Entre o elogio e a crítica: Os "intérpretes do Brasil" na ótica dos historiadores
(1920-1970)
Por DIEGO JOSÉ FERNANDES FREIRE1
Debates da história da historiografia
Atualmente, entre os historiadores, a discussão sobre a história da história
está em alta. Nas últimas décadas, em várias comunidades historiográficas,
podemos perceber um progressivo crescimento dos trabalhos em torno de uma
história da historiografia. Fala-se entre os praticantes de Clio que nos dias correntes
vivemos uma “era epistemológica”, isto é, um momento no qual a reflexão teórica
sobre o fazer do historiador ganhou um impulso e uma consistência nunca vistos
antes entre os historiadores. Como resultado desse crescimento, observamos uma
grande quantidade de trabalhos, fóruns, eventos, prêmios, linhas de pesquisa e
revistas acadêmicas destinadas a uma investigação sobre a escrita da história,
expressão que passou a fazer parte do vocabulário dos historiadores para indicar o
processo de produção do conhecimento histórico2.
No Brasil, podemos constar essa “era epistemológica” atentando-se para a
existência de revistas como História da Historiografia, Teoria da história e
Expedições: teoria da história e historiografia, periódicos que formam
um espaço de discussão e reflexão historiográfica em torno de questões teóricas fundamentais, como a historiográfica em seus diversos contextos históricos, as apropriações e defasagens conceituais, a circulação de ideias, obras e pensadores no campo historiográfico, os usos e abusos do conhecimento histórico e a historiografia do ensino de História. 3
1 Licenciado e mestre em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Tutor da Secretaria de Educação à distancia da UFRN e professor do Estado do Rio Grande do Norte e da Universidade Potiguar (UNP). 2 BARROS, José D”Assunção. A escrita da história a partir de seis aforismos. In:______. A expansão da história. Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes, 2013.
3 Retirado de: http://www.prp.ueg.br/revista/index.php/revista_geth , acesso em 27 de Junho de 2014.
À essas revistas, todas elas surgidas entre 2008-2010, somam-se também as linhas
de alguns Programas de Pós Graduação, as quais fomentam e viabilizam pesquisas
em torno da elaboração do conhecimento histórico nas diferentes temporalidades.
Toda essa discussão culminou na criação, em 25 de Agosto de 2009, de um órgão
institucional: a Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia.
No entanto, na nossa terra tropical, a reflexão sobre a historia começou no
final da primeira metade do século XX, quando alguns homens de letras dedicaram-
se a analisar algumas obras históricas. Podemos apontar que, até a década de
1970, existiram pequenas e pontuais iniciativas no que toca a uma reflexão sobre a
história produzida aqui no Brasil. Nesse sentido, devemos sublinhar a figura de José
Honório Rodrigues, erudito que, formado em Direito mas apaixonado pela história,
dedicou inúmeros livros e artigos para discutir textos históricos. Observando títulos
como Teoria da história do Brasil (1949), A pesquisa histórica no
Brasil (1952), História e historiadores do Brasil (1965), História e
historiografia (1970), História da história do Brasil (1979) somos tentados a dizer que
José Honório Rodrigues foi o primeiro autor nacional a produzir sistematicamente
análises teóricas e historiográficas sobre a nossa produção histórica. A partir dos
anos 1970, porém, ele ganhou a companhia – concorrência? – de outros
intelectuais.
Seguindo a vereda desbravada por José Honório Rodrigues, vários
indivíduos formados pela Universidade passaram a realizar investigações
historiográficas. Seis anos após o Golpe civil-militar de 1964, historiadores de ofício,
e não mais diletantes eruditos, resolveram tomar a história como objeto de estudo.
Colocando uma lupa na musa Clio em sua face tupiniquim, inúmeros autores, vários
textos, diferente iniciativas foram elaboradas a partir de 1970. Em 1971, realizou-se
o I seminário de Estudos Brasileiros, o qual contou com uma mesa redonda acerca
dos “estudos históricos no Brasil”; em 1973, Pedro Alcântara Figueira defende na
USP a primeira tese de historiografia, intitulada “a Historiografia Brasileira (1900-
1930)”; no ano seguinte, a Universidade de Brasília organizou um evento com a
temática “a historiografia brasileira nos últimos 40 anos”. Esses três fatos indiciam
que o interesse pela história, tal qual produzida no Brasil, estava em efervescência.
Historiadores como Maria de Lourdes Jannoti, Carlos Guilherme Mota, José
Roberto de Amaral Lapa, Maria Odilia, Francisco Iglésias e muitos outros, formaram,
talvez pela primeira vez em nossa história, um grande ambiente de discussão em
que a historiografia nacional era a grande preocupação. Nesse sentindo, a
discussão sobre os “intérpretes do Brasil”, como eram chamados os autores que
produziram as renomadas obras de história entre os anos de 1920-1940, ocupou
considerável espaço nas reflexões desenvolvidas. Trabalhando a partir deste
debate, o presente texto pretender investigar a maneira como a produção histórica
das décadas iniciais do século XX foi vista pelos historiadores brasileiros de fins
deste século. Almeja-se discutir a avaliação que os historiadores da década de
1970, preocupados com uma história da historiografia brasileira, realizaram daqueles
letrados que foram colocados por alguns como os responsáveis pela modernização
dos estudos históricos no Brasil4.
Dessa forma, questionamos: qual foi o lugar que os “intérpretes do Brasil”
ocuparam na história da historiografia brasileira traçada e retraçada pelo
pensamento historiográfico dos anos 1970? Como os historiadores dessa época
viram a produção histórica de homens de letras como Gilberto Freyre, Sergio
Buarque de Holanda e Caio Prado Junior, por exemplo? Para problematizarmos a
leitura dos historiadores de fins do século XX acerca da produção histórica do início
deste século recortaremos um livro e um autor representativo dos anos 1970. Trata-
se da obra A história em questão: historiografia brasileira contemporânea, escrita por
José Roberto do Amaral Lapa (1926-2000), historiador que na época era professor
na Unicamp.
Publicada em 1976 pela Editora Vozes, o livro que tomaremos como base
reúne alguns textos de José Roberto do Amaral Lapa, os quais fornecem um grande
painel da situação dos estudos históricos no Brasil daquela época. Tratam-se de
artigos um tanto quanto independentes que foram usados pelo seu autor para
subsidiar um curso de historiografia brasileira, no âmbito da pós-graduação em
Ciências Políticas da Unicamp. O interesse do autor de A história em questão:
historiografia brasileira contemporânea é fornecer uma radiografia precisa da história
4 Expressão usado por ARRUDA, José Jobson; TENGARRINHA, José Manuel. Historiografia luso-
brasileira contemporânea. Bauru, São Paulo: EDUSC, 1999, P. 40-71.
no Brasil, diagnosticando sua historicidade, suas agruras, suas tendências. José
Roberto do Amaral Lapa, além de historiador, também era formado em Ciências
Jurídicas e Sociais (1959), pela PUC-Campinas. Sua formação em história,
concluída nesta mesma universidade em 1952, ocorreu no momento em que o
ensino superior de história estava conjunto com a Geografia.
Entre o elogio e a crítica: revisitando os “intérpretes do Brasil”
Antes de adentrarmos na avaliação que José Roberto do Amaral Lapa
empreendeu dos “intérpretes do Brasil”, cumpre apontarmos alguns esclarecimentos
quanto a esta expressão, que hoje em dia já não é tão usada como era antes. No
livro história em questão: historiografia brasileira contemporânea, ela indica uma
geração de letrados que dedicaram boa parte de suas obras ao estudo da realidade
nacional. Trata-se dos autores que, nascidos ou em fins do século XIX ou anos
iniciais do século XX, preocuparam-se com a temática da brasilidade, isto é, com a
cultura brasileira, investigada em seus principais traços, valores e personagens. Na
década de 1970, “intérpretes do Brasil”, ou os seus congêneres (“redescobridores ou
descobridores do Brasil”), era uma expressão muita usada para caracterizar os
homens de letras do prelúdio do século passado5.
O historiador de Campinas resumiu os “intérpretes do Brasil” em quatro
eruditos, encarados como os mais representativos e mais importantes para a
historiografia brasileira: Sergio Buarque de Holanda (1902-1982), Caio Prado Júnior
(1907-1990), José Honório Rodrigues (1913-1987) e Nelson Werneck Sodré (1911-
1999). Estes quatro nomes sintetizariam o que de melhor a geração de 1920-1940
legou para o pensamento histórico no Brasil:
A obra desses quatro autores, tomada em conjunto, permite-nos ir da história econômica (Caio Prado Júnior) à história social (Nelson Werneck Sodré); da história política (José Honório Rodrigues) à história cultural (Sergio Buarque), sem que esta enumeração signifique uma classificação, pois considerando de per si a sua obra, em nenhum dos casos, limitou-se aos campos históricos enunciados.
5 MOTA, Carlos Guilherme. A ideologia da cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1977.
Mas o que nos interessou foi que através dos quatros se tornou possível situar tendências predominantes.
Interessante pontuarmos que o autor das palavras acima, para tratar da produção
histórica das décadas iniciais da era passada, parece se distanciar um pouco da
memória, hoje cristalizada, da “trindade clássica da historiografia brasileira”: Sergio
Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre. O autor da citação acima
não só rejeitou este último nome como acrescentou mais dois letrados, José Honório
Rodrigues e Nelson Werneck Sodré.
A atitude de José Roberto do Amaral Lapa parece indiciar que, nos idos de
1970, a construção discursiva que colocou Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado
Júnior e Gilberto Freyre no panteão historiográfico brasileiro não atuava tão forte
como nos dias de hoje. Embora tal construção discursiva remeta ao ano de 1967 6,
data do famoso prefácio de Antonio Candido ao livro Raízes do Brasil, o historiador
paulista conseguiu escapar dessa memória e pôde escolher seus próprios autores
como os mais importantes dos “redescobridores do Brasil”. Talvez, seja o caso
mesmo de afirmar que, no ano em que escreveu, a “trindade clássica da
historiografia brasileira” ainda não estava ainda de toda consolidada. O fato é que
José Roberto do Amaral Lapa relativizou essa tríade.
Chama-nos atenção também a exclusão de Gilberto Freyre, historiador-
sociólogo que nas últimas décadas vem sendo redescoberto, apontado até como um
precursor dos Annales aqui no Brasil. Talvez influenciado pela sociologia paulista, o
historiador campineiro aparenta ter optado por Nelson Werneck Sodré, em
detrimento do autor de Casa Grande & Senzala. Precisamos lembrar que nos anos
1970 Gilberto Freyre foi muito mal visto por certos professores universitários, em
razão de suas ligações com o regime ditatorial brasileiro7. Embora em alguns
momentos do seu texto José Roberto do Amaral Lapa cite a relevância da obra
freyreana para a historiografia nacional, fica claro que não se trata de uma obra que
6 FRANZINI, Fábio. A década de 1930, entre a memória e a história da historiografia brasileira. In: BASTOS, Lúcia; GUIMARÃES, Lucia; GONÇALVES, Marcia; GONTIJO, Rebeca (orgs.). Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2011.
7 FALCÃO, Joaquim. A luta pelo trono: Gilberto Freyre versus a USP. In: FALCÃO, Joaquim; ARAUJO, Rosa Maria Barboza de. O imperador das ideias: Gilberto Freyre em questão. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2001.
tenha o mesmo valor dos textos daqueles quatro autores apontados como os mais
importantes do início do século passado. Em suma, o autor de A história em questão
endossou a rejeição comum à época, ainda que sem muito ímpeto, dos textos
freyreanos.
Ao avaliar a produção histórica do início do século passado, José Roberto do
Amaral Lapa realizava um gesto muito comum à sua época, pelo menos entre os
historiadores nacionais. No ano de 1973, as páginas dos jornais paulistas Opinião e
O Estado de São Paulo trouxeram ao público um confronto intelectual direto entre
alguns homens de letras e historiadores profissionais. De um lado, Nelson Werneck
Sodré e Sergio Buarque de Holanda, e de outro, Adalberto Marson, Maria Stella
Bresciani e Carlos Guilherme Mota, todos estes professores universitários. A
questão toda do debate entre essas duas distintas gerações de historiadores parecia
residir na discussão sobre o tipo de história a se produzir no Brasil do regime militar.
Passados três anos dessa querela e certamente como tributária dela, surgia A
história em questão: historiografia brasileira contemporânea, livro que também
estabeleceu um diálogo crítico com os “intérpretes do Brasil”.
Segundo José Roberto do Amaral Lapa, a historiografia brasileira recebeu
enorme contribuição dos “redescobridores do Brasil”. Embora as produções
históricas desse grupo tenham sido feitas por indivíduos não formados pela
universidade, elas foram responsáveis por um considerável avanço nos estudos
históricos. O autor em foco aponta que até os anos 1920 predominava uma história
factual, na qual o enfoque reduzia-se quase sempre aos aspectos administrativos e
ao elogio biográfico de figuras políticas. A história produzida, quase sempre centrada
na época colonial, possuía ares de mera reportagem, de simples descrição de dados
e características. Trava-se de uma produção événementielle, levada a cabo por
eruditos autodidatas em história, quase sempre ligados ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB). Exceção solitária a esse tipo de história, José Roberto
do Amaral Lapa cita – sem se aprofundar - Capistrano de Abreu.
Na história da historiografia brasileira existiria, assim, uma continuidade entre
as produções históricas do século XIX e suas similares da era seguinte. A quebra
desta continuidade histórica viria justamente com os “intérpretes do Brasil”, vários
homens de letras que produziram suas obras a partir dos anos 1920. De acordo com
José Roberto do Amaral Lapa,
O meramente factual cede lugar ao interpretativo, procurando enxergar além do fato as suas próprias implicações, do que resultou a descrição de um novo universo até então ignorado pela historiografia tradicional. Na verdade, esses historiadores nada mais fizeram do que, retomando os fatos históricos conhecidos sob nova ótica, mostrar a importância de desapercebidos detalhes ou então chegar à ambição de redesenhar o conjunto 8.
O autor da citação acima parece nos dizer que os “novos historiadores” erigiram
uma nova abordagem da história, contrapondo-se àquela visada factualista, dita
como tradicional. A ruptura com os estudos históricos anteriores consistiria
justamente nesse novo olhar lançado sobre a realidade pretérita, o qual privilegiava
a análise global em detrimento da descrição detalhista. O enfoque, portanto, passou
a ser outro, levando a algumas mudanças significativas.
O predomínio de uma abordagem holística e analítica relaciona-se a um
ponto positivo que o historiador-professor da Unicamp identifica. Trata-se do diálogo
com as modernas ciências sociais. Ao contrário dos diletantes do IHGB, os homens
de letras que se seguiram a Capistrano de Abreu procuraram incorporar em seus
textos as ideias de alguns cientistas sociais. Suas interpretações da história do
Brasil ampararam-se em conceitos, como os de Raça, Cultura, Estado, Consciência,
Povo, etc. Para José Roberto do Amaral Lapa, os “intérpretes do Brasil” trouxeram
teorizações à historiografia brasileira, o que levou a promoção de uma nova
abordagem para as realidades passadas. Com eles, os estudos históricos ganharam
o suporte de teorias, tornando-se mais complexos e menos descritivos.
Outro elogio que podemos identificar nas páginas de A história em questão à
geração de homens de letras dos anos 1920-1940 diz respeito a “valorização de
novas fontes, algumas até então insuspeitadas” 9. Além de lançar à história do Brasil
uma nova abordagem apoiada em referenciais teóricos precisos, os “intérpretes do
Brasil” alargaram as fontes históricas, até então restritas ao universo administrativo,
capaz de legitimar e conferir certa fidedignidade aos documentos. Nos livros de
8 LAPA, José Roberto do Amaral. A história em questão: historiografia brasileira contemporânea.
Petrópolis: Vozes, 1976, p. 74. 9 LAPA, José Roberto do Amaral. Op., Cit.,1976, p. 73.
história das décadas iniciais do século XX, percebe-se o uso documental dos relatos
de viagens, dos escritos culinários, dos sermões dos jesuítas, dos diários dos
senhores de engenho, da imprensa europeia, dos quadros pictóricos de artistas
europeus, da planta de uma cidade, dos processos inquisitoriais, em suma, de todo
e qualquer texto que possa fornecer dados sobre uma dada realidade pretérita. A
hierarquia das fontes, o predomínio dos escritos oficiais, caiu por terra no Brasil
desde as décadas iniciais do século passado, tal parece ser o raciocínio de nosso
historiador analista da historiografia nacional.
Para José Roberto do Amaral Lapa, a expansão documental na historiografia
brasileira tem a sua origem a partir da terceira década do século passado. Graças a
esse alargamento das fontes históricas, pôde ocorrer no mesmo período “a
promoção do estudo de novos temas, revelando uma impressionante massa de
informações” 10. Trabalhando com novas fontes e munidos com um novo olhar, os
letrados da época de Getúlio Vargas puderam promover o aparecimento de novas
temáticas para a história do Brasil. O comércio interno e externo da colônia
portuguesa, a ocupação de sua área central, a vinda da família real, o seu processo
de urbanização, as minorias étnicas, as classes esclarecidas, entre outros, foram
alguns assuntos erigidos ao status de tema histórico. A um alargamento documental
da história, corresponderia também um alargamento temático, de modo que, a partir
dos anos 1930, a historiografia no Brasil passou a conhecer outros tipos de história,
para além de uma história política-administrativa.
Por fim, um último elogio que José Roberto do Amaral Lapa fez aos
“intérpretes do Brasil” consiste na “integração da História do Brasil na História geral,
entrelaçando os fatos, buscando sincronismos possíveis” 11. A história escrita pelos
membros do IHGB, eivados de um patriotismo exacerbado, fruto da conjuntura
política da época, possuía claros limites geográficos, nunca indo além de Portugal. A
história do Brasil não se inseria no quadro mundial, não dialogava com a Inglaterra,
com a África, com América espanhola e/ou inglesa, com os países baixos, em suma,
estudava-se sempre do ponto de vista nacional. A partir dos “intérpretes do Brasil”,
surgem sincronismos possíveis: a colônia lusitana passou a ser vista no quadro do
10 Idem. 11 LAPA, José Roberto do Amaral. Op., Cit.,1976, p. 74.
comércio internacional, comparações com a colônia espanhola e a colônia inglesa
surgiram, a influencia inglesa e africana ganharam uma nova força. A perspectiva do
nacional que enquadrava rigidamente a história em fronteiras, foi praticamente
abandonada. A preocupação com a brasilidade, típicas das produções históricas dos
anos 1930-1940, não engessou os objetos de estudos em fronteiras nacionais
rígidas.
Esses pontos positivos da geração de 1920-1940 assentou-lhes um lugar de
destaque na história da historiografia brasileira. José Roberto do Amaral Lapa não
nega o fato de que a modernização dos estudos históricos no Brasil parece ter
começado efetivamente naquela década. E mais: a atualidade dos “intérpretes do
Brasil”, para os historiadores do Brasil dos anos 1970, é também expressada, já que
seus livros ainda expressam ensinamentos e trazem informações pertinentes. Suas
obras não estariam, ainda, superadas, assim como ainda haveria algumas coisas
para se aprender com elas. O historiador hoje, assegura-nos o autor, não pode
ignorar tais produções históricas. Contudo, tal postura favorável aos “clássicos” não
impede o historiador paulista de apontar críticas aos “intérpretes do Brasil”.
O autor de A história em questão posicionou-se criticamente diante do
elemento que estaria no cerne das obras dos letrados do início do século passado, a
saber: o estudo das origens, das raízes, dos traços e valores que essencializariam o
Brasil, que fazia o país ser o que era. Eis o brado do historiador campineiro:
Mais do que a busca de nossas raízes – cujo conhecimento também não podemos dispensar – investiguemos as molas que retardam ou aceleram o ritmo de nossa marcha. Ao nível ideológico repensemos o quadro civilizatório que se implantou e evolui no espaço brasileiro. O historiador não pode deixar de viver os problemas do seu presente, tentando sentir os problemas do passado, para evitar os problemas do futuro. Para tanto necessita ser um eterno desconfiado da verdade oficial e consagrada 12.
Há nas palavras acima um programa de pesquisa, uma agenda de questões que
procura se diferenciar dos projetos encabeçados por eruditos como Sergio Buarque
de Holanda e Caio Prado. O foco proposto descola-se do estudo da cultura brasileira
em seus elementos integrantes para a investigação dos processos históricos que
12 LAPA, José Roberto de Amaral. Op., Cit., 1976, p. 30.
emperram ou precipitam o desenvolvimento do país. A opção está voltada para
mostrar não um Brasil cristalizado, fixo, essencializado, mas sim um Brasil em
movimento, em sua marcha, em seu devir ao longo do tempo.
Ao criticar os “redescobridores do Brasil” pela sua excessiva valorização das
origens, José Roberto do Amaral Lapa assinala que esse tipo de estudo acabava por
tirar o historiador do presente, aprisionando-o no passado. Com isso, o papel social
da história no presente acabaria por solapar-se. O historiador precisa engajar-se no
presente, estudando temas e questões relevantes à essa temporalidade.
Interessante pontuarmos que tal postura levou o historiador campineiro a criticar a
coleção onde alguns “intérpretes do Brasil” inscreveram suas obras 13. A seguir
temos sua opinião acerca da Brasiliana:
É supostamente a nossa coleção mais conservadora, isto é, entre outros elementos que a caracterizam, verificamos que nela são abrigados temas que dificilmente se voltaram, em algum momento sequer, para uma crítica do sistema de poder então vigente. É claro que figuram na coleção estudos críticos, apenas eles são colocados posteriormente aos eventos e conjunturas objetos da crítica 14.
Assim, o empreendimento que materializou os esforços da geração do início do
século XX, também fez, em grande medida, do passado um templo para se refugiar,
esquecendo-se dos temas palpitantes e vibrantes do presente. Na coleção ora em
(des) apreço, predominaria os estudos históricos da época Imperial e Colonial,
quase inexistindo da época republicana. Desprezar o momento corrente para alojar-
se no passado seria uma atitude conservadora que o historiador de fins do século
XX deveria rejeitar, procurando sempre, na medida do possível, fazer a crítica dos
sistemas de poder vigentes15.
Ainda sobre a Brasiliana, temos que nela “predominam métodos e temas
históricos tradicionais, prevalecendo os perfis biográficos, as memórias e os estudos
factuais e descritivos” 16. Essa opinião ofensiva acerca da coleção idealizada por
13 Gilberto Freyre (Sobrados e Mucambos, Num. 64), Nelson Werneck Sodré (Panorama do segundo Império, Num. 170), José Honório Rodrigues (Civilização holandesa no Brasil, num: 180) e Sergio Buarque de Holanda (Visões do paraíso, Num. 333) 14 LAPA, José Roberto do Amaral. Op., Cit., 1976, p. 50. 15 Nessa crítica de José Roberto do Amaral Lapa há claramente a influencia do contexto político brasileiro da época, marcado pela Ditadura Militar.
16 LAPA, José Roberto do Amaral. Op., Cit., 1976, p. 51-52.
Octales Marcondes Ferreira também foi dirigida a uma outra coleção, também
representativa dos “intérpretes do Brasil”, a Documentos Brasileiros, também
acusada de ter uma “linha tradicional”. Julgamos um tanto quanto contraditória essa
acusação acerca dessas duas coleções. Ora, se tradicional, descritivo e factualista
eram os estudos históricos anteriores aos “redescobridores do Brasil”, como pode a
coleção onde estes escreveram o ser também? Lembremos que José Roberto do
Amaral Lapa apontou que a geração dos anos 1920-1940 realizou uma ruptura com
a tradição histórica anterior. Porém, o autor parece não se aperceber dessa
aparente contradição.
Outra crítica que o historiador paulista empreendeu contra os
“redescobridores do Brasil” diz respeito ao alto grau de especulação presente nos
seus estudos. Se a abordagem holística trouxe ganhos para os estudos históricos,
também trouxe seus perigos, e um desses seria justamente os sobrevoos
demasiados especulativos:
Uma das limitações que possivelmente pode apresentar a contribuição dessa geração à historiografia brasileira é a de que as suas lucubrações ficaram, muitas vezes, num plano de especulação teórica. [...] Queremos nos referir, neste passo, às abstrações teóricas que não implicam em mensuração ou identificação precisa das estruturas e dos seus mecanismos ou na análise dos processos de grande, média e pequena duração. É a marca de certo ensaísmo. 17
Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, José Honório Rodrigues e Nelson
Werneck Sodré representariam uma tendência de estudos históricos que
apresentavam uma considerável carga de “história filosófica”, isto é, investigações
históricas que procuravam um sentido na realidade pretérita investigada, que inquiria
pelas leis gerais que orquestravam a história brasileira, que buscava tipos ideias e
modelos ao longo do tempo. Produzida por eruditos, por homens que possuíam um
vasto conhecimento livresco, a história produzida pelos “interpretes do Brasil”
lembrava, pelas suas especulações e teleolgismos, as filosofias da história dos
séculos XVIII e XIX.
Tal fragilidade dos letrados do início da era passada estaria ligado a um outro
ponto fraco de seus estudos, que José Roberto do Amaral Lapa apontou de uma
17 LAPA, José Roberto do Amaral Lapa. Op., Cit., 1976, p. 72-73.
maneira mais intensa. Trata-se da ausência de pesquisa documental. Segundo este
historiador, o excessivo caráter abstrato de obras como Raízes do Brasil, Formação
do Brasil contemporâneo, Civilização holandesa no Brasil e Panorama do segundo
império explicam-se, em grande medida, devido a pouca pesquisa de arquivo de
seus autores. Sobre esta fase da operação historiográfica nos “intérpretes do Brasil”,
temos o seguinte:
Em todos eles a pesquisa arquival, quando atuou, foi em termos de complemento e não de fundamento para a elaboração de sua obra. Esta resultou mais de um extraordinário esforço intelectivo, respaldado pela erudição bibliográfica, que eventualmente recorreu ao documento, como fonte primária, para confirmar uma hipótese ou provar uma asseveração. Numa escala descendente pode-se tentar dizer nesse caso que de J. Honório Rodrigues, passando por Sergio B. de Holanda, Caio Prado Jr. até chegar em Nelson W. Sodré, o uso do documento primário é relativamente pequeno até chegar a ser ausente, ou pelo menos não vir citado, entre as fontes consultadas. 18
Conforme pudemos perceber, o autor da citação acima reclama do pouco uso
documental dos “redescobridores do Brasil”. Muitas das afirmações que estes
fizeram em seus vários livros carecem de empiricidade, ficando como que soltas no
ar, descarnadas, como diria Lucien Febvre, em suma, sem o respaldo das fontes
históricas. O que fundamenta as obras históricas do grupo em apreço não seria
tanto a pesquisa empírica como seria a especulação histórica, respaldada em um
vasto conhecimento livresco.
Por conta dessa fragilidade documental, José Roberto do Amaral Lapa
entende que boa parte dos livros históricos da geração dos anos 1920-1940 deve
estar “em permanente discussão” 19. Embora sua pertinência histórica exceda várias
décadas, mantendo-se atual na época do historiador paulista, é preciso levar em
conta as limitações desses homens de letras do início da era passada: “nem sempre
descendo à realidade documental dos arquivos, construíram um edifício
historiográfico que agora vem apresentando goteiras e trincas, cujo conserto está
justamente na investigação documental mais atenta e exaustiva e no tratamento
moderno das fontes” 20. Essas palavras estabelecem não só uma crítica às gerações
18 LAPA, José Roberto do Amaral Lapa. Op., Cit., 1976, p.61. Grifos do autor. 19 LAPA, José Roberto do Amaral Lapa. Op., Cit., 1976, p. 74. 20 LAPA, José Roberto do Amaral Lapa. Op., Cit., 1976, p.72.
passadas, como retratam também a vontade do seu autor de edificar um
conhecimento histórico mais rigoroso e científico, baseado no tratamento
documental.
O artífice de A história em questão concluiu seu balanço crítico dos
“intérpretes do Brasil” afirmando que, a despeito das limitações apontadas, nada
“impede que se valorize devidamente a contribuição dessa geração de historiadores
à história do Brasil. Contribuição inteligente, renovadora e que ao nosso ver
identifica um momento significativo de nossa historiografia” 21. As grandes obras de
história, aquelas que marcaram várias gerações, fazendo-se presente e atual por um
considerável tempo, foram, assim, não tanto obras de história como para a história.
Entre elogios e críticas, na história de nossa historiografia, José Roberto do Amaral
Lapa reservou um lugar importante para os homens de letras do início do século XX,
eruditos que tiveram o vigor de se aventurarem na escrita de Clio.
Várias vozes em um homem
A leitura de José Roberto do Amaral Lapa acerca da produção histórica do
início da era passada expressa não só o anseio de um autor, de um indivíduo
isolado, mas veicula, em grande medida, o desejo de todo um grupo social existente
nos anos de 1970. Os elogios e as crítica destinadas ao grupo encabeçado por
Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior, Nelson Werneck Sodré e José
Honório Rodrigues trazem em si a vontade de edificar uma história-disciplina mais
rigorosa, produzida segundo modelos e padrões científicos. Não exageraríamos se
disséssemos que o balanço crítico aqui mostrado representa o ponto de vista de boa
parte dos historiadores universitários da década de 1970, professores-
pesquisadores que, instalados em universidades como USP e UNICAMP, ansiavam
por um conhecimento histórico mais rigoroso.
No momento de produção e elaboração do livro A história em questão, a
história vivia um momento de expansão na sociedade brasileira, dado pelo
surgimento dos programas de pós-graduação em história (PPGH). Em 1971,
surgiam dois PPGHs, cada um nas duas principais cidades do país: São Paulo
21 LAPA, José Roberto do Amaral Lapa. Op., Cit., 1976, p. 73.
(USP) e Rio de Janeiro (UFF). Em 1972, criou-se um PPGH no Rio Grande do Sul
(PUC). Após dois anos, aparece o PPGH da UFPE, em Recife. Em 1976, emergiu
mais um PPGH em São Paulo, dessa vez na cidade de Campinas (UNICAMP).
Todos esses centros ambicionavam a institucionalização da pesquisa
histórica, fomentando um conhecimento histórico bem fundamentado, radicalmente
distinto das produções anteriores. A prática histórica baseada na análise de fontes,
no uso de metodologia e teorias, bem como no diálogo entre os pares, era o que
estava no horizonte dos PPGHs recém-criados. Queria-se, em suma, uma nova
história, uma nova maneira de se praticar e produzir história, a qual se objetaria as
produções ensaístas de letrados como Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado
Júnior.
José Roberto do Amaral Lapa, em seu livro que tomamos por base, sintetizou
essas ambições. Lembremos que seu balanço crítico da história da historiografia
brasileira originou-se de um curso ministrado na pós graduação da UNICAMP. Este
fato é bastante significativo, na medida em que nos faz atentar para um público que
estava em formação, que estava em vias de produzir conhecimento histórico.
Discorrendo sobre os “intérpretes do Brasil”, José Roberto do Amaral Lapa orientava
seus espectadores na prática da produção do conhecimento histórico, apontava os
méritos e os deméritos daqueles autores que foram erigidos à condição de clássicos
da historiografia.
Tal fato produzia um aprendizado histórico para àqueles que participavam do
curso e que estavam realizando pesquisas históricas acadêmicas. Assim, com seu
balanço crítico dos “intérpretes do Brasil”, José Roberto do Amaral Lapa instruía seu
público, jovens historiadores aprendizes no ofício de Clio. A necessidade de levar
para outros públicos esse aprendizado, no momento em que os cursos de
graduação e pós-graduação em História se expandiam, certamente contribuiu para a
feitura do livro A história em questão.
Outro fato que atesta a ligação de José Roberto do Amaral Lapa com todo um
grupo de historiadores alojados nas universidades está em uma pequena nota do
seu livro. Segue-a: “este estudo foi enriquecido com as informações, sugestões e
críticas que nos foram feitas por Carlos Guilherme Mota, Francisco Iglésias, Eddy
Stols, Fernando Novais, Caio Prado Júnior e José Honório Rodrigues” 22. Exceção
desses dois últimos, todos os nomes com quem o autor de A história em questão
dialogou eram historiadores universitários, formados nos cursos de graduação,
pesquisadores que estavam na dianteira do processo de renovação da história. Para
a feitura do seu livro, como é comum na universidade, José Roberto do Amaral Lapa
contou com a colaboração dos seus pares, unindo em sua voz várias outras vozes,
fruto de um diálogo para consolidar novas práticas historiográficas. José Roberto do
Amaral Lapa, um homem, várias vozes.
Referências Bibliográficas:
ARRUDA, José Jobson; TENGARRINHA, José Manuel. Historiografia luso-brasileira
contemporânea. Bauru, São Paulo: EDUSC, 1999.
BARROS, José D”Assunção. A escrita da história a partir de seis aforismos.
In:______. A expansão da história. Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes, 2013.
FALCÃO, Joaquim; ARAUJO, Rosa Maria Barboza de. O imperador das ideias: Gilberto Freyre em questão. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.
FRANZINI, Fábio. A década de 1930, entre a memória e a história da historiografia
brasileira. In: BASTOS, Lúcia; GUIMARÃES, Lucia; GONÇALVES, Marcia;
GONTIJO, Rebeca (orgs.). Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: FGV,
2011.
GUIMARÃES, L.M.P. Sobre a história da historiografia brasileira como campo de
estudos e reflexões. In: BASTOS, Lúcia; GUIMARÃES, Lucia; GONÇALVES, Marcia;
GONTIJO, Rebeca (orgs.). Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: FGV,
2011.
22 LAPA, José Roberto do Amaral. Op., Cit., 1976, p. 78. O fato de nessa lista figurar os nomes de
Caio Prado Júnior e José Honório Rodrigues é bastante significativo. José Roberto do Amaral Lapa,
para elaborar seu texto, consultou seus objetos de estudo, mostrando-se aberto ao diálogo e ao
debate. Sua atitude espelha muito as práticas cientificas da universidade.
LAPA, José Roberto do Amaral. A história em questão: historiografia brasileira
contemporânea. Petrópolis: Vozes, 1976.
MORAES, José Geraldo Vinci de & REGO, José Márcio (orgs.). Conversas com
historiadores Brasileiros, São Paulo: Editora 34, 2002.
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1977.
MOTA, Carlos Guilherme. História e contra-história: Perfis e contrapontos. Rio de
Janeiro: Globo, 2010.