ESCOLA DA PONTE
Formao e transformao
Para a Ftima, companhia de bons e maus momentos,
cujo contributo foi imprescindvel para a realizao deste estudo.
Para a Anita, a Geni, a Maria Jos, a Tita, a Conceio
e todos aqueles que, num tempo em que ningum ousava ousar... ousaram.
Para os novos professores da Escola da Ponte.
ndice
Para que serve a formao? 4
No princpio, era a Ponte... 6
Modelos e conflito de racionalidades 9
Um sentido ambguo de formao 14
Crculo de estudo 21
Contributos para a compreenso do crculo de estudo 25
Etapas comuns na criao de crculos de estudo 37
Caractersticas do crculo de estudo 41
Projecto de formao, projecto poltico-pedaggico e reelaborao cultural 45
A formao enquanto mediao 48
A formao a verificao das dificuldade de ensino 51
De uma formao individualista formao mutualista 57
Valorizao dos adquiridos e determinao de necessidades 64
Informalidade 67
A permanncia no crculo 72
Integrao teoria-prtica 74
Autonomias 79
Sinais de emancipao e senso crtico? 84
Identidade e pensamento divergente 89
Inquietaes, marginalidade e conflito 91
A democraticidade em democracia se aprende 95
Potencial e limites da formao em crculo 101
Os limites de uma formao continuada que passa pela formao inicial 102
Contributos para a definio do perfil de um formador no crculo 105
Condies do exerccio da profisso 111
Concluindo... 118
ANEXO 1- Sobre a pesquisa 121
ANEXO 1 - Casos exemplares da formao de professores 124
Bibliografia 145
Que lhes valeu todo o curso que fizeram durante longos anos? Em vo leram
livros copiosos, beberam a caudalosa erudio dos catedrticos imponentes,
como oradores parlamentares, fizeram provas escritas de inmeras laudas,
com letra mida... Palavras, palavras, palavras que o vento levou...
As aulas de psicologia ficaram geladas nos livros; as de pedagogia fecharam-
se nas caixas de jogos; as outras no levaram em si nenhum grmen dessas
duas, que so, no entanto as indispensveis a quem vai ser professor...
Pobres alunas que no tiveram quem as orientasse a tempo! Depois de tanto
trabalho, tero de fazer por si mesmas, e com enorme esforo, aguilhoadas
pela pressa de quem j est no quadro do magistrio, toda a cultura tcnica
que ningum pensou ou lhes pode fornecer no momento devido1
(Ceclia Meireles)
O social-histrico o colectivo annimo, o humano-impessoal que preenche
toda a formao social, mas engloba tambm, que encerra cada sociedade
entre as outras e as inscreve a todas numa continuidade, na qual, de certo
modo esto presentes os que no esto, os que esto longe e mesmo os que
esto por nascer (...) a unio e a tenso entre a sociedade instituinte e a
sociedade instituda, da Histria feita e da Histria que se est fazendo.2
(Castoriadis)
1 Meireles, C. (2001). Crnicas de Educao (3). Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, pp. 158-1592 Castoriadis, C.(1975) L'instrution, l'imaginaire et la societ, Paris, Seuil, p.148
Para que serve a formao?
Se a competncia dos professores fosse medida pelo nmero de cursos frequentados, a
qualificao dos professores seria extraordinria. Se a qualidade das escolas pudesse ser medida
pelo peso dos certificados de aces de formao frequentadas pelos seus professores, aconteceria
uma revoluo em cada escola.
Os professores fazem cursos, acumulam certificados, sem que isso corresponda a mudana
ou responda aos desafios que encaram na sala de aula. Uma pesquisa recente3 revela que
professores que fizeram muitos cursos no melhoraram o aprendizado dos seus alunos os
docentes que frequentaram programas de capacitao no conseguiram que seus alunos obtivessem
melhor desempenho no Saeb.
O estudo revela algo surpreendente: quando se trata do ensino pblico e dos cursos de
capacitao oferecidos aos professores dessas redes, a constatao que eles no esto fazendo
diferena no desempenho dos alunos, apesar de geralmente serem divulgados como uma das
iniciativas para melhorar o ensino. Esta preocupante realidade brasileira no difere de outras
realidades. Em Portugal, aps o incremento da formao continuada de professores, decorrente da
institucionalizao de um sub-sistema de formao e do investimento de milhes de euros, os
resultados foram decepcionantes. Na prtica, pouco ou nada se alterou na atitude dos professores,
pouco ou nada ter mudado nas suas prticas.
O estudo efectuado no Brasil refere que o professor vai, fica ouvindo sobre vrias linhas
pedaggicas e no fim no aprende nada que consiga usar. Estas consideraes so como o eco de
lamentaes que escutei, h muitos anos atrs, em Portugal:
Fui educada para comer, ouvir e calar e a formao continuada tradicional um
massacre. As pessoas no podem ser pessoas e passam as horas a treinar-se em algo que
lhes dizem terem de ser. Sempre gostei da formao, se eu a quiser. Gostaria de saber
qual o segredo da Escola da Ponte, que oportunidades de formao so dadas aos
professores da Ponte, o que os faz serem diferentes.
Porque falharam os programas de formao? Talvez porque se tenha insistido na crena da
transferibilidade linear de saberes pretensamente adquiridos. Talvez porque se tenha esquecido que
o modo como o professor aprende o modo como o professor ensina. Que o modelo predominante
3 Determinantes do Desempenho Escolar do Brasil, Narcio Menezes Filho, So Paulo, 2007
da formao universitria , por vezes, a negao do que se pretende transmitir e que a universidade
... a matriz. Talvez porque se descurasse a necessidade de criar dispositivos de auto-formao
cooperativa, que rompessem com a cultura do isolamento e auto-suficincia que ainda prevalecem
nas nossas escolas. Talvez...
No ser difcil caracterizar os programas de formao que serviram intuitos reformadores,
mas que as escolas reformaram:
Os contedos e finalidades surgem sob a forma de mdulos e etapas a percorrer, em
funo de modelos a reproduzir;
A planificao feita por servios centrais;
Existe uma relao de poder vertical explcita do formador (sujeito de formao) sobre o
professor (objecto de formao);
a avaliao certificativa;
a formao continuada segue a lgica das "pedagogias compensatrias", no sentido em
que no h relao entre formao inicial e formao no-inicial, apenas se concebe como
necessidade de remediao de lacunas da formao inicial;
os professores so consumidores de pesquisa;
o objectivo primordial o de adaptar os professores a "novas" tcnicas ou processos.
A quem serviu esta prtica de formao? A avaliar pela situao que se vive nas escolas,
talvez a ningum. E no se poder imputar a responsabilidade incipiente concepo, escassez de
recursos, falta de financiamento dos programas ou ao tradicional individualismo dos professores.
Se algum xito estes programas tiveram foi o de reforar o alheamento e a alienao de grande
nmero de professores, mantendo-os como simples consumidores de formao. As avaliaes
(quando as houve) segregaram aspectos relativos ao enquadramento dos programas no seu contexto
scio-econmico e cultural, num quadro de racionalidade tcnico-instrumental.
Poderemos concluir que j tudo foi discutido e prescrito sobre formao? Ou deveremos
seguir a mxima de Pascal que nos avisa que, por detrs de cada verdade, preciso aceitar que
existe uma qualquer outra verdade que se lhe ope?
Opto pela busca. Porque acredito que a formao acontece quando um professor se decifra
atravs de um dilogo entre o eu que age e o eu que se interroga, quando o professor participa de
um efectivo projecto, identifica as suas fragilidades e compreende que obra imperfeita de
imperfeitos professores. Por essa razo, procurei alternativas. Por isso, aconteceu este livro.
No princpio, era a Ponte...
A busca de alternativas (que passarei a descrever) teve origem naquilo que se convencionou
designar por crculo de estudo. Foi num crculo de estudo que o projecto Fazer a Ponte teve a sua
gnese.
Em 1976, a Escola da Ponte defrontava-se com um complexo conjunto de problemas: o
isolamento face comunidade de contexto, o isolamento dos professores; a excluso escolar e
social de muitos alunos, a indisciplina generalizada e agresses a professores, a ausncia de um
verdadeiro projecto e de reflexo crtica das prticas...
Nada foi inventado na Escola da Ponte, mas quando se compreendeu que eram precisas
mais interrogaes que certezas, foram definidos como objectivos:
concretizar uma efectiva diversificao das aprendizagens tendo por referncia uma
poltica de direitos humanos que garanta as mesmas oportunidades educacionais e de
realizao pessoal para todos;
promover a autonomia e a solidariedade;
operar transformaes nas estruturas de comunicao e intensificar a colaborao entre
instituies e agentes educativos locais.
Considermos indispensvel alterar a organizao da escola, interrogar prticas educativas
dominantes. H trinta anos, a Escola da Ponte era um arquiplago de solides. Os professores
remetiam-se para o isolamento fsico e psicolgico, em espaos e tempos justapostos. Entregues a
si prprios, encerrados no refgio da sua sala, a ss com os seus alunos, o seu mtodo, os seus
manuais, a sua falsa competncia multidisciplinar, em horrios diferentes dos de outros
professores, como poderiam partilhar, comunicar, desenvolver um projecto comum?
O trabalho escolar era exclusivamente centrado no professor, enformado por manuais iguais
para todos, repetio de lies, passividade... As crianas que chegavam escola com uma cultura
diferente da que a prevalecia eram desfavorecidas pelo no reconhecimento da sua experincia
sociocultural. Algumas das crianas que acolhamos transferiam para a vida escolar os problemas
sociais dos bairros pobres onde viviam. Exigiam de ns uma atitude de grande ateno e
investimento no domnio afectivo e emocional. Tambm tommos conscincia de novas e maiores
dificuldades. Por exemplo, de que no passa de um grave equvoco a ideia de que se poder
construir uma sociedade de indivduos personalizados, participantes e democrticos enquanto a
escolaridade for concebida como um mero adestramento cognitivo.
Se os pais eram chamados escola, pedia-se castigo para o filho ou contributos para
reparaes urgentes. A escola funcionava num velho edifcio contguo a uma lixeira. Nas paredes,
cresciam ervas. O banheiro estava em runas e no tinha porta..
Compreendemos que precisvamos mais de interrogaes que de certezas. E
empreendemos um caminho feito de alguns pequenos xitos e de muitos erros, dos quais colhemos
(e continuaremos a colher) ensinamentos, aps termos definido a matriz axiolgica de um projecto
e objectivos que, ainda hoje, nos orientam. Na Escola da Ponte, como em outros lugares, ser
indispensvel alterar a organizao das escolas, interrogar prticas educativas dominantes.
urgente interferir humanamente no ntimo das comunidades humanas, questionar convices e,
fraternalmente, incomodar os acomodados.
Apesar dos progressos verificados ao nvel da teoria (e at mesmo contra eles), subsiste uma
realidade que as excepes no conseguem escamotear: no domnio das prticas, o nosso sculo
corre o risco de se completar sem ter conseguido concretizar sequer as propostas do fim do sculo
que o precedeu. Infelizmente, no vivemos o fim do "sculo da criana", mas somente o princpio
da Escola. Desde h sculos, somos destinatrios de mensagens que raramente nos dispomos a
decifrar e o que acontece um regresso cclico s mesmas grandes interrogaes. Todos os
movimentos reformadores se assemelham na rejeio do passado, mas a especulao terica sem
cauo da prtica engendra apenas reformulaes de uma utopia sempre por concretizar.
No h modelos, mas h referncias que podero ser colhidas neste projecto, como em
tantos outros anonimamente construdos, cujo intercmbio urge viabilizar. A concepo e
desenvolvimento de um projecto um acto colectivo, no quadro de um projecto local de
desenvolvimento, e pressupe uma profunda transformao cultural. Nos ltimos anos, muitos
professores visitaram a Ponte, muitas escolas dela se acercaram. Poderemos j falar da existncia
de uma rede, ou fraternidade educativa. O estudo agora divulgado vem ao encontro de uma
necessidade manifestada por esses professores e pelas suas escolas. Incide sobre a reelaborao da
cultura pessoal e profissional, no contexto de uma formao indissocivel da ideia de mudana
escolar e social.
O projecto da Escola da Ponte constitui um sinal de esperana para todos os que
acreditam e defendem a possibilidade de construir uma escola pblica aberta a todos os pblicos,
baseada nos valores da democracia, da cidadania e da justia, que proporciona a todos os alunos
uma experincia bem sucedida de aprendizagem e de construo pessoal4. A Ponte foi inspirao
4 Rui Canrio, Filomena Matos, Rui Trindade et al, Escola da Ponte, Profedies, Porto (2003).
para muitos professores que no desistiram de fazer dos seus alunos seres mais sbios e pessoas
mais felizes.
Ao longo de trinta anos, participei nesse projecto. Dados os excelentes resultados obtidos5,
ele passou de mero objecto de curiosidade a locus de pesquisa. Sendo o seu maior crtico, sempre
me manifestei relutante a mostr-lo como frmula inovadora e recusei muitos pedidos, que me
foram dirigidos, para publicar algo que o explicasse. Nos ltimos anos, foram publicadas muitas
obras por educadores que desenvolveram pesquisas nessa escola, na diversidade de abordagens que
o projecto permite realizar. Agora, que decidi afastar-me (fisicamente) da Escola da Ponte, creio ser
o momento de dar incio a algumas reflexes, no sobre um passado cristalizado a imitar, mas
porque a Ponte representa uma singularidade, na qual possvel vislumbrar a totalidade
sistmica dos problemas do quotidiano das escolas, bem como algumas hipteses slidas de
possveis solues que contrariam o nosso proverbial cepticismo6.
Nesta primeira tentativa de explicao da Ponte, meu ensejo descrever um dos modos de
fazer coincidir a formao de professores com a construo autnoma de uma profissionalidade
responsvel.
5 O Projecto Fazer a Ponte obteve quase sempre os primeiros lugares nos concursos a que se submeteu. Os seus alunos obtiveram excelentes resultados em provas nacionais. 6 Todas as citaes feitas neste captulo so extradas da obra citada: Escola da Ponte, Profedies, Porto (2003); apenas acrescentarei os nomes dos autores.
Modelos e conflito de racionalidades
Na tradio liberal clssica, estar em formao correspondia a estar em preparao para
ensinar. Na segunda dcada deste sculo, tomou forma uma tradio que viria a incidir em
perspectivas de eficcia social. A tnica na racionalidade tcnica iria pereniz-la at aos nosso dias,
ainda que travestizada fcil assumir de novo o papel de aluno, por mais negativa que seja a
experincia que se possa ter da escola7.
Na racionalidade tcnica, a actividade profissional principalmente dirigida soluo de
problemas, pela aplicao rigorosa de teorias cientficas: o profissional um tcnico, um
especialista que aplica com rigor as regras que derivam do conhecimento cientfico. Na
racionalidade reflexiva, o professor trabalha com pessoas que actuam e reflectem. Os processos que
da decorrem so de interaco mental, dotados de enorme singularidade. dimenso cientfica
(tcnica) acresce a dimenso artstica. Esta componente artstica caracteriza toda a actividade
prtica e no se confina racionalidade tcnica. Esta ltima incapaz de dar resposta
complexidade, singularidade, incerteza e conflitos de valores prprios dos fenmenos
formativos. Na racionalidade reflexiva, o professor age como prtico autnomo, como artista que
reflecte, toma decises e cria no prprio processo de execuo, e detm um conjunto de
conhecimentos em aco, de reflexes em aco e de reflexes sobre a aco8.
Um dos pressupostos de um modelo assente na autonomia e na reflexo ser o da definio
das finalidades bsicas que poderiam ser preconizadas para a formao continuada de professores.
A capacidade de intervir em situaes complexas poder ser uma dessas finalidades. Podemos
operacionaliz-la em seis dimenses:
conscientizao da profunda relao de dependncia entre os problemas especficos do
acto formador e os problemas sociais que o contextualizam e o condicionam;
actuao dentro das margens possveis de autonomia face massificao cultural;
desenvolvimento de formas de cooperao e solidariedade, de modo a contribuir para
espaos de desenvolvimento pessoal e colectivo;
teorizao das prticas, no sentido de consciencializar o poder individual e de grupo e no
sentido da anlise crtica e transformadora das relaes de poder;
resistncia prevalncia de micro-racionalidades acrticas, pois quanto mais global for o
problema, mais locais devem ser as solues;
7VALLGARDA, H. & NORBECK, J. (1986). Para Uma Pedagogia Participativa. Braga: Universidade do Minho:.238Schn, D.(1992) La formacin des profisionales reflexivos, Barcelona, Paids/MEC.
considerao do trajecto de formao como processo de conquista de significados
pessoais e sociais.
Porm, a lgica da "formao centrada na escola" foi contrariada pela dicotomizao entre
espaos de formao e de aco. De um lado, as situaes de formao normalmente organizadas
segundo uma lgica dos contedos a transmitir e das disciplinar a ensinar; do outro lado, as
situaes de trabalho organizadas segundo uma lgica dos problemas a resolver e dos projectos a
realizar9. Por maior debate (ou especulao...) que se produza, a formao continua eivada de um
inevitvel empirsmo voluntarista. A formao est a, consensualmente til, independentemente
dos contextos institucionais em que se realiza e da natureza da articulao com os lugares
institucionais onde suposto que produza efeitos: as escolas10. A indiferena perante esta
realidade arrasta consigo o cinismo que, tambm neste caso, como que o verniz do esprito, que
embota qualquer perspectiva de construo de alternativas.
Na busca de alternativas, evocarei Chantrane-Demailly11, que prope quatro modelos de
formao. O critrio de diferenciao a relao simblica fundamental: forma universitria, forma
escolar, forma contratual e forma interactiva-reflexiva. O modelo de formao adoptado na Escola
da Ponte aproxima-se do quarto modelo. Surge ligado resoluo de problemas reais relacionados
com situaes concretas do quotidiano laboral e desenvolve-se com o contributo inalienvel dos
professores. Aproxima-se, tambm, de um modelo de prticas espontneas sob a forma de rede12
ou ainda da aprendizagem cooperativa13, que congrega grupos constitudos ad hoc para fins
especficos.
Na Escola da Ponte, postulmos um modelo isomrfico de formao, que, influenciando a
elaborao de objectivos, estabelecesse influncia na configurao das prticas pedaggicas,
promovendo a relao entre o conjunto de saberes e saberes-fazer prvios com o que de novo se
fazia, conferindo significado actividade, reforando a progressiva apropriao do controlo e
conduo do processo pelos professores, privilegiando uma interaco participativa.
Talvez tivssemos andado prximos da descrio elaborada por Mary-Louise Holley e
Caven Mc Loughlin (1989): comea-se pela organizao de aces pontuais de formao e por
encarar o professor isolado e a ttulo individual; evolui-se para a considerao de redes de
9Finger, M. & Nvoa, A.(1988) O mtodo (auto) biogrfico e a formao, Lisboa, DRH, p.11010Canrio, R.(1991) Mudar as escolas: papel da formao e pesquisa, Inovao n 4 (1), p.7711Chantrane-Demailly, L. (1992) Modelos de Formao Contnua e Estratgias de Mudana, in Nvoa, A.(org.) Os Professores e a sua Formao, Lisboa, D. Quixote/IIE, pp.142-14512Huberman, M.(1986) Um nouveau modle pour le developpment profissionel des enseignants, in Revue Franaise de Pdagogie, n 75, pp. 5-1513Johnson, D. & Johnson, R.(1991) Cooperative learning and school Development, Mineapolis, U.M., pp. 2-5
cooperao e de colaborao profissional; deslocamo-nos da formao por catlogo para a reflexo
na prtica e sobre a prtica; diversificamos, criamos alternativas; mudamos as nossas prticas de
investigao sobre os professores para uma investigao com os professores e at para uma
investigao pelos professores14.
No campo da formao, predominam dois modelos: o que perfila um professor especialista
em didcticas e aquele que tende a consider-lo como intelectual crtico. O primeiro dominado
pelos mtodos de ensinar e por uma Psicologia do individual; o segundo sobrevive apoiado em
tmidos contributos de uma Sociologia da Educao que tarda em se afirmar. Nesta tenso, no
possvel nem til a separao arbitrria dos modelos. A oposio entre um modelo de formao
dito tradicional e um outro que se reclama de autonomia e de criatividade pode ser mistificadora
(...) os modelos no se anulam mutuamente15.
Na formao concebida e desenvolvida na Ponte, os professores colheram e ultrapassaram
solues avulsas e passaram problematizao de situaes educativas. Seleccionaram a
informao til que uma formao mais transmissiva lhes facultara e sobre elas elaboraram novas
leituras de situaes emergentes. Como a complexidade dessas situaes no encontrava resposta
em solues tcnicas genricas, um terceiro modelo de formao surgiu. Esse modelo serviu a
inteno de obstar ao desenvolvimento de uma lgica instrumental e adaptativa16, de uma
tecnocracia da formao que, instalando-se, dificilmente seria erradicada. A sua sntese possvel
poder ser descrita nas articulaes seguintes:
passagem do interesse circunstancial integrao nas preocupaes pessoais e de grupo;
possibilidades de gerar projectos de formao em margens de liberdade que no
dispensam o trabalho intelectual organizado;
desmistificao da funo do formador sem, contudo, fazer a economia da formalizao
dos conhecimentos;
preservao de autonomia na formao, no ignorando os contributos de experincias de
sub-sistemas sociais que tambm jogam investimentos no campo do conhecimentos em
formao continuada.
Entre os diversos modelos de prtica de formao (centrado no formador, no formando, no
grupo, ou misto), optou-se pela complementaridade a Ponte aproveitou iniciativas ministeriais e 14Holley, M. & Mc Loughlin, (1989) Perspectives on Teacher Profissional Development, Lowes, The Falmer Press, cit. in Nvoa, A. (1991), p.7415Pacheco, J. (1993) Memria e Projecto, Correio Pedaggico n 74, p.816Dubard, C. (1992) Formes identitaires et socialisation professionelle, Revue Franaise de Sociologie, XXXIII, p.p. 505-529
de outras escolas e, se eram coerentes com os seus objectivos. F-lo, porm, no respeito pela
iniciativa pessoal harmonizada com a equipa pedaggica. A considerao da pessoa na
considerao da equipa sugere um conceito de desenvolvimento profissional que implica uma
dimenso contextual e organizativa, na qual no apenas afectado o professor isolado, mas todos
os profissionais associados em crculo, ou envolvidos em projectos nas escolas17. Praticou-se uma
pedagogia hermenutica concomitante com a conflitualidade da mltipla interpretao, uma prtica
de reflexo tica essencial. As opes que da decorreram traduzem uma relao complexa e
intrnseca entre o domnio do saber cientfico e a validade do uso social dos seus produtos.
Poderemos enquadrar a formao realizada na Ponte nos movimentos de revitalizao
cultural18, devido sua capacidade de gerar sub-sistemas culturais portadores de inovao.
Verifica-se a existncia de fases de algum modo afins das que Banks19 enumera para os grupos de
revitalizao cultural. Estes grupos emergem como reaco a constrangimentos impostos pela
sociedade de contexto e como reaco monorracionalidade tcnica, que caracterizam modelos de
formao ditos tradicionais.
Tambm se poder situar a formao realizada na Ponte prxima de teorias anarquistas e
utpicas, dado que visou a ocorrncia de mudana interior (no indivduo), quanto a exterior (grupo
na comunidade), pelo aumento da conscincia crtica suscitada por formas originais de
aprendizagem uma conscincia crtica e uma sensibilidade em potencial para os seus prprios
interesses (...) na aco crtica colectiva20. De igual modo se poder considerar essa formao
prxima dos grupos de militncia pedaggica, pois actuou21 como tertlia mais ou menos
estruturada, unida por um forte desejo de mudana, entre momentos e nos momentos de abertura
propiciados pelo centro do sistema. E poder ainda ser considerada integrada em algumas das
tendncias actuais da formao de adultos22, a saber:
uma finalizao mais forte das formaes em relao ao seu contexto;
um investimento do local em matria de deciso;
a individualizao dos percursos de evoluo (auto-formao, funo apropriativa);
uma intensa ligao entre formao e investigao;
17Garcia, C.(1989) Introducin a la formacin del professorado, Sevilha, S.P.U.S.18Banks, J.(1985), cit in Corteso, L. (1988). Contributo para a anlise da possibilidade e dos meios de produzir inovao: o caso da formao de professores. Porto: FPCE, p.7819Banks, J.(1985) Etnic Revitalization Movements and Education, Educational Review, V.37, n 2, pp.131-13920Giroux, H.(1986) Teoria Crtica e Resistncia em Educao, Petrpolis, Ed. Vozes, p. 14921Sobretudo na transio da dcada de 70 para a dcada de 80.22Barbier, J. et al (1991) Tendances d'volution de la formation des adultes, Rvue Franaise de Pdagogie, 97, pp.75-108
o desenvolvimento da formao integrada na situao de trabalho (escola, sala-de-aula,
equipa de professores);
uma ateno particular s estratgias de aprendizagem na formao.
Numa aproximao compreensiva s caractersticas da formao praticada na Ponte, a
inteno mais de questionamento que de explicao causal. As caractersticas ideais no podem
ser analisadas isoladamente, nem desligadas da situao do vivido. No se creia que a singularidade
recusa a objectividade neste assentimento. A circunstancialidade e o registo histrico localizado so
componentes dessa objectividade, por tudo o que de subjacente se eleva ao nvel dos processos
explcitos, pelo que tal significa na articulao entre elementos tradicionalmente dissociados.
A multireferencialidade da filiao (antes enunciadas) recomenda uma abordagem analtica,
que coloque a ateno na multiplicidade das caractersticas inventariadas. S deste modo ser
possvel obter do fenmeno inovador a compreenso mais prxima das realidades que sugere. S
uma constelao de caractersticas pode captar o silncio que persiste em cada lngua que
pergunta, sem que, ao observar os fenmenos, os objectualizemos em demasia, na nsia de um
rigor que degrada e caricaturiza23. Grande nmero de anlises de formao so feitas no vazio, por
descurarem elementos dos contextos em que se processa, ou pelo facto de um intransponvel fosso
se instalar entre os dispositivos de anlise e os idiossincrticos dispositivos de formao.
H neste trabalho um propsito confessado de interveno, que ultrapassa a busca da
compreenso, para aspirar ao encontro com algumas pistas de aco. Ao estudar as representaes
dos professores relativamente sua actividade de formao, aceita-se que no seu processo de
elaborao e no seu contedo, elas so um produto cultural revelador das relaes no seio do grupo
o "sujeito-activo em construo" que alcanado. Isto significa que podemos apreender o
sujeito-professor e o grupo no seu processo de constituio de sujeito activo, de sujeito em aco e
no nos limitarmos a descrev-los do exterior tentando compreender e analisar uma lgica de aco
que nos escapa24.
23Santos, B. (1986) Orao de Sapincia, Coimbra, pp.14-2224Benavente, A. (1990) Escolas, Professoras e Processos de Mudana. Lisboa: Horizonte, p.91
Um sentido ambguo de formao
A formao de professores pode sugerir uma multiplicidade de interpretaes. Pode ser
objectivada, em relao ao momento, como inicial, contnua (ou no inicial), permanente. Em
referncia ao modelo adoptado, tem sido designada como integrada, sequencial, por competncias,
por objectivos. O conceito pode ainda ser referido a iniciativas pontuais ditas de formao, ou a
currculos desenvolvidos por instituies de formao, normalmente realizadas em aces de curta
durao.
Giles Ferry25 aprofunda a duplicidade denotativa do vocbulo formao. Este pode ser
considerado como funo social (...) de transmisso de saber, de saber fazer e saber ser, que se
exerce em benefcio do sistema scio-econmico ou, mais geralmente, da cultura dominante,
como pode ter a acepo de processo de desenvolvimento (...) estruturao interna e de ocasies
de aprendizagem, de encontros, de experincias26. Mais ainda: a formao pode ser considerada
como instituio porque tambm o local de aprendizagem de uma prtica com as suas normas.
multiplicidade de significados juntarei a afirmao de Dominic27 de que o adulto se
constri ao sabor de uma sequncia escalonada de momentos crticos. A formao nestes moldes,
ela prpria produtora e produto de inovao. um processo complexo de apropriao e de
ruptura, de adeso e de confronto (num) regresso cclico (de) interrogaes (...), de continuidades,
de mudanas e de conservaes28. Deixa de ser, somente, um problema tcnico e ultrapassa o
campo da utopia, para contemporanizar as dimenses de inteno e da aco. A formao de
professores um processo contnuo e participado, decorrente das prticas e a elas referenciado, um
processo contnuo de aco e reflexo crtica sobre a aco. Atravs da reflexo crtica so
questionadas formas de legitimao (de autoridade, ou regulao moral, por exemplo).
Entendo a formao como processo, no qual os momentos de ruptura se identificam com os
momentos de inovao ao nvel da prtica pedaggica, num processo onde no existe separao
entre teoria e prtica, entre a consciencializao e a contextualizao. Esta concepo afasta-se dos
modelos em que o desenvolvimento e a avaliao da formao se processam segundo uma lgica
centralizadora, em que no so consideradas as racionalidades dos agentes de formao, ou as suas
representaes.
Nos frequentes contactos com professores, em escolas onde acontece inovao, deparo com
a diversidade de formas de organizao de trabalho escolar, correspondentes a diferentes formas de 25Ferry, G., (1983:31) cit in Corteso, L. (1988), op. cit., p.1726Ferry, G., (1983:31) cit in Corteso, L. (1988), op. cit., p.1727Dominic, P., (1984) cit in Corteso, L. (1988), op. cit., p.1828Nvoa, A., (1990) Educao e Sociedade. Porto: texto policopiado, p.12
representar produtos de formao,. Analiso-as na perspectiva de Aronowitz e Giroux29, a partir de
conceitos como o de intelectual crtico e intelectual transformador. Os professores so
considerados intelectuais na medida em que, mais que profissionais preparados para realizar com
eficcia objectivos que lhe so postos, se assumem na liberdade e capacidade de exerccio crtico.
Este posicionamento permite questionar ideologias que legitimam a separao entre processos de
conceptualizao e de execuo.
A racionalidade tecnocrtica, que tende a separar a teoria da prtica, promove pedagogias
que suprimem a autonomia dos professores (e dos alunos). De um modo geral, a formao
organizada segundo este tipo de racionalidade gera formas de organizao escolar decalcadas, nas
quais os professores exercem um controlo escasso sobre o seu trabalho. So programas que
colocam a nfase em tcnicas pedaggicas que, em geral, evitam as questes sobre as finalidades
e o discurso de crtica e de possibilidade30.
A formao entendida como espao essencial de desconstruo de formas de discurso e
teoria social e das prticas que os reproduzem interpela o contedo poltico das opes
"pedaggicas", identifica formas subtis de autoridade, a regulao moral, ou as representaes
transmitidas aos alunos. Esta formao ultrapassa o domnio das tcnicas para se preocupar com o
modo como os padres de organizao e gesto de tempos, espaos e contedos curriculares
apoiam a reproduo de relaes sociais, na sala de aula e na escola.
As escolas so, aqui, reconhecidas como "esferas pblicas". neste sentido que poder
tentar-se a definio de intelectual como o profissional que sustenta uma relao contemplativa,
criativa e crtica com o mundo das ideias e das prticas. E, para introduzir uma componente
dinmica (no sentido da interveno) juntemos a definio de M. Kohl31: intelectual tambm
algum que tem coragem de questionar a autoridade e se recusa a agir contra a sua prpria
experincia e valores. Com base nesta definio, remetamo-nos para o conceito de intelectual
transformador32, i., para a "possibilidade" da fuso do discurso crtico com a prtica poltica.
Os professores da Escola da Ponte e aqueles que acompanho, num Brasil de projectos de
mudana estabelecem a ligao com outros agentes educativos locais, numa simbiose que cumpre
os objectivos de problematizao de modos autoritrios do exerccio do acto educativo, na escola,
na famlia, na sociedade. O espao de formao transformadora , pois, todo o espao e tempo de
ensino e aprendizagem. neste espao alargado que se pode conceber a prtica de modelos
29Aronowitz, S., e Giroux, H. (s/d) Educao radical e intelectuais transformadores. Porto: policopiado, p. 1130Aronowitz, S., e Giroux, H. (s/d.), op. cit., p. 831Kohl, M., cit in Aronowitz, S., e Giroux, H. (s/d.), op. cit., p.1132Ultrapassemos, por opo, a crtica necessria a modelos de formao que presumem o professor como intelectual "no-comprometido", no sentido em que lhe atribudo por Giroux (texto policopiado, s/d)
emancipatrios, no sentido de que o pedaggico e o poltico se interpenetram profundamente.
Significa que, tal como no terreno dos conflitos sociais, as escolas representam tanto uma luta pelo
significado das coisas, como uma luta ao nvel das relaes de poder.
No processo de formao cruzam-se relaes entre indivduos e grupos, que ultrapassam a
fronteira das instituies e se defrontam no campo, no somente tcnico mas, em sentido mais
vasto, no cultural. Nesta dinmica cultural se concretizam atitudes criadoras de condies para um
processo de formao de cidados que tm o conhecimento e a coragem para apostar seriamente
na necessidade de conceber o desespero como estado transitrio e de dar corpo esperana33 e de,
na teoria e prtica, transcender o ciclo vicioso da reproduo.
O modo como o poder se manifesta nas escolas e como este poder aliado linguagem
(entendida como instrumento de dominao) contribui para a reproduo, pode ser organizado em
torno de questes sobre: o que conta como saber escolar; como que tal saber seleccionado e
organizado; quais os interesses subjacentes organizao do saber; como transmitido o saber;
como determinado o acesso ao saber; que valores culturais so legitimados e que valores so
desorganizados pelas formas dominantes do saber escolar.34
A oposio entre um modelo de formao dito tradicional e um outro que se reclama de
autonomia pode ser mistificadora. O que importa reter, nos contrastes possveis, a tradicional
hegemonia do modelo transmissivo centrado no formador e no professor isolado. As alternativas a
tal modelo podero acolher e valorizar a formao nos contextos mutveis de trabalho e pautar-se
pela flexibilizao e harmonizao com a aprendizagem informal. Esse um outro modelo no
distancia a formao dos professores das realidades organizacionais em que os indivduos actuam e
reconhece que a aco educativa apenas uma das componentes, um dos possveis momentos de
um processo de formao de adultos, e que, per si, uma aco educativa no automaticamente
formadora. No modelo dito tradicional, a formao concebida num espao isolado dos contextos
em que a aprendizagem se desenvolve. Pressupe que a informao e a formao so dois
momentos cumulativamente justapostos numa linearidade simples.
No primeiro, processa-se a articulao e integrao da teoria e da prtica, na assuno de
que uma reflexo na prtica e sobre a prtica valoriza os saberes de que os professores so
portadores35. A oposio entre teoria e prtica ultrapassada por uma praxeologia que confere
experincia um estatuto de fonte de conhecimento enquanto objecto de reflexo e de produo dos
prprios conhecimentos.
33Aronowitz, S. & Giroux, H. (s/d), op. cit., p. 1634Aronowitz, S. & Giroux, H. (s/d), op. cit., p. 2235Nvoa, A.& Popkewitz, T.(org.)(1992) Reformas Educativas e Formao de Professores, Lisboa, Educa
A formao um meio e no um fim em-si-mesma, no para os professores. Estes so
mediadores de formao em desenvolvimento, que passam da identificao e valorizao do saber
sua partilha, inseridos num sistema social em que detm competncias especficas.
A realidade social vive do que j se conhece das regras, mas tambm da prpria produo
de realidade. Uma das dimenses desse processo o que Stenhouse36 descreve como uma
disposio para examinar a prtica com sentido crtico e sistemtico. Num outro modelo, privilegia-
se o fornecimento de informao terica descontextualizada e prvia e a formao constitui-se em
mais um factor de inibio de autonomia do professor ao configur-lo como executante-consumidor
de formao.
A formao tem em conta a histria e a aco dos professores como factores estruturantes
das aprendizagens, das interpretaes e utilizaes que delas venham a fazer. A formao
transforma-se num processo de conscincia do mundo e de elucidao do significado das relaes
interpessoais, com a instituio e com o saber, e traduz-se na no-dissociao do desenvolvimento
profissional e do desenvolvimento pessoal.
Quando se refere o desenvolvimento pessoal e se apela ao protagonismo do professor
individualmente considerado, no se pretende fazer uma apologia de uma formao
"individualizada" no sentido que lhe confere a teoria neo-clssica do "capital humano", e que se
reflecte numa simples multiplicao da oferta de formao. Tambm no campo da determinao de
necessidades no se prope um diagnstico centrado exclusivamente no individual, mas uma
redefinio da determinao de necessidades no pressuposto de que, no colectivo em formao, as
necessidades individuais e de grupo so, simultaneamente, produto e produtoras de trajectrias de
formao.
Na Escola da Ponte, o projecto de formao foi o ponto de referncia, em torno do qual se
podem regular os conflitos resultantes da existncia de lgicas diferentes37 e onde o grupo-sujeito
reelaborou valores, crenas, opinies... Afirmou-se como micro-cultura local, que definiu
objectivos de formao criticamente adoptados e entendidos como instncias provisrias de recurso
a um saber interior e exterior ao grupo, instncias de produo de saberes que contrariaram, por
vezes, a hegemonia da distribuio de saberes considerados como legtimos. A Ponte constituiu-se
numa comunidade de iguais, prefigurando uma profissionalidade assente na definio do professor
como intelectual reflexivo, crtico e transformador. Ops-se a estratgias autoritrias de formadores
que retomam na formao de adultos as tcnicas pedaggicas que desenvolveram na prtica
anterior de ensino38.36Stenhouse, L.(1981) An Introduction to curriculum research and development, London, Heinman Educational Books.37Correia, J. et al (1990) A aco educativa: Anlise psico-social, Leiria, ESEL/APPORT, p.8938Dominic, P.(1990) L'histoire de vie comme processus de formation, Paris, L'Harmattan, p.11
Perfilho dois lugares-comuns do discurso sobre formao continuada: a formao deve
concorrer para aumento da qualidade do ensino; deve ser estimulada a autonomia do formando e
das escolas. E creio que o objectivo da a formao no adquirir conhecimentos, mas sim
criticamente adquirir a capacidade de adquirir conhecimentos que conduzam a mudanas no modo
de ser e de agir dos professores. Mas o ajustamento a mudanas para as quais o professor contribui
um processo inverso ao da instalao de resistncias quelas que so concebidas e comandadas
por agentes exteriores. Mais do que a identificao da mudana, prevalece a inteno de
compreender o processo de mudana, de modo a rejeitar aquilo que, sob aparncia de novo,
reproduz velhas concepes.
Cada professor estabelece as suas relaes com o saber e com os agentes educativos
(alunos, pais, outros...), em funo de pressupostos e prticas, que constituem um determinado tipo
de racionalidade. Os programas de formao que sobrevalorizam a racionalidade tcnico-
instrumental determinam condies e momentos de assuno pelos professores de recursos tcnicos
pretensamente isentos de ideologia. Esta racionalidade assenta sobre princpios de controlo, certeza
e eficcia. Fundamenta-se, epistemologicamente, na crena de que o conhecimento parte do
concreto e chega ao geral atravs de abstraces e generalizaes. O conhecimento, considerado
como objectivo, colide com o discurso que faz insistente apelo a valores no-operacionalizveis
pelas abordagens positivistas: autonomia, senso crtico, criatividade, participao, democraticidade.
A procura da objectividade engendra um quadro preocupante em que a formao contnua de
professores se assume como um processo marcado pela linearidade, previsibilidade e profunda
estruturao, controlo e determinao. No h lugar para pensar sobre o prprio processo de
pensamento39.
As prticas da Escola da Ponte e de outros grupos de professores podero abrir espaos
alternativos de formao, onde se confrontem diferentes racionalidades e onde, em ltima anlise, a
racionalidade emancipatria produza juzos e interrogaes sobre quem e como formado, pois
ensinar no s transmitir, mas tambm promover o desenvolvimento de aptides e mtodos de
pensar e de agir40.
A formao tanto poder contribuir para novas modalidades de reproduo social e cultural
como para um processo de desenvolvimento de aptides e mtodos de pensar e de agir crticos. A
formao uma rea de conflito entre a reproduo e a mudana, um territrio disputado de
tendncias conflituais: manter e reproduzir os padres das formas tradicionais (...), tendncia de
promover a inovao e a reforma41. A formao um ponto sensvel onde a sade do sistema 39GIROUX, H. (1986). Teoria Crtica e Resistncia em Educao. Rio de Janeiro: Vozes, p.24940Comisso de Reforma do Sistema Educativo (1987) Lisboa, M.E., p.20941Lynch, J. (1973:171) cit in Corteso, L.(1988), op. cit., p.26
educativo pode ser aferida e influenciada42. Neste entrecruzar permanente de intenes e prticas,
a resistncia que molda a adeso a modelos reprodutores, ou acessibiliza a assuno de uma
conscincia crtica, poder ser definida como resultante das interaces de racionalidades vrias,
tantas quantos os actores do processo de formao. Da que se considere como actores, no apenas
os professores em formao, mas tambm outros agentes, entendido o terreno de formao num
sentido mais lato.
Nos ltimos trinta anos de trabalho de formao na Escola da Ponte, verificmos que a
violncia simblica das propostas educativas, os constrangimentos culturais, a reproduo da
estratificao social, somente podero ser problematizadas no confronto com interlocutores
tradicionalmente marginais ao processo de formao de professores: os alunos, a famlia, outros
agentes educativos. So as escolas com projectos participados pela comunidade, os lugares
privilegiados de formao de uma conscincia radical e de aco crtica colectiva43. Nenhuma
mudana pode fazer a economia dos actos individuais implicados num processo de transformao
colectivo.
Creio que a Ponte instituiu um processo social atravs do qual os grupos humanos
transformam o conhecimento que tm da realidade44. A mudana pressentida como transformao
do conhecimento da realidade ultrapassa o domnio da mudana imposta, que mudana
conjuntural ou estrutural, mas dos outros: uma mudana que no afecta, nem pe em causa o
professor, nem o colectivo de formao. Nessa dinmica de formao possvel identificar
diferentes posicionamentos, provavelmente dependentes dos investimentos pessoais, ou da durao
da estadia no grupo de pertena. Vo do simples refinamento do discurso at alterao profunda
das prticas, passando por estdios de angstia45 e frustrao, mas sempre, sempre com o centro do
questionamento no indivduo e deste no grupo de formao.
Os processos de "crescimento" dos professores, isomorficamente concebidos relativamente
aos dos alunos, so favorecidos pela distncia ptima, seja cognitiva, afectiva ou ideolgica46. Esta
distncia passvel de ser franqueada, entre o interior do actor social e a situao de formao
dificilmente se opera numa situao "apresentada", oferecida. O que pressupe de partilha e
participao dos actores sociais em formao evoca situaes por estes construdas, ainda que
acompanhadas e apoiadas por contributos externos, nomeadamente de investigadores e da
tradicional formao de "oferta". Acontece a mudana na formao sempre que um professor se
42Lynch, J. (1973:172) cit in Corteso, L.(1988), op. cit., p.2743Giroux, H. (1986), op. cit., p.14944Vielle, P. (1981) L'impact de la recherche sur le changement en ducation, Perspectives, vol. XI, n 3, p. 33945Corteso, L. & Stoer, S. (1994) A possibilidade de acontecer formao, texto policopiado, p.746Corteso, L. & Stoer, S.(1994), op.cit., p.8
decifra atravs de um dilogo entre o eu que age e o eu que se interroga, reduz o desfasamento
entre a imagem que faz de si prprio e a que os outros tm dele.47
47Postic, M.(1977) Observation et formation des enseignants, Paris, PUF, p.318
Crculo de estudo
Quando a retrica contraditria com as tendncias prticas, h espao para
desenvolver prticas que no so propriamente as oficialmente induzidas mas que podem
ser justificadas e legitimadas pela retrica. H um espao de legitimao para
desenvolver outro tipo de prticas, mesmo que estas, muito provavelmente, no tenham
muito financiamento. H espao para realmente centrar a formao na Escola, o que
significa, ligar a formao vida, e no para aceitar, passivamente, que a formao
aparea quando se est "sentado na escola", ou mais especificamente, "sentado na
turma".48
Em meados da dcada de 1970, coube-me coordenar um programa de formao contnua de
professores. Tratava-se de um programa ministerial com o intuito de "reciclagem dos professores"
(como ento se designava a formao continuada) com vista introduo dos novos programas
para o ensino. Mais por intuio do que por referncia a um quadro terico, fiz do primeiro
momento um encontro de escuta, em grupo. Fora eleito pelos professores da regio onde trabalhava
e era com eles (e por eles) que qualquer projecto poderia ter lugar.
Passei a trabalhar, fora de tempo lectivo, com uma equipa de professores. Procedemos a um
levantamento de recursos. Foi ento que detectmos a existncia de uma Biblioteca Pedaggica
fechada numa arrecadao da Delegao Escolar. Uma biblioteca muito bem apetrechada, mas
jamais utilizada pelos professores.
Retirado o p, inventariados os livros, estes passaram a circular pelas escolas. O ritmo de
requisies intensificou-se. As solicitaes das escolas, tambm, e no tnhamos descanso. Fruto da
dinmica criada, no tardou a ser publicado o primeiro nmero do "Projecto", boletim do Centro de
Documentao Pedaggica. O texto de abertura tinha um ttulo sugestivo: "O que foi e ser a
formao contnua dos professores". Estvamos em 1978!...
Esse inesperado incremento da formao de professores e as mudanas entretanto operadas
nas escolas acompanhavam a dinmica do projecto que, desde 1976, foi desenvolvido na Escola da
Ponte. E, nos ltimos trinta anos, com a configurao do crculo de estudo da Ponte ou outra
qualquer, outros crculos surgiram (alguns de efmera existncia). A eles se deve um conjunto
significativo de mudanas operadas em muitas escolas. Recentemente, a internet alargou o conceito
de crculo, atravs da uma dialogia que se instalou em mltiplas aces de formao de professores.
48Correia, J. (1992), in A Pgina, Outubro 1992, p. 12
Talvez pelo facto de se falar a mesma lngua, no Brasil essas aces conheceram um forte
incremento.
Para que no ocorra o desvirtuamento do crculo (o recurso internet tem riscos...),
justificar-se- a presente obra. Senti a necessidade de caracterizar essa modalidade de formao,
divulgando uma pesquisa efectuada num tempo em que ainda no existia internet ou computadores.
A Sociedade da Informao contribuiu para intensificar a partilha de saberes e para gerar redes de
experincias. Os professores que experimentam a formao em crculo podero ser
intermedirios de uma rede de aprendizagem experiencial na qual a Ponte seja uma (entre muitas)
referncias, no pressuposto da continuidade (j referida), da porta aberta para quem ousou entrar,
para quem apenas assomou ombreira e para aqueles que, futuramente, queiram espreitar
Quando, num encontro de formao, se analisava as caractersticas de um crculo de estudo,
algum comentou: "o que ns j fizemos foi isto mesmo sem lhe darmos este nome". Retive essas
palavras. Releio-as e evoco outros momentos de um j longo percurso de formao, ainda que no
soubssemos" que se fazia formao em crculo.
Foi nesses grupos (a que no dvamos nome...) que aprendemos a recomear, aps cada
contrariedade. Quando, em 1976, cheguei Escola da Ponte, eu j havia vivido muitas situaes de
insucesso pessoal e de frustrao profissional em outras escolas. A solidariedade do crculo de
estudos permitiu transformar a acumulao de insucessos numa gramtica de mudana. A anlise
dos erros cometidos permitiu desenhar uma estratgia, que conduziria criao do ncleo duro
fundador do projecto Fazer a Ponte.
Os crculos sempre foram raros49 e transformaram-se em moda pedaggica. So escassos os
estudos de interpretao e de organizao crtica de experincias deste tipo. Por essa razo
justificar-se- o seu estudo, um estudo de marginalidades, que antecederam a sua assimilao e
descaracterizao.
Durante trinta anos, acompanhei, do interior50, processos de auto-formao e aferi o discurso
de professores pelas suas prticas. Foi-me permitido concluir ser hoje mais difcil que h alguns
anos romper uma reflexo sobre a prtica que est cada vez mais viciada por lugares-comuns e uma
retrica herdada da formao de modelo clssico (transmissivo, acadmico, ou o que lhe quisermos
chamar). Pude aperceber-me, directamente, em situao de sala-de-aula, de que esse discurso no
disfarava o conservadorismo da prtica. Um tipo mais subtil de conservadorismo consistia na
adopo acrtica e da "cristalizao" de inovaes. Alguns sobreviventes de um militantismo tardio
49Em Abril de 1994, das cerca de 500 aces acreditadas pelo Conselho Coordenador de Formao Contnua de Professores, apenas 4 eram crculos de estudos.50Partilhei o quotidiano de 76 escolas, 400 professores e 8000 alunos, directa e quase permanentemente entre 1987 e 1991.
eram incutidos a debitar, em aces patrocinados pelo ministrio, tcnicas de iniciao ao mtodo
global da leitura, ou outros paliativos avulsos jamais integrados na prtica pedaggica dos
professores.
H professores que parecem pouco preocupados com a degradao da formao e das
prticas, enquanto outros se insurgem e constrem verdadeiras culturas de resistncia. A Lei de
Bases estabelece como factor de valorizao profissional uma formao que privilegie uma relao
intensa e permanente com a actividade educativa. Vemos, porm, manterem-se critrios que
alienam esta dialctica. No campo da formao, as iniciativas foram tradicionalmente marcadas por
uma preocupao eminentemente tcnica. Regra geral, visavam rituais de actualizao (designados
por reciclagem) concebidos por organismos centrais ou regionais do Ministrio da Educao, com
recurso frequente a instituies de formao inicial de professores. Os formadores reflectiam uma
profunda ignorncia relativamente a problemas especficos deste ciclo de ensino e escudavam-se,
inevitavelmente, na transmisso de contedos tericos. Esses encontros tiveram, porm, uma
virtude: foram oportunidades no desperdiadas por alguns professores para interpelar a prpria
formao.
Algumas conjunturas foram abertura para a concepo e desenvolvimento de projectos locais.
E, se muitos projectos foram extintos por hierarquias e acomodados, outros houve que resistiram
eroso do tempo. Se j no vamos a tempo de recuperar o investimento (em recursos e
expectativas) desperdiado em trinta anos de projectos falhados, poderemos, contudo, aproveitar
mais uma das aberturas consentidas. Isto : a existncia de um regime jurdico que confere ao
exerccio da formao contnua regras que, podem no ser ideais, mas que existem. E tambm no
quadro do institudo que o exerccio crtico se pode concretizar, no se confinando a espaos
perifricos.
No campo da formao ainda so escassos os estudos que incidam em efectivas
transformaes. O drama dos pesquisadores tem sido esse: a quem vive o quotidiano da escola, a
quem investiga a todo o momento, no sobra tempo para fazer registos. Os que estudam sobre as
prticas observam, captam o suprfluo e generalizam-no. As concluses de muitos estudos
reflectem a origem dos pesquisadores, raramente a realidade dos investigados. Mesmo quando so
professores a conduzir os estudos, so professores com experincia de uma escola tradicional
fazendo, quase sempre, leituras que as suas representaes permitem.
O drama dos que esto "dentro" consiste em tudo parecer j ter sido j dito pelos especialistas
sobre a formao. No irnico contraponto com o real extremamente difcil assumir a humildade
curiosa de quem compreende que na formao contnua no existe ainda um edifcio terico
coerente. Muitas pesquisas limitam-se recolha de experincias isoladas (ainda que significativas)
e, regra geral, sem consequncias prticas, nem continuidade. Assentam em concluses estticas,
produtos de modelos explicativos construdos " priori", ou (o que ainda pior) so meras
teorizaes de teorias que, entropicamente, se legitimam umas s outras. Se a investigao sobre
(ou na) formao no serve a transformao das prticas, para que serve?
Muita formao esgota-se em si mesma, repositrio de receitas avulsas debitadas sobre
auditrios passivos. Os formadores so, em muitos casos, incapazes de concretizar nos seus locais
de trabalho as propostas que recomendam. Fazem apelo terico prtica de "metodologias activas",
mas a metodologia efectivamente utilizada na formao a completa negao da teoria. A
dimenso tcnica no , talvez, a mais importante, mas no poder ser alienada. inconcebvel
pois, que haja quem no tenha alguma vez passado por uma sala-de-aula e oriente formao de
professores em domnios to sensveis como a alfabetizao.
Manifestaes como os crculos de estudos so, regra geral, remetidas para a periferia do
sistema e assumem-se at elas-prprias como marginais. Permanecem ignoradas, sem que delas se
tome conhecimento, ou sobre elas se reflicta. No constituem novidade, pois estiveram presentes na
gnese de grande parte dos movimentos pedaggicos, nas trs ltimas dcadas. No so
dispositivos redentores dos sortilgios dos modelos tradicionais de formao. A auto-formao
ultrapassa os quadros sociais de vida. Ela parece ser a expresso de um processo de antropognese
que extravasa as estratificaes sociais e educativas tradicionais. Compreender e trabalhar este
processo obriga-nos a apoiar a reflexo sobre a auto-formao (...) nas cincias emergentes da
autonomizao.51
A definio do crculo far-se- atravs de um esforo de sublimao de um objecto que ficou
algures, num percurso de reflexo que continua e se aprofunda. Centrar-me-ei em processos de
formao, no reconhecimento de que tais processos no so independentes da histria da vida dos
sujeitos. Esta concepo delimita o objecto de estudo: centrada nas pessoas e no contexto,
desvaloriza a vertente mais tecnicista da formao, isto , os instrumentos e os meios. Deciso que
julgo coerente com o princpio de que no se trata de avaliar a aco de algum sobre um grupo
para o conduzir a uma mudana do seu sistema de representaes. Os professores so aqui
considerados como agentes sociais inseridos em contextos singulares que, embora sejam produtos
destes contextos, so tambm capazes de agir sobre eles e reflectir sobre o seu processo de
transformao52.
Este estudo apenas mais um momento de reflexo crtica, um produto inacabado. Limito-me
a procurar compreender onde a formao acontece e como sobrevive. Provavelmente apologtico e
51Pineau, G. (1988) O mtodo auto-biogrfico e a formao, Ministrio da Sade, Lisboa52Correia, J. (1990) "Inovao, mudana e formao: elementos para uma praxeologia de interveno". Aprender, 12:31
inevitavelmente imperfeito, ser mais um contributo (s pode ser este o termo) para o
conhecimento dos crculos e do indissocivel reconhecimento de zonas obscuras no exerccio da
profisso de professor. Ao longo de mais de trs dcadas, assisti impotente desero de muitos e
bons companheiros que, saturados de precariedades, rumaram dignidade em profisses melhor
remuneradas ou de estatuto social mais elevado que a de professor. Porque resisti ao legtimo
exlio, me obrigo a este contributo.
Mas o que so crculos de estudos? Quais as caractersticas que os distinguem de outras
modalidades de formao? O que determina a opo pela formao em crculo? A hegemonia do
modelo transmissivo poder afectar, futuramente, o desenvolvimento dos crculos entendidos como
culturas locais de formao? Onde tm origem os projectos de crculo? Quem formador no
crculo? Como se formam os professores? Como sobrevivem os crculos? Que vantagens
apresentam? Que potencialidades, adaptaes, limites?...
Contributos para a compreenso do crculo de estudo
O crculo de estudos pode ser definido como um grupo reduzido de pessoas que se rene
para discutir em conjunto, mas sem professor, uma matria, de forma organizada53. O cerne
inovador ser, provavelmente, o no haver "professor" so os participantes que buscam
conhecimentos, recolhem informaes... No exerccio de uma permanente dialogia, penetram o
tema de estudo, relacionando-o com a sua prpria experincia e concretizando-o, ou exercitam em
conjunto as suas aptides, ou realizam um pequeno projecto54.
Nos pases nrdicos, o crculo de estudos foi o mais importante e reconhecido meio de
educao de adultos, no decurso do ltimo sculo. Na Sucia, por exemplo, calcula-se que mais de
metade da populao j tenha frequentado, pelo menos uma vez, um crculo de estudos.
Nos crculos, a formao um acto total, pois os encontros que deles decorrem implicam
uma srie de acontecimentos e de interaces que so vividos (...) na sua totalidade, ou seja, em
contextos onde intervm no apenas a (...) biografia pessoal, mas os sistemas de valores e de
normas, constrangimentos econmicos, jurdicos, polticos e ideolgicos, mais ou menos
interiorizados, aceites ou impostos55. A formao no modelao, formatao traduz-se em
mudanas de comportamento durveis nos indivduos e nos grupos, que so consequncia da
estabilizao de comportamentos pontuais, da aquisio de conhecimentos na aco e na
capitalizao da experincia pessoal e colectiva56.
A designao de crculo foi dada, no caso presente, a grupos de professores que,
anteriormente, promoviam j uma reflexo sobre as prticas. Autnticas "tertlias", cujo espao de
interveno ultrapassou o espao da escola, estes grupos pautavam-se por um certo hedonismo, por
rituais de encontro menos finalistas e pouco determinados pelo dever ou pelo trabalho, pela
apropriao contnua do presente e o investimento na errncia da explorao do mundo. Estava
neles latente um acentuado sentimento de pertena. A racionalidade dominante era a
comunicacional. O encontro no se restringia troca de informao, mas uma reflexo-aco
produtora de conhecimento.
A essncia do homem , na sua realidade, o conjunto de relaes sociais. O crculo
constitui-se em instncia de mediao entre singulares. O professor que participa do contacto com
outros fica outro, transforma transformando-se e disso adquire conscincia. O requisito do respeito
pela autonomia do formando e da autonomia do crculo est intimamente ligado ao princpio da
53Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986) Para uma pedagogia participativa, Braga, Universidade do Minho, p.1354Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.1555Lesne, M. (1984) Lire les pratiques de formation d'adultes, Paris, Edilig, p.8456Pain, A.(1990) ducation Informelle, Paris, L'Harmattan, p.130
responsabilizao a que esta modalidade apela. Dada a sua organizao, o crculo um verdadeiro
ncleo de democracia participativa, onde a responsabilidade a responsabilidade de todos, e onde
cada elemento individualmente responsvel pelos actos do colectivo.
A participao precedida de negociao. A negociao de planos de formao permite
evitar um retorno abstraco e exteriorizao, tanto nas situaes de formao, como no seu
contedo, no seu desenvolvimento e na sua avaliao57. O conhecimento emergente da
comunicao e da partilha comandado por um interesse emancipatrio e, mais que conhecimento-
em-si, como que uma gramtica para uma prxis emancipadora.
Na Sucia, os crculos de estudos surgem em 190258, criados pelo movimento dito da
temperana, mas so rapidamente desenvolvidos por diversos outros movimentos (sindicatos,
partidos polticos, movimentos ditos de "no-conformismo", associaes de consumidores, etc.).
Em 1947, o parlamento decide subvencion-los sistematicamente (em 80% do seu custo)59.
Na tradio escandinava, os crculos so associados ao desenvolvimento de uma cultura
democrtica mais vasta, tocam problemas culturais, sociais, quotidianos e polticos. No ltimo
caso, refira-se o facto de 150.000 pessoas terem discutido em crculo de estudo a poltica nuclear do
Governo. Em 1980, numa populao de pouco mais de oito milhes de habitantes, mais de trs
milhes participavam da formao em crculo60. Em 1986, o quantitativo assinalado corresponde a
um milho e meio de adultos que normalmente renem uma noite por semana, no perodo
compreendido entre Setembro e Abril.61
No incio do sculo XX, a "educao popular" recorria ao crculo de estudo, por lhe
reconhecer potencial de gerar o aparecimento de novos grupos. Nos anos 1920 e 1940, estes grupos
constituem-se em forte movimento, nomeadamente entre as organizaes sindicais e nas
comunidades crists. Nestas, os contedos do plano de estudos excediam o domnio meramente
religioso. A universidade acabou por se interessar por este movimento e organizou ela prpria
crculo de estudo, por pretenderem participar no trabalho de "educao popular". A proliferao dos
crculos conduziu organizao de "federaes de estudo"62, cada qual com uma conotao
ideolgica especfica em consonncia com os diferentes movimentos populares de que emergiam.
Actualmente, os crculos ocupam-se de assuntos to dspares como: a aprendizagem de
lnguas estrangeiras, o artesanato, a histria regional, ou a conservao da natureza. E nunca foi
57Peretti, A. (coord.) (1982) Rapport au ministre de l'ducation National, Paris, La Documentation Franaise, p.8358cf. Embaixada da Sucia (1981) Novas regras para os crculos de estudos suecos.59Shwartz, B.(1988), Education Permanente et formation des adultes, ducation Permanente, n 92, p.1060Shwatz, B. (1988), op.cit., p.1061Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.1362Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.14
necessrio aguardar uma nova formao de professores para se poder estudar uma nova matria,
nem uma deciso das autoridades para se iniciar um crculo de estudo63.
O nmero de participantes varia, normalmente, entre cinco e quinze elementos. A iniciativa
parte de organizaes, de associaes, de sindicatos, de empresas, ou simplesmente de grupos de
amigos. Em cada crculo existe um "lder", ou "monitor", a quem esto cometidas funes de
organizao. As federaes de educao e as organizaes centrais providenciaram a formao
destes monitores, sob a forma de crculo, ou de curso. O lder de crculo no remunerado.
O plano de estudos pode ser elaborado pelo crculo, ou obtido numa associao de crculos
de estudo, mediante as intenes expressas pelo grupo. Se o crculo se encontra inscrito numa
qualquer associao, pode ser certificada a formao que realize.
Nos pases nrdicos, os crculos so considerados como verdadeiras escolas de democracia
participada, onde a autoridade exercida sempre consentida e nunca imposta. Mas a tradio de
formao em crculo escassa nos pases de lngua portuguesa. Em meados da dcada de 1980, os
crculos tinham-se multiplicado na regio onde a Escola da Ponte est sediada, porque professores
de outras escolas tinham identificado vantagens na formao realizada no primeiro crculo,
constitudo em finais da dcada de 1970, e os excelentes resultados obtidos pelo projecto Fazer a
Ponte.
Os participantes na formao diziam que poderiam design-los desse modo, por "se
assemelhar ao que se vinha fazendo, h muitos anos, sem se saber que era crculo..." Ainda hoje,
os crculos so realidades moventes, fugidias a classificaes e at, por vezes, contraditrias com o
recorte dos crculos escandinavos. Porm, coincide com a tradio nrdica nos trs objectivos
concretizados nesta modalidade de formao64: que os participantes adquiram conhecimentos e
aptides relevantes, que a sua auto-confiana se fortalea e que se desenvolvam do ponto de vista
social e democrtico. Tambm na organizao se verifica uma analogia: a existncia de um
crculo-me65, no qual os animadores dos vrios crculos convergem para um trabalho comum de
planificao, troca de materiais e de conhecimento. Apesar deste princpio de coordenao entre os
animadores, pertence a cada crculo a discusso e a modificao do plano de estudos, de modo
autnomo.
Exemplo de sntese de reflexo em crculo66:
63Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.1564Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.2165Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.2566 Todas as citaes que no contenham indicao de autor so da autoria de professores que, no crculo de estudo da Escola da Ponte e em outros crculos, desenvolveram formao ligada a projectos de mudana nas suas escolas. As citaes foram extradas de actas e de outros documentos produzidos nos crculos. O documento mais antigo data de Setembro de 1976; o mais recente de Junho de 1993.
O Crculo de Estudo aproxima-se da ideia de projecto colectivo. Est implcito o
princpio do paralelismo entre desenvolvimento pessoal e profissional, a harmonizao
entre o individual e o colectivo. Basta a afinidade com um problema comum a outros
professores: as dificuldades sentidas na concretizao de um projecto, a prtica de uma
"nova avaliao etc. Basta disponibilidade, cooperao, vontade de ajudar e abertura
para ser ajudado. Basta poder recorrer, se necessrio, a algum que saiba integrar-se no
grupo e apontar pistas de soluo, algum que apoie professores na sntese entre teoria e
prtica, que viabilize mudanas na prtica pedaggica. O objectivo o bem-estar no
grupo, a melhoria das condies de trabalho do professor, que o mesmo dizer dos
alunos que ajudamos a crescer e a formar-se."
A experincia pioneira da formao protagonizada pela Escola da Ponte assumia que para
criar um tipo de relao social entre indivduos em p de igualdade e no uma situao hierrquica,
a organizao deve ser tal que permita uma relao directa entre todos os participantes, que,
exprimindo-se e agindo diversamente, constituem uma comunidade de adultos em auto-formao,
que surge por princpios democrticos e no-autoritrios.
O quadro seguinte apresenta uma sntese dos contrastes entre o conceito de crculo e a
formao de modelo escolar67:
Em vez de:
- Professor (formador externo)
- Aluno
- Lio
- Ensino
- Livros didcticos
- Currculos
- Perodo
Utiliza-se:
- Coordenador de crculo (monitor interno)
- Participante
- Reunio (encontro)
- Estudo
- Material de estudo (Centro de Recursos e Ncleo documental)
- Planos de Estudo
- poca de estudo
Os grupos humanos transformam-se em inter-relao68 com os contextos fsicos e culturais,
nos quais e com os quais se relacionam. O crculo ser, nesta assero, o que a escola para um
projecto poltico pedaggico: uma organizao com uma cultura prpria. O percurso pessoal e
colectivo de formao pressupe dinmicas de reconstruo da cultura pessoal, profissional e 67Vaalgarda, H. & Norbeck, J. (1986), op.cit., p.2468Bronfenbrenner, V. (1987) La ecologia del desarollo humano, Buenos Aires, Pards
organizacional, alteraes significativas nos sistemas de valores. Esta transformao dificilmente se
concretiza confinada aos limites dos contedos e tempo de um curso. Envolvidos num processo
contnuo e significativo, os professores podero aceder compreenso do tipo de racionalidade que
molda as suas pressuposies e compreender de que modo essa racionalidade mediadora da
cultura dominante69.
Passar da formao individual formao em equipa um processo cultural de difcil
concretizao, que fomenta dilemas perante os quais os professores acabam, inexoravelmente, por
tomar posio. So imensos os riscos neste processo, em que mecanismos formais de controlo
individual e preocupaes relacionadas com a regulao do mercado de formao conflituam com a
cultura de formao em crculo. A modernidade confirmou o triunfo da razo sobre a tradio e do
universal sobre o particular mas, no auge do conflito de valores que herdmos, sobrevivem culturas
intersticiais de curto prazo, movimentos precrios, mas vitais para que a cincia compendiada ceda
algum lugar a uma criatividade prospectiva.
Como condies potenciadoras de novas culturas, Maisonneuve refere as interaces dos
processos sociais e psicolgicos, ao nvel das condutas concretas, e as interaces das pessoas e
grupos, no mbito da vida quotidiana70. No cruzamento destas interaces, emergem crculos de
cultura71, onde a cultura como sal de formao ser a aquisio sistemtica da experincia
humana (...) uma incorporao crtica e criadora e no uma justaposio de informes ou prescries
doadas72.
Dizia Paulo Freire que temos que assumir o projecto do nosso sonho para obstar aos
efeitos de uma modernidade que nos projectou para uma tica individualista, uma macro-tica que
nos impede de pedir, ou sequer pensar, responsabilidades por acontecimentos globais73. Para a
elaborao cultural desse "projecto do nosso sonho" justificar-se- a construo de uma sntese
comparativa entre valores e modos de pensamento que atravessam o contexto de elaborao. Trs
valores fundamentais norteiam a elaborao cultural nos crculos: o mutualismo (cooperao,
solidariedade e interajuda, que so obstculos autonomia isolacionista e competitiva), autonomia
crtica e transformadora (criatividade, senso crtico e responsabilidade, que conferem ao indivduo
a possibilidade de existir com os outros como pessoa livre e consciente) e democraticidade
(pluralismo, participao social e assuno de cidadania, que definem o homem como interveniente
e confirmam a transformao da substncia e das estruturas da comunicao).
69Giroux, H. (1986) Teoria Crtica e Resistncia, Petrlopis, Ed. Vozes.70Maisonneuve (1974), cit in Delome, C. (1985) De la animacin pedaggica a la investigacin-accion, Madrid, Marcea, p.4271Freire, P. (1971) Educao como prtica de liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, p.10372Freire, P. (1971), op.cit., p.10973Santos, B. (1988) O Social e o poltico na transio ps-moderna, Comunicao e Linguagem, 6/7, p.35
No crculo, a reflexividade concretiza-se em ciclos recursivos, que se desdobram em dois
momentos: o momento do fazer, onde o saber se investe nas actividades, e o momento do saber,
onde este, que j conhecido na prtica, se reelabora a um nvel superior de formalizao. A
reflexividade no pode, porm, ser reduzida a esta alternncia. No crculo, ela um movimento
protocolar entre formador interno e formador externo, no qual este toma, fundamentalmente, o
desempenho de uma funo de consultadoria, a que o crculo se abre por reconhecer indispensvel
a reflexividade externa.
No existe um conhecimento profissional para cada caso-problema, que teria uma nica
soluo correcta. O profissional competente actua reflectindo na aco, criando uma nova
realidade, experimentando, corrigindo e inventando atravs do dilogo que estabelece com essa
mesma realidade. Por isso, o conhecimento que o professor deve adquirir vai mais longe do que as
regras, factos, procedimentos e teorias estabelecidas pela investigao cientfica74. Como
profissionais, os professores no s dispem de um corpo sistemtico de conhecimentos bsicos,
mas tambm de uma cultura comum: sem sair do processo de produo real (como contraponto a
uma alternncia de situaes de formao/situaes de trabalho de eficcia discutvel) e com o
auxlio de dispositivos pensados, preparados e organizados, a pessoa em formao pode apropriar-
se com fora e pertinncia dos saberes e dos saberes-fazeres necessrios compreenso, conduta e
acompanhamento dos processos profissionais ligados sua funo75. A formao, como processo
complexo de apropriao crtica e criativa de elementos cientficos, culturais e tcnicos, implica a
descentrao do sujeito-agente de formao e a compreenso das inter-subjectividades,
solidariedades e autonomias vividas na resoluo de problemas comuns. No alfobre desta alquimia
colectiva se engendram, estudam e solucionam problemas sociais e comunitrios.
Na definio de profissionalidade docente, raramente se reconhece o professor como
detentor de controlo sobre a profisso e as condies do seu exerccio. O controlo das condies de
trabalho esto cometidas administrao escolar. No surpreende que os professores tenham
desenvolvido atitudes defensivas, que os remeteram para nveis inferiores de autonomia e
reconhecimento social. O professor circunscreve o exerccio da autonomia ao espao da sala de
aula. A considerao da escola como lugar privilegiado de formao fica comprometida. O estudo
dos dispositivos de formao na Ponte e a identificao das suas caractersticas podero ser teis
para o retomar da ideia da escola como espao e tempo de uma formao com intensa relao com
a prtica profissional. Um crculo de estudo como um ecossistema de relaes e mudanas
74Gomez, A. (1992) O pensamento prtico do professor in Nvoa, A.(coord.) Os professores e a sua formao, Lisboa, D. Quixote/IIE, p.11075Lesne, M. & Minvielle, Y. (1988) Socialisation et formation d'adultes., ducation Permanente, 92, p.36
simblicas gerador de significado para a mudana pessoal e das prticas, em grupo. A formao
acontece numa sobreposio de interrogaes crticas inseridas em contexto de trabalho.
Toda a relao formativa uma relao entre culturas no desiderato da elaborao de uma
cultura especfica. A organizao da cultura crculo subordinou-se a critrios como a afinidade de
interesses, a afectividade, a proximidade das escolas. O smbolo a causa e o efeito de toda a vida
societal. Portanto, no somente com base na conscincia ou na razo que o grupo se constitui [e]
so os smbolos que tm origem no grupo [que] permitem a continuidade.76
Ao procurar definir os contornos-caractersticas da formao em crculo, no estou a procurar
mais que compreender, para revelar, este ou aquele aspecto at agora mais ignorado ou esquecido
no campo da formao contnua. Busco a compreenso do crculo atravs da reunio de
significados que mais no so que uma simbologia reconhecida nos traos de um discurso
individual no colectivo. Quando se penetra no grupo atravs do sujeito este projecta
necessariamente no discurso o seu grupo interior e revela assim as relaes especiais que ele
mantm habitualmente com os outros.
E no s... Torna-se tarefa difcil isolar o que especfico do que local. Todavia julgo ser
possvel identificar quatro orientaes das culturas locais de formao a que, por necessidade de
classificao, se convencionou designar de crculo de estudo:
uma concertao prvia entre formando e formador, compreendendo uma negociao
sobre o projecto e os meios que pode desembocar num contrato pedaggico;
uma desestruturao do grupo que permite elaborar itinerrios diferenciados, de respeitar
os ritmos de aprendizagem, de multiplicar as abordagens pedaggicas e de repensar as
articulaes grupo-indivduo;
uma nova articulao objecto ensinado-aprendiz-formador, na qual o formando se
transforma em actor [e autor] da sua formao e o formador em "acompanhante";
um novo modo de avaliao (...) de certificao, de regulao e de orientao.77
Um outro conjunto de caractersticas poderia servir para a identificao de um crculo:
a sua autonomia em relao a outras formas (...) de formao profissional;
o seu objectivo primeiro de socializao permanente dos indivduos e dos grupos;
o seu carcter de proximidade;76Maffesoli, M. (1985) A sombra de Dionsio, Rio de Janeiro, Ed. Graal Ltda., pg. 1977Aballea, F. & Froissart, C. (1988) Individualisation et formation de masse, cit. in Litard, B. (1991), L'individualisation des parcours d'evolution, Revue Franaise de Pdagogie, 97, p. 87
a descentralizao da sua gesto e da sua organizao, mais prxima dos lugares de
emergncia das necessidades que so tambm os lugares de vida das populaes;
a sua pilotagem estratgica (...) pela sua coordenao, a sinergia das intervenes dos
diferentes agentes educativos;
o seu modo de co-produo da formao pelos seus consumidores (...);
a sua abordagem global (...) da pessoa em formao;
a transferibilidade das aquisies.78
Os crculos so dispositivos de formao de iniciativa local, que acessibilizam uma
socializao concebida como funo de aprendizagem e de apropriao das regras de mudana
social, num processo de integrao social que contrape aos constrangimentos a assuno de
cidadania. Uma cidadania para a qual o mesmo crculo assegura meios concretos de exerccio. A
prtica da formao em crculo permite que os seus membros se munam de meios de compreenso
das situaes, dos meios de anlise, de sntese, de julgamento, de crtica, para lhes permitir
posicionar-se e elaborar estratgias de aco.79
O monitor (ou animador) escolhido pelo crculo o interlocutor perante qualquer elemento
exterior. Funciona quase como um atenuador de interferncias. Habitualmente, fcil a tarefa da
sua identificao. um professor reconhecido pela firmeza de atitudes, pela aceitao generalizada
por todos ou pela maioria dos professores do crculo, emerge ao fim de algum tempo de maturao
do grupo e num momento em que ao grupo se exige representatividade perante terceiros. Porm,
dever-se- sublinhar o carcter precrio desta representatividade. O animador um agregador de
vontades e no um dirigente. E pode ser substitudo em qualquer momento. As suas funes so de
coordenao e ligao com o exterior. Uma coordenao permanente e provisoriamente outorgada.
Decorre dos circunstancialismos a que o crculo, como grupo social no social, no se pode eximir.
O crculo preserva assim uma identidade colectiva que se projecta na identidade pessoal do
animador escolhido.
Assiste-se mutao da identidade social em identidade pessoal enquanto esta se socializa.
O grupo um lugar de confrontos, mas estes subtraem-se observao de estranhos pela projeco
de si na imagem de um representante isolado. o grupo que age como regulador e facilitador do
choque das subjectividades no seu interior. o animador que age na traduo para o exterior das
vontades conflituadas como objectivos imediatos do grupo perante terceiros.
78Bogard, G. (1991) Pour une ducation socialisatrice des adultes, Strasbourg, Conselho da Europa, p. 9-1079Bogard, G. (1991), op.cit., p.22
A formao em colectivo no subjuga projectos individuais. Esta tenso confere ao crculo
uma qualidade especfica. O tringulo pedaggico formando-objecto de formao-formador no
abolido, mas reelaborado. A linearidade e unicidade da transmisso magistral de saberes
moderada por uma apropriao dos saberes, acompanhada e partilhada com os pares do crculo.
Combina-se teoria e prtica, trabalho colectivo e trabalho individual, segundo diferentes modos de
acesso, de indivduo para indivduo, atravs do colectivo. A preservao do individual no grupo
sujeita-o a desestruturaes sucessivas, que podem afectar a sua coeso at ao ponto de
desapario. Os crculos actuam pela cissiparidade. Se o conflito de intencionalidades se apresenta
indissolvel, o crculo subdivide-se, multiplica-se para procurar novas identidades, embora
mantenha as caractersticas do crculo original.
O professor situa-se nas descontinuidades e previne-se para a eminncia de reformulaes
do seu projecto pessoal; firma acordos to precrios como coerentes com o crculo, cujos contornos
de identidade social mais se aproximam da sua identidade pessoal. O projecto pessoal sempre um
compromisso prudente entre as possibilidades objectivas de um grupo aberto, mas apesar de tudo,
constrangedor com determinada etapa de progresso pessoal na formao. O ineditismo deste tipo
de tenso entre projectos permite afirmar a intimidade, sem que se processe a ausncia do outro,
numa intimidade feita da presena de intimidades prximas.
Provavelmente caracterstica da transformao paradigmtica, que tambm atravessa o
campo da formao, agudiza-se a interpelao sria das escolas tericas tradicionais. So inmeros
os sinais e imensa a criatividade marginalizada. Talvez seja tempo (ou demasiado tarde?) para nos
determos no banal quotidiano dos professores para refazermos as certezas. Mas isso exige um
estudo profundo, uma aprendizagem do desaprender80. O crculo propicia ao adulto em formao o
trabalhar a seu modo, o promover rupturas ponderadas no continuum de experincias individuais e
colectivas, o confronto reflectido com o real, na resoluo de problemas prximos, que no passa
pela aplicao linear de modelos tericos institudos, nem pelo decalque de experincias no-
reflectidas.
O crculo declina monoplios da formao, ao inscrever as suas prticas no seio de uma
sociedade educativa mais vasta, reivindicando o princpio que afirma que a formao acontece nas
circunstncias mais comezinhas e informais. Sem descurar a formao instituda, situa-a na sua
incapacidade de responder s questes sobre o singular na linguagem do singular81. Ao
conhecimento construdo, que privilegia a dimenso cognitiva, junta-se o conhecimento
80Caeiro, A. (1979) Poemas, Lisboa, Ed. tica, p.4881Delbos, cit in Courtois, B. (1989) L'aprentissage exprientel, d. Permanente, n 100/101, p.10
relativizador, que todo e qualquer fenmeno imprime na experincia individual e colectiva
(poltica, profissional, social, cultural...).
O crculo vai "mais longe" porque, ao promover a sntese de conhecimentos, adita-lhe a
possibilidade efectiva de agir. O professor em crculo parte
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