FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA MEMÓRIA E DA REPRESENTAÇÃO ARQUITETÔNICA E URBANA
CORRÊA, BRUNO.C.(1); FALUBA, LEANDRO.A.(2); MARCOLINO, RÔMULO.N(3); MASCARENHAS-
PEREIRA, ANDRÉ(4); SILVA, REGINA.H.A(5); URVOY, PHILIPPE(6)
1- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email:
2- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected]
3- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email:
4- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email:
5- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected]
6- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected]
Resumo A presente proposta de trabalho pretende estabelecer uma reflexão, a partir de alguns estudos de caso, sobre as fontes e os documentos que possam permitir um trabalho historiográfico sobre a memória e a representação urbana. Partimos da constatação da filósofa francesa Anne Cauquelin em que tempo e memória não são meros elementos decorativos dentro das cidades, mas constitutivos do espaço urbano. A memória urbana, dessa forma, não seria uma matéria inerte e abstrata, mas um elemento arquitetural em si, tão concreto como as paredes dos edifícios. No fim dos anos 1980, Cauquelin constatava a dificuldade dos urbanistas em lidar com a temporalidade do urbano. Alguns anos depois, o historiador francês Antoine Prost observava a dificuldade dos historiadores em abordar o tema da cidade contemporânea, preferindo analisar as formas urbanas mais antigas. Essas duas observações, que dialogam entre si, evidenciam a existência de uma fratura entre a teoria contemporânea do urbano e a teoria histórica e, de forma geral, entre a cidade e suas temporalidades. Pensamos ser possível uma história do urbanismo e da arquitetura que privilegie não somente o olhar dos profissionais e/ou planificadores - o que Michel de Certeau chamou de « modos coletivos de gestão da cidade » - mas que leve em conta a perspectiva dos usuários da cidade que, percorrendo diariamente suas ruas e praças, também participam da escrita de sua história. Palavras-Chave: história; arquitetura; fontes históricas
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
Introdução
A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a
dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com a temporalidade do espaço urbano
(CAUQUELIN, 1982, p.10). Alguns anos depois, o historiador Antoine Prost observava a
dificuldade dos historiadores em abordar o tema da cidade contemporânea, preferindo refletir
sobre formas urbanas mais antigas (PROST, 1999, p.121). Essas duas observações que
dialogam uma com a outra evidenciam um fato: a existência de uma fratura entre a teoria
contemporânea do urbano e a teoria histórica, e mais geralmente entre a cidade e sua
temporalidade.
Uma possível pista para entender estra fratura poderia nos ser dada por Michel De
Certeau, que considera a cidade contemporânea como fruto de um discurso utópico que impõe
um “não tempo”, uma ilusão de sincronia que substitui “a resistência das tradições e dos tempos
individuais”. Em seu trabalho, De Certeau opõe à visão da cidade totalizadora produzida por
este discurso utópico, visão “panóptica e teórica” dos planificadores urbanos, uma outra
perspectiva, uma “cidade transumante, ou metafórica”, “não-planejada” (DE CERTEAU, 199,
p.142), feita dos “fragmentos” que o próprio usuário “preleva” e “atualiza” discretamente, no seu
cotidiano, para reusar as palavras do Roland Barthes (BARTHES, 1985, p. 268).
Estas duas perspectivas nos parecem produzir dois tipos de narrativas sobre o urbano,
fruto de temporalidades distintas. Por um lado, podemos identificar um discurso oficial e
totalizador – ele mesmo constituído por uma pluralidade de vozes que geralmente se articulam
em rede uma com as outras: discurso urbanístico, técnico, policial, discurso dos representantes
do poder municipal etc. Por outro lado, seguindo a ideia do De Certeau, os gestos e falas dos
moradores produzem outra escrita do espaço urbano, historicamente esquecida ou silenciada, o
que Anne Cauquelin chama de “discurso obliquo” sobre a cidade. Se ambas narrativas
participam, cada uma à sua maneira, da construção da cidade, podemos dizer que através de
uma “luta de representação” (CHARTIER, 1990, p.17), decorrente dos conflitos sociais que
permeiam o espaço urbano, a primeira se impôs historicamente como “discurso de verdade”
(FOUCAULT, 1971, p.21) sobre a cidade, objeto de perpétua disputa.
O presente trabalho pretende pensar como essas lutas de representações sobre o
urbano se traduzem dentro das fontes que se oferecem ao historiador da cidade. De qual forma
a escrita historiográfica pode articular entre si essas distintas narrativas e temporalidades sem
reproduzir o discurso “oficial” – as vezes onipresente nas fontes – ou ainda produzir um novo
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“discurso de verdade”, igualmente totalizador, que apagaria as temporalidades obliquas diante
do tempo único e linear do discurso historiográfico?
Para refletir sobre a articulação entre essas narrativas dentro das fontes, o presente
trabalho pretende expor alguns estudos de caso tirados das pesquisas realizadas pelo NECH –
Núcleo de Estudo Cidade e História – baseado na UFMG. Cabe ressaltar que não pretendemos
aqui, de forma alguma, postular uma dicotomia absoluta dos discursos sobre a cidade, ou
afirmar que existiriam duas superestruturas discursivas sobre o urbano, totalmente coesas e
homogêneas – uma que viria “de cima” e outra “de baixo”. Inclusive, nos parece que estas duas
narrativas podem se encontrar entrelaçadas dentro de uma mesma fonte ou de um mesmo
discurso. Pensamos, no entanto, que fazer uma distinção entre elas pode ser uma ferramenta
para pensar os silêncios que permeiam as fontes existentes sobre o espaço urbano assim como
pensar em novos suportes que permitiriam ao historiador acessar as diversas temporalidades
que se cruzam dentro da cidade.
A ideia do trabalho aqui proposto gira em torno da proposta de realizar a discussão
sobre diferentes formas de ver e investigar a cidade enquanto objeto de estudo. Tentaremos
perceber como Belo Horizonte se construiu como uma cidade que se divide entre o discurso
oficial, o censo comum do mito de origem, e a cidade real que vivenciamos no cotidiano, com
seus conflitos e dicotomias. Uma cidade que vive desde o princípio sob a batalha entre
modernidade e tradição.
Soma-se a nossa proposta, a pesquisa feita sobre as reforma urbana do Rio de Janeiro
em 1903. Verificam-se que tais empreendimentos não se deram apenas na reformulação de
ruas, edifícios e avenidas, mas na tentativa de espacializar os preceitos de civilização e
progresso. Por um lado vemos a missão de técnicos e políticos de conferirem sentido a tais
reformas e por outro criticas de intelectuais que julgavam a reforma muito aquém dos grandes
centros civilizados além de acusarem que as reformas não passavam de um processo de
demolições que transtornava a cidade e seus moradores.
Tentando explorar as diferentes maneiras de se olhar para as fontes que auxiliam no
estudo dos espaços urbanos, buscaremos também compreender as diferentes batalhas de
memória que estão envolvidas na criação de marcos cronológicos e na produção de discursos
oficiais no município de Campanha, no sul de Minas. A dualidade entre a visão de decadência
que é adoptada pela elite local, em contraponto à capacidade dos mesmos de serem os
responsáveis pelo reerguimento da cidade.
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Finalizando o presente exercício sobre discursos proferidos na cidade, nos dirigimos a
cidade de Belo Horizonte no ano de 1964, marcado pelo golpe militar no Brasil. Este ano
também demarcou na capital mineira uma intensificação de movimentos sem teto na busca pela
moradia e pela politica de remoção destas pessoas, praticada pelo DOPS. De um lado depara-
se a memória destes moradores que foram removidos, que se entrecruzam com sentimentos e
experiências que buscavam espaços para habitar. No outro oposto um discurso técnico, feito
pelos relatórios do DOPS que justificavam a remoção destas pessoas, muitas vezes os
identificavam como pessoas que transgrediam a ordem e de condutas politicas contrarias ao
regime ditatorial.
Belo Horizonte: o surgimento de uma cidade dividida entre o oficial e real
Com o fim do império no Brasil em 1889, tentam-se criar novas formas de representação
que produzam um novo imaginário político ligado à República recém-nascida. De acordo com
José Murilo de Carvalho, novos signos são criados para criar laços entre o novo sistema político
e a população brasileira. Para o autor,
(...) embora em escala menor do que no caso francês, também houve entre nós uma batalha de símbolos e alegorias, parte integrante das batalhas ideológica e política. Tratava-se de uma batalha em torno da imagem do novo regime, cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos. (CARVALHO,2011, p.10)
Em Minas Gerais, o novo governo inicia um projeto de transformação econômica do
estado, baseado em três empreendimentos principais: incentivo a empresas privadas para a
expansão das linhas férreas e das rotas de navegação fluvial, melhorando a comunicação entre
as diversas regiões do estado e possibilitando melhor escoamento da produção agropecuária;
criação de colônias agrícolas, organizadas e tuteladas pelo governo de Minas e criadas com o
objetivo de atrair imigrantes europeus para as terras mineiras, fornecendo mão de obra para a
cafeicultura e possibilitando a evolução técnica da produção através do contato com técnicas de
cultivo diferentes das praticadas no Brasil; e por último a construção da Nova Capital de Minas
Gerais, que deveria servir como exemplo do processo de modernização urbana pelo qual o
estado deveria passar, de forma a se adequar ao novo mundo que surgia (AGUIAR,2006, p.
32).
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A futura Cidade de Minas seria o ponto de rompimento com a antiga capital provinciana,
Ouro Preto, rompendo desta forma com o passado Imperial e com os símbolos do sistema
político que se queria superar.
Tendo em vista esse projeto de modernização econômica, o governo estadual pôs em
prática o plano de construção de uma nova capital que substituiria a antiga Ouro Preto, capital
do estado ligada a tradição imperial brasileira. Com a nova capital, buscava-se centralizar um
modelo de modernização da economia e da sociedade de Minas Gerais, de forma a alavancar o
desenvolvimento de todas as regiões do estado.
Atendendo ao interesse de vários grupos políticos divergentes, a nova capital seria o
modelo de modernização para todo o estado, servindo como ponto central da nova rede de
transportes que se pretendia criar, além de apresentar-se como modelo do sistema de colônias
agrícolas, exercendo o papel de centro criador de novas práticas na agricultura (AGUIAR,2006,
p.32).
A construção da nova capital, à época batizada como Cidade de Minas, foi tocada pela
Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), chefiada pelo engenheiro Aarão Reis,
claramente influenciado pela ideologia positivista, a qual foi serviu de inspiração na construção
da capital. Reis foi o engenheiro responsável pela elaboração do projeto da nova capital,
inspirada pelo modelo de cidade adotado em Washington, nos Estados Unidos. A cidade a ser
construída deveria contar com amplas avenidas e traçado geométrico, ordenada dentro dos
preceitos mais modernos da higiene e saúde pública. Seria uma cidade asseada, planejada
para ser um exemplo da modernidade e da capacidade de organização do povo mineiro.
O processo de construção da Cidade de Minas se deu à custa da destruição do Curral
del Rey, vilarejo que ocupava a região destinada à nova capital. Os antigos barracos foram
derrubados e deram lugar a prédios e avenidas que compuseram o cenário da cidade,
destinada a ser uma grande metrópole.
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Imagem 1 - Capela do Rosário 1895 - Arquivo CCNC - APCBH
Imagem 2 – Inauguração de Belo Horizonte – Arquivo CCNC - APCBH
A cidade planejada para a modernidade, entretanto, apresentava uma característica que
seria fundamental para sua história: os primeiros moradores da cidade deveriam ser os
funcionários públicos e a elite econômica mineira, grupo sociais que trouxeram junto consigo as
antigas tradições e costumes de Ouro Preto e de outras cidades do interior do estado.
Criou-se, desta forma, uma dicotomia entre a cidade planejada e moderna e os
moradores ligados às tradições da elite econômica de Minas Gerais. A cidade era ao mesmo
tempo moderna, pela vocação, arquitetura e construções e tradicional pelo povo, que veio
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majoritariamente do interior de minas. Essa diferença esteve presente na história da cidade e se
tornou uma das principais características de Belo Horizonte.
Como afirma Berenice Guimarães, a nova capital mineira convive com uma cidade
‘oficial’, em oposição à cidade ‘real’ (GUIMARÃES, 1991. p.03). A cidade criada para os
funcionários do governo estadual e para os membros da elite do estado era habitada também
por imigrantes europeus, negros e migrantes de outras regiões brasileiras. Pessoas que vieram
participar da construção do novo símbolo do estado na era republicana e por aqui ficaram, se
tornando parte da cidade que surge em meio à poeira das obras.
Rio de Janeiro: polo cívico e civilizador
O exercício que será proposto a seguir, propõem refletir sobre o papel e função dos
discursos que são construídos diante da reforma urbana ocorrida no Rio de Janeiro. Em 1903 o
presidente da República do Brasil, Rodrigues Alves, designou o prefeito, Francisco Pereira
Passos para empreender as reformas necessárias na capital do país. Nesse panorama,
observa-se que as intenções do presidente da República delinearam duas frentes de trabalho
essenciais no Rio de Janeiro entre 1903 e 1906: a reforma de Pereira Passos, que no cargo de
prefeito se foca na área urbana, e a de Francisco Bicalho, que se concentraria apenas na área
portuária.
A reforma empreendida por Pereira Passos buscou também desenvolver um aspecto
cívico e civilizacional no espaço urbano. Compreendendo que estes tipos de ações sob a
cidade correspondiam a um imaginário vigente em um período que se insere na virada do
século XIX para o XX, verificar-se-á que tais reformas não se restringiram apenas a propostas
funcionalistas, tais como a salubridade e higienização pública, à regulamentação de atividades
econômicas, mas um conjunto de expectativas e crenças nas quais suas capitais seriam o lócus
do civismo por excelência. Esta prerrogativa foi um importante elemento na tentativa de se
buscar a consolidação do estado e a inserção de seus países nos rumos da civilização e do
progresso.
Baseado nas concepções técno-científicas que estavam em voga no século XIX e XX,
intelectuais, técnicos e políticos, acreditavam que a cidade viria a ser o lócus capaz de
condicionar seus cidadãos aos novos preceitos civilizacionais. Para Leonardo Benévolo
(1993), a capital reafirmada dentro dos novos parâmetros de civilização, acentua-se como
berço da nação e se concretiza como sede do progresso e da ordem a ponto persuadir distintos
territórios e sua população.
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O debate cultural da segunda metade do século XIX e dos primeiros decênios do XX segue centrado nos temas que se puseram em evidência no confronto internacional: o choque com a tradição passada, o equilíbrio entre esfera pública e privada e, finalmente, a continuidade do papel aristotélico da cidade como instrumento para conseguir a perfeição da existência humana no mundo industrializado
(BENÉVOLO, 1993, p.205)
Debruçando sob esta análise, torna-se pertinente refletir sob a forma da qual se
construíram significados que agregavam um sentido a tais transformações. Obviamente como
aponta Benévolo, os espaços tem um elemento capaz de disciplinar e persuadir. Porém,
somado a esta função aristotélica da cidade, confere-se que se proferiram um repertorio de
discursos feitos por políticos, intelectuais que buscaram justificar às remodelações urbanas e
difundiram a imagem de suas cidades. O discurso destes indivíduos constituiu-se como um
elemento essencial que proporcionou a estas grandes capitais a propriedade de simbolizar o
conceito de civilização e o progresso.
Não obstante, também deverá ser identificado que estas representações acerca da
cidade, embasadas pelo referencial de civilização e progresso, refletiram um imaginário que
começava a se vigorar no período, mas, por outro lado, geraram resistências e conflitos. Desta
forma, busca-se compreender as reformas urbanas enquanto um conjunto de ações colocadas
em prática não apenas por uma elite política, mas como um desígnio de vários agentes sociais.
Se em certos aspectos tais reformas foram projetadas a fim de materializar expectativas e
utopias correspondentes a um imaginário social, em outros, surtiram de forma mais impositiva e
autoritária, resultando em situações de tensões e embates com outros setores da sociedade.
Seguindo as premissas embasadas em doutrinas positivistas e liberais, encarava-se a
cidade enquanto polo cívico deveria ser atrativo, um modelo a ser seguido que materializava a
organização para o trabalho e o refinamento de hábitos civilizados. Tal fato pode ser
identificado nas palavras do presidente Rodrigues Alves em seu discurso de posse em 1902 ao
se preocupar com as obras de estruturação dos portos e saneamento do Rio de Janeiro, capital
da República:
A capital da Republica não pode continuar a ser apontada como sede de vida difícil, quando tem fartos elementos para constituir o mais notável centro de atração de braços, de atividades e de capitais nesta parte do mundo. Os serviços de melhoramento do porto desta cidade devem desta cidade devem ser tomados como elementos de maior ponderação para esse empreendimento grandioso. Quando se consumarem poder-se-á dizer que a Capital da Republica libertou-se da maior dificuldade para o seu completo
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saneamento e o operário bem dirá o trabalho que lhe for proporcionado para o fim de tanta utilidade.
1
É importante destacar que um repertório de mecanismos foi empregado a fim de
construir a cidade moderna. Não era suficiente, entretanto, apenas a reformulação física da
cidade, mas também o desenvolvimento de uma nova cultura urbana. De acordo com Chartier,
é possível compreender que este tipo de prática resulta em resistências e disputas sociais uma
vez que as formas de (re)significação do mundo são idealizadas e projetadas no seio de uma
determinada classe social: “As representações do mundo social assim construídas, embora
aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos
interesses de grupo que as forjam” (CHARTIER, 1990, p.17).
Seguindo a abordagem sobre a construção de discursos, identificam-se que muitas
crônicas de Revistas Ilustradas eram favoráveis as ações de remodelação urbana, sentimento
que expressava o apoio de alguma parte da sociedade. No seguinte trecho da revista o Malho,
o cronista condena os barracões que se propagam nos morros e infestam o Rio de Janeiro e
parabeniza o prefeito Pereira Passos pelas obras civilizadoras:
(...) não havia limpeza, nem publica, nem particular, nem interna nem externa, bem no corpo nem na alma da pobre Sebastianopolis, a higiene e o asseio eram figuras de retórica ... Mas foi nessa situação de imundice e de andrajos que veio encontrar o reformador ativo e forte que é o dr. Passos, e foi assim que ele resolveu varrer toda essa porcaria e sobre o terreno limpo e saneado levantar melhoramentos que nos honram, que já dizem bem a respeito da nossa cultura e do nosso adiantamento (...) as ruas e praias alargam-se, o calçamento e restaurado a grandes
trechos, as casas oferecem um melhor aspecto , avenidas surgem miraculosamente, há no ar, na gente e nas coisas um tom de alegria, de contentamento, de esperança em ver dentro em breve poder o rio de janeiro dizer-se com razão e sem provocar o riso zombeteiro de nossos vizinhos do prata , que é a primeira cidade da América do sul"
2
A partir da leitura da crônica anterior, da Revista O Malho, constata-se como o cronista
reafirmava o discurso oficial, que se integra a proposta totalizadora e ideal da qual Certeau
problematiza. Entretanto podemos verificar que durante a reforma do Rio existiam visões que se
contrapunham ao oficialismo urbano.
Sobre esta divergência de visões, acerca do urbano, podemos identificar que estes
contrapontos surgiram até mesmo nas representações cartográficas da cidade do Rio. Por um
1 Discurso do Presidente Rodrigues Alves quando anuncia publicamente a realização do que seria a Grande
Reforma Urbana de 1903-1906. para mais ver em: O manifesto inaugural à nação. Correio da Manhã, 16 de
novembro de 1902, também disponibilizado em http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/
2 Cronica, Revista o Malho, 1903 Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
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lado, o prefeito Pereira Passos apresentou um projeto que continha as obras e reestruturações
viárias que seriam implementadas na cidade (Imagem 3), com as avenidas a serem criadas e
alargamento de ruas, que foi chamado de Plano de Melhoramentos da Cidade do Rio de
Janeiro.
Na contramão desta representação técnica da cidade, verifica-se uma charge deste
plano (Imagem 4), ou uma charge de parte da planta do Rio de Janeiro, da qual denuncia-se
não apenas os tumultos provocados pela obra, mas a situação política atual e contradições que
as elites políticas republicanas buscavam impor ao espaço carioca. O autor da caricatura foi
Raul Pederneiras que a publicou na revista humorística Tagarela (25/06/1903) com o título
“Planta da cidade do Rio, seus melhoramentos, sem obras do porto nem nada”.
Imagem 3 - Plano melhoramentos Cidade Rio de Janeiro
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Imagem 4 - Raul |Pederneiras, Revista Tagarela “Planta da cidade do Rio, seus melhoramentos,
sem obras do porto nem nada”. (25/06/1903) Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional –
Brasil.
Além destas caricaturas, existiam outras críticas que condenavam o processo de
modernização urbana realizado na capital do país. Não se tratava de um discurso denunciador
ou antagônico aos projetos oficias, mas uma crítica de que estas ações eram ineficientes e
banais comparadas a demais centros urbanos. Poderiam ser críticas que se direcionavam para
o discurso oficial, questionando os meios, mas muitas vezes direcionados para o mesmo fim,
como no caso da seguinte Cronica publicado na Revista Commentario em 1904:
Acabo de percorrer as cidades de Lisboa, Paris, Berlim, Londres, New-York, Chicago, Búfalo, S. Luiz, Philadelphia, e recolho-me envergonhado à minha cidade natal. Chego a ter duvidas sobre as vantagens da excursão que fiz pelo antigo e novo continente: condennado a viver aqui, não podendo reformar o meio ambiente, antes não conhecesse o que vai por esse mundo de Progresso e de Civilização!
3
O que se pode compreender através destas representações da Reforma realizada no
Rio é que o discurso oficial, balizado por argumentos técnicos, de relações de poder que
conferem autoridade e muitas vezes se impõem de forma inquestionável. As outras formas de
discursos, do qual Cauquellin chama de oblíquos, são frutos de vivencia, experiência e muitas
vezes se contrapõem aos oficiais, como o caso da caricatura feita por Pederneiras na Revista
3 Revista O Commentario. N. 5 2ª série. Set. 1904. & N. 9 3ª série. Jan.1906. Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Tagarela. Nesta charge o caricaturista, mesmo que sob uma ilustração aguçada aplica um
discurso baseado nas suas experiências com o espaço urbano, contrário ao idealizado pelo
trabalho técnico de Passos.
A construção de marcos da cidade por meio dos livros de memórias
Italo Calvino (1990, p. 15-16) ao falar da cidade de Zaíra, afirma que é inútil que o Kublai
tente descrevê-la ressaltando somente seu aspecto arquitetônico, como por exemplo quantos
degraus fazem as ruas em formas de escada, porque a cidade não é feita disso, mas das
relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado. De acordo com ele,
“a cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata.
[…]. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos
ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-
raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes,
esfoladuras. ” A cidade é um objeto polissêmico por excelência, variadas também são portas
como aponta Bresciani, onde o historiador e demais pesquisadores podem escolher por quais
delas aportar, sempre atentos às ranhuras.
Parte de nossa pesquisa se dedica a compreender como memorialistas criaram marcos
cronológicos e sentimentais a respeito do município de Campanha, localizado na região sul do
estado de Minas Gerais na virada do século XIX para o XX e nos anos de 1920, da imagem de
decadência aos discursos de ressurgimento. Como se deram essas construções? Para
compreende-las e desnaturalizá-las, escolhemos duas obras, “Minhas Recordações” de
Francisco de Paula Ferreira de Rezende, concluída em 1893 e “Campanha, 1929”, de Manuel
Casanta, publicada em 1973. Alertamos desde já que ao tomarmos o discurso de “decadência”
e de “reerguimento” da cidade de Campanha, precisamos compreender como foram
construídos, sendo assim, não é do nosso interesse buscar comprovar se a decadência é real
ou não.
Nosso objetivo remete somente à forma com que os atores, nesse caso, as elites locais,
alimentaram nessa virada do Império para República o imaginário de uma cidade decaída,
imagem que vai perdurar por longo período, inclusive como parte de discursos de políticos que
se colocarão a posteriori como capazes de reergue-la. Médicos, intelectuais, políticos,
jornalistas e lideranças religiosas vão se debruçar para entender o que levou à derrocada
daquela que foi uma destacada vila e cidade até a primeira metade do século XIX e, quais as
saídas ou diagnósticos para (re)torná-la a ocupar lugar de centralidade regional e por que não
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dentro do estado de Minas? Esses diagnósticos perpassam sobretudo pela materialidade da
cidade, daí uma série de obras de melhoramentos (iluminação elétrica, linha férrea, calçamento
e abertura de ruas, serviço de água e esgoto, praças, jardins) e regulamentações do espaço por
meio de leis municipais como o Código de Posturas, que acabam também por incidir sobre a
moralidade dos seus habitantes.
As recordações4 seguem o transcurso das vivências do autor, sendo organizada de
maneira cronológica, da infância até a fase adulta, ou seja, com vestígios da memória.
Compartilhando dos valores e de um ideário então em voga no final daquele século, Ferreira de
Rezende insere o seu discurso no movimento de mudanças que se processavam nessa época,
no Brasil e no mundo, particularmente quanto às ideias da incorporação do progresso e do
avanço técnico.
Relembrando a cidade de sua infância, percebia-a como que em descarrilamento com
as mudanças que ocorriam. Tomando como ponto de fuga, por exemplo, a “impossibilidade” da
instalação de vias férreas, devido à sua topografia, o que se ressalta então é a decadência e o
caráter não sincronizado do tempo, entre as mudanças que aconteciam no mundo e a
estagnação que verifica em Campanha. Tempo este, agora, em finais do século, muito mais
acelerado, que Campanha parecia não seguir.
Quatro décadas após passagem pela cidade sul mineira, Manuel Casasanta ambicionou
por meio de um corte cronológico fazer ressurgir a Campanha do ano de 1929, sua intenção era
reconstituir a atmosfera da cidade, o comportamento de sua gente, no entanto, embora queira
dar colorido, comunicar-lhes graça, explica por meio de uma metáfora, que a distância
(temporal) esfuma o quadro, como tempo, amarela sutilmente as fotografias, sendo assim, a
sua reconstituição memorialística não tem a pretensão de ser a tradução daquela realidade,
com o passar do tempo, alguns acontecimentos e personagens perderam a nitidez, ao contrário
da ficção em que Funes, o memorioso de Borges (1989), tudo lembra, a memória de Casanta
se assemelha à fotografia, que é resultado de operações do fotógrafo, manipulando-a entre a
técnica e química, jogo de luz e sombra, seleção de ângulos e etc, descortina-se por meio de
recortes. Diante do atropelo da vida moderna, com tantos estímulos, velocidade e informações,
4 Francisco de Paula Ferreira Rezende, seguiu o caminho da magistratura, além de ser proprietário de terras e de
escravos. Foi juiz, fazendeiro de café e terminou sua vida como Ministro do Supremo Tribunal Federal, no princípio da República. Minhas Recordações é um relato autobiográfico, que lança luz sobre os cenários cotidiano de Campanha e da região sul da província, do Império, como na Capital Rio de Janeiro, por onde registra passagens, ou ainda São Paulo e Leopoldina.
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Mal pude recuperar, em flash-back, alguns instantâneos, simultanemanete remotos e próximos, jacentes nos escaninhos da memória, de permeio a reminiscência de leitura. (CASASANTA, 1973, p.9)
Pela linguagem usada na “Explicação” (introdução a obra) de Casasanta, notamos que o
seu recorte não diz apenas de uma escolha aleatória no tempo. Por que o ano de 1929? Nosso
autor se transformaria em Inspetor Técnico de Ensino em 1935, mas é sobre a Campanha de
1929 que nosso observador fala. Em seu relato uma cidade pacata do interior do Brasil
empreendendo esforços para ser moderna, buscando realizar o percurso da civilização, da
velha para a nova Campanha, remouçada por seus agentes públicos, numa passagem nada
tranquila, pelo contrário, cheia de contradições e embates.
Desde a inauguração do período republicano a família Oliveira assumiu a administração
da cidade, Saturnino, Zoroastro (1909-1927) e Jefferson (1927-1930), ao desembarcar na
Princesinha do Sul, o professor Manuel Casasanta elenca uma série de obras levadas a cabo
por este administrador médico de nomeada, rico, viajado e elegante no vestir, como o lago na
Praça da Estação, a reforma da Praça 13 de Maio e o edifício neocolonial fronteiro a Igreja das
Dores, o inicio do calçamento da cidade, desde o Hotel de dona Ritinha ao Palácio de Dom
Ferrão, abertura da estrada de rodagem para Ponte Alta e com apoio do governo estadual a
rodovia ligando Campanha a Cambuquira. Porém, não deixa de ressaltar o limite razoável de
amor pelas novidades e o temperamento autoritário de Jefferson de Oliveira, segundo o qual,
“não compreende a existência de vozes discordantes. Ama a urbs, despreza a civitas, na feliz
distinção do Desembargador Manoel de Vilhena”. (CASANTA, 1973. p.20). A percepção de
uma modernidade incompleta que se constituiria em Campanha é sintetizada na fala do
professor ao descrever o Colégio de Sion, que exibe o selo da civilização francesa na
arquitetura e jardins, mas que no fundo, as catas, onde vagueiam lobos, advertem-nos que
pisamos chão mineiro.
Apesar de declarar seu carinho pela adorável Campanha, a escrita de Casasanta é mais
maleável do que aquela que notamos em memorialistas e historiadores “da terra”, é um
estrangeiro, no sentido de ser de outro lugar, o que não lhe tira nem lhe confere maior mérito,
porém, decerto produziu uma visão diferenciada sobre o hábitos, costumes e o cotidiano da
sociedade campanhense. É em uma viagem de trem, símbolo maior da modernidade naquele
tempo, que inicia no dia 8 de abril de 1929 o curta-metragem do professor Casasanta, enviado
a lecionar na Escola Normal Oficial da Campanha restabelecida pelo Presidente do Estado de
Minas Gerais Antônio Carlos.
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
Bresciani (2002, p.31), recorrendo a Anne Caucquelin (1982), insinua que a experiência
de viver em cidades, no plano da subjetividade, configura antes de tudo uma superposição
pouco ordenada de lembranças, nem todas vividas como experiências nossas, mas tornadas
nossas pela transmissão dessas memórias e lembranças esparsas. Menos espaciais, já que
que conformam um espaço psíquico com poucas probabilidades de coincidir com o espaço
físico da cidade, do bairro, da vizinhança. Espaço afetivo que se desenvolve por fraturas
sucessivas e distorções.
Conflitos sociais urbanos: Entre a memoria e a os relatórios oficiais
Trabalhar acerca dos conflitos sociais urbanos já pressupõe lidar com narrativas e
fontes múltiplas e contraditórias. A própria disponibilidade ou natureza das fontes, ela mesma,
já traduz a dinâmica destes conflitos.
Escolhemos aqui comparar duas narrativas diferentes sobre um mesmo fato: entre
julho de 1963 e abril de 1964, uma série de ocupações de terras são realizadas por sem-teto
principalmente na região Noroeste de Belo Horizonte, em terrenos plantados com eucaliptos
que eram conhecidos por serem propriedade de um deputado.
Mesmo que as invasões tenham recebido diversos apoios, tal como da Federação dos
Trabalhadores Favelados, de militantes estudantes ou de padres de esquerda, são poucas as
fontes existentes sobre os acontecimentos. Dentro da nossa pesquisa, confrontamos dois tipos
diferentes de discursos e fontes sobre os fatos. Por um lado, os relatos de investigação
realizados pelos agentes do DOPS, entre os anos de 1963 e 1964 sobre os fatos – como parte
do discurso oficial sobre os fatos - e por outro lado, o relato de uma moradora que participou da
ocupação de um dos terrenos e da fundação consequente da Vila 31 de Março no local –
ilustração de um tipo de memória obliqua sobre a cidade.
A articulação entre as fontes escritas e orais, cruzadas e confrontadas aqui pelo
historiador, se aproxima à “história impregnada pela antropologia”, mencionada por Carlo
Ginzburg e considerada por ele como indispensável. Esta perspectiva pode nos permitir de
apreender a riqueza do que o autor chama de “o contraste entre a complexidade das relações
sociais reconstituídas pelo método antropológico e a unilateralidade dos depósitos de arquivos
do historiador” (GINZBURG, 1989, p.173). Decidimos, a título de exemplo, confrontar aqui dois
pequenos trechos destas fontes.
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
No dia 04 de maio de 1964, início do segundo mês após o Golpe Militar, o Delegado de
Segurança Pública Raimundo Tomaz, emitiu em Belo Horizonte uma portaria que começa
nesses termos:
Elementos conhecidos nos núcleos favelados nesta capital vêm, já de algum tempo, organizando invasões de terrenos criando novas favelas com propósitos ainda não de todo esclarecidos, porquanto, segundo suspeita, êste movimento se integrava no plano de subversão da ordem e comunização do país. [Favelas]. Arquivo Público Mineiro. Fundo DOPS. Pasta 3932. p.10
Esse modo de construção do saber desenvolvido pelos agentes do DOPS nos parece
caracterizar um certo tipo de discurso sobre a cidade. Tal como o discurso da planificação
urbana, a estratégia de investigação desenvolvida aqui pelos agentes se aparenta ao que De
Certeau chama de “ administração panóptica “ (DE CERTEAU, 1990, p.146). Este ideal, utopia
de um espaço que seria inteiramente legível e visível a partir de um mesmo local, se aparenta
ao desejo de poder “ver o conjunto”, “superar”, “totalizar” qualquer texto humano (CERTEAU,
1990, p.140). Neste sentido, o discurso policial se aproxima da prática cartográfica moderna
sendo uma “ forma de organização do conhecimento sobre o espaço […] uma forma de articular
saberes e poderes, isto é, uma configuração imaginária construída a partir de uma perspectiva
que privilegia determinados elementos […] em detrimentos de outros ” (SILVA, 2008, p.2).
A constituição em redes desses saberes-poderes explica em parte as dificuldades que
se apresentam ao historiador do urbano, já que a grande maioria dos discursos produzidos e
escritos sobre a cidade – e, portanto, disponíveis como fontes – se inserem dentro dessa rede e
se constituem numa estreita relação. Além disso, eles revelam uma certa coerência entre si se
sondados superficialmente, já que as diversas fontes parecem legitimar umas às outras, seja a
imprensa, os planos urbanísticos, o discurso policial etc. Isto, inevitavelmente, tem influenciado
e pesado sobre o trabalho historiográfico relativo ao espaço urbano, como apontado por
Berenice Guimarães em seu trabalho sobre a cidade de Belo Horizonte (GUIMARÃES, 1990,
p.4).
Mas a cartografia, assim como o discurso policial, enquanto discursos planos, “achata
qualquer coisa dentro de uma superfície plana em duas dimensões” (FARINELLI,1992, p.7
apud. MAGNAGHI, 2014, p.12), aplanando o território e seus atores – assim como suas
possíveis memorias - para encaixá-los em suas grades de leitura e interpretação, e desta
mesma forma os apagam.
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
Dentro do conjunto de individualidades e memorias apagadas por este discurso, esta a
Dona Neusa, moradora atual da Vila 31 de Março que, mais de 50 anos depois, se relembra de
como ela chegou a participar da invasão que deu origem à Vila :
Aí [um dia] meu irmão chegou lá e falou comigo assim: “O, comadre Neuza, o povo tá invadindo o eucalipto…” [...] Agente chamava ele de Preto. Eu falei: “Para quê, compadre Preto?”… “Para morar”. Aí eu falei: “Vai morar debaixo de baixo dos pés de eucalipto?…” Ele falou: “Não. Tá invadindo. Se dono do eucalipto ceder, vai ficar lá. Se ele não ceder, vamos ver o que vai acontecer né?” E ele falou: “Eu vou”. […] “Vamos porquê, vai dar certo”. […] Aí eu pedi para Nossa Senhora da Aparecida: “O, minha mãe, se for para minha felicidade, felicidade dos meus filho [...] me ajuda [...] vai na minha frente e conceda para mim. Me da a sua bença…” Aí foi como se ela falasse assim: “Vai, seu pedaço tá lá”.
5
Se a fonte oral nos parece um dos caminhos – mas não o único – para acessar a
memória do espaço urbano, é justamente porque o depoimento oral não é uma fonte direta
sobre um evento passado, mas uma reinterpretação de fatos passados, impregnada
inevitavelmente da subjetividade e da vivência da pessoa entrevistada. Por isto, como
mencionado por Robert Frank (FRANK, 1990), através do uso da fonte oral, a memória se torna
uma matéria-prima para o trabalho do historiador.
No âmbito de nossa pesquisa, o fato da memória da moradora entrevistada estar –
obviamente – impregnada de lembranças íntimas e afetivas nós permite entender uma
dimensão profunda de sua relação com os espaços urbanos vividos. Enquanto que o discurso
policial faz uma descrição do espaço geográfico urbano que se reduz a um mínimo de
elementos visíveis e aparentes, o discurso da Dona Neusa nos permite enxergar um espaço
urbano impregnado pela sua dimensão afetiva, pela sensibilidade e pelas experiências do
vivido, o que poderíamos chamar de “paisagens sensíveis” (CORBIN, 1994, apud LANGUE,
2006, p.20).
Enquanto que o discurso policial apresenta uma temporalidade linear e simplificada
para expor os fatos que resultam na criação da Vila 31 de Março, podemos perceber nos
discursos das entrevistadas, e especialmente da Dona Neusa, uma temporalidade complexa,
dividida entre as incertezas e dificuldades do dia-a-dia e a esperança num futuro melhor,
sustentada pela crença no tempo eterno da fé e nas rezas à Nossa Senhora de Aparecida.
Além de expressar duas espacialidades diferentes, os dois discursos também ilustram
temporalidades do urbano distintas. Enquanto um certo discurso oficial sobre o urbano busca
criar, como dizia De Certeau, um “não-tempo”, é negada a pluralidade de outras temporalidades
que existem no espaço urbano. Essa negação ou, poderíamos dizer, este apagamento das
5 Idem
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
temporalidades oblíquas, se concretiza historicamente quando a gestão profissional do urbano
decide remover uma comunidade, ou parte dela, para construção de uma via de transito rápido.
Assim, partes dos locais que povoam a memória da Dona Neusa foram aniquiladas pela
ampliação da BR 381, também chamada de anel rodoviário, que dividiu a Vila em duas
comunidades distintas, hoje interligadas por uma estreita passarela6.
Se Cauquelin afirma que o urbanismo é uma tentativa de controlar e manusear o tempo
urbano (CAUQUELIN, 1982, p.11), poderíamos dizer que este processo se opera sacrificando
certas temporalidades em detrimento de outras, o que torna ainda mais urgente e importante a
reflexão e a busca acerca destas outras vozes que seriam as narrativas oblíquas sobre a
cidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta apresentação foi uma proposta que reuniu diversas pesquisas que tinham como
ponto em comum os vários discursos que constroem o cenário urbano. A partir de variadas
fontes, foi possível perceber as diferentes abordagens no estudo da Historia Urbana.
Conseguimos compreender os diferentes olhares que se lançam sobre a cidade através
de fontes que nos contam detalhes, ao mesmo tempo em que silenciam determinados grupos
sociais ou visões sobre o urbano.
Percebe-se que a cidade portanto não é edificada apenas por ruas, edifícios e
monumentos, mas sobretudo por aqueles que ali vivem e deixam suas marcas e suas vivências.
As tensões inerentes às cidades, como nos aponta Michel de Certeau, são a força vital do
espaço urbano, criando um organismo vivo e dinâmico, portanto mais complexo de se analisar
enquanto objeto de estudos.
Tal dinamismo, ao mesmo tempo que dá o sopro de vida à cidade, também se torna
responsável pelas disputas em torno dos discursos oficiais e reais, entre a cidade que se
planeja e a cidade que se vive. Ao resgatar os exemplos abordados pelas diferentes pesquisas,
foi possível compreender que os discursos sobre as cidades possuem várias naturezas:
enquanto alguns legitimam uma ação outros questionam; enquanto alguns reivindicam espaços
e direitos, outros censuram estas reivindicações. Porém este exercício sobre as vozes
6 Ibidem
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
proferidas na cidade permitiu compreender que dois discursos nem sempre são diretamente
antagônicos. Alguns contestam os meios, mas querem o mesmo fim, enquanto outros objetivos
diametralmente distintos.
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FONTES:
Revista O Commentario. N. 5 2ª série. Set. 1904. & N. 9 3ª série. Jan.1906. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil
Discurso do Presidente Rodrigues Alves quando anuncia publicamente a realização do que seria a Grande Reforma Urbana de 1903-1906. para mais ver em: O manifesto inaugural à nação. Correio da Manhã, 16 de novembro de 1902, também disponibilizado em http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/
Cronica, Revista o Malho, 1903 Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.