1. NDICE VOLUME I PREFCIO EDIO
BRASILEIRA............................................................................................
11 PREFCIO DOS REVISORES
.........................................................................................................13
Perodo Primeiro DO INCIO A CRISE
GNSTICA....................................................................................................
15 1 Situao geral,
................................................................................................................................16
2 Antecedentes judaicos,
...................................................................................................................29
3 Jesus e os
discpulos,......................................................................................................................
37 4 As comunidades crists na
lestina,..................................................................................................42
5 Paulo e o cristianismo
gentlico,....................................................................................................
46 6 O f im da era
apostlica,.................................................................................................................54
7 A interpretao de Jesus,
................................................................................................................57
8 O cristianismo gentlico do sculo I I
,..........................................................................................
64 9 A organizao da Igreja crist,
.......................................................................................................67
10 Relaes entre o cristianismo e o Imprio Romano,
.....................................................................72
11 Os apologistas,
..............................................................................................................................74
Perodo Segundo DA CRISE GNSTICA A
CONSTANTINO...................................................................................79
1 O gnosticismo,
................................................................................................................................80
2 Marcio,
..........................................................................................................................................84
3 O
montaismo,................................................................................................................................86
4 A Igreja Catlica,
...........................................................................................................................88
5 A importncia crescente de Roma,
.................................................................................................93
6 Irineu,
.............................................................................................................................................96
7 Tertuliano e Cipriano,
....................................................................................................................98
8 Vitria da cristologia do Logos no Ocidente,
...............................................................................103
9 A escola de Alexandria,
................................................................................................................109
10 Igreja e Estado entre 180 e 260,
...................................................................................................117
11 Desenvolvimento constitucional da Igreja,
..................................................................................121
12 O culto pblico e o calendrio eclesistico,
.................................................................................126
13 O batismo,
....................................................................................................................................128
14 A Ceia do
Senhor,.........................................................................................................................133
2. 15 Perdo de pecados,
.......................................................................................................................136
16 A composio da Igreja e o duplo padro de moralidade,
...........................................................140 17
Repouso e crescimento (260-303),
...............................................................................................143
18 Foras religiosas rivais,
................................................................................................................146
19 A luta
final.....................................................................................................................................148
Perodo Terceiro A IGREJA DO ESTADO
IMPERIAL...............................................................................................153
1 A nova
situao,............................................................................................................................154
2 Da controvrsia ariana at morte de Constantino,
.....................................................................157
3 A controvrsia sob o reinado dos filhos de
nstantino,...................................................................163
4 Continuao da luta nicena,
...........................................................................................................168
5 Misses arianas e invases germnicas,
........................................................................................174
6 O crescimento do
papado,..............................................................................................................180
7 O monaquismo,
.............................................................................................................................182
8 Ambrsio e Crisstomo,
................................................................................................................187
9 As controvrsias cristolgicas,
......................................................................................................191
10 Diviso no Oriente,
.....................................................................................................................203
11 Catstrofes e controvrsias no Oriente,
.......................................................................................210
12 Desenvolvimento constitucional da Igreja,
..................................................................................216
13 O culto pblico e as estaes sacras,
............................................................................................220
14 O cristianismo popular,
................................................................................................................224
15 Algumas caractersticas ocidentais,
..............................................................................................227
16 Jernimo,
.....................................................................................................................................229
17 Agostinho,
....................................................................................................................................231
18 A controvrsia pelagiana,
.............................................................................................................242
19 O semipelagianismo,
....................................................................................................................246
20 Gregrio
Magno,..........................................................................................................................
249 Perodo Quarto A IDADE MDIA AT O FIM DA QUESTO DAS
INVESTIDURAS.......................................255 1 As misses
nas Ilhas Britnicas,
...................................................................................................256
2 Misses continentais e crescimento do papado,
............................................................................262
3 Os francos e o papado,
..................................................................................................................265
4 Carlos Magno,
...............................................................................................................................268
5 Instituies eclesisticas,
...............................................................................................................272
6 Decadncia do imprio e prosperidade do papado,
.......................................................................274
3. 7 Declnio e renovao do papado,
.................................................................................................280
8 Movimento de reforma,
................................................................................................................285
9 O partido reformador apossa-se do papado,
.................................................................................289
10 O papado rompe com o imprio,
..................................................................................................292
11 Hildebrando e Henrique IV,
.........................................................................................................297
12 Fim da luta: acordo,
......................................................................................................................301
13 A Igreja grega aps a controvrsia iconoclasta,
...........................................................................304
14 A expanso da Igreja,
...................................................................................................................306
Perodo Quinto FIM DA IDADE
MDIA..................................................................................................................309
1 Cruzadas,
......................................................................................................................................310
2 Novos movimentos religiosos,
.....................................................................................................318
3 Seitas antieclesisticas. Cataros e valdenses. A inquisio,
.......................................................322 4
Dominicanos e franciscanos,
........................................................................................................328
5 Incio da escolstica,
.....................................................................................................................335
6 As
universidades,..........................................................................................................................341
7 Alto escolasticismo e sua teologia,
..............................................................................................343
8 Msticos,
.......................................................................................................................................354
9 Misses e derrotas,
.......................................................................................................................358
10 Papado: apogeu e declnio,
.........................................................................................................360
11 O papado em Avinho, crtica. Cisma,
.......................................................................................368
12 Wyclif e Huss,
..............................................................................................................................374
13 Conelios reformadores,
...............................................................................................................383
14 A Renascena italiana e seus papas,
.............................................................................................390
15 Novas foras nacionais,
................................................................................................................397
16 A Renascena e outras influncias ao norte dos Alpes,
...............................................................403
4. PREFCIO EDIO BRASILEIRA A presente edio do livro de W.
Walker, publicada pela Associao de Seminrios Teolgicos Evanglicos
(ASTE), baseada na edio inglesa revista e atualizada pelos
eminentes professores Cyril C. Richardson, Wilhelm Pauck e Robert
T. Handy, do Union Theologieal Seminary (Nova York). O simples fato
de que esses professores se tenham dado ao trabalho de preparar uma
edio inglesa atualizada da obra de Walker indica a importncia que
ela continua a ter no panorama internacional. Realmente mui poucos
compndios de Histria da Igreja conseguem reunir a envergadura, a
clareza didtica e agora, a atualidade que a obra de Walker oferece.
Colocando-a ao alcance do leitor brasileiro, a ASTE acre- dita
estar contribuindo para estimular entre ns o interesse no estudo do
passado da Igreja. No nos ajudar isso, a ns, que temos o dever de
fazer a histria presente da Igreja, a conhecer melhor nossa misso e
a desempenhar com mais fidelidade nossa tarefa? No temos dvida de
que os que conhecem e apreciam a antiga edio dessa obra de Walker
(Imprensa Metodista, So Paulo, 1926) ho de apreciar ainda mais a
presente edio.
5. PREFCIO DOS REVISORES A Histria da Igreja Crist, de Walker,
tem sido usada como livro-texto durante os ltimos cinquenta anos.
Obra de um cientista maduro, cujo saber deita razes na terra frtil
da pesquisa histrica alem do fim do sculo XIX e comeo do XX, este
livro consegue combinar clareza, conciso e equilbrio. Da sua
popularidade sem precedentes. Alm disso, apesar dos avanos feitos
pela cincia histrica, a maior parte do texto de Walker no perdeu a
atualidade, o que, alis, de admirar. Era inevitvel, porem, que
alguns trechos necessitassem de alguma modernizao. Os ltimos
captulos, portanto, foram quase totalmente reescritos. O intuito
dos revisores foi preservar a estrutura central da obra original,
revisando to somente as partes que encerravam alguns erros de fato,
ou cuja interpretao merecia srios reparos. Acrescentaram-se alguns
pargrafos aqui e ali, seja para dar ao livro maior equilbrio, seja
para atender a descobertas recentes. A seco que trata do perodo
moderno sofreu um trabalho mais radical de reviso, com vistas a
torn-la mais atualizada. A reviso foi dividida da seguinte maneira:
o Prof. Richardson encarregou-se dos captulos que vo at o comeo da
Idade Mdia (pp 15-307); o Prof. Pauck, da at Reforma (pp 310-137 do
vol. II), e o Prof. Handy, do puritanismo at os dias atuais. Somos
muito gratos ao Dr. Edward R. Hardy, do Seminrio Teolgico de
Berkeley, New Haven, de cuja erudio nos valemos ao revisar o trecho
referente Igreja Ortodoxa Grega. Ao empreender a atualizao desta
importante obra, esperamos haver contribudo para torn- la mais til
e, assim, prolongar-lhe a vida. Cyril C. Richardson Wilhelm Pauck
Robert T. Handy Union Theological Seminary Setembro de 1958
6. PERODO PRIMEIRO Do incio Crise Gnstica.
7. 1 SITUAO GERAL Na poca do nascimento de Cristo, as terras
que circundam o Mediterrneo estavam na posse de Roma. Esses vastos
territrios, que abrangiam toda a civilizao ento conhecida pelo
homem comum, eram dominados por um tipo nico de cultura. Em nenhum
outro perodo da histria anterior ou posterior se encontra exemplo
de predomnio cultural que se possa comparar ao exercido por Roma
nessa poca. O cidado comum do Imprio Romano no tinha conhecimento
algum das civilizaes da ndia ou da China. Alm de suas fronteiras
pensava ele s existiam tribos selvagens ou semicivilizadas. As
fronteiras do Imprio Romano, portanto, coinci- diam com as do mundo
civilizado. A lealdade ao nico imperador e o sistema militar a ele
sujeito eram os fatores que preservavam a unidade. Embora pequeno,
se comparado ao de um estado militar moderno, o exrcito de Roma era
bastante para preservar a paz ro- mana. Sob a gide dessa paz, o
comrcio prosperava, as comunica- es eram facilitadas pelas
excelentes estradas e pelo mar, e entre os homens de cultura, ao
menos nas cidades maiores, o intercmbio de ideias era propiciado
pela existncia de uma lngua comum, a saber, o grego. Apesar dos
maus governantes e dos funcionrios corruptos, o imprio assegurava a
administrao de uma justia severa, sem precedentes no mundo de ento.
Os cidados orgulhavam-se do imprio e de suas conquistas. No
entanto, a despeito da unidade, propiciada pela autoridade imperial
e pelo controle militar, Roma evitava a supresso das instituies
existentes nas diferentes localidades. No geral, os habi- tantes
das provncias governavam-se a si mesmos no que concerne s questes
internas. Respeitavam-se as prticas religiosas locais.
Preservavam-se os costumes e as lnguas antigas dos povos das pro-
vncias. Tal como nos estados nativos existentes dentro do mbito dos
imprios modernos, concedia-se aos governantes locais um dom-
8. DO INCIO CRISE GNSTICA 15 nio limitado em certas pores do
imprio. o caso da Palestina na poca do nascimento de Cristo. Muito
do sucesso de Roma, na dominao de populaes to diversas e a ela
sujeitas, se deve considerao com que tratava os direitos e
preconceitos locais. A diver sidade existente dentro dos limites do
imprio era, assim, to notvel quanto a sua unidade. Mais do que em
qualquer outro, no mbito das ideias religiosas essa variedade
saltava aos olhos. O cristianismo no veio a ocupar um vcuo. Na poca
do seu surgimento, pululavam na mente dos homens concepes vrias do
universo, da religio, do pecado e da recompensa e punio. O
cristianismo tinha de defrontar-se com elas e procurar ajus-
tar-se. No se tratava, portanto, de semear em solo virgem. As
concepes j existentes forneciam muito do material a ser usado na
conformao da sua estrutura. Muitas dessas ideias feneceram e
desapareceram do mundo moderno. O fato de ter havido essa mescla
deve levar o estudioso a distinguir os elementos permanentes dos
transitrios no pensamento cristo, apesar da extrema dificuldadu
implcita nesse processo, e da diversidade das solues propostas
pelos vrios eruditos. Certos fatores presentes ao ambiente
intelectual em que se inseriu o cristianismo provm das religies
antigas universais e remontam a datas antiqussimas. Com exceo de
uns poucos representantes do pensamento filosfico mais requintado,
todos criam na existncia de um poder ou de poderes invisvel,
sobre-humano e eterno, que controlava o destino e devia ser
adorado, ou aplacado, por meio de oraes, atos rituais, ou
sacrifcios. A Terra era considerada o centro do universo. Ao redor
dela o Sol, os planetas e as estrelas seguiam o seu curso. Acima
dela, o cu; abaixo, a morada dos espritos j mortos ou dos maus. Na
mente popular no havia a noo do que hoje se denomina lei natural.
Tudo o que acontecia na natureza era obra dos poderes invisveis do
bem e do mal, que governavam o mundo arbitrariamente. Os milagres,
por conseguinte, eram considerados, no simplesmente possveis, mas
coisa esperada, quando as foras superiores desejassem gravar, na
sensibilidade do homem, a impresso de algo importante ou fora do
comum. O mundo era considerado habitao de inmeros espritos bons e
maus, que influam em todas as facetas da vida humana e, de tal
forma se apossavam dos homens
9. 16 HISTHIA DA IGREJA CRIST vam a controlar suas aes, para o
bem ou para o mal. Grande parte da humanidade caracterizava-se por
um profundo sentido de indignidade, ou de insatisfao com as condies
da existncia. As formas variadas de manifestao de sentimento
religioso eram indcios da necessidade de estabelecer melhores
relaes com o espiritual e o invisvel, e da nsia generalizada por um
socorro maior que o que os homens podiam prestar uns aos outros.
Alm desses conceitos gerais comuns religio popular, o mundo a que
se dirigiu o cristianismo devia muito influncia especfica do
pensamento grego. As ideias helnicas dominavam a inteligncia do
Imprio Romano, mas sua influncia estendia-se to-somente s camadas
mais cultas da populao. A reflexo filosfica dos gregos ocupou-se
inicialmente com a explicao do universo fsico. Porm, com Herclito
de feso (cerca de 490 a.C.), embora tudo seja ainda considerado, em
certo sentido, fsico, o universo, que est num contnuo fluir, passa
a ser considerado como formado por um elemento gneo, a razo que
penetra em todas as coisas, da qual a alma do homem parte. A est,
provavelmente, ainda que em germe, o conceito de Logos, de grande
importncia no pensamento grego fiubseqiiente e na teologia crist.
No entanto, no se fazia distino entre esse elemento que d forma s
coisas, e o calor ou fogo naturais. Anaxgoras de Atenas (cerca de
500-428 a.C.) ensinava que uma mente (nous) modeladora age na
disposio da matria e independente dela. Os pitagricos, na Itlia
meridional, afirmavam que o esprito material e que as almas so
espritos decados e aprisionados em corpos materiais. Parecem ter
sido levados a essa crena na existncia imaterial mediante a
considerao das propriedades dos nmeros, verdades permanentes
pertencentes a um mbito situado alm do da matria, e impossveis de
serem discernidos materialmente. Para Scrates (470?-399 a. C), o
objeto primeiro do pensamento a explicao do prprio homem, e no a do
universo. O tpico de investigao mais importante a conduta do homem,
isto , a moral. A ao reta baseia-se no conhecimento, e o seu
resultado so as quatro virtudes, isto , prudncia, coragem,
autocontrole e justia, as quais, sob a forma de "virtudes
naturais", viriam a ocupar lugar proeminente na teologia crist
medieval. A identificao da virtude com o conhecimento, vale dizer,
a doutrina de que o conhecer leva necessariamente ao agir,
transformouse num lega-
10. DO INCIO CRISE GNSTICA 17 do desastroso para todo o
pensamento grego e veio a influenciar muito a reflexo crist,
particularmente o gnosticismo do sculo II. Foi em Plato (427-347
a.C), discpulo de Scrates, que o esprito grego chegou ao pice de
suas conquistas. Dele se pode dizer, com justeza, que foi um homem
de piedade mstica e de percepo espiritual muito profunda. Para
Plato, as formas passageiras do mundo visvel no fornecem
conhecimento real. O conhecimento do que de fato permanente e real
provm do conhecimento das "ideias", que so os arqutipos ou padres
universais e imutveis existentes no mundo espiritual invisvel. Este
o mundo "inteligvel", j que conhecido pela razo e no pelos
sentidos. As "ideias" do aos fenmenos passageiros, presentes aos
nossos sentidos, tudo o que de real eles possuem. A alma conheceu
essas "ideias" numa existncia anterior presente. O que os fenmenos
do mundo visvel fazem chamar lembrana ou rememorar as "ideias"
anteriormente conhecidas. A alma, cuja existncia anterior do corpo,
forosamente independente deste e no afetada pelo fato da sua
decadncia. Esse conceito de imortalidade como atributo da alma, de
que o corpo no participa, sempre influiu no pensamento grego e
contrasta claramente com a doutrina hebraica da ressurreio. As
"ideias" no tem todas o mesmo valor, as mais elevadas so as do
verdadeiro, do belo e, especialmente, a do bem. Plato talvez no
tenha chegado percepo clara de um Deus pessoal, tal como
corporificada na "ideia" do bem, mas no h negar que se aproximou
dela. O bem, e no o acaso, governa o mundo, a fonte dos bens
menores e deseja ser imitado nas aes dos homens. O reino das
"ideias" a verdadeira morada da alma, e em comunho com elas que
esta atinge a sua perfeita satisfao. A salvao consiste na
reconquista da viso da bondade e da beleza eternas. Aristteles
(384-322 a. C.) era um esprito muito menos mstico do que Plato.
Para ele o mundo visvel era uma realidade insofismvel. Rejeitou a
distino radical entre "ideia" e fenmeno, feita por Plato. Aquela no
pode existir sem este. Exceto no caso de Deus, que totalmente
imaterial, cada existncia uma substncia, resultado da impresso da
"ideia", enquanto fora formativa, sobre a matria, que o contedo. Em
si mesma a matria no passa de substncia potencial. Sempre existiu,
embora nunca sem forma. O mundo, portanto, eterno, j que no existe
um reino de "ideias" anterior manifestao destas em fenmenos. O
mundo
11. 18 HISTRIA DA IGREJA CRIST o obgeto primeiro do
conhecimento. Aristteles , de fato, um cientista. As mudanas do
mundo exigem o impulso de um "primeiro motor", que, por sua vez,
imvel. A est a base do clebre argumento aristotlico da existncia de
Deus. Mas o "primeiro motor" age com propsito inteligente. Deus ,
por conseguinte, no s o comeo mas o fim do processo de
desenvolvimento do mundo. O homem pertence ao mundo das substncias.
Ele composto, porm, no s de corpo e "alma" sensvel, caractersticos
do animal, mas tambm duma fagulha divina, um Logos, que o homem tem
em comum com Deus e que eterno, embora essencialmente impessoal, ao
contrrio da concepo platnica de esprito. No que tange moral,
Aristteles afirmava que o alvo a felicidade ou o bem-estar,
atingido mediante a preservao cuidadosa da via mdia ideal. No foi
grande o avano da filosofia grega, do ponto de vista cientfico,
depois de Plato e Aristteles. No entanto, a influncia direta destes
dois pensadores era pequena ao tempo de Cristo. Duzentos e
cinquenta anos aps o seu nascimento, surgiria uma forma modificada
de platonismo o neoplatonismo de grande importncia, que afetou
profundamente a teologia crist, notadamente a de Agostinho.
Aristteles viria a influenciar poderosamente a teologia escolstica
do fim da Idade Mdia. Esses antigos filsofos gregos tinham
considerado o homem especialmente luz do seu valor para o estado.
As conquistas de Alexandre, que morreu em 323 a.C, trouxeram grande
mudana na perspectiva do homem daquele tempo. A cultura helnica
estendeu-se ao mundo oriental, mas os pequenos estados gregos
deixaram de ter expresso como entidades polticas independentes.
Tornou-se difcil manter, em relao s novas e vastas unidades
polticas, a mesma devoo que, por exemplo, a Atenas independente
tinha evocado nos seus cidados. A nfase des-Iocava-se para o
indivduo como entidade independente. E era em termos de vida
individual que a filosofia tinha agora de ser interpretada. De que
maneira poderia o indivduo tirar o mximo proveito da sua vida ? A
essa pergunta crucial para a poca of ereciam-se duas respostas. Uma
delas era totalmente contrria ndole do cristianismo e, portanto,
impossvel de ser usada por este. A outra tinha certas afinidades
com ele, e, por conseguinte, estava destinada a exercer grande
influncia sobre a teologia crist. Referimo-nos ao epicurismo e ao
estoicismo. Epicuro (342-270 a. C), que passou a maior parte de
sua
12. DO INICIO CRISE GNSTICA 19 vida em Atenas, ensinava que a
satisfao mental o alvo mais alto do homem, e que esse estado mais
perfeito quando passivo. Consiste ele na ausncia de tudo quanto
perturba e importuna. V-se desde j por que Epicuro no merece as
censuras frequentemente assacadas ao seu sistema. Na realidade, sua
vida demonstra que ele foi um asceta. Os piores inimigos da
felicidade mental, dizia ele, so os temores injustificados, dos
quais o principal o horror ira dos deuses e morte. Ambos so temores
infundados. Os deuses existem, mas no criam nem governam o mundo.
Como Demcrito (470!-380? a.C), Epicuro afirmava que o mundo tinha
sido formado pelo acaso, e pela combinao sempre nova de tomos
eternamente existentes. Tudo material, inclusive a alma do homem e
os prprios deuses. A morte o fim de tudo. Isso no significa que
seja um mal, pois no subsiste nela conscincia de coisa alguma.
Enquanto religio, portanto, o epicurismo consistia numa forma de
indiferentismo. Essa escola espalhou-se rapidamente. Na sua
brilhante Be Berum Natura, o poeta romano Lucrrio (98?-55 a.C.)
exprimiu o aspecto mais nobre do epicurismo, mas a influncia do
sistema como um todo foi de carter destrutivo, e levava a um
conceito sensual de felicidade. Contemporneo de Epicuro, Eumero
(cerca de 300 a.C.) ensinava que os deuses das velhas religies no
passavam de homens deificados, cuja aura de divindade provinha de
mitos e tradies a seu respeito. O poeta Enio (239?-170? a.C.)
repetia e pregava as mesmas ideias em Roma. Paralelamente ao
epicurismo, surgiram ideias totalmente cpticas, representadas pelo
ensino de Pirro de Elia (360?-270? a. C.) e seus seguidores.
Afirmavam eles que a natureza real das coisas nunca pode ser
compreendida. Mais que isso, a escolha de uma linha de ao sempre
dbia. Na prtica, Pirro, como Epicuro, pregava o afastar-se de tudo
o que importuna e perturba, como ideal de vida. O cristianismo
pouco teria em comum com tais teorias, embora os apologistas
viessem a fazer uso das ideias de Eumero, nos seus ataques
mitologia pag, e os Pais lanassem mo de argumentos herdados do
cepticismo, com o fito de fazer valer sua afirmao de que a razo
humana severamente limitada. Outra grande resposta era a do
estoicismo, o exemplo mais nobre do pensamento tico pago antigo.
Entre o cristianismo e o estoicismo havia, em algumas facetas,
grandes pontos de aproxi-
13. 20 HISTRIA DA IGREJA CRIST mao; em outras, grande distncia.
Seus lderes eram: Zeno (?-264? a.C), Cleantes (301?-232? a.C.) e
Crisipo (280?-207? a.C). Embora originrio de Atenas, desenvolveu-se
com mais intensidade fora da Grcia, especialmente em Roma, onde
Sneca (3? a.C-65 d.C), Epicteto (60 d.C- 7) e o Imperador Marco
Aurlio (121-180 d.C) tiveram grande influncia. O estoicismo era
muito atuante em Tarso durante os primeiros anos da vida do apstolo
Paulo, sendo, antes de mais nada, um grande sistema tico, embora
alguns o considerassem religio. Sua ideia do universo era
curiosamente materialista. Tudo o que real fsico, embora haja
grande diferena na espessura dos corpos, sendo os mais grosseiros
penetrados pelos mais finos. Fino e grosseiro correspondem, em
linhas gerais, s distines comuns entre esprito e matria. O
estoicismo estava prximo da ideia de Herclito, se bem que a tivesse
modificado bastante. A fonte de tudo, a influncia modeladora e
harmonizadora do universo, o calor vital, a partir do qual tudo se
desenvolveu mediante graus de tenso. Ele penetra todas as coisas e
para ele tudo retorna. Muito mais que o fogo de Herclito, a que se
assemelha, ele a alma universal inteligente, autoconsciente, a razo
disseminada por todas as coisas, o Logos, do qual a razo humana
parte. Deus, vida e sabedoria de tudo. Ele est verdadeiramente
dentro de ns. E ns, ento, podemos "seguir o Deus que est dentro de
ns". Por isso, possvel dizer, como Cleantes dizia de Zeus: "Tambm
ns somos gerao tua". Os deuses populares so meros nomes aplicados s
foras que emanam de Deus. Se em todo o mundo h uma sabedoria,.
segue-se que h uma lei natural, uma regra de conduta para todos os
homens. Todos so moralmente livres. Todos os homens so irmos, j que
provm todos do mesmo Deus. As diferenas em situao de vida so meros
acidentes. O supremo dever seguir os ditames da razo na situao em
que cada um se encontra, e isso igualmente digno de louvor, quer
seja o indivduo imperador quer seja escravo. A obedincia razo, o
Logs, o objeto nico dos esforos humanos. A felicidade no o alvo a
ser perseguido, embora o cumprimento do dever tenha como subproduto
a felicidade. Os principais inimigos da obedincia perfeita so as
emoes e a sensualidade, que pervertem a capacidade de julgamento.
Delas deve o homem afastar-se.
14. DO INCIO CRISE GNSTICA 21 Deus inspira todas as boas aes,
embora a noo de Deus seja essencialmente pantesta. A teologia crist
viria a sofrer profundamente a influncia da estrnua atitude asctica
do estoicismo, da sua doutrina da sabedoria divina que tudo
impregna e governa, o Logos, da insistncia em que todos os que agem
retamente so igualmente merecedores, seja qual for sua posio, e da
afirmao da irmandade essencial de todos os homens. Nos seus
representantes mais notveis, o credo estico e seus resultados
atingiram estatura nobre. No geral, porm, era uma doutrina dura,
estreita e pouco simptica, reservada a uma pequena elite. O prprio
estoicismo reconhecia que poucos poderiam atingir o padro de
excelncia por ele pregado. Da o tom de orgulho presente em muitos
dos seus representantes, muito mais flagrante quando se compara com
o esprito de humildade presente no cristianismo. No entanto, o
estoicismo mesmo asssim teve efeitos notveis. Deu a Roma excelentes
imperadores e funcionrios do estado. Nunca chegou a tornar-se um
credo realmente popular, mas era seguido por pessoas de influncia e
posio elevada no mundo romano, e modificou para melhor a lei
romana, introduzindo na jurisprudncia o conceito de lei natural,
expressa na razo e superior a quaisquer estatutos humanos
arbitrrios. Seu ensino de que todos os homens so, por natureza,
iguais amenizou gradualmente as facetas mais perversas da
escravatura, propiciando a muitos conquistarem a cidadania romana.
Durante o perodo em que surgiu o cristianismo, os antigos sistemas
filosficos sofreram mudanas notveis. A tendncia ao sincretismo era
largamente difundida e as vrias escolas influen-ciavam-se
mutuamente. Por exemplo, a tica rigorosa original dos esticos foi
modificada pela ideia do termo mdio aristotlico. O clebre filsofo
estico Possidnio (135-51 a.C.) mostra influncia platnica. Foi,
alis, um dos espritos mais universais da Antiguidade. preocupao
racional e mstica somou a de historiador e gegrafo. evidente em
Plutarco (vide abaixo) o carter ecltico do platonismo mdio. Nele
misturam-se temas esticos, aristotlicos e pitagricos. O carter
sincrtico do pensamento helnico torna-se evidente em muitos dos
Pais da Igreja. Apesar da disseminao do epicurismo e do estoicismo,
pdese dizer que, ao tempo de Cristo, a tendncia principal do
pensamento mais refinado em Roma e nas provncias encaminhava-se
em
15. 22 HISTRIA DA IGREJA CRIST direo ao monotesmo pantesta, ao
conceito de Deus como bom contrastando com o carter amoral das
antigas divindades gregas e romanas crena numa providncia divina
soberana, ideia de que a verdadeira religio no consiste em
cerimnias mas em imitao das qualidades morais de Deus e a uma
atitude mais humana para com as criaturas. Faltavam filosofia de
ento dois elementos que o cristianismo viria realar, a saber, a
certeza que s pode advir da crena numa revelao divina, e a ideia de
lealdade a uma pessoa. O povo em geral, no entanto, desfrutava de
poucos dos benefcios advindos do pensamento filosfico. Campeava no
seu meio a superstio mais crua. Se verdade que o predomnio das
velhas religies da Grcia e de Roma diminura, no menos verdade que o
povo comum permanecia na crena em deuses muitos e senhores vrios.
Cada cidade, cada profisso, a agricultura, a primavera, o lar, os
eventos principais da existncia, o casamento, o nascimento tudo
tinha o seu patrono na pessoa de um deus ou deusa. Essas noes
viriam mais tarde a aparecer na histria crist sob a forma de
venerao de santos. Adivinhos e mgicos, especialmente os de raa
judaica, faziam comrcio prspero entre os ignorantes. Acima de tudo,
o povo em geral estava convicto de que a preservao do culto
religioso histrico dos deuses antigos era necessrio segu rana e
perpetuao do estado. Se esse culto no fosse praticado, os deuses
exerceriam vingana por meio de calamidades. Foi essa opo que deu
causa a muitas das perseguies movidas contra o cristianismo. Essas
ideias populares no encontravam oposio da parte dos mais cultos, os
quais, em geral, admitiam que as velhas religies tinham valor
policial, e consideravam as cerimnias do estado como uma
necessidade do homem comum. Sneca expressou sem rodeios a opinio
dos filsofos, ao declarar que "o homem sbio observa todos os
costumes da religio tais como ordenados pela lei, e no como
agradveis aos deuses". Era s massas que apelavam os pregadores
cnicos desse pe-rodo. A corrupo moral do imprio favoreceu o
reavivamento desse antigo credo de independncia e auto-suficincia.
Seu campeo fora Digenes de Sinope (400?-325? a.C). Embora muitos
desses pregadores itinerantes fossem grosseiros e mesmo obscenos,
havia os que eram dignos de honra, como Dio Crisstomo (40. d.C.
112?), que discursava contra o vcio e a sensualidade, propunha
a
16. DO INCIO CRISE GNSTICA 23 vida do campo como muito superior
do citadino abastado, e proclamava uma mensagem de harmonia mundial
e verdadeira piedade, fundamentada na ideia universal e inata de
Deus. possvel perceber alguma influncia da vida asctica e
itinerante do cnico sobre o desenvolvimento do monaquismo cristo.
Por razes patriticas, os imperadores mais atilados procuraram
fortalecer as religies populares antigas e transform-las em adorao
do estado e do seu chefe. Na verdade, foi nos dias da repblica que
comeou a deificao patritica do estado romano. J em 195 a.C.
encontra-se em Esmirna o culto da "Dea Roma". Essa reverncia era
favorecida pela popularidade do imprio nas provncias, j que ele
assegurara um governo melhor do que o da repblica. Em 29 a.C.
Prgamo j dispunha de um templo dedicado a Roma e a Augusto.
Espalhou-se rapidamente esse culto dedicado ao governante como
corporificao do estado ou, melhor dizendo, ao seu "gnio" ou esprito
que nele habitava. Criouse logo um sistema sacerdotal patrocinado
pelo estado, dividido e organizado em provncias, encarregado da
celebrao no s do culto como tambm dos jogos anuais, em larga
escala. Foi essa provavelmente a organizao de carter religioso mais
desenvolvida ao tempo do primeiro imprio. Ainda est por ser
verificado com exatido o grau de influncia que exerceu sobre as
instituies crists. Do ponto de vista do homem moderno, havia nesse
sistema muito mais patriotismo do que religio. Mas a sensibilidade
crist primitiva considerava a adorao do imperador absolutamente
irreconcilivel com a fidelidade a Cristo. A descrio da igreja de
Prgamo (Ap 2.13) exemplo tpico dessa opinio. Para os romanos, a
recusa dos cristos em render culto ao imperador parecia pura e
simples traio, razo por que se iniciou a grande era dos mrtires. A
necessidade que o homem tem de religio muito mais profunda do que a
de filosofias ou cerimnias. S o homem excepcional se satisfaz com
uma doutrina filosfica. As cerimnias atraem maior nmero, mas no
bastam aos que exercem com mais zelo a capacidade de raciocnio, nem
aos dotados de um sentimento agudo de indignidade pessoal. Surgiram
tentativas de reavivar o paganismo popular mais antigo, j
moribundo. Muitos dos primeiros imperadores mostraram-se grandes
construtores e protetores de templos. O exemplo mais tpico e notvel
de tentativa de reavivamento e purificao da religio popular o de
Plutarco(467dC.
17. 24 HISTRIA DA IGREJA CRIST 120?), de Queronia, na Grcia.
Criticando a mitologia antiga, Plutarco rejeitava tudo o que
subentendesse a prtica de atos cruis ou moralmente indignos por
parte dos deuses. H um s Deus, afirmava ele. Os deuses populares so
personificaes de atributos seus, ou espritos subordinados. Cria
tambm em orculos, providncias especiais e retribuio futura, e
pregava uma vigorosa moralidade. Seus esforos no sentido de
reavivar o que de melhor havia no antigo paganismo estavam, porm,
destinados ao fracasso e conquistaram poucos seguidores. A grande
maioria dos que sentiam necessidades de ordem religiosa
simplesmente adotavam as religies orientais, notadamente aquelas em
que predominava a preocupao com a redeno, em que o misticismo e o
sacramentalismo eram trao marcante. Isso era grandemente favorecido
pelo vasto afluxo de escravos orientais para a rea ocidental do
mundo romano no fim da repblica. A disseminao dessas crenas
independentes do cristianismo e, at certo ponto, rivais deste
durante os trs primeiros sculos de nossa era, contribuiu para o
aprofundamento do sentimento religioso em todo o imprio e, nesse
sentido, facilitou o triunfo do cristianismo. Uma dessas religies
orientais foi o judasmo, a que teremos oportunidade de fazer
referncia mais pormenorizadamente em outro local. Apesar do pouco
elemento de mistrio que apresentava, o judasmo conquistou
popularidade considervel. A mente popular voltava sua preferncia
para outros cultos do Oriente com nfase maior no misterioso ou,
antes, mais peso no elemento sacramental e redentor. A importncia
desses cultos no desenvolvimento religioso do mundo romano tem sido
muito realada ultimamente. Os mais populares dentre eles eram os da
Grande Me (Cibele) e tis, originrios da sia Menor; de Isis e
Serpis, do Egito, e de Mitras, da Prsia. Ao mesmo tempo,
observava-se grande sincretismo entre essas religies, cada uma
apossando-se de elementos de outra e das religies mais antigas nas
suas zonas de origem. O culto da Grande Me aportou a Roma em 204
a.C. Era em essncia uma religio rudimentar de adorao da natureza,
acompanhada de ritos licenciosos. Foi o primeiro a fixar-se no
Ocidente em larga escala. O de Isis e Serpis, com sua nfase na
regenerao e na vida futura, estabeleceu-se em Roma mais ou menos em
80 a.C. mas defron-tou-se com oposio governamental por muito tempo.
O de Mitras.
18. DO INCIO CRISE GNSTICA 25 o mais elevado de todos, apesar
de sua longa histria no Oriente, no chegou a tornar-se importante
em Roma seno aps o ano 100 d.C. aproximadamente. Seu perodo ureo de
crescimento foi na ltima parte do sculo II e no sculo III. Era
preferido especialmente pelos soldados. Nos ltimos anos ao menos do
seu progresso no Imprio Romano Mitras foi identificado como o Sol,
o Sol Invictus dos imperadores imediatamente anteriores a
Constantino. Como outras religies de origem persa, tinha uma viso
dualista do universo. Todas essas religies pregavam um
deus-redentor e origina-vam-se do culto natureza. Sua mitologia
variava, mas em geral falava de um deus que morria e ressuscitava,
e celebrava o ciclo natural do nascimento e da morte, aplicando-o
ao renascimento da alma, de modo a vencer a morte. Outra constante
nessas religies era a afirmao de que os iniciados participavam, de
modo simblico (sacramental), das experincias do deus, morriam com
ele, com ele ressurgiam, tornavam-se participantes da natureza
divina, geralmente por meio de uma refeio de que o prprio deus
simbolicamente partilhava, tornando-se tambm partcipes da sua
imortalida de. Todas essas religies tinham ritos secretos
reservados aos iniciados e atos de purificao mstica (sacramental)
dos pecados. Nas religies de Isis e Serpis essa purificao se dava
por meio do ba-nhar-se em guas sagradas. Nas da Grande Me e de
Mitras, por meio do sangue de um touro o taurobolium no qual os
iniciados "renasciam para sempre", segundo rezam algumas inscries.
Todas elas prometiam vida futura feliz para os fiis. Em sua-atitude
para com o mundo, eram todas mais ou menos ascticas. Algumas, como,
por exemplo, o mitrasmo, pregava a irmandade e igualdade essencial
de todos os discpulos. No parece haver dvida de que o
desenvolvimento da primitiva doutrina crist dos sacramentos foi
afetado, se no diretamente por essas religies, ao menos pelo
ambiente religioso que elas ajudaram a criar e com o qual muito bem
se coadunavam. Resumindo a situao do mundo pago -na poca do
nascimento de Cristo, pode-se dizer que eram evidentes certas
necessidades religiosas, mesmo em meio a grande confuso e expressas
em formas as mais variadas. Para fazer face s exigncias da poca,
uma religio teria de pregar um Deus nico e justo, embora deixasse
lugar para inmeros espritos, bons e maus. Teria de possuir
19. 26 HISTRIA DA IGREJA CRIST uma revelao definida da vontade
de Deus, isto , de uma escritura dotada de autoridade, como era o
caso no judasmo. Teria de inculcar nos seus seguidores a virtude da
negao do mundo, baseada em aes morais agradveis vontade e natureza
do seu Deus. Teria de apontar uma vida futura prenhe de recompensas
e castigos. Deveria dispor de ritos simblicos de iniciao e prome
ter efetivo perdo de pecados. Teria de possuir um deus-redentor com
o qual os homens pudessem unir-se mediante atos sacramentais.
Deveria pregar a irmandade de todos os homens, ou, ao menos, de
todos os seus seguidores. Por mais simples que fosse o seu comeo, o
cristianismo tinha de possuir tais caractersticas, ou delas
apropriar se, a fim de conquistar o Imprio Romano, ou tornar-se uma
reli- gio universal. Em sentido muito mais amplo do que se pensava,
o cristianismo surgiu "na plenitude dos tempos". Para os que crem
na providncia poderosa de Deus, evidente a importncia fundamental
nessa grande preparao, por mais que se reconhea o fato de que
algumas das caractersticas do cristianismo primitivo levavam o
timbre e as limitaes da poca e tm de ser joeiradas, para que nele
se percebam os elementos eternos
20. ANTECEDENTES JUDAICOS 2 O desenvolvimento do judasmo nos
seis sculos anteriores ao nascimento de Cristo foi determinado
pelos eventos concretos da historia. Desde a conquista de Jerusalm
por Nabucodonosor, em 586 a.C, a Judeia estava sob controle poltico
estrangeiro. Coube-ra-lhe a mesma sorte do antigo Imprio Assrio e
de seus sucessores, o Imprio Persa e o de Alexandre. Aps a dissoluo
deste ltimo, caiu sob o domnio dos Ptolomeus do Egito e ento da
dinastia se-lucida de Antioquia. Apesar dessa dependncia poltica,
as instituies religiosas estavam praticamente intactas depois da
restaurao efetuada quando da conquista de Babilnia pelos persas. As
famlias sacerdotais, hereditrias, constituam a verdadeira
aristocracia da terra. Caracterizavam-se, nos seus escales mais
altos, por interesses polticos e indiferena religiosa. O cargo de
sumo-sacerdote passou a ser cobiado, por causa de sua influncia
econmica e poltica. Com segurana, a partir do perodo grego, a esse
cargo estava vinculado um colgio de conselheiros e intrpretes das
leis, o Sindrio, que veio a ser constitudo de 71 membros. Assim
administrado, o templo e o seu sacerdcio vieram a representar o
aspecto mais formal da vida religiosa dos hebreus. De outra parte,
a convico de que a nao era um povo santo, que vivia sob o domnio da
lei santa de lav, bem como a ideia de separatismo religioso e a
relativa cessao da profecia, levaram-na ao estudo da lei,
interpretada por um conjunto sempre crescente de tradies. Tal como
acontece nos pases muulmanos de hoje, a lei judaica era no s
preceito religioso, mas tambm estatuto civil. Seus intrpretes, os
escribas, tornavam-se cada vez mais claramente os lderes religiosos
efetivos do povo O judasmo tornouse, por fim, religio de uma
escritura sagrada com sua coleo de precedentes interpretativos.
Onde quer que o judasmo estivesse presente, passou a existir a
sinagoga, como instrumento para favorecer a compreenso mais
21. 28 HISTRIA DA IGREJA CRIST. plena e a administrao da lei, e
como lugar de orao e culto. A origem da sinagoga incerta. Remonta,
provavelmente, ao exlio. Sua forma tpica era a de uma congregao
local que inclua todos os judeus de uma certa regio, sob a
presidncia de um grupo de "ancios" que tinham, muitas vezes, um
"prncipe" por chefe. Esse grupo tinha poder para excomungar e punir
os culpados. Os ofcios eram simples e podiam ser dirigidos por
qualquer hebreu, embora os preparativos estivessem a cargo do
"prncipe da sinagoga". Constava de orao, leitura da lei e dos
profetas, traduo do tre- cho lido e, s vezes, exposio ou sermo, e
bno. Quanto mais prximos nos colocamos da poca do nascimento de
Cristo, tanto mais evidente se torna o fato de que o templo, embora
ainda em alta estima, se torna cada vez menos importante na vida
religiosa do povo, em virtude do carter pouco representativo do
sacerdcio, e tambm da importncia crescente da sinagoga. Sua
destruio total, no ano 70 d.C, no chegou sequer a perturbar nenhum
dos elementos essenciais do judasmo. Sob o domnio dos reis
selucidas, a Judeia foi invadida por influncias helenizantes, que
dividiram os que reivindicavam o cargo de sumo-sacerdote. O apoio
decidido ao helenismo, dado por Antoco IV, Epifnio (175 a.C.-164) e
a campanha por ele movida contra o culto e os costumes judaicos
suscitaram a grande rebelio dos Ma-cabeus, em 167 a.C, sendo tambm
a causa remota de um perodo de independncia judaica, que durou at a
conquista pelos romanos, em 63 a.C. As lutas em torno da tendncia
helenizante pro duziram uma profunda ciso na vida dos judeus. Os
governantes macabeus apossaram-se do cargo de sumo- sacerdote.
Contudo, embora tivessem galgado posies de liderana graas ao fato
de se oporem tendncia helenizante e graas ao seu zelo religioso, os
Macabeus pouco a pouco descambaram para o helenismo, e deixaram-se
dominar por ambies puramente polticas. Com Joo Hircano, o Macabeu
que governou de 135 a 105 a.C, tornaram-se claras as distines entre
os partidos religiosos do judasmo posterior. O partido
aristocrtico-poltico, ao qual se aliaram Hircano e as principais
famlias sacerdotais, tornou-se conhecido como o partido dos
saduceus (palavra sobre cujo sentido e origem pouco se sabe). Era.
em essncia, um partido mundano e desprovido de convices religiosas
marcantes. Muitas das ideias apregoadas pelos saduceus eram
representativas do judasmo mais antigo. Por exemplo: guardavam
22. DO INCIO CRISE GNSTICA 29 a lei sem a interpretao
tradicional e negavam a ressurreio e a imortalidade da pessoa.
Rejeitavam, de outro lado, a velha ideia de espritos bons e maus.
Embora de grande influncia poltica, no gozavam de popularidade
entre o povo comum, o qual se opunha a toda e qualquer influncia
estrangeira, e se colocavam ao lado da lei tal como interpretada
pela tradio. Os representantes mais radicais desta atitude
democrtico- legalista eram os fariseus (palavra que significa
"separados"). Embora o nome por que eram chamados tenha aparecido
pouco antes do tempo de Joo Hircano, os fariseus apresentavam uma
atitude que remontava a pocas muito anteriores. no reino deste
Macabeu que se inicia a luta histrica entre fariseus e saduceus. No
geral, os fariseus no constituam um partido poltico, embora dentre
eles tenham surgido os zelotes (ou "homens de ao"). Nunca chegaram
a ser numerosos, no obstante contassem com a admirao da maioria do
povo. O judeu comum no dispunha da instruo nas mincias da lei, nem
do tempo disponvel necessrios para tornar-se um fariseu. A atitude
dos membros desse partido para com a massa do judasmo era de
desprezo.1 Os fariseus representavam, contudo, ideias nutridas por
muita gente, resultado, em muitos sentidos, do desenvolvimento
religioso judaico desde os tempos do exlio. Sua nfase principal era
na observncia exata da lei tal como interpretada pelas tradies.
Mantinham-se aferrados crena na existncia de espritos bons e maus,
com uma doutrina dos anjos e de Satans grandemente influenciada, ao
que parece, por ideias persas. Representavam a crena na ressurreio
do corpo e em recompensas e castigos futuros, crena essa que se
havia desenvolvido grandemente nos dois sculos imediatamente
anteriores ao nascimento de Cristo. Tal como o povo em geral,
mantinham-se fiis esperana messinica. Os fariseus eram, em muitos
aspectos, merecedores de grande respeito. Alguns dos discpulos de
Cristo provieram de crculos imbudos dessas ideias. O mais culto dos
apstolos tinha sido fariseu, e assim se declarava, mesmo muito
tempo depois de se ter tornado cristo.2 O fervor demonstrado pelos
fariseus era admirvel. O farisasmo, porm, tinha dois grandes
defeitos. Primeiro, equacionava a religio com a mera observncia de
uma lei externa, mediante a qual se conquistava uma
recompensa.
23. 30 HISTRIA DA IGREJA CRIST Isso podia levar facilmente ao
esquecimento da retido interior do esprito e da relao pessoal ntima
com Deus. Segundo, alijava das promessas divinas aqueles para quem
era impossvel a observncia do padro farisaico, por causa de seus
pecados, falhas e imperfeio na obedincia lei. Deserdava, portanto,
as "ovelhas perdidas" da casa de Israel, e, com isso, tornouse
merecedor da justa condenao da parte de Cristo. A esperana
messinica, nutrida tanto pelos fariseus como pelo povo em geral,
era fruto da forte conscincia nacional e da f em Deus. Nos tempos
de opresso nacional ela se tornava ainda mais vigorosa. Tornara-se
dbil ao tempo do governo dos primeiros Macabeus, quando uma
dinastia temente a Deus trouxera independncia ao povo. A tradio
familiar, porm, foi abandonada pelos ltimos Macabeus. Os romanos
conquistaram o pas em 63 a.C. Do ponto de vista estritamente
judaico, a situao em nada melhorou quando um aventureiro, pelo
sangue meio judeu, Herodes, filho do idumeu Antipter, governou como
rei vassalo do poder romano, entre 37 a.C. e 4 a.C. O povo
considerava-o instrumento dcil nas mos dos romanos e, no fundo, um
helenizante, apesar dos inegveis servios que prestou prosperidade
material do pas e da suntuosa reconstruo do templo por ele
empreendida. Os herodia-nos eram odiados tanto por fariseus quanto
por saduceus. Morto Herodes, seu reino foi dividido entre trs dos
seus filhos. Arquelau tornou-se "etnarca" da Judeia, Samaria e
Idumia (4 a.C.-6 d.C.); Herodes Antipas, "tetrarca" da Galileia e
Peria (4 a.C.-39 d.C), e Filipe, "tetrarca" da regio situada a
leste e nordeste do mar da Galileia, predominantemente pag.
Arquelau suscitou profundas inimizades, foi deposto pelo Imperador
Augusto e sucedido por um procurador romano. O ocupante deste cargo
entre 26 e 36 d.C. era Pncio Pilatos. Diante de condies polticas to
desalentadoramente adversas, parecia que s por interveno divina a
esperana messinica poderia concretizar-se. No tempo de Cristo, tal
esperana implicava a destruio da autoridade romana pela interveno
divina mediante um messias, e o estabelecimento de um reino de
Deus, no qual floresceria um judasmo libertado e poderoso, sob o
governo de um rei messinico justo de descendncia davdica, reino
esse para o qual acorreriam todos os judeus dispersos pelo Imprio
Romano. Seria o incio de uma idade urea. Para o judeu comum, era
pro-
24. DO INCIO CMSE GNSTICA 31 vvel que isso significasse
simplesmente a expulso dos romanos, por interveno divina, e a
restaurao do reino de Israel. Era crena comum, baseada em Malaquias
3.1, que a vinda do Messias seria anunciada por um precursor. Essas
esperanas eram fomentadas pela literatura apocalptica, com seu
pessimismo em relao ao presente e sua viso colorida da idade
vindoura. Os escritos eram em geral atribudos a antepassados
notveis. o caso, por exemplo, da profecia de Daniel, includa no
cnone do Antigo, Testamento, do livro de Enoque, da Assuno de
Moiss, e tantos outros. Exemplo cristo desse tipo de literatura,
embora prenhe de conceitos judaicos, o livro do Apocalipse, includo
no Novo Testamento. Tais obras incutiam uma atitude religiosa de
abertura para o futuro e esperana, atitude essa que deve ter
servido para compensar o legalismo rgido da interpreta- o farisaica
da lei. Presentes na Palestina, desse tempo, encontravam-se ainda
outras correntes de vida religiosa cuja penetrao impossvel avaliar,
mas cuja realidade evidente. Distante dos crentes do judasmo
oficial, especialmente nas regies agrcolas, havia uma piedade
mstica muito concreta. Era a piedade dos ltimos Salmos e dos
"pobres de esprito" do Novo Testamento. bem provvel que o
"Magnificat" e o " Benedictus"3 tenham sido expresses desse tipo de
religiosidade, tambm consubstanciada nas assim chamadas Odes de
Salomo. Dessa piedade mais simples, em maior ou menor sentido
mstico, provinham apelos profticos ao arrependimento, dentre os
quais os de Joo Batista so os mais conhecidos. A descoberta dos
manuscritos do Mar Morto veio chamar a ateno para essa piedade e
para a existncia de uma faco do judasmo distinta da dos saduceus e
fariseus. A biblioteca e as runas do mosteiro da comunidade de
Qunran, na margem noroeste do Mar Morto, revelaram a localizao de
uma irmandade vinculada de certa forma aos essnios, a respeito de
quem Flon, Josefo e Plnio, o Velho, escreveram no primeiro sculo da
nossa era. bem provvel que muitas outras comunidades semelhantes a
essa tenham existido. Levavam uma vida semimonstica, protestando
contra o judasmo oficial de Jerusalm. s vezes, como no caso dos
essnios, renunciavam ao casamento; outras, como Qunran, permitiam-
no.
25. 32 HISTRIA DA IGREJA CRIST. Esses "puritanos" ou
"contratantes", como poderiam ser chamados, consideravam-se
verdadeira congregao de Israel, o remanescente fiel. Tinham a lei
em alta conta e interpretavam-na a seu prprio modo. Diziam- se
especialmente "iluminados", razo por que se declaravam guardies do
sentido exato da lei, em meio s perverses da poca. Veneravam um
certo "Mestre de Justia" (cuja identificao histrica permanece ainda
obscura) como o verdadeiro intrprete da lei. Submetiam-se a
purificaes peridicas, observavam um rito anual de adeso e renovao
da Aliana, e partilhavam de uma refeio sagrada de po e vinho.
Quando as regras da comunidade (preservadas no Manual de
Disciplina) eram violadas, exerciam severo disciplinamento. A
piedade nobre, embora um tanto legalista da comunidade, evidente
nesse documento, e o aspecto mais mstico est patente nos Salmos de
Ao de Graas, documentos encontra- dos nas escavaes. A organizao da
comunidade compreendia vrios postos: um "superintendente",
"sacerdotes de Sadoque", "os doze perfeitos" ou "ancios", "juzes" e
outros. Resta acrescentar que aguardavam fer- vorosamente a redeno
de Israel. Criam que um novo Profeta, um novo Mestre,
Sumo-Sacerdote e Rei (personagens messinicos) se levantaria para
reunir as hostes dispersas de Israel, derrotar seus inimigos e
instaurar a era do Reino. Tem sido muito debatida a hiptese da
influncia desses grupos sobre Joo Batista e sobre o cristianismo
primitivo. Parece claro, contudo, que havia muitos pontos em comum
e que, embora o Novo Testamento omita qualquer referncia a essa
corrente sectria do judasmo do primeiro sculo, o cristianismo muito
deveu a ela. No impossvel que Joo Batista e alguns dos primeiros
discpulos de Jesus tenham pertencido uma vez a tais comunidades.
Devemos fazer referncia a uma outra corrente de pensamento no
judasmo dessa poca, especialmente em razo da influncia que exerceu
sobre o desenvolvimento da teologia crist. Referimo-nos corrente
que dava nfase "sabedoria". Atribua-se-lhe existncia praticamente
personificada, como subsistente ao lado de Deus, unida a Ele, por
Ele "possuda" antes da fundao do mundo e agente seu na criao.4
possvel divisar nessas ideias a influncia da noo estica do Logos
divino que tudo penetra. H nelas uma
26. DO INCIO CRISE GNSTICA 33 conotao mais tica do que a que se
nota no ensino grego correspondente. V-se, porm, que seria fcil uma
assimilao entre as duas ideias. natural que, ao falar-se no
judasmo, se d ateno em primeiro lugar Palestina, seu lugar de
origem e bero do cristianis-mo. No entanto, grande foi a importncia
da disperso dos judeus fora da Palestina, no s para a vida
religiosa do Imprio Romano como um todo, mas tambm para o efeito
reflexo que o consequente contacto com o pensamento helnico teve
sobre o prprio judasmo. Essa disperso comeara com as conquistas dos
monarcas assrios e babilnicos, e fora fomentada por muitos
governantes, notadamente os Ptolomeus do Egito e os grandes romanos
dos ltimos dias da repblica e do comeo do imprio. Quaisquer dados
estats- ticos no passaro de conjeturas, mas provvel que, poca do
nascimento de Cristo, o nmero de judeus fora da Palestina fosse
cinco ou seis vezes superior ao dos radicados dentro de suas
fronteiras. Constituam parte pondervel da populao de Alexandria.
Haviam criado profundas razes na Sria e na sia Menor. Embora em
nmero relativamente pequeno, estavam presentes tambm em Roma. Eram
poucas as cidades do imprio em que no fizessem notar sua presena.
Olhados com suspeita pelas populaes pags, dada a tendncia a unir-se
em grupos fechados, os judeus prosperavam no comrcio, eram
apreciados pelos governantes em virtude de suas boas qualidades,
viam em geral respeitados seus escrpulos religiosos e, por sua vez,
davam mostras de um esprito missionrio que fazia notada sua
influncia religiosa. Tal como praticado em terras pags, o judasmo
da disperso era um credo muito mais simples do que o fa- risasmo
palestinense. Pregava o Deus nico, que tinha revelado sua vontade
nas escrituras sagradas; uma moralidade vigorosa, uma vida futura
com recompensas e castigos e uns poucos mandamentos, relativamente
simples, referentes ao "Sabbath", circunciso e ao uso de carnes.
Por onde ia carregava consigo a sinagoga com seu culto simples e
despido de ritualismo. Exercia grande atrao para muitos pagos. Alm
dos proslitos, as sinagogas reuniam ao seu redor um nmero muito
maior de conversos parcialmente judaizados, os chamados "devotos".
Foi dentre os deste ltimo grupo que a propaganda missionria crist
incipiente recrutou os seus primeiros ouvintes .
27. 34 HISTRIA DA IGREJA CRIST O judasmo da disperso, por sua
vez, sofreu forte influncia do helenismo, especialmente da
filosofia grega. Essa influncia em nenhum outro lugar foi mais
profunda do que no Egito. Foi na cidade egpcia de Alexandria que o
Antigo Testamento foi traduzido para o grego na verso comumente
chamada de "Septua ginta" j na poca do reinado de Ptolomeu
Filadelfo (285 a.C-246). As escrituras'judaicas, at ento encerradas
numa lngua obscura, tornaram-se, assim, acessveis a muitos. Tambm
em Alexandria, as concepes religiosas do Antigo Testamento
associaram-se aos conceitos filosficos gregos, especialmente os
platnicos e esticos, para formar um sincretismo admirvel. O mais
importante desses intrpretes alexandrinos foi Flon (20? a.C.-42?
d.C). Para ele, o Antigo Testamento era o mais sbio dos livros,
verdadeira revelao divina, e Moiss, o maior dos mestres. Mediante a
interpretao alegrica, porm, Flon v harmonia entre o Antigo
Testamento o os melhores elementos do platonismo a estoicismo. Essa
convico teria tremenda importncia para o desenvolvimento da
teologia crist. O mtodo alegrico de interpretao da Bblia viria a
influir grandemente no futuro estudo cristo das Escrituras. Segundo
Flon, o Deus nico fz o mundo como expresso de sua bondade para com
sua criao. Mas os elos de ligao entre Deus e o mundo so uma srie de
poderes divinos, considerados ora como atributos de Deus, ora como
seres pessoais. Destes, o mais elevado o Logos, que emana do prprio
ser de Deus e o agente, no s atravs do qual Deus criou o mundo mas,
tambm, do qual emanam todos os outros poderes. Mediante o Logos,
Deus criou o homem ideal, de quem o homem concreto uma plida cpia,
produto que , no s do Logos, mas tambm dos poderes espirituais
inferiores. Apesar do seu estado decado, o homem pode elevar- se
comunho com Deus atravs do Logos, agente da revelao divina. O
conceito que Flon tem do Logos, porm, muito mais filosfico do que o
de "sabedoria" tal como encontrado no livro de Provrbios, ao qual,
alis, fizemos meno. E a origem da doutrina neotestamentria do Logos
se en- contra na concepo hebraica de "sabedoria", e no no
pensamento de Flon. No obstante, Flon uma tima ilustrao da maneira
em que se poderiam unir ideias helnicas e hebraicas, tal como veio
depois a acontecer na evoluo da teologia crist. Em parte alguma do
mundo romano o processo representado pelo trabalho de Flon se
desenvolveu com tanta plenitude quanto em Alexandria
28. 3 JESUS E OS DISCPULOS O caminho para Jesus foi preparado
por Joo Batista, considerado pelos primeiros cristos o "precursor"
do Messias. De vida asctica, pregou, na regio do Jordo, que o dia
do julgamento de Israel estava prximo, que o Messias estava prestes
a chegar. Desprezando todo formalismo religioso e qualquer
dependncia em relao descendncia de Abrao, proclamava a mensagem dos
antigos profetas: "arrependei-vos, fazei justia". As instrues que
dava aos vrios tipos de ouvintes eram simples e radicalmente
no-legalistas. 5 Batizava seus discpulos, como sinal da purificao
dos seus pecados. (O ato do batismo talvez simbolizasse submisso ao
rio de fogo que se aproximava, pelo qual Deus haveria de purificar
e redimir o mundo). Ensinava-lhes um tipo especial de orao. Joo
Batista foi descrito por Jesus como o ltimo dos profetas e um dos
maiores entre eles. Embora muitos dos seus seguidores se tivessem
tornado discpulos de Jesus, alguns deles continuaram independentes,
sendo encontrados por Paulo, muito mais tarde, no seu ministrio em
f eso. 6 Palta-nos material para compor uma biografia de Jesus
comparvel que se poderia escrever de algum que tenha vivido nos
tempos modernos. Os fatos registrados nos Evangelhos so, antes de
mais nada, testemunho do divino evento de Jesus, o Cristo, e seus
pormenores foram sem dvida coloridos pelas experincias e situaes
vividas pela Igreja primitiva. H profunda diviso entre os
estudiosos no que concerne exatido de muitos incidentes narrados
nos Evangelhos. Nos seus traos essenciais, porm, o carter e o
ensino de Jesus tornam-se visveis nas pginas dos Evangelhos. Ele
cresceu em Nazar da Galileia, na atmosfera simples de uma casa de
carpinteiro. Embora olhada com desprezo pelos judeus mais puros que
habitavam a Judeia, por causa da considervel mistura de
29. 36 HISTRIA DA IGREJA CRIST raas que nela havia, a Galileia
era fiel religio e s tradies hebraicas. A populao, vigorosa e
altiva, estava imbuda de intensa esperana messinica. Ali Jesus
chegou idade adulta, sem que tenhamos um registro das experincias
por ele vividas na infncia e mocidade. A julgar, porm, pelo seu
ministrio posterior, devem ter sido anos de profunda penetrao
espiritual e de "graa diante de Deus e dos homens". A pregao de Joo
Batista o afastou da vida calma que levava. Por ele foi batizado no
Jordo. Junto com o batismo veiolhe a convico de que era designado
por Deus para desempenhar papel especfico no reino iminente a ser
instaurado pelo Filho do Homem, personagem celestial que viria nas
nuvens do cu. Saber se Jesus se considerava efetivamente o Messias
eis um problema muito debatido. Seja como for, a histria da tentao
d a entender a rejeio da ideia de Messias colocada nos termos das
expectativas judaicas populares e a recusa a servir-se de mtodos
polticos e egocntricos. O reino significa o governo por parte de
Deus, iniciado por Ele mesmo, e no inaugurado pela subverso do
governo romano. o reino dos puros de corao que reconhecem sua
pecaminosidade, arre-pendem-se e aceitam a exigncia radical do amor
e as reivindicaes do seu Pai celestial. Depois do seu batismo,
Jesus imediatamente comeou a pregar o reino e a curar os
atribulados na Galileia, granjeando desde logo grande nmero de
seguidores dentre o povo. Reuniu ao redor de si um grupo pequeno de
companheiros mais ntimos, os apstolos, e um outro, maior, de
discpulos menos chegados. No possvel dizer, ao certo, por quanto
tempo se estendeu o seu ministrio. possvel que sua durao tenha sido
de um a trs anos. A oposio a ele comeou a fazer-se sentir to logo
se tornou evidente a natureza espiritual da sua mensagem e clara a
sua hostilidade ao farisasmo da poca. Muitos dos seus primeiros
seguidores se afastaram. Dirigiu-se ento para o norte, na direo de
Tiro e Sidom, e depois para a regio da Cesaria de Filipe, onde os
Evangelhos registram o reconhecimento da sua misso messinica pelos
discpulos. Jesus julgava, porm, que devia pregar em Jerusalm,
qualquer que fosse o risco que isso acarretasse. Munido de coragem
herica, para l se dirigiu, defrontando-se com hostilidade
crescente. E l foi preso e crucificado, provavelmente no ano 29 e
comprovadamente sob o governo de Pncio Pilatos (26 d.C.-36). Seus
discpulos se dispersa-
30. DO INCIO CRISE GNSTICA 37 iam, para logo depois reunir-se
outra vez, com redobrada coragem, na alegre convico de que ele
ainda vivia, tendo ressurgido dentre os mortos. Tal foi, em linhas
muito gerais, a histria da vida daquele que mais profundamente
influenciou a histria do mundo. No ensino de Jesus, o reino de Deus
subentende o reconhecimento da soberania e paternidade de Deus. Ns
somos filhos seus, razo por que devemos am-lo e ao nosso prximo.3
Prximo todo aquele a quem podemos ajudar.4 No o que fazemos agora.
preciso, portanto, que nos arrependamos, contristados pelo nosso
pecado, e nos volvamos para Deus. Essa atitude de contrio e
confiana (arrependimento e f) acompanhada do perdo de Deus. 5 O
padro tico do reino o mais elevado que se possa conceber.
"Portanto, sede vs perfeitos como perfeito o vosso Pai celeste".6
Implica em atitude absolutamente enrgica em relao ao eu,7 e
ilimitada disposio de perdoar em relao aos outros. 8 O perdoar aos
outros condio necessria para que Deus nos perdoe. 9 H dois caminhos
que podemos seguir na vida: um largo e fcil, o outro estreito e
rduo, levando ou a um futuro abenoado, ou destruio.10 A atitude de
Jesus, tal como a de sua poca, era fortemente escatolgica. Sentia
ele que, embora comeasse agora,11 o reino se manifestaria com poder
muito maior no futuro prximo. O fim da presente poca no parecia
muito distante.12 No h dvida de que muitos desses pronunciamentos e
ideias encontram paralelo no pensamento religioso da poca. Seu
efeito global, porm, foi revolucionrio. "Ele os ensinava como quem
tem autoridade, e no como os escribas".13 Jesus podia dizer que o
menor dos seus discpulos era maior do que Joo Batista14 e que o cu
e a terra passariam, mas no as suas palavras.15 Chamava a si os
cansados e oferecia-lhes alvio.16 Aos que o confessassem diante dos
homens prometia que haveria de confess-los diante de seu Pai. 17
Declarava que ningum conhece o Pai seno o Pilho e aquele a quem o
Filho o qiusesse revelar.18 Proclamava-se senhor do sbado19 e o
sbado era o que, no pensamento popular, havia de mais sagrado na
lei dada por Deus ao povo judaico. Afirmava que tinha autoridade
para pro- 3 4 5 6 7 8 10 11 12 13 14 15 16 17 18
31. 38 HISTBIA DA IGREJA CRIST nunciar o perdo de pecados.7 De
outro lado, no era menor a clareza com que sentia sua prpria
humanidade e limitaes. Ele orava e ensinava os discpulos a orar.
Declarava no saber o dia e a hora do fim do presente sculo, coisa
que s o Pai conhecia.8 No lhe competia resolver quem, quando de sua
exaltao, havia de sentar-se sua direita ou sua esquerda.22 Orava
para que se cumprisse, no a sua, mas a vontade do Pai.23 E, na
agonia da cruz, clamou: " Deus meu, por que me desamparaste?" 24
Est nesses pronunciamentos o mistrio da sua pessoa. Sua humanidade
to evidente quanto a sua divindade. A explicao de como isto possvel
excede os limi tes de nossa experincia e, por conseguinte, nossa
capacidade de compreenso. A Igreja, porm, tem-se preocupado sempre
com o problema e, no raro, dado nfase praticamente a uma das
facetas, em detrimento da outra. Em lugar da religio de
exterioridades, de obras meritrias e de cerimoniais, Jesus apregoou
a ideia de que a piedade consiste no amor a Deus e ao prximo a um
Deus que Pai e a um prximo que irmo manifesto principalmente numa
atitude do corao e da vida interior, tendo como fruto os atos
externos. A fora propulsora dessa vida a lealdade ao prprio Jesus
como revelao do Pai, o tipo da humanidade redimida. O que deu
imensa significao ao que Jesus ensinava e era, foi a convico dos
seus discpulos de que a sua morte no era o fim, isto , foi a f na
ressurreio. O como dessa convico constitui um dos problemas
histricos mais enigmticos. O fato de tal convico , no obstante,
irrefutvel. Ao que parece, o primeiro de quem ela se apossou foi
Pedro,25 o qual, ao menos nesse sentido, foi o apstolo que se
constituiu em "pedra fundamental" da Igreja. Ela era comum a todos
os primeiros discpulos. Foi o ponto decisivo na converso de Paulo.
Transmitiu coragem aos discpulos dispersos, reuniu-os de novo e fz
deles testemunhas. De agora em diante, eles tinham um Senhor
ressurreto, exaltado em glria, e, no entanto, sempre interessado
neles. Com um realismo espiritual muito mais profundo do que o.
judasmo jamais imaginara, o Messias da esperana judaica tinha de
fato vivido, morrido e ressurgido novamente, para sua salvao. Tais
convices tornaram-se ainda mais slidas quando das ! "# $
32. DO INCIO CRISE GNSTICA 39 experincias do dia de Pentecoste.
Talvez seja impossvel recuperar a natureza exata da manifestao
pentecostal. certo que o conceito de que essa experincia significa
uma proclamao do Evangelho em muitas lnguas estrangeiras, no
consistente com o que se Babe do "falar em lnguas" em outros
lugares,9 nem tampouco com a crtica de que os discpulos estavam
embriagados,10 relatada pelo autor do livro de Atos, critica essa
que Pedro se sentiu obrigado a refutar. O importante que nessas
manifestaes espirituais se manifestava a prova visvel e audvel do
dom e do poder de Cristo. 11 Para esses primeiros cristos,
tratava-se do triunfante estabelecimento de uma relao com o Senhor
vivo. A confiana nessa relao ondicionou muito do pensamento da
Igreja Apostlica. Se o discpulo cria-se reconhecesse visivelmente
sua lealdade, mediante a f, o arrependimento e o batismo, o Cristo
exaltado, por sua vez, reconhecia o discpulo no menos
manifestamente, concedendo-Jhe o dom do Esprito. O Pentecoste foi,
de fato, um dia do Senhor. Embora no possa ser designado como o dia
do nascimento da Igreja pois que esta comeara com o relacionamento
dos discpulos com Jesus significou um marco na proclamao do
Evangelho, na convico que os discpulos tinham da presena de Cristo
e no aumento do nmero de adeses nova f.
33. 4 AS COMUNIDADES CRISTS NA PALESTINA A comunidade crist de
Jerusalm parece ter crescido rapidamente. Logo passou a incluir
judeus que tinham vivido na disperso, tanto quanto naturais da
Galileia e da Judeia, e mesmo alguns dos sacerdotes hebreus. O nome
de "Igreja" foi adotado pela comunidade crist muito cedo. O vocbulo
significava, provvel mente, na sua origem, pouco mais do que
"reunio", usado para marcar a diferena entre a congregao daqueles
que aceitavam Jesus como Messias e os seus coetneos judeus que no o
aceitavam. O termo carregava, porm, conotaes advindas do seu uso no
Antigo Testamento. Na Septuaginta, tinha sido empregado para
significar o povo inteiro de Israel considerado como congregao
divinamente convocada. Era, assim, ttulo apropriado para o
verdadeiro Israel, o povo efetivo de Deus e como tal os primitivos
cristos de Jerusalm mantinha-se fiel no frequentar o templo e na
obedincia lei judaica. Alm disso, porm, tinha seus prprios ofcios
especiais, com orao, exortao mtua e "o partir do po", diariamente,
em casas particulares.12 O "partir do po" servia a um duplo
objetivo: era vnculo de comunho e meio de sustento para os
necessitados. A espera da pronta volta do Senhor fazia do grupo de
cristos de Jerusalm uma congregao em expectativa. Em seu seio, o
sustento dos menos favorecidos era feito mediante as ofertas dos
mais privilegiados, de sorte que "tinham tudo em comum".13 Mas o
"partir do po" era muito mais do que isso: era uma continuao e um
memorial da ltima Ceia do Senhor com seus discpulos, antes de sua
crucificao . Teve, por conseguinte, desde o princpio, significao
sacramental. A organizao era muito simples. A liderana da congregao
de Jerusalm era ocupada, a princpio, por Pedro e, em menor
34. DO INCIO CRISE GNSTICA 41 frrau, Joo. Com estes, o grupo
apostlico inteiro desfrutava de po- sio de destaque, embora se
possa duvidar de que constitusse uma janta governante plenamente
organizada, tal como afirmava a tradio no tempo em que o livro de
Atos foi escrito. Problemas suscitados pela distribuio de ajuda aos
necessitados resultaram na nomeao de uma comisso de sete.3 Embora
essa comisso seja jeon-siderada a origem do diaconato, e mais
provvel tenha sido comeo de um sistema de presbteros para atender s
necessidades locais das igrejas. Seja como fr, ouvem-se desde logo
referncias aos "presbteros" (ou "ancios") nas igrejas fundadas por
Paulo.4 Pode-se quase afirmar que tal sistema de organizao deve
algo no s ao Zekenim do judasmo conselho que governava cada
comunidade local, interpretando a lei e administrando as obras de
caridade mas tambm, aos "ancios" das comunidades do tipo da de
Qumran. O tipo de esperana messinica de que estava impregnada a
congregao de Jerusalm pareceria, primeira vista, muito mais cru e
muito menos espiritual do que Jesus tinha ensinado.5 Era
devotadamente leal ao Cristo que haveria de voltar prontamente, o
qual, porm, " necessrio que o cu receba at aos tempos da restaurao
de todas as coisas".6 A salvao, dizia-se ento, algo que SC' obtm
mediante o arrependimento, que inclui contrio no s pelos pecados
pessoais mas tambm pelo pecado nacional de rejeio de Jesus como
Messias. A esse arrependimento e reconhecimento de lealdade
seguia-se o batismo em o nome de Cristo, como sinal de purificao e
penhor de uma nova relao, sendo selado com a aprovao divina
mediante a concesso de dons espirituais.7 O fato de os cristos
pregarem Jesus como verdadeiro Messias e o medo da consequente
desconsiderao do ritual histrico levaram os judeus helenistas
farisaicos ao" ataque, de que resultou a morte do primeiro mrtir
cristo, Estvo, apedrejado pela multido. Consequncia imediata foi
uma disperso parcial da congregao de Jerusalm. Foi assim que a
semente do cristianismo comeou a ser semeada pela Judeia, Samaria e
mesmo em regies mais remotas, como Cesaria, Damasco, Antioquia e a
Ilha de Chipre. Dentre os pri- 3 Atos 6. 1-6 4 Atos 14.23 5 Atos
1.6 6 Atos 3.21 7 Atos 2.37
35. 42 HISTRIA DA IGREJA CRIST meiros apstolos, o nico que se
sabe, ao certo, ter desenvolvido con- sidervel atividade missionria
Pedro, embora a tradio atribua a todos eles participao em tal
trabalho. possvel que Joo tenha colaborado nessa atividade, embora
muito pouco se discuta hoje com respeito histria desse apstolo. A
paz relativa desfrutada pela igreja de Jerusalm, logo aps o martrio
de Estvo, foi perturbada por uma perseguio muito mais severa
instigada, em 44 d.C, por Herodes Agripa I, o qual, desde 41 at sua
morte, em 44, foi rei-vassalo do antigo territrio de Herodes, o
Grande. Pedro foi preso, mas escapou da morte. O apstolo Tiago foi
decapitado. O pouco de verdade que se possa provar esteja implcita,
na tradio de que os apstolos deixaram Jerusalm doze anos aps a
crucifixo, vincula-se disperso que se seguiu a essa perseguio. Seja
como fr, parece que, desde ento, Pedro s esteve em Jerusalm em
poucas ocasies. A liderana da Igreja naquele lugar passou a Tiago,
o "irmo do Senhor", que j antes ocupara lugar proeminente.8 Esse
cargo, por ele ocupado at seu martrio, aproximadamente em 63, tem
sido no raro chamado de "episcopado". No h dvida de que
correspondia, em muitos sentidos, ao episcopado monrquico das
igrejas gentlicas. No obstante, no h provas de que o ttulo de
"bispo" tenha sido aplicado a Tiago durante sua vida. Se se levar
em conta as sucesses de lderes religiosos entre os povos semitas,
especialmente a importncia atribuda ao parentesco com o fundador,
ver- se- que o caso em tela assemelha-se mais a um califado
rudimentar. Tal interpretao se torna ainda mais provvel, diante do
fato de que o sucessor de Tiago no lugar de lder da igreja de
Jerusalm foi Simeo, tido na conta de parente de Jesus, embora
escolhido aps a conquista da cidade por Tito, em 70. Sob a liderana
de Tiago, a Igreja em Jerusalm compreendia dois partidos, ambos
acordes em que a antiga lei de Israel ainda se aplicava aos cristos
de raa judaica, mas diferindo no que concernia aplicabilidade da
lei aos cristos conversos do paganismo. Uma das alas afirmava que a
lei se aplicava a todos. A outra, de que Tiago era representante,
dispunha-se a conceder aos cristos gentios liberdade em relao lei,
embora no olhasse com bons olhos a mistura de judeus e gentios mesa
comum, tal como Pedro, ao 8 Glatas 1.19; 2.9Atos 21.18
36. DO INCIO CRISE GNSTICA 43 menos durante certo tempo, estava
inclinado a admitir.9 A catstrofe que pos fim rebelio judaica, no
ano 70, foi fatal, no entanto, para todas as comunidades crists da
Palestina, embora a de Jerusalm, fugindo para Pela, tivesse evitado
os perigos. O cristianismo palestinense ficou reduzido a um frgil
remanescente depois do aniquilamento, ainda maior, infligido por
Adriano s esperanas judaicas, na guerra de 132 a 135. Mesmo antes
da primeira captura da cidade, era em outras localidades do imprio
que se encontravam os focos de influncia crist mais pronunciada.
Mais do que por sua influncia, atravs de liderana direta e
permanente, sobre o desen- volvimento do cristianismo como um todo,
a igreja de Jerusalm e as comunidades palestinenses a ela
associadas foram importantes, por terem sido os mananciais de onde
comeou a fluir o cristianismo e as preservadoras de tantas tradies
a respeito da vida e das palavras de Jesus, que de outra forma se
perderiam. 9Glatas 2.12-16
37. 5 PAULO E O CRISTIANISMO GENTLICO A perseguio que deu causa
ao martrio de Estvo, como dissemos, teve tambm como consequncia o
fato de o cristianismo ter sido levado para alm das fronteiras da
Palestina. Missionrios cujos nomes ficaram esquecidos pregavam
Cristo aos seus irmos de raa judaica. Em Antioquia um fato novo
nessa pregao viria a acontecer. Capital da Sria, Antioquia era
cidade de grande importncia, notavelmente cosmopolita, verdadeira
encruzilhada em que se encontravam gregos, srios e judeus. Ali a
nova f foi pregada aos gregos. E o resultado de tal pregao
consistiu no fato de o Evangelho comear a espalhar-se entre homens
de cepa gentlica. Comearam a ser apelidados de "cristos" pelo
populacho. S por volta do sculo II que os prprios seguidores de
Jesus comearam a aplicar essa designao a si mesmos, embora ela j
antes se tivesse tornado popular entre os pagos. Antioquia no ficou
sendo o ponto final do esforo de expanso dos cristos. No ano 51 ou
52, na prpria cidade de Roma, a ateno do governo, dirigido por
Cludio, foi suscitada por alguns tumultos havidos entre os judeus-
da cidade, como consequncia da pregao feita por missionrios cristos
desconhecidos. Neste primeiro perodo, porm, Antioquia foi o centro
da expanso. A converso de homens de antecedentes pagos viria
levantar inevitavelmente o problema da relao entre esses discpulos
e a lei judaica. Se se impusesse aos gentios a observncia da lei, o
cristianismo no passaria de seita judaica. Isentassem- se os
gentios dela, o cristianismo poderia tornar-se religio universal,
mas a expensas, em muito, da simpatia judaica. Mais do que a
qualquer outro, cabe ao apstolo Paulo o mrito de ter feito com que
esse dilema fosse resolvido em favor da doutrina mais "liberal".
Paulo, cujo nome hebraico Saulo lembra o heri da tribo de Benjamim,
de que era membro, nasceu na cidade de Tarso, na Cilicia, de
descendncia farisaica. Seu pai, porm, tinha cidad-
38. DO INCIO CRISE GNSTICA 45 nia romana. Tarso era cidade
eminente do ponto de vista cultural e, ao tempo do nascimento do
apstolo, era um centro de ensino estico. Educado num severo lar
judaico, no h razo para crer que Paulo tivesse alguma vez recebido
educao helnica formal. Nunca chegou a ser um helenizante, do tipo
de Flon de Alexandria. Numa cidade como Tarso, no entanto, um jovem
inteligente jamais poderia deixar de absorver muitas ideias
helnicas e familiarizar-se, ao menos at certo ponto, com a
atmosfera poltica e religiosa do mundo que se espraiava alm dos
limites do seu lar de judeu ortodoxo. Foi, contudo, em contacto com
a tradio rabnica que ele se educou e, em idade agora desconhecida,
como futuro escriba, foi estudar sob a orientao do famoso Gamaliel,
o velho, em Jerusalm. -nos impossvel averiguar at que ponto So
Paulo chegou a conhecer o ministrio de Jesus por meios outros que
no os de relatos de segunda mo. Era extremado na sua devoo ao
conceito farisaico de uma nao santificada mediante a observncia
minuciosa da lei judaica. Julgada por tal padro, sua conduta era
"sem dolo". Homem de profunda percepo espiritual, porm, mesmo
enquanto fariseu veio a sentir profunda insatisfao interior com as
conquistas do seu prprio carter. A lei no era bastante para dar um
sentido de retido interior efetiva. Era esse o seu estado de
esprito ao entrar em contacto com o cristianismo. Se Jesus no era
verdadeiro .Messias, era justo que tivesse sofrido, era justo que
seus discpulos fossem perseguidos. Pudesse ele convencer-se de que
Jesus era o escolhido de Deus, este passaria a ser para Paulo
objeto de lealdade absoluta. Por interveno divina, estaria ento
ab-rogada a lei r fora por opor-se interpretao farisaica dessa lei
(a nica interpretao que Paulo aceitava), que Jesus morrera. As
datas referentes vida de Paulo no passam de conjeturas. f; possvel
que a grande transformao de sua vida tenha ocorrido por volta do
ano 35. Viajando para Damasco, em misso de perseguio, Paulo teve
uma viso em que contemplou a Jesus exaltado, o qual o convocava
para o seu servio. No iremos alm de suposies se tentarmos decifrar
qual tenha sido a natureza dessa experincia. Mas, para Paulo, no
havia dvidas quanto sua realidade e ao seu poder transformador. No
s se convenceu, desde ento, de que Jesus era tudo o que dele dizia
o cristianismo, mas, tambm, passou a sentir tal devoo pessoal por
seu Mestre, que implicava em nada menos do que uma unio espiritual.
Dizia ele: "J no sou eu
39. 46 HISTRIA DA IGREJA CRIST quem vive, mas Cristo vive em
mim".1 Fora-se o antigo legalismo, e com ele o conceito do valor da
lei. Para Paulo, de ora em diante, ?. nova vida consistia em servio
consagrado ao Senhor exaltado, que era tambm o Cristo presente no
seu ntimo. Sentia-se preso de grande intimidade com o Cristo
ressurreto. Deus, o homem, o pecado e o mundo eram agora banhados
em nova luz. Seu maior desejo era fazer a vontade de Cristo. Era
seu tudo o que Cristo tinha conquistado. "Se algum est em Cristo,
nova criatura: as coisas antigas j passaram; eis que se fizeram
novas".2 Numa natureza ardente como a de Paulo, tal transformao ma-
nifestava-se imediatamente em termos de ao. Pouco se sabe do que
sucedeu nos anos seguintes de sua vida. Foi primeiro para .1 Arbia
na nomenclatura da poca, uma regio no necessariamente muito ao sul
de Damasco. Pregou naquela cidade. Trs anos aps sua converso,
visitou rapidamente Jerusalm, esteve com Pedro e com Tiago, o "irmo
do Senhor". Durante anos trabalhou na Sria e na Cilicia,
enfrentando perigos, sofrimentos e fraqueza fsica.3 No sabemos
muito a respeito das circunstncias em que se desenvolveu seu
ministrio. No poderia ter deixado de pregar aos gentios. E, com a
crescente importncia da congregao mista de Antioquia, era natural
que fosse procurado por Barnab, como algum cuja opinio poderia ser
til para a resoluo do problema pendente. Barnab, que tinha sido
enviado de Jerusalm, trouxe-o de Tarso para Antioquia,
provavelmente no ano 46 ou 47. Antioquia havia- se tornado ponto
focal importante da atividade crist. Em obedincia ordem divina
segundo cria a congregao antioquiana Paulo e Barnab da partiram em
viagem missionria que os levou a Chipre, Perga, Antioquia da
Pisdia, Icnio, Listra e Derbe. Foi essa a assim chamada primeira
viagem missionria, descrita nos captulos 13 e 14 do livro de Atos.
Ao que parece, esse foi o esforo evan-gelstico mais frutfero na
histria da Igreja. Como resultado, esta-beleceu-se um grupo de
congregaes no Sul da sia Menor, s quais Paulo mais tarde se
dirigiria pelo nome de igrejas da Galcia, Muitos estudiosos, porm,
colocam as igrejas da Galcia em regies mais ao norte e ao centro da
sia Menor, que, segundo os documentos, no foram visitadas por
Paulo. O crescimento da Igreja em Antioquia e o estabelecimento de
congregaes mistas em Chipre e na Galcia fez com que assumisse 1
Glatas 2.20 2 2 Corntios 5.17 3 alguns incidentes so numerados em 2
Co. 11 e 12
40. DO INCIO CRISE GNSTICA 47 maiores dimenses o problema da
relao entre os gentios e a lei. A congregao de Antioquia era
agitada por visitantes provindos de Jerusalm, que afirmavam: "Se no
vos circuncidardes segundo o costume de Moiss, no podeis ser
salvos".4 Paulo resolveu ser-vir-se de um caso concreto para chegar
a uma concluso. Levando consigo a Tito, um converso gentio no
circuncidado, como exemplo concreto de cristianismo no-legalista,
foi com Barnab a Jerusalm c- entrevistou-se pessoalmente com os
lderes da igreja. O resultado dessa entrevista, de que participaram
Tiago, Pedro e Joo, foi o reconhecimento cordial da genuinidade do
trabalho de Paulo entre os gentios, e um acordo no sentido de
dividir o mbito dos trabalhos: os lderes de Jerusalm continuariam a
misso entre os judeus, mantendo evidentemente a lei, enquanto Paulo
e Barnab levariam a mensagem aos gentios, dispensando a insistncia
na lei.5 Era uma deciso honrosa para ambas as partes, mas
inexequvel. Quais seriam as relaes entre judeus e gentios numa
igreja mista? Poderiam judeus e gentios comer juntos? Esta segunda
pergunta logo se levantou por ocasio de uma visita de Pedro a
Antioquia,6 e levou a uma discusso pblica na congregao de Jerusalm,
provavelmente no ano 49 o assim chamado Conclio de Jerusalm e
formao de certas regras referentes a refeies em conjunto.7 Para
Paulo, parecia inadmissvel tudo o que no equivalesse mais plena
igualdade entre judeu e gentio. Para Pedro e Barnab, pareciam de
primordial importncia os termos das refeies em comum. Paulo ops-se
a ambos, e teve de enfrentar sozinho a batalha, j que, segundo
parece, a igreja de Antioquia ps-se ao lado de Jerusalm no problema
das relaes mesa. Seguiram-se ento os poucos anos de maior atividade
missionria de Paulo, o perodo em que escreveu todas as suas cartas.
Levando consigo a Silas, proveniente de Jerusalm, mas cidado
romano, Paulo *eparou-se de Barnab por causa da discordncia com
respeito ao problema da comida e conduta do primo de Barnab,
Marcos.8 Durante uma viagem pela Galcia, juntou-se a ele Timteo.
Impedidos de trabalhar na regio ocidental da sia Menor, Paulo e
seus companheiros entraram na Macednia, fundando igrejas em Filipos
c Tessalnica. Foram recebidos com frieza em Atenas e passaram 4
Atos 15.1 5 Glatas 2.1-10 6 Glatas 2.11-16 7 Atos 15.6-29 8 Atos
15. 36-40
41. 48 HISTRIA DA IGREJA CRIST dezoito meses em Corinto, onde
obtiveram grande sucesso (provavelmente entre 51 e