Douglas Turolli
Geena
O Vale de Hinom
3ª Edição
2011 – Editora Perse
www.geenaolivro.com
Dedico este livro a todos os meus velhos e novos
amigos. Entre eles:
Paul Law (Autor de ‘Ester’)
Tanize Monteiro (Autora de ‘Niki!’)
Lucas Capitelli (Autor de ‘O Terceiro Testamento’)
Victor Tedeschi (Autor de ‘Scaludafex Vlad
Merion’)
Vinicius Littig (Autor de ‘O Chorar dos Anjos’)
Jhan Lima (Autor de ‘Guerra Santa’)
Willian Vasconcelos (Autor de ‘Deadboy -
Aquellare’)
Jéssica Blend (Autora de ‘Red Orchid’)
Emilia Kesheh (Autora de ‘A Última Aliança’)
Leandro de Paula (Autor de ‘Metamorfezes’)
Mirachy Nasi (Autora de ‘Sorania’)
Ninna Wang (Autora de ‘Yume No Sekai’)
Messias Moraes
Marcos Aurélio
Bruno de Castro
Paulo Victor
Bruna Souza
De alguma forma vocês me fizeram e ainda me
fazem um escritor em constante evolução.
1
Capítulo I
O Reino de Seol
―Gan fecha os olhos e abraça Gira com toda força
que pode...‖
2
Século XXII. Cem anos após a III Guerra Mundial,
2119. Reino de Seol, Vale de Hinom.
s soldados guardiões da entrada
anunciam um informante se
apresentando. Ele se posta frente à figura do Rei e
diz:
— Grande Seol, já coletamos todos os dados
da colônia inimiga. Precisamos agora traçar o
plano de contra—ataque, escolher os guerreiros e
pôr tudo em prática.
Diz o soldado de baixa estatura, de fala
firme, em posição de sentido frente a seu Rei.
— Entendi. Escolha você mesmo os
guerreiros, quero apenas que Gan esteja junto
como a líder, ela tem potencial, conseguirá
facilmente nos vingar. A propósito, em que dia
estamos servo?
Pergunta o Rei, mudando de assunto.
— Ho... Hoje é dia dez de março, porque
senhor?
O Rei o observa e completa a pergunta:
O
3
— De que ano?
O soldado o olha com a certeza que ele sabe
a resposta, pestaneja um pouco e responde:
— 2119 Senhor, certo? Por que pergunta
mestre?
Retruca o soldado que trajava uma roupa
preta com um cinto vermelho em sua cintura.
— Não é nada. Vá fazer seu trabalho, agora.
Diz o rei.
— Sim... Senhor, com sua licença.
O soldado vira-se devagar em sinal de
respeito e rompe sua marcha em direção a saída
daquela grande sala, onde o Rei ficara sentado
recebendo informações e dando ordens.
Era uma sala extensa, dentro de uma
grande torre que ficava ao Norte, no ponto mais
alto daquele lugar, expondo sua superioridade ao
seu suposto reino.
Dentro desta sala havia vários soldados
prontos para receberem ordens, além de uma
grande esfera no centro, uma abertura revestida
4
de vidro, na reta do local de repouso do Rei, onde
ele podia ver toda a extensão de seu reino sem
sair do lugar.
De tempos em tempos, ali em sua torre, o
Rei traçava planos de ataque a colônias inimigas
para expandir suas terras e assim tornar-se mais
poderoso e onipotente.
Nunca até o momento perdera uma batalha,
e nunca até então, em suas investidas, colocara
uma guerreira mulher como líder para cumprir a
árdua missão. A guerreira Gan era sua aposta
para mudar esse panorama.
Gan, então com dezenove anos, astuta e
corajosa, havia se destacado exatamente por
descumprir ordens do Rei e atacar colônias sem o
consentimento do mesmo, mas sempre tendo
êxito em suas investidas.
Era vista com maus olhos por muitos que a
queriam expulsa da elite. Mas o Rei, mesmo por
vezes contrariado, gostava da atitude da jovem
guerreira.
Muitos a invejavam e não sabiam que esse
era o motivo dela não prestar serviços de guarda
como todos e poder ir e vir em todos os pontos do
reino, algo não muito comum para a maioria, mas
que por seus méritos, ela tão jovem, já
conquistara.
5
Na visão do Rei, até o momento, a figura
feminina mais predominante de seu reino era sua
própria esposa, a Rainha Tiamat que controlava o
lado sul do reino.
A parte sul era mantida pelos operários que
trabalhavam na sustentação da colônia com
plantio e serviços gerais a qual lhe cabiam os
afazeres dos homens jovens ou mais fracos, das
crianças e mulheres.
Por ter sido uma grande guerreira no
passado, o Rei a escolheu para casar-se com ele e
lhe deu a atribuição de guardiã do lado Sul.
A escolha deste lado tão distante do Rei se
deu pelo fato do solo ser fértil para o plantio dos
mantimentos e ali concentrarem-se quase todas
as minas de água que abastecia todo o reino.
Já a parte realmente operacional, dos
soldados guerreiros, que trabalhavam para a
proteção e ou expansão do reino, ficara a cargo do
Rei, do lado Norte, onde se via a grande torre em
destaque no horizonte. Lá eram definidos os
planos de defesa, os turnos de guardas de todos
os pontos críticos do reino, além dos ataques
pretendidos pelo Grande Mestre.
6
Completando a geografia do lugar, o Centro,
onde se tinha a linha limite entre os contrapontos
Norte, do Rei, e Sul, da Rainha, era dito como o
local da troca, encontros, chegadas e saídas.
Era um palácio enorme, perdendo apenas
para a torre do Rei. Todo o fluxo de chegada de
tripulantes de naves que pousavam no topo do
palácio em seus devidos locais de pouso, trazendo
viajantes ou recrutas se concentrava ali, era o
local mais agitado de todo o reino, funcionava o
tempo todo e a todo vapor.
Possuía suas quatro saídas
milimetricamente desenhadas iguais e guardadas
por soldados, e um grande guerreiro designado
pelo Rei para gerenciar toda aquela correria.
Ele se postava no centro do local, suspenso
no ar com suas anotações e seus dois guardiões
diretos, logo ao lado dele, flutuantes tanto quanto
todo o aparato, como mesa e periféricos deste
guerreiro importante.
Ali, os guerreiros pegavam seus sustentos
semanais, como ervas, mantimentos e água, e os
operários homens podiam se inscrever e passar
por avaliações para se tornarem soldados de
verdade, pois as preleções aconteciam sempre no
ultimo encontro de cada mês.
As esposas por pouco tempo podiam ver os
maridos e os filhos, seus pais. Sempre eram
motivo de festa os encontros ali naquele palácio
7
no centro da colônia, apesar de toda a realidade
que os cercavam.
Ali não era o futuro pensado pelas gerações
passadas, nem nunca chegou perto de ser.
Já o lado Oeste do reino era onde ficavam
os velhos e doentes, além de todo material de
cura que também eram trazidos ao encontro
semanal devido a eventual procura de ambos os
lados. Ali, em centros médicos, existiam os
curadores com suas ervas e poderes
desconhecidos de magia.
O Lado Leste do lugar era o local dos
renegados. Todos os guerreiros ou operários que
eram expulsos das colônias por motivos de
infligirem as leis, tais como roubos e assassinatos
de seus semelhantes, se criavam em meio ao
matagal que tomava o local, seus refúgios eram
cabanas improvisadas e a caça era o único meio
de sobrevivência.
Ainda existia o Centro-Leste, um pouco
mais perto do ponto de encontro onde ali viviam
os rebelados, aqueles que não cometeram crime
algum, mas não queriam viver sobre o sistema do
Rei ou da Rainha. Sobreviviam sem crime, mas
por conta própria por opção e com o
consentimento do Rei, desde que não se
8
arrependessem de suas escolhas, pois uma vez
rebelado, jamais poderiam ser inseridos
novamente a colônia, por se correr o risco de com
suas ideias não totalitárias, contaminassem quem
ainda aceitava o regime de quase monarquia,
utilizado em todo o reino.
Dalí podiam ir apenas para a área dos renegados,
jamais progredir novamente.
O soldado enviado do Rei finalmente reúne
os guerreiros de que precisava para essa próxima
batalha, chegando a eles em um determinado
ponto daquele lugar, ele diz:
— Preciso que estes seis guerreiros se
apresentem para nossa próxima investida contra a
colônia inimiga dos Ircanos. — Diz ele olhando os
nomes em sua planilha.
— Gan você será a líder. Kápila, Gibba, Ellói
e Swami irão com você. Leve também Gira, sua
irmã mais nova. — Ordena ele com tom de quem
fora mandado pelo Rei.
— Mas... Como assim? Pensei que o grupo
de guerreiros para esta missão já estava
escolhido. Eu tinha outra missão em mente para
executar, isso muda tudo. E Gira como irá comigo
se ela ainda está em fase de treinamento?
9
Responde Gan, se levantando de seu
repouso e limpando a poeira de sua farda.
— Pensou errado. E você sabe que não pode
executar missões sem o consentimento do Grande
Seol, já teve problemas com isso e não aprende
nunca. O grupo já está realmente definido, são
vocês. E sobre Gira, não importa em que fase
está, ela também irá.
Retruca o soldado já querendo se retirar do
local.
— Mas não acho certo. Não estou tão
confiante assim. Lá eles possuem muitos
guerreiros bons, e nós nem estamos em condições
psicológicas de enfrentar uma batalha depois do
que a aconteceu, e você sabe do que eu estou
falando.
Gan diz mencionando o ataque que eles
foram surpreendidos na ultima lua cheia que
devastou a parte Centro-Oeste de seu povoado,
perto de onde se encontra a parte médica, das
ervas e curandeiros. Os inimigos entraram por
essa parte e quase chegaram ao Centro do reino,
local este, onde antes Gan e sua irmã menor,
Gira, moravam.
10
Até o momento não se sabe o motivo pelo
qual eles atacaram somente lá. Elas sobreviveram
por pouco.
Agora, O Grande Seol a mandou para uma
retaliação contra os Ircanos, os responsáveis por
esse ultimo ataque.
— Não discuta. Leve todo equipamento
necessário, e os dados já coletados sobre eles,
inclusive sobre o sistema de água e eletricidade.
Tracem um plano adequado de ataque próprio
com base neste que todos ficarão bem. A única
ressalva é atacar o lado sul deles, pois vocês são
apenas seis, o motivo é nos trazer mais
informações sobre eles para montarmos um plano
para o grande ataque. Trate de agir já.
Explica o soldado saindo em debanda com
sua planilha com os nomes dos seis riscados, em
mãos.
Gan então conversa com seus amigos
guerreiros escolhidos para a missão sobre o
ataque:
— O que há de tão valioso nessa colônia.
Pela primeira vez, o Grande Seol não disse quais
eram seus objetivos, estranho isso.
11
Especula Ellói, amiga inseparável de Gan.
Uma guerreira loira de dezoito anos, com porte
físico avantajado para uma mulher, alta, com
olhos claros e agilidade fora do normal.
— Deve ser o de praxe: Expansão de terras.
Ou apenas retaliação pelo ataque surpresa deles,
esse é o motivo mais óbvio.
Responde Gibba, guerreiro antigo que já
fora braço esquerdo do Rei, mas perdeu seu cargo
por indisciplina. Depois disso passou a executar
missões aleatórias sem muitos objetivos. Era
baixo, um tanto gordo e careca. Tinha por volta de
trinta e cinco anos e falava em tom baixo, sempre.
— Não sei não. Seol tem pretensões
obscuras, acho que algo novo está por vir. Ele
sempre diz o objetivo claramente, mas desta vez
deixou no ar. E não acredito em óbvio, nada é
certo. — Retruca Ellói.
— Deixem de bobagens. Vou eu mesma
falar com ele e perguntar o que vocês tanto
querem saber. Mas agora me parece interessante.
Consta aqui nesse relatório que eles possuem
soldados muito fortes. No começo eu estava
apreensiva, mas agora estou ansiosa, sem saber
por quê. Temo apenas por Gira, mas tudo correrá
bem.
12
Diz Gan olhando para as informações que
lhe foram dadas sobre o inimigo e logo em
seguida para Gira, que dormia ao lado.
— Ok. Vá falar com ele. Deixe que eu cuido
de tudo aqui. Vou resolver as últimas pendências.
Com quais veículos iremos?
Pergunta Kápila. Um guerreiro
relativamente novo, tanto em tempo de serviço,
quanto em idade. Tinha dezesseis e três de farda.
Estatura média, cabelos crespos e enrolados. Era o
mais inteligente de todos.
— Eu estava pensando em irmos andando
mesmo. — Responde Gan retirando algo pra
comer de seus pertences.
— Andando? — Todos perguntam
espantados.
— Sim. Andando demoraremos mais pra
chegar, mas chegaremos sem ser notados. Na
volta eu resolvo isso. Apresse tudo Kápila,
partiremos em uma hora, irei até o Rei tirar a
dúvida de todos vocês.
Gan diz isso acordando sua irmã mais nova
Gira, e lhe passando a situação.
13
Gira tinha apenas quatorze anos. Era uma
garota empenhada e muito quieta. Sofria com
alucinações e pesadelos constantes, quase
adivinhatórios. Muitos acreditavam que ela podia
ver o futuro.
Era bem parecida com Gan, ambas de
cabelos pretos e olhos castanhos. Com exceção
das mechas vermelhas que Gan tinha em suas
madeixas. Gira tinha menor estatura, mas muita
força e dedicação nos programas de treinamento e
aperfeiçoamento de dons.
— Mas ainda estou em treinamento. Na fase
final, mas estou. Nunca vi alguém sair em missão
sem chegar ao fim do programa, por que
mudaram isso agora?
Pergunta Gira, levantando com a ajuda da
irmã.
— Não sei, vou procurar saber isso também.
Apronte-se irmã e se prepare pra sua primeira
missão real. Já estou orgulhosa de você. — Gan
diz a beijando na testa e saindo do local.
— Grande Seol desculpe, mas há uma
dúvida do grupo quanto aos objetivos para essa
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missão que nos foi designada. O que pretende
com essa investida, senhor?
Pergunta Gan, sendo direta ao assunto,
postada a frente do Rei.
— Audaciosa você, como sempre. Não se
intimida a vir perguntar ao Rei do seu povo o que
ele pretende em relação a mais uma nobre
missão? — Seol responde em tom de ironia,
ajeitando seu cajado.
— Na verdade não senhor. Respeito muito o
posto que lhe cabe, mas não posso lutar sem
saber o porquê, ou por quem. Preciso de um
objetivo, um alvo.
Gan pergunta enquanto levanta mais a
cabeça e o olha nos olhos.
— É isso que gosto em você. Sua
determinação. Por isso a designei pra essa missão
que será a mais importante das missões até agora
arquitetadas por mim. Mesmo que não pareça, eu
tenho muitos objetivos, e a conquista da terra dos
Ircanos está no topo da lista pelo motivo de outros
objetivos dependerem deste. Estou confiando em
você. Espero que você também confie em mim.
Portanto vá.
15
Responde o Grande Seol, fazendo sinal para
que ela se retire da sala.
— Sim senhor. Irei. Mas não muito contente
com a resposta. Explicou e não explicou. Não
entendi exatamente o que pretende, pois terras
temos aos montes. Precisava levar uma resposta
mais concreta ao meu grupo. O que acontece se
nós falharmos?
Insiste Gan.
— Sangue. Muito sangue será derramado.
Apresse-se, pois o tempo é curto. Muito mais do
que você imagina. Sem mais perguntas. Seu
tempo acabou.
Diz o Rei com tom firme de voz e apontando
a saída.
— Sim senhor, permissão pra me retirar.
Gan rompe sua marcha e se retira dali um
pouco frustrada. Volta ao local da concentração e
logo em seguida parte junto com seu grupo.
16
— Ei Gan. Você está quieta, até agora não
falou nada sobre a conversa com o Grande Seol. O
que foi dito?
Pergunta Swami, outra guerreira mulher
amiga de Gan, com os mesmos trejeitos e
características de Ellói, por serem irmãs gêmeas.
Ela questiona enquanto pilota a nave que lhes
foram entregue, pois não poderia chegar ao Reino
dos Ircanos a pé, como queria Gan.
— Nada. Ele não disse nada, é esse o
problema. Enrolou com base na desculpa de
expansão de terras mesmo. Mas não acreditei. —
Gan fala enquanto olha à frente.
— Como nada? Pelo o que exatamente
estaremos lutando? Quem devemos matar?
Gibba escuta a conversa da ante-cabine e
questiona vindo ao encontro delas.
— Não sei. Gostaria muito de responder
essa e tantas outras perguntas, mas não posso.
Devemos chegar logo e quem sabe lá, nesse lugar
desconhecido, no Reino deles, obteremos as
respostas. Aumente e velocidade Kápila e Swami,
essa nave parece ser mais rápido olhando de fora.
Ela responde e ironiza.
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— Só parece... Deram-nos a mais fraca e
velha nave viajante de todo o Reino. Mudando de
assunto Gan, acorde Gira, ela já está dormindo há
muito tempo.
Kápila responde e observa Gan indo até sua
irmã enquanto diz:
— Realmente. Vou acordá-la. — Diz Gan já
perto dela.
— Vá com calma, sabe como ela acorda
assustada. Vive com medo sua irmã, Gan.
Observa Swami ao mesmo tempo em que
pede para Kápila, seu co-piloto, aumentar a
velocidade.
— Gira acorde. Gira, levante-se, já estamos
quase chegando. Você ainda não tomou sua
pastilha de proteínas. Acorde! — Gan sacode Gira
de leve.
— Han... Eu vejo a luz negra... Gan me tire
daqui! Não quero ficar com a mamãe... Ela é má,
Gan, má. Me machuca... Estou com medo... —
Gira diz entre outras coisas sem sentido.
18
— Calma Gira está tudo bem. Eu estou aqui,
e a mamãe ainda não voltou. Não se preocupe. —
Gan tenta acalmá-la.
— Por falar em luz negra... — Swami cerra
os olhos para olhar mais longe e grita em
desespero:
— Gan! O que é aquilo á frente? Seremos
abatidos?
— É um exército completo. Não pode ser!
Segurem-se todos, vamos cair! — Kápila
também grita assustado.
— Gira, agarre—se em mim! — É o que Gan
consegue dizer em poucos segundos antes do
ataque.
Depois do grito estrondoso de todos
tripulantes, o que se via no céu eram fragmentos
e fuligem pairando sobre as nuvens e uma grande
explosão que se ouvia ao longe.
O grupo de Gan fora abatido pelo inimigo
que já sabiam de sua chegada e não deram tempo
para revidarem.
No momento da explosão, Gan fecha os
olhos e abraça Gira com toda força que pode...
19
20
Capítulo II
O Início de Tudo
―— Um Samurai sem honra, não é digno de nada,
somente da morte!‖
21
Século XIX. Fim da Era dos Xogunatos, 1869. Cidade de
Edo, Japão.
psu está cavalgando em seu cavalo
intensamente, fugindo de um inimigo
que deseja nada mais que sua cabeça como
prêmio, por ele ser um dos Imperadores
considerados traidores por pedirem o fim da era
dos Xogunatos que já durava dois séculos.
Nesta época, os Imperadores detinham um
poder abaixo até mesmo do menos expressivo
Senhor Feudal. E diante disso, Apsu ao juntar-se
com outros Imperadores revoltados com o status
que carregavam, formou um grande grupo de
extermínio que visava derrubar o governo atual do
País.
Ofegante, ele segura seus dois filhos
pequenos, que havia salvado ao ser atacado em
seu castelo. Ele os prende contra o próprio corpo
enquanto corta com seu cavalo os arbustos
daquele bosque inóspito.
Apsu era um grande guerreiro samurai.
Branco, com cabelos negros e longos, e olhos
castanhos, alto e já beirando os seus cinquenta
anos de idade. Escondia por trás de uma vida
comum de um simples Imperador, uma grande
ligação com os líderes ocidentais. Era a favor dos
A
22
ideais que iam de encontro com o atual regime
totalitário do país, tais como abertura de todos os
portos, industrialização do mesmo e etc.
Astuto e corajoso, cumpria missões de
grande importância e ao mesmo tempo sigilosas a
favor e em benefício do que ele acreditava ser o
melhor para o seu país naquele momento. Jamais
havia mandado um de seus samurais para tais
missões, como de assassinato de líderes aos quais
somente ele poderia ter acesso por pertencer a
essa classe militar superior pelos menos aos
samurais comuns.
Nesta classe, alguns dos Daimios eram
ligados diretamente ao Xogunato e governavam
sob suas ordens. Apsu não fazia parte desta ‘elite
da elite’, e sim, planejava acabar com ela.
Mas dessa vez, em mais uma dessas
missões, Apsu havia sido descoberto e se viu
sendo caçado por um guerreiro, provavelmente
um samurai subordinado ou membro de algum clã
de um desses senhores Daimios anteriormente
assassinados ou que estariam na lista que Apsu
seguia.
Este samurai vinha logo atrás em seu
encalço, fazendo com que Apsu temesse o pior.
Koji, seu filho mais velho que está também
montado no cavalo, então com quatorze anos,
23
consegue entender o que se passa e com toda
esperteza que conseguira em seus treinamentos
secretos juntos a seu pai, sem pensar duas vezes
num ato quase suicida, agarra sua irmã menor
que está em seu colo, e pula do cavalo em alta
velocidade.
O pai se assusta com o feito do filho e tenta
parar seu cavalo para voltar e buscar seus pupilos.
Nesse momento em que se vira, Apsu é
abatido com um golpe de espada em seu ombro e
cai bruscamente sem chance de defesa. Koji
observa de longe agachado atrás de um arbusto
recuperado da queda, com a mão na boca de sua
irmã para que eles não sejam descobertos.
Apsu grita de dor. Tenta levantar-se, mas é
parado pela espada daquele samurai inimigo que
já estava com ela apontada para si. Tenta olhar
para aquele que o queria morto, mas não
consegue devido a chuva que cai cegando seus
olhos.
Koji se desespera. Ele presencia seu pai
sendo decapitado pela espada fulminante daquele
samurai que nem ao menos disse uma palavra. Ele
nada pôde fazer. Viu quieto o corpo inerte de seu
progenitor sendo rolado ribanceira a baixo, e o
inimigo que não se sabia quem era, levar consigo
24
a parte que fora arrancado de seu pai, não antes
de ferir o cavalo em que ele estava montado.
A essa altura já muito assustados e com
medo, Koji e sua irmã puderam ver mesmo que de
relance, uma cicatriz no rosto daquele que levara
sem olhar para trás, o sangue que eles jamais
pensaram ver cair.
O garoto chora. E ao mesmo tempo tenta consolar
sua irmã, que sem entender direito o que
acontecera, chora também.
Os dois adormecem como estão. Sujos e
machucados da queda, em meio ao mato, e a
serração daquele lugar.
O irmão mais velho logo acorda com a
chuva forte, e tenta tirar forças de dentro de si
para se levantar e talvez voltar ao castelo e contar
à sua mãe sobre o ocorrido. Ele hesita um pouco,
deseja dormir e não acorda mais. A todo o
momento a imagem daquela cicatriz atormenta
sua mente.
Ele pensa na irmã, e o quanto ela irá sofrer
por crescer numa família sem pai. Levanta-se, e
sem acorda-la, a coloca nos braços e caminha
noite à dentro em meio à chuva, os arbustos e os
animais.
Durante o caminho, Koji tenta sozinho
encontrar algumas respostas. Não consegue
entender qual o motivo que levara seu pai a ter
25
esse destino. Ele não entendia nada daquela
política.
Se sente injustiçado, pois logo que
completasse seus quinze anos, participaria da
cerimônia do Gempuku, onde seria firmada a sua
maioridade e ele já poderia carregar consigo seu
Daisho (conjunto de duas espadas na cintura), e
que se isso já tivesse acontecido talvez pudesse
ter salvado seu pai.
Ele pensa em sua mãe, e em sua outra irmã
menor que estava com ela no castelo.
Mesmo muito jovem, ele era dedicado aos
ensinamentos do Bushidô (código de conduta dos
Samurais), dados pelo mestre Kaidan e por seu
pai.
Tinha um porte magro e estatura alta,
mesmo com sua pouca idade, os olhos castanhos
um tanto avermelhados no sol, assim como de sua
irmã.
Sempre obediente, era um filho exemplar,
pois seguia a risca as tradições familiares e jurara
mantê-las por muitos e muito anos. Ele pensa que
agora será um tanto difícil sem seu pai por perto.
Não consegue suportar a ideia de conviver
sem seu maior herói e mentor das artes marciais,
e a quem ele tanto venerava e seguia os
conselhos e os passos familiares.
26
O que seria de sua família agora? Como
sobreviveriam sem ele a esta inevitável mudança
do país?
Desnorteado por esses pensamentos, ele
mais uma vez chora e deixa cair as lágrimas que
se misturavam com a chuva forte escorrendo em
seu ombro. Se sente fraco, pequeno, imprestável.
Pensa que deveria se arriscar para salvar seu pai.
Pela primeira vez foi preciso agir e falhou, e
esse sentimento não era digno de um samurai de
verdade. Ele precisava se vingar para ter a honra
da família restabelecida, ou conseguir a honra de
volta de alguma outra forma.
Pensou em ir atrás do senhor daquele
Samurai, se ele ao menos soubesse quem era.
Após quase duas horas de caminhada, Koji
finalmente avista o castelo de sua família ao
longe. Sente certa felicidade de estar retornando
ao seu lar, e ao mesmo tempo uma imensa
tristeza.
Ele avança castelo adentro em busca de sua
mãe, coloca sua irmã pequena em um canto e
corre nas escadas enormes que separavam o
pavimento principal dos outros maiores logo
acima. Vasculha tudo e não encontra nada. O
lugar está vazio, não se vê ninguém. Koji começa
a ficar assustado e a gritar o nome de sua mãe a
fim de saber onde ela está. Não obtêm resposta.
27
Depois de procurar em todos os três
grandes níveis, desce ao local mais fundo do
castelo onde eram guardadas coisas sem
importância, onde ainda não tinha chego. Eis que
ao alcançar o segundo degrau daquela longa
escada, é derrubado por alguém que se
encontrava escondido talvez a sua espera. Ele rola
até o último degrau e é parado com uma espada
apertando sua garganta. Tenta forçar suas vistas e
reconhecer aquele rosto que ia de encontro à luz.
— Onde está seu pai? — Ele escuta uma voz
rouca dizendo.
Koji fica em silêncio esperando novamente
ouvir aquela voz que ele julgava ser conhecida.
— Não sei. — Diz ele depois de algum silêncio.
O senhor que o encurralava, retira a ponta
de sua espada de perto de Koji, e diz:
— Levante—se.
Enquanto isso, sua irmã menor, uma
criança agitada, com um temperamento um tanto
forte pra sua idade, que contava oito anos, acorda
e escuta aquelas vozes vindo de algum lugar
distante.
28
Mesmo sonolenta, levanta-se e vai de
encontro a elas, que esbravejavam:
— Não pode ser! Onde está minha mãe? —
Koji grita desesperado abaixando a cabeça em
seguida.
— Depois do que eu passei. Minha mãe e
minha irmãzinha não! — Completa ele.
— Calma Koji, contenha-se. Não sei o que
realmente aconteceu a elas. Eles chegaram aqui e
levaram-nas sem deixar pistas. Um deles disse
que logo matariam seu pai e o trariam, além de
você e sua irmã para se juntar a elas.
A irmã de Koji aproxima-se da escada,
enquanto ele escuta de cabeça baixa o Velho
Kaidan, seu mestre e de seu pai, dizer que o
ajudaria a encontrar sua família.
Koji fica em silêncio. Logo pós, diz em voz
baixa:
— Eu não tenho honra. Meu pai está morto
por minha culpa. Eu falhei, e não sou digno de
levar comigo o nome da minha família...
29
O Velho Kaidan tenta consolá-lo, enquanto
sua irmã alcança o primeiro degrau, e observa a
cena, parada sem entender muito o que se passa.
Koji prossegue:
— Um Samurai sem honra, não é digno de
nada, somente da morte!
Nesse momento, Koji saca a espada do
Velho Kaidan, ajoelha-se num ritual de
purificação, e sem dar tempo para ele o impedir,
introduz a espada em seu estômago e a puxa da
esquerda para direita, logo em seguida pra cima,
rasgando-o a si mesmo com toda força que pode.
Koji diz suas últimas palavras, antes de
cortar sua alma e libertar seu espírito:
— Por meu pai, e por minha família...
Mestre Kaidan tenha a bondade...
Ele diz isso sem mostrar dor e olhando firme
para seu mestre a espera do desfecho. O Velho
Kaidan segue o ritual mesmo sem apoiar a decisão
de Koji, e faz o que deve ser feito em um ritual de
Sepukku:
30
Decapita Koji, assim como seu pai fora
decapitado, com um golpe único que só um
samurai experiente poderia fazer.
O sangue honrado de Koji toma toda
extensão da cena, enquanto sua irmã observa
atônita do alto da escada o acontecimento. Ela
olha com medo o Velho Kaidan limpar o fio de sua
espada e lamentar por ter sido forçado a fazer
isso.
Ele conversa consigo mesmo, limpando sua
arma mortal. Eis que então, ele percebe a
presença da garotinha e olha pra ela com receio
do que ela pode ter visto, e diz:
— Gan, não desça até aqui, eu logo irei até
você.
O velho Kaidan olha ao seu redor e sem
hesitar, sobe as escadas e toma Gan em seus
braços. Pensa em que irá fazer, pois agora a
menina não tem mais seu pai, nem seu irmão, e
não se sabe o que aconteceu com sua mãe e sua
irmã Gira.
Neste momento, o Velho Kaidan é a única
esperança para a pequena Gan, que ainda não
havia desenvolvido nenhum espírito de guerreira,
até por imposição do regime em que eles viviam,
pois uma mulher jamais poderia se tornar um
verdadeiro Samurai mesmo existindo relatos de
31
algumas que lutaram ao lado de seus maridos e se
entregaram ao mar para eles morrerem com
honra após serem derrotados em alguma batalha.
Mas Kaidan estava disposto a mudar isso,
mesmo com o declínio dos Samurais sendo
dizimados pelos exércitos ocidentais e pelas novas
leis que surgiram ao longo dos anos seguintes.
Kaidan precisava manter o espírito dos
Samurais vivo e Gan teria a responsabilidade de
dar continuidade a isso, era seu destino.
Mas até então, ela ainda era uma frágil
criança, sem entender, nem imaginar o que o
futuro ainda lhe reservara e o quão importante
era para manter o equilíbrio dessa ligação:
Passado e Futuro.
O velho Kaidan, era um senhor de baixa
estatura com olhos desiguais, um deles cego
afundado em seu crânio e outro míope saltado pra
fora, aparentemente abatido pelo tempo. Muitos já
o desconsideravam como um Samurai, devido a
sua expulsão de uns dos clãs mais respeitados,
exatamente por ter se negado a seguir o ritual de
suicídio após ter perdido uma batalha pelo coração
de sua amada.
O oponente vencedor, um amigo de infância
de Kaidan, escolheu não mata-lo e por honra ele
deveria seguir o ritual que anos depois ele
presenciaria Koji executar. Isso o fez lembrar sua
32
covardia, e afirmar pra si mesmo que o filho de
seu melhor discípulo, Apsu, teve sim honra e
dignidade. Ele precisava passar esse sentimento a
Gan.
A partir deste momento, Kaidan torna-se
mentor de Gan e se propõe a ensina-la os
segredos das artes marciais e o código de conduta
dos samurais.
Eles se refugiam em um vilarejo ali mesmo
próximo a cidade de Edo, palco dos
acontecimentos anteriores, que logo se tornaria a
Cidade de Tóquio.
Dez anos se passam desde a morte de
Apsu, e aquela noite terrível para Gan que agora
conta dezoito anos. Nesse meio tempo, Kaidan
transmite para ela todos os ensinamentos
necessários, que iam desde aulas de caligrafia,
poesia e música entre outros e claro, exercícios
físicos, do corpo e da mente. Gan se dedicou todos
esses anos a tais lições e filosofias de vida, que
ela escolhera seguir.
Neste novo tempo de mudanças no Japão,
os samurais já não eram figuras tão
representativas e não se viam mais nenhum deles
andando pelas ruas portando espadas, por motivo
de proibição alguns anos antes, do atual governo.
33
Como todos eles, Kaidan e Gan viveram no
anonimato. Mas nem por isso Kaidan deixou de
ensinar a ela o manejo com essas armas
sagradas, consideradas por muitos, uma extensão
do espírito de quem a portava. Kaidan percebe
nela um dom especial para usá-las e lembra-se
que desde cedo, Gan era uma garota incrível.
Depois de toda essa dedicação de seu
mestre, Gan se despede desejando trilhar seu
novo caminho, pois já se considera uma
verdadeira guerreira e se sente confiante e
preparada para ir atrás das respostas de suas
mais intrigantes perguntas...
E agora nos resta pensar: Como é possível
Gan estar neste passado e também no futuro?
Logo iremos descobrir. Ou não.
34
Capítulo III
Gan e Luna
―— Me chamo Gan, e não sei como vim parar
aqui.‖
35
Século XIX. Ano 1887. Era Meiji. Cidade de Yokohama,
Japão Imperial.
onflitos se sucedem por toda parte
devido a industrialização do país, em
vários lugares ainda predominam batalhas entre
clãs de samurais, que foram abolidos pelo novo
Imperador e de opositores do governo contra o
regime atual, tais como Senhores Feudais que não
queriam o fim dos Xogunatos.
Fora um período conturbado de transição,
de modernização e de muitas mudanças.
Diante desta situação e tendo que refugiar-
se com medo de seus principais inimigos do clã
rival, Luna vai morar em um lugar distante das
batalhas. Mais precisamente em Yokohama que
naquele ano havia sido considerada uma cidade
importante por seu porto, o principal do oceano
pacifico naquele momento.
Com sua riqueza, ela pôde levar consigo
alguns servos e muitos mantimentos para
sobreviverem por um longo período. Tudo isso
orquestrado por seu pai, Major Silver que a levou
para o extremo norte da cidade, bem longe dos
conflitos e dos olhos de seus inimigos. Eles o
queriam morto por ter sido declarado Major do
exército Japonês após essa ocidentalização do
C
36
país. Por esse motivo, ele era considerado um
traidor dos princípios dos Samurais.
Filha de Silver, Luna não é uma garota
qualquer. Determinada tanto quanto bonita, ela
resolve pôr em prática o treinamento que seu pai
o impusera, para se defender caso alguém a
colocasse em perigo. Desde pequena, após a
morte de sua mãe, Luna passara muito tempo
com seu progenitor, isso até estourar a revolução.
Agora ela está sozinha.
Em um desses seus treinamentos em meio
a mata envolta de sua Grande Casa, Luna escuta
passos, de certa forma lentos, e ao investigar, viu
que se tratava de uma mulher, imunda, a lama se
misturava com o sangue que escorria de seu
braço, e mal se podia ver sua face.
Estava cansada, respiração ofegante,
andando semi-escorada em sua espada, olhando
para Luna fixamente, que ao tentar se aproximar,
quase recebeu um golpe da garota, que não
aguentou e caiu desacordada.
Luna, mesmo com muita dificuldade, a
carrega pra sua casa, e sozinha trata de banhar a
garota e cuidar de seus ferimentos, mesmo com
receio de suas alucinações.
Ela se espanta com tanta beleza e percebe
que se trata de uma garota jovem, e ao mesmo
37
tempo se pergunta por que ela carrega consigo
uma espada tão poderosa.
Em meio às alucinações, a garota vê o
quanto Luna também é bela e imagina ser um
anjo da guarda enviado para ajuda-la. As duas
adormecem.
No dia seguinte, Luna acorda com dores no
corpo, por ter dormido de mau jeito ao lado da
misteriosa garota a fim de vigiá-la. Luna resolve
banhar-se.
Nesse momento a garota acorda e vê
apenas a silhueta de Luna saindo do quarto. Ela se
pergunta onde está e onde está sua espada. Ela
resolve se levantar sem ser percebida e vai até
outro cômodo da casa. Ainda meio zonza, rende
uma serva lhe perguntando que lugar era aquele e
quem era a pessoa a quem ela servia.
A escrava assustada, disse apenas onde
Luna estava. A garota segue até o próximo
cômodo, e no caminho percebe que está com uma
roupa estranha, mas cheirosa. Pela fresta da
porta, ela observa Luna se banhando, de costas.
Luna não percebe e continua seu ritual. A garota
observa por alguns segundos e logo resolve entrar
e tentar render Luna despercebida. Esta logo
percebe a tentativa e se vira levantando-se de sua
banheira, se mostrando nua. De imediato, o
também susto da garota, se transforma em
38
choque. Ela jamais tinha sentido algo tão
estranho. Pela primeira vez, ela fica em
desguarda, e é imobilizada pelos servos de Luna.
Passado o susto, Luna está em seu quarto
novamente questionando a garota para saber
quem ela era. Explicou a ela como a achou, e que
cuidou de seus ferimentos, mas agora queria
saber pelo menos o seu nome.
A garota com o olhar distante, levanta os
olhos e fita Luna com desprezo. Volta novamente
seu olhar para o chão de barro e diz:
— Me chamo Gan, e não sei como vim parar
aqui.
Luna levanta o rosto de Gan com a mãe e
diz:
— Tudo bem. Não precisa se preocupar.
Talvez você não tenha a resposta agora, mas
depois de um bom descanso, quem sabe poderá
pensar melhor, não é.
Gan novamente olha para Luna e foge o
olhar dizendo apenas:
— Obrigada.
39
Luna cobre Gan que treme de frio, e diz
apenas para ela descansar e que ela poderá ficar
em sua casa o tempo que ela achar necessário.
Gan adormece mais uma vez e sonha. Em
seu sonho, Gan está em um navio que leva
consigo um barco pequeno amarrado a ele em alto
mar. No navio estão Gan, Gira sua irmã caçula
que ela nem conheceu e sua mãe, que ela mal
pode ver o rosto. No barco menor está seu pai
Apsu, e Koji, seu irmão mais velho.
Todos estão felizes conversando entre si e
trocando carinhos maternos e paternos. Eis que
então começa a surgir uma tempestade no
horizonte e Gan se vê na necessidade de
desacoplar o barco menor do navio, senão ele
poderia afundar com a força do vento e teria mais
chance de se manter caso estivesse solto.
Apsu, o pai de Gan, olha para filha e pede
para ela se cuidar, enquanto Koji pede a ela que o
perdoe. Gan solta o barco menor. Gira está no
colo de sua mãe e chora sem parar. Gan tenta
falar com sua mãe, mas esta se mantém ríspida e
não responde os apelos da filha. Gan pede para
ela ir ao convés e quem sabe assim ter uma
chance de se salvar e também a Gira, pois Gan
sabia que aquela tempestade devastaria tudo.
A tempestade chega ao navio. Como num
tapa, ela chacoalha toda a embarcação e Gan se
40
surpreende com a força das ondas. Ela agora está
sozinha á frente do navio tentando desviar das
ondas gigantes que o empurram com força
absurda. Gan olha pra trás, e por um momento
pensa estar no barco menor onde ficara seu pai e
seu irmão. Ela olha novamente para frente e vê
que o mar está muito longe de seus pés para estar
naquela embarcação minúscula.
A garota tenta se concentrar em desviar das
ondas bravias, e ao olhar novamente pra trás, vê
seu pai, coberto de sangue, abraçado com Koji
naquele espaço mínimo do barco. Ela se assusta e
não consegue entender com pode estar em dois
lugares ao mesmo tempo. Ao olhar novamente
para frente, uma onda maior do que todas até
esse momento, cobre o navio por inteiro.
Gan acorda assustada no meio da noite. Lá
fora o zunido do vento faz com que ela não
consiga mais dormir. Ela fica pensando em seu
sonho e em qual seria o real significado deste.
Quase pela manhã, quando o sol resolve se
mostrar tímido em meio ao tempo frio, Gan pega
no sono novamente e mais uma vez sonha.
Desta vez ela está em um lugar
desconhecido e muito gelado, ela luta
desesperadamente com muitos guerreiros ao
mesmo tempo, e quando consegue derrubar quase
todos eles com sua força descomunal, um deles
41
surge de forma rápida e crava sua espada no
coração de Gan. O pesadelo rápido acaba.
Gan acorda, não antes de se assustar com o
vento balançando a cortina e parti-lá em dois com
sua espada, que não se sabe com que rapidez, ela
já a empunhava. Após o feito, ela olha em volta e
não vê ninguém, apenas escuta o canto dos
pássaros que festejam um dia ensolarado e feliz,
diferente os dias em seus sonhos, que se mostram
frios e tristes.
Luna e Gan estão sentadas à mesa
preparadas para a refeição matinal. Enquanto sua
serva faz os preparativos, Luna aproveita para
perguntar a Gan sobre seu passado. Gan se irrita
e diz não saber nada a respeito dele e que sofre
de perca de memória. Lembra apenas que estava
em um lugar e de repente acordou em outro.
Luna observa Gan tomando seu chá e brinca
com a questão dela ser canhota, as duas dão
risadas e pela primeira vez, elas têm um momento
feliz.
Nesse instante, Gan olha para sua imagem
refletiva no fundo da xícara e se vê com sangue
escorrendo dos olhos e, de imediato, joga seu chá
no chão de tanto susto. Ela se levanta da cadeira,
se encostando à parede apavorada e diz para Luna
que prescinde que a seu destino, não restam
coisas boas.
42
A fim de acalmá-la, Luna abraça Gan com
força dizendo que está tudo bem. Gan sente um
frio na espinha atormentador, não sabendo
exatamente o porquê.
No fim da tarde, Luna convida Gan para
irem juntas treinarem em lugar perto dali, o
mesmo onde ela a encontrou. Gan hesita um
pouco, mas aceita o convite. As duas vão seguindo
mata adentro, conversando pouco, sobre assuntos
diversos, quando de repente, elas percebem
alguém no caminho delas.
Este sai por entre os arbustos e se mostra
para as duas. Gan levanta sua espada e Luna a
impede de usá-la.
— Ele é de confiança. É um dos meus
servos. —Diz Luna olhando para aquele homem
alto e forte que falava grosso:
— Resolvi segui-la para protegê-la de algum
perigo caso algo aconteça, pois por estes lados é
muito perigoso. — Disse o servo à sua dona.
Gan fita o servo, e antes de abaixar sua
espada, diz:
— Ela já está protegida. Vá embora.
43
O escravo apenas olha nos olhos de Gan e
segue seu caminho de volta à Casa Grande.
Gan diz não gostar dele, e Luna a
tranquiliza dizendo que ele já a serve há muitos
anos. Não oferece perigo algum.
Luna e Gan treinam por várias horas, as
duas se confrontam como se fosse uma batalha de
verdade, ambas empunhando espadas, numa
troca de golpes incríveis.
Durante uma pausa nos treinos, Luna
pergunta a ela quem fora seu mestre, e Gan conta
sobre o Velho Kaidan e que ele também fora
mestre de seu pai, e acrescenta dizendo que tudo
que sabe, aprendeu por força do destino, não
escolheu ser que era. Completa dizendo que não
se lembra de mais nada que aconteceu após o
término de seu treinamento até aquele momento.
Gan se levanta e continua a treinar com
maestria, mostrando suas habilidades, para o
espanto de Luna, que mesmo tendo sido treinado
por seu pai, um grande mestre e general, não
tinha tamanha intimidade com as espadas.
Em um momento de descontração, Luna diz
a Gan que consegue ficar bastante tempo
"plantando bananeira" e quando o faz, acaba
caindo em cima de Gan, e quase que por um
milímetro não encosta seus lábios nos dela.
Imediatamente Luna se levanta envergonhada e
44
diz que irá para casa. Gan fica de pé limpando a
poeira de suas roupas e diz que irá ficar um pouco
mais. Neste momento em que retira a poeira de
si, Gan se lembra remotamente de um soldado lhe
passando instruções exatamente quando ela se
limpava, mas nesse pensamento, quase um déjà
vu, era uma farda que ela limpava. Ela não liga
para esse pensamento. Luna vai. Gan fica.
Chegando à Casa Grande, Luna encontra
um silêncio estranho, aparentemente não tem
ninguém na casa. Depois de examinar vários
cômodos, ela vai até seu quarto, encontra a porta
aberta, e ao ultrapassá-la, ela se fecha e de trás
dela surge alguém.
O servo que Gan achava misterioso agarra
Luna com força e arranca suas vestimentas
superiores apenas com um punho. Ela percebe
logo o que ele quer, mas não consegue pegar sua
espada devido a força daquele homem. Luna grita.
— Não adianta gritar, nenhum servo poderá
ajuda-la, pois estão todos amarrados e a senhora
bem sabe que sua nova amiga maluca está bem
longe daqui, pois eu a vi chegando sozinha. — Diz
ele enquanto tenta beijá-la.
Tomado por uma força demoníaca, ele
arranca todas vestimentas de Luna enquanto vai
45
falando barbaridades que ela mal pode entender
pelo desespero e pelos gritos que a tomam.
Mas o escravo estava errado. Como se
pudesse ver, Gan tendo tonturas e alucinações
prescinde que Luna precisa de ajuda, e no mesmo
instante de seu pensamento ela já se encontra no
meio da mata correndo desesperadamente para
chegar a tempo.
Passando rápido entre os espinhos e
arbustos, Gan chega até a casa e encontra todos
os outros amarrados e amordaçados atrás da
escada, mas não têm tempo de soltá-los. Como se
voasse ela sobe as longas escadas do casarão com
uma rapidez incrível, seguida pelos gritos de Luna
que recebe socos e mordidas daquele servo que
não conseguiu o que queria.
Antes foi decapitado por um golpe da
espada de Gan tão rápido quanto o tempo de Luna
abrir os olhos e perceber que está em cima de si
apenas o corpo, quase que inerte (apenas
agonizando) daquele servo sujo e nojento.
Gan salvou a vida e a honra de Luna, que
entra em choque e é colocada deitada sobre a
cama de um dos quartos vizinhos ao dela,
enquanto olha para o teto fixamente.
Gan trata de, junta aos outros servos que
ela havia libertado, limpar toda a sujeira do local e
dar fim ao que sobrou daquele homem imundo.
46
Passado o susto, e após Luna se recuperar,
as duas estão no quarto, a primeira deitada, e Gan
sentada à beira da cama conversando com ela.
Luna agradece o feito da garota, não podendo
conter-se de tanta gratidão, e ainda fica
inconformada como um servo tão confiante pôde
fazer isso com ela.
Gan diz que ele terá o julgamento
adequado. Luna apenas a observa, não diz nada.
As duas conversam por horas e adormecem
abraçadas, como se fossem irmãs.
47
Capítulo IV
Sombra e Escuridão
―— Então você está viva pequena Gan. Não
esperava por isso. Você deveria ter morrido na
explosão junto com sua irmã.‖
48
m odor fétido de corpos em putrefação
exalava-se no ar. Gan está sozinha em
uma câmara escura e fria. Ela tenta se levantar,
mas sente seu corpo pesado como se estivesse
debaixo de alguém.
De fato estava, e eram cadáveres em
decomposição que lhe serviam de refúgio naquele
momento e que sugerem o tom do cenário: um
lugar inóspito, sujo, frio.
Com muito esforço, Gan tira de cima de si
aqueles corpos sem vidas, e ao tentar ficar em pé
sente uma dor intensa em seu ombro esquerdo e
percebe que não poderá contar com ele. Suas
pernas também estão bambas, ela está debilitada,
suja, cansada.
Gan olha para os lados, mas tudo que se vê
é escuridão, um ar de sofrimento, de angústia, de
desespero. Ela tenta levar a mão ao rosto, mas
também está suja de sangue. Mal se sabe qual é o
seu. Pela primeira vez sente um certo medo, e
após respirar fundo e tentar empunhar sua
espada, cai sentada e ali fica por alguns segundos
com a cabeça entre as pernas.
Gan é interrompida de seu martírio por um
rugido. Um som forte e ensurdecedor que vinha de
um lado distante daquele labirinto. Era de uma
criatura desconhecida. Ela tenta levantar-se mais
uma vez e encosta-se na parede a fim de pensar
U
49
sobre o que seria aquilo, onde estava, e como
chegou até ali.
A criatura sente o cheiro de sangue novo de
Gan, e vêm de encontro a ela com uma velocidade
descomunal. Gan sente o perigo, fecha os olhos e
tenta imaginar a fera sedenta vindo à sua caça.
Era um monstro horrível, por volta de dois metros
de comprimento, que ainda tinha uma força
incrível.
Gan consegue vê-lo, vindo para seu lado,
pisando nos corpos e retirando os que
atrapalhavam do caminho com uma facilidade
imensa. Ela pensa em correr, mas está debilitada
demais. Em uma fração de segundos, quase por
instinto, ela vira-se na tentativa de fugir dos olhos
da criatura, mas não consegue.
Antes de tentar qualquer coisa ela é
derrubada e arremessada com força contra a
parede após ter sido pega pela criatura com a
boca. Ela sente dor, e sofre em silêncio, nem abre
os olhos. Espera acordar e pensar que aquilo era
um pesadelo horrível. Mas não era. Gan sentia a
realidade ao inalar o cheiro do ambiente, ao ser
arremessada mais uma vez e cair em cima de
vários cadáveres que ali estavam.
Em uma das investidas do animal, que
brincava com Gan como se fosse um osso de um
canino, Gan já quase morta abre os olhos em uma
50
despedida anunciada e vê alguns escritos
brilhando na parede, algo como:
"I Zitodo ó e sogtode."
"Gil, lie dosasri lulci..."
"I loszesri osri dolrte do veco."
Ela nada entende, e antes de pensar é
novamente jogada contra a parede que agora se
mostrou toda coberta de dizeres:
"Zitodo", "loszesri", "sogtode".
Desta vez, Gan percebe que naquela parte a
parede parece um pouco oca, e ao encostar o
ouvido nela, escuta algumas vozes, grunhidos e
rugidos menores. Ela não sabe o quão elas são
resistentes, mas tem uma excelente e perigosa
ideia. Gan tira forças de dentro de si para se por
de pé diante da parede. Com as pernas tremendo,
e os braços, rosto e costas totalmente
machucados, ela se encosta-se à parede fria e
fecha os olhos.
A criatura faminta vê onde sua presa está e
vai de encontro a ela para terminar o que tinha
começado.
Neste momento Gan usa seus instintos para
poder saber onde o monstro está, pois ela está de
costas para ele, não dando mais importância para
51
sua fúria. Ele vem com velocidade total, após ter
perdido sua única caça viva daquele lugar. Ele
pula em sua direção e num gesto suicida, Gan
vira-se e abre os braços.
Deste abraço mortal, o que se vê é a parede
cedendo e os dois caírem de uma altura
assustadora abraçados no vácuo. Gan consegue
pegar sua espada e crava—a no coração do
monstro ainda no ar.
Em seguida, escuridão. Os olhos fechados.
A esperança quase tão morta quanto seu corpo,
Gan cai. E por um segundo, lembra de um sonho
que tivera, onde navega em um pequeno barco à
vela, com o nome ‘Hokule'a’ estampando no alto
de seu mastro em uma bandeira fulgurante.
Neste sonho, o barco caía do oceano, como
se o mundo tivesse um fim plano. Era um abismo
imenso, onde já se via várias outras embarcações
naufragadas e os corpos de seus tripulantes ao
léu.
Chão de corpos. Rios de sangue.
Sofrimento. Dor. Desespero. Isto era tudo que
Gan tinha após ter sobrevivido à queda graças ao
monstro, que com seu tamanho, amorteceu o
impacto.
Mesmo com alguns ossos quebrados, ela se
levanta e olha para o horizonte torto, e fica
chocada com o que vê. Meio-mortos, criaturas
52
horrendas, disputando um pedaço de outra
criatura, ou outro ser humano, corpos pela
metade que andavam rastejando-se e rindo
diabolicamente.
Gan toma sua espada do corpo da primeira
criatura e a segura como se fosse um filho. Anda
arrastando-se entre as criaturas, que por vezes a
observa e logo continua seu ritual de matança. Um
matando ao outro, todos já mortos talvez. Ela se
desespera. O som era horrível, pessoas gritando,
correntes sendo arrastadas, corpos mutilados
andando como se ainda tivessem vida.
Com muito esforço, Gan olha para o alto e
vê o céu carregado, vermelho intenso, chuva
ácida. E em uma das várias montanhas ela vê uma
placa flutuante e imensa escrita:
"O Vale de Hinom - Aqui jaz o ímpio, o
assassino, o blasfemo, o Deus das Trevas."
Ela não quer acreditar, e tenta imaginar que
está em mais um de seus sonhos, mas logo
percebe que não. Aquilo era real. Muito mais do
que ela mesma pensava. Seu futuro tinha se
transformado em escuridão. Ali era onde ela
morava, seu lar. Ela se lembra de Gira ali naquele
lugar, de sua mãe sequestrada no passado, e
tenta encaixar em seu quebra—cabeça como pode
53
estar desta vez, de verdade, em dois lugares ao
mesmo tempo.
Gan lembra-se de tudo. O Grande Seol,
seus amigos, e Gira dormindo em seus braços no
momento da explosão. Lembra-se também de
Luna e do escravo que tentara tirar-lhe a honra.
Se lembra que em uma das conversas com
Luna, ela havia lhe dito que ambas estavam no
ano de 1887.
Como pôde ela voltar ao passado e agora
estar novamente no futuro? Seria uma dádiva, ou
uma maldição?
Confusão se faz na cabeça de Gan, que
tomada pelo desespero e pela dor, chora. Deita
em um canto e ali fica por várias horas, pensando
sobre o que lhe ocorrera, e lembra-se e Luna com
certa saudade.
Gira também não lhe sai da mente, pois ela
não sabe o que aconteceu a ela após o ataque à
sua tripulação. Ela tem fome. Está com frio e
muito machucada. Pensa em se entregar e ali ficar
até o fim de sua vida. Adormece como está, e não
imagina o que o futuro lhe reserva, nem o que o
passado revelava.
Após algumas horas adormecida em meio
ao caos, Gan é acordada por um demônio que por
ali passava fazendo barulho. Este é interrompido
pelo olhar de Gan, que sem forças apenas o
54
observava seguir seu caminho. Ele para e chega
perto dela com ar de curiosidade. Ele traz consigo
algo em suas pequenas mãos. Gan não se sentiu
ameaçada, e aceitou o que ele lhe dera após
estender sua mão esquerda, totalmente
desproporcional ao seu corpo.
Era algo amarelo, algo como algum tipo de
semente, mas maior do que seria o normal. Ele a
entrega, fazendo sinal para ela comer. Gan fica
receosa, mas sem escolhas, acaba colocando
aquilo em sua boca com certa dificuldade devido
aos ferimentos.
Ela fecha os olhos, sente um gosto amargo
e vontade de colocar pra fora. Após alguns
segundos, Gan se sente completamente curada
como num passe de mágica. Aquilo que lhe foi
dada a curou dos ferimentos, e ela não pôde nem
agradecer o pequeno demônio, pois o mesmo
sumiu entre a fumaça do lugar.
Gan levanta-se recomposta. Olha para o
horizonte até onde seus olhos podem alcançar. O
barulho do lugar já não lhe incomoda mais. E ela
se sente preparada para enfrentar qualquer coisa
para descobrir em que mundo está, e como sair
dali.
Andando por entre as criaturas, Gan já não
se assusta mais com o que vê, nem com o que
ouve. Tudo aquilo lhe parece familiar dessa vez.
Ela ainda acha incrível estar curada depois de
55
tantos ferimentos, e se lembra do pequeno
demônio que lhe ajudara, se perguntando por que
ele o fez.
Mesmo sem acreditar no que o futuro se
tornara, Gan tenta encontrar respostas. Mesmo
que pareça familiar, ali talvez não fosse o lugar
que estava antes. Não se via mais os grandes
campos de treinamento, nem a torre onde residia
o Grande Seol.
Nem mesmo onde ela tinha como casa se
parecia com aquele lugar. Mas ao mesmo tempo
tudo era tão palpável, tão real e verdadeiro, que
ela acaba por achar que ali é seu lar, e se
contenta estranhamente com os gritos de dor de
quem ali sofria.
Durante sua caminhada, Gan percebe que
um dos demônios que ali estavam, lhe olhava de
uma forma diferente dos outros. Com um ar de
surpresa e desprezo. Este com suas asas voa pra
bem longe, como se levasse consigo uma notícia
ruim.
A esta altura, Gan já andara vários metros,
e mesmo assim não se cansava. Pensava que
aquele tipo de semente lhe proporcionara uma
energia infinita.
Neste momento de reflexão, Gan é
surpreendida por uma figura de uma criança, uma
menina de no máximo três anos, parada à beira
56
do rio de sangue que por ali passava. Gan se
aproxima, e a menina de costas, parecia estar
apreciando os corpos que passavam flutuando por
aquele rio de horrores.
Mesmo com receio, Gan toca em seu ombro,
já esperando ser atacada de alguma forma por
aquela menina. Mas isso não acontece. A menina
vira-se.
Um rosto angelical, cabelos loiros cacheados
e faltando um dente em seu sorriso. A menina
olha para Gan com ar de felicidade e diz:
— Oi Gan, que bom que você voltou. Estava
com saudades. Perdi meu cachorro, acho que ele
se afogou ali. — Diz a menina apontando com seu
indicador esquerdo para o outro lado do rio.
Gan se surpreende, pois nunca tinha visto
aquela criança antes, e ela a reconheceu e ainda a
chamou pelo nome. Mas antes que Gan pudesse
perguntar algo a ela, a menina olha novamente
para Gan e mais uma vez fala:
— Gan, me pegue no colo. Quero achar meu
cão.
Sem reação, diante da surpresa, Gan se
afasta lentamente da menina, que lhe estende a
mão e esbraveja:
57
—Quando eu era grande te pegava no colo
sem reclamar, sua ingrata!
O semblante da menina muda, e Gan
segura sua espada com força, pensando ser algum
demônio daquele lugar tentando lhe enganar. O
vento sopra forte, com um ar quente dessa vez. A
criança encara Gan com expressão de ira.
Gan fica sem reação. E antes de pensar
realmente no que fazer, aquele vento que cortava
a cena se intensifica, e Gan tem dificuldades de
ficar em pé.
A menina, que trajava um macacão rosa
com desenhos floridos, cai pra trás, à beira do rio
de sangue. Gan é tomada por uma inércia que não
à deixa correr pra ajudar a criança, que cai no rio.
Ela se desespera, e consegue chegar à beira do rio
com dificuldades. Olha ao redor e nada vê. Nem
um sinal da menina. O vento cessa. Gan sente
uma tristeza imensa ao olhar para aqueles corpos
passando e não ver a criança.
Neste momento, um silêncio se faz por toda
extensão do lugar. Gan está parada se fazendo mil
perguntas. Entre elas, quem era a menina e como
a conhecia. Perto de seus pés, Gan percebe que a
cor avermelhada do rio começa a borbulhar.
Ela se agacha na tentativa de ouvir o que
parecia alguém tentando falar "debaixo d'água".
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Gan colocasse mais perto e nada escuta. Ela
voltasse para o rio, e mesmo com a cor vermelha,
vê seu reflexo deformado refletindo no sangue. Ela
não se intimida, e encara à si própria naquela
forma horrenda.
Eis que de repente, daquele mesmo reflexo,
surge uma mão que segura no pescoço de Gan
com força. Um demônio saí do rio voando com
Gan presa em sua mão. No susto, Gan deixa cair
sua espada, na beira do rio, e se vê rendida nas
mãos daquele que ela não sabia quem era.
Este era Marduck. Um demônio impiedoso.
Ele a observa mantendo—a sufocada, ela tenta se
desprender enquanto ele sobe mais e mais. Com
certo deboche, o demônio, que escondia o rosto
dentro de um capuz preto, diz:
— Então você está viva pequena Gan. Não
esperava por isso. Você deveria ter morrido na
explosão junto com sua irmã.
Gan com muita dificuldades, consegue
resmungar:
— Quem... Quem é você, e o que sabe...
Sobre Gira?
59
O demônio ri. Ele solta Gan no ar. Ela em
queda livre se desespera com medo da morte. Mas
antes de tocar o chão, é segurada por Marduck,
que lhe diz:
— Você não poderia ter morrido daquela
vez? Agora vem aqui pra me dar mais trabalho.
Por onde esteve durante esse tempo todo?
Gan percebendo uma chance de enrolar o
demônio e tentar chegar até a sua espada que
estava logo atrás dele, diz:
— Eu estava no passado. Resolvendo
algumas coisas.
O demônio mais uma vez ri. E sem hesitar,
ataca Gan com um soco no estômago. Ela cai de
joelhos com as mãos na barriga. Olha pra sua
espada por entre as pernas cinzentas da criatura e
deita fingindo estar desacordada. Ele a observa e
balança a cabeça negativamente e pensa em
terminar logo com aquilo. Gan espera o demônio
dar a volta por ela sem entender o que ele
pretendia e na primeira chance, ela corre quase
que rastejando na direção da espada.
Ela a agarra com precisão e se vira
rapidamente quase que ainda deitada, na espera
de ser atacada.
60
Mas Marduck sumiu.
Ela fica de pé olhando para todos os lados
aleatoriamente se ver nada.
O demônio está no céu, flutuando, com suas
asas negras em contraste com o vermelho do céu,
acima da cabeça de Gan.
— Eu também possuo uma espada. -]— Diz
ele olhando para Gan retirando-a de suas costas,
como se seu coro fosse uma bainha.
Os dois travam uma luta incrível. O demônio
sempre com vantagem e brincando com Gan,
deixando-a às vezes, acertar—lhe e mostrando pra
ela o ferimento se fechar na mesma hora. O
demônio não poderia morrer, pois já estava
morto. Gan não se cansa de rasgar-lhe e logo ele
se refazer como mágica.
A criatura sempre dizendo que ela não pode
com ele e se esquivando, e por vezes não, dos
golpes fulminantes de Gan que já não sabe o que
fazer. E ela luta sem parar com Marduck, que
declara seu nome para Gan dizendo pra ela
guardar bem, pois ainda ouviria falar muito dele.
Em um momento crucial, Marduck ataca
Gan sem piedade, e a arremessa pra longe. Gan
levanta-se como se nada tivesse acontecido e se
limpa olhando para o demônio. Ela revida o ataque
61
com a mesma intensidade, que acaba por retirar,
sem querer, o capuz preto que escondia o rosto do
demônio.
Gan fica desesperada. Marduck tinha uma
cicatriz no rosto, muito conhecida para ela. A
mesma de quem matara seu pai no passado. Ela,
mesmo tão pequena no dia do ocorrido, consegue
lembrar de seu irmão Koji chorando muito ao ver
seu pai sendo morto, e logo em seguida, o
samurai que o matara, montar em seu cavalo e
deixar exposta uma cicatriz inconfundível. Era
Marduck.
— Você? Como é possível? — Diz ela.
— O que foi pequena Gan, viu um
fantasma? — Diz o demônio rindo muito.
Gan sente o coração bater mais forte,
começa a suar intensamente, e perde os sentidos
aos poucos. Marduck levanta sua espada, e
quando tenta atacar Gan com um golpe
fulminante, ela simplesmente some no ar.
O demônio mantém sua espada abaixada, e
olha para todos os lados e não a encontra.
Ela se foi.
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63
Capítulo V
O Soldado Dorian
―— Obrigado. — Ele diz apenas levantando a
cabeça olhando em direção a Luna.‖
64
oite fria. Ventos fortes balançando as
árvores impedem Luna de dormir. Ela
vira—se de um lado ao outro na tentativa de
descansar.
Luna pensa em seu pai, que após te-la
deixado ali, nunca mais mandou nenhum tipo de
notícia. Algum tempo já se passou e sua
preocupação apenas aumentou. Ela pensa também
em Gan, que sumiu misteriosamente sem deixar
pistas após as duas dormirem abraçadas na noite
em que seu servo traidor fora morto por ela.
Em meio a seus pensamentos, Luna é
interrompida por um barulho na porta. Batidas
fortes e pedidos de ajuda ecoam por aquela
madrugada difícil. Luna se assusta e junto com
todos seus servos que também acordam, desce
até a porta na tentativa de saber quem é.
Uma voz rouca e uma respiração ofegante
do outro lado suplica:
—Me ajude, por favor!
Luna olha para um servo e diz pra ele abrir
a porta. Este pergunta se ela tem certeza e após a
afirmação, abre a porta ainda sendo balançada
pelos socos e batidas. Um homem cai.
— Obrigado. — Ele diz apenas levantando a
cabeça olhando em direção a Luna.
N
65
Ela pede para o recolherem para dentro e
fecharem a porta. Os servos assim o fazem. Eles o
colocam deitado. Todos percebem que ele é um
soldado, devido a sua farda surrada e sua arma de
fogo. Luna se aproxima do soldado e percebe que
ele apenas dorme, e não encontra nenhum
ferimento sequer. Ao mexer em seus bolsos a fim
de descobrir quem ele é, Luna leva um susto ao
mesmo tempo em que ele acorda também muito
assustado e se coloca de pé rapidamente
perguntando:
— Onde eles estão?
Os servos de Luna o rendem e pedem para
ficar calmo. Luna se recompõe do susto e
pergunta o seu nome. O soldado ainda ofegante e
com os olhos aparentemente mais azuis do que
eram, diz:
— Dorian. Soldado Dorian.
Era um soldado do novo exército japonês,
com seus 1,86 de altura e pele clara, mas muito
diferente dos japoneses por ser um ocidental,
vindo de um país do outro lado do mundo, o
Brasil.
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Antes mesmo de Luna o questionar, ele
explica que estava fugindo de um grupamento da
tropa inimiga e avistou a grande casa, e sem
opções acabou vindo na direção dela.
— Eles os viram entrando aqui? — Luna fica
preocupada.
Pois se os soldados o seguirem poderiam
atacar sua casa.
— O coloquem pra fora! — Diz ela
imediatamente num gesto sem pensar – E não
volte mais aqui!
Dorian se desespera dizendo que a tropa
inimiga irá mata-lo. Ele implora para Luna o
abrigar. Antes de ser totalmente posto pra fora,
Luna se arrepende e com pena daquele soldado,
pede pra que o soltem.
O soldado agradece muito e diz que não
pretende ficar por muito tempo. Luna, mesmo com
receio, diz que ele pode ficar o quanto precisar.
Após o acontecido, Luna está sentada à
beira da escada, onde podia-se ver toda a
extensão do lugar, pensando em tudo que havia
acontecido com ela. A guerra sem sentido entre os
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clãs ainda existentes de Samurais, seu pai, Gan, e
agora Dorian.
Ela se perde em seus pensamentos e
preocupações tentando descobrir o motivo disso
tudo. Como se tudo que acontece tivesse uma
razão exata. Isso ela não sabia. Tinha certeza
apenas que sofria com a ausência do pai, com a
guerra em sua visão, inútil, e também com o
sumiço de Gan que foi tão misterioso quanto o seu
aparecimento.
Luna chora sem ao menos saber
exatamente porque. Se entrega e coloca pra fora
tudo que estava sentindo naquele momento.
Chega até a pensar em sua mãe, que a deixou
ainda jovem. Dorian percebe que algo está errado
com Luna.
— Posso me sentar? —Pergunta ele.
— Pode, claro — Diz Luna secando suas
lágrimas.
Os dois ali ficam conversando por horas.
Luna conta toda sua história e o motivo de estar
refugiada ali naquele lugar distante. Dorian por
sua vez explica como conseguiu ingressar no novo
exército japonês após os fim da Era dos
Xogunatos, e que descendia de uma família
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portuguesa muito importante que residia no Brasil,
país esse que Luna nunca tinha ouvido falar.
Algum tempo se passa e Dorian acaba
ficando na casa servindo com companhia a Luna
ajudando-a esquecer daquele sentimento de
angustia sem ter noticias do que acontece no
restante do país e a seu pai.
Os dois se apaixonam e vivem em um curto
prazo de tempo, um grande amor. Para Luna, era
tudo que ela sempre quis, porque de certa forma
sempre sonhou em encontrar uma paixão ao
acaso, pois até então não havia tido ninguém.
A esta altura, Luna já se sentira
abandonada por seu pai, e resolve junto com
Dorian, sobreviverem do plantio e caça, pois ali
onde residiam existiam uma abundância de opções
para poderem viver bem. Eles assim o fazem e se
sentem felizes por terem se encontrado.
Luna faz planos de um dia voltar a cidade
com a ajuda de Dorian para buscar notícias de seu
pai, e estranha o fato dele sempre dizer que não
era uma boa idéia. Isso a intrigava, mas nunca a
impediu de viver bem com seu grande amor.
Algumas luas se passam, as dúvidas de
Luna adormecem, os desejos se calam e as
vontades são esquecidas em meio a sua felicidade.
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Capítulo VI
O Ódio de Luna
―— Quem é ele? — Ela o encara e pergunta com
voz firme.‖
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an abre os olhos. Está deitada no meio
de um matagal enorme. Tudo que vê é
a serração cobrir toda extensão. Se levanta com
certa dificuldade e olha para o céu. Noite fria,
escura e sem lua. Ela pensa em sair dali, mas não
sabe nem em que direção ir. Respira fundo e corta
alguns matos com sua espada afim de ver algo
mais à frente.
Consegue ver algumas luzes bem ao longe e
vai na direção delas. Durante o percurso, Gan
sente algumas tonturas e por vezes escuta vozes
chamando seu nome, o que parecia ser a voz de
sua mãe. Ela procura de onde vêm aquela voz e
não encontra.
Ela segue em direção ao desconhecido
determinada e encontrar suas respostas que tanto
procura. Gan se lembra de Marduck e de sua
cicatriz. Pergunta-se como ele pôde matar seu pai
e depois estar no futuro.
Lembra também da batalha que os dois
travaram e não consegue se lembrar de como teve
fim aquela luta. Apenas revê a cena onde Marduck
levantava sua espada e após baixa-la, ela acordar
ali onde estava agora.
Ela caminha rápido por entre os perigos da
mata. Ao chegar mais perto das luzes que seguia,
percebe algo: Era a Casa Grande de Luna.
G
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Gan sente uma certa felicidade de estar de
volta ao passado, inclusive ao pensar em
reencontrar Luna.
Ela caminha em direção à casa. Todas as
luzes se encontram apagadas, menos uma. A luz
da varanda reflete duas pessoas conversando. É
Luna e Dorian. Os dois estão bebendo vinho entre
risos e gargalhadas.
Luna está ao lado dele sentada observando-
o falar sobre seus companheiros feridos da guerra,
que ele era um homem do ocidente que estava ali
há pouco mais de seis anos e o quanto sofriam em
seus primeiros treinamentos como recrutas.
— Não conhece meu pai? Ele foi nomeado
Major exatamente há seis anos. — Pergunta Luna.
— Sim, eu o conheço, claro. Somos do
mesmo exército, mas não faço parte de seu
grupamento, contudo o respeito muito. Major
Silver é um grande homem. — Diz Dorian em um
tom quase que duvidoso, parecendo disfarçar.
Gan se aproxima mais. Ao pisar em um
galho seco é percebida pelos dois que estavam na
varanda. Dorian rapidamente empunha sua arma
de fogo e aponta em direção a Gan, levantando-se
rapidamente.
73
— Pare! – Esbraveja ele. — Quem é você?
Ao ver aquela garota coberta de sangue e
com uma espada nas mãos, Dorian, sem pensar,
atira para matar. Luna surpresa ao ver Gan, pouco
tempo têm para evitar a tragédia. Mas assim o faz
empurrando a mão de Dorian para o lado contrário
de onde estava Gan.
Não atire Dorian! – Diz ela já o
empurrando-o.
Por pouco Gan não é atingida. Esta por sua
vez corre em direção a Dorian para atacar. Luna
se põe na frente do soldado e pede para Gan
parar. As duas se olham. Luna olha dentro dos
olhos de Gan como se pedisse para ela não
prosseguir. Gan por sua vez, solta a espada no
chão e abraça Luna com força. Dorian fica sem
entender, mas nada faz.
— Onde você esteve? — Pergunta Luna com
lágrimas nos olhos — Senti muito a sua falta.
Gan apenas a aperta mais sobre seu corpo e
olha para Dorian que está atrás de Luna.
— Quem é ele? — Ela o encara e pergunta
com voz firme.
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Luna se solta de Gan e percebe suas roupas
sujas de sangue.
— É um amigo — diz Luna olhando para
Dorian.
Ele a cumprimenta e ela apenas o observa
com desprezo. Os três adentram à Casa Grande.
Após o susto, e depois de Gan banhar-se e
estar devidamente acomodada por Luna, esta
questiona o paradeiro de Gan. Ela nada diz e pede
para Luna deixa-la descansar. As luzes se
apagam.
Gan está deitada numa cama quente e se
lembra das risadas que ouvira de Luna ao
conversar com Dorian na varanda. Ela tem raiva.
Vira-se para o outro lado e adormece.
Ela acorda no meio da madrugada, e escuta
sussurros vindos do quarto ao lado. Era o quarto
de Luna. Ela resolve investigar, pega sua espada e
caminha lentamente até lá.
Já na porta do quarto, ela escuta Luna
sussurrar o nome de Dorian, e ele responder da
mesma maneira.
Gan é tomada por uma força descomunal, e
sem hesitar, adentra no cômodo levando consigo a
porta ao chão. Sem muito tempo para reagir, Luna
apenas cobre-se com o lençol.
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Dorian fica sem reação também, e não têm
sua arma de fogo ao alcance. Gan está furiosa. Ela
olha aquela cena e sente sua mão doer ao apertar
com força sua espada.
— O que pensam que estão fazendo? — Gan
diz com sangue nos olhos.
Antes mesmo dos servos de Luna chegarem
para ajudar, Gan crava sua espada no peito de
Dorian e força até atravessar a parede, e ela o faz
gritando de ódio.
— Aghhhh!
Sangue. Dorian agoniza olhando para Gan.
Luna fica em estado de choque ao ver aquela cena
e sai da cama sem mesmo saber como.
Dorian morre com os olhos abertos e cheios
de lágrimas, com a espada de Gan fincada em seu
coração que finalmente, tinha encontrado alguém
para amar. Luna chora muito.
Gan enfurecida olha para Luna que está no
chão do lado da cama. E ao tentar se aproximar
dela é rendida por quatro servos de Luna, mas
não antes de arrancar o braço de um deles com
um golpe de espada. Este grita de dor.
76
A cena que se segue é a de Gan sendo
levada ao porão da Casa Grande e amarrada lá
por ordem de Luna, que consegue sentir nesse
momento apenas ódio daquela que um dia foi sua
abrigada. Luna está inconformada com o ocorrido
e mal consegue pensar sobre o que fazer, só sabe
que precisar descansar e chorar.
Luna se banha com dificuldades, pois não
consegue conter as lágrimas ao lembrar-se de
Dorian em seus momentos felizes. Ela sente
também pelo escravo que morreu após ter perdido
muito sangue ao ficar sem um dos braços.
Após conseguir se recompor um pouco, ela
deseja que Dorian tenha um sepultamento digno,
e manda que seus escravos aprontem uma
cerimônia para homenagear aquele que a fez
sentir, pela primeira vez, uma mulher de verdade.
Chove forte no quintal da Casa Grande.
Luna está vestida de preto diante do caixão
improvisado onde o corpo de seu amado reside.
Ela chora e suas lágrimas se misturam com a água
que corta seu rosto. Alguns servos estão em volta
observando a cena entristecidos.
— Tragam Gan até aqui. — Diz Luna
prendendo o choro.
Mesmo surpresos, eles assim o faz.
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Gan está debilitada, há quase um dia inteiro
amarrada em uma só posição sem beber e sem
comer. Ela mal levanta a cabeça ao abrirem a
porta do porão que traz junto a claridade e o
barulho da chuva. Gan é levada, sem nem mesmo
reagir, até o local da cerimônia.
Ela é posta diante do caixão de Dorian.
— Olha o que você fez — Luna sem nem
olhar para Gan começa a falar sobre o seu
sofrimento, sabendo que ela pode ouvi-la mesmo
estando com a cabeça baixa.
Tomada pelo ódio e diante do silêncio de
Gan, Luna corre na direção dela e a soca no
estômago, fazendo-a ajoelhar em cima do caixão.
— Você destruiu minha vida! — Luna a
espanca gritando de dor e ódio, até ficar sem
forças.
A chuva continua a cair. Já muito fraca
Luna cai abraçando as pernas de Gan e chorando
muito. Gan perde a consciência apanhando sem
dizer uma palavra.
— Levem-na de volta ao porão e a deixem
lá até apodrecer! — Diz Luna aos prantos.
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Ela termina a cerimônia dando um abraço e
beijando seu amado.
— Me perdoe Dorian, eu não pude te salvar
— Luna diz suas últimas palavras e se despede pra
sempre.
O caixão é fechado, e o mesmo é descido a
cova aberta naquele quintal imenso pelos seus
servos, enquanto Luna observa atônita.
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