voto os eleitores concedem aos eleitos
autorizao para governar, mas as eleies, por si s, so um instrumento pouco
efetivo de controle popular sobre os representantes. Na mesma linha, Anastasia
(2001) argumenta que os cidados delegam aos representantes, seus agentes, atravs do processo eleitoral, autoridade para agir em seu nome ou em seu interesse, mas dispem de poucos instrumentos de sinalizao de suas preferncias, bem como de informao, controle e fiscalizao das aes dos agentes (ANASTASIA, 2001, p. 54).
27
Para a autora, tal fato leva a um dos principais problemas tericos e prticos da
democracia, que a tenso entre participao e representao no mbito do
sistema poltico.
Mas porque as eleies, apesar de importantes, so insuficientes enquanto
instrumento de accountability? Por diversos motivos que vo desde a no garantia
de que as preferncias dos eleitores sejam implementadas pelos eleitos durante o mandato at o fato de constiturem um mecanismo de avaliao retrospectiva que
toma por base um perodo de tempo relativamente extenso. Alm disso, os eleitores
dispem de apenas um voto para decidir sobre todo o conjunto de polticas governamentais, quando na realidade podem preferir a poltica educacional de um
candidato e as propostas de assistncia sade de outro, e talvez o programa
ambiental de um terceiro. Isso dificulta o controle e o acompanhamento da
implementao dessas polticas.
Em razo dos objetivos desta pesquisa, importante ressaltar ainda alguns aspectos ligados questo informacional que permeia os processos eleitorais,
especialmente no mbito da democracia brasileira. Um primeiro ponto que chama a
ateno diz respeito alegada falta de memria do eleitor brasileiro, que
freqentemente no se lembra dos nomes dos candidatos em quem votou. Apenas
para citar dois exemplos: o Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB) realizado em 2002 mostrou que 54% dos eleitores no se lembrava dos candidatos escolhidos para a
Cmara dos Deputados (e isso somente dois meses aps as eleies!); outra pesquisa revelou que em So Paulo quase 90% dos entrevistados no soube
apontar o nome de um deputado estadual ou federal do estado (para mais detalhes, Cf. MARTINS JR.; DANTAS, 2004, p. 270). Isso leva ao segundo aspecto que
28
merece destaque: ora, se o eleitor brasileiro no retm facilmente uma informao
to bsica, difcil acreditar que se preocupe em obter informaes para o
acompanhamento dos mandatos de seus governantes e representantes, de modo a,
com base nelas, recompens-los ou puni-los na eleio subseqente. No mximo,
seria mais plausvel acreditar que, no momento do voto, os eleitores possuem
apenas informao incompleta ou insuficiente sobre a atuao passada dos
candidatos. Com efeito, em trabalho em que procuram avaliar o ndice de
participao poltica no Brasil, Martins Jr. e Dantas chegam concluso de que
apenas uma parcela muito reduzida do eleitorado brasileiro (cerca de 2,5 milhes de pessoas de um universo de mais de 80 milhes) procura manter-se informada sobre poltica (ibid., p. 286).
importante mencionar, ainda, outro problema informacional da democracia brasileira que est estritamente ligado aos resultados das eleies, embora suas
causas sejam anteriores a estas: devido s regras do sistema poltico-eleitoral atualmente em vigor no Brasil, muitas vezes o eleitor no sabe que, ao votar em
determinado candidato, pode estar, na verdade, elegendo outro. Isso ocorre nas
chamadas eleies proporcionais (para os cargos de deputado federal, deputado estadual e vereador), em razo de mecanismos como a transferncia de votos entre candidatos dos partidos e coligaes partidrias. Tal fato gera ... uma distoro
entre o conjunto de preferncias manifestas pelo eleitorado e a efetiva distribuio de cadeiras entre os partidos (ANASTASIA; MELO, 2002, p. 13). Ainda que a relao entre os eleitores que conhecem essas regras e os que no as conhecem
no tenha sido empiricamente verificada, certamente a quantidade de eleitores do
segundo grupo no desprezvel, tendendo mesmo a superar em muito a
29
quantidade de eleitores do primeiro grupo. Faltam, pois, a grande parte dos cidados
brasileiros informaes bsicas para o efetivo exerccio de sua cidadania poltica. Se
as eleies neste pas tm promovido taxas relativamente altas de renovao dos
ocupantes dos postos de poder, h razes para acreditar que isso decorre menos do
controle da populao sobre os polticos, e mais da falta deste controle (ausncia de accountability) e de informao: o eleitor mediano vota em quem aparece, por razes que englobam desde motivaes individualistas at convices religiosas,
sem se preocupar, na maioria das vezes, em obter - ou sem possuir meios de
acesso a - informaes que talvez lhe permitissem fazer escolhas mais conscientes.
Pelo exposto, v-se que mesmo para a utilizao de instrumentos tradicionais
de accountability, como as eleies, a informao desempenha um papel importante.
Mas, em razo da aludida insuficincia dos mecanismos eleitorais como meio de
controle da populao sobre as aes de governos e representantes, torna-se
evidente a importncia da existncia de outros mecanismos que ampliem o grau de
participao poltica dos cidados brasileiros e lhes permitam acompanhar, fiscalizar
ou controlar o desempenho dos polticos nos interstcios eleitorais. Parece claro,
tambm, que a efetividade de tais mecanismos depender em grande parte da
quantidade e da qualidade da informao disponibilizada sociedade.
Para que os cidados tenham condies de saber o que e porque os
governos fazem, independentemente do que os governantes queiram que os
cidados saibam, Przeworski (ibid., p. 16) aponta a necessidade da existncia de accountability agencies independentes dos outros rgos e nveis de governo e
designadas a informar o pblico, no somente seus representantes. Encontra-se
aqui um dos pontos de interao entre as dimenses horizontal e vertical da
30
accountability, na medida em que essas agncias, para fornecer aos cidados
informao potencialmente relevante para o incremento da participao poltica e do
controle do Estado, seriam elas mesmas controladoras deste ltimo. Apesar de
importante e necessria para a consolidao democrtica, uma tal iniciativa no
eximiria cada um dos Poderes estatais da responsabilidade pela promoo da
transparncia de seus atos, atravs da criao de mecanismos de interlocuo com
a sociedade baseados num regime de informao livre e de qualidade. O carter
pblico da informao um dos pilares da democracia e no pode ser jamais desconsiderado por aqueles que comandam o Pas, bem como seus estados e
municpios.
Assim, apesar das mencionadas divergncias entre os pensadores da
sociedade da informao, defende-se, neste trabalho, que a possibilidade de
participao poltica dos cidados est ligada, de alguma forma, disponibilidade de
informaes. Este tambm o entendimento de Anastasia e Melo (2002, p. 15), para quem ... cidados mais bem informados e dotados de alternativas institucionais por
meio das quais possam vocalizar suas preferncias encontram-se em melhores
condies para instruir e/ou responsabilizar os seus representantes. Em outro
trabalho [s.d.] - sobre a participao poltica na regio metropolitana de Belo
Horizonte - esses mesmos autores testaram e confirmaram a hiptese, proposta por
Reis e Castro (2001)7, que associa positivamente a propenso participao poltica ao aumento e sofisticao da informao disponvel.
7 REIS, Fbio W.; CASTRO, Mnica. Democracia, civismo e cinismo: um estudo emprico sobre normas e
racionalidade. Revista Brasileira de Cincias Sociais, v.16, n.45, 2001.
31
Acredita-se que um dos entraves para o pleno desenvolvimento da
democracia brasileira a falta (ou o baixo grau) de accountability vertical, decorrente da reduzida participao da sociedade civil em processos de avaliao de polticas
pblicas. A criao, por parte das instituies do Estado, de mecanismos de
accountability fundamental para o desenvolvimento da cidadania e para a prpria
consolidao da democracia no Brasil. Mas a existncia de accountability no
apenas uma questo de vontade poltica dos governantes. Assim como a
democracia, ela tambm procedimental e tende a acompanhar o avano dos
valores democrticos, ao mesmo tempo em que contribui para novos progressos. sintomtica a ausncia de uma palavra na lngua portuguesa que possa ser utilizada
para a traduo do termo accountability. Para Campos (1990, p. 31), falta aos brasileiros no precisamente a palavra: Na verdade, o que nos falta o prprio
conceito, razo pela qual no dispomos da palavra em nosso vocabulrio. Pode-se
concluir, ento, que a falta do conceito decorre da ausncia de uma cultura
verdadeiramente democrtica no Brasil. A falta de transparncia ou a opacidade
informacional das aes estatais e a falta de organizao da sociedade civil
resultam num grau muito baixo de participao poltica, levando o Estado a
desempenhar o papel de tutor e os cidados a agirem como tutelados.
No entanto, no se pode esquecer que a disponibilidade de informaes
apenas um dos lados da questo. A consolidao da democracia depende tambm
do efetivo acesso e uso dessas informaes por parte dos cidados. O
desenvolvimento e o estabelecimento de uma poltica de divulgao constante de
informaes por parte das instituies do Estado, ainda que atenda a preceitos
32
legais8 e possa ser considerada uma atitude louvvel do Poder Pblico, pouco
contribuir para o aumento dos nveis de accountability da ordem democrtica se a
sociedade no for formada por cidados capazes de compreender e efetivamente
utilizar essas informaes para controlar seus governantes e representantes, no
sentido de fazer com que as aes destes se aproximem das preferncias e
expectativas daqueles. A prxima seo abordar especificamente a necessidade
de desenvolvimento dessa competncia informacional.
1.3 Competncia informacional e participao poltica
A noo de competncia informacional derivada da expresso inglesa
information literacy e designa o conjunto de habilidades necessrias para interagir com a informao, seja no espao acadmico, no trabalho, nas questes particulares, constituindo-se tambm em capacidade chave dentro do processo de
participao poltica. Em outras palavras, a competncia informacional representa a
habilidade em reconhecer quando existe uma necessidade de informao e a
capacidade de identificar, recuperar, avaliar e usar eficazmente essa informao
para a resoluo de um problema ou para a tomada de uma deciso.
No campo das preocupaes presentes nesta pesquisa, pressupe-se que
cidados participativos possuem competncia informacional, pois compreendem a
8 A Constituio Federal brasileira de 1988, por exemplo, assim dispe sobre o direito de acesso dos cidados
informao: Art. 5, inciso XIV assegurado a todos o acesso informao e resguardado o sigilo da fonte, quando necessrio ao exerccio profissional.
33
necessidade de acesso a informaes pblicas de qualidade para o entendimento e
tratamento de problemas e questes inerentes s suas prprias vidas, comunidade
e sociedade em que vivem. Alm disso, esto mais atentos e preparados para
fazer com que esta mesma sociedade acompanhe a atuao de seus
representantes e governantes e perceba a importncia da sua participao em todas
as arenas onde se desenrola o jogo democrtico.
Em linhas gerais, pode-se considerar que a participao na vida social e
poltica que confere ao indivduo o status de cidado. Conforme enfatizou-se na
seo anterior, em regimes verdadeiramente democrticos o exerccio de uma
cidadania ativa no se esgota com o exerccio do voto, ultrapassando tambm a
noo pura e simples da submisso a deveres e da titularidade de direitos. Neste
sentido, Mamede (1997, p. 223), afirma que cidado o sujeito ativo na cena poltica, sujeito reivindicante e provocador da mutao do direito. Percebe-se, pois, que participao uma palavra-chave para a promoo da cidadania.
A esta altura, deve estar claro que a informao um dos direitos bsicos dos
cidados e ao mesmo tempo um requisito essencial para a existncia de uma
cidadania participativa. por meio do acesso a informaes que o cidado tem condies de conhecer e cumprir seus deveres, bem como de entender e reivindicar
seus direitos junto s instituies que, em tese, deveriam assegur-los. A falta de informao, alm de prejudicar o exerccio de deveres e direitos, pode se constituir tambm numa barreira para que os indivduos contribuam, participem e ocupem seu
espao na sociedade, assim como pode impedi-los de acompanhar, avaliar e
questionar as aes do Estado.
34
Mas no somente a falta ou a insuficincia de informao que pode
ameaar o exerccio da cidadania. Isso porque, na atualidade, os cidados se vem
com freqncia diante de um paradoxo caracterizado pela dificuldade de obteno
de informaes em meio abundncia delas. O dilvio informacional (LVY, 1999) que caracteriza a sociedade da informao tambm pode criar obstculos para o
acesso a contedos relevantes para resposta a uma determinada questo, seja ela referente aos direitos, aos deveres ou s formas de participao do cidado nos
mecanismos de controle do Estado9. Este contexto, alm de tornar mais complexo o
exerccio da cidadania, ao mesmo tempo evidencia a importncia do
desenvolvimento de competncias relacionadas ao acesso e uso de informaes.
O cidado necessita, ento, de preparo para exercer o direito de acesso
informao governamental, seja num contexto de escassez ou de abundncia de informaes. O desenvolvimento de competncias para que as pessoas tenham
capacidade de buscar, recuperar e filtrar as informaes (ou de exigir o acesso a elas), promovendo sua apropriao crtica, um dos fatores primordiais para que possam utiliz-las como elemento de emancipao individual. Mas tambm
essencial para a formao de cidados atuantes, que buscam na participao
poltica, atravs do acompanhamento e controle de governantes e representantes,
uma forma de interferir na construo do presente e do futuro da sociedade. Um dos
desafios das sociedades atuais, alm de promover a formao de cada vez mais
pessoas com capacidade cada vez maior de acesso e compreenso da informao,
9 Alm disso, crescente o processo de privatizao da informao pblica que, transformada em produto
venda, deixa de estar disponvel (ou melhor, est disponvel para quem pode pagar) e exclui do progresso grandes parcelas da populao. H ainda casos em que a informao simplesmente no divulgada pelos Poderes constitudos, chegando, em determinadas circunstncias, a ser tratada como segredo pelo Estado. Certamente, muitos governantes preferem mesmo manter os cidados passivos e desinformados.
35
o de fazer com que os governos e representantes polticos ajam no sentido de garantir condies para o acompanhamento de suas aes. Alm de ser, ele prprio,
um produtor e disseminador de informaes, o Estado deve garantir aos cidados o
acesso a uma educao que lhes possibilite desenvolver plenamente suas
competncias includa a competncia informacional e exercer ativamente a
cidadania. Um tal cenrio, ainda que utpico e insuficiente no que tange resoluo
de todos os problemas que afligem este pas, contribuiria para o contnuo
aperfeioamento da democracia brasileira.
A democracia, alis, um regime procedimental e, como tal, no garante
resultados por si s. atravs de tentativas, de erros e acertos, de idas e vindas que ela se desenvolve e se consolida. O desenvolvimento de competncias
informacionais deve ser priorizado por um processo educacional voltado ao
desenvolvimento da cidadania em seus distintos componentes formal, informal e
permanente. Este aspecto fundamental para a construo das sociedades
democrticas, atravs da criao de uma cidadania culta e da preparao dos
indivduos para se envolverem de forma ativa e efetiva em tudo o que diga respeito
administrao de sua cidade, de seu estado e do seu pas, no se limitando a
aceitar passivamente o que decidido pelos outros. A capacidade de acesso e uso
da informao vem se consolidando como um importante elemento para o
desenvolvimento econmico e social, alm de requisito para o exerccio da
cidadania.
A educao para a cidadania deve ser promovida desde as escolas do ensino
bsico e durante todo o processo de formao dos indivduos, pois somente
cidados bem formados e informados, que tenham acesso a ensino de qualidade, a
36
diversos meios de informao e aos modernos recursos tecnolgicos podem
desenvolver competncias informacionais que lhes propiciem melhores condies de
participao na sociedade da informao, contribuindo com esta de forma eficaz a
partir da integrao entre o local, onde a participao mais gil, e os nveis
regional, nacional e global.
Este captulo teve o propsito de indicar as principais controvrsias tericas
acerca da noo de sociedade da informao. Alm disso, buscou elucidar os
conceitos bsicos utilizados nesta dissertao, os quais permitem considerar a
informao como um recurso poltico que pode propiciar a compreenso da
realidade social e a interveno sobre ela atravs da mobilizao e participao
poltica das pessoas.
No entanto, no difcil perceber que o problema de pesquisa aqui colocado
possui natureza interdisciplinar. Por isso, para sua adequada compreenso torna-se
necessrio recorrer ainda literatura da rea de Cincia Poltica que possa
fornecer subsdios para uma reflexo acerca da importncia da informao para o
exerccio da cidadania e o desenvolvimento da democracia, bem como para a
promoo de processos de participao poltica. Destarte, o captulo seguinte
constitui uma tentativa de resgatar essas contribuies.
37
2 TEORIA DEMOCRTICA E INFORMAO
primeira vista, a relao entre os conceitos de democracia e de informao parece bvia. Tal obviedade fica clara na opinio de diversos autores que realam a
importncia da informao para a existncia de regimes democrticos. Para Guanter
(1974, p. 24), por exemplo, a relao direta entre informao e democracia to evidente como a razo inversa existente entre totalitarismo e informao, ou seja, para esse autor a ausncia de informao ou a restrio a seu acesso so
caractersticas mais prximas dos regimes totalitrios do que das democracias.
A mesma posio parece ser defendida por Norberto Bobbio, para quem o
poder autocrtico dificulta o conhecimento da sociedade. O poder democrtico, ao
contrrio, enquanto exercido pelo conjunto dos indivduos aos quais atribudo o direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decises coletivas, exige a
livre circulao de informaes e conhecimentos. O cidado deve saber, ou pelo
menos, deve ser colocado em condio de saber (BOBBIO, 2000, p. 392). Mas a compreenso da relao entre informao e democracia requer um
aprofundamento terico. Isso porque, assim como ocorre com o conceito de
informao, no h um consenso acerca do conceito de democracia. Longe disso, o
termo historicamente tem sido objeto de disputas e de acalorados debates e discusses que envolvem pensadores cujas idias apresentam significativas divergncias, resultando da o surgimento de diferentes concepes ou teorias sobre
a prtica democrtica. No objetivo deste trabalho reconstituir a histria de tal debate que, alis, encontra-se em aberto. Mas interessa aqui analisar os aspectos
tericos centrais daquelas abordagens que forneam elementos relevantes para a
38
compreenso da relao entre democracia e informao para, em seguida, tentar
estabelecer a relao entre esta e a participao poltica dos cidados.
Destarte, para tais propsitos suficiente adotar a diviso proposta por
Santos e Avritzer (2002), para quem as disputas em torno das diversas teorias democrticas podem, ao menos a partir da segunda metade do sculo XX, ser
definidas em termos de uma concepo hegemnica de democracia, sendo possvel,
no entanto, destacar elementos que conduzem formulao de concepes
democrticas contra-hegemnicas. A concepo hegemnica representada,
basicamente, pela teoria elitista de democracia. As concepes contra-hegemnicas
so aquelas que vem na participao poltica dos atores sociais um caminho para a
inovao e renovao do agir democrtico. Contudo, possvel identificar na
literatura tambm uma concepo intermediria s duas primeiras, representada
pela teoria polirquica.
Cada uma dessas concepes permite entrever modos diversos para a
abordagem da relao entre democracia e informao. As prximas sees so,
ento, dedicadas anlise de cada uma dessas correntes.
2.1 A informao e a concepo hegemnica de democracia
Conforme mencionado, no h um consenso acerca da questo democrtica.
Pelo contrrio, se existe um termo capaz de gerar divergncias e posies tericas e
ideolgicas conflitantes, este termo democracia. O sculo XX, conforme
argumentam Santos e Avritzer (2002), foi marcado por um intenso debate acerca dessa forma de organizao poltica. Na opinio dos autores, a primeira metade do
39
sculo passado caracterizou-se pela disputa em torno da desejabilidade da democracia, considerada at ento, por muitos e por muito tempo, perigosa e
indesejada por atribuir o poder de governar a quem estaria em piores condies para o fazer: a grande massa da populao, iletrada, ignorante e social e
politicamente inferior (SANTOS; AVRITZER, 2002, p. 39)10. J aqui possvel notar um primeiro relacionamento mais pragmtico entre informao e democracia, posto
que uma grande massa iletrada e ignorante corresponde precisamente a uma
significativa parcela da populao que, de alguma forma, encontra dificuldades de
acesso informao ou, mesmo que a ela tenha acesso, possui dificuldades para
compreend-la, estando assim em uma situao de desvantagem poltica. No se
ignora o fato de que essa desvantagem pode ser ocasionada e geralmente o
por fatores outros que no somente a dificuldade de acesso e compreenso da
informao, como, por exemplo, as condies econmicas e sociais desfavorveis.
Mas importante ressaltar que aquela dificuldade contribui em boa medida para a
no superao destas condies.
Apesar da resoluo do mencionado debate em favor da desejabilidade da democracia, Santos e Avritzer (2002, p. 39) alertam que, ao cabo das duas guerras mundiais, a proposta de democracia que se tornou hegemnica ... implicou em uma
restrio das formas de participao e soberania ampliadas em favor de um
consenso em torno de um procedimento eleitoral para a formao de governos. Ou
seja, para os adeptos da concepo hegemnica, no mbito de regimes ditos democrticos caberia ao povo to somente escolher seus governantes e
representantes dentre os membros de uma elite melhor preparada e apta a discutir
10 Grifou-se.
40
os assuntos pblicos. Trata-se, pois, de uma concepo elitista de democracia que
considera que o povo seria capaz apenas de escolher os polticos, mas no de
exercer a poltica, funo esta reservada somente a alguns indivduos moral e
intelectualmente superiores. Dentre os autores que defendem a teoria elitista de
democracia, Joseph Schumpeter11 aquele cujas idias obtiveram maior aceitao. Para ele, o cidado tpico [...] desce para um nvel inferior de rendimento mental to
logo entra no campo poltico. [...] Torna-se primitivo novamente (SCHUMPETER, 1961, p. 319). A doutrina schumpeteriana pretende fazer uma anlise realista ao defender que, na sociedade de massas, os indivduos so facilmente manipulveis,
cedem a impulsos irracionais e so incapazes de participar e de tomar decises
importantes na poltica, a qual, por isso mesmo, deve ser exercida apenas pela elite,
melhor preparada.
No campo das preocupaes presentes neste trabalho, a concepo
hegemnica ou elitista de democracia, mesmo que estivesse correta ou fosse
desejvel do ponto de vista pragmtico, pouca importncia acrescentaria ao papel desempenhado pela informao enquanto instrumento portador de potencial para
interveno no processo poltico por parte dos cidados comuns. Isso porque uma
tal concepo beneficia-se da desinformao como um dos fatores que permitem a
concentrao oligrquica de poder poltico, econmico e ideolgico. Ou, em termos
menos radicais, bastaria ao povo ter acesso s informaes que lhe possibilitassem
o conhecimento necessrio para realizar, de tempos em tempos, uma boa escolha
de seus representantes e governantes. Conforme afirma Vita (2004),
11 Para uma crtica teoria schumpeteriana, Cf. Avritzer, 1996.
41
do fato de que a maioria dos cidados comuns no tenha motivao e informao suficientes para constituir um julgamento racional, digamos, sobre a poltica de privatizaes do governo [...], no se segue que eles no sejam capazes de constituir um julgamento genuno sobre o desempenho governamental como um todo. [...] Pode parecer pouco, mas essa distino crucial que nos permite diferenciar a democracia schumpeteriana de um governo de minoria ou de um governo tecnocrtico (VITA, 2004, p.128).
A concepo hegemnica ou elitista, ao reduzir a democracia a um mero
processo eleitoral, no conseguiu responder convincentemente a duas questes
essenciais: a questo de saber se as eleies esgotam os procedimentos de
autorizao por parte dos cidados e a questo de saber se os procedimentos de
representao esgotam a questo da representao da diferena (SANTOS; AVRITZER, 2002, p. 46). Tais questes remetem a um debate entre democracia representativa e democracia participativa, constituindo esta ltima o eixo principal do
discurso das concepes contra-hegemnicas de democracia. Interessa, ento,
dentro dos limites tericos desta pesquisa, analisar a literatura que discorre sobre
essas concepes no-hegemnicas na tentativa de nela colher novos subsdios
acerca do papel desempenhado pela informao em processos de participao
poltica.
Antes, porm, necessrio apresentar algumas idias fundamentais daquele
que considerado um dos principais tericos da democracia, Robert Dahl, cuja teoria polirquica pode ser situada entre as concepes hegemnicas e as
concepes contra-hegemnicas de democracia.
42
2.2 Poliarquia, informao e participao
O pensamento de Robert Dahl ocupa um lugar intermedirio entre o elitismo
democrtico e uma concepo normativa e participativa de democracia
(AVRITZER, 1996, p.114). De sua obra possvel extrair um conjunto importante de contribuies acerca da relao entre o acesso informao e os processos de
democratizao poltica.
Dahl parte do pressuposto de que uma caracterstica-chave da democracia
a contnua responsividade do governo s preferncias de seus cidados,
considerados como politicamente iguais (DAHL, 1997, p. 25). O autor acredita que, para que o governo seja responsivo, todos os cidados devem ter oportunidades plenas: a) de formular suas preferncias; b) de expressar suas preferncias a seus concidados e ao governo atravs da ao individual e da coletiva e c) de ter suas preferncias igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminao decorrente do contedo ou da fonte da preferncia (DAHL, 1997, p. 26).
Essas trs condies so necessrias democracia, embora no sejam suficientes e variem enormemente na amplitude em que se encontram disponveis
geogrfica e historicamente. Para que um grande nmero de pessoas possa
desfrutar de todas essas oportunidades, em seu modelo de democracia Dahl
ressalta a necessidade adicional da existncia de oito garantias institucionais,
conforme indicado no QUADRO 1, a seguir:
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QUADRO 1 - Alguns requisitos de uma democracia para um grande nmero de pessoas
Para a oportunidade de: So necessrias as seguintes garantias institucionais:
I. Formular preferncias 1. Liberdade de formar e aderir a organizaes 2. Liberdade de expresso 3. Direito de voto 4. Direito de lderes polticos disputarem apoio 5. Fontes alternativas de informao
II. Exprimir preferncias 1. Liberdade de formar e aderir a organizaes 2. Liberdade de expresso 3. Direito de voto 4. Elegibilidade para cargos polticos 5. Direito de lderes polticos disputarem apoio 6. Fontes alternativas de informao 7. Eleies livres e idneas
III. Ter preferncias igualmente consideradas na conduta do governo
1. Liberdade de formar e aderir a organizaes 2. Liberdade de expresso 3. Direito de voto 4. Elegibilidade para cargos polticos 5. Direito de lderes polticos disputarem apoio 5a. Direito de lderes polticos disputarem votos 6. Fontes alternativas de informao 7. Eleies livres e idneas 8. Instituies para fazer com que as polticas governamentais dependam de eleies e de outras manifestaes de preferncia.
Fonte: DAHL, 1997, p. 27 (grifou-se)
Dentre as oito garantias institucionais propostas por Dahl, duas interessam
mais diretamente aos objetivos deste trabalho. A primeira refere-se garantia institucional de acesso a fontes alternativas de informao, a qual aparece como
uma condio para o exerccio das trs oportunidades que devem ser asseguradas
aos cidados. Em seu livro Poliarquia, obra em que Dahl prope as garantias
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apresentadas no QUADRO 1, o autor no deixa explcito o que constituiriam essas
fontes alternativas de informao. Mas em outros trabalhos ele fornece ao leitor
subsdios para a clara compreenso da expresso. No livro Um prefcio teoria
democrtica, Dahl, ao abordar as condies que devem operar no perodo pr-
eleitoral, destaca que todos os indivduos devem possuir informaes idnticas
sobre as alternativas existentes (DAHL, 1996, p. 73). Apesar de no constituir uma garantia de racionalidade geral, a satisfao dessa condio pode contribuir para
que os eleitores rejeitem uma alternativa que teriam aprovado se possussem menos informaes. Assim, crescem as chances de que a escolha no tenha sido
manipulada pelo controle das informaes por indivduos isolados ou grupos. Mas,
para o autor, essa condio no facilmente observvel.
Em outro trabalho, Dahl elabora alguns questionamentos que, embora sejam colocados na forma de perguntas, ajudam a responder o que se deve entender por fontes alternativas de informao: como os cidados podem adquirir a informao
de que precisam para entender as questes se o governo controla todas as fontes
importantes de informao? - e continua: como poderiam os cidados participar
realmente da vida poltica se toda a informao que pudessem adquirir fosse
proporcionada por uma nica fonte? (DAHL, 2001, p. 111). Sob essa tica, caberia ento ao Estado o dever de desempenhar um papel fundamental, garantindo ao
cidado o acesso informao. Alm de ser, ele prprio, um fornecedor de
informaes, o Estado deve assegurar as condies necessrias existncia do
pluralismo de fontes de informao, evitando, desse modo, o monoplio da
informao de interesse pblico.
A oitava garantia institucional dahlsiana constitui o segundo foco de interesse
para este trabalho, pois preceitua que as instituies devem ser capazes de fazer
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com que as polticas governamentais dependam de eleies e de outros
mecanismos de expresso de preferncias. Ora, a crise da democracia
representativa, ao gerar descrena e apatia polticas, evidencia a necessidade da
existncia de canais de acesso da sociedade civil s instituies do governo para
troca de informaes atravs da participao no processo poltico, como forma de
conferir maior legitimidade e efetividade ao daqueles que, investidos num
mandato eletivo, devem zelar pela boa administrao da coisa pblica. Apesar da
anlise desenvolvida por Dahl estar basicamente voltada para regimes nacionais, ele
prprio reconhece que certamente ao menos uma parte dela poderia ser aplicada a
nveis subordinados ou unidades subnacionais. Assim, possvel utiliz-la para
subsidiar a reflexo acerca dos mecanismos de participao poltica institudos pela
Assemblia de Minas, objeto desta pesquisa. As oito garantias institucionais propostas por Dahl constituem duas
dimenses tericas ligeiramente diferentes da democratizao: a oposio (ou contestao) pblica ao governo e o direito de participar dessa contestao (ou inclusividade). Essas dimenses podem variar independentemente, pois um regime pode, por um lado, tolerar um alto grau de contestao pblica, mas que exercida
por uma minoria. Pode, por outro lado, permitir que um grande nmero de pessoas
participe, mas tolera apenas um baixo nvel de oposio. Na falta do direito de
exercer oposio, o direito de participar despido de boa parte de seu significado
(DAHL, 1997, p. 28). As duas dimenses tericas da democratizao propostas por Dahl so
graficamente representadas atravs da seguinte figura:
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FIGURA 1 - Liberalizao, inclusividade e democratizao
Fonte: DAHL, 1997, p. 30
Para o autor, a democracia poderia ser concebida como um regime localizado
no canto superior direito (altamente inclusivo e fortemente liberalizado). Em seu modo de ver, porm, nenhum grande sistema do mundo real plenamente
democratizado (a democracia seria um ideal a ser alcanado), razo pela qual prefere chamar os regimes prximos do canto superior direito de poliarquias.
Assim, qualquer deslocamento de um regime ao longo do caminho III representa
algum grau de democratizao. medida que um sistema torna-se mais competitivo ou mais inclusivo, crescem as chances de que os polticos busquem apoio junto aos segmentos sociais que agora podem participar mais facilmente da vida poltica. Dahl
Hegemonias fechadas
Hegemonias inclusivas
Oligarquias competitivas
Poliarquias
I
II
III
Liberalizao (contestao pblica)
Inclusividade (participao)
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prope que quanto maiores as oportunidades de expressar, organizar e representar
preferncias polticas, maior a variedade de preferncias e interesses passveis de
representao na poltica (DAHL, 1997, p. 46). importante ressaltar que Dahl acredita que a distribuio de recursos-chave
constitui uma das variveis que afetam o desenvolvimento da poliarquia. Esses
recursos tornam-se recursos polticos medida que so utilizados por um ator para
influenciar o comportamento de outros atores, pelo menos em algumas
circunstncias. Desigualdades na distribuio de recursos-chave equivalem, pois, a
desigualdades na distribuio de recursos polticos, que por sua vez podem levar a
desigualdades extremas no exerccio do poder. possvel inferir que, para Dahl, a informao est entre os recursos polticos distribudos, ainda que de modo
desigual, a indivduos, grupos e organizaes, pois o autor, ao analisar a distribuio
de recursos-chave, fala em saber e em conhecimento, alm de renda, riqueza e
ocupao, dentre outros. Assim, em sociedades complexas, formadas por uma
grande quantidade de cidados, as chances de uma participao extensiva e de um
alto grau de contestao pblica dependem, em certa medida, da disseminao de
leitura, escritura, alfabetizao, educao e jornais ou equivalentes (DAHL, 1997, p. 85).
Em sntese, a obra de Dahl fornece subsdios para que a informao, tomada
na perspectiva de uma das garantias institucionais inerentes democracia, seja considerada como um dos recursos que podem contribuir para tornar os cidados
mais capacitados a influenciar o comportamento e as aes dos polticos, permitindo
aos primeiros vocalizar suas preferncias e fazer com que elas sejam igualmente consideradas em relao s questes afetas vida poltica da sociedade.
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Mas isso no encerra a busca por uma maior compreenso da relao entre
democracia e informao, posto que esta, enquanto recurso poltico, encontra-se
dispersa pela sociedade de maneira desigual. Destarte, para o suporte terico
interdisciplinar a esta pesquisa torna-se necessrio recorrer, ainda no campo da
Cincia Poltica, tambm literatura sobre a democracia deliberativa. Isso porque,
da leitura que se fez da obra de Dahl, ficou claro que o autor, apesar de levantar
importantes questes sobre a participao (ou inclusividade) poltica, concentra uma maior parcela de seu esforo na compreenso da dimenso que denominou de
oposio (ou contestao) pblica. Ou seja, o autor no chega a desenvolver uma teoria participativa, mas aponta aspectos da participao essenciais ao bom
funcionamento da poliarquia.
importante, pois, recorrer a autores que mais recentemente tm buscado compreender e desenvolver a dimenso participativa da democracia. Destarte, a
literatura voltada aos processos de participao e deliberao pblicas ser
analisada na seo subseqente. Trata-se de contribuies tericas que apresentam
diversas facetas das concepes contra-hegemnicas de democracia. Sua anlise
constitui uma tentativa de obteno de outros subsdios que permitam avanar na
compreenso da relao entre participao poltica e informao.
2.3 Informao e concepes contra-hegemnicas de democracia
As concepes contra-hegemnicas de democracia so, essencialmente,
concepes alternativas ao elitismo democrtico, pois defendem a possibilidade de
participao e deliberao dos cidados como forma de se atingir um novo patamar
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institucional da democracia. Tambm nesse campo terico, como de resto em toda a
teoria democrtica, no existem consensos absolutos. Diversos autores apresentam
opinies divergentes, principalmente no que se refere intensidade e efetividade
da participao dos cidados e legitimidade das decises decorrentes de
processos deliberativos. Mas, apesar dessas divergncias, parece haver um ponto
em comum na teoria desses autores, qual seja a necessidade de se combinar o processo eleitoral com mecanismos que propiciem, atravs da participao dos
cidados, o incremento do controle da atuao de seus representantes e
governantes. Esse aspecto mantm uma estreita relao com a oitava condio
dahlsiana, citada na seo anterior, no sentido de que as instituies democrticas
devem ser estruturadas de modo a fazer com que a formulao de polticas pblicas
dependa de eleies, mas tambm de outros mecanismos de manifestao de
preferncias por parte dos cidados.
A obra de Jrgen Habermas parece ser aquela que maior influncia exerceu
na formulao da teoria democrtica deliberativa. Seu modelo procedimental rompe
com a noo de democracia como mero sistema de constituio de governos ao
ressaltar a importncia da participao dos atores sociais em processos racionais de
discusso e deliberao. Para tanto, a teoria habermasiana ressalta a diferena
existente entre a esfera administrativa e burocrtica do Estado, resultante do
aumento da complexidade das sociedades modernas e por isso mesmo concentrada
nas mos de especialistas, e a esfera pblica, espao dialgico e interativo
existente entre a esfera privada e o Estado. Na concepo do autor,
A esfera pblica pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicao de contedos, tomadas de posio e opinies; nela os fluxos comunicacionais so filtrados e sintetizados a ponto de se condensarem em opinies pblicas enfeixadas
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em temas especficos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pblica se reproduz atravs do agir comunicativo, implicando apenas o domnio de uma linguagem natural; ela est em sintonia com a compreensibilidade geral da prtica comunicativa cotidiana (HABERMAS, 1997, p. 92).
Para Habermas, a esfera pblica, enquanto arena privilegiada para a
discusso dos temas pblicos por parte dos cidados, seria dotada de uma
racionalidade comunicativa atravs da qual a formao de opinio e de vontade dos
atores sociais poderia exercer influncia na elaborao de polticas pblicas, desde
que conseguisse atravessar as comportas dos procedimentos burocrticos do
Estado.
Em sntese, Habermas coloca a questo da participao no centro de sua
teoria de democracia ao demonstrar que a esfera pblica uma rbita insubstituvel
de constituio democrtica da opinio e da vontade coletivas, estabelecendo a
mediao necessria entre a sociedade civil, de um lado, e o Estado e o sistema
poltico, de outro (AVRITZER; COSTA, 2004). Diante disso, possvel perceber que as concepes contra-hegemnicas de
democracia baseadas na teoria habermasiana tm na participao e na deliberao
pblicas seus principais pilares, j que os cidados passam a desempenhar um papel ativo no processo de superao das deficincias do sistema democrtico
representativo. Neste sentido, parece claro que uma condio de efetividade dessa
perspectiva deliberacionista a permeabilidade das instituies formais da
democracia aos resultados dos debates travados na esfera pblica. Ou seja, o desenvolvimento da capacidade, por parte das instituies polticas, de captao e
absoro das informaes que traduzem os temas, argumentos, demandas e
interesses manifestados durante o processo deliberativo, de forma a diminuir a
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distncia entre as decises tomadas nas esferas formais de governo e as
preferncias manifestas na esfera pblica.
Voltando a ateno questo informacional que perpassa a teoria
deliberativa de democracia, de acordo com a opinio de Santos e Avritzer (2002, p. 48), existe um certo ceticismo quanto capacidade das burocracias estatais de lidarem com a criatividade e absorverem o conjunto das informaes envolvidas na gesto pblica. Para esses autores, o Estado possui uma necessidade crescente de
encontrar solues plurais para os problemas administrativos, ao passo que a
capacidade das burocracias centralizadas de lidar com o conjunto das informaes necessrias para a execuo de polticas complexas limitada. Neste sentido,
O conhecimento detido pelos atores sociais passa, assim, a ser um elemento central no aproprivel pelas burocracias para a soluo dos problemas de gesto. [...] A residiria o motivo da re-insero no debate democrtico dos assim chamados arranjos participativos (SANTOS; AVRITZER, 2002, p.48).
Deve-se entender por conhecimento no aproprivel aqueles saberes
constitudos a partir de informaes possudas pelos cidados, mas no detidas a
priori pelo Estado, e que se encontram desigualmente dispersas pela sociedade. A
institucionalizao de arenas participativas teria, ento, a potencialidade de
promover um intercmbio informacional entre a sociedade e as instncias decisrias
do Estado, propiciando-lhes ganhos mtuos de informao.
Dito de outra forma: para as concepes democrticas contra-hegemnicas,
se os problemas enfrentados por sociedades complexas exigem cada vez mais
solues plurais, a prpria poltica tem de ser plural, baseando-se em processos
participativos racionais de discusso e deliberao. Para essa corrente de
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pensamento o poder poltico deve ser exercido coletivamente, com base em
processos de livre apresentao de razes entre iguais (SANTOS; AVRITZER, 2002, p. 53)12.
No entanto, em outro trabalho Santos (2006, p. 1) afirma com convico que a promoo da democracia no ocorreu de par com a promoo das condies de
participao democrtica. Para o autor, a criao e o desenvolvimento de espaos
propcios participao democrtica dos cidados constitui um dos principais
desafios da democracia na atualidade. Para a superao deste desafio trs
condies essenciais devem ser asseguradas aos cidados: a garantia de
sobrevivncia (quem no tem como se alimentar tem prioridades mais altas do que votar, por exemplo); no estar ameaados (em qualquer regime poltico, quem vive ameaado no livre); e estar informados, pois quem no dispe da informao necessria a uma participao esclarecida, equivoca-se quer quando participa, quer
quando no participa (SANTOS, 2006, p. 1). Deste modo, experincias participativas podem ser vistas como uma
oportunidade no s para a transferncia de informaes da sociedade para a
burocracia estatal, mas tambm desta para aquela, gerando um fluxo informacional
entre governados e governantes. Se em uma direo desse fluxo o Estado passa a
receber informaes providas pelos segmentos potencialmente afetados pelos
temas em discusso, em outra direo os cidados passam, atravs de uma maior
disseminao da informao poltica, a compreender melhor o funcionamento dos
processos poltico-administrativos.
12 Cf. tambm COHEN, J. Procedure and Substance in Deliberative Democracy. In: BOHMAN, J.; REHG, W.
Deliberative Democracy: essays on reason and politics. Cambridge: MIT Press, 1997.
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Se as concepes democrticas contra-hegemnicas estiverem corretas,
ento possvel conceber ainda uma terceira direo para o fluxo de informaes
que se estabelece em arranjos participativos e deliberativos, j que o intercmbio de experincias proporcionado pelo incremento da participao poltica contribuiria
tambm para a reduo da assimetria informacional entre os prprios cidados
participantes, portadores de recursos desiguais, entre os quais a informao,
relativamente aos temas em discusso. Isso porque a deliberao em processos
participativos baseia-se na troca argumentativa entre os participantes, numa
interao em que cada parte recebe e analisa os argumentos da outra. Estes
argumentos geralme
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