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Mês Setembro nº 15
Um conto com um final surpreendente
Um poema que descreve o
como é o sentimento de amar Um poema que reflecte sobre a condição de ser
sem abrigo
Um conto que reflecte a
profundidade de emoções
contidas
Um poema que questiona o próprio ser e as suas
experiências
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Escrita Criativa
Índice e destaques
Ficha Técnica: Mês de Setembro n.º15 via internet – ebook Editora e Proprietária: Marta Sousa Revisora: Patrícia Lopes Redacção: Marta Sousa, Pedro Mesquita, Liliana Machado, Giovana Damaceno, Graça Samora, Diana Almeida, Ana Maria Teixeira, Francisco Hill e Firmino Bernardo Grafismo: Paula Salgado, Marta Sousa, e Pedro Mesquita em “Matilde” Interdita a reprodução para fins lucrativos ou comerciais dos textos e interdita a outros que não o autor e a reprodução sem a indicação do respectivo nome do autor.
Destaques Histórias Narrativas
Matilde – Um conto com um final surpreendente
Histórias Poéticas Agridoce sabor do Amar – Um poema que descreve o como é o sentimento de amar
Sem Abrigo- Um poema que reflecte sobre a condição de ser sem abrigo
Críticas ou Sátiras Courier, tamanho doze, espaçamento duplo – uma divertida crítica à burocracia
Índice
Editorial………………………………..….3
As Nossas Sugestões………………..5
Histórias Narrativa
Matilde ………………………………...6
Infância…………………………………8
Dos Quintais da Memória…….10
O dia mais vermelho……………14
Histórias Poéticas
Agridoce sabor do Amar………16
O Namoro …………………….….….18
A Vida de Mulher.……………….19
Sem Abrigo………………………….21
1 ………………………………………...22
28 …………………………..…….…....23
Críticas e Sátiras
Courier, tamanho doze, espaçamento duplo………………..25
Regras para Trabalhos
Enviados………………………………….33
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Escrita Criativa
Para o mês de Setembro, a Revista
Escrita Criativa conta com uma
capa muito especial, sendo que é o
novo logótipo feito por Paula
Salgado para a Revista Escrita
Criativa. Como já referimos a
Revista Escrita Criativa pretende
dar vida aos textos refundidos
dentro do baú por parte de autores desconhecidos, e é isso
que representa o logótipo da Revista Escrita Criativa,
apresentando-se esta como uma oportunidade de libertar e
também partilhar por entre todos esses escritos valiosos há
muito tempo selados e guardados no baú de cada um.
Mas não só a capa, que é especial no número de Setembro
mas, também as participações deste mês!
Nas Histórias Narrativas contamos com a história
surpreendente de Pedro Mesquita, a crónica que relembra
a infância de Liliana Machado assim como as crónicas de
Giovana Damaceno, por outro lado, temos “O dia Mais
Vermelho” de Graça Samora, que reflecte a dor dos
sentimentos omitidos. Na rubrica Histórias Poéticas
Editorial
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Escrita Criativa
contamos com o poema de Diana Almeida, com uma
criativa descrição do amor, também contamos com três
poemas de Ana Maria Teixeira sobre o tema da vida e o
sofrimento humano, temos ainda os poemas curiosos de
Francisco Hill que retrata o dia-a-dia do ser humano. Por fim
temos ainda uma crítica à burocracia contada numa história
criativa de Firmino Bernardo.
Nós aceitamos o desafio de realizar um número especial
sugerido por Flávio Pereira, de modo que iríamos retratar o
ser humano em si e o seu sofrimento, mas como obtivemos
poucas participações nesse âmbito, o número especial ficou
sem efeito, no entanto, as participações foram aproveitadas
e publicadas neste número da Revista.
Agradecemos mais uma vez, o apoio de todos os nossos
participantes e leitores!
Continuamos a contar com a vossa divulgação e
participação!
Marta Sousa
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Escrita Criativa
O Enigma das Cartas Anónimas
De Agatha Christie
Agatha Christie é desde
sempre um nome
reconhecido em livros de
mistério e do género policial,
sendo o seu livro mais
conhecido O Expresso do
Oriente. Porque sugiro O
Enigma das Cartas Anónimas
e não O Expresso do Oriente?
Por que além do mistério e
do surpreendente final
habitual nos livro da autora
este tem uma história mais envolvente entre as personagens em que
Miss Marple (quem desvenda todo o mistério) aparece apenas nas
últimas páginas. Um romance para quem gosta de um bom livro de
mistério, policiais e uma pitada de romance.
Um óptimo livro para relaxar!
As Nossas Sugestões
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Matilde Escrita Criativa
Matilde
A gota que me caiu na testa escorreu lentamente pela sobrancelha e pestanas, saltou para a bochecha e desceu para o queixo. Quase não dei conta. Era apenas mais uma gota. Estava encharcado até aos ossos em pleno temporal. Esqueci-me do guarda-chuva em casa, mas não fazia diferença. Até estava a saber bem. Não era um dia frio e a rua cheirava a terra. O Outono mal começara e eu gostava de caminhar assim pela cidade. À minha volta as pessoas corriam para se abrigar, de rostos franzidos, como se, com isso, conseguissem contornar as gotas. Só que a chamada "molha-tolos" toca afinal a todos. Para quê evitar o inevitável? As nuvens carregadas no céu e a chuva, que não abrandava, faziam prever dias seguintes iguais. Deviam ser quase sete da tarde e já começava a escurecer. Cada vez mais cedo, de dia para dia, pensei. Nas ruas estava ainda uma multidão mas hoje sentia-me sozinho. Atravessei a rua, para entrar num bar. As portas eram daquelas com molas que se empurram e demoram a parar. Para a frente e para trás, para a frente e para trás, num movimento pendular cada vez mais curto até parar de vez. Há mais de um minuto que as tinha atravessado e já bebia uma cola ao balcão. Estava encharcado mas com sede.
-Dás-me um leite com chocolate?
Era uma voz meiga. Olhei para o meu lado direito, depois para baixo, e vi que era uma criança. Devia ter uns nove anos. Cabelo preto. Pele morena. Os olhos brilhavam e sorria para mim.
-Claro, senta-te aqui. Como te chamas?
-Matilde. Dás-me um chocolate quente?
Histórias Narrativas
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Matilde Escrita Criativa
Percebi de imediato que só teria conversa se correspondesse ao pedido.
-Tem leite com chocolate? Perguntei ao empregado. Queria um bem quentinho, para a Matilde, por favor.
Ela voltou a sorrir para mim e disse:
-Sabes? Ainda não comi nada hoje. Os meus pais obrigam-me a pedir na rua mas hoje eu decidi fugir. Nunca mais.
-E para onde vais?
-Não sei, nem que durma à entrada de um prédio…
Rimo-nos os dois e ela disse:
-Pai, hoje fiz de pobre, que tal me saí?
A escola da Matilde era mesmo ao lado. Esperava sempre naquele bar por ela e todos os dias inventava um personagem diferente. Queria ser actriz quando fosse grande. Saímos abraçados. Eu não tinha guarda-chuva mas o casaco dela era daqueles com capuz. Fomos juntos para casa. Podia ser que amanhã não chovesse e mesmo que chovesse haveria sempre outra história. Ao contrário da maioria dos pais era ela quem mas contava.
Pedro Mesquita
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Infância Escrita Criativa
Infância
Saudade de ti. Saudade do tempo que vivi. Saudade dos
velhos, dos farrapos, dos sentimentos menores. Das horas mortas,
dos sorrisos e até das lágrimas que ainda não chorei. Recordo muitas
vezes décadas em que já fui feliz. É um sentimento interior que brota
num saudosismo estranho por momentos que pareço conhecer, mas
que não vivi. Vejo lugares, objectos e pessoas do meu passado, uma
viajem difícil, dolorosa e arrepiante. Quero resgatar o meu passado e
fazer dele o meu agora. Onde estás? Porque fugiste tão depressa? O
que te fiz eu? Volta para mim, quero voltar a ser feliz contigo, quero
voltar a ser criança, a sorrir com as histórias que me fazias ouvir na
voz doce da minha mãe. Quero voltar a viver aventuras com o mano
mais velho: brincar com berlindes, com os carros de corrida e com as
bicicletas. Sonho com os dias de verão: pés descalços e banhos das
16 horas nos tanques das vizinhanças. Devaneio com os lanches
longos debaixo da laranjeira, com as paparocas de amoras e com as
flores à volta da casa, cheias de borboletas de mil cores. Recordo os
TPC para fazer nas férias com a mesma pressa com que os fazia para
ir brincar com a vizinha com quem projectava mil e uma profissões
que queria ser “quando fosse grande”. Fui professora primária, fui
cabeleireira, fui empresária e até fui dona de casa e mãe (sempre
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Infância Escrita Criativa
com o boneco chorão ou o careca ao colo). Estraguei a única Barbie
com que fui presenteada, não gostava dela… era perfeita. Queria ser
diferente, livre, inteligente e sobretudo, humilde com os outros.
Pensava que a idade me traria amigos, amores, dinheiro e respeito.
Agora que já vivi… perdi amigas (descobri que nunca as tive), o
dinheiro tem sido cada vez mais suado, o trabalho (que traria
respeito) está difícil de conseguir e o amor foi a única coisa que
conquistei com a mesma graça com que o sonhei.
Tenho saudade dos tantos Natais que me ofereceste, das
prendas carinhosas e sacrificadas que os pais, apesar das dificuldades
dos tempos, sempre colocaram no pequeno sapatinho… e as
bombocas de morango e baunilha, sabores intemporais, tão
deliciosas que até evoco o paladar só de as imaginar.
Quando rezo em silêncio, peço que a minha infância caiba a tantas
outras crianças… bela, doce, carinhosa, cheia de valores, de
aprendizagens, cândida e, sobretudo, muito feliz.
Hoje, apesar de ter crescido mais do que gostava, continuo a
ser a menina que não gosta de bonecas perfeitas, prefiro os
berlindes… são muitos e dão para partilhar com os outros no recreio.
Liliana Machado
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Dos Quintais da Memória Escrita Criativa
Dos quintais da memória
Senti falta de infância. Senti falta de ser criança. Doeu a saudade de
tempos frescos, de família em casa, pai, mãe, irmãos, primos, do café
cheiroso no bule às quatro da tarde e do pão quentinho chegando no
cestão de vime do padeiro de bicicleta. Deu aquele aperto no coração
ao me lembrar do quintal, da horta, da ameixeira, do galinheiro, do
poço com tampa de pedra bem pesada que eu brincava em cima.
Saudade dos colos, cuidados, carinhos, inocência.
Nem toda criança teve ou tem o que tive; não viveu a liberdade de
ter um quintalzão de terra, brincar na lama, ter uma garnizé de
estimação, poder passar um dia inteiro de calor apenas de calcinha,
tomar banho no tanque quando se é bem pequena e mais tarde de
mangueira, espalhando água por todo lado. Andei de velocípede
(alguém sabe o que é isso?), depois tive uma bicicleta. Tinha uma
caixinha de bolas de gude, um coelhinho de borracha, e um piano, e
uma boneca chamada Katy.
A família passava horas de uma tarde de fim de semana chupando
cana, que minha mãe descascava e cortava; todo mundo sentado no
quintal, sem pressa. Ou então meu pai mandava minha irmã ir à
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Dos Quintais da Memória Escrita Criativa
sorveteria Spumel comprar picolé. E lá ia com um isopor e trazia
aquele monte de picolé, cujos sabor e textura ainda me lembro
perfeitamente. E a turma era grande. Além dos seis filhos sempre
havia um agregado: primo, prima, tia, passando uns tempos. O
movimento era grande, divertido, trabalhoso pra minha mãe, que
dava conta de tudo sozinha, mas ela também gostava.
Para mim eram tempos muito felizes, pelo menos calmos. Os irmãos
mais velhos, adultos ou quase, já ingressavam no mundo das
responsabilidades, mas a caçula aqui ainda demoraria a vislumbrar
este mundo. Preferia as histórias que eu mesma criava com os
móveis da minha casinha: armário, fogão, panelinhas, sofás. A gente
criava um mobiliário inteiro de caixas de fósforo, encapado com
tecidos variados. Minha mãe fazia roupas para a minha boneca e ela
virava uma personagem fashion.
Um dia, com uma colega de infância, plantei uma semente de ameixa
amarela (Nêspera). Durante anos acompanhei o crescimento daquela
árvore que ficou enorme e acredito que ainda esteja lá. Se não me
falha a memória foi o último pé de ameixa amarela que vi. Também
não esqueço o sabor e a textura daquela frutinha carnuda de casca
peluda e caroços redondos.
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Dos Quintais da Memória Escrita Criativa
Na segunda fase da infância já morava em outra casa. Não tinha um
quintal tão extenso, mas a qualidade estava nas árvores frutíferas ao
meu dispor. Vamos ver se me recordo de todas: abacate, romã,
goiaba vermelha, mexerica, figo, mamão, manga espada, limão e até
uma parreira de uva. E mais outra coisa que a casa anterior não
tinha: terraço. Levei boas palmadas na bunda por me arriscar a
caminhar no beiral. Na calçada havia um fícus italiano (que na
verdade é indiano), que com aquelas raízes aéreas era diversão pura
quando meu pai não estava por perto.
Deste momento da minha vida de criança em diante, a família em
casa começou a diminuir, com os casamentos dos irmãos. E a
realidade trazida por aquele mundo que eu não conhecia foi se
abrindo diante dos meus olhos. Era a adolescência chegando e com
ela todas os compromissos da vida pré-adulta. Já curtia namorico na
escola, me preocupava sozinha com a obrigação dos estudos, mas
não abandonava minha pequena mobília e minhas bonecas. Tornei-
me moça, como se dizia na época, mas queria continuar brincando de
queimada e garrafão no meio da rua. Parecia um prenúncio do
conflito que viveria em todos os meus dias. Cresci sem querer
crescer.
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Dos Quintais da Memória Escrita Criativa
Embora a saudade possa incomodar, pois tais momentos não voltam,
é prazeroso lembrar e saber que desfrutei de tudo isso. E agora, três
décadas depois, sinto que acontece uma nova transição, como a do
início da adolescência, e a percebo por não curtir tanto mais minha
família de origem, mas sim, a que criei. Cada irmão está voltado para
sua própria família, enquanto outros se foram. É hora de fazer novos
esforços, para crescer mais um pouquinho, desta vez sem conflitos,
pois a idade já não permite a negação do avanço. Porém, permaneço
a desfrutar os quintais das lembranças, pois são eles que mantêm
viva a história que vou continuar contando.
Giovana Damaceno
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O dia mais vermelho Escrita Criativa
O dia mais vermelho
A boca sabia-me a tequilha: acabara de apadrinhar o casamento que
queria para mim… Quando consegui abrir a fechadura, entrei de
rompante, não fechei a porta, e fui tropeçar no estupor do cão de
louça da tia Alice. Sempre detestei aqueles paspalhos, inertes, de ar
ameaçador. E aquele já tinha o rabo rachado e as pontas das orelhas
descascadas, ainda por cima… Mas, pronto: a dona, minha tia-avó,
emprestara-me a casa, enquanto emigrou para a terra de onde o
bicho era oriundo, as Caldas da Rainha, em Portugal, e muitas
recomendações me fez… que não alterasse a posição dos móveis,
que não estragasse nada, que não deitasse nada fora…
Juro-vos: naquele momento, eu vi o sacana do cão arreganhar mais
a dentuça para mim, eu vi, sim, como que um esgar de riso, de gozo…
Atirei os sapatos apertados ao ar. Ӄ hoje que eu acabo com este
tipo! Vou escaqueirá-lo!... não: é pouco!” Lembrei-me do garfo do
peixe frito, e fui buscá-lo à gaveta dos talheres: os dentes que lhe
restavam eram afiados como lancetas. Com toda a força que me foi
possível fazer, enfiei-o na boca do bicho até às goelas: deitei-lhe
abaixo uns incisivos, os dentes do garfo partiram-se; a minha mão e
pulso ficaram presos na bocarra, ferrados com os caninos do animal.
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O dia mais vermelho Escrita Criativa
E não consegui retirá-los, nem com a ajuda desajeitada da mão
esquerda.
A boca tinha um gosto adocicado; a visão turvava-se-me mais… Na
nuca, uns arrepios de frio. As fotografias da parede perdiam a cor…
desapareciam. E davam lugar às imagens de vastos campos, cafezais
e bananais sem fim, que se estendiam até às praias…! Mar das
Caraíbas! Pássaros vermelhos: a terra de Lupe…”Trouxe-a para o
México, para Pepe!!...” Era filha de um fazendeiro, moça esbelta, de
andar muito seguro mas desenvolto, que ele, o meu melhor amigo,
me pediu que fosse buscar…Estavam já noivos.
Senti os pés quentes e húmidos: o vermelho do vestido de Lupe
alastrava pelo soalho, lentamente, enrugando-se em pregas,
transpondo a cintura da entrada, embainhando-se no debrum do
patamar de mármore, desfiando-se depois, aqui e ali, pelos degraus
da escada…
Alguém chegou no último instante…
Pepe e Lupe nunca souberam de nada: este é o meu grande segredo.
Resolvi partir. A minha segunda vida é, agora, num imenso bananal,
onde os pássaros têm mil cores!
Graça Samora
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Agridoce sabor do Amar Escrita Criativa
Agridoce sabor do Amar
«É o canto,é o frio,é o simples vazio que
toma conta de mim
É o sol é a lua,
as tuas amarras á minha cintura
que de tanto amor me fazem suar
é o sopro é a brisa
sonho que desliza pelos parapeitos
da minha janela
é quadro pintado a fresco
que a ti me faz chegar
E é feliz e é triste
o momento em que partiste
para de novo te poder encontrar
e se a saudade não engana
não é inopurtuna veterana
por ti me fez cegar
audácia é minha por tentar escrever
aquilo que não consigo falar
a quem fica a quem sente
Histórias Poéticas
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Agridoce sabor do Amar Escrita Criativa
fica apenas
o agridoce sabor do amar.»
Diana Raquel Melo de Almeida
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O Namoro Escrita Criativa
O NAMORO
Namoramos-la toda a vida,
A vida.
É um namoro muito delicado.
A qualquer momento pode ser quebrado
O que nos deixa desesperados
Pois todos os actos de infidelidade ficam marcados.
Por mais que tentemos ser-lhe fieis,
Somos por vezes muito cruéis.
Deixamos que o namoro fique por um fio
E ela permite-nos esse desafio,
Dando-nos abertura, deixando-nos folgados
Mas mostrando-nos que estávamos errados.
Tantas vezes lhe pedimos perdão
E da nossa culpa esperamos absolvição
Mas se tudo corre bem voltamos a desafiá-la,
Duelo ilícito pois não podemos aniquila-la
E por isso ela também nos desafia.
Nós e a vida, somos pura alquimia.
Ana Maria Teixeira
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Vida de Mulher Escrita Criativa
VIDA DE MULHER
Mulher cala a criança!
Mulher quando é servido o jantar?
Mulher vem deitar-te!
Mulher como é belo o teu corpo!
Mulher quanto desejo!
Mas tu deitas-te cansada…
Mulher já é manhã!
Recomeçam as canseiras, uma vida infernal!
Mulher a criança já chora,
Já ferve o leite no fogão!
Corre mulher que se faz tarde e o trabalho não espera!
Mulher, almoçar na cantina, a azáfama diária
Apanhar o comboio, a criança na creche,
As compras no mercado, o marido no café. Depressa!
Depressa que a noite vem correndo!
Mulher, fazer o jantar, passajar, coser, lavar,
Sempre a correr. Que loucura de vida!
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Vida de Mulher Escrita Criativa
Que mata o desejo num rosto tão belo
E o teu belo corpo tão cansado
Na cama repousando...
Teu marido amando-o!
Mas sem entrega recíproca,
Que vida mulher! Que vida!...
Ana Maria Teixeira
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Sem Abrigo Escrita Criativa
O SEM ABRIGO
Vive na rua o sem abrigo
Não tem um tostão não tem um amigo
Já não tem metas para cortar
Nem meios para a vida melhorar.
Chamam-lhe o enjeitado
Por da vida não querer ser escravo
Luta pelo que quer mas não é determinado
Deixando-se iludir por qualquer ditado.
Vagueia pelas ruas da cidade
E dorme ao relento apreciando a lua.
Chamam-lhe o homem da rua
Mas ele aprecia esta privacidade
E chama-lhe sua.
Come os restos de que se sacrifica
Mas da vida fácil não abdica.
É astuto e perspicaz
Mas no fundo não entende o que faz.
Ana Maria Teixeira
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1 Escrita Criativa
1
Às quatro por três já eram sete
e daqui até depois
parecia demasiado.
O gato, calado, como gente.
A porta permanecia discreta.
O sempre igual a si mesmo.
Enfim... era tarde.
E o chá, gelado.
Francisco Hill
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28 Escrita Criativa
28
Às Portas de Brandeburgo,
vi um gato maltês
a dançar a Polka.
Torci-lhe o rabo e,
com sotaque francês,
chamei-lhe Missy.
Soltou-me os cães sem pestanejar
e, na minha fragilidade
quase terna,
corri,
como nos filmes
pós-realistas da Cinemateca.
Em menos de três tempos,
caí de queixos no capot
de um Mercedes benzido
pelo Papa-Milhas.
Kaputta de cena!
pensei eu.
O dono do carro também
não parece ter gostado.
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28 Escrita Criativa
Saltavam-lhe Bratwursts
da boca de dois metros
e a sua baba enchia canecas
prontas a gelar
para inglês beber.
Disse-lhe:
vim ver os anjos
mas nem ganza encontrei.
Vou pra casa!
Francisco Hill
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Courier , tamanho doze, espaçamento duplo Escrita Criativa
Courier, tamanho doze, espaçamento duplo
Domingo. Descobri finalmente uma Instituição que me pode
ajudar num problema antigo. O processo é simples: basta consultar o
sítio na Internet para saber a quem me dirigir e escrever-lhe um e-
mail. Não tenho Internet em casa, mas isso não é problema.
Entro num cyber-café e pergunto o preço. Dois euros por
hora. Acho que consigo resolver o problema em dez, quinze minutos.
O empregado avisa que tenho de pagar, no mínimo, o preço de uma
hora. Não gosto da ideia, mas dada a complexidade do problema, o
que são dois euros? Sento-me frente ao computador, escrevo o
endereço na respectiva barra e espero, espero, espero. Chamo o
empregado e aviso que a Internet está lenta. Rosna-me que não pode
fazer nada e volta para trás do balcão.
Ao fim de um quarto de hora, acedo ao sítio da Instituição e
procuro o nome da pessoa que me pode ajudar. Descubro-o uma
hora depois, anoto-o no caderno e procuro o e-mail. Encontro-o
passados quinze minutos. Entro na minha caixa de correio
electrónico, escrevo a mensagem e envio-a. Ao todo, estive na
Internet uma hora e vinte minutos. O empregado cobra-me duas.
Críticas ou Sátiras
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Courier , tamanho doze, espaçamento duplo Escrita Criativa
Segunda. Entro no cyber-café e consulto a minha caixa de
correio electrónico. Não recebi nenhuma resposta. Pago os dois
euros e saio.
Terça. Cyber-café. Nenhuma resposta. Dois euros.
Quarta, Quinta, Sexta, Sábado, Domingo. Nenhuma resposta.
Dois euros.
Duas semanas depois. Segunda. A pessoa que me pode
ajudar ainda não deve ter lido o meu e-mail. Ou então, já o leu e
ainda não teve tempo de responder. Se calhar, tem estado a pensar
na melhor resposta. Mas também o pode ter apagado sem querer.
Ou então, tem um filtro anti-spam que impediu o meu e-mail de
chegar à caixa de correio dela. Até pode ter um problema no
computador e não conseguir aceder à Internet.
Telefono para a Instituição. Uma voz simpática informa-me
que a chamada será atendida o mais brevemente possível. Depois de
várias músicas, intercaladas com a mensagem inicial, desligo e decido
ir lá pessoalmente.
Apanho um autocarro, um comboio, outro autocarro e um
táxi. Chego e encontro as portas fechadas. Leio o papel que está na
porta. Só atendem pessoas entre as dez e o meio-dia. Percebe-se. À
tarde, têm de resolver os problemas que os cidadãos expõem de
manhã.
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Courier , tamanho doze, espaçamento duplo Escrita Criativa
Terça. Apanho um autocarro, um comboio, outro autocarro e
um táxi. Chego às dez e um quarto. A fila ocupa metade da rua, vou
ao quiosque mais próximo e compro um jornal. Quando regresso, a
fila está muito maior, mas pelo menos tenho alguma coisa para ler.
Às onze e meia, entro no edifício. Às dez para o meio-dia, só há uma
pessoa à minha frente. Quando chega a minha vez, a funcionária
avisa que está na hora de almoço e baixa os estores. Tento
argumentar que ainda é cedo. Tarde demais, estores fechados.
Quarta. Levanto-me às seis. Depois do pequeno-almoço e da
higiene matinal, apanho um autocarro, um comboio, outro autocarro
e um táxi. Chego às dez para às oito. Já há fila, mas desta vez, trouxe
um livro. Às dez e um quarto, uma funcionária abre as portas.
A minha vez chega às onze e meia. Preparo-me para expor o
problema, quando a senhora me informa que tenho de escrever um
requerimento. Pergunto-lhe como devo fazê-lo, ela pede-me para
esperar e vai ao fundo do escritório, tira um dossier de uma
prateleira alta, pousa-o numa mesa, faz-lhe uma festa, abre-o e
folheia-o devagar, não vá alguma folha rasgar-se por falta de
cuidado.
Está tão concentrada, que consegue virar as folhas e falar
com os colegas sobre uma discussão que ouviu aos vizinhos, uma
notícia que leu num tablóide e o episódio de ontem da telenovela.
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Courier , tamanho doze, espaçamento duplo Escrita Criativa
Sem perder o fio da conversa, retira uma folha do dossier, examina-a,
arrasta-se até à fotocopiadora e tira uma cópia. Regressa, pé ante pé,
e arquiva o original. Aproxima-se de mim, estende-me a cópia, cobra-
me cinquenta cêntimos e diz que aquele é o modelo para expor o
problema.
Volto para casa. Escrevo o requerimento. Revejo-o vinte
vezes. Leio-o em voz alta. Parece-me bem. Não falta nada e está
conforme o modelo.
Quinta. Chego à Instituição, por volta das seis, só há duas
pessoas à minha frente. Às dez e meia, entrego o documento. A
funcionária devolve-mo e diz que não pode aceitá-lo por ter sido
escrito à mão. Manda-me reescrevê-lo a computador e entregar uma
cópia em papel e duas cópias em CD-ROM. Pergunto-lhe se o
conteúdo está correcto, responde que não tem tempo de verificar.
Volto para casa, ligo o computador, abro o programa de
processamento de texto, digito o requerimento, gravo-o, revejo-o.
Ligo a impressora, coloco o papel no tabuleiro, imprimo o
requerimento, copio o ficheiro para dois CD e guardo tudo numa
pasta.
Sexta. Chego às quatro da manhã. Às nove e meia, entrego o
documento. A funcionária recusa-o.
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Courier , tamanho doze, espaçamento duplo Escrita Criativa
- Tem de escrever em courier, tamanho doze e espaçamento
duplo.
- Porquê courier? Arial é uma fonte standard.
- Não posso aceitar em arial e muito menos com
espaçamento simples. Ninguém consegue ler um documento com
espaçamento simples.
Peço desculpa e saio. Quando chego a casa, ligo o
computador, abro o documento e formato-o de acordo com as
instruções da funcionária: Courier, tamanho doze, espaçamento
duplo. Ligo a impressora, o papel já está no tabuleiro. Imprimo o
documento e pego na folha. O texto está esbatido, há palavras
ilegíveis. Verifico o tinteiro, está quase vazio.
Sábado. Levanto-me cedo, vou a uma loja de informática.
Contrariado, o funcionário interrompe uma conversa virtual para me
atender.
– Não tenho tinteiros para essa impressora. Já é antiga.
– Antiga? Ainda não tem dois anos.
– Em informática, dois anos é muito tempo. Tinteiros para
isso, só por encomenda.
– Quanto tempo é que…?
– Três dias. Mas só posso encomendar na segunda, o
fornecedor fecha ao sábado.
30
Courier , tamanho doze, espaçamento duplo Escrita Criativa
– Posso deixar-lhe os dados do tinteiro?
– Não. É melhor vir cá na segunda.
Agradeço, despeço-me e saio.
Segunda. Volto à loja. O funcionário encomenda o tinteiro
por telefone e informa-me que chega, o mais tardar, na quinta.
Quinta. Volto à loja. Houve um atraso na entrega das
encomendas.
Sexta de manhã. O tinteiro ainda não chegou. Início da tarde.
Nada.
Dezassete horas. Compro finalmente o tinteiro. Regresso a
casa. Ligo o computador, coloco o tinteiro na impressora, imprimo
uma página de teste. Está tudo bem. Abro o documento, imprimo-o.
Guardo a folha na pasta, junto dos cd.
Segunda. Chego à Instituição às cinco para as quatro. Sou
atendido às dez e um quarto, depois de saber o que os funcionários
fizeram no fim-de-semana. Desta vez, quem me atende é uma jovem
sorridente e descontraída. Entrego-lhe o documento e os cd. Ela
sorri, coloca uma pastilha na boca, pega no requerimento, lê-o sem
pressas e informa-me que está de acordo com o modelo. Pede-me o
número de telefone, escreve-o a lápis no canto superior direito da
folha. Pede-me o bilhete de identidade, o número de contribuinte, a
carta de condução, o passaporte, o cartão de eleitor, a cédula militar,
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Courier , tamanho doze, espaçamento duplo Escrita Criativa
o cartão da segurança social, o certificado de habilitações e o cartão
de dador sanguíneo.
Entrego-lhe os documentos, ela copia os respectivos dados e
o texto do meu requerimento, palavra a palavra, para o computador.
Quando termina, cospe a pastilha para o cesto de papéis, coloca
outra na boca, imprime uma ficha com os meus dados e o meu
pedido e manda-me assinar. Fotocopia a ficha, entrega-me a cópia,
devolve-me os documentos e manda-me para a outra sala.
Vou para a outra sala e espero na fila. Uma hora depois, um
funcionário pede-me a cópia da ficha e os documentos. Entrego-lhe o
que me pede. Ele pega numa caneta, estuda minuciosamente os
dados dos meus documentos, compara-os com os dados impressos
na folha e assinala-os à medida que os confirma. Quando termina,
devolve-me os documentos e introduz os dados no computador.
Imprime outra ficha, pede-me para assinar, aperta-me a mão e
informa que me ligarão assim que tiverem a solução para o meu
problema.
Volto para casa. Decido deixar o telemóvel ligado vinte e
quatro horas por dia, quero estar disponível a qualquer momento,
afinal o assunto é do meu interesse.
Três meses depois. Sexta. O telemóvel toca. No visor, está o
nome da Instituição. Atendo. Uma funcionária explica-me que os
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Courier , tamanho doze, espaçamento duplo Escrita Criativa
superiores estudaram atentamente o meu problema, reuniram várias
vezes para analisar e discutir o requerimento e chegaram a
conclusões: dada a complexidade do assunto, não são as pessoas
mais indicadas para o resolver. Muito simpática, a senhora espera
que eu encontre lápis e papel e dita-me o endereço de Outra
Instituição, mais apta para tratar de situações como a minha.
Agradeço e desligo. Apanho um autocarro, um comboio, um
barco, outro comboio e um táxi. No interior das portas de vidro, há
um aviso com o período de atendimento: às quartas-feiras, entre as
dez e quarenta e cinco e as onze e cinquenta.
Volto para casa, optimista. Daqui a cinco dias, o meu
problema estará resolvido.
Firmino Bernardo
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