Download - Em Defesa Do Arminianismo

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  • Teologia Pr. Silas Daniel

    Em defesa doUma anlise

    sobre a recente ascenso do

    Calvinismo no Brasil e uma

    exposio do que ensina, de fato, o Arminianismo

    Do sculo 16 ao 18, a principal corrente no meio protestante mundial era o que se convencionou chamar de Calvinismo. Foi somente a partir do sculo 19 em diante que o Arminianismo, surgido no incio do sculo 17, passou a prevalecer como a principal corrente no meio protestante. Entretanto, tal predomnio tem sofrido certos retrocessos nos ltimos anos, por pelo menos trs razes.

    Em primeiro lugar, h muitos evanglicos arminianos que sequer conhecem de fato o Arminianismo. A maior demonstrao disso est em grande parte das pregaes que ouvimos hoje em dia. Qualquer anlise sobre o contedo da teologia popular evanglica brasileira revelar,

    com enorme clareza, que muito do que se tem esposado hoje em dia e recebe o nome de Arminianismo se trata, na verdade, de uma distoro do verdadeiro Arminianismo. O que se ouve em muitos plpitos mais Semipelagianismo - e, em casos mais graves, at Pelagianismo - do que realmente Arminianismo.

    Em segundo lugar, tivemos, nas ltimas dcadas, muitos livros e artigos opondo-se ao Calvinismo na imprensa evanglica brasileira. S que muitos deles pecaram por confundir Calvinismo de forma geral com Calvinismo fatalista, tomando seus argumentos facilmente rebatveis por qualquer calvinista bem treinado. Alm disso, a quase totalidade desses textos dedicava-se muito mais a falar contra o Calvinismo do que a explicar o que realmente o Arminianismo.

    Em terceiro lugar, a rejeio cada vez maior no meio evanglico onda triunfalista do neopentecostalismo, o que em si uma atitude muitssimo boa, contribuiu involuntariamente para a ascenso do Calvinismo. Muitos crentes, de "ressaca" com tantos hinos e mensagens centrados no homem, passaram a buscar literaturas e mensagens que exaltassem mais a soberania divina e, infelizmente, acabaram encontrando-as com mais frequncia em sites de contedo calvinista.

    Ou seja, em linhas gerais, uma m compreenso do que o Arminianismo somada a uma averso sadia de

    muitos evanglicos ao triunfalismo neopentecostal tm feito com que muitos se voltem para o Calvinismo. E isso est acontecendo at mesmo nas Assembleias de Deus, a maior denominao evanglica do pas.

    Casos de Calvinismo na histria da Assembleia de Deus brasileira

    Embora a Assembleia de Deus seja uma denominao tradicionalmente arminiana, j podemos ver hoje muitos crentes e obreiros assembleianos declaradamente calvinistas, algo impensvel dcadas atrs. Basta lembrar que, no passado, a Conveno Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB) chegou at a excluir de seu quadro quem aderia ao Calvinismo.

    No ano de 1933, os pastores Manoel Hygino de Souza (1903-1975), Luiz Hygino de Souza (1902-1963) e Ursulino Costa (7-1944) foram excludos por aderirem ao Calvinis- mo. O pastor Manoel Pessoa Leo (1892-1972), que foi membro da Mesa Diretora da CGADB em 1930 e aderira ao Calvinismo em 1932 juntamente com os irmos Hygino, voltou atrs em 1933, chegando a participar da Assembleia Geral da CGADB em 1934. Porm, pouco tempo depois, saiu da AD novamente devido s suas crenas calvinistas, assim como pastor Napoleo Oliveira, outro pioneiro das ADs brasileiras. Naquele perodo, o principal opositor dos pastores calvinistas na AD foi o missionrio

  • Arminianismo

    sueco Nils Kastberg (1896-1978), que recebeu todo apoio dos missionrios e demais pastores da denominao.

    Aps homologada sua excluso da CGADB, o lder desse movimento, o pastor Manoel Hygino, que chegou a compor hinos da Harpa Crist e tambm foi membro da Mesa Diretora da CGADB em 1930, fundou em 13 de dezembro de 1932, em Mossor (RN), a Assembleia de Cristo, hoje denominada Igreja de Cristo no Brasil (no confundir com outra igreja homnima, fundada no Brasil em 1956). Ela veio a ser a primeira igreja pentecostal calvinista do pas, contando hoje com cerca de 20 mil membros e 300 congregaes, a maioria no Nordeste. J pastores Manoel Leo, Ursulino Costa e Napoleo Oliveira voltariam AD em 1939.0 prprio Luiz Hygino retomaria AD em 1952. S Manoel Hygino permaneceu calvinista.

    Alis, aproveito aqui para dissipar um boato surgido recentemente no meio assembleiano: o pastor Adriano Nobre de Almeida (1883-1938), outro pioneiro das ADs no Brasil, excludo tambm pela CGADB em 1933, no o foi por aderir ao Calvinismo. Alguns, sem conhecer os acontecimentos da poca, criaram posteriormente essa lenda baseados nos fatos de que Nobre fora presbiteriano antes de ser assembleiano e fora excludo da CGADB por questes doutrinrias no mesmo perodo em que os irmos Hygino e Ursulino Costa foram exclu-

  • idos da entidade. A verdade, porm, que Nobre fora excludo naquele ano por outra razo: ele comeara a defender, como se fossem manifestaes pentecostais genunas, manifestaes espiritualistas antibblicas e bizarras. O principal opositor dessas heresias foi o missionrio Samuel Nystrm, ento lder da CGADB.

    Mas, voltando ao leito do assunto, o objetivo de lembrar aqui essas ex- cluses por Calvinismo no passado da AD no para pregar que agora devemos comear uma espcie de "caa s bruxas" aos calvinistas dentro da Assembleia de Deus. Nada disso. apenas para lembrar que o Calvinismo nunca fez parte de nossas origens e nem muito menos fez parte do nosso padro doutrinrio, ao ponto de no passado at se excluir por causa disso. E se hoje o Calvinismo cada vez mais comum no meio assembleiano, isso se deve to somente ao fato de que temos ensinado pouco ou quase nada sobre o verdadeiro Arminianismo nos plpitos e seminrios de nossas igrejas.

    Alis, no caso especfico da Assembleia de Deus brasileira, eu acrescentaria, alm daqueles trs fatores apresentados introdutoriamente como causadores da ascenso calvinista no meio evanglico brasileiro, mais um fator: o aumento do interesse dos assembleianos no Brasil - membros ou obreiros - por Teologia. Esse interesse, que muito bom e se tomou crescente nos ltimos anos, fez com que aumentasse tambm o contato dos assembleianos com a literatura e os seminrios de tradio reformada (calvinista). Vide o crescimento nos ltimos anos do faturamento das editoras calvinistas brasileiras que at pouco tempo atrs eram pequenas no mercado evanglico. Isso se deve justamente busca cada vez maior

    desse tipo de literatura por crentes assembleianos, que so o maior filo do mercado evanglico brasileiro. Alis, essas editoras confessam estar impressionadas com a presena cada vez maior de assembleianos em seus eventos, que reuniam antes centenas de pessoas e agora renem milhares.

    Tambm cada vez mais comum pregadores reformados pregarem nas Assembleias de Deus. Todavia, isso no significa que essa interao esteja influenciando apenas o lado de c. O lado de l tambm tem sido afetado, pois cada vez mais comum ouvirmos falar de reformados que, aps esse contato com o meio pentecostal, se "pentecostalizaram", isto , passaram a crer na contemporaneidade dos dons espirituais e a busc-los e receb-los. Nada mais natural, uma vez que toda interao resulta quase que invariavelmente em uma via de mo dupla em termos de influncia.

    Volta s nossas razes

    Diante desse contexto, necessrio enfatizar as nossas razes teolgicas. Este artigo, as, faz parte dessa iniciativa. Seu objetivo no se co ncentrar em apresentar objees ao Calvinismo, porque, como j disse, esse tipo de trabalho j tem sido extremamente comum no meio assembleiano nas ltimas dcadas, seja em forma de artigos, seja em forma de livros - embora, como tambm j disse, nem sempre atingindo o alvo certo, uma vez que o "espantalho" chamado Calvinismo fatalista tem sido mais atingido do que o Calvinismo de forma geral. O objetivo aqui outro: apresentar o que , de fato, o Arminianismo, sem as lentes distorcidas dos calvinistas, que, muitas vezes, taxam os arminianos, de forma geral, equivocadamente, de semipelagianos; e at mesmo, em

    alguns casos, de pelagianos, o que se constitui uma injustia muito maior. O Semipelagianismo e o Pelagianismo so os "espantalhos" que eles fazem de ns. Ademais, procuro apresentar o Arminianismo tambm sem as distores doutrinrias sofridas nos ltimos tempos na teologia popular evanglica, que fazem com que muitos irmos adotem um "Arminianismo" que no , de fato, o Arminianismo, mas apenas uma caricatura dele.

    Explicado isso, vejamos quem foi Arminius e o que realmente ensinou.

    Arminius: uma vida marcada pela providncia divina

    Jakob Hermanszoon nasceu em 10 de outubro de 1559 na cidade de Oudewater, na provncia de Utrecht, na Holanda, filho do casal Hermand Jacobszoon, um ferreiro especialista em fazer armaduras, e sua esposa Engeltje, ambos protestantes. Seu pai morreu de forma trgica no mesmo ano em que Jakob nasceu, deixando sua me viva e com filhos pequenos. Condodo da situao do pequeno Jakob, um padre simptico ao protestantismo, chamado Teodoro Emlio, sustentou a criana e seus estudos. Porm, quando o garoto j estava com 15 anos, seu benfeitor morreu. Deus, contudo, logo colocou outra pessoa na sua vida: um homem chamado Rodolfo Sneillus, que, ao saber da histria de Jakob, resolveu adot-lo e lev-lo para Marburg. Foi assim que, aos 16 anos, Jakob ingressou na Universidade de Leiden.

    Tudo ia bem, at que, no mesmo ano em que Jakob ingressava na universidade, outra tragdia aconteceu. Em 1575, a sua cidade natal - que quando Jakob nascera estava sob o domnio espanhol, mas havia se libertado desse domnio e se tomado protestante - voltaria a ser atacada

    II Obtm

  • pelos espanhis. A invaso espanhola foi sangrenta, passando para a posteridade como "Massacre de Oudewater", no qual a me de Jakob, seus irmos e demais parentes foram mortos. S Jakob sobraria de toda a sua famlia.

    Em Leiden, o jovem protestante adotou a forma latinizada de seu nome: em vez de Jakob Hermanszoon, passou a se chamar Jacobus Arminius. Ele concluiu seus estudos em Leiden em 1582, mesmo ano em que foi a Genebra para estudar com ningum menos do que Teodoro Beza, amigo e sucessor do j falecido Joo Calvino. Ali, porm, no permaneceu muito

    tempo, devido a controvrsias decorrentes do seu uso de tcnicas ramistas, que aprendera em Leiden. Essas tcnicas foram criadas pelo professor calvinista francs Pierre de la Rame (1515-1572) e eram ensinadas em algumas universidades protestantes. Ademais, Arminius no concordava com o supralapsarianismo de Beza, sobre o qual falaremos mais adiante.

    De Genebra, Arminius seguiu para Basileia e de l para Amsterd, onde recebeu o convite para pastorear, sendo ordenado ao pastorado em 1588. Ganhou a fama de bom pastor e ensinador. Em 1590, casou-se com a

    jovem Lijsbet ReaeLEm 1603, aps 15 anos de profcuo ministrio, Arminius encerra suas atividades como pastor para aceitar o cargo de professor na Universidade de Leiden. Foi em Leiden que comearam os primeiros e histricos embates teolgicos da vida de Arminius, e o principal responsvel pelos ataques desferidos contra ele foi o telogo e professor calvinista radical Franciscus Gomarus (1563-1641).

    O supralapsariano Gomaruse o reformador Arminius

    A divergncia entre Gomarus e Arminius se devia essencialmente questo dos Decretos de Deus. E para entendermos bem esse ponto, preciso antes explicar o que so Infra- lapsarianismo e Supralapsarianismo.

    Calvinismo Infralapsariano aquele que afirma que os decretos divinos de eleio e condenao ocorreram aps o Decreto da Queda. J o Supralapsariano assevera que os decretos divinos de eleio e condenao foram determinados por Deus antes mesmo do Decreto da Queda - isto , primeiro Deus planejou que alguns se salvariam e outros se perderiam para depois determinar do que eles seriam salvos (sic). Pois bem, Gomarus era adepto desse Calvinismo radical supralapsariano, e Arminius era absolutamente contra o Supralapsarianismo. A divergncia comeou exatamente a. Entretanto, o debate se intensificaria mais ainda quando Arminius acrescentou que a Confisso Belga (1562) e o Catecismo de Heidelberg (1563), ambos documentos calvinistas, precisavam de reformas. Gomarus cobrou de Arminius que explicasse que tipo de reforma seria essa, mas este, em um primeiro momento, para evitar maiores confrontos, se negou a dizer o que tinha em mente.

    Obm a

  • Aps vrios debates pblicos entre Gomarus e Arminius, e entre aquele e alguns alunos de Arminius, a controvrsia ultrapassou a instituio onde lecionavam e chegou a outras universidades, at que Gomarus e Arminius foram chamados a comparecer Suprema Corte em Haia para apresentarem seus argumentos, que dividiam os acadmicos protestantes no pas. Ao final da exposio de cada um, a Suprema Corte, formada por oito magistrados, declarou que as diferenas no que concernia Doutrina da Predestinao, eram pequenas, e por isso ambos deveriam aprender a conviver com essas diferenas. Arminius acatou a resoluo, mas Gomarus partiu novamente para o ataque.

    Diante dos sucessivos ataques de Gomarus, Arminius pediu ento para que se formasse um assembleia para ouvi-lo, assembleia esta que foi convocada para 30 de outubro de 1608. Nela, Arminius finalmente declarou que alteraes tinha em mente ao falar que a Confisso Belga e o Catecismo de Heidelberg precisavam de reformas. Ele se disse contrrio tanto ao Supralapsarianismo quanto ao Infralapsarianismo, pois acreditava que ambos, no fundo, carregavam o mesmo erro, e exps sua crena na predestinao a partir da prescincia divina, apoiando-se em textos bblicos.

    Gomarus, por sua vez, teve sua permisso para falar assembleia em 12 de dezembro de 1608, ocasio em que preferiu atacar Arminius de forma bastante agressiva. Alm disso, ele no tentou rebater os argumentos de Arminius biblicamente, se contentando apenas em enfatizar que seu colega estava indo contra os estimados Catecismo de Heidelberg e Confisso Belga, ao que Arminius responderia dizendo que nem mesmo esses dois

    importantes textos estavam acima da Bblia e, como produes meramente humanas, estavam sujeitas a revises e aperfeioamentos. O tom agressivo do discurso de Gomarus mais sua aridez em termos de argumentos bblicos contrastaram fortemente com o tom conciliador e recheado de biblicismo de seu oponente, o que fez com que mesmo alguns discordantes de Arminius lhe dessem razo.

    Os dois discutiriam em outra assembleia nos dias 13 e 14 de agosto de 1609, porm, quando j estava marcado outro debate para 19 de agosto, a sade de Arminius se debilitou e ele voltou a Leiden, onde faleceria em 19 de outubro de 1609, vtima de tuberculose. Em seu enterro, foi honrado por seus alunos. O conflito, entretanto, seguiria aps sua morte, simplesmente porque o "Efeito Arminius" rachara ao meio o Calvinismo na Holanda.

    Os remonstrantes e a verdade sobre o Snodo de Dort

    Aps a morte de Arminius, os ataques a seus ensinos continuaram, tendo como alvo agora os seus seguidores. Logo, com o objetivo de se defenderem desses ataques, 46 pastores e telogos arminianos resolveram assinar um documento em que expunham e explicavam seu pensamento. Esses arminianos receberam o nome de "Remonstrantes", expresso derivada do vocbulo holands "remonstrantse", que significa "reclamante" ou "protestante".

    O documento em defesa do Ar- minianismo continha cinco pontos e foi elaborado em janeiro de 1610. A repercusso do seu contedo foi, em um primeiro momento, muito positiva diante das autoridades holandesas, para indignao dos antiarminianos. O governo holands

    entendera que as diferenas doutrinrias entre calvinistas e arminianos no eram irreconciliveis ou intolerveis. Mas, pouco tempo depois, essa viso mudaria devido mudana do contexto poltico nas terras baixas.

    Em primeiro lugar, o principal desafeto do prncipe Maurcio de Nassau (1567-1625), seu ex-amigo e brao direito Johan van Oldenbame- velt (1547-1619), advogado-geral da Holanda, havia aderido ao Arminia- nismo. Oldenbamevelt era apoiado pela maioria das provncias martimas holandesas, onde se concentrava a burguesia do pas, que havia aderido majoritariamente ao Arminianismo. Essa maioria apoiava Oldenbar- nevelt "em sua oposio ao poder crescente de Maurcio de Nassau" (GONZLES, Justo L., Uma Histria do Pensamento Cristo - Da Reforma Protestante ao Sculo 20, vol. 1,2004, So Paulo, Cultura Crist, p. 286). J as demais provncias martimas e as rurais eram fiis a Nassau e apoiavam majoritariamente o Calvinismo.

    Em segundo lugar, a Holanda estava, j havia algum tempo, em guerra com a Espanha, e os calvinistas convenceram Nassau que uma das formas de garantir que os catlicos espanhis no encontrariam guarida em solo holands seria fortalecendo o Calvinismo, pois o Arminianismo supostamente daria brechas para a "doutrina dos jesutas" (missionrios da contrarreforma catlica). No por acaso, o principal xingamento calvi- nista aos arminianos na Holanda era design-los como "jesutas".

    Por essas razes, Nassau convocou o Snodo Nacional de Dordrecht ("Dort", em ingls), mais conhecido como Snodo de Dort (1618-1619), para condenar o Arminianismo. Sim, para condenar, porque o Snodo j nasceu

  • com esse propsito. Seu objetivo no era analisar honestamente a questo, mas elaborar um texto de condenao.

    O referido snodo reuniu calvi- nistas da Holanda e de oito pases da Europa, que condenaram os cinco pontos dos remonstrantes, fazendo surgir, em resposta a estes, os cinco pontos calvinistas, os quais, formando posteriormente um acrstico, receberiam o nome de Tulip ("tulipa", em ingls): Total Deprauity ("Depravao Total"), Unconditioml Election ("Eleio Incondicional"), Limited Atonement ("Expiao Limitada"), Irresistible Grace ("Graa Irresistvel") e P erseve- rance ofthe Saints ("Perseverana dos Santos"). Esses 5 pontos so chamados

    oficialmente de "Cnone de Dort". O detalhe que algumas dessas condenaes distorcem o posicionamento dos remonstrantes, que, por exemplo, nunca negaram a Depravao Total. Isso aconteceu porque os remonstrantes sequer tiveram a oportunidade de ser realmente ouvidos no snodo.

    Para dar uma aparncia de justia, o snodo contou com alguns depoimentos de remonstrantes, mas sob as seguintes regras: em primeiro lugar, os remonstrantes no poderiam participar das reunies e de seus debates - eles ficavam em uma outra sala, esperando serem chamados pelo presidente do snodo para falar apenas o que fosse pedido - ; em segundo lugar, depois

    de darem um depoimento, voltavam imediatamente tal sala, sem terem direito trplica; em terceiro lugar, os remonstrantes no escolheram seus representantes - o snodo que os escolheu em quarto lugar, os remonstrantes s poderiam responder em latim; e, finalmente, em quinto lugar, todos os telogos arminianos tiveram seu direito de voto impedido.

    Como se no bastasse, o presidente sinodal era John Bogerman (1576- 1637), um calvinista que chegara ao encontro com fama de defender a pena de morte aos "hereges arminianos". Alis, alguns calvinistas que estavam no snodo defendiam o mesmo, embora no fossem maioria, enquanto todos os remonstrantes pediam "a tolerncia e a indulgncia em relao s diferenas de opinio sobre assuntos religiosos" (CUNNINGHAM, William, Historical Theology, vol. 2, p. 381). Bogerman tambm fora aquele que, juntamente com Gomarus, em um dos debates deste com Arminius, afirmou: "As Escrituras devem ser interpretadas de acordo com o Catecismo de Heidelberg e a Confisso Belga". Ao que Arminius respondera: "Como algum poderia afirmar mais claramente que eles estavam decididos a canonizar estes dois documentos humanos e institu-los como os dois bezerros idoltricos em D e Berseba?" (HARRISON, A. W., The Beginnings of Arminianism to the Synod ofDort, Imprensa da Universidade de Londres, 1926, Londres, pp. 87 e 88).

    O resultado do Snodo de Dort foram cerca de 200 pastores destitudos de suas funes e exilados, e Olden- bamevelt condenado decapitao como traidor do pas. Uma verdadeira vergonha, da qual se arrependeriam depois os pastores e telogos Daniel Tilenus (1563-1633), Thomas Goad

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  • (1576-1638) e John Hales (1584-1656), que participaram do Snodo de Dort, mas depois se tomaram arminianos. Somente aps a morte de Maurcio de Nassau, quando o prncipe Frederico Henrique de Nassau (1584-1647) assumiu seu lugar, os arminianos foram autorizados a retornar Holanda. Um deles, Simon Episcopius (1583- 1643), aluno de Arminius, substituiria Gomarus na cadeira de professor de Teologia na Universidade de Leiden.

    Infelizmente, aps a condenao sofrida, os seguidores originais de Arminius na Holanda acabaram, com o passar do tempo, se afastando progressivamente do pensamento original do seu mentor e dos primeiros remonstrantes. Arminius, por exemplo, nunca negou a Depravao Total ou a Doutrina do Pecado Original, nem ps primeiros remonstrantes, porm alguns de seus futuros seguidores, como Philipp van Limborch (1633- 1712), acabariam negando ambos. Hugo Grotius (1583-1645), seguidor de Arminius, defenderia mais frente a Teoria Governamental no lugar da Doutrina da Substituio Penal de Cristo, adotada tanto pelo Arminia- nismo Clssico como pelos calvinistas. A TG considera que o sacrifcio de Cristo apenas mostrou ao mundo que as leis divinas foram quebradas e sua penalidade paga, e no que Cristo realmente pagou a penalidade pelos pecados dos indivduos. Ou seja, no final das contas, os remonstrantes de hoje, na Holanda, no tm nada a ver com o Arminianismo Clssico. Eles so, inclusive, liberais em teologia. Porm, infelizmente, muitos calvinistas cometem a desonestidade de atacar os arminianos acusando-os de desvios doutrinrios que, na verdade, foram cometidos por geraes seguintes dos remonstrantes.

    Apesar desses desvios das geraes subsequentes, o Arminianismo original permaneceu vivo e logo se espalhou pela Europa, mas sempre sendo minoritrio. At que, no sculo18, o movimento metodista provocaria uma reviravolta, tomando o Arminianismo a principal corrente protestante do mundo nos sculos seguintes. Mas, antes de vermos como se deu essa extraordinria reviravolta, vejamos o que ensina, de fato, o Arminianismo.

    O que ensina, de fato, o Arminianismo Clssico

    Em linhas gerais, o que ensinava Arminius? O que o Arminianismo?

    Em primeiro lugar, o Arminianismo ensina, luz da Bblia, que Deus determinou salvar algumas pessoas e condenar as demais a partir de Seu pr-conhecimento sobre a f ou a in

    credulidade futuras dessas pessoas. Ou seja, a eleio ou a condenao divinas no so decises arbitrrias de Deus, mas decises tomadas por Deus desde a eternidade com base em Sua prescincia em relao s escolhas futuras das pessoas. Escreveu Arminius: "Deus determinou salvar e condenar certas pessoas em particular. Este decreto tem seu fundamento no pr-conhecimento de Deus, pelo qual Ele conheceu desde toda a eternidade aqueles indivduos que, por meio da Sua graa preventiva, creriam; e por meio de sua graa subsequente, perseverariam; [...] e por esse mesmo pr-conhecimento, Ele semelhantemente conheceu aqueles que no creriam e no perseverariam" (GONZLES, Ibid., p. 285).

    Paulo afirma: "...os que dantes conheceu, tambm os predestinou..."

    Obim

  • (Rm 8.29,30). E Pedro assevera que somos "eleitos, segundo a presdnda de Deus Pai" (IPe 1.2). Portanto, os calvinistas erram ao vincular a prescincia divina causalidade. Para ser mais predso: eles erram ao afirmar que Deus conhece previamente todas as coisas porque predestinou todas as coisas. Ora, o texto bblico claro: a prescincia vem antes da predestinao e da eleio. Estas decorrem daquela, e no o contrrio. Deus conhece previamente tudo porque onisciente, e no porque predeterminou tudo. Deus no precisa predeterminar tudo para saber de tudo. Sim, Ele predetermina muitas coisas, mas no tudo.

    Alm desses textos bblicos que colocam claramente a prescincia antes da predestinao e da eleio, h muitos textos bbKcos que falam da onisdnda divina de forma geral sem sugerir que ela decorre de uma predeterminao de todas as coisas. Salmos 139.24 um deles. Alm disso, a maior prova de que a onisdnda divina no fruto de predeterminao que a Bblia diz que Deus conhece at mesmo o futuro contingente condicional. O futuro contingente condicional no aquilo que acontecer, mas aquilo que aconteceria se as circunstndas e as decises fossem outras. Ou seja, Deus no sabe s o que vai acontecer, mas tambm "o que aconteceria se".

    O exemplo clssico desse tipo de conhecimento divino o da orao de Davi acerca do povo de Queila (ISm 23.1-13). Davi perguntou a Deus se era verdade o que tinha ouvido de que Saul estava descendo ddade de Queila para peg-lo, e Deus respondeu que sim, num caso clssico de conhecimento do futuro causal. Porm, na sequnda, Davi perguntou tambm se o povo de Queila, mesmo depois de tudo que Davi fizera por eles contra

    os filisteus, mesmo depois de receb- -lo to bem com os seus homens, o trairiam mais frente, entregando-o a Saul na primeira oportunidade; e E)eus respondeu que sim, que entregariam, e Davi ento saiu dali, de maneira que o povo de Queila nunca traiu a Davi.

    Esse um caso de conhecimento de um futuro contingente condidonal. Eles no fizeram, mas Deus sabia que "eles fariam se". Ora, se h um futuro contingente condicional, e Deus o conhece, isso significa que Ele no precisa predeterminar todas as coisas para saber todas as coisas. Ademais, leiamos mais uma vez as palavras de Paulo e Pedro: "...os que dantes conheceu, tambm os predestinou..." (Rm 8.29,30); e "eleitos, segundo a prescincia de Deus Pai" (IPe 1.2). Ou seja, a presdnda vem primeiro. A predestinao e a eleio se deram com base na presdnda divina. Logo, voc no salvo porque foi eleito; voc eleito porque foi salvo em Cristo.

    Perceba que a Bblia sempre fala de predestinao vida eterna "em Cristo". A Epstola de Paulo aos Efsios, que a que mais fala em predestinao, mostra exatamente isso. Alis, os termos "em Cristo Jesus", "no Senhor" e "nEle" ocorrem 160 vezes nos escritos de Paulo, sendo que 36 vezes s em Efsios, onde est o recorde. Ou seja, se queremos entender bem Efsios, devemos comear a atentar para a palavra-chave dessa epstola: "em Cristo". Ora, mais de uma vez dito em Efsios 1 que a predestinao ocorre "em Cristo". Ou seja, a predestinao e a eleio no so para estar em Cristo. Elas so para os que esto em Cristo.

    Para aqueles que esto "em Cristo" esto destinadas desde a fundao do mundo todas aquelas bnos listadas em Efsios 1,2 e 3; e a quem no esti

    ver em Cristo, est destinada desde a fundao do mundo a perdio. Se voc estiver nEle, Seu destino o Cu; se no estiver nEle, o Inferno. O critrio estar nEle. Como afirma Paulo, Deus nos elegeu "para que fssemos santos e irrepreensveis diante dEle" (Ef 1.4), mas Cristo s vai "vos apresentar santos, e irrepreensveis, e inculpveis, se, na verdade, permanecerdes fundados e firmes na f e no vos moverdes da esperana do Evangelho" (Cl 1.22,23). Est daro: a eleio condicional. E qual a condio? Estar em Cristo: "... nos elegeu nEle..." (Ef 1.4).

    A Eleio, portanto, um decreto divino anterior salvao e fruto da graa, soberania e misericrdia divinas manifestadas em Cristo, o qual a condio da nossa eleio.

    Em segundo lugar, o Arminianismo ensina, luz da Bblia, a Doutrina da Depravao Total do ser humano, isto , que o ser humano to depravado espiritualmente que precisa da graa de Deus tanto para ter f como para praticar boas obras. Escreve Arminius: "Mas em seu estado cado e pecaminoso, o homem no capaz, de e por si mesmo, pensar, desejar ou fazer aquilo que realmente bom; mas necessrio que ele seja regenerado e renovado em seu intelecto, afeies ou vontade, e em todos os seus poderes, por Deus em Cristo atravs do Esprito Santo, para que ele possa ser capacitado corretamente a entender, avaliar, considerar, desejar e executar o que quer que seja verdadeiramente bom. Quando ele feito participante desta regenerao ou renovao, eu considero que, visto que ele est liberto do pecado, ele capaz de pensar, desejar e fazer aquilo que bom, todavia no sem a ajuda contnua da graa divina" (ARMINIUS, Jakob, A Declamtion of Sentiments, Works, vol. 1, p. 664, tra

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  • duzido em Revista Enfoque Teolgico, vol. 1, n 1,2014, FEICS, p. 105).

    Ou seja, o homem no regenerado escravo do pecado e incapaz de servir a Deus com suas prprias foras (Rm 3.10-12; Ef 2.1-10). O Arminianismo nunca ensinou que, por ainda ter em si resqucios da imagem de Deus, o homem tem a capacidade de, mesmo no estado cado, corresponder com arrependimento e f quando Deus o atrai a si. No, a iniciativa sempre de Deus, j que o homem, em seu estado cado, no pode e no quer tomar iniciativa. luz da Bblia, o Arminianismo sempre defendeu que atravs da graa preveniente que a depravao total, que resulta do pecado original, pode ser suplantada, de maneira que o ser humano poder, ento, corresponder com arrependimento e f quando Deus o atrair a si. O livre-arbtrio decorrente da ao da graa preveniente. Vem de Deus a capacidade de arrepender-se e ter f para ser salvo.

    Em terceiro lugar, luz da Bblia, o Arminianismo ensina que a graa divina pode ser resistida. Como afirma Arminius: "Creio, segundo as Escrituras, que muitas pessoas resistem ao Esprito Santo e rejeitam a graa que lhes oferecida" (ARMINIUS, Ibid., p. 664 in Revista Enfoque Teolgico, Ibid., p. 108). So inmeros os textos bblicos que deixam clara a possibilidade de resistir graa divina (Gn 4.6,7; Dt 30.19; Js 24.15; lRs 18.21; Is 1.19,20; SI 119.30; Mt 23.37; Lc 7.30; At 7.51; 10.43; Jo 1.12; 6.51; 2Co 6.1; Hb 12.5).

    equivocado pensar que Deus no absolutamente soberano se concede ao homem, atravs de Sua graa preveniente, o livre-arbtrio, isto , uma vontade livre para escolher ou no a Salvao. Ora, um deus que no fundo manipula as decises dos

    seres humanos ao invs de, pela Sua graa, conceder-lhes a capacidade de livremente ter f e se arrepender para convid-los a Cristo, no pode ser plenamente justo. verdade que ningum merece a Salvao, mas se Deus resolver salvar uns e condenar outros sem conceder uma possibilidade real de escolha para Suas criaturas, estar manchando Sua justia. O atributo divino da soberania deve estar em perfeita harmonia com o Seu carter, que santo e justo (Is 6.3).

    Os calvinistas gostam de citar, em favor de sua crena em uma graa irresistvel, Joo 6.44, onde Jesus afirma: "Ningum pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, o no trouxer; e eu o ressuscitarei no ltimo dia". S que o termo traduzido aqui como "trouxer" , no grego, elk, que, segundo o tradicional lxico de Strong, tem mais o sentido de "atrair", "induzir algum a vir". Ou seja, Deus atrai; Ele no fora. Ele no violenta a liberdade humana concedida pela Sua graa e soberania. Jesus disse que os que vm a Ele no so forados, mas atrados a Ele (Jo 12.32).

    Em quarto lugar, o Arminianismo entende e sustenta, luz da Bblia, que Cristo morreu por todos (Jo 3.16 e 6.51; 2Co 5.14; Hb 2.9; ljo 2.2), mas Sua obra salvfica s levada a efeito naqueles que se arrependem e crem (Mc 16.15,16; Jo 1.12). Trocando em midos: a Expiao de Cristo suficiente, mas s se toma eficiente na vida daqueles que sinceramente se arrependem de seus pecados e aceitam Cristo como nico e suficiente Senhor e Salvador de suas vidas. Trata-se, portanto, de uma Expiao Universal Qualificada, e no de uma Expiao Limitada.

    Conquanto existam passagens bblicas que afirmam que Cristo morreu pelas ovelhas (Jo 10.11,15), pela Igreja

    (At 20.28 e Ef 5.25) ou por "muitos" (Mc 10.45), a Bblia tambm afirma claramente em muitas outras passagens que a Expiao universal em seu alcance (Jo 1.29; Hb 2.9 e ljo 4.14), o que deixa claro que as passagens que do uma ideia de ela ter sido limitada nada mais so do que referncias eficcia da Expiao. Ou seja, a Expiao de Cristo foi realizada em prol de toda a humanidade, mas s os que a aceitam usufruem de sua eficcia.

    Os que crem em Cristo so obviamente associados obra expiadora (Jo 17.9; G11.4; 3.13; 2Tm 1.9; Tt 2.3; IPe 2.24), mas a Expiao universal (ljo 2.2). E a eficcia no est na salvao de todos, mas na consecuo da Salvao. O fato de a Expiao s ter sido aceita e aplicada em muitos e no em todos no significa que sua eficcia comprometida. O fato de muitos usufrurem dela j demonstra sua eficcia. Ela s no seria eficaz se ningum se salvasse por ela. Se algum foi salvo por ela, esta foi eficiente. No houve "desperdcio" pelo fato de seu alcance ser universal, mas nem todos serem salvos. Alm disso, se crermos que a Expiao de Cristo limitada, o que seria um sacrifcio que proporcionasse uma Expiao Ilimitada? Jesus sofreria um pouco mais na cruz?

    H casos de arminianos que crem em uma Expiao Limitada com base na prescincia divina, o que apresenta certa coernda, porm o Arminianismo Clssico nunca defendeu a Expiao Limitada justamente porque no s h passagens bblicas claras sobre o alcance universal da Expiao como tambm uma Expiao Limitada uma contradio ao ensino bblico de que Deus no faz acepo de pessoas (Dt 10.17 e At 10.34). Deus soberano, mas isso no significa dizer que Ele far alguma coisa que contradiga Seu

    a 0b,m

  • carter santo e amoroso. Lembremos que uma hermenutica prudente interpreta uma passagem ou passagens observando o contexto geral sobre o assunto na Bblia. A Bblia se explica por meio dela mesma. Portanto, se ela afirma que Deus santo, justo e amor, e no faz acepo de pessoas; e que Deus quer que todos se salvem e cheguem ao pleno conhecimento da verdade (lTm 2.3,4); e que a Expiao foi por "todos" (lTm 2.6; Hb 2.9); logo as passagens em que h aluso a "muitos" devem ser interpretadas luz dessas outras. O resultado que as passagens que aludem a "muitos" no se referem ao alcance da Expiao, que universal, mas eficcia dela para os "muitos" que a receberam por f.

    No se pode simplesmente desconsiderar o significado bvio dos textos sem ir alm da credibilidade exegtica. Quando a Bblia diz que "Deus amou o mundo" 0o 3.16) ou

    que Cristo "o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (Jo 1.29) ou que Ele "o Salvador do mundo" (ljo 4.14), significa isso mesmo. Em nenhum texto o vocbulo "mundo" se refere Igreja ou aos eleitos. Escreve o apstolo Joo: "E Ele a propiciao pelos nossos pecados, e no somente pelos nossos, mas tambm pelos de todo o mundo" (ljo 2.2). Ou como disse o telogo H. C. Thiessen: "Conclumos que a Expiao ilimitada no sentido de estar disposio de todos, e limitada no sentido de ser eficaz somente para aqueles que crem. Est disposio de todos, mas eficiente apenas para os eleitos" (Lectures in Sis- tematic Theology, Grand Rapids, 1979).

    Finalmente, em quinto lugar, o Arminianismo entende e sustenta, luz da Bblia, que o ser humano pode cair da graa, mas que tal coisa no to fcil de acontecer como se pensa. O prprio Arminius preferiu

    deixar em aberto essa questo, isso porque h muitos textos bblicos que enfatizam a perseverana dos santos e h muitos outros que sugerem a possibilidade de cair da graa, de eventualmente se perder a salvao (Mt 24.12,13; Lc 9.62 e 17.32; Jo 15.6; Rm 11.17-21; ICo 9.27; G1 5.4; Ap 3.5; lTm 1.19 e 4.1; 2Tm 2.10,12; Hb 3.6,12,14; 2Pe 2.20-22; ICo 15.1-2 e 2Co 11.3-4). Escreveu Arminius: "Nunca ensinei que um verdadeiro crente pode, total ou finalmente, cair da f e perecer. Porm, no vou esconder que h passagens das Escrituras que me parecem ensinar isso" (ARMINIUS, Works, volume 1, p. 131).

    De forma geral, sabemos que muito difcil acontecer de um crente perder a salvao ao final, mas no impossvel, razo pela qual a Bblia insta para que o cristo cultive sempre sua vida espiritual, fortalecendo-se em Deus para perseverar at o fim (Ef 6.10-18). O fato de sabermos que temos segurana em Cristo no deve nos levar a relaxar em nossa vida espiritual, pois tal atitude pode, se no tomarmos cuidado, nos levar, mais frente, a perecermos espiritualmente.

    Nem Pelagianismo, nem Semipelagianismo

    Portanto, o Arminianismo no tem absolutamente nada a ver com Semipelagianismo e muito menos com Pelagianismo, como acusam desonestamente calvinistas mal informados - ou at mal intencionados. O monge Pelgio da Bretanha (350-423), como sabemos, no acreditava nas doutrinas bblicas do Pecado Original, da Depravao Total e da Graa Preveniente, esposadas e defendidas tanto por calvinistas como por arminianianos.

    Mas, a acusao mais comum que tem sido feita contra os arminianos

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  • que eles, no obstante no serem pelagianos, seriam semipelagianos, acusao igualmente falsa. O Se- mipelagianismo surgiu logo aps a condenao do Pelagianismo, quando alguns cristos do quinto sculo, ao lerem os argumentos de Agostinho contra Pelgio, concordaram que Pelgio havia incorrido em grave heresia, mas consideraram tambm que Agostinho havia exagerado um pouco em sua contra-argumentao s heresias pelagianas. Pelo fato de esses cristos discordantes admirarem muito Agostinho, h quem prefira at cham-los de "semiagostinianos", mas prefiro usar aqui a nomenclatura tradicional "semipelagianos", porque como so mais conhecidos.

    Diziam os semipelagianos, encabeados pelo monge e telogo francs Joo Cassiano (360-435), que os erros de Agostinho em seu embate com Pelgio foram dois: primeiro, seu conceito de predestinao, no que estavam certos; e segundo, sua defesa da Depravao Total, no que estavam completamente equivocados. Os semipelagianos no negavam o pecado original - isto , o pecado herdado de Ado e Eva, a natureza pecaminosa etc -, mas diziam que, mesmo aps a Queda, o ser humano ainda tinha em si resqucios da volio pr-Queda, um livre-arbtrio remanescente, que o possibilitava, sem precisar de uma graa preveniente, responder com f e arrependimento pregao do Evangelho. Para eles, Deus poderia at dar incio f em alguns casos, mas em muitos deles, ou na maioria, era o prprio homem que dava o initium fidei, o primeiro passo para a Salvao.

    O Semipelagianismo, aps muitas discusses, foi condenado no ano 529 pelo Conclio de Orange. Entretanto, essa condenao se aplicou apenas

    oposio dos semipelagianos Doutrina Bblica da Depravao Total. O mesmo conclio condenou a crena de que Deus predestinou o mal ou pessoas ao inferno. Ou seja, o que prevaleceu na Igreja, desde o sculo 6 em diante, foi uma Soteriologia que aceitava a Depravao Total, mas negava o conceito de predestinao de Agostinho, o qual seria ressuscitado apenas 1,1 mil anos depois por Lutero.

    Lutero: de "calvinista", no incio, a "arminiano" no final da vida

    Lutero viveu em uma poca em que a Igreja Catlica j tinha se desviado da Soteriologia Bblica, passando a dar nfase mais s boas obras do que graa de Deus, e ainda explorando essa supervalorizao das obras em um contexto idoltrico. Lutero confrontou contundentemente esses erros, porm, em sua primeira fase, o fez indo um pouco para o outro extremo, pregando uma Soteriologia

    que resgatava e valorizava maravilhosamente a graa, mas que, por outro lado, desprezava um pouco o lugar da responsabilidade humana. Isso ocorreu porque sua fonte inicial no eram s as Escrituras, mas Agostinho. Por ser de origem agostiniana, Lutero acabou sendo "calvinista" antes de Calvino. Alis, Calvino desenvolveu sua Soteriologia inspirado, inconfes- sadamente, nos primeiros ensinos de Lutero sobre predestinao.

    Muitos se esquecem, porm, que, aps escrever Da Vontade Cativa (1525), obra endereada a Erasmo de Roterd na qual defende a predestinao agostiniana, Lutero "evitou progressivamente a doutrina especulativa da predestinao, [...] preferindo se focar no ministrio da Palavra e sacramentos, aos quais a graa est ligada, e dando progressiva proeminncia vontade redentiva universal de Deus" (BAVTNCK, Herman, Refoivied Dogmatics, volume 2,2004, Baker Academic,

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  • p. 356). Nessa segunda fase, Lutero se tomaria primeiro um "calvinista com- patibilista" (explicarei o que isso mais frente), combatendo fortemente os "calvinistas fatalistas" antinomianos; depois, escreveria contra a predestinao dupla (a crena de que Deus predestinou tanto os que iro se salvar quanto os que iro se perder); mais frente, deixaria de defender tambm a Expiao Limitada (que defendera em Comentrio aos Romanos, 1516) para defender a Expiao Ilimitada (o que fez em Sermonfor First Sunday in Advent, 1533); e voltaria tambm atrs ao defender a possibilidade do salvo decair da graa nos artigos 42 a 45 dos Artigos de Esmalcade, escritos por ele em 1537 como resumo de toda doutrina luterana. Isto , Lutero terminaria sua vida se opondo a 3 ensinos que se tomariam depois 3 dos 5 pontos da Tulvp calvinista. Ademais, Felipe Melanchton, sucessor de Lutero frente do luteranismo, era, na prtica, um "arminiano" antes de Arminius.

    Portanto, uma anlise honesta da histria nos mostra que o que convencionou-se chamar de "Calvi- nismo" nunca foi a posio dominante na Histria da Igreja desde a sua fundao at hoje. O primeiro a propor as teses que seriam chamadas, em um futuro distante, de "Calvinismo" foi, como vimos, Agostinho, e isso s no quinto sculo. Nenhum outro Pai da Igreja, antes ou depois de Agostinho, esposou o "Calvinismo"; e a Igreja, aps Agostinho, no aderiu a seus posicionamentos "calvinistas". O Conclio de Orange, como vimos, condenou a predestinao divina do mal; e os Conclios de Kiersy (853) e de Valena (855) afirmariam a predestinao pela prescincia divina. Ou seja, nos primeiros 400 anos da Igreja, no houve "calvinistas"; e de Agostinho

    a Lutero, que seria o prximo "calvinista" da histria (e, mesmo assim, temporariamente), passaram-se 1,1 mil anos sem "calvinistas". Toms de Aquino, por exemplo, nunca foi "calvinista", como alguns calvinistas forosamente tentam classific-lo, pois defendeu explicitamente a predestinao com base na prescincia divina. Mesmo no protestantismo, o Calvinismo no teve um reinado absoluto: com 20 anos de Reforma, Lutero e Melanchton abandonam o "Calvinismo"; 65 anos depois, surge, com Arminius, uma oposio mais forte ao Calvinismo; e desde o sculo19, o Arminianismo maioria entre os evanglicos no mundo. Ou seja, o que conhecido como Arminianismo no s um posicionamento que tem mais solidez bblica como tambm aquele que melhor representa o real posicionamento da Igreja sobre a questo soteriolgica ao longo da histria.

    Quanto reviravolta aiminiana no meio protestante nos ltimos sculos, ela se deu principalmente devido pregao e pena de dois grandes homens do sculo 18: John Wesley e seu telogo e amigo John Fletcher.

    Wesley, John Fletcher e a reviravolta arminiana

    Enquanto a Igreja Anglicana (igreja oficial inglesa) se tomaria majoritariamente arminiana, o Calvinismo seria a corrente prevalecente nas primeiras igrejas no-oficiais da Inglaterra. Porm, quando surgiu o movimento metodista, seus dois principais lderes, ambos oriundos da Igreja Anglicana, se dividiam nessa questo: John Wesley (1703-1791) era arminiano e George Whitefield (1714-1770), calvinista. Aps discutirem publicamente sobre o assunto sem chegar a uma soluo, ambos resolveram deixar essa questo

    para trs em prol da unidade e avano da obra de Deus, fazendo o seguinte pacto: Whitefield prometeu nunca mais falar mal de Wesley quanto a essa diferena doutrinria e tambm no aceitar nunca uma crtica de algum a seu amigo por causa dessa diferena, e Wesley se comprometeu a fazer o mesmo; e quem morresse primeiro, o outro pregaria em seu enterro. Ambos seguiram risca o acordo.

    Porm, no ano da morte de Whitefield, a corrente calvinista dentro do metodismo comearia novamente a confrontar seu lder por causa do Arminianismo, de maneira que Wesley, juntamente com o principal telogo do metodismo no sculo 18, John He- tcher, resolveu escrever uma srie de artigos defendendo o Arminianismo luz da Bblia e expondo equvocos do Calvinismo. Esses artigos, principalmente os de Hetcher, impuseram uma derrota pblica e poderosa aos calvinistas na Inglaterra no final do sculo 18, uma vez que estes, poca, no conseguiram responder altura aos argumentos de Wesley e Fletcher.

    Um dos opositores calvinistas, o talentoso compositor Augustus Toplady (1740-1778), sem argumentos diante da devastadora resposta de Wesley a seu resumo da obra do calvinista italiano Jernimo Zanchi (sculo 16), passou a xingar Wesley em profuso. O lder metodista, indignado com tantos ataques baixos, pessoais e sem sentido, escreveu: "Conheo muito bem senhor Augustus Toplady, mas no luto com limpadores de chamins. um combate demasiadamente sujo para que me aproxime dele. No conseguiria nada mais que manchar os dedos. Li suas breves pginas, e no perderei tempo com isso. Vou deixar esse assunto com o Sr. [Walter] Sellon. No poderia cair em mos melhores".

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    Infelizmente, muitos calvinistas usam essas palavras duras de Wesley para dizer que houve "troca mtua de ofensas", o que uma inverso total dos fatos e do senso das propores. Essa foi a nica resposta dura de Wesley a Toplady, e ela s foi emitida depois de o lder dos metodistas receber uma srie de ataques pessoais e absurdos de Toplady. Antes dessa resposta dura e lacnica de Wesley, Toplady xingara o lder do metodismo, por exemplo, de "Papa Joo", "pregador de doutrinas perniciosas", "sofista", "jesuta", "mentiroso", "pelagiano", "blasfemo", "maniqueu", "pago", "velho gamb" e "representante do ignbil papel de vil e aleivoso assassino". Isso s uma pequena amostra. Toplady chegou a escrever nada menos que 30 pginas (sic) com ofensas desse nvel contra Wesley, pelo simples fato deste defender biblicamente o Arminianismo (LELIVRE, Mateo, John Wesley -S m Vida e Obra, Editora Vida, 1997, pp. 251 e 260). Ou seja, no houve uma troca mtua de ofensas. Houve um ofensor e um ofendido.

    Ao final de sua traduo obra de Zanchi, Toplady escrevera o seguinte resumo: "A suma de tudo esta: uma entre 20 pessoas da humanidade (por

    exemplo) eleita; as outras 19 so reprovadas. Os eleitos sero salvos, faam o que fizerem; os reprovados sero condenados, ainda que faam o que puderem para que isso no acontea. Amado leitor, creia nisso ou seja condenado. Em testemunho da verdade, assino-me: A. T. [Augustus Toplady]" (LELIVRE, Ibid., p. 251). Logo, Wesley resolve escrever dois documentos, um deles de oito pginas, onde rebate os equvocos calvinistas apresentados na obra de Zanchi e resume a posio arminiana. Foram esses documentos, que no traziam nenhuma ofensa pessoal e eram escritos em tom solene e didtico, que provocaram a reao desproporcional de Toplady a qual nos referimos. Fao questo de reproduzir abaixo a definio que Wesley faz do Arminianismo em um desses documentos, porque ela deixa claro que a posio de Wesley era absolutamente fiel posio arminiana original, que foi defendida tambm pelos seus colegas John Fletcher e Walter Sellon. Segue trecho do resumo de Wesley, intitulado O que o Arminianismo ?:

    "Os erros dos quais so acusados os usualmente chamados arminianos por seus adversrios so cinco: 1)

    negam o pecado original; 2) negam a justificao pela f; 3) negam a predestinao absoluta; 4) negam que a graa de Deus irresistvel; 5) afirmam que o crente pode cair da graa. Quanto aos dois primeiros pontos, declaro que no so culpados. As imputaes so inteiramente falsas. Nunca houve quem tratasse do pecado original e da justificao pela f em termos mais contundentes, claros e terminantes do que Armnio, nem mesmo o prprio Calvino. Esses dois artigos, portanto, devem ser excludos do debate, porque quanto a eles concordam as duas partes. Quanto a isso, no existe diferena por menor que seja, entre o sr. Wesley e o sr. Whitefield" (LELIVRE, Ibid., p. 250). Ao final do folheto, Wesley destacou ainda "a piedade de Calvino e de Armnio" e implorou a seus discpulos que no usassem "o nome de cristos to eminentes em sentido to injurioso" (LELIVRE, Ibid., pp. 250 e 251). Trata-se de um documento honesto e equilibrado, o que s agrava ainda mais a reao tosca de Toplady

    Aps esse episdio, outro acirraria ainda mais o debate entre calvinistas e arminianos dentro do metodismo: um texto pastoral de Wesley, escrito tambm em 1770, em que ele combate o antinomianismo dentro de algumas comunidades metodistas. Tal texto, mesmo to simples e bblico, acabou sendo, devido ao clima j ruim que havia entre arminianos e calvinistas, mal interpretado pela corrente calvinista. A condessa Lady Huntingdon acusou Wesley, injustamente, de "pelagiano", e classificou seu ensino de "horrvel e abominvel". Wesley respondeu acusao da condessa no seu sermo ministrado no culto fnebre de seu amigo George Whitefield. Nele, Wesley mais uma vez enfatizou os pontos de convergncia entre calvinistas e

  • arminianos, destacando a doutrina da justificao pela f e lamentando a distoro feita pelos seus acusadores, que confundiam - propositadamente ou no - o combate ao antinomianismo com pregao de Salvao pelas obras.

    Em reao ao sermo de Wesley, Lady Huntingdon pediu ao telogo Jos Benson, que dirigia a escola metodista que ela sustentava, que escrevesse uma resposta ao discurso de Wesley, mas ele recusou. Em represlia, Huntingdon ordenou que todos os arminianos sassem da escola. Benson, que dirigia a instituio, foi o primeiro a anunciar sua demisso. Em seguida, Lady Huntingdon enviou a Bristol uma representao at Wesley, formada de oito pessoas, para protestar. Aps receber e ouvir atentamente s reclamaes do grupo, Wesley publicou um documento enfatizando mais uma vez que nunca defendera a justificao pelas obras e que seu documento contra o antinomianismo fora interpretado de forma incorreta por alguns irmos, mas se estes achavam que faltara maior clareza no seu texto, ele afirmava mais uma vez, "solenemente, na presena de Deus", que "a segurana ou confiana" na Salvao est apenas "nos mritos de Cristo", e no nas obras, embora saiba-se que "ningum verdadeiro cristo a no ser que faa boas obras". A comitiva de Lady Huntingdon, representada por Walter Shirley, sobrinho e capelo da condessa, aceitou o texto de Wesley e publicou um documento oficial dizendo-se "plenamente satisfeita com a explanao, com a qual assentia cordialmente e estava de acordo".

    Entretanto, antes mesmo dessa reconciliao acontecer, o extraordinrio John William Hetcher de Madeley (1729-1785) j havia preparado uma srie de artigos, que foram publica

    dos em forma de um opsculo de 98 pginas, defendendo o Arminianismo luz da Bblia e demonstrando que o documento contra o antinomianismo de Wesley no tinha obviamente nada a ver com Salvao pelas obras e era, sim, alm de bblico, muito claro. Os artigos foram endereados a Walter Shirley. Conta Lelivre que, "ao circular, o escrito de Fletcher produziu imediatamente uma grande comoo; o autor, j bastante conhecido como orador sacro, deu-se a conhecer nesse opsculo como escritor de distino" (LELEEVRE, Ibid., pp. 256 e 257). Logo, quando a comitiva da condessa voltou de Bristol, a corrente calvinista j havia sofrido um "golpe" muito forte com os textos de Fletcher, o que fez com que Shirley, em represlia, classificasse desonestamente o documento produzido por Wesley naquele encontro como uma retratao do lder do metodismo. Ora, em nenhum momento Wesley se retratara no referido documento, mas Shirley precisava de uma arma contra os textos desconcertantes de Hetcher, que depois disso continuou a escrever em resposta a Shirley, e com apoio total de Wesley, provando que o texto deste obviamente no era retratao nenhuma e derrubando todos os argumentos contra os arminianos.

    Os calvinistas sentiram, ento, que era hora de formar uma blitz para contra-atacar Hetcher. Em 1772,

    o calvinista Ricardo. Hill, irmo do famoso avivalista metodista Roland Hill, tentou fazer frente a Fletcher, defendendo a predestinao dentro do conceito calvinista em cinco artigos em forma de cartas endereadas ao telogo metodista. Entretanto, outra vez Fletcher se saiu vencedor, refutando, "com lgica incontestvel e fervor eloquente", o determinismo calvinista. Foi a vez ento de Toplady e Roland Hill juntarem foras para tentar rebater Hetcher, mas ambos tambm seriam derrotados pela pena do eloquente telogo arminiano. Frustrado, Toplady volta a atacar Wesley, que s assistia aos embates, mas Thomas Oliver que o rebate, j que Wesley preferiu mais uma vez no responder. A pena de Wesley s voltou a tocar no tema quando a pena dos irmos Hill se voltou contra ele. Na ocasio, Wesley justificaria a volta ao embate dizendo que os escritos de Fletcher o haviam convencido de que fora "demasiadamente bondoso com os pregadores da reprovao". Hetcher, enquanto isso, venceria outro oponente calvinista: John Berridge (1716-1793), vigrio de Everton.

    Quando, enfim, esses embates terminaram em 1776, o Arminianismo ergueu-se vitorioso. Os metodistas calvinistas, que j eram minoritrios, perderam seguidores e resolveram sair do movimento wesleyano, formando

  • congregaes independentes que, mais frente, ingressaram na Igreja Congregacional. Entretanto, os efeitos desse debate foram alm, sendo sentidos tambm no meio evanglico mundial nos anos seguintes, levando o Arminianismo a se tomar majoritrio.

    O historiador Robert Southey destaca sobretudo os escritos de Fletcher como o catalisador da ascenso armi- niana: "O floreio de sua linguagem e sua uno sagrada revelavam a sua origem francesa; mas seu raciocnio era agudo e claro, e o esprito dos seus escritos era formoso, sendo realmente mestre no assunto e em tudo que nele estava compreendido". Lelivre declara que "a originalidade de Fletcher nessa controvrsia calvinista lhe granjeou um lugar de muita distino". J o historiador Richard Watson frisa a repercusso extraordinria dessa discusso para o evangelicalismo mundial: "Essa controvrsia produziu importantes resultados. Mostrou aos calvinistas piedosos e moderados com quanta facilidade podiam compartilhar com o Arminianismo as mais ricas verdades evanglicas; e produziu, por seu

    exemplo destemido e corajoso das consequncias lgicas derivadas da doutrina dos decretos, muito maior moderao naqueles que ainda a admitem, dando origem a algumas das modificaes mais moderadas do Calvinismo no perodo seguinte, efeitos esses que perduram at hoje".

    Lelivre conclui: "Quando a plvora do combate dissipou-se, descobriu-se que a predestinao [calvinista] ficara mortalmente ferida e, em seu lugar, levantara-se vigorosamente o Arminianismo, que fora excomungado pelo Snodo de Dort. Mas, ao passo que na Holanda esse sistema teolgico se desviara pouco a pouco [...], na Inglaterra encaminhava-se at a preservao da doutrina da graa" (LELIVRE, Ibid., p. 264).

    Outro fator que alavancou ainda mais o Arminianismo nos sculos seguintes foi o advento do Movimento Pentecostal Moderno, que, devido a suas razes metodistas via Movimento da Santidade (Holiness), sempre foi, em sua maioria, arminiano. Os pente- costais so o maior grupo evanglico do mundo e o que mais cresce, o que

    Curiosamente, depois que o Calvinismo deixou de ser majoritrio no meio evanglico, passou a ser tratado pelos arminianos da mesma forma que tratavam o Arminianismo quando eles eram maioria: como uma "heresia pemidosa". Ora, errado ver o Calvinismo dessa forma, a no ser que se trate do Calvinismo/ato&a. O Calvinismo geralmente compatibilista e, nesse caso, mesmo sendo ainda um erro, no o to grave assim.

    O calvinista fatalista aquele que diz que como Deus j determinou quem vai ser salvo e quem no vai, desnecessrio evangelizar, fazer misses ou mesmo se preocupar em ter uma vida de santidade. O calvinista compatibilista, ao contrrio, reconhece plenamente a responsabilidade humana, mesmo que no consiga explicar como a predestinao e a responsabilidade humana coexistem perfeitamente, de maneira que ele evangeliza, faz apelo, faz misses e exorta os crentes a viverem uma vida de santidade. Em outras palavras, o calvinista compatibilista no diminui a responsabilidade humana, mas v a coexistncia entre responsabilidade humana e predestinao como uma antinomia, isto , uma aparente contradio, assim como ocorre na Doutrina da Trindade e na Doutrina da Plena Humanidade e da Plena Divindade de Cristo, que so realidades que a mente humana no pode compreender perfeitamente. Ele acredita que s no Cu poder entender esse mistrio. O arminiano, por sua vez, s reconhece estas duas ltimas doutrinas como sendo antinomias. Por no encontrar,

    garante que o Arminianismo permanecer por muito tempo como a principal corrente protestante.

    Para calvinistas e arminianos

  • luz da Bblia, apoio para uma predestinao sem base na prescincia divina, ele no v como aparente contradio a coexistncia entre responsabilidade humana e predestinao.

    Como se v, toda divergncia entre calvinistas no-fatalistas e arminianos diz respeito apenas compreenso que eles tm acerca da mecnica da Salvao, e no a alguma diferena concernente mensagem ou ao mtodo da Salvao. Se fosse uma diferena relativa mensagem ou ao mtodo da Salvao, a, sim, a coisa seria gravssima. Ademais, teramos que classificar como "hereges perniciosos" alguns dos maiores nomes do Cristianismo em todos os tempos (Agostinho, John Bunyan, George Whitefield, Jonathan Edwards, David Brainerd, Charles Spurgeon, William Carey etc) e a maioria esmagadora dos protestantes dos sculos 16 ao 19.

    Ningum salvo por entender a mecnica da Salvao, mas por aceitar, pela graa de Deus, a mensagem e o mtodo da Salvao. Se fosse preciso, para ser salvo, tambm entender perfeitamente a mecnica da Salvao, a maioria esmagadora daqueles que hoje so salvos em Cristo no o seriam.

    Pense, por exemplo, em um crente simples, que mal sabe ler e escrever, que mal pode entender detalhes da discusso entre calvinistas e arminia- nos. Para ser salvo, ser que ele precisa entender o que Supralapsarianismo, Infralapsarianismo, graa preveniente, intiumfiei, Pelagianismo, Semipe- lagianismo etc? Claro que no. Basta entender a mensagem e o mtodo da Salvao: todos pecaram e destitudos esto da glria de Deus; sem o perdo dos pecados, voc no pode ter comunho com Deus e receber as bnos divinas, e tambm est destinado condenao eterna; Jesus Deus

    encarnado, que veio no apenas para ensinar como devemos viver, mas para morrer por nossos pecados, e ressuscitou ao terceiro dia para nossa Salvao; se voc se arrepender de seus pecados e aceitar o que Jesus fez por voc na cruz para remisso de seus pecados, e tambm aceitar o senhorio dEle sobre sua vida, ento ter seus pecados perdoados e a comunho e a bno eternas de Deus; voc no salvo pelas boas obras, mas salvo para praticar boas obras; todo salvo em Cristo deve procurar viver uma vida de santidade; Jesus voltar e um dia estaremos para sempre com Ele na eternidade se formos fieis.

    Voc no salvo por entender perfeitamente o que ocorreu nos "bastidores" do mundo espiritual quando voc foi salvo - ou seja, se voc veio a Cristo porque isso tinha sido predeterminado por Deus ou se Deus apenas sabia que isso iria acontecer e ento predeterminou, desde a eternidade, que voc receberia todas as bnos que esto em Cristo. Voc pode morrer sem entender plenamente como isso se deu e ser salvo. Porm, voc nunca ser salvo se no aceitar a mensagem e o mtodo da Salvao.

    Em 1971, em uma conferncia em Schloss Mittersill, na ustria, o clebre

    pregador calvinista David Martyn Lloyd-Jones (1899-1981) defendeu o mesmo que este escriba: o bvio de que a diferena entre Arminianismo e Calvinismo diz respeito apenas ao mecanismo da Salvao e no ao caminho da Salvao, razo pela qual, ele, um calvinista, defendia que era errado considerar o Arminianismo condenvel ou heresia perniciosa; e enfatizava ainda outra obviedade: Arminianismo no tem nada a ver com Pelagianismo. Que bom seria se todo calvinista tivesse essa percepo! Infelizmente, h aqueles que, alm de confundirem Arminianismo com Pelagianismo ou Semipelagianismo, colocam a mecnica da Salvao no mesmo patamar da mensagem e do mtodo da Salvao, confundindo alhos com bugalhos e tratando arminianos como "hereges perniciosos".

    Por outro lado, arminianos muitas vezes se esquecem que o Calvinismo prevalecente na histria, sobretudo a partir do sculo 19 em diante, o Calvinismo compatibilista, que era a posio de William Carey (1761-1834), o "Pai das Misses Modernas", e Charles Spurgeon (1834-1892), "O Prncipe dos Pregadores". Ambos combateram o Calvinismo fatalista e viam como homens de Deus os arminianos John

  • e Charles Wesley, assim como com- patibilistas de hoje admiram tambm arminianos como Dwight L. Moody, A. W. Tozer, Leonard Ravenhill, C. S. Lewis e Billy Graham.

    Em 1792, William Carey publicou o livro Inquiry into the Obligations of Christians to Use Means for the Conversion of the Heathen ("Investigao sobre as obrigaes dos cristos de usar meios para a converso de pagos"), mas encontrou resistncia entre seus pares batistas, que eram calvinistas como ele. Para a maioria destes, a posio de Carey entrava em conflito com as crenas calvinis- tas. Mas, Carey insistiu, levando sua viso missionria a uma reunio de pastores e propondo que, no encontro seguinte, discutissem a tarefa de levar o Evangelho aos pagos, diante do que o pastor John Ryland (1753-1823), que presidia a reunio, ordenou que Carey se sentasse, dizendo: "Quando agradar a Deus converter pagos, Ele o far sem a sua nem a minha ajuda!".

    Como Carey era mais fiel Bblia do que aos dogmas calvinistas, ele foi fazer misses e deu incio s Misses Modernas, criando a Sociedade Batista Missionria. E o prprio Ryland, depois de ler a biografia do missionrio calvinista David Brainerd (1718-1747) escrita por Jonathan Edwards (1703- 1758), passou a ser mais equilibrado, inclusive tomando-se amigo e apoia- dor de Carey, que tinha como referncias John Wesley e David Brainerd.

    Sobre os embates de Spurgeon com os calvinistas fatalistas de seus dias, h uma obra muito boa: Spurgeon vs. Hyper Calvinists: The Battle for Gospel Preaching ("Spurgeon versus os Hiper- -calvinistas: a Batalha da Pregao da Palavra"), 1995, da Banner of Truth.

    Comentando 1 Timteo 2.3-6, que afirma que Deus deseja "que todos

    os homens sejam salvos" e Cristo se entregou "por todos", escreve Spurge- on: "E ento? Tentaremos colocar um outro sentido no texto do que j tem? Penso que no. E necessrio, para a maioria de vocs, conhecer o mtodo comum com qual os nossos amigos calvinistas mais velhos lidaram com esse texto. 'Todos os homens', dizem eles, 'quer dizer alguns homens', como se o Esprito Santo no pudesse ter falado 'alguns homens' se quisesse falar alguns homens. 'Todos os homens', dizem eles, 'quer dizer alguns de todos os tipos de homens', como se o Senhor no pudesse ter falado 'Todo tipo de homem' se quisesse falar isto. O Esprito Santo, atravs do apstolo, escreveu 'todos os homens', e sem dvida isso quer dizer 'todos os homens'. Estava lendo agora mesmo uma exposio de um doutor muito apto o qual explica o texto de tal forma que muda o sentido; ele aplica dinamite gramatical no texto e explode o texto ao exp-lo. [...] O meu amor pela consistncia das minhas prprias doutrinas no de tal tamanho a me autorizar a alterar conscientemente um s texto da Escritura. Respeito grandemente a ortodoxia [calvinista], mas a minha reverncia para a inspirao bem maior. Prefiro parecer cem vezes ser inconsistente comigo mesmo do que ser inconsistente com a Palavra de Deus" (SPURGEON, Metropolitan Tabemacle Pulpit, 1 Timothy 2.3,4, volume 26, pp. 49-52).

    No por acaso, Spurgeon autor de um livro intitulado The Soul Winner ("O Ganhador de Almas"), no qual incentiva cada crente a se tomar um ativo e ousado ganhador de vidas para Cristo. Spurgeon era assim porque o seu Calvinismo era compatibilista, como ele mesmo definiu certa vez: "Que Deus predestina

    e que o homem responsvel so duas coisas que poucos enxergam. Acredita-se que so inconsistentes e contraditrias, mas elas no so. E simplesmente culpa do nosso julgamento fraco. Duas verdades no podem ser contraditrias. Se, ento, acho ensinado em um lugar [da Bblia] que tudo foi pr-ordenado, verdade; e se achar em outro lugar [da Bblia] que est sendo ensinado que o homem responsvel por todas as suas aes, verdade; e a minha grande tolice que me leva a imaginar que duas verdades podem se contradizer" (SPURGEON, C. H., New Park Street Pulpit, volume 4, 1858, p. 337).

    Enfim, no devemos cometer a tolice de tratar nossos irmos calvinistas compatibilistas, no-fatalistas, como "hereges perniciosos", o que nunca foram, mas tambm devemos nos conscientizar que o Arminianismo , sem dvida alguma, a melhor explicao, luz da Bblia, para a mecnica da Salvao. No verdade que "o Calvinismo honra ainda mais a Deus do que o Arminianismo", como calvinistas mais fervorosos declaram. Tanto o Calvinismo compatibilista como o Arminianismo genuno honram a Deus, sendo que o Arminianismo o faz de uma forma muito mais coerente luz do texto sagrado, sem forar alguma aparente contradio, alguma antinomia entre soberania de Deus e responsabilidade humana, e sempre luz da Bblia. Ensinemos, pois, o Arminianismo. o b t m

    Silas Daniel pastor e jornalista, membro da

    Assembleia de Deus em Augustos Vasconcelos,

    Rio de Janeiro (RJ), e autor dos livros A Seduo das

    Novas Teologias e A Histria dos Hinos que Amamos,

    ambos ttulos da CPAD.