Intuitio ISSN 1983-4012
Porto Alegre V.2 - No.2 Outubro
2009 pp. 152-159
SUBMISSO, COAO, CIDADANIA:
HEGEL E HANNAH ARENDT
SUBMISSION, COERCION, CITIZENSHIP: HEGEL AND HANNAH ARENDT.
Greice Ane Barbieri*
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Em sua obra As Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt diz que uma das formas de
domnio utilizadas pelos regimes totalitrios consiste em igualar os seres humanos de maneira
* Dotoranda em Filosofia-UFRGS/CNPq. Contato: [email protected]
RESUMO: Buscando um aggiornamento da filosofia hegeliana, nos perguntamos: o que
poderia, num primeiro momento, ser considerado
um ponto convergente entre as filosofias polticas
de Hannah Arendt e Hegel? O objetivo principal
uma demonstrao da no possibilidade de um
regime totalitrio na filosofia hegeliana, e, ao
mesmo tempo, buscar uma aproximao com as
categorias polticas de Hannah Arendt. Mesmo
levando em considerao o fato de que Hannah Arendt nunca tenha se considerado uma filsofa, e
que, em muitos momentos, afirme um
distanciamento em relao filosofia hegeliana,
podemos perceber, entretanto, alguns pontos
comuns quando se trata da filosofia poltica desta
autora e alguns pontos levantados por Hegel, no
sculo XIX. Com este esprito, o trabalho visa,
ento, quase como um ensaio, ressaltar pelo menos
duas categorias menores, na filosofia poltica de
ambos, que podem ser aproximadas. Trata-se dos
conceitos de coao e submisso que parecem, em ambos os autores, demarcar uma limitao da
vontade individual. Tais categorias tm sua
importncia sedimentada no fato de que, em
ambos os autores, guardam uma diferena que ir
influenciar as disposies de nimo dos indivduos
resistncia contra regimes do tipo totalitrio.
PALAVRAS-CHAVE: Coao. Submisso.
Vontade.
ABSTRACT: In search for an aggiornamento of Hegelian philosophy, we wonder what could
be considered, in a first moment, a converging
point between the political philosophy by
Hannah Arendt and Hegels? The main target in this matter is to demonstrate the impossibility of
a totalitarian regime in Hegelian philosophy
and, meanwhile, search for an approach to
Hannah Arendts political categories. Even taking account of the fact that Hannah Arendt
never considered herself a philosopher, and
quite often asserts an estrangement to Hegelian philosophy, it is remarkable, however, to realize
the perception of some points in common
related to that authors political philosophy and questions raised by Hegel on XIX century. In
such account, nearly to an essay, this work aims
to stand out at least two minor categories in the
political philosophy of both thinkers which
could be connected. It concerns about the
concepts of coercion and submission that seem
to establish a limitation of individual will in
both authors. Also relative to both authors, such
categories are importantly grounded in the fact that they keep a difference that will influence
the disposition of spirit upon individuals to the
resistance against totalitarian regimes of any
kind.
KEY WORDS: Coercion. Submission. Will.
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que eles percam toda e qualquer forma de subjetividade. Ou seja, os regimes totalitrios visam
ao embrutecimento do indivduo de modo que ele perca a sua conscincia como ser humano,
chegando a um estado de animalidade e, por fim, alienao de si, onde ele ser incapaz de se
pr como um sujeito.
O domnio total, que procura sistematizar a infinita pluralidade e diferenciao dos seres humanos como se toda a humanidade fosse apenas um indivduo, s
possvel quando toda e qualquer pessoa seja reduzida mesma identidade de
reaes. O problema fabricar algo que no existe, isto , um tipo de espcie
humana que se assemelhe a outras espcies animais, e cuja nica liberdade consista em preservar a espcie. O domnio totalitrio procura atingir esse objetivo atravs da doutrinao ideolgica das formaes de elite e do terror
absoluto nos campos1.
Sendo assim, os regimes totalitrios trabalham no sentido de perverter toda e qualquer
racionalidade humana, atravs de um processo de animalizao. Esse compreende desde a
adestrao dos seres humanos atravs do aparato ideolgico que contamina toda a sociedade,
at os campos de concentrao, pois o objetivo do totalitarismo , justamente, o controle total
e no meramente poltico2. O terror impingido tal, que as pessoas ficam a merc de medos
que antes, mesmo num Estado autoritrio, no havia razo de ser3.
O aparato ideolgico visa, como se sabe, o estabelecimento de novos costumes e
novas maneiras dos cidados se relacionarem com as idias do senso comum e com as
instituies. Nesse sentido, o aparato ideolgico atuar, primeiramente, sobre o que, em
Hegel, denominamos a subjetividade do sujeito; ou em termos mais modernos, o aparato
ideolgico tem o objetivo de atingir a economia interna deste mesmo sujeito.
1 ARENDT, H. Origens do totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Traduo de Roberto
Raposo. So Paulo: Letras, 1989. p. 488. Agora, apenas As Origens do totalitarismo. 2 Contrariamente tirania vulgar, que concentra o essencial de seus esforos na esfera poltica, a dominao totalitria tenta igualmente penetrar e controlar a esfera privada e a social. VET, M. Coerncia e terror: introduo
filosofia poltica de Hannah Arendt. Filosofia Poltica 5. (1989), 68-100. p. 80. 3 Numa sociedade totalitria o indivduo s pode fazer o que o Estado lhe permitir ou o que queira que ele faa. Mais ainda, pode ele ser punido por atos que no esto definidos como ilegais por qualquer estatuto ou decreto, mas
que um policial considere punvel. E mais: O governo autoritrio procura, preliminarmente, controlar as atividades polticas do homem em contraste com o governo totalitrio, que procura dominar todos os aspectos da
vida, poltica como apoltica. [...] Por conseguinte, o autoritarismo deixa ao cidado uma larga esfera de vida
privada, na qual ele pode ainda conservar alguma dignidade e respeito prprio. E, para complementar: [No] sistema autoritrio [...] o cidado sabe como se conduzir e se toma riscos, conhece antecipadamente as exatas
conseqncias do seu gesto. Em contraste, as penalidades drsticas e perseguio no Estado totalitrio no vo
geralmente ao encontro dos procedimentos judicirios, mas se fazem pela polcia secreta ou outros agentes
administrativos, a seu talante. EBENSTEIN, W. Totalitarismo: Novas Perspectivas. Traduo de Walter Pinto. Rio de Janeiro: Bloch, 1967. Respectivamente, p. 21, 29 e 30.
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O aparato ideolgico imiscui-se de tal forma na sociedade que comea a atuar sobre
toda a capacidade do sujeito de apreender o mundo e elaborar juzos, mximas acerca da
realidade. Ento, a sua ao, enquanto sujeito, deixa de ser livre para comear a se submeter
aos modelos estabelecidos, no pelas conscincias subjetivas nos seus inter-relacionamentos,
mas por meio de uma deciso externa e imposta. Desta maneira, o totalitarismo busca no
somente cercear a liberdade individual, mas tambm eliminar toda e qualquer ao individual
que possa vir a questionar ou atingir o regime estabelecido. A ao, como forma do sujeito de
colocar-se no mundo deixa de ser possvel em um meio totalitrio, porque o sujeito no tem
um mundo para pressupor; os seus objetos, apreendidos na realidade, no so capazes de lhe
transmitirem uma realidade, pois so apenas simulacros da realidade. A criatividade humana,
enquanto relao com o mundo e expresso dessa apreenso , assim, retirada do mundo por
meio de, digamos, uma espcie de fraude cognitiva perpetrada pelo prprio Estado.
Por outro lado, os campos de concentrao buscam tornar esse controle estatal
integral: sua funo a de levar a cabo o processo de desubjetivao do sujeito, por meio de
um tratamento que no s cobe a criatividade e a reflexo do sujeito, mas que tambm visa a
sua desumanizao. Isso porque, em um campo de concentrao, os homens esto
incapacitados de mostrarem quem so: tudo que podem serem diferentes por um nmero
mas sem distino, como se fossem apenas objetos fsicos, passando a serem mais um entre
tantos, transformando-se, com os outros, numa unidade indivisa que apenas expressa um
tomo4. A barbrie do campo perverter o homem, pois, s o homem capaz de exprimir
sua diferena e distinguir-se; s ele capaz de comunicar a si mesmo e no apenas alguma
coisa como sede, fome, afeto, hostilidade ou medo5. O processo de animalizao
justamente o de fazer com que a nica preocupao do indivduo seja a com suas
necessidades, e, por conseguinte, a sua nica expresso ser a de um ser por algo de outro.
Ento, o homem deixa de ser a srie de suas aes6: toda a sua expresso, como ser
absolutamente nico, deixa de ser possvel, pois a sua expresso exterior ser reflexo daquilo
que lhe falta e no daquilo que ele .
4 Ao suprimir o espao pblico inter-humano em que se fala e se age, o governo totalitrio abole as condies da diferena individual prpria aos homens. Colados uns aos outros e, ao mesmo tempo, incapazes de instaurar
relaes autenticas porque estas se baseiam na espontaneidade, no ser-si, os humanos tornam-se tomos indistintos,
mas, ao mesmo tempo, isolados. Esvaziados de qualquer contedo pessoal, de qualquer ser-si irredutvel, os tomos
so subsumidos num processo gigantesco. VET, M. Coerncia e terror: introduo filosofia poltica de Hannah Arendt. Filosofia Poltica 5. (1989), 68-100. p. 80. 5 ARENDT, H. A condio humana. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1983. p. 189. 6 HEGEL, G. W. F. Philosophie du Droit. Paris: PUF, 1998. 124, p. 201.
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Todavia, mesmo neste contexto, a pessoa ainda pode manter conscincia de que um
ser individual isso mais difcil de ser destrudo porm, exige uma vontade que se feche
sobre si e que agente firmemente uma situao na qual ela deixou de ser considerada como
pessoa pelos outros, para ser tratada como um nmero. Aqui se pode reconhecer o mesmo
espao que Hegel reserva pessoa, no Direito Abstrato, que vtima de violncia7.
Em Hegel, a violncia pode ser dividida em duas camadas: uma que fere o indivduo,
na sua imediataneidade, e, a outra, na sua mediataneidade. Ou seja, no Direito Abstrato,
violncia aquilo que fere o sujeito enquanto ser vivo, seu organismo, e, tambm aquilo que
fere o indivduo enquanto pessoa, isto , aquilo que o fere em sua liberdade, em seu aspecto
infinito; esses aspectos todos, Hegel considera violncia. Em outros termos, o crime no
somente a transgresso da lei, mas uma violncia feita pessoa, como violao ou negao do
seu direito8. O indivduo pode ser subjugado atravs do seu aspecto fsico e qualquer aspecto
exterior por outro ser humano; porm, a vontade livre em si e por si no pode ser coagida,
salvo se essa vontade no se retirar do ser-a objeto da subjugao ou de sua representao.
Ou seja, se me deixo subjugar, anuindo com a exigncia de um criminoso ou, ento,
aceitando a situao da melhor maneira possvel, isso no quer dizer que fui coagida, pois
posso apenas estar agindo de acordo com uma situao, que, no momento, no pode me
oferecer sada melhor. Nesse sentido, minha vontade no foi coagida, pois ela (a minha
vontade livre) somente se submeteu sendo guardada internamente, esperando o momento
propcio para que volte a ser exteriorizada. Assim, dizemos que, de certa maneira, abdiquei da
exterioridade da minha vontade, sem, porm, deixar que meu esprito se acomode e aceite a
situao de violncia como se fosse natural. Entretanto, a situao muda de figura se, alm de
me submeter, eu deixo que o outro interfira na minha vontade livre, que interna. Ento
aceitei sua coao e, desse modo, no somente fui submetida (externamente) como, inclusive,
fui coagida (internamente). Em Hegel, isso quer dizer que o criminoso, na verdade, no tem
como coagir efetivamente meu ser, a no ser que, enquanto vtima, eu permita isso. Assim,
nesse momento, se pode perceber o eco do que Hegel afirmara, no Direito abstrato, sobre a
coao e a submisso da pessoa. A submisso (ser subjugado; bezwungen) incide sobre o ser-a
da personalidade, enquanto que a coao (ser coagido; gezwungen) recair sobre a interioridade
7 No filme Olga, h uma cena emblemtica a respeito dessa resistncia humana frente a sua animalizao. A protagonista, dentro de um dos galpes destinados ao abrigo dos prisioneiros, comea a varrer o cho. Indagada
sobre a eficcia de tal ao, ela responde que no porque tratada como animal que ela ir agir como um.
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da pessoa claro, se ela o permitir. Por isso, Hegel afirma que somente pode ser coagido a
algo aquele que quer se deixar coagir9.
Hegel est aqui tentando chamar a ateno para a interioridade do ser humano, que nas
circunstncias mais adversas, ainda pode ser independente. A infinitude da vontade, por sua
caracterstica conceitual, sempre ser livre e permitir ao seu sujeito tambm a liberdade,
mesmo sob presso de outro, a no ser que aquele que pressionado, alm de abandonar o seu
lado exterior permita-se deixar que o criminoso invada a sua interioridade.
Um regime totalitrio conhece este lado interior do ser humano e sabe o risco que
corre caso no domine tambm o indivduo de forma interna: o seu objetivo , justamente, o
de aniquilar a interioridade10
. Assim, o ato de violncia extrema praticado pelos regimes
totalitrios tem por desgnio extinguir qualquer vontade que se apresente como razo
desejante. O seu interesse no , essencialmente, impor algo como no ato criminoso ,
mas, to somente, destruir toda e qualquer estrutura humana, para assim, adquirir o controle
total. Afinal, um regime totalitrio no pode, salvo excees, ser comparado a um simples ato
criminoso que visa uma propriedade material da vtima, no esta a meta que est em
questo. Os regimes totalitrios escapam a qualquer dinmica de racionalidade, substituindo-a
pela lgica do absurdo, do tudo possvel11. Por isso, podemos considerar que o regime
totalitrio se apresenta de forma muito mais radical do que comumente compreendemos como
um crime ou um ato criminoso.
Assim, o Totalitarismo visa, tambm, a destruio de qualquer regime de direito, isto
porque a lei positiva desempenha o duplo papel de proteger e, ao mesmo tempo, liberar os
homens12. Sem a proteo das leis, o indivduo perde o abrigo e o reconhecimento que a sua
personalidade jurdica lhe davam, pois ele no sabe mais quais so as regras sob as quais a sua
8 PERTILLE, J. P. A pena de morte na Filosofia do Direito de Hegel. Revista Filosofia Poltica: a pena de morte. Nova Srie V (2000), 32-56. p. 49. 9 HEGEL. O Direito Abstrato. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2003. 91, p. 109. 10 No entanto, para Hegel, a novidade dos Estados modernos consistiria, justamente, nesse reconhecimento do
indivduo: O princpio dos Estados modernos tem este vigor e esta profundidade prodigiosos de deixar o princpio da subjetividade plenificar-se at o extremo autnomo da particularidade pessoal e, ao mesmo tempo, de reconduzi-lo unidade substancial, e, assim, de manter essa unidade substancial nesse princpio da subjetividade. HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. III Parte: A Eticidade, 3 seo: O Estado. Traduo de
Marcos Lutz Mller. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1998. 260, p. 35-36. A subjetividade do indivduo tratada
por Hegel na II Parte da Filosofia do Direito: A Moralidade, onde Hegel analisa e expe as estruturas mnimas
para a formao da subjetividade do sujeito, o qual ser capaz, ento, de analisar e julgar as suas aes e a realidade
onde as aes se desenvolvem. 11 E, continua a autora: No havia mais regras ou leis, apenas obedincia ou excluso. No existiam mais direitos, apenas terror. SCHIO, S. Hannah Arendt: histria e liberdade. Caxias do Sul, RS: Educs, 2006. p. 23.
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ao deve e pode se dar. Mesmo leis injustas e cruis, quando existentes, possibilitam
pessoa a sua adequao a elas, pois definem os limites de suas aes. Num estado totalitrio, a
inexistncia desse abrigo jurdico por meio da impossibilidade de se saber o que a lei ou
quais so as leis visa cercear qualquer tipo de ao do homem, entregando-o a uma indeciso
sobre o espao e os limites de seu agir.
Mesmo com esta diferena de calibragem, entre as situaes nas quais ambos os
autores se referem a uma interioridade das pessoas, percebe-se bem que o visado por ambos
o aspecto intransfervel e totalmente individual do ser humano, que consiste em sua vontade e
em seus pensamentos enquanto que no exteriorizados e no perceptveis aos outros seres
humanos. Toda a questo se concentra no fato de que a dor que eu sinto no pode ser sentida
por mais ningum; ou seja, a nossa esfera interior, a nossa subjetividade pode permanecer
intacta, ou, ao menos, isolada do meio exterior e daquilo ao qual a pessoa est submetida. De
certo modo, uma maneira de alienao consciente que tem como objetivo proteger a
subjetividade individual, para que a pessoa possa se restabelecer em momento oportuno. Nas
palavras da prpria autora, morta a pessoa moral, a nica coisa que ainda impede que os
homens se transformem em mortos-vivos a diferena individual, a identidade nica do
indivduo13. Ainda que o contexto referido por Arendt seja uma realidade cruel e rida, existe
a possibilidade de haver um lugar onde nem mesmo o terror capaz de penetrar se o
indivduo for dotado de uma vontade rija e de uma natureza estica.
Sob certa forma estril, essa individualidade pode ser conservada por um estoicismo persistente, e sabemos que muitos homens em regimes totalitrios
se refugiaram, e ainda se refugiam diariamente, nesse absoluto isolamento de
uma personalidade sem direitos e sem conscincia14.
Reservado, num isolamento no qual o indivduo torna-se um espcime do animal
humano sem direito a direitos, e, mais ainda, numa situao em que deixa de ter conscincia
para ser apenas natural, o indivduo submetido ao campo de concentrao se retira de um
mundo que no mais o seu. Essa retirada visa preservar um pequeno lugar, onde, a
subjetividade individual marca desse indivduo nico possa renascer pelas suas palavras e
12 VET, M. Coerncia e terror: introduo filosofia poltica de Hannah Arendt. Filosofia Poltica 5. (1989), 68-
100. p. 81. 13 ARENDT, H. As origens do totalitarismo. So Paulo: Letras, 1989. p. 504. 14 Idem. Ibidem.
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pelos seus atos, num mundo onde ele poder expor sua espontaneidade, sua individualidade15
.
A subjetividade do sujeito que, em Hegel, deveria integrar-se ao Estado de forma consciente,
por meio do cidado, aqui perde todo e qualquer sentido. Desse modo, segundo a filosofia
poltica de Hegel, se arrunam dois aspectos vitais ao Estado: o costume, onde este teria a sua
existncia imediata e a autoconscincia do singular, no saber e na atividade do mesmo,
onde o Estado teria a sua existncia mediada16. O Totalitarismo ao prescindir do cidado o
faz porque este considerado demasiado autnomo, demasiado humano para que possa se
adequar s estruturas antropofgicas que so necessrias a realizao do Totalitarismo.
Ao excluir o cidado do seu papel enquanto tal, os regimes totalitrios encontram uma
forma de tornar o homem menos homem; a esses indivduos lhes falta a equalizao de
diferenas que advm do fato de serem cidados de alguma comunidade17. Ou seja, na
medida em que o indivduo deixa de exercer os seus direitos e deveres , na medida em que
ele deixa de ser parte de um todo organizado visando um fim, a saber, o Bem pblico, ele
comea a deixar de realizar aquela atividade eminentemente humana, decorrente de sua
natural racionalidade: o ser humano deixa de ser um animal poltico. O processo que ocorre
dentro de uma ideologia totalitria o de descolamento entre o ser humano e o animal
humano de maneira que somente reste o animal humano, cuja capacidade de pr-se como
racional fica impedida. A manipulao do ser humano, para que deixe de poder agir o
mtodo empregado para que surja o animal humano. Este caracterizado por sua convivncia
de forma animalesca, visando mera sobrevivncia enquanto unidade fisiolgica. Ento, esse
ser deixar de ter a possibilidade de atuar enquanto ser poltico, visando realizao daqueles
negcios humanos que excluem tudo o que seja apenas til ou necessrio18
.
Referncias
ARENDT, H. Origens do totalitarismo: Anti-semitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Traduo de Roberto
Raposo. So Paulo: Letras, 1989.
_____. A condio humana. Traduo de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1983.
EBENSTEIN, W. Totalitarismo: Novas Perspectivas. Traduo de Walter Pinto. Rio de Janeiro: Bloch, 1967.
HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. 1 Parte: O Direito Abstrato. Traduo de
Marcos Lutz Mller. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2003.
15 Cf. ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. So Paulo: Letras, 1989. p. 506-507. 16 HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. III Parte: A Eticidade, 3 seo: O Estado.
Traduo de Marcos Lutz Mller. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1998. 257, p. 25. 17 ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. So Paulo: Letras, 1989. p. 335. 18 Cf. ARENDT, Hannah. A condio humana. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1983. p. 34.
Greice Ane Barbieri
Submisso, coao, cidadania: Hegel e Hannah Arendt
8
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Porto Alegre V.2 - No.2 Outubro
2009 pp. 152-159
_____. Principes de la Philosophie du Droit. Texte intgral, accompagn dextraits des cours de Hegel, prsnte, rvis, traduit et annot par Jean-Franois Kervgan. Paris: PUF, 1998.
_____. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. III Parte: A Eticidade, 3 seo: O Estado. Traduo de
Marcos Lutz Mller. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1998.
PERTILLE, J. P. A pena de morte na Filosofia do Direito de Hegel. Revista Filosofia Poltica: a pena de morte. Nova Srie V (2000), 32-56.
SCHIO, S. Hannah Arendt: histria e liberdade. Caxias do Sul, RS: Educs, 2006.
VET, M. Coerncia e terror: introduo filosofia poltica de Hannah Arendt. Filosofia Poltica 5. (1989), 68-100.
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