UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO - UNICAP PRÓ-REITORIA ACADÊMICA - PRAC
COORDENAÇÃO GERAL DE PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
CURSO DE MESTRADO
FÁBIO HENRIQUE SALES DE LIMA LAU
ESPIRITUALIDADE E EDUCAÇÃO: A CONTRIBUIÇÃO DE
EDGAR MORIN PARA A PRÁTICA DOCENTE
RECIFE 2016
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO - UNICAP PRÓ-REITORIA ACADÊMICA - PRAC
COORDENAÇÃO GERAL DE PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
CURSO DE MESTRADO
FÁBIO HENRIQUE SALES DE LIMA LAU
ESPIRITUALIDADE E EDUCAÇÃO: A CONTRIBUIÇÃO DE EDGAR MORIN PARA A PRÁTICA DOCENTE
RECIFE 2016
Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de mestre em Ciências da Religião, pela Universidade Católica de Pernambuco.
Área do conhecimento: Ciências Humanas.
Orientador: Professor Dr. José Tadeu Batista de Souza.
FÁBIO HENRIQUE SALES DE LIMA LAU
ESPIRITUALIDADE E EDUCAÇÃO: a contribuição de Edgar Morin para a prática
Docente.
Defesa pública em:
Recife, 26 de agosto de 2016.
Dissertação aprovada como exigência parcial à obtenção do título de Mestre em
Ciências da Religião, na Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, pela seguinte
Banca Examinadora:
___________________________________________________________________
Profª. Drª. Maria Betânia de Nascimento Santiago – UFPE
Examinadora Externa
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Alencar Libório – UNICAP
Avaliador Interno
___________________________________________________________________
Prof. Dr. José Tadeu Batista de Souza – UNICAP
Orientador
RECIFE / 2016
DEDICATÓRIA
Dedico esta dissertação a Deus, por ter sido bálsamo nos momentos
difíceis. O que teria sido de mim sem a fé que tenho Nele! À minha
família, por sua capacidade de acreditar e de investir em mim. Mãe, o
seu cuidado e dedicação me deram, em alguns momentos, a esperança
para seguir. Pai Bosco, a sua presença e apoio significaram segurança
e certeza de que não estou sozinho nesta caminhada. Às minhas avós,
Lila e Lú (in memoriam), as quais, pela finitude da matéria, não se
encontram fisicamente presentes neste momento tão feliz da minha
vida, mas a quem eu não poderia deixar de dedicar este trabalho, por
serem fontes de amor, bons ensinamentos e valores passados. À
professora Drª. Sônia Cândido (in memoriam), que, ao longo da
graduação, com sua postura irretocável, despertou em mim o
encantamento pelo estudo e pela pesquisa e o zelo pelo trabalho.
Minhas formações acadêmica, pessoal e humana não teriam sido a
mesma sem a sua presença.
AGRADECIMENTOS
“E aprendi que se depende sempre De tanta, muita, diferente gente
Toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas.
É tão bonito quando a gente entende Que a gente é tanta gente
Onde quer que a gente vá. É tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho Por mais que pense estar...”
(Caminhos do coração - Gonzaguinha)
Agradeço, primeiramente, ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião,
da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, em especial, ao seu coordenador,
professor Dr. Newton Darwin de Andrade Cabral, pela solicitude, pelo empenho para
resolução das demandas de sua gestão, pela compreensão, pelo carinho com que sempre me
tratou e pela amizade desenvolvida entre nós.
Aos professores e à equipe administrativa da universidade, pelo zelo, seriedade e
afabilidade com que tratam as pessoas e os processos que demandam sua atenção.
Aos colegas da turma pela sua importância na minha vida acadêmica, pelos debates
durantes as aulas, pelos seminários enriquecedores e pelas intervenções e sugestões na
lapidação do projeto de pesquisa.
Ao professor Dr. Degislando Nóbrega de Lima que iniciou a minha orientação no
curso, mas migrou para o mestrado em Teologia, e ao professor Dr. José Tadeu Batista de
Souza, que me recebeu de braços abertos e conclui esta jornada comigo, por acreditarem em
mim, mostrarem-me o caminho da ciência e fazerem parte desta construção, além da
paciência (que quase me matou) e disponibilidade de sempre.
À professora Drª. Maria Betânia de Nascimento Santiago e ao professor Dr. Luiz
Alencar Libório pela disponibilidade em participar da minha banca, pelas sugestões de
modificação e aprofundamento das análises e do texto, pela contribuição para o meu
crescimento acadêmico e profissional e por equivalerem, também, a exemplos a serem
seguidos. Suas participações foram fundamentais para a realização deste trabalho.
Aos amigos do Instituto Federal de Alagoas - Campus Santana do Ipanema, que
sempre me ajudaram e incentivaram, em especial, a Ana Lady, Elaine Lima, Flávio Veiga e
Francisco Carlos, componentes do grupo “Sumidades”, pelo apoio incondicional, pela torcida,
pelos debates sempre acalorados, pelas aventuras e diversões vividas no médio sertão
alagoano.
Aos amigos Flávio Veiga e Hugo Brandão que me apresentaram à encantadora e
instigante área das Ciências da Religião, propondo-me as primeiras leituras e os primeiros
debates. Ao primeiro, com especial apreço, pela companhia e incentivo durante o curso
inteiro, pois somos da mesma turma, e por me mostrar que é preciso sonhar com um mundo
melhor; a ambos os amigos, pela bravura invejável para as lutas trabalhistas e por acreditarem
ser possível construir uma sociedade mais justa e igualitária.
Ao Instituto Federal de Alagoas – IFAL que através de seu Programa de Incentivo
para Qualificação em Cursos de Pós-Graduação – PIQPG, custeou este curso de mestrado, e a
todos os servidores que participaram direta ou indiretamente deste trabalho e que me
ajudaram em todos os momentos.
À amiga e irmã Ana Calheiros, com quem muitas vezes compartilhei momentos de
tristezas, alegrias, angústias, ansiedade e reclamações, a qual sempre esteve ao meu lado me
apoiando, incentivando-me e me ajudando. Muito obrigado por se fazer presente em minha
vida, inclusive com questionamentos e palpites ao longo da construção da dissertação.
Aos companheiros de jornada dos Centros Espíritas da comunidade Benedito Bentes,
em Maceió-AL, em especial, aos do “Grupo de Evangelizadores” e do “Grupo de Quinta” que
através do Evangelho do Cristo, encontro forças para renovar a minha fé, além do incentivo
de sempre para que eu enxergue o próximo como irmão e a caridade como ação.
Aos amigos que estiveram ao meu lado e que me apoiaram nesta caminhada, em
especial, Alex Lima, Janeíne Valido, Jonas Batista, Ricardo Araújo, Samara Brasil e Rogério
Oliveira.
A todos os professores que acreditam na capacidade transformadora da educação,
que se preocupam com a religação dos saberes e que se esforçam para serem construtores de
consciências planetárias.
Aos meus alunos que compreenderam as minhas ausências e sempre se dispuseram
para a reposição de aulas e que também são responsáveis pela construção da minha
humanidade.
A todos, meu muito obrigado!
Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há de a gente perdido no vaivém, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que eu invejo é sua instrução do senhor...
Guimarães Rosa
RESUMO
O presente trabalho, desenvolvido no mestrado de Ciências da Religião, vinculado à linha de pesquisa Campo Religioso Brasileiro, Cultura e Sociedade, tem como objetivo investigar a relação entre Espiritualidade e Educação na pós-modernidade a partir do pensamento complexo de Edgar Morin. Na pós-modernidade, observa-se que a vida passou para um âmbito cada vez mais inumano. Com a globalização e a quebra de fronteiras fatídicas na era da informação, a sociedade planetária convive com a perda contínua de uma consciência humanística, tendo em vista as poucas práticas que envolvem o contato físico entre as pessoas, a rotina ditada pelos sistemas de informações, pelos aplicativos e redes sociais. A educação pode ser uma alternativa para responder as demandas da atualidade, porém é preciso rever suas práticas e o papel de seus profissionais numa reflexão sobre o paradigma científico e educacional vigente. A espiritualidade tende a dar algumas vias de ressignificação dessas conjunturas. A questão é como a espiritualidade pode contribuir na vida profissional dos professores de forma a fortalecer seu sentido ético frente à coisificação do ser humano. Assim, a pesquisa se ateve a uma investigação ora bibliográfica, ora de viés analítico fenomenológico, tendo como base as vivências e indagações do próprio pesquisador enquanto sujeito inserido no sistema de ensino. Para nortear a questão, é usada a teoria da complexidade de Edgar Morin na busca de uma espiritualidade isenta de dogmas religiosos e centrada na integralidade do homem, na reabilitação do humano. Algumas reflexões são feitas na perspectiva de salvaguardar a subjetividade como forma de lidar com o peso da realidade, verificando a necessidade da busca de sentido numa sociedade tão fragmentada, onde se identifica que o que se vive atualmente não sustenta mais um projeto de vida consistente e alicerçado. Assim, verifica-se que o aprofundamento da reflexão sobre o humano é fundamental, pois nossas compreensões partem dele, passam por ele e voltam para ele.
Palavras-chave: Espiritualidade e Educação; Ação Docente, Pós-modernidade, Edgar Morin.
ABSTRACT
The present work, developed in the Master of Science of Religion, linked to the line of research of the Brazilian Religious Field, Culture and Society, aims to investigate the relationship between Spirituality and Education in postmodernity based on the complex thinking of Edgar Morin. In postmodernity, it is observed that life has taken on an ever more inhuman scope. With globalization and the breaking of fateful frontiers in the information age, planetary society coexists with the continuing loss of a humanistic consciousness, given the few practices that involve physical contact between people, the routine dictated by information systems, Applications and social networks. Education can be an alternative to respond to current demands, but it is necessary to review its practices and the role of its professionals in a reflection on the current scientific and educational paradigm. Spirituality tends to give some ways of re-signifying these conjunctures. The question is how spirituality can contribute in the professional life of teachers in order to strengthen their ethical sense in the face of the human being. Thus, the research was based on a bibliographic research, or a phenomenological analytical bias, based on the experiences and inquiries of the researcher himself as a subject inserted in the education system. To guide the question, Edgar Morin's theory of complexity is used in the search for a spirituality free from religious dogmas and centered on the integrality of man, on the rehabilitation of the human. Some reflections are made on the perspective of safeguarding subjectivity as a way of dealing with the weight of reality, verifying the need for the search for meaning in a society so fragmented, where it is identified that what is currently lived does not support a project of consistent life and grounded. Thus, it is found that the deepening of the reflection on the human is fundamental, because our understandings depart from it, pass through it and return to it.
Keywords : Spirituality and Education; Teaching Activities, Postmodernism, Edgar Morin.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11
1. PÓS-MODERNIDADE, EDUCAÇAO E ESPIRITUALIDADE ......................... 166
1.1A Fábula .................................................................................................................... 166
1.2 Morin, o complexo ................................................................................................... 244
1.3 A educação e a formação dos sujeitos ...................................................................... 277
2. RELIGIÃO, RELIGIOSIDADE E ESPIRUTALIDADE ..................................... 377
2.1 Os conceitos .............................................................................................................. 377
2.2 Espiritualidade leiga e o novo humanismo ............................................................... 433
3. COMPLEXIDADE E ESPIRITUALIDADE ......................................................... 499
3.1 Edgar Morin e a reformulação do pensamento científico......................................... 499
3.2 A nova descoberta da ciência: o humano ................................................................. 588
3.3 Planos em cursos: entre os ossos e o ofício ................................................................ 60
3.4 Lição final ................................................................................................................. 666
3.5 O caminho para a reforma da vida............................................................................ 777
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 80
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 877
11
INTRODUÇÃO
Poucos conseguem com devida clareza e simplicidade formular teorias tão
profundas, tão necessárias e tão humildes quanto o personagem Riobaldo, do romance
Grandes Sertões de Guimarães Rosa. A hipótese “Com Deus existindo, tudo dá esperança:
sempre um milagre é possível, o mundo se resolve” (Guimarães Rosa, 2001, p. 76) é mais
uma argumentação em favor da existência de Deus e de sua importância para o homem, para a
civilidade e para a esperança. Segundo o personagem, o homem sem Deus é nada, é um ser à
deriva, um animal apenas, pois lhe falta à inteligência, ou simplesmente o uso dela. A
afirmação de Riobaldo suscita várias reflexões a respeito do homem, da vida, do
conhecimento e de Deus.
Em toda a fala do personagem, transcrita na epígrafe, é possível abstrair alguns
entendimentos. O primeiro é que o saber e a razão não são suficientes para atestar a vida, pois
existe dor no viver. Não é possível chegar, segundo ele, a um significado, a uma razão para a
vida. Com ou sem o raciocínio, a dor é uma propriedade da vida, num mundo sem soluções. O
mundo, segundo a obra de Rosa, é um problema, uma complexa ideia, porque é de difícil
entendimento, porque é composto de variados elementos, porque não pode ser reduzido a uma
única coisa. E, nesse emaranhado de fios, a fé antevê a produção coerente da trama de ideias.
A ideia de Deus soa como o mais alto valor a se apreender na existência.
Embora Nietzsche tenha diagnosticado a morte de Deus, em nenhum momento da
história das civilizações pode-se dizer que ele se tenha ausentado como tema de discussão, ou
mesmo, faltado como imagem nas entrelinhas das ações humanas. Ele, Deus, é uma ideia
cheia de vida, que não perece mediante as transformações da sociedade, tampouco deixa de se
multifacetar. Sua complexidade reside no fato de que Deus é sempre um conceito inexplicável
para toda e qualquer ciência que queira prová-lo, que almeje sequer quantificá-lo através de
observações empíricas. Daí, talvez, a criação da Metafísica, isto é, uma reflexão particular a
respeito do que vai além das leis da física. De tudo que pesa à existência, mas não pode ser
medido; que cuida dos assuntos que transcendem a nossa possibilidade de racionalização de
certos fenômenos, de Deus.
Analisando os métodos e as estratégias científicas, ainda não foi possível inoculá-lo
em tubos de ensaio, tal qual, partículas quânticas da matéria. Em suma, todas as teorias se
voltam à justificação da experiência com o sagrado, partindo em si de um ideal do bom e do
12
inefável. Para Riobaldo, o saber e o conhecimento partem para caminhos opostos a seus
objetivos, se excluem a Deus. A razão deve explicar sem ferir o código divindade. E esse é
um dos maiores desafios assumidos pelas Ciências da Religião.
Partamos da ideia de ciência convencionada historicamente e chegaremos ao
paradoxo de imaginar a ciência se pondo a observar de forma particular a religião enquanto
fenômeno. Porém, deve ficar claro ao pesquisador que “o que é fácil para cientistas exatos é
problemático para cientistas da religião” (GRESCHAT, 2005). É preciso construir um método
próprio a partir de passos já consolidados pelos campos do conhecimento, a fim de que se
possa dar inteira confiança aos estudos que se debruçam ao fenômeno religioso.
É preciso, de início, identificar que no processo de pesquisa esse estudo parte das,
hoje chamadas, Ciências da Religião. E que se antes a religião era considerada um empecilho
ao exercício do pensamento científico, na maior parte das vezes, âmbitos inconciliáveis da
humanidade criada entre os crivos da razão e da fé. As ciências da religião de forma
complexa, assim podemos dizer, já que integra esforços de várias áreas do conhecimento
como a antropologia, a filosofia, a hermenêutica, a fenomenologia, entre outras, para a
investigação da religião como objeto de análise, o fenômeno religioso como matéria sensível
a investigação cientifica e seus métodos.
Lembrando sempre que “a palavra religião serve para especialistas de diversas
disciplinas, embora nem sempre – e nem em todos os lugares – denomine a mesma coisa”
(GRESCHAT, 2005, p. 142). Assim, esse trabalho é de relevância para o conhecimento das
ciências da religião por dedicar-se, em particular, à espiritualidade como forma de
transcendência do homem, mas também por aliar a educação como parte a ser formulada e
formuladora da experiência espiritual e até mesmo religiosa, já que em particular a
consciência, ou fé, na dimensão espiritual coincidam com um comportamento religioso de
práticas e de conceitos relativizados.
Por conseguinte, a educação, que tem assumido por finalidade construir o homem a
partir da instrumentalização da razão e do conhecimento, não poderia deixar de fora a
dimensão espiritual e ideológica de Deus como parâmetro da verdade e da bondade.
O fio condutor da temática deste trabalho é a relação entre espiritualidade e
educação, a partir do pensamento complexo de Edgar Morin em confluência com
apontamentos teóricos humanistas acerca da espiritualidade e da educação de pensadores
como Paulo Freire e Leonardo Boff. Pretendemos realizar uma análise da relevância dos
13
postulados desses autores para a atuação docente que consequentemente tem como elemento
de seu trabalho os múltiplos aspectos da dimensão humana1. Configurando-se como um
estudo analítico que se predispõe a estudar como o problema é colocado pelos estudiosos da
atuação docente e da área de educação em geral.
Essa pesquisa tem a intenção de valorizar o humano inserido no processo histórico,
mas tenta refazer seu sentido na turbulência do aqui e agora. Nenhuma pesquisa é produzida
no ad eternum, atemporal, sem marcação histórica ou cultural. No caso aqui, ela é feita sob o
signo da pós-modernidade, no intuito de caracterizar um aspecto determinado da relação
Educação/ Espiritualidade/ Professor. Voltar-se à docência não exclui os profissionais que
estão conjuntamente criando o trabalho com a Educação. Foca-se apenas uma das ações do
campo relacionada diretamente ao ensino - aprendizagem.
Tudo isso compõe elementos imperativos na formação e atuação do professor,
profissional a quem compete por excelência instruir o ser humano numa formação cidadã e
crítica, para a vida social e para o mundo do trabalho.
No desenvolvimento da pesquisa, notou-se que as metodologias limitavam a
abordagem do tema ou eram insuficientes, beirando o paradoxal tratamento analítico. Como
tratar da espiritualidade do professor a partir do pensamento complexo apenas pelo viés
bibliográfico? Ao primeiro instante, pareceu cientificamente aplicável, mas o envolvimento
com a teoria mostrou que era preciso que o pesquisador se fizesse ponto de maturação das
discussões e o próprio objeto de aplicação dos estudos, e que, para isso, a pesquisa deveria
sim extrapolar os limites metodológicos para melhor se adequar aos pressupostos teóricos da
complexidade, evitando assim o reducionismo.
A partir do pensamento de Morin, uma perspectiva teórica de diálogo pode ser
iniciada, pois a teoria da complexidade estabelece a concepção sistêmico-organizacional
como um de seus princípios para compreender e interpretar a realidade complexa.
Nossas pretensões são: identificar e refletir sobre a educação como processo de
formação do humano, a relação do homem com a dimensão transcendental e a contribuição
1 Assim, o humanista passou a ser usado para designar diversas expressões de ideologias modernas e contemporâneas, o que, de alguma maneira, contribuiu para certa vaguidade em seu sentido. Pode-se, então, verificar fundamentalmente três sentidos de humanismo: o humanismo histórico-literário, construído na perspectiva do estudo e da formação da cultura clássica, grega e romana; o humanismo de dimensão especulativo-filosófico, que, de modo geral, engloba os aspectos relacionados à origem, natureza, destino dos seres humanos e que, mais especificamente, implica doutrinas que buscam dignificar os seres humanos; e, por fim, o humanismo de caráter ético-sociológico social, de sua culturalidade e de sua historicidade (MENDONÇA, 2008, p. 20-21).
14
para a condição individual, coletiva, social e global. Nossas análises se compõem de três
momentos específicos.
No primeiro capítulo, intitulado “Pós-modernidade, educação e espiritualidade”,
temos a tarefa de situar o paradigma atual, seus conceitos e suas implicações para entender a
educação como um processo sócio histórico em que os atores estão inseridos.
O texto começa fazendo um retrospecto histórico narrativo em “A Fábula” que expõe
a crise dos paradigmas e as implicações sociais e científicas por meio da ideia de narrativa. A
metáfora é uma importante forma de lidar com conceitos. Elas surgem em todo o texto como
ponte para o pensamento complexo e meio de ultrapassagem da simplificação.
Pela linguagem, começa o trabalho de questionamento do pensamento científico
clássico. A própria forma de abordagem é um elemento de diferenciação dentro das urgências
metodológicas e no fazer ciência.
Em “A Educação e a Formação dos Sujeitos”, pretende-se fazer um traçado do
panorama da atualidade abordando a crise da razão e da modernidade; os matizes da educação
como ideal; uma breve abordagem sobre a educação na pós-modernidade, a espiritualidade
fora do âmbito das religiões e como a crença na capacidade humana, um novo humanismo,
vem dar respostas ao encontro com o transcendente na atualidade.
No segundo capítulo, “Religião, Religiosidade e Espiritualidade”, objetiva-se
apresentar e distinguir criteriosamente os conceitos, suas diferenças e relações. Será abordada,
também, a necessidade da superação do paradigma cartesiano-newtoniano, a qual se reflete na
atual perda de sentido; no renascimento do sagrado na educação; na espiritualidade leiga e no
novo humanismo; e uma visão holística da educação como proposta para a humanidade nesse
novo milênio.
No capítulo terceiro, “Complexidade e Espiritualidade”, enfocam-se práticas e
pensamentos propostos por Morin (2000, 2001, 2002, 2003, 2005, 2010, 2011, 2013). O
objetivo é apresentar a teoria da complexidade expondo os conceitos mais relevantes para a
renovação do pensamento e suas implicações no âmbito espiritual da humanidade. Serão
evidenciados aspectos disjuntivos de nossas faculdades mentais, a ambivalência
confrontadora de nossas capacidades e a formação de uma consciência planetária e humana.
Julga-se que o pensamento complexo desenvolvido por esse filósofo, a teoria da
complexidade, da fragmentação e da totalidade, pode contribuir para uma reformulação do
pensamento. Serão destacadas algumas reflexões sobre a atuação docente, os seus desafios, e
15
a busca de sentido para ressignificação de sua práxis, bem como sobre a autoestima e a
motivação dos professores, a percepção do outro e o professor como ser integrado e
multidimensional.
A metodologia adotada na pesquisa considera, na construção das análises, a figura do
pesquisador e como ele se coloca na escrita e na observação dos fenômenos, a postura de ator
no papel de fazer parte integrante do corpus estudado. Trata-se de um olhar que se volta para
si mesmo, que se autoavalia.
Esse colocar-se como elemento da realidade e como peça de concatenação da análise
faz parte das ideias defendidas no pensamento complexo. Segue-se aqui a intuição de que toda
teoria está ligada a um princípio idealizador, a um referencial de observação, de modo que na
formulação de um pensamento não se deve afastar “o princípio da reintegração do conceptor
na concepção”, pois qualquer teoria, independentemente do objeto de que trate, deve elucidar
aquilo que a faz possível.
Num segundo momento, utilizamos o modo de observação da fenomenologia2 no
tratamento dos dados analisados. A materialidade dos dados vai-se constituindo a partir de
suas arbitrariedades, de sua subjetividade imagética.
2 Fenomenologia “é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, tornam a definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo” (TRIVINOS, 2009, p. 43).
16
1. PÓS-MODERNIDADE, EDUCAÇAO E ESPIRITUALIDADE
Alguns conceitos elementares precisam ser tratados para o desenvolvimento das
discussões e da análise que se constrói no texto e envolve o paradigma pós-moderno e suas
manifestações no meio educacional e suas amplitudes espirituais. É necessário entender como
se caracteriza a pós-modernidade e quais as suas manifestações no meio social,
compreendendo assim como se dá sua interferência nos âmbitos educacional e espiritual. Os
riscos estão expostos no senso comum com o cultivo de ideias que afirmam que nada mudou
ou que as práticas religiosas e educativas fazem parte de uma continuidade. A pós-
modernidade surge então como uma narrativa que se tece a partir de intrínsecos fios da
urdidura da realidade contemporânea, uma realidade relativizada, incerta, insegura.
1.1A Fábula
A religião pertence a uma família de curiosos e às vezes embaraçantes conceitos que a gente compreende perfeitamente até querer defini-los. O espírito pós-moderno, desta vez, concorda em suprir essa família, maltratada ou condenada à deportação pela razão científica, de uma permanente licença de residência (BAUMAN, 1998, p. 205).
Desde o Iluminismo, a civilização ocidental se voltou ao culto de uma nova deusa,
aparentemente mais pura, aparentemente mais equilibrada, aparentemente mais soberana. Tal
deusa, em conformidade com os cultos judaico-cristãos, auto declarava-se única e verdadeira.
De uma verdade maior que a dos outros cultos aos outros deuses, pois comprovável,
verdadeira, autêntica. Decerto, sofrera resistência. Nenhum culto se estabelece sem que
algumas restrições aconteçam.
Essa deusa, chamada Ciência, conhecida em outros povos, em outros momentos, em
regiões variadas, surge de forma sedutora no momento em que outro culto tomava espaço, o
culto aos homens, também conhecido como humanismo. Um depende do outro e, por vezes
17
na história, podemos cruzar suas aparições. No Positivismo3 do século XIX, lá estavam eles
lado a lado. Era de suma importância que os indivíduos pudessem estar no Estado Positivo,
“termo físico e definitivo em que o espírito humano descansa e encontra a ciência. As
sociedades evoluem segundo essa lei, e os indivíduos em outro plano, também realizam a
mesma evolução” (RIBEIRO JÚNIOR, 1986, p. 20).
A crença no Homem fortificava a crença na Ciência. Um se beneficiava com o outro.
E a civilização ocidental caminhou, seguiu mesmo sem saber para onde, com os passos largos
de quem prenuncia a chegada. A promessa se cumprira e a humanidade não parou mais de
evoluir, de crescer, de se libertar de antigos cultos, de deuses arcaicos.
A deusa Ciência, todavia, tinha duas faces, como o deus romano Jano4. Faces a
observar os limiares do conhecimento. Uma delas olhava para o futuro, cheia de planos e
promessas; a outra se voltava para o nada e o nada queria. Para cada promessa, um vazio se
fazia paradoxalmente. Os olhos no bem comum criaram teorias; os olhos sobre o nada, o
genocídio. Os olhos na independência plantaram usinas nucleares; os olhos no vazio
construíram armas de forte poder de devastação.
O homem, antes preso a ideologias, teve o culto questionado por ele mesmo. Nem a
bondade dissimulada das utopias conseguira reconstituir as ilusões perdidas aos homens e ao
social e, muito menos, uma fé forte o bastante para reabilitá-los. A era das descrenças já se
havia instalado, não se tinha muito o que fazer. O culto ao material apagou as necessidades
diárias do etéreo, do mistério e a da esperança. Presa em ritualidades mudas, a busca por
novos sentidos se instaurou como abrigo ao vazio plantado pela ciência e seus cultos menores.
A fábula contada pode parecer redundante e simplista, mas não passa de uma
metáfora, de uma ilustração do problema da pós-modernidade e sua relação com o
conhecimento científico. E uma constante ideia de que a sensação de vazio da humanidade só
aumentou com as certezas. Quanto mais a ciência descobria, menos eram respondidas as
questões ditas transcendentes. O termo transcendente, em si, já é passível de interrogações,
3 Positivismo é, segundo Ribeiro Junior, “uma filosofia determinista que professa, de um lado, o experimentalismo sistemático e, de outro, considera anticientífico todo o estudo das causas finais. Assim, admite que o espírito humano é capaz de atingir verdades positivas ou da ordem experimental, mas não resolve as questões metafísicas, não verificadas pela observação e pela experiência” (1986, p.16). 4 “Deus ambivalente de dois rostos contrapostos, de origem indo-europeia, um dos deuses mais antigos de Roma. De deus dos deuses, criador bonacheirão, transformou-se em deus das transições e das passagens, assinalando a evolução do passado para o futuro, de um estado a outro, de uma visão a outra, de um universo a outro, deus das portas” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1997, p. 382).
18
digamos originais, fazendo alusão a nosso bíblico desejo pelos frutos da árvore do
conhecimento.
Ademais, a transcendência passou a ser um exótico cultivo em nossos dias. Não seria
esse transcender uma reclusão, mais precisamente uma exclusão? E a educação que nesse
processo histórico ficou tradicionalmente a mercê das ordens religiosas e mesmo quando laica
guarda traços de suas associações através dos anos? Destrinçando o problema, acaba-se por
chegar a outras complicações: “O mundo que habitamos é mais religioso do que costumava
ser? Ou menos? Testemunhamos um declínio, uma redisposição ou renascimento da
religiosidade” (BAUMAN, 1998, p. 206).
Na epígrafe usada no início do capítulo, Bauman faz uma reflexão sobre a
modernidade que incomoda, justamente, por reafirmar a vocação religiosa dos novos tempos.
Por que o fenômeno religioso se fortaleceu tanto na pós-modernidade? O que ficou aquém do
pensamento científico a ponto dele pouco contribuir para o bem-estar dos indivíduos em
sociedade?
A falência da ciência não se deu pelo simples fato da explicação dos fenômenos
naturais. Ela não foi suficiente na acomodação do homem ao seu destino. A felicidade e o
conhecimento não andam juntos. Junto a esses fatores está o uso da tecnologia, que tem a
ação de afastar as pessoas umas das outras e, cada vez mais, elas de si mesmas. Decerto que
outras formas de interações foram criadas, formas virtuais de se relacionar, e estão em
processo de especialização e evolução incansável. Ao mesmo tempo, está-se só e
acompanhado. E o vazio continua.
Os tempos pós-modernos, marcados pelo individualismo, mudaram a dinâmica
religiosa do mundo, mas não apagaram ritos consagrados pela tradição e cultura. A atualidade
pôs em evidência a criação de rituais públicos de caráter privado em rotinas econômicas, em
missal de esquecimentos. Em outro momento ele assevera:
Grande esforço é necessário para essa inquietação prevalecer sobre a gravidade das preocupações diárias voltadas para as tarefas a serem executadas e os resultados a serem consumidos nessa única vida que os homens e as mulheres conhecem diretamente, visto que a ganham com o seu próprio trabalho cotidiano (BAUMAN, 1998, p. 211).
19
O cotidiano pós-moderno interferiu massificadoramente sobre o pensamento
religioso, sobre as emergências éticas, sobre o tempo dedicado ao autoconhecimento. A Pós-
modernidade é marcada pela desintegração de estruturas culturais e científicas antes
consideradas como sólidas e inabaláveis. Nela, as identidades nacionais, políticas, religiosas,
de gênero, entre outras, estão em interação e movimento ininterrupto: “O eixo da estratégia de
vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se, mas evitar que se fixe” (BAUMAN, 1998,
p. 114). Se a modernidade foi responsável pela construção de um ideário imagético das
certezas e do império da razão, coube à pós-modernidade a desconstrução, o processo inverso,
pois esteve apoiada nas arestas e na mobilidade dos blocos imaginários modernos.
Deu-se, então, o encontro das improbabilidades com as incertezas, da relatividade do
homem e de seus valores. A identidade que se apoia sobre esses valores distancia-se das
identidades, forjadas a ferro e fogo, do pensamento iluminista e de suas subsequentes
tendências sociológicas, amparadas na ideia de perenidade.
Segundo Hall (1999), a pós-modernidade trata-se de uma diversidade de fenômenos
de desconjuntura das estabilidades e possibilita um processo de identificação que se
caracteriza, por meio de suas contradições e ambiguidades, pelas fragmentações do sólido
sujeito moderno em função do pós-moderno. O autor elege Marx, Freud, Lacan, Saussure e
Foucault como mestres da desarticulação da ideia de identidade, cujo resultado é o sujeito
descentrado.
Para Giddens (1991), o conceito de modernidade deve preceder as discussões.
Entender a pós-modernidade é dar alguns passos à frente, mantendo os pés voltados para traz.
Ele entende que o problema é, antes de tudo, um questionamento epistemológico, o qual
mantém seu atrativo ao pensamento contemporâneo justamente por sua variabilidade.
O que é modernidade? Como uma primeira aproximação, digamos simplesmente o seguinte: "modernidade" refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Isto associa a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial, mas por enquanto deixa suas características principais guardadas em segurança numa caixa preta (GIDDENS, 1991, p. 11).
O autor chama a atenção para a construção sócio-histórica do termo modernidade e
consequentemente para o período posterior, com várias alcunhas e variados marcos de
20
observação. O contemporâneo é chamado de pós-modernidade, ou mesmo de pós-
modernismo e até de sociedade pós-industrial, com relação a transformações sociais,
artísticas, econômicas e tecnológicas. Ainda destaca que:
Alguns dos debates sobre estas questões se concentram principalmente sobre as transformações institucionais, particularmente as que sugerem que estamos nos deslocando de um sistema baseado na manufatura de bens materiais para outro relacionado mais centralmente com informação (GIDDENS, 1991, p. 11-12).
E que as mesmas controvertidas opiniões são parte da reflexão filosófica e
epistemológica, logo Bauman sugere uma mediação aos dois pontos de estudo explicitados.
Segundo o sociólogo, por tradição, as perspectivas teóricas que sustentavam o conceito da
pós-modernidade não levaram em conta a trama que enreda a ação dos atores sociais e a
realidade. Evidenciou-se de forma equivocada um pensamento como prerrogativa dos fatos.
Sendo assim: “as experiências foram construídas sob a orientação de uma teoria que se
esperava provar: serviam ao propósito de confirmar ou corrigir essa teoria e eram, por isso,
períodos bem incorporados e necessários de ação contínua e coletiva” (BAUMAN, 1998, p.
138). Consequentemente, a linguagem precedia à práxis que estava em função de afirmar sua
condição de verdade, e não o contrário.
Isso mostra que as convenções ou mesmo as narrativas que definem o pós-moderno
são tão abstratas quanto qualquer ficção apocalíptica do homem e embora com o advento de
um novo paradigma, o antigo não sumiu; ele se difundiu nas demais instituições, nos demais
discurso, pois “O espírito pós-moderno é bastante humilde para proibir e bastante fraco para
banir os excessos da ambição do espírito moderno” (BAUMAN, 1998, p. 205).
A modernidade e a pós-modernidade estão juntas, não sendo facilmente separáveis.
Como Jano, as duas formas coabitam o mesmo corpo, o mesmo cérebro. Outro fato
importante é que a razão teve seu culto oficializado e difundido em nome do bem comum e da
humanidade.
Em nossas sociedades ocidentais, estão também presentes mitos, magia, religião, inclusive o mito da razão providencial a uma religião do progresso. Começamos a tornar-nos verdadeiramente racionais quando reconhecemos a racionalização até em nossa racionalidade e reconhecemos os próprios mitos,
21
entre os quais o mito de nossa razão todo-poderosa e do progresso garantido (MORIN, 2011, p. 23).
Em suma, os novos tempos exigem uma nova postura dos indivíduos diante das suas
obras. Quem é mais importante o criador ou a criação? O ser ou o aparato tecnológico da era
pós-moderna? Quem serve a quem? Essas questões estão longe de serem respondidas. Mas é
preciso um esforço maior para entender as peças desse complexo vitral. A dificuldade reside
na importância excludente que foi dada a cada peça.
Na modernidade, o pensamento científico forjou espaços instransponíveis e não
atravessáveis, apoiado sempre no princípio da autossuficiência, da supra valorização da
individualidade. O pós-moderno e sua insustentável leveza, todavia, efetivou a cultura da crise
epistemológica, a crise nas ideias hegemônicas. Nas palavras de Brandão:
Enquanto a modernidade científica caracterizou-se pela demarcação das lógicas e das fronteiras disciplinares, pelas hegemonias teóricas, e por uma noção de verdade científica forte, a “provocação pós-moderna” trouxe à luz a arbitrariedade dessas fronteiras, a provisoriedade das formulações científicas, a verdade como um processo, assinalando os interesses em jogo e as estratégias de dominação subjacentes às hegemonias no campo científico (BRANDÃO, 2002, p. 87).
A estratégia da modernidade foi organizar na prateleira das grandes invenções as
utilidades, atribuindo-as conforme a procura, o tamanho, as cores e as particularidades. A pós-
modernidade retirou os selos, redistribuiu os lacres e agrupou as mesmas utilidades em caixas
maiores, sem restrições peculiares, para agradar a demanda dos que não sabem o que querem,
nem o que são, mas que rejeitam as sugestões prontas, as embalagens cômodas ao mercado e
as suas necessidades. Na ciência, o pensamento complexo se institui pela tradicional
especialização contrária à ação transdisciplinar.
Entender o presente é sempre uma perigosa e extenuante tarefa para o olhar crítico.
Os elementos usados para a análise do agora são sempre repentinos, frágeis, descontínuos.
Desta feita, voltar-se ao passado, na maioria das vezes, é sempre mais seguro e salutar, na
construção de um pensamento que foca a observação do contemporâneo de maneira imparcial,
que se coloca instantaneamente fora e dentro dos fenômenos observados.
22
Conclui-se que a construção do pós-moderno passa pelo entendimento do segundo
elemento da palavra: o moderno. A pós-modernidade não baniu, como se pensa, a
modernidade, mas inseriu profundas transformações nos seus significados. Por esse motivo,
para entender a primeira, pós-modernidade, é necessário se entender a segunda, modernidade,
em seus pontos mais relevantes para a questão.
A primeira coisa a destacar é que a modernidade e o moderno também não são
termos fixos ou delimitados a partir de propriedades universais. Tradicionalmente o vocábulo
é usado como marco histórico didático do período das Grandes Navegações. Também foi
usado para designar o mundo industrial e suas vivências tecnológicas. Os românticos se
diziam modernos. Mas o modernismo do fim do século XIX ao início do século XX
popularizou a palavra, como se antes nunca tivesse sido usada.
Observa-se que não há um consenso, mas pontos de observação. Longe de restringir
os sentidos, pretende-se expandir as suas utilizações. Em Giddens, a modernidade é
equivalente à pós-modernidade. Não há dúvidas de que a pós-modernidade tanto signo,
quanto semanticamente. não é algo tão fácil de definir sem um referencial de análise.
Compreender a modernidade está mais para reconhecer seus conflitos nascidos da
racionalização do tempo e da vida humana sobre a terra. A narrativa moderna vai para além
dos sujeitos; ela se volta para um conceito abstrato e inatingível: o de sujeito do saber, como
se observa nas palavras da afirmativa: “A modernidade se caracteriza por uma ruptura com a
tradição que leva à busca, no sujeito pensante, de um novo ponto de partida alternativo para a
construção e a justificação do conhecimento” (MARCONDES, 1996, p. 20). Como se vê, as
rupturas não param de acontecer e são elas o ponto de partida para o entendimento.
O pensamento moderno pôs como único objetivo o conhecimento e elaborou
estratégias de anulação de quaisquer outros discursos que não em nome de seus feitos e de
suas ofertas. Ditou o ritmo como seus comparsas ditam a vida, a partir de fios
inexplicavelmente invisíveis, mas resistentes, na ordenação dos títeres. Dada à reflexão das
contingências do humano, Bauman fornece similar pensamento ao citar seus estudos sobre
Christopher Lasch. Para ele, os fios seguem a “determinação de viver um dia de cada vez, e
de retratar a vida diária como uma sucessão de emergências menores, que se tornaram os
princípios normativos de toda estratégia de vida racional” (BAUMAN, 1998, p. 113).
O indivíduo pós-moderno acostumou-se com os exageros e as discrepâncias
contingentes da sociedade contemporânea, marcada pela confiança cega no racionalismo, um
23
culto fundamentalista de adoração à deusa Ciência que pouco deu importância aos aspectos
psicológicos dos homens frente aos anseios perturbadores e às questões filosóficas sobre o
estar no mundo.
A razão e o cientificismo na pós-modernidade trataram a vida como um fato
biológico, a personalidade como um jogo de interações de estímulos e os demais aspectos
humanos dentro de fórmulas estatísticas. Tudo isso de forma isolada e vigiada, não seguindo a
ideia de multiplicidade das dimensões que formam o humano. Como se vê nas proposições
dos três pensadores, a pós-modernidade se caracteriza por sua instabilidade, por sua
inconcretude, por seu caráter líquido e disforme.
O paradigma vigente se volta para uma ideia de crise e de desarticulação de verdades
absolutas e coube a ele ressuscitar o sentimento religioso, pois a Ciência mostrou limitações e
que outras explicações fazem sentido dentro de outras lógicas possíveis. Incumbiu-se a pós-
modernidade de lançar, para fora da escuridão do tecnicismo, as almas enterradas vivas nas
especialidades que o mundo moderno exigiu. É nesse instante que o conhecimento complexo
contribui não para uma solução, mas para a ampliação das problemáticas do século XXI.
Tanto para o intervalo de tempo que marcara o paradigma atual, quanto para o
homem contido nesse intervalo, Morin sugere que, longe de uma definição certa e estanque,
também é preciso lançar sobre a questão vários pontos de observação para entendimento de
suas variações. Isso porque, segundo ele, a verdade não é tão simples e que acreditá-la dessa
forma é desafiar o estatuto de sua estruturação complexa. Afirma que: “Unidades complexas,
como o ser humano ou a sociedade, são multidimensionais: assim, o ser humano é, ao mesmo
tempo, biológico, psíquico, social, afetivo e racional” (MORIN, 2011, p. 35). O filósofo
inspira uma reflexão mais abrangente, embora menos conclusiva, algo que se pode entender
através de discursos como:
Sobre a visão de personalidade humana e da vida em sociedade, em coexistência com a insignificância do viver, os sentimentos de medo e a experimentação de diferentes processos de fuga do real, frente à “solidão e o vazio existencial”. A inexpressão ou desconsideração da essência do amor, o bloqueio das emoções e o afastamento das raízes espirituais são alguns dos resultados da perda da visão unitária e totalizante da vida (ESPÍRITO SANTO, 2008, p. 8).
24
O mundo moderno se voltou de forma distanciada desses conflitos. Até os estudou e
os medicou, mas não lhes deu o devido valor ou importância. A pós-modernidade se
estabeleceu justamente nos espaços de rejeição de onde se operam as construtividades. Num
processo contínuo de transformações na sociedade contemporânea, é fácil perceber que
algumas estruturas, mais que outras, são mantenedoras de práticas e ideias comuns entre elas,
podendo gerar afirmativas quanto à existência de um ethos contemporâneo, de uma
mentalidade que se constitui de estruturas de redes, com ramificações e caminhos. Tal ethos,
então, seria responsável pela interligação do homem pós-moderno com sua imagem ou
simplesmente interagiria como fios do bastidor na ordenação dos indivíduos.
As transformações políticas, econômicas e, sobretudo, tecnológicas do século XX,
que continuam com vigor na atualidade, inevitavelmente repercutem na formação de
professores e sua prática, e esse cenário permanente de modificações na sociedade
contemporânea é apontado como uma complexidade da alta modernidade (GIDDENS, 2002).
Compreendemos essas transformações como uma ebulição de teorias e experiências
ocorridas no mundo da ciência, na práxis docente e numa permanente dialética com a
sociedade. Eventos esses, a exemplo da incorporação da tecnologia, da intensificação da
comunicação midiática e suas ambivalências, das exigências do mercado sob a égide
econômica do capital e suas contradições, da mercadorização da educação e das pessoas, da
complexificação das relações familiares, culturais e sociais, os quais se configuram num
emaranhado de novos atores e personagens, que pleiteiam seus direitos frente ao Estado e à
sociedade capitalista. Nesse momento, é para a Educação que a análise se volta como degrau
de uma escadaria que se bifurca e toma variações de um mesmo itinerário.
1.2 Morin, o complexo
Por traz da teoria da Complexidade está Edgar Morin, francês de origem judia, o
maior divulgador da complexidade, tem em sua história de vida todos os elementos da
experiência imbricados numa práxis cientifica que deseja transformar a humanidade para o
Novo Milênio, o milênio da informação. Suas experiências com o comunismo desde 1941,
quando se filia ao partido, deixou em sua personalidade um sentido de pertencimento e de
25
unidade coletiva que vai aparecer em seus escritos como a própria humanidade. Todo
conhecimento, segundo ele, deve ser para servir a todos os homens do planeta.
O contato com a teoria da informação, a cibernética e a biologia fundiram-se em
passos teóricos para a formação da teoria da complexidade, em que todo conhecimento pode
ser dissecado em inúmeros elementos que não se resumem em peças de um quebra-cabeças
predeterminado. Pode-se dizer que o complexo de Morin é, por posicionamento, algo não
redutível, é um labirinto que finda onde outro começa, uma interminável busca pelo sentido
das coisas.
A obra que reuni os principais pressupostos do pensamento complexo de Edgar
Morin (2005) é O Método, escrito em seis volumes, produção que se estendeu por seis anos. É
nela que os principais conceitos do autor estão elencados, como, a recursividade e a
transdisciplinaridade do conhecimento. De certo, ele apresenta uma crítica aos limites
impostos pelo conservadorismo cientifico paradigmático. Temas que serão abordados com
maior ênfase no próximo capítulo.
Na teoria do complexo, é importante que o conhecimento e a prática não estejam
separados e a junção de ambos encontra na educação sua forma mais produtiva. Em Os sete
saberes necessários a educação do futuro, a educação é o primeiro passo para humanizar o
conhecimento e transformar a sociedade, aliando os saberes e as atitudes que devem partir dos
educadores e, em cadeia, atingir a todos os membros da comunidade.
Muitas são as contribuições e pequeno o espaço para destrinchá-las, daí a intenção
aqui fora a de destacar as principais contribuições de Edgar Morin (2011) para a formação dos
indivíduos partindo da ideia de educação e espiritualidade, já que os seus esforços se dirigem
para os processos formativos do homem, e para a tomada de uma nova consciência planetária,
o que ele vai chamar de experiência espiritual do homem.
A base do pensamento complexo de Morin (2011) passa por uma ressignificação das
categorias biológicas que definem o homem, pela problematização da hegemonia racional,
que supôs ser o homem a razão de tudo, que submeteu aos caprichos da espécie todos os
ecossistemas do planeta. Para o pensamento complexo, todas as coisas são tecidas em
conjunto, sendo assim, o Homo sapiens sapiens não condiz com uma perfeita classificação da
espécie humana, pois ela oculta a sua demência, a sua irracionalidade, a sua animalidade. Para
ele, o Homo sapiens sapiens demens, estaria para uma ideia mais próxima do homem, pois
vivemos em uma luta constante de valores que vão do saber à loucura.
26
O pensamento complexo de Morin (2011) se estabelece a partir de conceitos de
operadores lógicos da complexidade, respectivamente, o operador dialógico que intermedeia
as formas de interação e formação dos sujeitos por meio da experiência efetiva de interação
social e o operador recursivo que demonstra que os significados estão dentro de um ciclo em
que esses elementos trocam várias vezes de função; e o operador hologramático.
O operador dialógico diferencia-se de um principio dialético. Na dialética, as
diferenças são relacionais, estruturais e as coisas se dispõem em oposições que as conceituam.
Assim o racional será o oposto do emocional e vice-versa. Já para o dialogismo, emocional e
racional se fundem, há algo de racional no emocional, como há algo de emocional no
racional. O conhecimento complexo entrelaça ideias que o reducionismo racionalista separou,
coisas que aparentemente estavam isoladas. Não há sínteses perfeitas para a configuração do
mundo complexo.
O operador recursivo desafia o entendimento da disposição dos elementos lógicos de
uma equação e de um pensamento linear que projeta os resultados a partir da interação de
ações. Se A+B=C, para o recursivo C promove a concretude de A e de B e vai além de sua
elementariedade. Há sempre algo que sobra ou é pouco a reação, algo que não fora por
redução não fora computado na reação. Biologicamente falando estamos para o produto de
uma união biológica, entre um homem e uma mulher e como também estamos para elementos
geradores de outras uniões.
Para o operador hologramático, a separação das partes do todo é por deveras uma
difícil empreitada, já que a parte está no todo, assim como o todo está na parte. A questão é a
ideia de totalidade, o micro e o macro são indissolúveis, indissociáveis. Se até então a ciência
predispôs o conhecimento da particularização de aspectos de análise, limitando assim a
produção científica sobre determinado fenômeno, para teoria da complexidade só podemos
chegar a uma explicação razoável sobre um fenômeno, se relacionarmos vários pressupostos
teóricos sobre os mesmos, de vários campos do conhecimento, de várias perspectivas de
estudo.
Para Morin (2005), mesmo na arte, podemos obter explicações tão importantes sobre
a vida tanto quanto na matemática, na biologia e na física. O grande desafio, portanto, para a
teoria da complexidade é a integração dos saberes. Segundo o próprio Morin, temos que
romper com a noção de que devemos ter as artes de um lado e o pensamento científico do
outro. São estas ideias que irão propor a ligação entre o homem material e o homem
27
espiritual, sem que isto implique em uma aceitação religiosa, mas com grande veemência ao
sagrado e à própria vida humana. Essa, para o cientista ateu, é a grande razão de nossos
esforços pelo conhecimento.
1.3 A educação e a formação dos sujeitos
A educação mundial está em crise, clama por transformações e, consequentemente,
por mudanças de paradigmas. Falar de educação e espiritualidade não é algo novo. Segundo
RÖHR (2012), pode-se afirmar que ainda persistem modelos de tratamento da temática
divididos em duas linhas gerais, em duas maneiras de abordar o assunto tão complexo que
envolve a espiritualidade e a ação educativa.
Uma é através de exemplificações do tema, reduzindo-o, simplificado-o a partir de
um problema específico ou focando a perspectiva de um determinado autor que refletiu sobre
o tema. A segunda forma de abordagem passa pelo esforço de ampliar os horizontes de
visualização do assunto, mostrando as diversas formas de implicação dos dados e dos
fenômenos observados. Com o cuidado de não simplificar o objeto de informação
percorremos diversas vias de problematização.
Morin, Ciurana e Motta, na obra Educar na era planetária, apresentam a seguinte
problemática:
O caráter funcional do ensino leva a reduzir o docente a um funcionário. O caráter profissional do ensino leva a reduzir o docente a um mero especialista. O ensino tem de deixar de ser apenas uma função, uma especialização, uma profissão e voltar a se tornar uma tarefa política por excelência, uma missão de transmissão de estratégias para a vida. A transmissão necessita, evidentemente, da competência, mas, além disso, requer uma técnica e uma arte (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003, p. 98).
A princípio, a educação é vista como um problema da atualidade que precisa ser
remediado. Embora seja uma emergência nas pautas sócias e políticas; embora seja de suma
importância na transformação do capital cultural, a educação resulta em um esforço, ora
pessoal de formação do indivíduo, ora social na resolução de demandas estruturais nas
28
dinâmicas culturais, políticas e econômicas. Sempre estará em atraso, levando em
consideração as necessidades contingentes e históricas de uma nação. O que se pode observar
é que a educação, mesmo a tida como religiosa, pouco deu importância para a instância
espiritual das pessoas, seus objetivos se limitavam para a manutenção de um status quo ou
mesmo do poder econômico que suscitaram um modelo prático e lógico do homem.
Outrora, no campo das ideias é muito fácil perder-se em meio a tantas definições e
conceitos infectados pelas ideologias. Uma infecção não combatível, não evitável, tão pouco
minorada, já que é matéria constituinte de qualquer pensamento. Uma destas implicações se
mostra através da utilização dos termos consciência e espiritualidade.
Muitos são os exemplos que estabelecem semelhanças entre espiritualidade e consciência. Contudo não parece gratuito a morfologia da palavra que liga. A consciência é um estado interior que se manifesta pelo poder da transformação, do amadurecimento, que traz pouco a pouco o despertar de nossa natureza divina e uma ampliação de visão de nossa relação com tudo o que nos cerca (SAMPAIO, 2010, p. 59).
Em outras palavras “toda consciência é consciência de alguma coisa”
(MENDONÇA, 2008, p. 37). Torna-se necessário, estender as possibilidades de compreensão
semântica do fenômeno educação sem inocentá-la de suas coligações ideológicas.
Destrinchar o problema requer, desta forma, entender as instituições como unidades
de uma trama, e a escola é uma delas. Fios do tecido macroestrutural da sociedade ou mesmo
como aparelho ideológico do Estado. Entender os sujeitos envolvidos pela rede
epistemológica e política e, compreender a educação e suas finalidades.
Nesse trabalho, defende-se a compreensão de que “[...] o trabalho educativo é o ato
de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2005, p.13).
Temos aqui a afirmação de que o processo educativo é um processo de formação humana, isto
é, um processo em que todos os seres humanos - que nascem inacabados do ponto de vista de
suas características humanas - são produzidos, construídos, como humanos. Uma vertente
Kantiana e ao mesmo tempo moderna que facilita o entendimento do conceito de educação.
Segundo Kant (1999), o homem deve ser um produto da educação, o resultado da
ação educativa sobre ele, aquele que por parte da disciplina e da instrução assegurou sua
29
humanidade. Ele não é, mas torna-se homem a partir do conhecimento de sua condição. Em
sua necessidade de educação ele assume três aspectos: infante, educando e discípulo.
O pensador ainda assevera que na educação o homem deve tornar-se disciplinado,
impedindo que a animalidade prejudique o caráter humano; tornar-se culto, adquirindo
habilidades que possam servir circunstancialmente, ela também deve cuidar para que o
homem adquira prudência, o que também pode ser chamado de civilidade, que é a capacidade
do homem estabelecer boas relações sociais; e por fim, que ele, o homem, se torne um ser
moral, capaz de fazer as boas escolhas, afirma: “A única causa do mal consiste em não
submeter à natureza a normas. No homem não há germes senão para o bem” (KANT, 1999, p.
24). É ou não uma indicação da divindade do mesmo? Ou mesmo um processo de
purificação? Questões a serem respondidas.
Kant, quando pensa na humanidade como resultado da ação educadora, delimita
certas circunstâncias que reafirmam a formação do homem e o trabalho é uma delas. É
importante que as crianças aprendam a trabalhar, pois o homem é o único animal obrigado a
trabalhar em favor da cultura que lhe deu liberdade e autonomia sobre as intempéries da
natureza. Assim, liberdade e obediência se refletem na noção de trabalho, mediante a
passagem da natureza, o estágio bruto do homem, a cultura, a sua humanidade.
No pensamento de Kant (1999), a educação é uma prática que relaciona
aprendizagem de utilização de diversos mecanismos operacionais do indivíduo em sociedade.
É algo que se assemelha ao condicionamento de respostas funcionais dos indivíduos em suas
relações diárias, em suas ações, portanto, de interação. Já o esclarecimento está para a
propriedade do homem em seguir sua razão, por meio de seu pensamento organizar suas
escolhas e posturas diante da realidade, não tendo necessariamente uma função prática de
interação.
O grande problema da atualidade, porém é fazer com que os apelos de uma economia
globalizada, que se fixa em alicerces voltados a comercialização dos meios de produção,
coloquem a educação como sua principal aliada: “O dever principal da educação é de armar
cada um para o combate vital para lucidez” (MORIN, 2011, p.31). Para Morin a educação
deve dar munição racional para a passagem dos homens pela terra. Frente à constatação de
sua brevidade e de sua eternidade histórica. Todos os movimentos fazem parte de uma
coreografia de improvisos.
30
Segundo o pesquisador, desse modo, a condição humana deveria ser o objeto
essencial de todo o ensino (MORIN, 2011, p.16). A ideia de humanidade se perde ou é
minorizada em função das necessidades do mundo do trabalho, que deveria ser uma das
finalidades da ação educativa e não seu princípio mestre.
A sociedade contemporânea, enfim, se rendeu ao materialismo perigoso, pois: “[O]
Homem quando desce ao coração da matéria, para “entendê-la”, chega ao nada” (ESPÍRITO
SANTO, 2008, p. 24). O nada, o vazio mostra que a educação perdeu a grande chance de criar
uma sociedade plena em suas capacidades e habilidades. Nisso compete uma contribuição da
teoria da complexidade para a educação humana, daí a necessidade de entendê-la.
O que é a complexidade? A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. (MORIN, 2011, p. 13)
Para Kant, o esclarecimento estaria para uma autopercepção de sua capacidade de
pensar. O filósofo lança vários conceitos para entendermos a educação e o faz no século
XVIII sob a égide do pensamento Moderno. Segundo o pensamento e a ideia de
esclarecimento de Kant a educação tem algo de pós-moderno que é esta resistência ao
inacabado como principal característica humana. Ela também é uma narrativa em que se
relacionam elementos como espaço, tempo e personagens.
Destaca-se aqui o espaço escolar onde serão efetivadas as ações transformadoras e
libertadoras dos indivíduos. A escola tem uma posição estratégica nos projetos e idealizações
de uma sociedade. Em um dado tempo e espaço, ela funciona como impulsionadora das ideias
e práticas sociais em dado contexto histórico e é nela que a educação vai habitar e reger.
Como se disse anteriormente sobre a educação e suas ideologias. Muitos são os
exemplos da pactuação de interesses que não o formativo, que não o estritamente educativo
como Kant queria. No exemplo histórico a seguir, a ação ideológica arregimenta vários atores
e agentes. Para dar exemplos próximos de coligação educação/política/religião basta destacar
anos e anos que o sistema de ensino brasileiro participou de um corporativismo de ideais.
31
No esquema político autoritário de Francisco Campos o ensino religioso era, ao mesmo tempo, um instrumento de formação moral da juventude, um mecanismo de cooptação moral da Igreja Católica e uma arma poderosa contra o liberalismo e no processo de inculcação dos valores que constituam a base de justificação ideológica do pensamento político autoritário (HORTA, 1994, p. 107).
Embora, muitas vezes se possa entendê-la como um reflexo e diagnóstico dos
indivíduos do meio social. Tem-se aqui um fio condutor que vai de um ponto a outro desse
trabalho unindo espiritualidade e educação, a partir do pensamento de Edgar Morin e os
apontamentos teóricos acerca da espiritualidade de Leonardo Boff. É necessária uma análise
da relevância seguindo um pensamento que destaca esses postulados para a atuação docente e
sua dimensão humana.
A questão surge de uma observação simples das transformações dos processos de
ensino e aprendizagem e de sua institucionalização. Na nossa sociedade ocidental, a escola se
fortalece como uma variante do mundo religioso, a educação passa pela vigilância e censura
das instituições religiosas ou do governo, de forma tão sagrada quanto. Isso lembra que a
escola tinha por finalidade a formação moral e ética
Tudo isso compõe elementos imperativos na formação e atuação do professor que
não podem ser excluídos, mas nada impede de serem enriquecidos com novas práticas e novas
ideias que atendam à demanda dos tempos. A esse profissional compete, por excelência,
instruir o ser humano numa formação cidadã e crítica, para a vida social e para o mundo do
trabalho.
A partir do pensamento de Morin (2005, p. 86), uma perspectiva teórica de diálogo
pode ser desenvolvida a partir da teoria da complexidade em sua concepção sistêmico-
organizacional como um de seus princípios para compreender e interpretar a realidade. Ponto
em que reside o interesse deste trabalho de contribuir para o desenvolvimento do olhar crítico
do profissional da educação e do pesquisador.
É preciso ampliar as compreensões sobre a temática que une espiritualidade e ação
docente; fomentar as diversas formas de ver a dinâmica de efetivação dos fenômenos de
ensino aprendizagem; identificar e refletir sobre a educação como processo de formação do
humano e de suas propriedades; buscar compreensões sobre a relação do homem com a
dimensão transcendental de sua personalidade e entender a contribuição para a condição
individual, coletiva, social e global do ser.
32
Ampliando esse entendimento, recorremos a Morin (2005) que apresenta a
espiritualidade como um caminho para a transformação do ser, destacando que: a cultura é
que constituí os hábitos, as normas, as crenças, os valores entre outros, dentro de qualquer
sociedade. Essa cultura, de acordo com o autor, é centrada no capital humano, responsável
pela transmissão do conjunto de seus hábitos e costumes e pela evolução mental, psicológica e
afetiva dos indivíduos, por meio da linguagem, considerada por ele, o nó de toda cultura e de
toda sociedade humana, porque a linguagem e o homem são indissociáveis.
A linguagem é decorrência do pensamento que combina palavras com diversos
sentidos, isto é, a linguagem é uma capacidade do espírito humano, indispensável a todas as
operações cognitivas e práticas que promovem a revolução mental, sendo que o espírito
emerge do cérebro humano, com e pela linguagem, dentro da cultura.
Os três termos, cérebro - cultura - espírito, são inseparáveis. Uma vez que o espírito emergiu, retroage sobre o funcionamento cerebral e sobre a cultura. Forma-se um circuito entre cérebro – espírito – cultura, no qual cada um desses termos necessita dos outros. (MORIN, 2005 p. 38).
Morin, em seus postulados teóricos, reafirma o fato de possuirmos, enquanto
organicidade biológica, um mecanismo mental de inteligência inata responsável por uma série
de reações. Reafirma também os pressupostos antropológicos de que o homem é um ser
cultural, que só pode existir dentro da cultura, e que também é espírito, que corresponde à
mola recursiva de ativação dos aspectos anteriores. Dentro dessa ideia, ainda defende que:
O espírito é uma emergência do cérebro que suscita a cultura, a qual não existiria sem cérebro. [...] Quando escrevo espírito, quero dizer mind, com todas as diversas qualidades que surgem com ela entre as quais o ingegno de Vico (aptidão combinatória, inventiva) (MORIN, 2005 p. 38).
Desta feita não se operariam cultura e mente sem o espírito, cooperando para a
destrancendentalização do termo e aponta-nos uma dimensão mais material desse software
humano.
Outra capacidade do humano para desenvolver atividade transformadora e produtiva
é a de considerar-se ora sujeito, ora objeto, o que promove o questionamento, a curiosidade e
a consequente investigação, o prazer de aprender/conhecer, permitindo uma visão de mundo
33
mais ampla, embora complexa, uma vez que cada indivíduo apresenta uma subjetividade,
sinônimo de singular e único, que o diferencia dos demais, por ser uma unidade dentro da
diversidade.
No pensamento complexo, “O tesouro da humanidade está na diversidade criadora,
mas a fonte da sua criatividade está na sua unidade geradora” (MORIN, 2005 p. 66). Pode-se
compreender que a unidade geradora é uma capacidade comum a todos de uma coletividade
biológica, a identidade estaria dentro da alteridade, conclui-se. Um se constitui a partir do
outro e vice-versa.
A relação com o outro depende da autonomia do indivíduo considerando o
conhecimento empírico, a racionalidade, a sensibilidade, o imaginário, a afetividade como
elementos necessários para as relações interpessoais que são marcadas pelas influências
sociológicas, a exemplo: a educação familiar e escolar.
Dessa forma, cada cultura, por meio do seu conjunto de hábitos e costumes, estimula
e incentiva o indivíduo a desenvolver determinadas práticas de relação consigo mesmo por
meio dos dispositivos culturais que estão em volta dos sujeitos. Porém, o que não é aparente é
que os sujeitos não se compreendem dentro de uma cultura, pois a percepção dos mesmos é
limitada. Os sistemas culturais englobam os sujeitos em suas tramas emaranhadas e
complexas e o exercício das autonomias um efeito um fio entre tantos do tecido da realidade,
cabendo assim entender que:
[...] é importante ter o pensamento complexo, ecologizado, capaz de relacionar, contextualizar e religar diferentes saberes ou dimensões da vida. A humanidade precisa de mentes mais abertas, escutas mais sensíveis, pessoas responsáveis e comprometidas com a transformação de si e do mundo (MORIN, 2011, p. 13).
Entretanto, o processo de autonomia é permeado pela complexidade, aqui entendida
como o entrelaçamento das ideias, das ações individuais, coletivas, do confronto de indivíduo
com outro ser, de nos colocarmos no lugar do outro, de sermos ora sujeito ora objeto. E esta
complexidade precisa ser questionada, investigada, entendida e respeitada, porque toda ação
escapa à vontade de seu autor quando entra no jogo das inter-retro-ações do meio em que
intervém, uma vez que indivíduo/sociedade/espécie, além de serem indissociáveis, são co-
34
autores uns dos outros, isto é, um depende do outro para o desenvolvimento individual e
coletivo (MORIN, 2003 p. 88). Novamente o pensamento é um elo numa cadeia de processos.
O pensamento de Morin, embora sobre outro aspecto, confirma a importância da
espiritualidade no processo de formação do indivíduo e a complexidade que envolve esse
processo e que exige uma mudança de paradigmas em todos os âmbitos, principalmente no
paradigma educacional.
Alguns estudiosos sobre o tema fazem questão em afirmar a inter-relação entre
espiritualidade, sujeito e personalidade. Santos Neto (2006) afirma a importância da
espiritualidade na formação e construção do sujeito, compreendendo que esse processo só será
possível se o sujeito estiver aberto à sua inteireza.
Desta forma, falar em abertura/mudança no campo educacional significa
compreender o processo de educação – como relações entre seres humanos que se
desenvolvem na inteireza, num constante movimento de construção e reconstrução de si
mesmo e da história da humanidade: “O trabalho educativo precisaria estar atento à dimensão
da espiritualidade: desobstrui-la, ajudá-la a tornar-se presente no quotidiano das experiências
e das decisões, fazer ver que ela não é campo tão somente das religiões” (SANTOS NETO,
2006 p. 38-39).
No sentido de transformação, Boff (1999) fala que o ser humano é um ser de
mudanças e que está sempre se refazendo. As mudanças podem ser interiores ou exteriores.
Há mudanças que não transformam nossa estrutura de base. São superficiais e exteriores. Mas há mudanças que são interiores. São verdadeiras transformações alquímicas, capazes de dar um novo sentido à vida ou de abrir novos campos de experiência e de profundidade rumo ao próprio coração e ao mistério de todas as coisas (BOFF, 1999, p. 17-18).
Ressaltamos que Boff (1999, p. 21) considera como espiritualidade “aquelas
qualidades do espírito-humano tais como amor e compaixão, paciência e tolerância,
capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia que
trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto aos outros”. Esta ideia, da atenção à
dimensão da espiritualidade, propõe o pensar do papel do professor ou da professora.
O professor necessita de um ciclo de ação/reflexão pedagógica na totalidade. Assim
encontramos em Freire (1992, p. 110): “O educador ou a educadora crítica, exigente,
35
coerente, no exercício de sua reflexão sobre a prática educativa, sempre a entende em sua
totalidade”.
Isso não significa que os conteúdos escolares fiquem à orla do processo educativo.
Os conteúdos escolares fazem parte deste ciclo de ação/reflexão na totalidade, pois são eles
que auxiliam no processo de construção e formação do indivíduo: “Não há, nunca houve nem
pode haver educação sem conteúdo” (FREIRE, 1992, p. 110).
Espírito Santo (1998, p. 19), em seu livro o Renascimento do Sagrado, afirma que
“muitos especialistas trabalham conteúdos específicos, desprezando a visão integral do ser
humano. Sustenta a necessidade de introduzirmos o autoconhecimento”. O autoconhecimento
é imbricado com a espiritualidade, capaz de desenvolver diferentes níveis de consciência,
provedores da inteireza do ser humano.
Portanto, é importante uma educação baseada na condição humana, considerando a
subjetividade dentro da diversidade e a complexidade que permeia esses dois sistemas
antagônicos e indissociáveis.
Existem demandas sociais que devem ser atendidas pela força do trabalho, pela
atuação profissional e que as mesmas interferem na produção da imagem do homem. É
necessário tomar outros rumos na obtenção de respostas ao fenômeno espiritual e à educação.
As posturas são requeridas:
Ou se deseja caminhar sem muletas institucionais, selecionando os fenômenos relevantes segundo a interpretação pessoal o as intuições populares do “transcendental” ou “definitivo”- e então se acaba numa rede conceitual apertada demais ou porosa demais, que capta ou exclui em demasia os pensamentos e atos humanos, no inexplorado resíduo do fundo comum da vida (BAUMAN, 1998, p. 208).
E, nesse sentido, a busca de novos caminhos para outra compreensão de mundo
envolve a educação em todos os níveis, em todas as modalidades e em todas as idades. “O
desenvolvimento da compreensão necessita da reforma planetária das mentalidades; esta deve
ser a tarefa da educação do futuro” (MORIN, 2003 p. 104). Tal processo apresenta-se como
um grande desafio para o educador, porém necessário e possível. Seriam atribuições
institucionais dentro de um sistema produtivo que se pautou pelo não respeito à
36
individualidade e às subjetividades das pessoas, na qual somos aprisionados em cotidianos
vazios, fazendo-se:
[...] necessário para essa inquietação prevalecer sobre a gravidade das preocupações diárias voltadas para as tarefas a serem executadas e os resultados a serem consumidos nessa única vida que os homens e as mulheres conhecem diretamente, visto que a ganham com o seu próprio trabalho cotidiano (BAUMAN, 1998, p. 211).
Toda a sociedade volta-se à garantia de um sistema sobre a vivência. Prática
evidenciada pelos versos de Fernando Pessoa que fazem uma reflexão sobre as urgências do
mundo moderno “Navegar é preciso. Viver não é preciso”. É preciso escapar ou mesmo
reformular essa lógica inumana. A religiosidade e a espiritualidade surgem como forma de
refração e alternativas remediadoras de danos.
37
2. RELIGIÃO, RELIGIOSIDADE E ESPIRUTALIDADE
A espiritualidade é em si um termo que comumente é associado à religião ou à
religiosidade. Todavia existe uma independência entre os termos que deve ser ressaltada. As
categorias e os conceitos possuem fronteiras demarcadas entre o pensamento e a prática? De
que trata cada um? Como se relacionam? São questões que são desenvolvidas nesse capítulo.
Como o conhecimento pode andar junto à prática espiritual sem alimentar ainda mais nossas
paixões e arroubos mágicos?
2.1 Os conceitos
[...] religião não é o mesmo que espiritualidade – longe disso. Nem Deus é a mesma coisa que espiritualidade (CHOPRA; MLODINOW, 2012, p. 18).
O fenômeno religioso é uma característica essencialmente do homem, entre os outros
animais, que faz parte da organização e entendimento do universo e da vida humana na terra.
Uma forma de abstração pessoal e social de nossa existência. A religião e a religiosidade são
deveras entidades psicossociais “que nos permite sentir que estamos em contato com esse
mundo numênico além de nós próprios, que indubitavelmente é um mundo da imaginação, da
fantasia projetada e da sensibilidade do espírito inconsciente” (BAUMAN,1999, p. 207).
Vaticinou a nossa vã filosofia que a ciência esfacelaria a religião e a religiosidade
como a ídolos antigos com a mesma facilidade com que as crianças destroem seus castelos de
areia. Ledo engano. Há algo de suma importância para manutenção de crenças e fé que as
tornam tão imortais quanto suas divindades. No advento da pós-modernidade fortificaram-se a
necessidade de se crer em algo para além do entendimento científico. Vertiginosamente
multiplicaram-se as experiências religiosas no ermo vazio da razão. Nas palavras de Rubens
Alves (1998):
38
Quando tudo parecia anunciar os funerais de Deus e o fim da religião, o mundo foi invadido por uma infinidade de novos deuses e demônios, e um novo fervor religioso, que totalmente desconhecíamos, tanto pela sua intensidade quanto pela variedade de suas formas, encheu os espaços profanos do mundo que se proclamava secularizado (ALVES, 1998, p.36).
Muitos, tomados por seus dons proféticos ou baseados em cálculos e avaliações
quantitativas da sociedade, anunciaram o fim das religiões. Por outro lado, o que observamos
hoje é que, ao contrário das certezas absolutas e das apaixonadas visões, o mundo atual não só
mantém como multiplica as ordens religiosas, os segmentos e as experiências sociais com o
sagrado. Segundo Bauman (1999), a pós-modernidade alimentou e fortaleceu o fenômeno
religioso, muito esquecido, ou mesmo visto de soslaio pela intelectualidade engajada, pelo
Estado moderno e pela sociedade materialista a partir do século vinte.
Na pós-modernidade, a religião e os cultos em contínuo promoveram a diferenciação
das crenças e de seus milagres da multiplicação. As grandes narrativas estão sendo contadas e
recontadas. As identidades estão lá, como uma secção de uma grande loja de argumentos,
todos ofertados sem custos altos, sem grandes esforços. Dela se pode entrar e sair, concordar
ou discordar sem antecipar julgamentos. Antes na modernidade o indivíduo devia ser fiel ao
Deus ou à religião, assinar um contrato vitalício com uma ideologia e ser identificado por ela.
Na pós-modernidade o entendimento de fidelidade muda, os indivíduos tomam
consciência de sua predestinação à transformação. A solvência de suas identidades maciças,
de suas crenças peremptórias. Não se pode professar a fé pela fé. As crenças se adéquam aos
propósitos de vida de cada um, às contingências psicossociais. O indivíduo aceita em um
diálogo, o que elas prescrevem, o que elas têm que falar deve estar em sintonia com a
realidade dos sujeitos. As grandes peregrinações, os grandes atos públicos religiosos, os
rituais voltados para as multidões ainda existem, mas, por outro lado, observa-se a procura por
religiões mais gentílicas, mais nucleares. É o caso de algumas religiões petencostais que
partem justamente dessa idéia; os rituais são construídos através de vivências comunitárias
com o sagrado com cada vez mais menos participantes, em suas residências, em seus locais de
trabalho.
A identificação religiosa no século passado por um lado não foi tão benquista pelos
intelectuais de esquerda. Eles viam nas religiões uma tendência reacionária de direita, como
uma das forças de manutenção dos desníveis sociais, embora que para essa mesma esquerda
39
os religiosos, sobretudo grupos católicos se voltaram contra o fascismo, contra o totalitarismo,
contra a fome e a miséria na América Latina. Grupos religiosos se voltaram à práxis social
como forma de salvação e reconexão com o divino. Os limites impostos e vigiados pelo
humanismo se fragilizam. O mundo político se mistura ao social e vice-versa.
Nesse caso é necessário entender que os governos modernos se tornaram laicos, mas
que dentro de suas oficialidades algumas religiões contribuíram diretamente para o
fortalecimento destes, a exemplo do Brasil, onde o catolicismo impera nas ritualidades e
calendários do mesmo Estado. Não se pode esquecer que mesmo sem uma religião oficial
gozamos os dias santos cunhados de forma impositiva sobre os demais cultos.
Todavia, em resistência à Conceição, é tomada pelo sincretismo dos cultos africanos
que homenageiam a Iemanjá dos candomblecistas. Uma demonstração clara de que as
religiões se moldam a estruturas culturais. Todavia, é na sociedade materialista que as
relações religiosas passaram ao meio das discussões.
Por fim, o que se quer nesse momento é particularizar cada termo (religião
religiosidade, espiritualidade), sabendo que as fronteiras que as separam são frágeis e
maleáveis, para não embaraçar as interpretações, porém com o perigo de ser abocanhado pela
redução, em outras palavras, pela simplificação semântico-epistemológica, o que executaria
de forma leviana axiomas absolutos.
Evocando a voz de Morin, destaca-se que “Essa simplificação, reiteremos, tinha
alimentando o impulso da ciência ocidental do XVII ao final do século XIX” (MORIN, 2011,
p.34). Os tempos são outros, e é para o pensamento complexo que nos orientam as reflexões,
pois é preciso reafirma sempre que: “A patologia moderna da mente está na
hipersimplificação que não deixa ver a complexidade do real” (MORIN, 2011, p.15) e ela é o
principal perigo para a descontinuidade das reflexões.
O que é religião? Religiosidade? Espiritualidade? Muitas podem ser as respostas.
Existe uma dependência muito forte do olhar que se lança aos conceitos. A filosofia, a
antropologia, a sociologia, entre outros campos de conhecimento podem confluir ou mesmo
divergir sobre a ideia. Mas para todas elas algo parece se compor de forma igual. Para
prosseguir com as reflexões é necessário entender os conceitos e os mecanismos de operação
histórica e cultural que os desenvolveram, afim de que não haja a interferência de uma prática
a outra.
40
Os termos religião, religiosidade e espiritualidade, usados com frequência neste
texto, refletem o padrão semântico da atualidade. De início, destaquemos que religião, como
os demais, é um conceito que necessita de uma abordagem sociocultural. Corbi (2010) nos
sugere que:
Entendemos aqui por “religião” um conjunto de narrações sagradas, de símbolos, mitos e rituais que geram e suportam um sistema de crenças – sistema que tem como resultado um projeto de vida coletiva e individual, e que, ao mesmo tempo, é um sistema de representação e de iniciação à dimensão absoluta da existência. Todo esse conjunto é tido como revelado por Deus, sendo, portanto, intocável e inalterável (CORBÍ, 2010, p. 18).
A ideia de narrativa como elemento da tessitura da realidade, é comum ao que os
indivíduos utilizam na formação da subjetividade, que o coletivo usa, a exemplo da pós-
modernidade, para constituir seus paradigmas comportamentais, que a humanidade entrelaça
na composição da história dos eleitos.
Segundo Corbí (2010) é possível determinar os mecanismos antropológicos que
tornaram possível a gênese das religiões. O estudioso sugere que as religiões do passado
possuíram os seguintes geradores comuns: A condição de falantes, consecutivamente da de
narradores; a experiência dupla com o real, algo que se entende pela referencial idade e pela
interpretação dos fenômenos físicos, consequência inseparável da condição de falantes em
suas palavras “- uma experiência do real relativa às nossas necessidades; - uma experiência do
real em si mesma absoluta” (CORBÍ, 2010, p. 135); somadas ainda às condições de vida pré-
industrial e aos projetos coletivos expostos por meio dos mitos, os símbolos e os rituais.
Religião como narrativa faz parte de uma competência humana de aferir sentidos aos
fenômenos, de encadear fatos e comportamentos. Campbell (1990) chama a atenção para que:
“É preciso entender que cada religião é uma espécie de programa com seu conjunto próprio de
sinais, que funcionam” (CAMPBELL, 1990, p. 34). Muitas vezes nosso pensamento
disjuntivo não nos deixa perceber certas relações de constituição do pensamento. Morin
(2011) explicita estas implicações na construção do pensamento religioso em oposição ao
saber.
Em nossas sociedades ocidentais estão também presentes mitos, magia, religião, inclusive o mito da razão providencial a uma religião do progresso. Começamos a tornar-nos verdadeiramente racionais quando reconhecemos a
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racionalização até em nossa racionalidade e reconhecemos os próprios mitos, entre os quais o mito de nossa razão todo-poderosa e do progresso garantido (MORIN, 2011, p. 23).
Religião, em suma, é um conjunto de normas e preceitos que determinam a
experiência com o sagrado e que estiveram sempre no ostracismo das sapiências. Os vários
campos do conhecimento voltaram-se à religião para explicá-la, mas ora vista por sua
dinâmica social, ora por sua instância antropológica, ora pela sua relevância filosófica. Mas o
conhecimento acadêmico esbarra em seu mais insólito motivo: Deus. Como sensor de nossa
ignorância ele nos avisa que não somos capazes de prová-lo e do mesmo jeito não podemos
negá-lo.
Ainda, segundo a antropologia, devemos entender que a religião está para a certeza
de um encontro incancelável, efetivamente único, o encontro com a morte. Ou em outras
palavras “em toda fé, há uma dúvida, profunda” (MORIN, 2002, p. 21). A indesejada das
gentes, como se referia Paulo Bandeira em um de seus poemas, é, senão, uma das razões da
existência das religiões. O desejo pela eternidade é em suma uma das razões para sua
existência dentro das afirmativas antropológicas e sociológicas. Ela como qualquer aparato
sociocultural possui engrenagens que asseguram seu funcionamento.
A religião requer exercício, manutenção das crenças de caráter coletivo a partir de
um referencial particular, o narrar da fé que entendemos como religiosidade. Para explicitar a
ideia destaca-se aqui à reflexão de Campbell que se volta especificamente para o catolicismo
e que consegue dimensionar a religiosidade dentro de um corpo doutrinário qualquer. Ele
expõe que:
Um dos aspectos maravilhosos do ritual católico é a comunhão. Lá você é ensinado que este é o corpo e o sangue do Salvador. E você o toma, volta-se para o seu interior, e eis Cristo agindo dentro de você. É uma maneira de estimular a meditação sobre como vivenciar o espírito em você. Você observa pessoas retornando da comunhão e elas estão voltadas para dentro, realmente estão (CAMPBELL, 1990, p. 73).
Algumas das palavras no argumento do estudioso das religiões que nos importa para
o entendimento é rito, pois a ideia de prática se constitui por meio da repetição; do ensinado,
uma alusão certa ao preceito cultural e coletivo; e com a expressão dentro de você que se
repete a interiorização de práticas e de suas subjetivações. A religiosidade, diferente da
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religião, parte do coletivo para o pessoal, é o exercício das práticas do crer. É uma postura de
identificação com preceitos e conteúdos, doxas, dogmas, doutrinas, religiosas ou não.
Porém aprende-se que mesmo para os que não possuem religião, possuem um
sentimento religioso que os orienta em suas tomadas de decisões, um sistema que se constrói
a partir das experiências cotidianas e das respostas às questões imediatas, ou não da vida. A
religiosidade mantém em si um constructo do bom e do belo, um senso estético e moral que o
indivíduo recebe culturalmente e vai modelando segundo suas aprendizagens e o passar do
tempo.
E a Espiritualidade o que seria? Que advém do espírito, do imaterial e assume
conceitos distintos, por vezes relacionados à religiosidade, mas necessariamente não devedor
de uma doutrina, ou mesmo de uma ideia de Deus. Por espiritualidade, por meio das
nomenclaturas utilizadas na literatura a respeito, são encontrados vários significados, várias
expressões e termos que sugerem sentidos próximos à ideia de uma experiência de mergulho
no eu, um exercício de autoconhecimento e de ruptura com o tempo, o retirar-se nas
expectativas sensórias do estar no mundo, da compreensão da vida não pelas palavras, mas
pelas sensações.
A espiritualidade tanto se volta às instancias místicas de encontro com o sagrado,
passando pela vivência de valores éticos e morais, chegando próximo ao exercício do
autoconhecimento. Leonardo Boff (2009), em seu artigo Espiritualidade, dimensão esquecida
e necessária, faz uma incursão sobre a interpretação da espiritualidade humana, descortinando
uma realidade que sinaliza o aspecto reducionista e de senso comum incorporado nesse
conceito. Ao pontuar sobre o tema o autor assevera:
espiritualidade vem de espírito. Para entendermos o que seja espírito precisamos desenvolver uma concepção do ser humano que seja mais fecunda do que aquela convencional, transmitida pela cultura dominante. Esta afirma que o ser humano é composto de corpo e alma ou de matéria e espírito. [...] Perdeu-se a unidade sagrada do ser humano vivo que é a convivência dinâmica de matéria e de espírito entrelaçados e inter-retro-conectados.
Entendida como um modo de ser, uma atitude de base a ser vivida em cada momento
e em todas as circunstâncias, essa espiritualidade não pode ser esquecida, pois é necessária
para uma vida harmônica e saudável. As nomenclaturas são vastas para nomeá-la. Torralba
43
(2013) usa o termo sensibilidade espiritual como no trecho: “A sensibilidade espiritual, ou
espiritualidade, é, essencialmente, uma transformação da pessoa que exige um trabalho sobre
si mesmo, um trabalho sobre o próprio eu” (TORRALBA, 2013, p. 40).
Para ele a espiritualidade é um processo, um trabalho com exigências e metodologias
próprias para a auto-organização. Mas nota-se que as três circunstâncias de experiência com o
sagrado possuem diferenças sutis, mas que há algo em comum em todas elas: a dimensão
extra temporal, ou o mergulho em si, a busca por respostas ao próprio questionamento da
vida.
Em suma, podemos dizer que a busca da dimensão espiritual não é algo novo na
história da humanidade e que é possível identificá-la por um comportamento discursivo
comum que pode ser racionalizado. Segundo Chopra e Mlodinow (2012):
A hipótese espiritual, apresentada milhares de anos atrás, tem três partes:
1. Há uma realidade invisível que é a fonte de todas as coisas visíveis; 2. Essa realidade invisível pode ser conhecida pela nossa consciência; 3. A inteligência e o poder de organização estão entrelaçados no cosmo.
(CHOPRA; MLODINOW, 2012, p. 20).
Em outras palavras: nossos sentidos não estão aptos a captar todos os fenômenos que
nos margeiam. Os fenômenos culturais, as formações ideológicas são, por exemplo,
imperceptíveis, mas concretos. A forma com que lidamos com os mesmos só é estabelecida
pelo nosso poder de abstração, pela consciência, deveras um discurso em que nos colocamos
em um universo no qual existe uma inteligência que opera todas as realidades.
2.2 Espiritualidade leiga e o novo humanismo
A grosso modo, e de forma redundante, pode-se afirmar que na religião os indivíduos
se voltam ao atemporal, para o que é eterno, para o que não tem começo, meio ou fim. A fé é
um pacto pela paz individual ou coletiva, um pacto entre homens e o que já era antes de
sermos, o deus, a deusa, os deuses, a energia vital cósmica. A religiosidade é uma série de
atitudes e reafirmação do pacto religioso, o labutar com estas crenças, ou mesmo o
44
compromisso efetuado consigo mesmo e com uma comunidade para a vivência de normas e
doutrinas.
Esta compreensão da religiosidade como ação efetiva pode, por relação e
comparação, tornar possível até o entendimento do ateísmo como uma religião, que em seu
caráter coletivo, admite seguidores, os quais professam uma crença com posturas e ideias que
devem ser respeitadas, sua consistência doutrinária. Nesse exemplo, a espiritualidade se
desvencilha da figuração, da personificação do divino, devendo ser vista por outro ângulo, por
uma instância mais intimista e aversa a partidarismos sagrados.
A espiritualidade vai tomando outras denominações, outras alcunhas como no trecho
a seguir: “O processo de expansão da consciência, porém não pode ser entendido como um
programa fechado, delimitado no tempo e no espaço. É um processo interminável; é um
processo de burilamento do ser, que deve ser buscado como objetivo principal da vida”
(SAMPAIO, 2010, p. 139), o que a literatura destaca como espiritualidade laica.
O entendimento aponta para uma ideia tênue de trabalho psíquico como se remete
nessa direção o pesquisador Marià Corbí (2010) ao afirmar a existência de uma “noção de
espiritualidade, no sentido de dimensão sutil da existência” (CORBÍ, 2010, p. 19). A
espiritualidade estaria por uma pauta particular de cuidado de si, nas quais as crenças possam
ou não existir, mas que o grande filão é o dedicar-se a si, ao conhecimento de si, dos seus
desejos de suas paixões, fraquezas, mas numa perspectiva singular da racionalização das
experiências.
A vida espiritual não é patrimônio das pessoas religiosas. Todo ser humano, pelo simples fato de existir, é capaz de vida espiritual, de cultivá-lo dentro e fora do âmbito das religiões. Em virtude de sua inteligência espiritual, tem necessidade de dar um sentido à sua existência e ao mundo em que vive, experimenta sua existência como problemática e necessita pensar o que deve fazer com ela (TORRALBA, 2013, p. 49).
Na pós-modernidade os divórcios são instituições comuns na vida dos indivíduos e
nas formas de pensamento. Religião, religiosidade e espiritualidade podem ser vistas de
formas separadas, com significados intrínsecos e diferentes. Diz Morin (2002), lançando um
olhar complexo ao fenômeno religioso: “Para mim, a religião não se deve fundar sobre a ideia
de salvação, como as religiões anteriores, mas sobre uma ideia de perdição” (MORIN, 2002,
45
p. 37). Em suas palavras a dimensão válida à humanidade caracteriza-se pela presentificação
dos conflitos existenciais e não pela promessa de outra vida sem atribulações.
Nesse instante, pode-se compreender que a individualidade com traços
inegavelmente neo-liberais5 ajudou a construir uma doutrina voltada para o indivíduo, com os
resquícios de um suposto positivismo crente da subjetividade do eu. Da sua capacidade de
superação através do autoencontro. Numa crença inatista do poder interno em que, às vezes, o
termo espiritualidade é tomado como consciência. “A consciência é um estado interior que se
manifesta pelo poder da transformação, do amadurecimento, que traz pouco a pouco o
despertar de nossa natureza divina e uma ampliação de visão de nossa relação com tudo o que
nos cerca” (SAMPAIO, 2010, p. 59).
É interessante notar que na ideia de uma espiritualidade desligada de um credo
religioso a experiência espiritual é também conhecida pela utilização da palavra consciência,
que em seu sentido morfológico quer denotar com ciência, ou mesmo com conhecimento. Dai
as variações de seus usos ou mesmo a variedade de composição de termos semelhantes à
espiritualidade, mas sempre de forma aberta, numa perspectiva ampla de autoconhecimento:
“O processo de expansão da consciência, porém não pode ser entendido como um programa
fechado, delimitado no tempo e no espaço. É um processo interminável; é um processo de
burilamento do ser, que deve ser buscado como objetivo principal da vida” (SAMPAIO, 2010,
p. 139).
Os tempos mudam e com eles nossas necessidades e mecanismos de transcender às
narrativas do eu e do sagrado impostas pela tradição. De certo, por mais difícil que seja à
nossa vã filosofia, “Teremos de aprender a compreender, a experimentar e a cultivar a
dimensão absoluta de nosso existir e de nossa experiência do real, mas sem formas religiosas”
(CORBÍ, 2010, p. 137). Subjaz o entendimento de uma espiritualidade não movida por
sentimentos religiosos, por doutrinas sagradas. E sim a extensão de entendimento para uma
espiritualidade laica.
Segundo Torralba (2013), essa forma de ver a espiritualidade vem sendo cultivada
por inúmeros pensadores, dentre eles Gabriel Madinier, asseveram a pertinência à
5 “Na pretensão de suceder as ideologias, o liberalismo econômico revela-se uma ideologia em ruína. Seu laisser-faire determinou conquistas parciais, mas provocou mais empobrecimentos do que enriquecimentos sob sua égide, mundialização, desenvolvimento, ocidentalização – três faces do mesmo fenômeno – mostraram-se incapazes de tratar os problemas vitais da humanidade” (HESSEL; MORIN, 2012, p. 10).
46
espiritualidade laica como uma receita para combater os malefícios da programação social.
Prossegue com suas reflexões ao concluir que:
Em uma sociedade como a nossa, que tem sido chamada de sociedade do espetáculo, da diversão e do consumo massivo e que, constantemente, solicita-nos a afastarmos de nós mesmos e nos esparramarmos em atividades sem fim, a espiritualidade é uma inversão da diversão e, assim, permite um melhor conhecimento de si mesmo, um conhecimento indispensável para o desenvolvimento harmônico da pessoa (TORRALBA, 2013, p. 57).
A espiritualidade é, segundo Torralba (2013), uma estratégia contra a alienação
contemporânea, contra os programas de reality show e suas táticas de fortalecimento de um
discurso que faz dos sujeitos meros espectadores dos acontecimentos, que impedem o
questionamento profundo e ético das nossas amarras sociais. Na pós-modernidade a incerteza
do que somos e a inconsistência do que desejamos ser fez com que perdêssemos a dimensão
de nossa humanidade, e em alguma proposta de espiritualidade reencontramos a necessidade
de redimensionar o humano. De reconectá-lo à sua faculdade consciente “A consciência é
sempre a norma suprema, deve ser levada em conta” (GRÜN, 2008, p. 92). Este homem
precisa religar-se.
Tudo isso tem implicação para a ideia de uma educação espiritual aqui entendida ao
termo humanização, a construção de valores humanos pela educação. Postura ideológica que
escolhe o homem como fim de qualquer doutrina, de qualquer ciência, de qualquer pedagogia.
Seria a reafirmação do pensamento humanista que não é facilmente reduzido a um
entendimento por se compor de diversas situações e contextualizações de seus sentidos.
Todavia, como se sabe, o humanismo não é um termo novo na história do pensamento
ocidental.
Desde a antiguidade clássica até o Renascimento europeu pode-se observar o termo
em seus mais diferenciados usos. Como pontua Mendonça (2008) a palavra “humanista”,
como sujeito que professa o humanismo, passou a ser usado para designar diversas expressões
de ideologias modernas e contemporâneas, o que, de alguma maneira, contribuiu para certa
vaguidade em seu sentido.
Pode-se, então, verificar fundamentalmente três sentidos de humanismo: o humanismo histórico-literário, construído na perspectiva do estudo e da
47
formação da cultura clássica, grega e romana; o humanismo de dimensão especulativo-filosófico, que, de modo geral, engloba os aspectos relacionados à origem, natureza, destino dos seres humanos e que, mais especificamente, implica doutrinas que buscam dignificar os seres humanos; e, por fim, o humanismo de caráter ético-sociológico social, de sua culturalidade e de sua historicidade. (MENDONÇA, 2008, p. 25)
A humanidade é, sem duvidas, uma abstração, um ideal, uma crença? Pode-se
realmente chegar a um conceito concreto do humano. Ou é uma simples ilusão do nosso
pensamento simplista? Não há um entendimento consciente dos conceitos sem a tomada de
postura ideológica frente ao mundo. O impasse continua.
Mendonça (2008) ajuda a clarear as reflexões, propondo uma volta ao pensamento
humanístico freiriano. Paulo Freire surge como um pioneiro ao considerar e introduzir em
nossa cultura a ideia de que o ser humano e sua humanidade se constituem na compreensão de
sua natureza, em que ele se reconhece como um ser-no-mundo, que as suas particularidades
existenciais passam a ser reconhecidas e aceitas a partir do instante em que ele absorve pelo
uso de sua consciência crítica a realidade.
Outros estudiosos destacam a importância da redescoberta da humanidade. Espírito
Santo (2008) é um destes nomes, que usará a palavra conscientização como correlata a
espiritualização, quando diz que “É significativo perceber que os níveis de consciência só vão
se ampliar objetivamente nos meios educativos, ao menos aqui no Brasil, a partir de Paulo
Freire, quando o autor chama a atenção que educar é antes de mais nada, conscientizar”
(ESPÍRITO SANTO, 2008, p. 22).
Mendonça (2008) ainda destaca a dimensão espiritual defendida no pensamento de
Paulo Freire, afirma que o gênero humano possui a aptidão, a competência ontológica para ser
mais, para serem profundamente mais humanos, resultando continuamente na ultrapassagem
de situações desumanizadoras. Essa vitória sobre a natureza desarticuladora do humano é o
que configura na sua pedagogia.
No estudo feito por Torralba (2013) a espiritualidade laica surge como caminho para
redefinição das propostas de conciliação entre mente e espírito. Segundo ele:
Luc Ferry constata a permanência de questões de ordem espiritual em nossas sociedades secularizadas. Em sua opinião, a espiritualidade não deve ser entendida como uma transcendência vertical, que vincula o ser humano ao Absoluto [...]. Em sua opinião, a espiritualidade laica se vive neste mundo
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terreno, sem referir-se a nenhum Além transcendente. Entende espiritualidade laica como uma forma de religião imanente, com uma vinculação profunda com tudo o que existe (TORRALBA, 2013, p. 56).
Neste momento, vem à consciência da humanidade a existência de um incômodo, de
um mal-estar que mostra a certeza de estar vivo. Como nas palavras de Riobaldo em Grandes
Sertões Veredas “Porque existe dor” é que se faz necessário entender suas causas. Temos
medo da dor. E o temor faz parte de nosso instinto, de nossa animalidade. E o professor, essa
figura muitas vezes tomada como transcendental e imaculada, revela-se dentro do âmbito
administrativo educacional e fora dele um ser humano com todas as suas ambivalências e
fragilidades do espírito que devem ser tratadas. Não em busca de uma cura, mas no
fortalecimento de suas faculdades éticas e morais indispensáveis ao seu exercício profissional
e pessoal: a harmonização. Que também é a meta, mesmo que inalcançável, pois “A
importância da harmonização é primordial à educação voltada para a condição humana,
porque nos mostra como a animalidade e a humanidade constituem, juntas, nossa condição
humana” (MORIN, 2011, p. 46).
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3. COMPLEXIDADE E ESPIRITUALIDADE
Para uma transformação efetiva da mentalidade universal é necessária a expansão das
estruturas sociais, a transformação do ideário humanístico, o redimensionamento das bases do
pensamento e do pensar. Surge a partir daí como proposta de uma nova ordem, de uma nova
via para a humanidade: a teoria da complexidade. Nesse capítulo são pontuadas as reflexões
mais consistentes para uma espiritualidade como modo de superação das adversidades globais
e da preservação do homem.
3.1 Edgar Morin e a reformulação do pensamento científico
A ideia de complexidade estava muito mais presente no vocabulário corrente do que no vocabulário científico. Ela trazia sempre uma conotação de conselho ao entendimento, uma observação de cuidado contra a clarificação, a simplificação, o reducionismo excessivo. De fato, a complexidade tinha também seu terreno eleito, mas fazer uso mesmo da palavra em si, na filosofia: num certo sentido, a dialética, e sobre o plano da lógica, a dialética hegeliana, era seu domínio, pois essa dialética introduzia a contradição e a transformação no coração da identidade (MORIN, 2011, p. 33).
Edgar Morin (1921) é francês, natural da cidade Paris, de descendência judia
sefardita6, embora o mesmo se autointitule neomarrano7, não teve formação religiosa e se
considera um ateu. Desde cedo se mostrou um revolucionário nato, participando do
movimento estudantil na frança, sendo militante comunista. Em várias entrevistas, Morin
ressaltou que sua educação teve, por incentivo dos pais, forte presença artística, o que
segundo ele forjou seu espírito humanista.
6 Judeus oriundos da península ibérica. 7 “Cristão novo”: designação pejorativa dada, na Espanha, aos judeus e mouros convertidos, suspeitos de se conservarem fieis ao judaísmo.
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A relação estética não deve ser considerada um luxo. Ela nos remete ao melhor, ao mais sensível de nós mesmos. Ela nos envia uma mensagem de autenticidade e respeito de nossas relações com os outros, com a vida, com o mundo. Ela nos propicia maravilhamentos que são momentos de felicidades. Essa capacidade de se maravilhar não pode senão nos ajudar a resistir à crueldade deste mundo e à barbárie humana (MORIN, 2013, p. 342-343).
O sentido estético é uma salvaguarda aos valores mais importantes do homem, por
isso indispensável a ele. O gosto pelo simbólico, pela literatura, pelas artes, aliado a sua
habilidade e afinco para as ciências construiu um itinerário voltado ao Espírito humano, as
suas mais variadas dimensões.
O contato com as teorias da informação, a cibernética e a teoria dos sistemas
forneceram as bases para a construção de sua teórica da complexidade. Ele fez parte da
reformulação da educação francesa a pedido do governo desse país. Intensificou, a partir da
década de noventa, a divulgação do conhecimento complexo e suas implicações na educação
para a pós-modernidade.
O pensamento de Morin sempre esteve relacionado as suas descobertas pessoais. O
filósofo e o homem nunca estiveram à parte, sempre se interligaram na síntese de seu
pensamento. Daí a construção de uma reflexão que não separa os motivadores ou mesmo os
resultados científicos de suas circunstâncias simbólicas e sensíveis. A ação cientifica é uma
ação humana que deve voltar-se para seus iguais na tentativa de reorganizar a desordem.
Numa interpretação mais intimista percebe-se que a ciência deve dar resultados à humanidade
e não à ciência.
Para Morin, esta intrínseca forma de construção da ciência nas quais as experiências
pessoais e conhecimentos abstratos se unem em prol da humanidade leva o nome de
Reorganizações Genéticas (2011) e é aí que descobertas são escolhas bilaterais. Aquilo que
para ele é responsável por seu estilo, por sua personalidade, por sua produção científica. As
reorganizações genéticas, ou melhor dizendo, os momentos em que a vida influenciou o
pensamento teórico e o pensamento teórico influenciou a vida, segundo o autor, tem três
estágios de igual importância.
Morin assim reflete as falácias de um pensamento cientifico perpetrado pela ilusão
de inocular os seus sujeitos e seus interesses. Forte crítico do conhecimento disciplinar
isolado em si mesmo, Morin (2013) destaca que existe uma mentalidade operadora que
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legitima os saberes fragmentados produtores de um discurso que desconhece os outros
discursos sobre o mesmo tema, gerando uma ineficácia teórica epistemológica, pois longe da
vida das pessoas, esta forma de isolar a produção do conhecimento é altamente infrutífera, ou
mesmo estéril. Segundo ele os vilões do conhecimento agem da seguinte forma:
Nosso modo de pensamento mutilado conduz a ações mutilantes. A isso, combinam-se as limitações: 1) do reducionismo, que reduz o conhecimento das unidades complexas ao dos elementos supostamente simples que as constituem; 2) do binarismo, que decompõe tudo em verdadeiro/falso, ou seja, o que existe é parcialmente verdadeiro ou parcialmente falso ou simultaneamente verdadeiro e falso; 3) da causalidade linear, que ignora os circuitos retroativos; 4) do maniqueísmo, que não enxerga senão oposição entre bem e mal (MORIN, 2013, p. 183-184).
O reducionismo, que responde ao nosso desejo de verdade; o binarismo, que propõe
o equilíbrio apassivador; a linearidade do pensamento simplista e o maniqueísmo é a crença
antiga de que podemos enquadrar tudo e todas as coisas sob as velhas e intransponíveis
qualidades que se colocam diante da renovação do pensamento cientifico.
Morin diz que na reorganização do conhecimento temos que combater o
reducionismo simplista e suas verdades absolutas; o pensamento binário, que elege as
diferenças para motivar a exclusão; o princípio de linearidade que fecha nas progressões as
dinâmicas montadas pela eclosão do fenômeno; e por último, nossa tendência de busca de
proteção na ideia do bem e do mal, a ocidentalidade apaga a propriedade do fármaco que tanto
faz bem como intoxica sem deixar de ser a mesma substância, prática muito comum nos atos
sociais de formação de grupos.
São necessários novos enfrentamentos e a perícia do questionamento ético. Pois
mesmos os pressupostos utilizados no fazer científico levaram a humanidade a um descrédito
e uma consistente apreensão, pois embora as invenções tenham sido tantas e tão criadoras,
nelas residem um poder nefasto que fazemos tudo para esquecer. O mito da razão moderna
não sustentou a razão, tão pouco a racionalidade e é devedora da humanidade como se pode
interpretar nas palavras abaixo.
Entretanto, aprendemos com Hiroshima que a ciência era ambivalente; vimos a razão retroceder e o delírio stalinista colocar a máscara da razão histórica; vimos que não havia leis da História que guiassem irresistivelmente em direção ao porvir radiante; vimos que, em parte alguma, o triunfo da democracia estava assegurado em definitivo; vimos que o
52
desenvolvimento industrial podia causar danos à cultura e poluições mortais; vimos que a modernidade é definida como fé incondicional no progresso, na tecnologia, na ciência, no desenvolvimento econômico, então esta modernidade está morta (MORIN, 2011, p. 62).
Na reflexão dessas práticas, Morin desenvolveu seu método que nasceu da análise
crítica da tradição do pensamento científico e seus pilares. Mesmo não se elegendo o salvador
da pátria, não considerando sua ação digna de um eleito, pelo exercício dialógico, Morin
(2011) propõe a racionalização da razão a partir de princípios e posturas próprias, a
investigação das complexidades do universo, das complexidades sociais e da complexidade
humana.
A primeira reflexão que ele sugere é a de que as ideias são enriquecidas sob o signo
dos antagonismos e das forças que fluem desse embate. As contradições reformulam o
pensamento, impedindo-o assim, de uma caracterização física, de uma propriedade concreta
das descobertas científicas. Nunca se saberá tudo sobre determinado fenômeno.
A segunda fase se remete a ideia de reorganização, esta para a ideia de dialogismo e
de homem genérico de Marx. A teoria marxista tem grande influência na forma em que Morin
constrói a figura humana e das suas interdependências com o meio social.
A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, tiver se tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política (MARX, 1993, p. 63).
Marx sugere que o homem da práxis não deve ser separado do homem ideal, o
cidadão abstrato, pois um se faz em função do outro, num processo de mutualismo comum às
transformações sócias. O homem genérico de Marx é uma síntese disjuntiva, é uma
contradição reformadora.
O terceiro estágio, iniciado por volta dos anos 60 na vida de Morin, surge em sua
viagem para os Estados Unidos da América, onde teve contato com a teoria da informação, a
cibernética e a teoria dos sistemas. Lá ele começa a desenvolver o método. Foi de suma
importância para Morin o embate com as teorias e com a realidade do mundo, de qual fora
expectador, e ainda o é, gerando em seu espírito a inquietante vontade de transformação.
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A teoria da complexidade de Morin envolve assim, mas não de maneira única,
finalmente o pensamento disjuntivo. A síntese não existe por um simples arranjo de
elementos, e os resultados não são uma mera soma de fatores com seus respectivos valores
quantificados. A crise produz sem fechar ou reduzir o produto ao ponto de rotulá-lo, etiquetá-
lo e pô-lo à venda em uma loja de departamentos. É da natureza humana. A proposta é, que ao
contrário de ignorar os fenômenos disjuntivos, que a mente produza meios de desenvolver a
partir deles energia transformadora.
O complexo não se define, apenas intenciona. Não é possível conceituar o complexo,
seus conceitos não são definidos, sua forma fluídica está em contínua transformação, em
movimento. Morin (2002) em obra resultante de uma entrevista a Edmond Blattchen,
intitulada Ninguém sabe o dia que nascerá, usa como símbolo para aproximar do nosso
pensamento a natureza incerta da complexidade o Yin-Yang chinês, o negativo e o positivo, o
feminino e o masculino, o claro e o escuro.
Ambivalências? Sim, mas não as ambivalências das trocas pela racionalização, que
tende sempre ao equilíbrio. Morin se refere às ambivalências que é choque dos antagônicos,
luta entre rivais e não sua complementaridade. As diferenças promovem um embate de forças
e a energia liberada é pura síntese e a mesma vai estar gerando outros embates, outras
sínteses.
O homem complexo é a revogação da categorização racionalista de sua existência
biológica e social. O homo sapiens-sapiens é um modelo talhado na ideia do saber, talhado no
mito da racionalidade como argumento principal da superioridade humana. Saber que sabe, o
eleva a uma atmosfera divinal em relação aos outros animais.
Morin questiona: será que o homem é só razão, será que sua racionalidade foi o
suficiente para apagar totalmente sua parte animal? Para o filósofo, o homem é também homo
demens – como desmesura, demência, loucura e instinto. Toda a raça humana é marcada pelo
antagonismo do saber, por mecanismos mentais para decodificação da realidade e da loucura,
da desmesura que se explica pela ação instintiva biológica interna do homem.
Para se crescer em seu aspecto racional, o homem baniu completamente de seu
discurso constituinte sua animalidade. Morin propõe religar esse homem, unir suas
ambivalências geradoras, desconstruir o pulôver apolíneo, metáfora do homem, primazia da
natureza, pois racional.
54
Todavia, mesmo tecendo críticas ao racionalismo reducionista, Morin faz uso de uma
estrutura lógica que constitui o pensamento complexo. São eles o dialógico recursivo e o
hologramático. Cada um opera os fundamentos da complexidade. O operador dialógico, junta
coisas que estavam separadas pela lógica racionalista e especializada da ciência, tais como
real/imaginário, razão/espírito. Esse operador se constitui na crise produtiva, no antagonismo
reformulador, mas não na síntese, pois não há síntese no pensamento complexo.
O operador recursivo entende que a causa produz o efeito que por sua vez produz a
causa. As balizas lineares do pensamento cartesiano que entendem os processos a partir da
ideia de princípio, meio e fim são revogados, pois segundo o pensamento complexo os
processos são intermitentes. A matéria, o pensamento, a sociedade e a história são processos
contínuos. O homem como ator desses processos também.
O terceiro e último operador da complexidade é o holograma. Para a teoria da
complexidade a parte está no todo como o todo está na parte. Há uma propriedade de união de
aproximação entre as partes e a totalidade. A totalidade é uma ilusão da unicidade. O uno não
é absoluto nem tão pouco fixo, pois ele é constituído de partes que interagem, porém se
constitui em outras partes. A visão da totalidade é uma aparência, um quebra cabeça no qual é
possível ver as imagens, mas também as fissuras de seus elementos.
A totalidade nunca é um resultado preciso da soma das partes. Há sempre uma borda
que sobra e sempre o envelhecimento de partes no painel. A matemática deixa de ser uma
medida exata para constituir-se de aproximações.
Neste ínterim, com todos os avanços tecnológicos e dos cursos a distância hoje
oferecidos em grande quantidade por instituições de ensino, sejam elas de nível fundamental,
médio, tecnológico e superior. Morin chama a atenção para o fato de que a interação deve
sustentar o processo de educação sempre como uma propriedade. “Sendo o ensino relacional
por natureza, a qualidade das reações entre professores e alunos, ou seja, o ambiente da classe
exerce considerável impacto sobre as dificuldades e as realizações de ambos” (MORIN, 2013,
p. 200).
Para Morin (2011) é preciso que a educação se volte para o maior de seus objetivos:
o de ensinar as gerações atuais e vindouras a nossa condição humana. Porém para que isso
aconteça é necessário redimensionar as práticas educativas integrando-as. O pensamento
especializado criou fronteiras e armou perigosamente seus sensores capazes de ferir
mortalmente quem ousar transpô-las.
55
É na mentalidade educacional que a especialização tecnicista agiu de forma
excessiva e dramática, elegendo saberes de maior ou menor importância, restringindo os
indivíduos a habilidades e competências únicas ou particulares partitivamente.
Consecutivamente, os conteúdos disciplinares devem ter uma linguagem própria, uma forma
única e bitolada de lidar com a realidade. Daí decorre a perspectiva que vê no homem uma
ilha em suas teorias. Morin defende o homem em sua propriedade e sua
multidimenssionalidade.
Segundo ele: “o ser humano é, a um só tempo, físico, biológico, psíquico, cultural,
social e histórico” (MORIN, 2011, p. 16). Daí a inconsistência em analisá-lo sob o viés de um
único entendimento. Ele ainda explica que, “como unidade complexa, a humanidade é
totalmente desintegrada na educação por meio das disciplinas, tendo-se tornado impossível
apreender o que significa ser humano” (MORIN, 2011, p. 16). Nessa ideia o pensador defende
que estaríamos formando sujeitos sem consciência de sua humanidade, incapazes de
entenderem suas n possibilidades.
Estaríamos formando pessoas que sequer se compreendem, ou compreendem a si
como elemento de um conjunto maior e “o desenvolvimento da compreensão pede reforma
das mentalidades” (MORIN, 2011, p. 17). Fato só apreendido a partir dessa
multidimenssionalidade consciente e adverte: “É preciso restaurá-la, de modo que cada um,
onde quer que se encontre, tome conhecimento e consciência, ao mesmo tempo, de sua
identidade complexa e de sua identidade comum a todos os outros humanos (MORIN, 2011,
p. 16).
Se o conhecimento se fundamentou na crença de sua autossuficiência, ele gerou
assim a ideia de que a educação seria capaz de nos dar todas as respostas. Mas não foi o que
se viu. O conhecimento é sempre limitado, daí as pesquisas não terem parado. E como
instituição que difunde o conhecimento, as unidades de ensino e aprendizagem devem sempre
nortear o caráter exaurível do conhecimento a fim de que se possa enfrentar as incertezas: “É
necessário que todos aqueles que se ocupam da educação constituam a vanguarda ante a
incerteza de nossos tempos” (MORIN, 2011, p. 17).
Nesse processo de construção do conhecimento a razão deve ser compreendida como
um entre outros estágios de comportamento diante dos fenômenos. É o que poderia ser uma
única coisa no universo simplista, acaba por se diferenciar. Os modelos racionais usados na
investidura da ciência e na educação precisam ser revistos.
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Morin (2011) explica que “A racionalização se crê racional, porque constitui um
sistema lógico perfeito, fundamentado na educação ou na indução, mas fundamenta-se em
bases mutiladas ou falsas e nega-se à contestação de argumentos e à verificação empírica”
(MORIN, 2011, p. 22). A lógica por traz desse jogo impõe a negação da dúvida. Seria um
dogma? “Ao determinismo de paradigmas e modelos explicativos associa-se o determinismo
de convicções e crenças que, quando reinam em uma sociedade, impõem a todos e a cada um
a força imperativa do sagrado, a força normalizadora do dogma e a força proibitiva do tabu”
(MORIN, 2011, p. 26), uma variação, um comportamento em cadeia na engrenagem social.
Dependeríamos da racionalidade, para uma renovação das mentalidades, que é,
segundo Morin (2011), corretiva e sua síntese fundamentalmente dependente do julgamento
das verdades, frutos da racionalização. Essa última “nutre-se das mesmas fontes que a
racionalidade, mas constitui uma das fontes mais poderosas de erros e ilusões” (MORIN,
2011, p. 22). Em um sistema de produção e difusão do saber “A verdadeira racionalidade
conhece os limites da lógica, do determinismo e do mecanismo; sabe que a mente humana não
poderia ser onisciente, que a realidade comporta mistério” (MORIN, 2011, p. 23). A ciência
não pode saber tudo, mas nunca poupará esforços para isso.
A educação assim limita-se a entender as coisas de um jeito, mas não pode negar
outras formas de conhecer, nem tão pouco, ser surda aos clamores das novas descobertas.
Essa abertura pode demonstrar a transdisciplinaridade que é disjuntiva por excelência no
pensamento de Morin: “Devemos compreender que, na busca da verdade, as atividades auto-
observadoras devem ser inseparáveis das atividades observadoras; as autocríticas,
inseparáveis das críticas; os processos reflexivos, inseparáveis dos processos de objetivação”
(MORIN, 2011, p. 29).
É a partir de um conjunto expresso de condições, segundo Morin (2011) o
pensamento e o raciocínio formados pelas disciplinas acarretam em perda significativa de
suas capacidades naturais para fazer interagir os saberes e integrá-los em seus respectivos
grupos de afinidades.
O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus concidadãos) (MORIN, 2011, p. 38).
57
A predisposição da nossa sociedade contemporânea de tratar os indivíduos como
peças anteriormente catalogadas e funcionalizadas acaba por ter um efeito catastrófico sobre
nossas potencialidades.
O conhecimento especializado é uma forma particular de abstração. A especialização “abstrai”, em outras palavras, extrai um objeto de seu contexto e de seu conjunto; rejeita os laços e as intercomunicações com seu meio; introduz o objeto no setor conceptual abstrato, que é o da disciplina compartimentada, cujas fronteiras fragmentam arbitrariamente a sistemicidade (relação da parte com o todo) e a multidimensionalidade dos fenômenos; conduz à abstração matemática que opera de si própria uma cisão com o concreto, privilegiando tudo que é calculável e passível de ser formalizado (MORIN, 2011, p. 38-39).
E se existe alguma finalidade prática em tudo isto é claro que toda esta confusão de
cores e matizes, dado ao conhecimento científico faz parte de uma manipulação do real que
“Pode também cegar e conduzir a excluir tudo aquilo que não seja quantificável e mensurável,
eliminando, dessa forma, o elemento humano do humano, isto é, paixões, emoções, dores e
alegrias” (MORIN, 2011, p. 39).
No pensamento defendido por Morin (2011), a educação deve, de forma controversa
às ideias de Kant (1999), tirar de debaixo do tapete a animalidade humana e espalhar o pó
sobre a arquitetura mal-acabada do homem e de sua humanidade. Torna-se uma exigência dos
tempos atuais “enfrentar a complexidade antropossocial e não dissolvê-la ou ocultá-la”
(MORIN, 2011, p. 14).
Harmonizar as forças disjuntivas do humano “é primordial à educação voltada para a
condição humana, porque nos mostra como a animalidade e a humanidade constituem, juntas,
nossa condição humana” (MORIN, 2011, p. 46). A separação dos aspectos formadores do
humano constituem portas abertas ao inesperado, a luta pela supremacia de forças
discordantes.
Todavia estas reflexões não podem cooperar com a sobreposição de uma educação
voltada ao humanismo e uma educação voltada para a ciência, não há como apartá-los.
Lembremo-nos sempre que ambas são esferas da cultura e que estão interligadas por uma
complexa rede de afinidades e incoerências, que “A falta de comunicação entre as duas
culturas provoca graves consequências para ambas. A cultura humanista revitaliza as obras do
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passado, enquanto a científica valoriza as aquisições do presente” (HESSEL; MORIN, 2012,
p. 50).
3.2 A nova descoberta da ciência: o humano
O humano continua esquartejado, partido como pedaços de um quebra-cabeça no qual falta uma peça. Aqui se apresenta um problema epistemológico: é impossível conceber a unidade complexa do ser humano pelo pensamento disjuntivo, que concebe nossa humanidade de maneira insular, fora do cosmos que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual somos constituídos, bem como pelo pensamento redutor, que restringe a unidade humana a um substrato puramente bioanatômico (MORIN, 2011, p. 43).
De todas as descobertas pós-modernas, o humano parece ser a mais impressionante,
ininteligível e de alta complexidade. Se a modernidade descortinou a subjetividade e aliou as
questões de classe, causou uma interferência brutal na imagem do humano. Os esforços não
foram suficientes. A investigação começou há muito tempo e não parou. Fora preciso dissecá-
lo como sapos em experimentos biológicos. Cortaram e dividiram seu corpo. Cabeça, tronco e
membros, a sua primeira tripartição. Descreveram-lhe o caminho de suas veias, de suas
artérias e descobriram seus sistemas respiratórios, linfáticos, digestivos. Descobriram suas
fraquezas, suas autodefesas, seu tendão de Aquiles, pele, osso, líquido, gazes, sólidos.
O homem desde a antiguidade é visto como um universo que se ampliou a tal ponto
que se chegou a seu tecido cerebral, neurônios, ligações químicas, reações, motivadas ou não.
E do cadáver sobre a mesa de pesquisa, a cobaia voluntária, dos compêndios aos tratados mais
elaborados de explicação da vida e do homem, as incógnitas não deixaram de se multiplicar
para um além intransponível e “É neste “além” que tem lugar a plenitude da humanidade”
(MORIN, 2011, p. 47).
Na verdade, pouco se soube sobre ele e pouco continuamos a saber. Todos os
esforços se focaram em corpos sem vida, em corpos inanimados pelas suas pranchetas e
questionários avaliativos. E estas investigações criteriosas não foram o suficiente para ter uma
visão total de seu funcionamento. Definir, pois, a importância de suas implicações espirituais
59
tornaram-se uma excentricidade aos olhos do conhecimento científico incapaz de deliberar em
seus sobre o homem aquilo que não é aparentemente palpável. Não conseguimos chegar às
questões mais amplas, pois somos ofuscados por soluções mais simples.
Facilmente direcionamos um olhar para seu comportamento passado, sobre suas
tendências presentes, especulamos seu futuro, mas não o compreendemos. Por tudo isso ainda
aquela que merece maior dedicação para o estudo. Sabe-se que não foram poucos os esforços
para entender o homem e suas dinâmicas, seus mecanismos motores, suas reações químicas,
suas capacidades cognitivas, suas fraquezas imunológicas, suas reações emocionais, seus
sistemas simbólicos. É próprio do pensamento científico reduzir os seus objetos por meio de
teorias sistematicamente específicas e axiomáticas. Categorizá-lo fora sempre a melhor saída
para definir seus comportamentos e para efetuar suas definições.
O homem como redução dos diversos campos é uma ideia fixa naturalizada pelas
experiências e determinada numa escala retilínea de evolução e progressiva do tempo.
Precisamente para as chamadas ciências humanas, o humano é definido pela sua
racionalidade, por um aparato mental que o deferencia dos demais animais.
A tradição antropocêntrica fez do homem o slogan dos novos tempos modernos, da
capacidade inaudita da quebra das barreiras naturais, da vitoria da humanidade sobre a
natureza. Esse pensamento constitui os ramos do humanismo. Aliou-se, porém em nossa
contemporaneidade as ideias de vida, não como um conceito parado, fixo, axiomático.
A ciência hoje deve dar ênfase para o viver, para a associação dos elementos que
compõem o ser e o seu enfrentamento com os dilemas que seu pensamento que suas ideias
construíram. Ir à busca do bem-viver como uma forma de remediar os tempos insanos e suas
próprias insanidades. Mas não confundamos que com qualquer outra filosofia de vida ou
mesmo hipótese de autoajuda coletiva, se é que isso existe. Trata-se antes de uma nova
programação:
O bem-viver pode parecer sinônimo de bem-estar. Mas, em nossa civilização, a noção de bem-estar reduziu-se a seu sentido material, o que implica conforto e posse de objetos e bens, sem comportar de maneira alguma o que é próprio do bem-viver, o que serve à expansão pessoal, ou seja, as relações de amor e amizade, o sentido da comunidade (HESSEL; MORIN, 2012, p. 27).
60
Restabelecer ao homem sua capacidade de viver em sociedade, em respeito ao outro
e a si mesmo, reiterar sua dimensão psicológica, fortalecendo contra os apelos da sociedade
do consumo, entre outras formas de opressão da felicidade humana, investir numa educação
para a liberdade no seu sentido mais amplo. E esse é um trabalho majoritariamente da
educação. De uma nova perspectiva diante a atualidade para o novo homem. Um resgate, uma
reforma do pensamento educacional. E como efetuá-la? As respostas não são únicas, mas há
um consenso. Nas palavras de Morin:
A reforma da educação deve partir da expressão de Emilio, de Jean-Jacques Rousseau, em que o educador diz a seu aluno: “Quero ensiná-lo a viver”. A formulação é excessiva, pois somente se pode ajudar a aprender a viver. Viver se aprende por suas próprias experiências, como a ajuda do outro, principalmente dos pais e professores, mas também dos livros, da poesia. Viver é viver como individuo, enfrentando os problemas de sua vida pessoal, é viver como cidadão de sua nação, é viver também em seu pertencimento ao gênero humano (MORIN, 2013, p. 192).
A teoria da complexidade chama atenção para religar o homem a sua animalidade
como meio de transformação mais substanciosa.
É de importância capital ensinar a compreensão humana, a única que permite manter a solidariedade e a fraternidade. Essa compreensão nos permite conceber nossa identidade e, simultaneamente, nossas diferenças uns com os outros, reconhecer a complexidade alheia em vez de reduzir o outro a uma única característica, geralmente negativa (HESSEL; MORIN, 2012, p. 48).
3.3 Planos em cursos: entre os ossos e o ofício
Mesmo que se diga que no mundo do trabalho da pós-modernidade a figura
profissional tenha deixado de ser tecnicamente restrita para um perfil mais polivalente, a
dúvida permanece quanto à figura do professor enquanto profissional e ser humano. Sua
formação compete para essa nova mentalidade de mercado? Ele, enquanto formador de
opinião, deve ser peça no sistema produtivo ou crítico de seu tempo ou mesmo utópico?
Supostamente, resolvidas essas questões, deve-se indagar quem são esses homens e mulheres
que escolheram esse ofício com todos os seus riscos e dissabores? Como aliar a proposta de
61
espiritualidade como meio de reparar os danos psicossociais a essas pessoas? São questões
propostas nesse subitem de capítulo.
A reforma de pensamento depende da reforma da educação, que, por sua vez, depende de uma reforma preliminar do pensamento: são duas reformas pedagógicas em circuito recursivo, uma produtora/produto da reforma da outra. Marx já se perguntava: “Quem educará os educadores?” (MORIN, 2013, p. 201).
A mentalidade do mundo industrial em toda sua modernidade fez do homem parte de
suas engrenagens vastas e necessárias ao funcionamento da máquina produtiva. Nesse
processo de automação precisamos conhecer o lugar dos sujeitos. O homem foi
crescentemente reduzido a res, a coisa, a peça do maquinário, ao mesmo tempo indispensável
e esquecido em suas singularidades. Indispensável sim, pois no sistema econômico e
funcional do mundo moderno a força de produção é um dos seus pilares, mola propulsora
representada na figura humana: o operário, o trabalhador. Aquele que vende sua mão de obra
como bem capital mais valioso na cadeia produtiva, todavia o mais barato. Nas palavras de
Marx, “O trabalhador se torna mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua
produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais
barata quanto mais mercadorias cria” (2010, p. 80).
Mas embora a significação do indivíduo nessa cadeia se compare aos mecanismos
funcionais, as políticas facilitadoras, as engrenagens resistentes, aos motores superpotentes,
todos eles possuem vantagens maiores que o homem. Das peças das máquinas aos conectores
dos sistemas eletrônicos é dado um cuidado criterioso. Todos passam por uma fiscalização
que verifica a necessidade de manutenção e de cuidado de cada item, de cada componente do
sistema. É nesse momento que se entende como os sujeitos, a mão de obra, a força motriz
perante as outras peças vale tão pouco, muito menos dentro dessa ordem mundial liberal-
econômica que consequentemente:
Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral (MARX, 2010, p. 80).
62
Os trabalhadores, os operários e os profissionais são peças que se gastam, se
danificam facilmente frente ao uso de suas atribuições. Depois de gastos, perdem sua utilidade
e são descartados. O mundo globalizado o descarta; é mais rentável que a recuperação aciona
a troca e a circulação de bens de consumo em índices maiores que em uma perspectiva de
fortalecimento das peças humanas corroídas pelo uso.
Para sustentar a fome do labirinto foi preciso amaciar os corpos, amolecer as
cartilagens, drenar os fluídos, temperar de modo eficaz, ao gosto voraz do monstro. Essa
cozinha sacrifical, fora, na base do pensamento capitalista a escola. Em nome das
necessidades do tempo, a educação perderá a sugestão ética sobre a sociedade, entre os ossos
e os restos desse sistema, o oficio do professor.
Na lógica de mercado, na qual supostamente valemos menos do que as coisas, está
também nas escolas como nas demais instituições de ensino, onde o professor no
desenvolvimento de suas ações é alvo das mais variadas forças deteriorantes.
Muito se tem falado do processo negativo da educação na formação do aluno, no
entanto ele é salvaguardado, pelas teorias e reflexões que se pontuam em relação à escola.
No gradiente de fabricação e consumação, os discentes são os produtos que serão
fabricados para atender as necessidades de qualidade e execução da sociedade. Esse é o
enfoque que se dá ao produto. Aluno é um produto. O professor ocupa um posto de
organização e produção desse produto. Daí o desinteresse tão grande. Parece, que mesmo nas
instituições universitárias de espírito elevado, o professor só importa dentro dessa cadeia
produtiva que recebe o nome de Formação de Professores.
Todavia, por mais constrangedor que nos pareça a ideia, persistem atitudes que
pouco se voltam para o indivíduo, que enxergam no professor o humano, a condição de
homens e mulheres em exercício do magistério. Eles, muitas vezes, perdem o nome fora ou
dentro de suas instituições de ensino, são corriqueiramente identificados pela profissão. Eles
perdem um pouco de suas particularidades, de suas singularidades e de suas identidades
pessoais.
Desta feita, é de grande importância que se quebre esse referencial produtivo, em
favor de uma humanização desse processo ensino-aprendizagem, na qual o professor tenha
tanto valor quanto o aluno, que o profissional que leciona seja visto também por sua
subjetividade, sua pessoalidade e seu profissionalismo. Uma das estratégias para a obtenção
dessa humanização é o cuidado espiritual, que para Morin (2003) faz parte do saber
63
antropoético que constitui o sétimo saber necessário. Morin sugere que repensemos nossa
responsabilidade no campo social; da manutenção da espécie, aspecto biológico e no campo
pessoal. Neste último a espiritualidade, como meio de individuação da experiência da vida,
surge como forte significação.
Por conseguinte, o incentivo e a predisposição à investigação dos modos de exercício
da espiritualidade e é o que entendemos dela como uma dimensão superior das coisas que
podemos ter contato pelos frutos de nossa imaginação e de nossa criatividade. A
espiritualidade é a base de nossas questões, é a força motriz do conhecimento complexo do
mundo. Nela não se excluem as artes, já que as mesmas têm em si valor dogmático, as artes
possuem doutrinas que se ocultam, entre linhas, sobre a verdade, onde todas as coisas se
fundem: formas, forças, espaços e tempos.
O mestre deve passar regularmente por um processo de manutenção, por práticas de
revitalização em outros saberes, de motivação, por um processo de espiritualização que
fortaleça o homem em si.
Morin (2011) defende uma reformulação da educação para o terceiro milênio. Há
algo nas práticas educativas que incomoda o pensamento complexo, algo que impede o
conhecimento circular e fecundar a mente humana, a sociedade e a história. Segundo o
pensador, desconhecemos o que é conhecer, por essa razão não estamos, senão aptos ao erro e
à ilusão. A educação pelo erro afasta-nos do medo de prosseguir pelo desconhecido e pelo
desconhecimento em busca de novas possibilidades.
O erro, mais que o acerto, abre possibilidades. Enquanto o acerto nos limita e
proporciona uma satisfação maléfica como a vida e o mundo, o erro nos impele a buscar por
soluções, ao questionamento das verdades, sendo capaz de deixar os espíritos inquietos por
natureza. A pedagogia de Morin é uma pedagogia dos problemas universais, em busca de
soluções, outros conhecimentos são operados e a aprendizagem se amplia na articulação dos
conhecimentos pertinentes.
Entre os saberes necessários, a identidade terrena passa pela tentativa de
conscientização das responsabilidades éticas e morais com o mundo. Saber que é importante e
vital agir conforme uma cadeia que sabe que gerir recursos hídricos afeta a política econômica
no Japão. A educação deve ser capaz de proporcionar aos docentes a projeção de suas
atitudes, as incertezas de sua visão privilegiada.
64
Em seu projeto para uma educação do futuro Morin (2011) reinventa o humanismo.
A crença na humanidade como algo a ser construído, mas necessário a uma nova ordem.
Saberes como ensinar compreensão ou a ética do gênero propõe a integração do homem em
suas dimensões categóricas divididas, sociedade e espécie. A complexidade pensa o humano
integrando a subjetividade.
Segundo Hengemühle (2014), na pós-modernidade o paradigma educacional entrou
em crise. Os antigos argumentos de esclarecimento e iluminação deixaram de ser importantes
frente às necessidades do mercado do trabalho e suas novas exigências de formação de mão
de obra. O homem sai de foco para dar visibilidade ao cenário econômico mundial, sua
relevância só é considerada se fizer parte deste sistema; fora do mesmo ele perde toda a
importância. Os sujeitos só podem ser identificados a partir desse sistema que age como
opressor e hegemônico. Que dimensão teria o estado espiritual e emotivo das pessoas nesses
moldes? Como desenvolver uma pratica docente nessas condições?
Na pós-modernidade, consequentemente, os professores aumentaram suas
dificuldades em largar suas metodologias tradicionais e refazer suas práticas. Aos professores,
faltam respostas aos anseios mais profundos dos alunos. As coisas que não podem ser
ensinadas. E esse passa a ser o grande dilema do professor. Se somos parte dessa grande
engrenagem paradigmática dos novos tempos, temos o dever de não nos distanciar de nossas
dúvidas. Hengemühle afirma que é para uma ideia de um novo ser humano da pós-
modernidade que a educação deve perseguir novas respostas e os mesmos são identificados
como alunos.
Existem, pois alguns equívocos que precisam ser clareados. Na teoria da
complexidade, a tradição não morreu, ela está bem viva e revitalizada. E a ideia de matar o
que é velho em função do novo está mais para um atentado terrorista do pensamento que para
viver a transformação. Seria algo explicado pela metáfora de que a cada limpeza, a cada
reorganização da casa tudo fosse jogado fora. Tudo, sem exceções, desde a pia da cozinha, ao
criado mudo colonial. A questão é que fora dos olhos esses objetos deixariam de ocupar
espaço. Será que no interior de nossas experiências de vida eles não estariam lá? No
entendimento que se faz da educação na pós-modernidade, o novo e o desejo de aprender são
os estudantes e as novas tecnologias. Os professores resistem à manutenção do antigo.
Os compêndios sobre a formação de professores, o exercício docente e os novos
objetivos da educação se dirigem a como satisfazer uma demanda que se opõe ou mesmo
65
ignora que professores também são seres humanos e que seus anseios são tão imediatos
quanto os dos alunos: “Dos professores, no entanto, não se exige atualmente qualquer
conhecimento ou experiência sobre si mesmos, seja no enfoque da psicologia clínica, seja no
do crescimento pessoal, segundo o conceito terapêutico da psicologia humanista” (VOLI,
1998, p. 19). Que o processo de ensino-aprendizagem está composto de grupos diferentes que
interagem produzindo o conhecimento.
Inserir ou mesmo incentivar a experiência com o sagrado, no sentido de dimensão
superior do estar-no-mundo, no cotidiano social e escolar “não dependerá de “novos
currículos” ou nova legislação. Dependerá sim, de um processo ‘iniciático’ a ser desenvolvido
pelo educador” (ESPÍRITO SANTO, 2008, p. 21). Segundo o autor, trata-se de um
autoprocesso e de um modelo exógeno de educação dos espíritos. Algo que lembra a
estratégia de psicanálise, na qual o psicanalista tem que ser antes de tudo um paciente.
A educação do novo milênio desumanizou a figura do docente por boas intenções e
trabalhou a tentativa de fazer com que a humanidade do professor surja sem pôr a perder as
novas práticas, sem pôr a perder a neutralidade do professor, sem pôr a perder os resultados
dos alunos, sem pôr a perder o que há de humano nesses profissionais.
Refletindo a proposta de disjunção, unir o profissional ao homem é de suma
importância como unir teoria e vida. Se buscarmos a interação social e planetária do homem,
temos que pensar uma educação que entenda o mundo em função do social.
Entre tantas atribuições, quem é esse sujeito que abraça o oficio de ensinar?
[...] o aprofundamento da reflexão sobre o ser humano é fundamental, pois nossas compreensões partem dele, passam por ele e voltam para ele. [...] Hoje, o centro do processo educativo é o ser humano (HENGEMÜHLE, 2014, p. 43).
Se levarmos em conta que a educação está em favor de outros interesses estruturais,
podemos discutir com maior profundidade a espiritualidade na formação escolar.
Dois grandes contextos embasam nossa reflexão sobre a ética na espiritualidade do educador. O primeiro deles é a busca do sentido numa sociedade tão fragmentada. Numa mudança de época o que se vive, não sustenta mais um projeto de vida consistente e fundamentado. [...] O segundo contexto é o da exclusão de milhões e milhões de pessoas, sobretudo de crianças, adolescentes e jovens (SANDRINI, 2007, p. 22).
66
Uma das coisas que a modernidade soube fazer bem, foi afastar a vida da vida. As
novas tecnologias e ritualidades cotidianas centram-se nos usos dos objetos. E embora seja
difícil de admitir que estejam, em função dessa tecnologia, na era das relações virtuais e por
consequência a educação também foi tomada pelo movimento centrípeto das dinâmicas
sociais. A Pós-modernidade tratou de pulverizar o que se mantinha no centro para seu
exterior.
Todavia, embora dissolvido em pequenas partículas as ideias, neste último
movimento, ganharam espaços que não podemos mais definir seus limites. E a espiritualidade
deve ser feita pelos dois caminhos, o da condensação do que está fora para seu interior e o da
pulverização do interior para fora: “não se pode reformar a instituição sem antes reformar as
mentes, mas não se pode reformar as mentes sem antes reformar as instituições” (MORIN,
2013, p. 191).
3.4 Lição final
Como a teoria da complexidade pode nos fornecer elementos para a experiência
espiritual? Como os conceitos teóricos desenvolvidos por Morin implicam na transformação
das mentalidades? Como reajustar o homem pós-moderno à vida, da qual se afastou
consideravelmente? Essas são questões que impulsionam as reflexões deste trabalho ao fim e
o recomeço de novas investigações. Como tratar, nesses tempos insanos, a integridade do
professor, unindo o exercício de sua humanidade ao exercício de sua profissão? É preciso
“[...] refletir sobre a possibilidade de o professor entrar, sem ansiedade ou angústia, num
processo de conscientização de si mesmo como pessoa em mudança e crescimento contínuos
(VOLI, 1998, p. 10). Para mudar a educação faz-se importante renovar os sujeitos que nela
estão inseridos.
Embora Morin tenha se dedicado ao fazer da ciência, como a ciência se constitui,
quais seus mecanismos de produção? Como quebra de um modelo que não corresponde aos
anseios do mundo globalizado, na era da informação, a teoria da complexidade ajuda-nos a
rever certos princípios.
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Em primeiro lugar, o homo sapiens sapiens demens é um importante passo para
entender nossa humanidade associada à civilização e à animalidade ou barbárie. Segundo
Morin (2013), o ódio, a inveja, os ressentimentos seriam ações ou reações comuns ao gênero
humano, pois são decorrentes de nosso aspecto demens. Até então o filósofo traça uma
fundamentação aos desvios de conduta moral como nas demais religiões, ele salienta a
organicidade destas reações.
O fato é interessante porque coloca o homem civilizado com algo impróprio ou
improvável sem a educação. Por dedução, se a educação se centra na cultura de uma
comunidade em um determinado tempo, podemos dizer que a civilidade é um fenômeno
cultural, que tem suas transformações como qualquer ação de transformação cultural. O homo
sapiens estaria para cultura como a cultura estaria para o homo sapiens, o saber e o
conhecimento são propriedades culturais e não biológicas. Diferente do demens. Ao primeiro
foi dado o valor de bom e de belo e ao último convencionou-se o mal, o feio.
De certo, na teoria da complexidade, proposta por Morin, o incerto é a palavra de
ordem. Não devemos temer as incertezas, devemos desejá-las. O incerto está para mola
geradora de transformação pessoal e social. É pela certeza de que algo pode irromper o
presente, administrando mecanismos psicocognitivos, que o incerto propõe o conflito como
forma de evolução.
A humanidade navega pelos mares do desconhecido “como uma procura viciosa da
obscuridade” (MORIN, 2000, p. 176). “O que acontecer”, por exemplo, de incerto em uma
sala de aula, é a possibilidade de acionar um conhecimento além dos planos e currículos
escolares, e a efetuação de uma aprendizagem mais significativa. Quando a complexidade nos
apresenta a incerteza somos automaticamente acionados pela desconfiança e pelo descrédito.
Nisso podemos assimilar diante do arcabouço teórico da complexidade que educar é
um processo de auto-organização e que aprender não pode ser considerado nas palavras de
Assmann (1999) um “armazenar saberes prontos” (p. 70) ou mesmo no pensamento freiriano
sobre educação bancária, em que educar seria o acúmulo de conteúdos. É preciso trabalhar a
ordem e a desordem do conhecimento a fim de desconstruir uma verdade única e irrevogável.
Viver os antagonismos como força fertilizadora. Coisa difícil para nossa ocidental
forma de pensar que elegeu dois lados, impossíveis de serem unidos, de uma proposição: o
verdadeiro e o falso, consequentemente, o certo e o errado, o bem e o mal, o belo e feio.
Enfim, nossas mentes estão sobre o subjugo de uma racionalização maniqueísta das leis do
68
universo. Na complexidade mais que desafirmar as sentenças e as verdades construídas, o
intuito é o de dar visibilidade as várias realidades que margeiam o fenômeno e sua descrição.
Cada pressuposto está sendo atravessado por outros e esses últimos por outros. Na
complexidade não há motivo para reafirmar antigas hipóteses ou mesmo reacendê-las como
archotes em nossas noites do conhecimento. O pensamento complexo vai fiando assim um
véu da realidade a se produzir pela luz do dia de nossas instâncias e, sem o menor pudor,
desconstruir, sob a noite de nossas ciências, passando por cima dos anseios de seus
pretendentes e de suas próprias expectativas. A aporia é, portanto, não um erro do pensamento
para a complexidade, mas o desafio à racionalidade.
Na mitologia grega, Odisseu, depois de anos de exílio, volta a sua terra natal onde
havia deixado esposa e filhos, chega e vê sua casa tomada por pretendentes; furioso mata a
todos os rivais. A luta pelo centro das atenções, pela unicidade da verdade está aí
representada. Até porque não estavam em terras onde culturalmente as mulheres tomavam
muitos homens por marido. Penélope, a fiandeira, também aceitara seu destino, o da união
eterna. A ciência nasce, assim, de uma experiência matrimonial com o racionalismo e suas
disciplinas. A ciência, por incrível que pareça, sempre fora fiel ao dia. Mas toda tirania requer
diplomacia e os tiranos não duram para sempre.
Assim, por analogias, aproximações e afastamentos é contada a história do
pensamento humano que avança e retrocede durante os tempos e de nossa vontade de ideias
fixas, de verdades intransponíveis. Um comodismo teórico que amordaça as demais ideias em
função de uma só. A complexidade desafia sem destruir o pensamento já posto, o que se
deseja é um grande e interminável himeneu, com suas trocas de benesses e a união de todos os
convivas. Talvez estejamos na pós-modernidade vivenciando a democracia da ciência, mas
não nos enganemos, os partidarismos ainda se confraternizam com o racionalismo
reacionário.
A universalidade, um lema da campanha da razão, é tirânica e opressora, não
considera o local e as singularidades. Em sua fórmula a igualdade tem o peso dos
apagamentos. A percepção da realidade demorou a assumir as realidades, e a necessidade de
dar conta ao mesmo tempo de vários fenômenos. Mas como em um show de ilusionismo, os
nossos olhos, focaram-se em um único movimento das mãos do mágico, descuidando-se dos
inúmeros fatores que compunham a cena. Da cartola à lebre, da caixa ao corpo aos pedaços e
a explicação, o que motiva a bilheteria dia após dia da ciência.
69
Assim como aos demais elementos de um conjunto em que são registradas as formas
das propostas conjuntas. Não há como desconectar os elementos formadores de um processo
de organização sistêmica sem desorganizar o sistema. Novamente a complexidade se
apresenta como problema, é preciso explicá-la e seus métodos.
A complexidade não tem metodologia, mas pode ter seu método. O que chamamos de método é um momento, um “lembrete”. Enfim, qual era o método de Marx? Seu método era incitar a percepção dos antagonismos de classe dissimulados sob a aparência de uma sociedade homogênea. Qual era o método de Freud? Era incitar a ver o inconsciente escondido sob o consciente e ver o conflito no interior do ego. O método da complexidade pede para pensarmos nos conceitos. Sem nunca dá-los por concluídos, para quebrarmos as esferas fechadas, para restabelecermos as articulações entre o que foi separado, para tentarmos compreender a multidimensionalidade, para pensarmos na singularidade com a localidade, com a temporalidade, para nunca esquecermos as totalidades integradoras. [...] como disse Adorno, “a totalidade é não-verdade”. A totalidade é, ao mesmo tempo, verdade e não-verdade, e a complexidade é isso: a junção de conceitos que lutam entre si (MORIN, 2000, p. 192).
É preciso desviar do caminho dos tijolos amarelos para reencontrar sentidos e
experiências nunca dantes aceitas pela cientificidade clássica. Morin como o mago do lugar
nenhum, de uma terra do nunca nos mostra outras vias, às vezes, menos congestionadas, mas
vias desconhecidas e incertas. Podemos identificar a complexidade a partir da abordagem
epistemológica feita por alguns estudiosos da espiritualidade.
Röhr (2012) sugere uma integração das dimensões humanas. A saber: a dimensão
física, a dimensão emocional, a dimensão mental e a dimensão espiritual; essas divisões não
cooperam com a ideia de descompactação de sua multidimensionalidade. Embora, cada
substrato tenha um comportamento único, eles se interconectam, se integram no processo de
formação humana, que também passa por duas construções diferentes: a harmonização e a
humanização.
No primeiro, recaem “os desenvolvimentos biológicos, psíquicos emocionais e
cognitivos, baseados num amadurecer natural” (RÖHR, 2012, p. 17), que corresponderia ao
aspecto biomental que Morin destaca. Já a humanização, de forma antagônica se predispõe a
instâncias mais abstrativas da existência humana como um “trabalho árduo de fazer caber a
voz mais sutil do ser humano, o espiritual” (RÖHR, 2012, p. 17). Nesse último processo de
formação humana entra a pedagogia como articuladora das dimensões humanas. A ação
70
pedagógica é nesse sentido de grande importância. Além das dimensões básicas, Röhr fala de
outras dimensões transversais lançadas de forma despretensiosa ou mesmo incerta pelo autor.
Palmer (2012, p. 19), nos faz um depoimento que no mínimo ilustra a postura
profissional e espiritual do docente: “conhecer a mim mesmo é tão essencial a boa prática
docente quanto conhecer aos meus alunos e à matéria”. É preciso fortalecer as defesas contra
a realidade alienante. Defesas essas só conseguidas com o gerenciamento de nossas
temeridades do conhecimento do desconhecido em nós; da sugestão a felicidade, da paz e as
insurgências do dia-a-dia.
Como homem e profissional, o professor deve sempre ter consigo a questão “quem é
e o que ensina?” (PALMER, 2012, p. 19). Não pode haver uma boa ação profissional sem o
exercício de autoconhecimento; isso para qualquer trabalho direcionado para o público.
Autoconhecer-se é conhecer ao outro. Somos uma projeção do todo, do coletivo, do que é
singular e plural ao mesmo tempo por representar o outro. Outra coisa importante é o
conhecimento: mesmo que a importância de nossas experiências físico-motoras parta de nosso
sistema simbólico cognitivo.
A teoria da complexidade, para Morin, assume a metafórica imagem de oito vias que
não tem em si finalidades únicas ou mostram um itinerário fixo de navegação pelo espaço e
tempo. Vias em desordem de formas, idas e vindas, que servem para a humanidade e
especificamente para o professor; esse humano notável e corajoso no caminho do
desconhecido conhecedor. A primeira via é o desconhecido em suas amplitudes “ao aspirar a
multidimensionalidade, o pensamento complexo comporta em seu interior um princípio de
incompletude e de incerteza” (MORIN, 2000, p. 177).
Somos relativamente ínfimos ao tamanho do universo, como são as nossas definições
em comparação ao que ainda se pode conhecer sobre um dado problema. E a viagem
prossegue: “A segunda avenida da complexidade é a transgressão” (MORIN, 2000, p. 178). A
transgressão que é motivadora do conhecimento, algo que se explica pela destruição e
construção, da incessante reconstrução derridariana. Transgredir não é simplesmente
ultrapassar as leis, mas desconhecê-las como verdades absolutas. “A terceira avenida é a da
complicação” (MORIN, 2000, p. 179); via que perpassa todas as formas de reducionismo de
um fenômeno, da simplificação de nossas experiências de vida. Todas as coisas estão
conectadas, por que separar? Isolar? Essa disjunção não seria uma relação de poder ao invés
de uma propriedade sistêmica do mundo social e biológico?
71
“A quarta avenida foi aberta quando começamos a conceber uma misteriosa relação
complementar, no entanto, logicamente antagonista entre as nações de ordem, de desordem e
de organização” (MORIN, 2000, p. 179). Portanto, de certo modo, o todo da sociedade está
presente na parte – indivíduo – inclusive nas nossas sociedades que sofrem de uma
hiperespecialização no trabalho (MORIN, 2000, p. 181).
Morin (2000), na dissecação do pensamento complexo, elege como quinta avenida a
da organização. Que “é aquilo que constitui um sistema a partir de elementos diferentes;
portanto, ela constitui, ao mesmo tempo, uma unidade e uma multiplicidade. A complexidade
lógica de unitas multiplex nos pede para não transformarmos o múltiplo em um, nem o um em
múltiplo” (MORIN, 2000, p. 180).
Desta forma, é problemático para a complexidade gerir o pensamento cartesiano que
afirmava a comutatividade dos fatores, da correspondência fiel da soma de suas unidades, de
suas partes. Na organização de um sistema “Há sempre unidades que são inibidas de exercer
suas potencialidades, a exemplo dos sistemas sociais, nos quais” as coações jurídicas,
políticas, militares e outras fazem com que muitas de nossas potencialidades sejam inibidas
ou reprimidas (MORIN, 2000, p. 180). Morin (2000) ainda coloca que no âmago da
organização sistemática qualidades novas surgem, o que ele chama de emergentes, inovando a
si mesma. Essas organizações são consideradas pelo uso do termo complexas, pois são
essencialmente anárquicas sem pólos norteadores comuns, mas com vários centros de
articulação, daí policêntricas.
Na sexta avenida, a avenida hologramática, Morin (2000) nos chama a atenção para
um conceito invulgar. Ele discorre:
No campo da complexidade existe uma coisa ainda mais surpreendente. É o princípio que poderíamos chamar de hologramático. Holograma é a imagem física, cujas qualidades de relevo, de cor e de presença são devidas ao fato de cada um dos seus pontos incluírem quase toda a informação do conjunto que ele representa. Bom, nós temos esse tipo de organização nos nossos organismos biológicos; cada uma de nossas células, até mesmo a mais modesta célula da epiderme, contém a informação genética do ser global. É evidente que só há uma pequena parte da informação expressa nessa célula, ficando o resto inibido. Nesse sentido, podemos dizer que não só a parte está no todo, mas também que o todo está na parte (MORIN, 2000, p.182).
Para esta avenida há diversas aplicações no campo biológico e social. O pensador faz
referência direta ao processo de relativização do universo em suas dimensões macro e micro.
72
Mas diferencia uma da outra além de suas medidas relacionais de tamanho. Embora a pequena
parte carregue uma visão hologramática do todo, este último não se limita à configuração
particularizada por sua parte. Tão pouco a parte não se limita aos constituintes do todo. É
preciso segundo Morin (2000) considerar que como Pascal já dizia: "Só posso compreender
um todo se conheço, especificamente, as partes, mas só posso compreender as partes se
conhecer o todo.” (MORIN, 2000, p.182). O pensamento de Morin, por meio da metáfora das
vias prossegue criando grande inquietação sobre a condição das realidades contemporâneas,
mas é na sétima via que sugere a reformulação das atitudes pautada no momento crítico de
nossas percepções cotidianas.
A sétima avenida para chegar ao pensamento complexo é o da crise de conceitos
fechados e claros. O pensamento complexo subverte a ideia de verdade cartesiana, segundo a
qual deve ser sempre um resultado da objetividade e da clareza, “ou seja, que não poder haver
uma verdade impossível de ser expressa de modo claro e nítido” (MORIN, 2000, p.183). Não
há para complexidade verdades eternas, mas graus de verdade e de conhecimento da mesma.
A oitava avenida da complexidade é a volta do observador na sua observação. Não
passava de ilusão quando acreditávamos eliminar o observador nas ciências sociais. Não é só
o sociólogo que está na sociedade; conforme a concepção hologramática, a sociedade também
está nele; ele é possuído pela cultura que o possui (MORIN, 2000, p. 185).
Segundo a teoria da complexidade, “A tudo isso, podemos acrescentar um problema-
chave que é o problema da contradição” (MORIN, 2000, p. 186). E não podemos dissolvê-lo,
solucioná-lo na ilusão racionalizadora de que tudo pode ser apreendido pelo intelecto. Que
tudo tem seu fim, de que todas as coisas físicas ou psíquicas podem ser catalogadas,
distribuídas, demarcadas pela razão.
O termo dialógico, que quer dizer que duas lógicas, dois princípios, estão unidos sem
que a dualidade se perca nessa unidade: daí vem a ideia de “unidualidade” que propus para
certos casos; desse modo, o homem é um ser unidual, totalmente biológico e totalmente
cultural a um só tempo (MORIN, 2000, p. 189).
Ter a consciência de nossa multidimenssionalidade, de nossa organicidade em
desordem sistêmica, que é também o motivo de estarmos vivos e ter a consciência de nossa
constituição complexa: “A teologia católica mostrou isso na trindade, na qual três pessoas
formam um todo, sendo distintas e separadas. Belo exemplo de complexidade teológica: o
73
filho torna a gerar o pai que gera e que as três instâncias se geram entre si” (MORIN, 2000,
p.189).
No pensamento de Morin (2000), a metáfora das duas faces se refere ao
intercruzamento entre os seres vivos, sempre descontínuos e a outra se refere ao mecanismo
de reprodução e manutenção da própria vida.
A vida apresenta-se sob rosto duplo: por um lado, na forma de seres vivos, aparecendo e desaparecendo de maneira descontínua; por outro, na de um processo contínuo, o da reprodução em que se propaga no tempo o mesmo modelo (pattern) (MORIN, 2000, p. 311).
Há dimensões que esquecemos, ou que se mantêm subterrâneas as nossas práticas
sócias e humanas. Daí o sujeito não controla parte de suas reações, mas é controlado pelas
mesmas. E a falácia do eu ganha outra implicação na teoria da complexidade. Já que: “O
primeiro traço notável do indivíduo é sua unicidade” (MORIN, 2000, p. 323). Deve-se
entender que dentro de uma cadeia produtiva de reprodução, mecanismo recursivo segundo
Morin (2013), entre códigos de barras, chips e controle genético. Somos seres únicos e a
primeira instância dessa propriedade passa por uma forma de autoidentificação, de
diferenciação com os demais na espécie: “Eu, só, posso dizer eu para mim” (MORIN, 2000,
p. 323); e no discurso de igualdade democrática, planetária.
Para Morin (2013) a ideia de identificação deve se constituir através de conceitos de
integralidade, que a identidade é parte de uma dimensão maior do ser, que é composto de
várias partes, projeções microcósmicas do macrocósmicas. Tese já conhecida entre os
filósofos que fundamentam uma nova teoria, o velho dentro do novo, o novo vestido de velho
sem ser patético: “Julgo impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, como conhecer o
todo sem conhecer particularmente as partes” (MORIN, 2000, p. 332).
Segundo Röhr (2012), é comum ao homem, especificamente o homem ocidental ou
ocidentalizado, a persistência em montar esquemas repartitivos como se cada instância da
vida tivesse linhas fronteiriças fortemente demarcadas e a capacidade humana de se ater
somente a uma delas, esquecendo de si mesmo, e de suas outras ocupações. O conceito de
integralidade do ser humano que adotamos insiste no reconhecimento da importância
específica de cada dimensão básica (RÖHR, 2012, p. 17).
74
Assim, entramos e saímos de gavetas sem levar nada de antes, sem trazer nada
depois em situações conhecidas como “a prático-laboral-profissional, a político-econômica, a
comunicativa, a sexual-libidinal e de gênero, a étnica, a estético-artística, a ética, a místico-
mágico-religiosa, a lúdica, a ecológica e a volitivo-impulsional” (RÖHR, 2012, p. 17). Todas
essas instâncias, segundo a complexidade, estão integradas.
Entendamos que sobre a urdidura do presente, por baixo dos véus da ilusão de
realidade, por entre aos fios que se entrelaçam e se emaranham para moldar painéis de
compreensão do tempo é preciso ter um forro capaz de sustentar a orquestração do tecido da
realidade, a espiritualidade é esse forro, ou mesmo os nós para que a renda não se perca não
se desfaça pondo a engendrura a perder.
Os fios não se associam de forma uníssona, pois
A desumanização, enquanto ação que impede a realização da vocação ontológica e a história que as pessoas têm para realizar a sua humanidade, descaracteriza o ser humano na sua própria realidade, alienando-o do seu mundo, tornado-o estrangeiro na sua própria vida (MENDONÇA, 2008, p. 59).
Daí a urgência em fomentar a problematização da formação do humano para o
convívio na terra.
Os grandes mestres da história da humanidade, desde Sócrates até Confúcio, reiteraram até a exaustão que o primeiro objetivo da educação é o conhecimento de si mesmo. Isso deveria ser considerado com seriedade em nossos ambientes educativos. Além de se estimular as outras formas de inteligência, dever-se-ia exercitar, ao máximo, a inteligência intrapessoal, uma vez que somente quem conhece a si mesmo pode realizar seus projetos e aspirar a uma vida feliz (TORRALBA, 2013, p. 101-102).
Um dos modos mais fecundos de cultivar a inteligência espiritual é por meio da
filosofia. Filosofar é um modo de estimular a inteligência espiritual, mas não exclui, todavia,
o desenvolvimento de outros tipos de inteligência, como a intrapessoal e a lógico-matemática
(TORRALBA, 2013, p. 175).
É uma transformação de nossa visão do mundo, na qual as coisas se integram como
em uma melodia, o que nos faz sentir reconciliados com o universo ao nosso redor, possuídos
de um sentimento oceânico – na poética expressão de Romain Rolland - sensação inefável de
75
eternidade e infinitude, de comunhão com algo que nos transcende, envolve e embala como se
fosse um útero materno de dimensões cósmicas (ALVES, 2002, p. 139).
Para muitos, a experiência com o sagrado é resumida na busca de sentido a sua
existência: “O sentido da vida é um sentimento” (ALVES, 2002, p. 139) e não um sentido,
objetivo, um programa a ser alcançado. Não que estas coisas possam acontecer, mas a vida
em si não tem uma finalidade expressa. Se o credo religioso fornece tais “verdades” elas não
condizem com as realidades que transmutam os indivíduos que as modificam.
O sentimento é criação do nosso aparelho sensível, com o qual registramos nossas
primeiras sabências, num neologismo, beirando Guimarães Rosa ou Manuel de Barros8.
Sentimento porque desde que se prove o contrário faz parte de uma individualidade, de uma
unicidade dentre tantos outros aparatos biológicos.
Outros preferem mergulhar a fundo do entendimento humano atrás de respostas
filosóficas para a existência. A condição indispensável para filosofar é o questionamento, a
capacidade de perguntar, de questionar tudo, de não suprimir, censurar ou mutilar nenhuma
questão por difícil ou estranha que seja (TORRALBA, 2013, p. 178).
Ainda há os que vivenciem a espiritualidade por meio de suas interações estéticas, já
que: “A beleza não é um objeto, tampouco uma coisa. É uma experiência que acontece no
interior do ser humano e que está diretamente relacionada com a inteligência espiritual”
(TORRALBA, 2013, p. 113). Em suma, algo que nos remete ao processo de internalização
dos indivíduos em que “o observador-conceptor deve se integrar na sua observação e sua
concepção. Ele deve tentar conceber seu hic et nunc sociocultural” (MORIN, 2000, p. 185). O
indivíduo se torna sujeito nesse adentrar-se a si mesmo.
O problema aqui reside no professor. Está enraizado em seus medos e inseguranças.
E, assim como outros problemas nesse modo de ensino, esse só poderá ser solucionado à
medida que o professor prestar atenção à sua formação espiritual: “Ensinar é criar um espaço
no qual se pratica a obediência à verdade” (PALMER, 1999, p. 143). Porém, antes de ensinar
dessa forma externamente, precisamos abrir um espaço para a verdade dentro de nós.
Todavia, “Não se devem esquecer, tampouco, os limites do conhecimento: na
verdade, é essencial mostrar que a mente humana tem limites, que a razão tem limites, que a
8 Ambos os poetas são exímios criadores de palavras, neologismo. O neologismo recria significados as palavras, ou mesmo recria palavras e significados através da composição de palavras novas por meio de partes de outras já existentes.
76
linguagem tem limites” (MORIN, 2013, p. 197). O fortalecimento de posturas mais
humanizadoras constituem em si uma forma de valorização de termos como inteligência
emocional, desenvolvimento da sensibilidade.
O retorno do “sensível” nas ciências humanas é um fenômeno hoje bastante incontestável e já documentado, ao menos de forma incipiente, por autores como René Barbier. O tema “cognição afetiva” vem se espalhando America Latina afora em livros como O direito à ternura de Luiz Carlos Restrepo, de apreciável difusão em vários países. Michel Maffesoli nos brindou com uma problematização filosófica e sociológica bastante abrangente, embora não sempre analiticamente aguda, da crise da razão moderna e da emergência oportuna do tema da “razão sensível” na atualidade (ASSMANN, 2000, p. 238).
Para Palmer (2012), só estaremos prontos para vivenciarmos nossas capacidades
superiores, quando reformularmos nossas ideias a respeito do pensamento educativo. Em suas
reflexões, ele constata que o universo educativo institucionalizado ou não, do qual fazemos
parte está recheado de paradoxos e com seus produtos sem vida: “Separamos a cabeça e o
coração. Resultado: mentes que não sabem sentir e corações que não sabem pensar”
(PALMER, 2012, p. 82).
De todos os mais perceptíveis, pois se fundamenta na falta de empatia, e nas
desmesuras de nossas paixões. Mentes que são incapazes de sentir, de perceber o outro como
um Ser com sentimentos. Sentimentos que são motivadores de ações e não só os que amam,
podem assim o dizer. Mas há corações que não pensam, e se não o fazem se entregam a
concupiscência de nossos tempos.
Há também outra ordem de contraposições em que: “Separamos fatos e sentimentos.
Resultado: fatos lívidos que tornam o mundo distante e remoto e sentimentos ignorantes que
reduzem a verdade a como uma pessoa se sente hoje” (PALMER, 2012, p. 82). De difícil
compreensão, somos levados a entender o fato por meio de nossos sentimentos imediatos. Os
sentimentos, porém, são de caráter sempre subjetivo. Como racionalizar o fato por nossa
percepção falha e limitada da realidade, já que somos muitas vezes juízes aconselhados pelo
pensamento?
Algo que relativamente já fora dito pelo marxismo, mas que ainda não assumimos as
dimensões reais que precisam ser revistas é a separação da teoria da prática. “Resultado:
teorias que têm pouco a ver com a vida e uma prática não fundamentada no entendimento”
77
(PALMER, 2012, p.82). Caminhamos em conhecimento que nos afasta da vida. A civilização
nos desumanizou. Fala-se em viver e não se vive. São muitos os exemplos para esse
paradoxo. Todavia aqui devemos lembrar que reações surgem a todo momento, ou mesmo
ressurgem, como forma de dissolução de práticas e teorias insalutares.
Por fim, “Separamos ensino e aprendizado. Resultado: professores que falam, mas
não ouvem; alunos que ouvem, mas não falam” (PALMER, 2012, p. 82). E esse deve ser para
todos os envolvidos em educação, um dos paradoxos que precisamos enfrentar com plena
consciência de nossas atitudes. Por estar relacionado com a nossa forma de lidar com o
pensamento e consequentemente com as coisas do mundo. O conhecimento que é poder e que
impõe verdades mutilantes.
Quando separamos ensino da aprendizagem fica claro que a ideia é de processos
distintos, porém não distantes. Quem ensina aprende e quem aprende ensina, assim, ocupamos
dois polos simultaneamente. Daí também a visão orgânica de um professor pronto para
escutar e de alunos aptos a falar. Toda e qualquer ação presente de educação deve suscitar
algumas capacidades até então não trabalhadas. Entre elas: “Aprender a aprender; aprender a
fazer; aprender a viver juntos e aprender a ser” (ASSMANN, 2000, p. 211).
É preciso unir as forças adversas que a nossa ocidentalidade isolou. E esse não é o
primeiro passo rumo à solução, nem tão pouco o último. Todavia, como ação docente,
reformular algumas ideias, afim de humanizar o pensamento parece ser de suma importância.
A dimensão espiritual tem fortes vínculos com o restabelecimento de uma condição humana
reflexiva.
3.5 O caminho para a reforma da vida
O filósofo e sociólogo francês Edgar Morin, considerado um dos mais importantes
pensadores contemporâneos, elaborou a Teoria da Complexidade. Por meio de um método
interdisciplinar de análise da realidade, sua proposta pauta-se na reforma do pensamento e na
reconstrução dos saberes como caminho para compreender e administrar a complexidade,
reestruturando-se a “ecologia das ideias” sobre o universo na mente dos seres humanos: o
cósmico, o humano, o histórico, componentes da mesma realidade, que pode ser estudada e
observada a partir de diferentes ângulos, complementares e interdependentes. É o que afirma
78
na citação a seguir: “Para as mulheres e os homens das civilizações ocidentais e
ocidentalizadas, a reforma de vida é a base sobre a qual deveriam convergir todas as outras
reformas, e aquela que, ao mesmo tempo, deveria irrigar todas elas” (MORIN, 2013, p. 329).
O que a teoria da complexidade e o pensamento de Edgar Morin trazem de mais
importante na perspectiva contemporânea de sociedade? Ela, entre outras coisas vem aliar a
ciência à vida, sugerir como princípio básico para o conhecimento científico a vida, em
primeiro lugar. Se as hipóteses defendidas são, em primeira instância, de difícil aplicação, e
por ser teoria não precisa necessariamente ser aplicável, a sugestão é dar um freio nas ações e
descobertas que não fizeram nada mais que destruir. Sem dúvidas um conhecimento para a
morte, para o extermínio, para as desavenças, para animalidade ou barbárie. Todas as
descobertas, todas as investigações, todos os experimentos devem ter um objetivo: fornecer-
nos outra forma de realidade, em que a vida deve ser colocada em primeiro plano e acima de
qualquer coisa.
De certo, há de se pensar que este seria o comportamento normal, fazer do
conhecimento um instrumento para o bem-viver planetário. Mas não foi isso que aconteceu.
Em que ponto, em que momento específico, fica difícil saber, mas ao que parece, se de um
lado encontrávamos um caminho sobre os mares, de outro produzíamos a escravidão como
um andar para traz na dita evolução. Mas é nas relações interpessoais que perdemos a
extensão semântica de ser homem, pois o mesmo se tornou invisível aos nossos olhos.
O consumo retirou alguns portentos de nossa visão, e passamos a enxergar muito
pouco além dos bens materiais: “O sofrimento, o abandono e a solidão buscam consolo nas
compras e no consumo” (MORIN, 2013, p. 331). A ideia do numerário extinguiu a qualidade,
ou melhor, a deixou em último lugar das necessidades. E as relações mudaram, sobre esse
gradiente, é bem mais significativo falar em números de amigos em redes sociais, que em
qualidade dessas relações.
Os avanços são retrocessos, que precisam ser repensados. O tempo fora outra
dimensão afetada relevantemente. Passamos a ganhar tempo nos fast food da vida e a perder
em qualidade de segurança alimentar, em nutrição, em momentos de interação e em
existência.
Muitos são os indícios de uma sociedade tomada pela barbárie, que é chegada a hora
de uma reforma de vida, que segundo Morin (2013, p. 333), é “a conquista de uma arte de
viver”. Uma arte de viver pautada pelo conhecimento profundo de nossa realidade perpassada
79
por seus mecanismos de controle e funcionamento. As engrenagens foram ligadas no
automático, precisamos por a mão sobre elas, retomar as rédeas do controle humano.
Entender que, nas palavras de Morin: “A aspiração contemporânea por uma arte de
viver é, primeiramente, uma reação salutar aos nossos males de civilização, à mecanização da
vida, a hiperespecialização, à cronometrização, à aplicação da lógica calculadora e
determinista à vida dos indivíduos” (MORIN, 2013, p. 333). Sobretudo, em qualquer reforma
do tipo, deve-se desenvolver aprendizagens. Aprender sobre os novos tempos é assim mesmo,
requer uma suma importância. Devemos nos empenhar no ensino para a vida. Devemos, sobre
tudo, fomentar uma intensa reformulação dos nossos valores, criar instrumentos e “meios de
enfrentar os problemas fundamentais e globais inerentes a cada indivíduo, a cada sociedade e
à humanidade inteira” (HESSEL; MORIN, 2012, p. 46-47).
A teoria da complexidade de Edgar Morin não se preocupa em estabelecer fortes
argumentos lógicos sem a mínima preocupação com a manutenção da vida. É como se no
entendimento da ciência em nossa história ocidental se escondesse, ou mesmo de forma
explícita, se apresentasse um desejo de autodestruição imanente aos avanços das descobertas.
Como explicar o desperdício de água com a descoberta de nossos limitados recursos hídricos?
Para uma sobrevida, ou mesmo para o prolongamento da espécie, Morin (2013) propõe a
reforma de vida como um conjunto de mandamentos sistemáticos e dicotômicos, que são eles:
Serenidade-intensidade; Autonomia /comunidade; conviviabilidade e compreensão, feminino
no masculino, masculino no feminino; e relação estética.
Todavia é importante chegarmos ao ponto de conflito, à mutação das coisas. E o
caminho é a educação. Consideramos que a prática da educação exige métodos e estratégias
educativas que têm por objetivo a constituição do ser humano permeado pela complexidade
das diferentes variáveis que concorrem para as relações, pois indivíduo/sociedade/espécie não
só são inseparáveis, mas também coprodutores um do outro, isto é, “como experiência
especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo” (FREIRE, 2003,
p. 98) e exige da parte dos educadores a coragem de assumir a inteireza da condição humana.
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ouve-se muito dizer que o professor é um formador de opinião; que ele deve servir
de modelo para seus alunos; que ele é responsável pela educação das crianças; que ele detém
o conhecimento. E em todos os axiomas há algo de perturbador. Por traz dessas frases tão
ingênuas e edificantes se observa uma mentalidade perigosamente idealizadora e sacrificante
que precisamos combater.
Como formam opinião, não são os únicos a desempenhar esse papel. Deve-se afirmar
que todos que estão em contato com o público, com as pessoas que imprimem suas ideias em
suas ações, são formadores de opinião. O leiteiro, o gari, o balconista, o policial, o agente de
saúde, em suma todos fazem e assumem o papel e quando desejável devam fazer sempre de
suas profissões um meio de defesa de um ideal coletivo e pessoal. Todos devem se colocar, os
discursos são todos importantes e interagem entre si. Daí não se deva colocar na mão de uma
única profissão exercida na sociedade a responsabilidade pelas opiniões.
Opiniões são escolhas, ou imposições discursivas, se devemos por a subjetividade em
questão. Obviamente a de se pensar que eles, os alunos, já chegam às salas de aula com uma
opinião formada e como crescem e como mudam, mudam-se todas as opiniões, todos sistemas
ideológicos. Enfim, tudo muda. Não destituo a ideia de que a escola deva formar cidadãos
críticos, deva consolidar um modelo de sujeito livre de todos os modelos, mas responsável
pelo seu bem e o bem-estar social. Reafirmando, opinião são escolhas, se é que o professor
deva contribuir com estas ações, deve-se entender que não é lícito que interfiramos tanto na
vida de um indivíduo a ponto de sujeitar seu gosto pessoal, suas idiossincrasias à figura do
professor.
Se servimos de modelo, a questão é: então é para isso que serve a escola para a
produção de cópias? Melhor dizer reprodução? Sim. Se há modelos deve-se questionar:
modelo de que? Modelo para que? E por que modelo? Essa ideia de que o magistério é fonte
do segredo para vida, ou mesmo que o professor deve dar resposta para o convívio em
sociedade é uma tremenda e reacionária forma de doutrinação social.
O que há no professor que se diferencie das demais áreas de atuação que o faz
modelo de alguma coisa perante os seus alunos? Se é que há uma transferência de sentidos
entre pai e professor, entre mãe e professora, as compulsões narcisísticas freudianas não são
81
suficientes para erigir um modelo. Não nos esqueçamos que esse modelo deve ser sacrificado
para a insurgência da personalidade na explicação do complexo edipiano. E ainda fica
insuficiente o tratamento da palavra modelo que traz em si uma incompletude, uma
necessidade voraz de complemento. Ao enunciá-la a preposição se salta em sua companhia,
pois não há modelos sem que haja a construção de memórias. O modelo é tanto uma forma
para fabricar indivíduos como uma cadeia para afugentar a qualquer política de diferenças.
O modelo também aprisiona as singularidades, tanto para o protótipo, o professor,
como para os que serão moldados, os alunos. Esses últimos ainda são, no discurso da
mobilização, os que mais sofrem, pois não têm forma própria, embora todas as correntes
teóricas contemporâneas de ensino e aprendizagem já tenham provado o contrário: os
discentes trazem consigo saberes e conhecimentos prévios, não são mais a tábua rasa do
antigo ensino tradicional. E novamente a ideia do “professor forma” é também uma prisão
para os profissionais, que não podem, em hipótese alguma, sugerir-se como ponto de
transformação contínua.
Consequentemente a fala que conduz o professor ao pódio dos merecimentos é a
mesma que o carrega ao cadafalso público erigido por nossa necessidade de transferência e de
responsabilidade. O professor não pode ser o único responsável pela educação das gerações
sociais. A escola não é o templo físico do conhecimento, nem tão pouco o espaço único,
privilegiado, talvez, da educação. Esta é de responsabilidade coletiva que deve ser exercida na
família, nas comunidades e no convívio social.
A escola, como qualquer outra instituição de ensino, é uma instituição responsável
por um tipo de saber, o saber escolarizado, que por si só não corresponde à ideia de educação
como um processo complexo de sensibilização humanística, de aprimoramento do ementário
cultural que constituímos todos nós. É preciso que nos saibamos educadores, todos nós,
membros da sociedade, físico ou não, já que na era da informação compartilhamos ações
educativas com mecanismos tecnológicos de tanta eficácia e pouco custo. O que se mostra
nesta afirmação de que são os professores responsáveis pela educação é administração do
fracasso escolar e não o aplauso das capacidades desenvolvidas.
Se o resultado é negativo, a culpa é do corpo docente; se o resultado é positivo
laureamos os vitoriosos como ícones à parte de um processo educativo. Algo que chama a
atenção para a lei da recursividade de Morin (2000)na qual os elementos estão em processo
contínuo de elementariedade, o educador é educando, o educando é educador. O professor
82
muitas das vezes é aluno e professor ao mesmo tempo. As posições não são fechadas. Como
não pode ser fechada a ideia de educação em nossa sociedade.
A priori precisamos entender que ser professor é assumir um oficio como qualquer
outro, que, despido de suas ferramentas e de seus figurinos correspondentes às funções, são,
relativamente iguais. Homens e mulheres que têm em comum uma identidade biológica, um
aparato mental, uma cultura que os norteia. Se o entendimento sobre o humano muda, se
mudam os administradores, se mudam os médicos, os juízes, os soldados, devem mudar
também os professores. Não há nada de especial em ser professor. Essa deveria ser a base do
pensamento. Ser especial em nossa sociedade reflete em outro tratamento especial dado aos
do gênero: o sacrifício.
Já quando, o senso comum apregoa que o professor é o detentor do conhecimento,
nesse é crucial que entendamos que o conhecimento não é um pássaro entre as mãos que
repassamos, deixando de retê-lo, para as gerações futuras. Que não somos enquanto exemplar
do gênero humano capaz de deter o conhecimento, de ser superior em conteúdo. O
conhecimento não tem forma, ele está incessantemente se modificando, se construindo, sendo
capaz apenas de diferenciar.
Como numa sala de espelhos, ele muda não a nossa forma física, mas a maneira que
nós vemos a projeção de nossa imagem, o reflexo da luz em nosso corpo. Nenhuma profissão,
nenhum profissional é capaz de autossuficiência de conhecimento, o estudo deve ser contínuo,
há milhões de informações surgindo a cada minuto e transformando as áreas do saber.
Como saber tudo? Como saber o todo? Na perspectiva dialógica, o homem se
constrói automaticamente quando constrói o conhecimento do outro. Não foi dado ao
professor a dádiva, ou suplício do conhecimento. Não somos mídias a transformar tudo que
tocamos no mais puro e precioso saber. Não somos capazes de absorver saberes sem que
também tenhamos absorvido as divergências, os conflitos e que tenhamos resolvido as
discrepâncias do todo.
O conhecimento não é absoluto, tudo, parafraseando a uma fala de Marx, se esfacela
no ar. O pássaro do conhecimento é livre. Ele pode até pousar em nosso corpo por um frágil
momento e deixar impressões sobre o instante, mas ele é livre, tem asas e voa, e ganha o
firmamento, essa vastidão de nossas descobertas.
Tais axiomas são construídos, como muitos outros, pelo senso comum que cria a
ilusão de verdade através de posturas ideológicas subliminares. O professor possui uma áurea,
83
às vezes luminosa e santa, às vezes, negra e apavorante. Entre santos e demônios caminham
os sentidos da profissão. Mas, como esses sentidos atravessam o professor? Como ele articula
sua consciência diante destes clamores sociais? Como ele se vê?
Novamente podemos estar caindo na armadilha da simplificação, tentando achar um
sujeito que tenha em si todas as reações possíveis e ideais que precisamos para tais respostas.
Um sujeito professor pelo qual predestinamos reações de uma classe inteira, de todas as
ordens possíveis, categorias, credos e etnias.
Mas ele não existe. E o que há é o problema e as possíveis maneiras de respondê-las.
Não se trata de enfrentamentos éticos que estendemos aos membros de um determinado
grupo, e que deveria ter uma postura ideal de todos eles. A ética passa pela institucionalização
dos procedimentos profissionais. Um médico não deve aplicar a eutanásia em pacientes
terminais, diz a ética médica. Ela elimina do sujeito a responsabilidade pelo ato e sua
culpabilidade. É uma forma de isenção de ônus. O que nos interessa são as colocações
pessoais, os antagonismos que constituem ontologicamente o homem, além dos códigos, dos
procedimentos profissionais, das posturas religiosas, das teorias.
Estamos falando de reações e, dada a complexidade de suas organizações, estamos
nos referindo a sujeitos-universo e não sujeitos universais. Os últimos são categóricos,
modelizantes, os primeiros uma interação viva de dimensionalidades múltiplas que estão em
situação constante de ordem e desordem. Sujeitos-universos que não podemos senão com
altíssima margem de erro prever algumas reações e ações. E sobre essa situação de
incompatibilidade nos perguntamos em nossas experiências: quem somos? Por que somos?
Dada a questão, devemos considerar que as instituições de ensino, como órgãos
administrativos, não estão preparadas para cuidar de seus profissionais de uma forma mais
holística, já que, “No atual sistema educativo, considera-se que, sendo adulto, o professor está
maduro para ensinar. Portanto, não é tido como necessário aprofundar-se sobre seu nível de
condicionamentos, autoconhecimento e crescimento individual” (VOLI, 1998, p. 20).
Todo profissional deve a si, acima de qualquer coisa, os questionamentos. São eles
que motivam nossas ações, que puncionam nossas crenças e as transformações realizadas em
nome delas. Neste momento, estamos nus no universo, admitindo nossa nudez sem a
vergonha, como a crianças. A criança que não desenvolveu ainda um sistema simbólico para o
sentido da vida, e da sua própria existência, mas que não foi ferida em batalhas de valores.
84
Para termos uma postura pessoal diante dos clamores populares, das etiquetas
profissionais, dos anseios civilizatórios, reencontrar o sentido da vida não como reposta, mas
como investigação. Está aí uma propriedade a todo o humano: a investigação. Perscrutar as
formas, mas recônditas do ser. Porém, sem defender o discurso da racionalidade, a
compreensão é antes imaginação, sentimentos que racionalidade. A razão é um termo
abstrato, que na gramática entende-se por tudo que não tem vida própria, que dependem do
outro para existir.
A praticidade e a funcionalidade, como lemas, puseram no centro das vivências
humanas, estritamente formais, a supervalorização do real, em suma, a “inflação do racional,
onde não há espaço (ou espaço insuficiente e desproporcional) para as artes e,
consequentemente, à criatividade de onde outras formas de conhecimento ficam atrofiadas”
(ESPÍRITO SANTO, 2008, p. 22).
As questões que levam ao autoconhecimento, não encontram soluções, pois têm um
caráter mutável e pessoal que os prefiguram. Assim, há a necessidade de esquemas para
explicar a existência, e re-esquematização destes sistemas, que se fazem e refazem a todo
instante, a todo momento. Temos necessidades de teorias: “São as teorias construídas e
reconstruídas que nos possibilitam caminhar e dar um sentido ao ser e estar no mundo”
(HENGEMÜHLE, 2014, p. 42).
Esse texto é, assim, o resultado de uma pesquisa que teve em seu itinerário uma volta
para o interior de seu pesquisador, a fim de destrui-lo e reconstrui-lo, de montá-lo e desmontá-
lo. A pesquisa que teve em seu caráter produtivo uma análise bibliográfica e não se reteve às
linhas fronteiriças da metodologia de pesquisa. Seria reducionista e não complexo se assim
fosse. Daí a importância do sujeito-pesquisador enquanto profissional da educação e ser em
busca de si. As questões nasceram e retornaram ao âmago de uma subjetividade, de um olhar
sobre o universo, de um sentimento de inquietude, até então sem pouca importância para
ciência e para a mentalidade atual temerária do que não é perene.
A espiritualidade, laica ou não, resulta dessa dimensão primordial a nossas práticas,
como mapa ou bússola de nossa subjetividade imaginativa, como força criativa no
pensamento complexo. Comum às artes e às representações. Ferramentas indispensáveis à
docência. O educador deve assim enfrentar de forma crítica os padrões da realidade impostas
pelo sistema, aceitando e/ou rejeitando por meio das escolhas: “A espiritualidade do educador
85
é desafiada a comprometer-se com o futuro das novas gerações apontando onde a vida está
passando, com a palavra e com o testemunho de vida” (SANDRINI, 2007, p. 22).
Lembrando os ensinamentos de Sêneca: “A união de todos os tempos em um só
momento faz com que a vida seja longa” (2007, p. 69). A vivência da espiritualidade pode ser
aqui entendida como um evadir-se no tempo. Ir de encontro com uma percepção profunda do
fluir da vida. Nas urgências dos diários, no preocupante e extenso currículo, no diminuto
tempo de aula, entre planejamentos e exposições, há uma avaliação que também precisa ser
feita.
A educação laica é uma verdade ou apenas uma aporia? Como manter uma ação
focada na aprendizagem e ensino sem levar em conta as dimensões culturais que formam
preceitos e valores a partir da cultura, precisamente dos aspectos culturais das religiões? Essas
são questões que nascem das leituras e da experiência pessoal do pesquisador em exercício
das atividades docentes, e são questões que surgem com grande relevância para novas
pesquisas.
Embora não apareça em nenhuma outra atividade desempenhada pelo professor fora
ou dentro da sala de aula; embora não se fale dela em nenhum momento, seja nos bancos dos
cursos de licenciatura, seja nos parâmetros curriculares de suas disciplinas, a dimensão
espiritual humana precisa ser avaliada sim como parte da pedagogização dos indivíduos. De
pouca importância para as teorias que pensaram a educação como uma aplicação, fora a figura
dos aplicadores. Hoje até podemos falar em aplicativos, nas tecnologias à distância.
Descuidamo-nos do humano e construímos uma criatura que não deveria se autointerpelar.
O fato se torna ainda pior, com sérias dimensões, quando observamos a rigidez
utilitária, para o mundo econômico, na montagem de seus currículos: “Com a marginalização
da filosofia e da literatura, porém, falta cada vez mais à educação a possibilidade de enfrentar
os problemas fundamentais e globais do individuo, do cidadão, do ser humano” (MORIN,
2013, p. 192). Enfim, a educação fora destituída de sua função primeira: preparar as pessoas
para o enfrentamento de seus dilemas. O entusiasmo de Morin pelo que é chamado de inútil é
fácil de ser notado e entendido. Ele diz como exemplo do que foi dito que as obras de artes,
principalmente o romance, devam ser considerados não apenas como uma escapatória, ou
refugio imagético, mas como forma de conhecimento da subjetividade humana” (MORIN,
2013, p. 199).
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Muitas são as hipóteses para se chegar a um sentido para o estar-no-mundo diferente.
Digo diferente e não superior às demais práticas e buscas. O encontro com a natureza sensível
pode ser experimentada pelo professor em diversas formas, em diversas situações. A própria
sala de aula deve ser uma porta de entrada para as verdades interiores e a consciência
individual e coletiva ao mesmo tempo. Sem doutrinação, mas com responsabilidade espiritual.
Alves nos diz que essa busca pelo sentido da vida não deve cessar e que “é algo que
se experimenta emocionalmente, sem que se saiba explicar ou justificar” (2002, p. 139), ou
mesmo que o que encontramos nessa busca é a beleza. Nisso a espiritualidade acaba por
envolver as excluídas formas de pensamento, sendo uma ponte para a interiorização e
encontro com os conceitos mais profundos.
A arte é uma destas formas de autoconhecimento. Seja em uma tragédia
shakespeariana, em que somos envolvidos pelos Otelos, Hamlets, Ofélias e Emílias em seus
dramas e questões universais, seja na platéia de uma orquestra a executar Händel, seja na
admiração das linhas de Oscar Niemayer, na poesia inquietante de uma Adélia Prado, ou
mesmo nas veredas perigosas do viver de João Guimarães Rosa. O professor pode conectar-se
à sua existência e dar-lhes sentidos com a certeza de que nada se sabe: “Não há uma única
espiritualidade. Há espiritualidades” (SANDRINI, 2007, p. 31). Cabe-nos descobrir em qual
vibramos como notas em um diapasão, como a palavra em um verso, como o ator em uma
encenação, como uma forma que se torna concreta, sem sê-la.
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