Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, n. 58, p. 7-24, 2013.
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PBLICO E PRIVADO: OS PRINCPIOS FUNDAMENTAIS DA CONSTITUIO DEMOCRTICA*
PUBLIC AND PRIVATE SPHERES: THE FUNDAMENTAL PRINCIPLES OF THE DEMOCRATIC CONSTITUTION
Maurizio Fioravanti**
Resumo: Pblico e privado constituem as duas dimenses fundamentais da democracia. Dessa forma, parece inegvel que uma das principais tarefas das Constituies democrticas e da democracia constitucional como nova forma poltica emergente o estabelecimento do espao e da profundidade de um e do outro. Questiona-se, portanto, se h um verdadeiro modelo constitucional a partir do qual se possa orientar a relao entre ambos. A resposta aqui dada passa pela anlise dos caracteres histricos essenciais da democracia constitucional, extraveis das Constituies democrticas do sculo XX. Parte-se, assim, da Constituio italiana de 1948, em anlise que torna possvel verificar que no se trata apenas de uma nova faceta da democracia parlamentar ou puramente popular estritamente conectada regra da maioria como no modelo antecedente. Com a afirmao da supremacia constitucional tem-se a construo da ideia de Constituio como garantia e limite, do carter inviolvel dos direitos fundamentais e do princpio da indivisibilidade dos direitos da pessoa. Demonstra-se que o ponto de equilbrio da relao entre pblico e privado est na afirmao da Constituio contra o os desmandos e abusos de ambos. O pblico no pode mais se expressar com a linguagem do legislador onipotente, pensando poder normatizar todos os aspectos da vida individual e das relaes travadas em sociedade, ao passo que o privado no pode se tornar espao propcio para o desenvolvimento de poderes desmedidos, sobretudo econmicos, incidentes de modo no menos perigoso sobre os direitos fundamentais. A Constituio pressupe, portanto, uma sociedade poltica, mas no a mera societas, em que o vnculo basilar exclusivamente a comum titularidade de direitos, mas sim universitas, dotada de unidade de escopo, ligada pelo entendimento comum de perseguir finalidades fundamentais.
Palavras-chave: Pblico e privado. Democracia constitucional. Supremacia da Constituio. Sociedade poltica.
* Este artigo serviu de base para palestra apresentada pelo autor no I Seminrio de Histria do
Direito Pblico da UFPR, em 02/09/2013.
** Professor Titular da Faculdade de Direito da Universit degli Studi di Firenze, Itlia. E-mail:
[email protected] Traduo: Luiz Henrique Krassuski Fortes (mestrando no Programa de Ps-Graduao em
Direito da Universidade Federal do Paran).
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Abstract: Public and private spheres are the two fundamental dimensions of democracy. It seems undeniable, thus, that one of the democratic Constitutions main tasks and of constitutional democracy as their emerging and new political form is the establishment of their both boundaries of space and depth. This paper inquires whether there is a constitutional model which can steer the relationship between public and private spheres. The proposed response is based in an assessment of main historical characteristics of constitutional democracy that can be extracted from any democratic Constitution of the twentieth century. Based on that ground, the Italian Constitution of 1948 is selected as the stand which analysis implies that constitutional democracy is not just a new aspect of traditional parliamentary democracy or a purely popular democracy both of them strictly connected to majority rule as in the previous model. That occurs because along with the assertion of constitutional supremacy, have been build the ideas of the Constitution as guarantee and limit, the inviolable nature of fundamental rights and the principle of the indivisibility of those rights. It is demonstrated that the balance point in the relationship between public and private spheres is the affirmation of the Constitution against the excesses and abuses of them both. The public sphere can no longer express itself with the parlance of the omnipotent legislature, that believes to be possible to regulate all aspects of individual life and relationships, whilst the private sector cannot become the conducive place to the development of a rampant force especially an economic one , no less dangerous against fundamental rights. The Constitution presupposes a political society, not a mere societas, in which the bond is exclusively the same ownership of civil rights, but a universitas, endowed with unit of scope, the common understanding to pursue fundamental purposes.
Key-words: Public and private spheres. Constitutional democracy. Constitutional supremacy. Political society.
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1. Quero de incio expressar uma profunda convico pessoal. Pblico e
Privado no so outra coisa seno as duas dimenses fundamentais da democracia,
ambas necessrias para a prpria vida da democracia. Por um lado, a liberdade
dos privados e o princpio da livre autodeterminao dos indivduos, por outro, a
fora e a autoridade da res publica. Nenhuma democracia imaginvel sem essas
duas dimenses. No por acaso que uma das principais tarefas das Constituies
democrticas aquela de estabelecer o espao e a profundidade de um e de outro,
do Pblico e do Privado, e, portanto, de estabelecer tambm os limites de cada um,
o ponto para alm do qual o Pblico tende a exorbitar e a violar arbitrariamente
as esferas dos indivduos, e o ponto para alm do qual, na dimenso inversa, a
extenso dos poderes dos privados tende a ameaar a integridade da res publica. Se
tudo isso no claro e de conhecimento comum, as democracias entram em crise,
Pblico e Privado tendem a se exceder, a se ameaar reciprocamente, e, tambm, a
se entrelaar de forma disfuncional e perversa, de modo a prejudicar um e outro, e,
mais normalmente, prejudicar a qualidade da convivncia civil. Por este motivo,
a problemtica que hoje aqui se examina , e talvez sempre seja, de importncia
central. Friso que certamente no podemos, nesta ocasio, fornecer respostas
adequadas a todas as mltiplas questes que se avolumam sobre o assunto.
Tentaremos, porm, responder quela que talvez possa ser considerada a pergunta
preliminar, que pode ser assim formulada: as nossas democracias aquelas que
se estabeleceram na Europa a partir da metade do sculo XX possuem uma
identidade precisa a este respeito? Ou ento se limitam a oscilar entre os dois
primados, do Pblico e do Privado, que ciclicamente se afirmam, um aps o outro?
E agora mais precisamente: existe um modelo constitucional, talvez apenas
parcialmente implementado, mas sobre o qual seja possvel orientar um correto
relacionamento entre Pblico e Privado?
Para responder a esta pergunta, pode-se partir de qualquer uma das maiores
Constituies democrticas do sculo XX; aqui o faremos a partir da Constituio
italiana de 1948. Nesta ocasio, tentaremos descobrir o modelo presente na
Constituio italiana, mas com uma advertncia de fundo. Se at o momento h
um defeito de formulao na leitura da Constituio de 1948, este certamente o
de t-la encerrado na dimenso da histria nacional. So conhecidos por todos os
debates sobre o assunto: os partidos de massa, autores materiais da Constituio,
e sua vocao nacional, o Risorgimento e a Resistenza, a tradio nacional do
Estado centralizado e a criao das regies, o legado dos anos trinta e do fascismo,
e assim por diante. Era naturalmente justo enquadrar a Assembleia Constituinte
na histria nacional, at mesmo para valorizar a relevncia daquele momento,
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expresso de uma fora democrtica indita no contexto geral da histria do
Estado unitrio nacional.
necessrio, porm, ampliar a viso para alm dos limites nacionais.
preciso compreender que o que estava acontecendo na Itlia naqueles anos
fazia parte de uma mudana geral mais objetiva que ia alm da derrocada das
solues ditatoriais e totalitrias em seus respectivos solos nacionais. Em outras
palavras, estavam se estabelecendo as bases para uma nova forma poltica,
que hoje chamamos de democracia constitucional. Essa forma poltica possua
poucos precedentes anteriores guerra, como o caso da Repblica de Weimar
de 1919, mas se afirmou no imediato ps-guerra com evidentes traos comuns,
presentes nas respectivas Constituies, na Itlia, na Frana, na Alemanha e, em
seguida, novamente e quase que por imitao, na Espanha ps-franquista, com a
Constituio de 1978, e, depois de 1989, nos Estados do Leste europeu.
Se hoje a Europa possui uma esperana de desenvolvimento conjunto e
estvel sobre essa base, sobre a presena de uma forma poltica comum, para alm
das diferenas nacionais: a democracia constitucional. Quando as fontes de direito
comunitrio, os tratados e a jurisprudncia falam de tradies constitucionais
comuns dos Estados-membros no por acaso, mas em funo desta forte
convico: que a Europa tem o seu tipo histrico de democracia, precisamente
a democracia constitucional. Nestas circunstncias, a tarefa que parece mais
urgente, e que assumimos tambm nesta interveno, a de individualizar e
ilustrar os caracteres histricos essenciais da democracia constitucional. claro que
tambm fazendo meno Constituio italiana. Somente dentro desse quadro
mais amplo de referncia que a nossa espinhosa questo sobre a relao entre
Pblico e Privado ter significado e relevo adequados.
2. Iniciamos com uma simples constatao. A democracia constitucional de
hoje aquela que vem sendo definida historicamente sob nossos olhos no mais
uma democracia puramente parlamentar ou puramente popular, no sentido de uma
democracia da vontade geral, que se constri substancialmente segundo a regra da
maioria. Antes do povo que escolhe a sua maioria e os seus representantes, h um
povo que estabeleceu na Constituio as regras fundamentais da sua existncia.
Antes da diretiva poltica de maioria h a diretiva constitucional. Pode-se dizer
de um modo um pouco enftico: o povo da Constituio prevalece sobre o povo
da maioria. A Constituio, portanto, precede todos os poderes constitudos,
incluindo o do legislador representante do povo soberano. Esta simples ideia,
da supremacia da Constituio, antigussima e, ao mesmo tempo, atualssima,
porque renovada pelo movimento constituinte geral, e tambm italiano, ocorrido
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na metade do sculo passado, que a colocou na base da rejeio da guerra, do
extermnio e do totalitarismo. Essa ideia de supremacia da Constituio renasce
aps a guerra para implementar uma virada radical, para assegurar a todos que
agora existiria uma lei fundamental capaz de impedir que se reafirmassem, no
futuro, as condies para um retorno ao recente passado ditatorial.
Este o primeiro significado da Constituio democrtica, ou seja, de
garantia, de limite. A democracia existe porque ningum poder mais praticar
uma poltica que podemos definir como absoluta, tal qual aquela da Vernichtung,
de aniquilao do adversrio. isso que est admiravelmente condensado no
pargrafo segundo do artigo primeiro da Constituio italiana, que atribui a
soberania ao povo, mas para que este a exercite nas formas e nos limites ditados
pela Constituio. No se poderia esquecer, quando se escrevia a Constituio,
que os partidos totalitrios tambm haviam, h muito, evocado o povo, o
poder do povo, nem que o parlamento liberal, privado de uma autntica norma
fundamental de garantia, havia permanecido extraordinariamente fraco diante
daquelas evocaes. E que, portanto, se deviam ancorar os direitos dos indivduos
em algo mais slido e confivel do que a vontade poltica, fosse ela popular ou
parlamentar.
Este , em suas razes, o valor primrio da Constituio, o de garantia.
Garantia de uma esfera inviolvel que no pode ser arbitrariamente invadida
pelo poder poltico ou por outra forma de poder sobrestante que possa ameaar
a integridade da pessoa. esse o significado do carter inviolvel dos direitos
fundamentais, proclamado no artigo segundo da Constituio italiana. Assim
como tambm so inviolveis a liberdade pessoal (art. 13), o domiclio (art.
14), a liberdade e o sigilo de correspondncia e de todas as outras formas de
comunicao (art. 15). evidente a inteno do Constituinte de assegurar uma
esfera intangvel. A esse respeito tambm so particularmente relevantes outras
disposies. Pensemos no art. 32, que logo aps afirmar a sade como direito
fundamental do indivduo, e tambm como interesse da coletividade, se preocupa
em estabelecer que em matria de tratamentos de sade obrigatrios leis que os
prevejam no podem em nenhum caso violar os limites impostos pelo respeito
pessoa humana.
Mas tambm nas relaes econmicas esse fio condutor bem vivo:
seja no artigo 36, que prev o direito a uma remunerao equnime, a fim de
assegurar uma existncia livre e digna, seja no artigo 38, que faz referncia s
necessidades vitais ao tratar dos meios indispensveis de que se necessita em caso
de infortnio, de doena, de invalidez, de velhice ou de desemprego involuntrio.
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evidente como a Constituio pensa em todos esses casos em uma sociedade a ser
promovida, na qual ningum seja lesado em seus direitos fundamentais e em que,
ao mesmo tempo, todos disponham dos meios necessrios para o desenvolvimento
de uma vida livre e digna.
Por outro lado, quando a Unio Europeia se props a explicitar as tradies
constitucionais comuns dos Estados-membros atravs da bem conhecida Carta de
Nice que adquiriu plena fora normativa com o Tratado de Lisboa , girou-se
ao redor dos mesmos princpios fundamentais: a dignidade humana (art. 1),
o direito prpria integridade fsica e psquica (art. 3), o direito proteo
dos dados de carter pessoal (art. 8); mas tambm o direito a condies de
trabalho saudveis, seguras e dignas (art. 31), ou o direito assistncia com o
objetivo de garantir uma existncia digna a todos aqueles que no disponham de
recursos suficientes (art. 34). Em suma, o fio condutor, nacional e supranacional,
bastante claro. Tratam-se dos direitos da pessoa, do ponto de vista do duplo perfil
da esfera inviolvel, dentro da qual ningum pode penetrar, e do dever inderrogvel
de operar de tal modo que essa esfera no seja esvaziada, no seja privada por
parte dos cidados menos afortunados dos bens mnimos necessrios para o
desenvolvimento da existncia livre e digna de que fala o art. 36 da Constituio
italiana.
3. Devemos, agora, aprofundar a reflexo sobre essa dualidade, presente
tanto nas Constituies nacionais, como a italiana, quanto nos textos europeus.
Essa duplicidade pode ser redefinida como princpio de indivisibilidade dos direitos
fundamentais da pessoa, civis, polticos e sociais. Tambm polticos, uma vez que
somente uma pessoa livre na prpria esfera e dotada dos mnimos bens necessrios
capaz de ser um cidado politicamente ativo, que participa da determinao
das finalidades pblicas de relevncia coletiva. Nada expressa melhor isso que
o j citado artigo terceiro da Constituio italiana e o conceito, nele fixado, de
igual dignidade social entre os cidados. esse conceito que constitui o piv
de todo o artigo terceiro, do prprio princpio da igualdade e dos direitos da
pessoa no seu complexo, ao contrrio da agora obsoleta contraposio entre o
seu primeiro e segundo pargrafos, entre igualdade formal e substancial.
em nome dos direitos da pessoa e do princpio da igual dignidade social, na base
do mesmo e nico ttulo, que se afirmam tanto a intangibilidade das liberdades
pessoais, quanto os direitos em matria social, o direito assistncia, educao,
retribuio equnime e proporcional. A duplicidade que estamos explorando
possui na verdade uma nica matriz em uma nova concepo do sujeito de direito
e do princpio da igualdade.
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Nem sempre foi assim. Aqui a histria pode ser efetivamente til. Na
revoluo francesa foi de fato necessrio o incndio jacobino para colocar lado a
lado os direitos civis, os direitos polticos e sociais educao, assistncia e ao
trabalho. Mas assim se fez no contexto de uma Constituio como a de 1793, que
nunca entrou em vigor, e, em todo caso, era concebida como puro ato de vontade do
povo e, por conta disso, continuamente revisvel. O princpio que definimos acima
como de indivisibilidade dos direitos fundamentais da pessoa, caracterizador das
constituies hodiernas, era ento percebido como afirmavam os protagonistas
daquele tempo como uma espcie de perigosa igualdade extrema, inconcilivel
com o ideal constitucionalista do governo limitado. Mais adiante, em pleno sculo
dezenove, o talvez maior pensador liberal europeu, Tocqueville, diante do direito
ao trabalho estabelecido na Constituio francesa de 1848, reagia quase que
com virulncia, incitando o espectro do Estado como o maior, e talvez nico,
organizador do trabalho, um perigoso ancoradouro com o qual se articularia,
mortificando as energias autnomas da sociedade civil e econmica, para assegurar
os direitos sociais prometidos pela Constituio.
Desde ento, entrou-se em uma lgica contrapositiva da qual, talvez, nunca
se tenha sado. De um lado, a sociedade liberal do clebre binmio britnico liberty
and property, com as liberdades civis e polticas, que pensa poder responder s
necessidades sociais com o mercado, reduzindo a interveno pblica ao mnimo
possvel. De outro lado, as Constituies democrticas ricas de direitos em matria
social, com base em que se funda, pelo contrrio, uma extensa interveno pblica,
que foi rotulada Estado social no sculo XX. Em suma, Privado e Pblico, e
vice-versa, cada um se esforando a exaltar as prprias virtudes, ilustrando os
defeitos e falhas do outro. As virtudes do Privado, que reduzem ao mnimo o
espao do Pblico, ou, ao contrrio, as virtudes do Pblico, que curam os pecados
e os egosmos do Privado. Um esquema contrapositivo que, na minha opinio,
ainda se faz presente em nossa cultura poltica e constitucional.
nesse esquema que se chegou a contrapor os dois pargrafos do artigo
terceiro, a igualdade chamada formal igualdade chamada substancial,
concebendo, de tempos em tempos, uma ou outra como a verdadeira igualdade;
a formal porque rigorosamente baseada no carter absolutamente abstrato do
sujeito, a substancial, ao contrrio, porque capaz de levar em conta as diferenas
nas condies materiais de vida dos cidados. Para quem apoia a primeira
igualdade, em sentido formal, a outra igualdade, que se prope a olhar para as
condies materiais a fim de remover as barreiras a que se refere o artigo terceiro,
pargrafo segundo, da Constituio italiana e, assim, atribuir direitos s partes
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fracas, aos trabalhadores no contrato de trabalho, aos inquilinos no contrato de
locao e, mais ainda, aos idosos, s pessoas com deficincia, e assim por diante,
no outra coisa que um instrumento de construo de uma sociedade engessada,
baseada na lgica do status, em que todos defendem corporativamente as polticas
pblicas, o seu prprio pacote de direitos. Para quem apoia a segunda igualdade,
em sentido material, a primeira igualdade, ao contrrio, justamente porque se
concentra rigorosamente e sem exceo sobre o sujeito abstrato, no verdadeira
igualdade, ou melhor, apenas igualdade entre aqueles que j so possuidores e,
portanto, um instrumento de conservao de uma sociedade injusta e desigual:
por detrs da igualdade em sentido formal est escondido o privilgio de posies
de poder, de cultura, de dinheiro. Assim, a igualdade em sentido substancial
retratada como a antessala do estatalismo, um pouco como pensava Tocqueville
na metade do sculo XIX, e a igualdade em sentido formal, por outro lado, como
a antessala do privilgio de classe, como pensaram muitos leitores de esquerda das
Constituies democrticas. O que ns sustentamos agora que essa rgida contraposio, cujas razes
profundas remontam pelo menos idade das revolues na metade do sculo XVIII, que foi revivida aps a promulgao das Constituies democrticas e que acreditamos ainda estar bastante viva entre ns na cultura difusa e, mais especificamente, na cultura poltica e constitucional, na verdade no prpria das Constituies democrticas do sculo XX e, portanto, nem sequer da Constituio italiana de 1947. Em suma, o modelo constitucional inerente s Constituies democrticas, incluindo aquele desejado pelos Constituintes italianos, que inspira, ou deveria inspirar, a nossa democracia, no o modelo contrapositivo acima delineado. Em outras palavras, os nossos Constituintes no acreditavam em alguma virtude a preservar e afirmar, nem a do Privado contra o Pblico, nem a do Pblico contra o Privado. Quem ainda hoje continua a raciocinar assim no faz outra coisa seno levar adiante sua batalha poltica, por motivos ideais e, talvez, tambm para a defesa de interesses bastante encorpados, sejam do Privado ou do Pblico, mas no podem contar, entre seus argumentos, com a Constituio.
A nossa tarefa talvez a mais urgente , portanto, precisamente aquela de subtrair a Constituio da luta poltica, para afirmar, acima da luta poltica, o modelo constitucional, ou seja, a relao entre Pblico e Privado que efetivamente consagrada nas Cartas constitucionais das democracias europeias no sculo XX, como nico dever ser da democracia, no ideolgico, mas simples e puramente constitucional. necessrio, em uma palavra, voltar-se Constituio. isso que tentaremos fazer na segunda parte da nossa interveno, a partir do caso italiano.
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4. Iniciamos com um esclarecimento de carter propriamente histrico,
e que tem relao com a Itlia, mas no apenas com ela. O tempo dos nossos
Constituintes, recm-encerrada a guerra, no era certamente um tempo do
mercado. Era um tempo de economia regulada. A Carta constitucional italiana, do
ponto de vista da histria nacional, nesse sentido, corretamente inserida em um
ciclo histrico que o da lei bancria de 1936, das leis de criao dos entes pblicos
econmicos nos anos trinta, do prprio Cdigo civil nos primeiros anos da dcada
de quarenta. Um ciclo dominado pela falncia do mercado, gerador de conflitos
sociais, de insolvncia de grandes dimenses, e de desemprego. Estava sendo
fundada uma Repblica, e se tinha conhecimento de quanto um cenrio desse
tipo havia influenciado o insucesso da primeira Repblica democrtica europeia,
a Repblica de Weimar, de 1919. Assim se afirmava, com fora, a necessidade do
papel do Estado, e certamente no apenas na Itlia.
No por isso, porm, que se deve falar de um modelo constitucional
flagrantemente publicstico, ou de uma formulao estatalista da Constituio.
Uma coisa ser cauteloso quanto ao automatismo do mercado, outra confiar na
virtude do Pblico e, em particular, de sua forma estatal. Certamente, a Carta
constitucional precedente, o Estatuto Albertino, considerava inviolvel a
propriedade (art. 29), enquanto a Constituio atual se limita a afirmar que a
propriedade privada reconhecida e garantida pela lei, devendo-se assegurar a
funo social e a acessibilidade a todos os cidados (art. 42). Esto evidentemente
sobre duas bases conceituais diferentes. Mas isso no outra coisa que o fruto de
uma passagem histrica ocorrida entre os sculos XIX e XX, que ainda mais
ampla, que interessa a toda a sociedade europeia, e que a mesma coisa que antes
de sua realizao fazia com que o Estatuto afirmasse que a liberdade individual
garantida (art. 26) e, agora, faz com que a nossa Constituio diga que a
liberdade pessoal inviolvel (art. 13). Essa inverso de termos, para a qual o
que inviolvel no mais a propriedade privada, mas sim a liberdade pessoal, e
que no era assim considerada ao tempo do Estatuto, talvez deva ser considerada
um regresso, sinal da dominante ideologia estatalista dos nossos Constituintes?
Ns cremos que no. Na realidade, de todo esse assunto muitas vezes no se capta
o aspecto mais importante, que est contido na palavra pessoal: a liberdade
no mais, como no modelo constitucional precedente, a do simples sujeito,
o indivduo, seguindo o modelo do indivduo proprietrio do Cdigo, mas ,
precisamente, a liberdade da pessoa, que a subjetividade, nova e diversa, mais
ampla e complexa a que faz referncia a nova fonte, a Constituio democrtica
do sculo XX, tal qual a italiana.
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Voltaremos mais tarde a esse ponto da pessoa, que talvez seja o central.
E agora vamos completar nosso horizonte sobre o ttulo terceiro da parte primeira
da Constituio, que acusado de ser fruto de concepes antigas de colorido
estatalista e hiperpublicista. So estatalistas as normas contidas nos j citados
artigos 36 e 38? estatalista a aspirao a fornecer a todos os trabalhadores
uma existncia livre e digna? estatalista o critrio das necessidades vitais
diante da doena, do infortnio e da velhice? Qual aqui a inteno dos nossos
Constituintes, se no aquela de garantir o valor e a dignidade da pessoa humana? E
tambm diante do artigo 41, um dos mais discutidos, no encontramos novamente
a dignidade humana como limite a iniciativa econmica privada?
No pretendo prosseguir neste ponto, mesmo que se possam citar outros
artigos, em minha opinio, qualquer coisa diferentes de estatalistas, como o
artigo 46, sobre a colaborao dos trabalhadores na gesto das empresas, ou o
seguinte, 47, sobre poupana e crdito, matrias mais que atuais. Apenas duas
palavras a mais sobre este ponto, com respeito frmula da utilidade social (art.
41) como limite iniciativa econmica privada. Um dos pontos mais delicados
e mais discutidos. O debate : pode ser essa frmula veculo de legitimao de
instrumentos planificadores rgidos e centralizados? Talvez. Talvez possa haver
uma verso estatalista da utilidade social. A este respeito, no entanto, assiste
uma considerao de carter geral, que pode valer tambm em outros casos. Por
que ler a frmula da utilidade social luz da cultura da planificao dos anos trinta
e quarenta? Por que dar-lhe necessariamente uma leitura de colorido efetivamente
estatalista? No fundo, as Constituies vivem, sem prejuzo da rigidez do ncleo
fundamental dos princpios nelas contidos, atravs da interpretao, que muda
de sentido e de direo com o mudar da sociedade, da cultura constitucional e da
prpria cultura difusa.
A utilidade social hoje diferente e, portanto, se pode e se deve dar
uma leitura menos estatalista, mais personalista e que tambm recupere o
pleno significado da qualificao da utilidade em sentido social. O que
eu quero dizer que a iniciativa econmica privada legitimamente limitada,
nos termos do artigo 41, quando efetivamente se desenvolve de forma tal a
causar prejuzo s pessoas, singularmente ou em grupo, que so, enquanto tais,
providas de direitos fundamentais sade, educao, informao. Todos bens
constitucionalmente protegidos que podem ser ameaados no apenas por uma
autoridade pblica, mas tambm por uma fora econmica privada. Essa a
utilidade social que a Constituio protege. a utilidade concreta das pessoas,
e no aquela aprioristicamente representada pelo Estado. Que aquela utilidade
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seja protegida tambm contra o Privado no deve ser interpretado como um sinal
de estatalismo. , ao contrrio, um sinal talvez ainda maior da transformao
ocorrida entre o sculo XIX e XX, que consiste na oponibilidade da Constituio
como norma jurdica a todos os sujeitos agentes na sociedade, sejam pblicos ou
privados. No , portanto, o Estado que faz uso do artigo 41 e da utilidade social
para mortificar a iniciativa econmica dos privados, mas a Constituio que,
em nome dos direitos da pessoa, pretende limitar todos os poderes, e tambm o
poder privado. algo bem diferente. No mais o se est diante do pblico que se
expande em demasia em detrimento do Privado, mas ambos, Pblico e Privado,
limitados pela Constituio, dimensionados pela Constituio. Essa, no plano
histrico, a grande novidade ocorrida na relao entre Pblico e Privado na
histria constitucional da democracia na Europa.
, verdadeiramente, algo de importncia capital na tormentosa histria
dos direitos fundamentais na Europa. Algo que traz um contedo substancial
mais amplo s democracias constitucionais de hoje. Se verdade que o valor
primrio das Constituies da segunda metade do sculo XX, quando a
democracia constitucional comeou a tomar forma como j observamos o
de constituir uma barreira intransponvel em nome dos direitos fundamentais da
pessoa, civis, polticos e sociais; bem, esse limite posto agora no apenas contra
o poder arbitrrio dos governantes, mas tambm contra os poderes que na prpria
sociedade podem se tornar incomensurveis nas mos dos prprios privados em
matrias que a prpria Constituio considera de primeira relevncia, como o meio
ambiente, a sade, a informao. Lesam-se os direitos fundamentais no apenas
atravs da priso arbitrria perpetrada pela autoridade de segurana pblica ou de
uma autoridade pblica, no caso mais clssico de violao liberdade originria,
da liberdade pessoal, mas tambm atravs da poluio do meio ambiente ou da
concentrao desmedida dos meios de informao por obra de agentes privados.
A Constituio, nascida pensando-se nos palcios do poder poltico, para limitar o
soberano em sentido pblico e poltico, no curso do sculo XX se ps em marcha
em direo sociedade, fbrica, ao local de trabalho, aos meios de comunicao.
um caminho que acaba de se iniciar quando se olha para os tempos longos da
histria. Deve-se, portanto, ter pacincia se os resultados nessa via so ainda no
raras vezes parciais, oscilantes ou at mesmo decepcionantes. Por um lado, se deve
pensar na plurisecular, e continuamente recorrente, batalha do constitucionalismo
contra o arbtrio poltico. Se este ltimo terreno tradicional difcil e ns
sabemos o quanto , pensemos o quanto pode ser esse novo, que est sendo
cultivado h algumas dcadas, e que pretende conduzir a uma prescritividade bem
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mais ampla da Constituio, praticamente global, contra todo o poder incidente
sobre direitos fundamentais, seja Pblico ou Privado. Muito mais difcil, ento,
se a violao do direito no de tipo invasivo, como no caso da priso arbitrria,
contra a qual existem remdios bem conhecidos e mais ou menos comprovados,
mas de tipo omissivo, porque falta de modo evidente uma retribuio equitativa
ou de tratamento justo. A constrio a dar, dirigida a um sujeito privado, como
a um pblico, de fato, intuitiva e praticamente, mais difcil do que uma simples
constrio a observar uma proibio.
5. Sobre o plano histrico, porm, deve-se pronunciar uma palavra de
otimismo, porque a via, ainda que longa, incerta e tormentosa, certamente
aquela que sumariamente indicamos; a via dos direitos da pessoa garantidos pela
Constituio como norma suprema. Isso foi recentemente confirmado pela prpria
Europa, com a Carta dos direitos fundamentais da Unio Europeia, conhecida
como Carta de Nice, que j tivemos oportunidade de citar.
Convm recordar brevemente um pouco da histria dessa Carta. Nascida
atravs de uma proclamao desde o incio invocada pelos juzes, mas certamente
de duvidosa prescritividade jurdica num certo ponto da histria constitucional
europeia parecia ser, dentro do projeto de Tratado constitucional europeu,
o receptculo dos princpios fundamentais em matria de direitos, imagem e
semelhana das Constituies nacionais, como a italiana. Agora, com o Tratado
de Lisboa, criou-se uma soluo intermediria, que, porm, atinge o essencial,
atribuindo Carta o mesmo valor jurdico dos Tratados.
o incio de uma nova fase da transformao em curso. E duplamente
significativa, porque era momento, em razo da tremenda ignorncia das classes
polticas europeias, de mandar tudo pelos ares. Mas isso no aconteceu. Isso porque
evidentemente o movimento que se abriu na metade do sculo passado em nome
dos direitos fundamentais da pessoa e da supremacia da Constituio no pode ser
interrompido e tende, assim, a se alastrar como uma mancha de leo, lenta, mas
progressivamente, do plano nacional ao supranacional, no nosso caso europeu. A
transformao historicamente nica, porquanto articulada em diversos nveis.
Para compreend-la necessrio frisar os aspectos comuns mais do que enfatizar
as diferenas de perspectiva, como por vezes se faz, contrapondo a assim chamada
Europa dos mercados s democracias nacionais e sua insuprimvel caracterstica
social. Na verdade, os dois nveis esto dando passos de gigante em direo
aproximao: as Constituies nacionais, promulgadas em um clima cultural e
poltico de colorido dirigista, tem mostrado grande elasticidade como vimos a
propsito do conceito de utilidade social na releitura progressiva dos prprios
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princpios luz dos princpios da livre troca e da livre concorrncia, a partir dos
quais surgiu a Europa comum, arriscando-se a proceder, segundo alguns com
o que no concordamos , neste caminho uma prpria e verdadeira disposio
do patrimnio de democracia constitucional acumulado no nvel nacional; mas,
pelo contrrio, a Europa, por sua vez, sempre advertiu sobre a exigncia de uma
integrao no meramente econmica e, portanto, teve de se confrontar, ainda
que muitas vezes de modo incerto, com os problemas clssicos da legitimao
poltica, dos mesmos direitos fundamentais para alm do aspecto econmico, em
uma palavra, com o problema da unidade poltica, ainda que de modo diverso da
tradio estatal e nacional. Para dizer de modo mais esquemtico: os Estados tm
caminhado em direo ao mundo do mercado e das relaes econmicas, a Europa
tem caminhado em direo ao mundo da poltica e da Constituio. A tentativa
encontrar um ponto de equilbrio, em certo sentido, no meio do caminho, uma vez
que ambos caminharam no mesmo ritmo.
Apenas a partir desses pressupostos se pode ler com clareza e sem
preconceitos a Carta de Nice, que representa verdadeiramente o atual ponto de
equilbrio, o que at o momento se conseguiu. Ou seja, o contrrio daquela atitude,
um pouco de caa s bruxas, que v como revanche de um neoindividualismo
burgus, proprietrio e mercantil contra as democracias sociais nacionais.
Cita-se, assim, invariavelmente, o bem conhecido artigo 17, que mais uma vez
reafirma a propriedade como direito de gozar da propriedade dos bens adquiridos
legalmente; mas, para alm do limite do interesse geral ao uso da propriedade,
tambm presente nesse artigo, muitas vezes se esquece, como se esse no fosse
mais do que o direito-prncipe, como era ao tempo do direito codificado liberal e
burgus. A propriedade certamente um dos direitos da pessoa do Ttulo II da
Carta, mas precedido do direito liberdade e segurana, do direito proteo
dos dados pessoais, liberdade de pensamento, de conscincia, de religio, de
expresso, de informao, do direito educao. O ponto crucial, portanto, no
o individualismo proprietrio. A supernorma, se realmente olharmos para ela, a
mesma das Constituies nacionais e est centrada na pessoa, na sua segurana,
na livre disposio de si mesma, do prprio pensamento e, por fim, tambm nos
prprios bens.
Mas no se limita a isso. E no h apenas as normas do Ttulo IV sobre
a solidariedade, a que j nos referimos, mas tambm aquelas sobre as condies
de trabalho justas e equitativas (art. 31) ou sobre a assistncia social (art. 34).
Normas que, por outro lado, testemunham como na coleta e consolidao das
chamadas tradies constitucionais comuns dos Estados-membros pois o
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que foi feito com a Carta de Nice no foi possvel se esquecer da matria social,
que de modo bastante forte caracteriza a tradio europeia em seu complexo. O
que queremos enfatizar a evoluo da matria de direitos fundamentais que se
est realizando pela Europa. Preocupa-se a Carta mais uma vez com a matria
social, sob dois perfis.
O primeiro est contido de modo particularmente claro no artigo 15 da
Carta de Nice: Toda pessoa possui o direito de trabalhar e de exercer uma
profisso livremente escolhida ou aceita. Esse artigo no deve ser lido com os
olhos voltados para o passado, para o tempo da Comunidade econmica e do valor
exclusivo da livre circulao, no s das mercadorias, mas tambm dos homens e
das profisses, mas com os olhos voltados para o futuro, para uma nova estao
dos direitos da pessoa que se est abrindo. Queremos dizer que este artigo fornece
uma leitura no administrativa, no estatalista, do clebre direito ao trabalho do
artigo quarto da nossa Constituio. O direito ao trabalho se afirma diretamente,
assim, como direito da pessoa, consideradas e avaliadas as suas inclinaes, as suas
escolhas livres. No uma providncia obtida do alto, do Estado-aparato, como
pensava Tocqueville em 1848 como vocs se lembraro quando via no prprio
direito ao trabalho a perigosa raiz de um Estado que se estendia demasiadamente
no campo das relaes econmicas. Assim, o princpio europeu retroage sobre o
princpio constitucional nacional, esclarecendo definitivamente aquilo que j se
sustentava em parte: que a Repblica que nosso artigo quarto chama a promover
as condies que tornam efetivo o direito ao trabalho no , em primeiro lugar, o
Estado-aparelho com a sua administrao, mas sim o Estado-ordenamento, ou
seja, o conjunto dos poderes publicamente relevantes, no importa se de matriz
institucional ou associativa, pblica ou privada. Em suma e aqui est a raiz da
evoluo em curso os direitos em matria social, como o direito ao trabalho, os
direitos referentes ao desenvolvimento de polticas sociais atuadoras dos princpios
constitucionais, mas ainda nas mos dos partidos polticos, dos parlamentos e dos
governos terreno que no se deve abandonar, mas no mais exclusivo tendem
a fazer surgir posies jurdicas subjetivas do indivduo enquanto pessoa e como
tal destinado, mais cedo ou mais tarde, a buscar satisfao pela importante via de
jurisdio.
Enfim, como segundo aspecto no se pode no recordar dos artigos 24 e
seguintes da Carta de Nice, inseridos no Ttulo III, sobre a Igualdade, dedicados
aos direitos dos menores, dos idosos, das pessoas com deficincia. Na Europa tem
continuidade, assim, a tendncia j presente nas Constituies nacionais, de no
entender a igualdade apenas como proibio de discriminao entre aqueles que
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a prpria Constituio considera iguais, mas tambm entendida como promoo,
atravs de medidas diversas, do acesso aos bens fundamentais de existncia a
todos aqueles que deles so desprovidos. Pode-se dizer: direitos concebidos para
aqueles que so mais fracos. E significativo o fato de que essa tendncia, na
passagem do plano das Constitues nacionais Europa, longe de se atenuar, se
estenda: dos direitos dos trabalhadores, parte fraca por excelncia na tradio
das Constituies nacionais, aos outros sujeitos fracos, aos menores, aos idosos, s
pessoas com deficincia.
6. Estamos agora prontos para lidar com a parte final, em que vamos
tentar oferecer uma resposta s perguntas que fizemos e, em particular, quela
principal: Em que tipo de democracia vivemos? O que propem as Constituies
contemporneas como modelo de relacionamento entre Pblico e Privado? Por
uma parte do itinerrio que percorremos estivemos dedicados, mais que qualquer
coisa, a remover os obstculos, os dados de muitos preconceitos: no verdade
que as solues presentes nas Constituies nacionais, como a italiana, so de tipo
estatalista, assim como no verdade que a Europa representa, a respeito desse
alegado carter das Constituies nacionais, uma revanche do tipo proprietrio e
liberal. bem verdade, historicamente, que uma grande transformao uma s,
em vrios nveis teve incio em meados do sculo passado, expressando-se, em
primeiro lugar, nas Constituies do ps-guerra, passando, em seguida, por sua
difcil implementao e, por fim, atravs da atual e difcil passagem da Europa.
um movimento nico, com altos e baixos, e no a sucesso esquizofrnica de
solues opostas.
Mas, acima de tudo, uma transformao ainda em curso e que, para
mim, tem uma importncia no inferior quela que a precedeu. O que estamos
testemunhando uma luta pela afirmao de um novo tipo histrico de democracia,
a democracia constitucional, fundada sobre os direitos da pessoa, que, por sua vez,
fundam-se na supremacia da Constituio. uma luta dura porque a supremacia
da Constituio tira poderes, reduz arbtrios, impe obrigaes e, sobretudo
como ns vimos tende a impor-se a todos os poderes, pblicos e privados.
compreensvel, assim, que se trate de uma supremacia a que fortemente se ope.
Em suma, que tem muitos inimigos.
Porm, a Constituio existe. Existe no plano nacional e est se formando no
plano supranacional. Os direitos da pessoa so firmados de modo claro. Enquanto
houver violaes das esferas das pessoas e de sua dignidade, ou enquanto houver
pessoas privadas dos bens essenciais, existir um problema de implementao
da Constituio. Desse dilema as democracias contemporneas no podem se
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livrar, pelo menos at quando existir a Constituio. E, por outro lado, sair da
Constituio significa realmente abandonar o modelo de relao entre Pblico
e Privado por essa desenhado, e que limita ambos: o primeiro no pode mais
se expressar com a linguagem do legislador onipotente, pensando que pode
normatizar todos os aspectos da vida individual e das relaes, e portanto, no pode
arbitrariamente invadir a esfera dos cidados; mas tambm o segundo no pode
ser terreno para o desenvolvimento de poderes desmedidos, sobretudo econmicos,
incidentes de modo no menos perigoso sobre os direitos fundamentais da pessoa.
A Constituio, em suma, no prega nenhuma virtude, nem do Estado, nem do
mercado, simplesmente porque pensa que tanto um quanto o outro podem violar
os direitos da pessoa. E, assim, cautelosa em relao a ambos, especialmente
quando um ou outro tendem ao excesso, a exorbitar.
A partir daqui, dessa raiz, surge finalmente a resposta pergunta que
colocamos: o modelo constitucional de relao entre Pblico e Privado , em
ltima anlise, o da dupla limitao e, portanto, do duplo valor da Constituio,
que se ope sempre a um e a outro se ela mesma, e os direitos fundamentais nela
consagrados, todas as vezes que as razes de um e de outro tornam-se imoderadas,
sejam as razes de um Pblico que pretende invadir a esfera dos indivduos, ou
a de um Privado que, em razo de sua potncia econmica, pretende dominar a
cena pblica. Pode-se dizer tambm: a Constituio socorre sempre o mais fraco, o
Pblico quando invadido arbitrariamente pelo Privado, e vice-versa. Abandonar
esse modelo significa, portanto, correr riscos gravssimos para os dois lados.
Tenha-se ateno, portanto, ao tratar a Constituio como uma simples
lei politicamente reformvel e emendvel. A histria da relao entre Pblico e
Privado ensinou que na Constituio fixado um pilar, um muro de conteno, um
essencial ponto de equilbrio. Sem a Constituio, sem esse tipo de Constituio que
comeamos a construir na metade do sculo passado, e sem esse pilar, no temos
um problema de democracia, para o mais ou para o menos, mas provavelmente
o incio da dissoluo da forma poltica democrtica, no sentido especfico de
retorno a um predomnio indiscriminado dos poderes arbitrrios, sejam pblicos
ou privados. A supremacia da Constituio , portanto, afirmada em primeiro
lugar contra o exerccio arbitrrio desses poderes. E os arbtrios que ela impede
ou limita sejam esses de provenincia pblica ou privada, como vimos tm
um invarivel objetivo subjacente: proteger recursos que servem para satisfazer
imediatamente posies especiais de poder. Se essas tendncias parciais fossem
deixadas ao desdobramento livre, tornar-se-ia impossvel qualquer clculo sobre
as necessidades individuais e coletivas a mdio e longo prazo, porque todos os
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recursos seriam queimados no curto prazo. A nica poltica possvel se tornaria
a da maioria do momento. Mas hoje, por motivos que so bastante evidentes,
no possvel governar desse modo. Desse ponto de vista, h um ncleo duro
nos problemas que temos diante de ns, uma objetividade das coisas destinada
a se impor, a menos que no se decida deliberadamente caminhar em direo ao
precipcio. Que se tratem hoje das necessidades sociais primrias, da alimentao
moradia, da sade, da assistncia, do meio ambiente, chega-se sempre mesma
concluso: quase nenhuma dessas problemticas resolvvel se no em um sentido
estrutural, enquanto muito pouco se resolve com a poltica do momento, com a
maioria do momento. As Constituies, e aqui tambm as contemporneas, como
normas pela sua prpria natureza predispostas a durar no tempo, so portanto
destinadas a desenvolver esta funo essencial e imprescindvel: catalogar os bens
essenciais da pessoa que qualquer maioria possui o dever de proteger, e representar,
nesse sentido, a continuidade, a dimenso profunda e duradoura das necessidades
sociais que somente a Constituio pode adequadamente exprimir no tempo e
que se coloca, em sua objetividade, bem distante e acima das meras polticas de
maioria, com as quais se chega somente at um certo ponto, insuficiente para um
governo srio das sociedades e das democracias contemporneas.
H apenas um ponto obscuro na supremacia da Constituio, mas que no
insignificante. Diz respeito ao futuro da sociedade democrtica. A sociedade
dos nossos Pais Constituintes, na Itlia e na Europa, em pleno sculo XX, era
organizada nos partidos. Hoje no temos mais aqueles partidos, naquela mesma
forma. A nossa sociedade parece estar, de fato, procura de novas instituies, de
novas solidariedades, em suma, de uma nova identidade. Pode ser que se trate de
uma busca que se revelar frtil no transcurso do tempo. a todos evidente, no
entanto, a atual condio de fragilidade e de incerteza. Aqui est o ponto crtico.
Isso porque a Constituio pode se defender de modo mais ou menos eficaz em
face dos poderes incomensurveis. Mas no est sozinha. O melhor e mais slido
fundamento da Constituio de resto, o nico possvel precisamente a
conscincia de sua necessria dependncia de qualquer coisa outra que a precede.
Em uma palavra, aquilo que a Constituio pressupe para se colocar como norma
suprema a prpria existncia de uma sociedade suficientemente coesa, dotada
de instrumentos que a permitam ser uma sociedade poltica, e no simplesmente
uma sociedade de indivduos dotados de direitos mais ou menos perfeitamente
garantidos. E, portanto, no apenas uma simples societas, na qual o vnculo basilar
exclusivamente a comum titularidade de direitos, mas tambm uma universitas,
ou seja, uma unidade de escopo, qual se liga por compartilhamento, ligado pelo
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entendimento comum de perseguir algumas finalidades fundamentais. Em uma
palavra, uma sociedade poltica e no apenas uma sociedade civil. Essa hoje a
questo na ordem do dia das democracias contemporneas. No h supremacia da
Constituio sem sociedade poltica, e no h sociedade poltica sem instrumentos
estveis de participao e sem a procura, conturbada e problemtica, de um
princpio de unidade. Sem tudo isso, a Constituio vacila. Em suma, verdade
que podemos contar com a Constituio como protetora dos nossos direitos, como
limite exorbitncia de todos os poderes, sejam pblicos ou privados, mas no
podemos jamais nos esquecer de que tambm a Constituio, por seu turno, conta
conosco.
Recebido: 15/09/2013
Aprovado: 23/11/2013
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