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Page 1: ELIAS, Norbert Iintrodução à Sociologia

p: EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA, Émile Durkl Q 3

9' HISTORIA DA GEOGRAFIA, Paul Claval

T" 0 OU K É 0 OCIDENTE?, Phillipe Nemo

» ESBOÇO PARA UMA AUTO-ANÁLISF,. Pi i> -i 3 2

!° PAliA UMA SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA, 1 u ^-

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- A INTERPRETAÇÃO DAS AFASIAS, Sigm Ç Õ-

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o PSICANÁLISE E RELIGIÃO, Eridi Frornm

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•f A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO, Olivier Kel n -

:' 0 NASCIMENTO DO TEMPO, Ilya Prigog n

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* REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E CRESCIM Z -; ^r

« A EVOLUÇÃO PSICOLÓGICA DA CRIAN >' f g

(0 O MEDICO NA ERA DA TÉCNICA, Karl J ir !?

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p QUESTÕES DE RETÓRICA; LINGUAGE] S S N >'

to O PROCESSO DA EDUÍCAÇÃO, Jeroino Br^ 3 -1

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•_| HERANÇA E FUTURO DA EUROPA, Han T O S rre d

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4* CONCEITOS SOCIOLÓGICOS FUNDAM] m >,/; H 53

^ !* ACTOS DE SIGNIFICADO, Jeronw Bruner

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•*J O MISTÉRIO DA SAÚDE, Hans-Georg Ca g- 3

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Assinada por um dos nomes máximos daSociologia contemporânea, esta introdu-ção tem o mérito de constituir uma abor-dagem diferente, nada convencional e degrande poder de síntese. Sucessivamente,Norbert Elias retoma as interrogaçõesformuladas por August Comte acercada Sociologia; fala do papel do sociólogocomo destruidor de mitos, das caracterís-ticas universais da sociedade humana e dateoria do desenvolvimento social.

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A cultura como sistema aberto, como acto e dramaque se expressa na palavra e na imagem para análisee interpretação do quotidiano.

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Introduçãoà Sociologia

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Título original:Was ist Soziologie?

© Juventa Verlag, Munique 1970

Tradução: Maria Luísa Ribeiro Ferreira

Capa de F.B.A.

Depósito Legal n° 283730/08

Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na Publicação

ELIAS, Norbert, 1897-1990

Introdução à sociologia. - Reimp. - (Biblioteca 70 ; 16)ISBN 978-972-44-1486-7

CDU 316

Impressão e acabamento:PENTAEDRO

paraEDIÇÕES 70, LDA.

Outubro de 2008

ISBN: 978-972-44-1486-7ISBN da 3a edição: 972-44-1227-XISBN da 2a edição: 972-44-1005-6ISBN da 1a edição:972-44-0400-5

Direitos reservados para todos os países de língua portuguesapor Edições 70

EDIÇÕES 70, Lda.Rua Luciano Cordeiro, 123 - 1° Esq° - 1069-157 Lisboa / Portugal

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incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor.Qualquer transgressão à lei dos Direitos de Autor será passível

de procedimento judicial.

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AGRADECIMENTOS DO AUTOR*

Se, ao escrevermos uma introdução à sociologia, nos des-viamos um pouco dos caminhos usuais e, ao fazê-lo, tentamosajudar o leitor a encarar de um modo novo os problemasbásicos da sociedade, em primeiro lugar só podemos confiarem nós mesmos. No entanto, estamos sempre dependentes daajuda, encorajamento, estímulo e sugestões dos outros. Nãoposso aqui mencionar todos os que, de um ou de outro modo,me ajudaram neste trabalho. Porém, além do director destacolecção, Professor Dieter Claessens, a quem dedico este livro,devo mencionar explicitamente o Doutor W. Lepenies, que comgrande habilidade e tacto adaptou o manuscrito do autor (dema-siado longo, difícil e não facilmente sujeito a cortes) ao -formatoadequado para a colecção. Volker Krumrey prestou-me conside-rável auxílio e conselho na preparação do manuscrito. Tambémgostaria de exprimir os meus calorosos agradecimentos aosmeus amigos e colegas Eric Dunning, Johan Goudsblom e Her-mann Korte, pelos estímulos e conselhos que me prestaram.Finalmente, não posso deixar de agradecer ao meu editor Dou-tor M. Faltermaier, cuja paciência de tempos a tempos pus àprova.

Leicester, 1969

NORBERT ELIAS

* Referente* & edição original alemã (luventa Verlag, Munique, 1970).

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PREFÁCIO À EDIÇÃO INGLESA

Norbert Elias foi um dos cientistas alemães que fugiudá Alemanha nos anos 30, fazendo da Inglaterra o seu lar.A sua contribuição cientifica fundamental, Über den Pro-zess der Zivilisation, foi publicada em 1939 na Suíça, sendotambém publicada aí, em 1969, uma nova edição, com umnovo e importante prefácio. No entanto, só agora as prin-cipais obras de Elias, incluindo o presente livro, começama ser acessíveis aos leitores ingleses. Contudo, a obra deNorbert Elias como professor na Universidade de Leices-ter teve uma influência considerável. Podemos hoje -falarde toda uma geração de sociólogos ingleses que foram seusalunos e que, como tal, difundiram o seu entusiasmo con-tagiante por este tema. Os leitores deste livro reconhece-rão o que os cativou —os dotes naturais de Elias comoprofessor. Também podemos falar de um interesse reno-vado pela obra deste autor na Alemanha e na Holandaonde, depois de reformado pela Universidade de Leicesterem 1962, leccionou em diversas universidades como pro-fessor visitante. O destino de Norbert Elias tem sido sin-gular pois se o seu maior impacto como professor se deuem Inglaterra, o impacto posterior do seu trabalho cien-tífico tem-se dado no universo acadêmico da Alemanha.

What is Sociology? foi publicado pela primeira vezem 1970, produto tardio da carreira do seu' autor. Naúltima frase de uma última nota diz-se: «ToçLa a teoriatardia se desenvolve simultaneamente como continuaçãode teorias anteriores e como ponto de partida criticodecorrente destas.» Embora esta afirmação se refira aMarx, ela também se aplica a Elias. Numa breve intro-dução, ilusoriamente superficial, o leitor descobrirá uma

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nova justificação da sociologia, recorrendo-se às idéiasbásicas primeiramente traçadas por Augusto Comte. Pos-teriormente, Elias irá retomar categorias básicas do pen-samento sociológico, continuando assim a «tradição socio-lógica» embora tomando uma posição crítica relativamentea contributos maiores tais como os de Marx, Weber e Par-sons. Neste processo vai induzindo o leitor a repensartemas fundamentais do discurso sociológico tais como indi-víduo, grupo e owíros.

A idéia deste tipo de abordagem decorre da própriaobra socio-histórica do autor. Esta versa essencialmentesobre padrões mutáveis de interdependência relativamenteàs relações de poder entre os homens em sociedade. A umaprimeira análise das mudanças de etiqueta, relativas aoaparecimento do «absolutismo» monárquico (na Françamedieval), seguiu-se um estudo da sociedade cortesãCDie hõfische Gesellschaft, 1969). Em ambas as obras oautor acentua que

da interpenetração de inúmeros interesses e intenções indivi-duais— sejam eles compatíveis ou opostos e hostis — algo vaidecorrendo que, ao revelar-se, se verifica não ter sido planeadonem requerido por nenhum indivíduo. No entanto apareceudevido às intenções e actos de muitos indivíduos. E isto, naverdade, representa todo o segredo da interpenetração social— da sua obrigatoriedade e regularidade, da sua estrutura, dasua natureza processual e do seu desenvolvimento; isto é osegredo da sociogénese e da dinâmica sociais. [Über den Pro-zess der Zivilísation (1969), II, p. 221].

É evidente que Elias clarifica o Jacto de, nesse jogo deinterdependências, governantes e reis, personagens impor-tantes e outros, terem uma influência considerável, insis-tindo no entantç no facto de eles próprios constituíremuma parte das interdependências em que são relativamentedominantes [Die hõfische Gesellschaft (Neuuned: HermannLuchterhand Verlag, 1969), pp. 213-221].

Ao relatar sistematicamente esta visão da história edas diferenças de poder, Norbert Elias deu um contributofundamental para a moderna sociologia. A introdução quese segue pode ser proveitosamente lida em separado, maso leitor aperceber-se-á de que Introdução à Sociologiase baseia num trabalho científico, que reúne simultanea-mente aspectos de história política, de psicologia das pro-fundezas e de sociologia, numa síntese original de consi-derável vigor.

REINHARD BENDIXUniversidade da Califórnia, Berkeley

INTRODUÇÃO

Para compreendermos de que trata a sociologia, temosque nos distanciar de nós mesmos, temos que nos consi-derar seres humanos entre os outros. Na verdade, a socio-logia trata dos problemas da sociedade e a sociedade éformada por nós e pelos outros. Aquele que estuda epensa a sociedade é ele próprio um dos seus membros.Ao pensarmo-nos na sociedade contemporânea, é difícilfugir ao sentimento de estarmos a encarar seres humanoscomo se fossem meros objectos, separados de nós por umfosso intransponível. Este sentido de separação é expresso,reproduzido e reforçado pôr conceitos e idiomas correntesque fazem com que este actual tipo de experiência surjacomo evidente e incontestável. Falamos do indivíduo e doseu meio, da criança e da família, do indivíduo e da socie-dade ou do sujeito e do objecto, sem termos claramentepresente que o indivíduo faz parte do seu ambiente, dasua família, da sua sociedade. Olhando mais de perto ochamado «meio ambiente» da criança, vemos que ele con-siste primariamente noutros seres humanos, pai, mãe,irmãos e irmãs. Aquilo que conceptualizamos como sendoa «família», não seria de todo uma família se não hou-vesse filhos. A sociedade que é muitas vezes colocada emoposição ao indivíduo, é inteiramente formada por indi-víduos, sendo nós próprios um ser entre os outros.

No entanto, os instrumentos convencionais com quePensamos e falamos são geralmente construídos como setudo aquilo que experienciássemos como externo ao indi-víduo fosse uma coisa, um «objecto»' e, pior ainda, umobjecto estático. Conceitos como «famüia» ou «escola»referem-se essencialmente a grupos de seres humanos

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Interdependentes, a configurações específicas que as pes-soas formam umas com as outras. Mas a nossa maneiratradicional de formar esses conceitos faz com que essesgrupos formados por seres humanos interdependentes apa-reçam como bocados de matéria-objectos tais como asrochas, árvores ou casas. Este modo reificante de falar,que tradicionalmente usamos, e os modos usuais de pen-sar sobre grupos de pessoas — mesmo quando se trata degrupos a que pertencemos — manifestam-se de muitasmaneiras, não só no termo «sociedade» e no modo comoo consideramos conceptualmente. É usual dizermos quea sociedade é a «coisa» que os sociólogos estudam. Maseste modo reificante de nos exprimirmos levanta grandesdificuldades, chegando por vezes a impedir a compreen-são da natureza dos problemas sociológicos.

No modelo de senso comum que hoje domina a nossaprópria experiência ou a dos outros, a relação com asociedade é ingenuamente egocêntrica, tal como é indi-cado na figura 1. Configurações como a universidade,a cidade, o sistema e inúmeras outras, podem ser substi-tuídas por família, escola, indústria ou estado.

Estado

Indústria• •— • - .

Escola. ~~Família

Figura l—Padrão básico de uma visão egocêntrica da socie-dade

Quaisquer que sejam essas configurações, o modotípico e predominante de conceptualizar esses grupossociais e a autopercepção que expressam, correspondem

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geralmente ao diagrama apontado, que nos mostra a pes-soa individual, o ego particular, rodeado de estruturassociais. Estas são entendidas como objectos em cima eacima do ego individual. O conceito de sociedade tam-bém é encarado deste modo.

Para melhor compreender a problemática sociológica,ou o que habitualmente se designa como o seu tema,precisamos de reorientar a nossa compreensão do con-ceito de «sociedade» do modo implícito na figura 2.

Figura 2 — Representação de indivíduos interdependentes (•famí-lia», «estado», f grupo», ^sociedade», etc.)1

Este diagrama deveria ajudar o leitor a transpor afrágil barreira de reificação de conceitos, que obscurecee distorce a compreensão da nossa própria vida em socie-dade. Tal reificação é um encorajamento constante à idéiade que a sociedade é constituída por estruturas que nossão exteriores — os indivíduos —e que os indivíduos sãosimultaneamente rodeados pela sociedade e separados delapor uma barreira invisível. Como veremos, estas con-cepções tradicionais serão substituídas por uma visãonaais realista das pessoas que, através das suas disposi-ções e inclinações básicas são orientadas umas para asoutras e unidas umas as outras das mais diversas manei-ras. Estas pessoas constituem teias de interdependência°u configurações de muitos tipos, tais como famílias,escolas, cidades, estratos sociais ou estados. Cada umadessas pessoas constitui um ego ou uma pessoa, como

. l As figuras reportam-se ao capítulo «Notas e referên-cias», p. 193.

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muitas vezes se diz numa linguagem reificante. Entreessas pessoas colocamo-nos nós próprios. '

Tal como já foi dito, para compreender de quê trataa sociologia temos que estar conscientes de nós próprioscomo seres humanos entre outros seres humanos. À pri-meira vista isto parece um lugar comum. Cidades e aldeias,universidades e fábricas, estados e classes, famílias e gru-pos operacionais, todos eles constituem uma rede de indi-víduos. Cada um de nós pertence a esses indivíduos — é issoque significam as expressões «a minha, aldeia, a minha uni-versidade, a minha classe, o meu país». Ao nível de umalinguagem quotidiana, tais expressões são perfeitamenteusuais e inteligíveis. No entanto, se quisermos pensar deum modo científico, geralmente esquecemos que é possíveldesignar essas estruturas sociais de «minha», «dele», «nos-sas», «vossas», «deles». Em vez disso, referimo-nos habi-tualmente a essas estruturas como se elas existissem nãosó acima e para além de nós mesmos, mas também acimae para além de qualquer pessoa. Neste tipo de pensamentp,parece evidente que o «eu» ou «os indivíduos particulares»estão de um lado, havendo do outro lado a estrutura social,o «meio ambiente» que me rodeia, a mim e aos outros«eus».

Isto explica-se por várias razões; aqui apenas nos orien-tamos para uma delas. O constrangimento característicoque as estruturas sociais exercem sobre aqueles que asformam é particularmente significativo. Procuramos daruma explicação satisfatória a esta imposição, atribuindouma existência a essas estruturas — uma realidade objectiva,que se coloca acima dos indivíduos que as constituem epara além desses próprios indivíduos. A maneira correntede formarmos ás palavras e os conceitos reforça a ten-dência do nosso pensamento para reificar e desumanizaras estruturas sociais. Isto conduz, por um lado, à «caracte-rística metafísica das estruturas sociais», que hoje tantasvezes aparece no pensamento quotidiano e no pensamentosociológico. Uma das suas expressões mais típicas residena imagem da relação entre o indivíduo e a sociedade,simbolizada na figura 1.

Esta concepção metafísica é posteriormente sustentadapela transposição automática de modos de pensar e defalar, primeiramente desenvolvidos e testados na investiga-ção de relações naturais em física e em química. Essesmodos foram transpostos para a investigação das relaçõessociais entre os indivíduos. Antes de ser possível umaaproximação científica dos factos naturais, as pessoas

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explicavam as forças naturais em termos e modos de pen-sar decorrentes da experiência que tinham das forças inter-pessoais. O sol e a terra, as tempestades e os sismos,que hoje consideramos manifestações naturais de forçasfísicas e químicas, eram interpretados em termos da suaprópria experiência de fenômenos humanos e sociais.Viam-nos quer como pessoas, quer como resultados deacções e desígnios de pessoas. Só gradualmente se operoua transição do pensamento mágico e metafísico para opensamento científico interpretativo dos aspectos físico--químicos do universo. Esta mudança de perspectiva estálargamente dependente do desaparecimento de modelosexplicativos heterónomos e ingenuamente egocêntricos,cujas funções foram assumidas por outros modelos dediscurso e de pensamento, mais estreitamente correspon-dentes à dinâmica imanente dos acontecimentos naturais.

Ao procurarmos alargar a nossa compreensão dos pro-cessos humanos e sociais e adquirir uma base crescentede conhecimentos mais sólidos acerca desses processos— isto já em si constitui uma das tarefas fundamentaisda sociologia — confrontamo-nos com uma tarefa seme-lhante de emancipação. Também nesta esfera as pessoasverificam que estão sujeitas a forças que as compelem.Procuram compreendê-las para que, com a ajuda desteconhecimento, possam adquirir um certo controlo sobreo decurso cego dessas forças compulsivas, cujos efeitossão muitas vezes destruidores e destituídos de qualquersignificado, causando muito sofrimento. O objectivo éorientar essas forças de modo a encontrar-lhes signifi-cado, tornando-as menos destruidoras de vidas e de recur-sos. Daqui decorre ser fundamental para o ensino da socio-logia e para a sua prática de investigação, a aquisição deuma compreensão geral dessas forças e um aumento deconhecimentos seguros das mesmas, através de camposespecializados de investigação.

O primeiro passo não parece muito difícil. Não édifícil compreender que o que pretendemos conceptualizarcomo forças sociais são de facto forças exercidas pelaspessoas, sobre outras pessoas e sobre elas próprias. Noentanto, logo que queremos continuar, partindo desteprincípio, verificamos que o mecanismo social do pensa-mento e da linguagem apenas coloca à nossa disposiçãoquer modelos de um tipo ingenuamente egocêntrico como° mágico-mítico, quer modelos tirados das ciências natu-rais. Encontramos os primeiros sempre que as pessoasProcuram explicar as forças que as compelem com base

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nas representações que elas próprias formam conjunta-mente com os outros, totalmente em termos de caracterpessoal ou de objectivos ou intenções pessoais de outrosindivíduos ou grupos de indivíduos. É muito comum estanecessidade de nos excluirmos <ou de excluirmos o nossogrupo) de uma explicação em termos de representaçõesformadas com base noutras pessoas. É mesmo uma dasmuitas manifestações de um egocentrismo ingênuo ou(o que é quase a mesma coisa) de um antropomorfismoprimário, que ainda enforma o nosso pensamento e onosso discurso no que diz respeito aos processos sociais.Estes modos de expressão, ingenuamente egocêntricos,estão ligados a outros que, modelados pelo vocabuláriousado na explicação das forças compulsivas da natureza,passaram agora a ser usados para explicar as forças com-pulsivas da sociedade.

Tem-se verificado uma tendência para tornar cientí-ficos modos de pensamento e de expressão usados naquiloque hoje designamos por ciência física, em nítida distin-ção com o mundo humano e social. Muitas das descober-tas das estruturas químicas e físicas passaram para ostok de conceitos e palavras usados quotidianamente nasociedade européia, enraizando-se nela. Muitas palavras econceitos cujas formas actuais derivam essencialmente dainterpretação de factos naturais, foram transferidos inde-vidamente para a interpretação dos fenómeros humanose sociais. .Juntamente com as diversas manifestações depensamento mágico e mítico, contribuem para que se per-petuem nas ciências humanas muitos modos usuais dediscurso e de pensamento totalmente inadequados a essesdomínios. Impedem assim que se desenvolva um modomais autônomo de falar e de pensar, mais adequado àsparticularidades específicas das configurações humanas.

Consequentemente, as tarefas da sociologia incluemnão só o exame e interpretação de forças compulsivasespecíficas que agem sobre as pessoas nos seus grupose sociedades empiricamente observáveis, mas também alibertação do discurso e do pensamento relativos a essasforças, das suas ligações com modelos heterónomos ante-riores. Em vez de palavras e de conceitos marcados pelasua origem mágico-mítica ou vindos das ciências naturais,a sociologia deverá produzir gradualmente outros concei-tos, que sejam mais adequados às particularidades dasrepresentações sociais do homem.

Isto seria fácil se já dispuséssemos de uma visão clarada fase que hoje corresponde ao desenvolvimento das

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ciências naturais, onde novos processos de falar e de pen-sar, mais adequados do que os anteriores, substituíram osvelhos processos mágico-míticos. No entanto, sabemosmuito pouco a este respeito. Muitos dos conceitos funda-mentais das ciências da natureza, que gradualmente seforam desenvolvendo, foram provando ser mais ou menosadequados à observação e manipulação de processos físico--químicos. Por esta razão, estes conceitos fundamentaissurgem àqueles que os herdam como se fossem eterna-mente válidos e consequentemente eternos. As correspon-dentes palavras, categorias e modos de pensamento pare-cem tão evidentes, que é fácil imaginar que cada serhumano os conheceu intuitivamente. Foram precisas mui-tas gerações de cientistas que, à custa de uni trabalhoduro de observação, de uma luta árdua e por vezes peri-gosa, chegaram a noções tais como as de causalidademecânica ou causalidade não intencional, não dirigida enão planeada. Só muito lentamente e com muita dificul-dade estes conceitos emergiram de noções e modos de pen-sar antropomórficos e egocêntricos. Por fim, essas noçõesforam difundidas por uma pequena elite, até que hojeenfermam o pensamento e o discurso quotidianos de cer-tos grupos sociais. Aparecem actualmente às gerações pos-teriores como conceitos e modos de pensamento «verda-deiros», «racionais» ou «lógicos». Passam em geral no testeda observação constante e da acção e, por conseguinte,já não nos interrogamos sobre o como e o porquê deuma tão perfeita adaptação do pensamento humano rela-tivamente a este nível particular de integração no cosmos.

Daqui decorre que esta evolução social do discursoe do pensamento, sobre as forças compulsivas dos pro-cessos naturais, tenha sido negligenciada como tema deinvestigação sociológica. A concepção filosófica de umconhecimento científico estático, considerado como formade conhecimento «eternamente humana», impediu quasecompletamente qualquer investigação sobre a sociogénesee a psicogénese do vocabulário científico e sobre modosde discurso ou de pensamento. No entanto, só investiga-ções deste tipo nos colocarão no caminho certo, que nosPermite explicar esta reorientação da experiência e doPensamento humanos. O problema é geralmente minimi-zado mesmo antes de ser colocado pois é visto como«Um assunto meramente histórico», oposto aos chamadosProblemas de teoria sistemática. Mas esta distinção cons-titui em si mesma uma ilustração de como é inadequadaa utilização de modelos vindos das ciências naturais na

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interpretação de processos sociais a longo prazo, em quese inclui a «cientifização» do pensamento. Estes processossão totalmente diferentes daquilo a que se chama a his-tória da ciência, contrastando com uma filosofia da ciên-cia aparentemente imutável, tal como a história naturalera habitualmente contrastada com o estudo do aparen-temente imutável sistema solar.

Correspondentemente a estas deficiências na investiga-ção de processos de desenvolvimento social a longo termo,ainda nos falta a compreensão geral de uma reorientaçãoa longo prazo da linguagem e do pensamento nas sociedadeseuropéias, nas quais o aparecimento das ciências naturaisdesempenharia um papel central. Tal compreensão é essen-cial se pretendemos obter uma visão mais clara e nítidadas transformações operadas. Também facilitaria muitose as pessoas compreendessem que a sociologia atingiuactualmente um novo nível de experiência e de conscien-cialização. Com o constante feedback do volume semprecrescente de investigação empírica, podemos detectar mui-tos modelos de conhecimento e pensamento e podemostambém, à medida que o tempo passa, colocar no devidolugar outros instrumentos de linguagem e de pensamentomais adequados à investigação científica das representa-ções sociais.

É tão difícil às ciências humanas emanciparem-se deconceitos heterónomos, com os seus conseqüentes modosde discurso e de pensamento, como o foi às ciênciasnaturais há dois ou três séculos. Aqueles que nessa alturaabraçaram a causa das ciências naturais tinham comoúnica escolha combater os modelos institucionalizados depercepção e de pensamento de caracter mágico-mítico; hojeos protagonistas'das ciências sociais também têm que lutarcontra uma utilização heterónoma de modelos próprios dasciências da natureza que também se tornaram firmementeinstitucionalizados.

Mesmo tendo presente que as forças sociais são forçasexercidas por pessoas sobre si mesmas e sobre os outros,é ainda muito difícil quando falamos e pensamos, preca-vermo-nos contra a pressão social das estruturas verbaise conceptuais. Estas fazem com que as forças sociais pare-çam forças exercidas sobre os objectos da natureza — for-ças exteriores às pessoas, exercidas sobre elas como sefossem «objectos». Demasiadas vezes falamos e pensamoscomo se não só as montanhas, nuvens e tempestades,mas também as aldeias e estados, a economia e a polí-tica, os factores de produção e o avanço técnico, as ciên-

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cias e a indústria, entre inúmeras outras estruturas sociais,fossem entidades extra-humanas, com as suas leis pró-prias e, por conseguinte, totalmente independentes daacção ou da inacção humanas. Surgem no sentido dadopela figura l, como se «a sociedade», ou «o meio ambiente»,exercessem influência sobre cada ser humano, cada «eu»individual. Muitos dos substantivos usados nas ciênciassociais — e no discurso quotidiano — são formados e usa-dos como se se referissem a coisas materiais, a objectosvisíveis e tangíveis no tempo e no espaço, existindo inde-pendentemente das pessoas.

No entanto, isto não significa que actualmente já fossepossível ensinar e investigar sem este tipo de vocabuláriode estrutura cpnceptual. Por mais dolorosamente conscien-tes que estejamos da sua insuficiência, ainda nos é impos-sível utilizar meios de pensamento e de comunicação maisadequados. Podíamos consequentemente tentar libertar demodelos heterónomos de discurso e de pensamento o stockusual de conhecimentos e de linguagem, agora utilizadospara alargar a nossa compreensão das teias humanas e dasconfigurações sociais. Podíamos procurar substituí-los pormodelos mais autônomos. No entanto, qualquer tentativadeste tipo estaria votada à falência. Certas transformaçõessociais só se podem efectuar — se é que se podem mesmoefectuar — quando houver um desenvolvimento que abar-que várias gerações. Esta reorientação do discurso e dopensamento é uma delas. Necessita de uma grande inova-ção lingüística e conceptual. Feita de um modo apressado,poderia fazer perigar as suas possibilidades actuais de com-preensão. É claro que em circunstâncias favoráveis osneologismos simples podem passar muito rapidamente aser utilizados socialmente. Mas a compreensão e afinidadeem relação a novos modos de falar e de pensar nuncase desenvolveu sem entrar em conflito com modos maisvelhos e mais comuns. Torna-se necessária uma reorgani-zação da percepção e do pensamento de todas as muitaspessoas interdependentes numa sociedade. Se uma grandemaioria tiver que reaprender e repensar tudo isto, tendoque se acostumar a todo um complexo de conceitos novos— ou conceitos velhos com um novo significado — entãotorna-se necessário um período de duas ou três gerações,por vezes mesmo de muitas mais. Por tudo isto, talvezque uma visão mais clara da tarefa comum em curso possafacilitar e apressar uma mudança de orientação, mesmodesta envergadura. O meu objectivo aqui é contribuir paraa sua clarificação.

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Tendo presente este objectivo, a discussão da dificul-dade e morosidade de uma tal reorientação da linguagemsocial e do pensamento podia dar-nos já uma idéia do tipode forças que as pessoas exercem umas sobre as outras.Seria mais fácil compreender que tais forças são total-mente distintas, se a nossa linguagem e pensamento nãoestivessem tão totalmente penetrados por palavras e con-ceitos tais como «necessidade causai», «determinismo», «leiscientíficas» e outras do mesmo tipo. Estes denotam mode-los derivados de uma experiência prática no campo dasciências naturais, da física e da química. Foram mais tardetransferidos para outros campos de experimentação, paraos quais não" tinham sido de modo algum primeiramentedestinados, como por exemplo o campo das relações huma-nas, a que chamamos sociedade. Neste processo perdeu-sea consciência da sua relação original com as descobertasrelativas a acontecimentos físico-químicos. Assim, apresen-tam-se-nos agora como conceitos gerais, que, de certomodo, surgem como concepções a priori do modo comoos acontecimentos se interligam; todos os homens pare-cem possuí-los como fazendo parte de um senso comumou de uma razão inatos, independentes da experiência.

Na maioria dos casos, quando penetramos numa novaárea de experiência, deparamos simplesmente com umainsuficiência de conceitos adequados ao tipo de forças ede relações que aí encontrámos. Tomemos por exemplo anoção de «força». A nossa utilização da linguagem vulgar,com que comunicamos uns com os outros, exerce umaespécie de força sobre o discurso e o pensamento dosindivíduos. Este gênero de força é de tipo muito diferentepor exemplo da força da gravidade que, de acordo comas leis científicas, atrai uma bola para a terra quandoesta é lançada ao ar. No entanto, quais são hoje os con-ceitos distintos e específicos que conseguem exprimir estadiferença de um modo claro e inteligível? Talvez que associedades científicas, mais do que outros tipos de socie-dade, tenham uma maior oportunidade de inovação nocampo lingüístico e social. Mesmo assim, a sua oportu-nidade não é ilimitada. Levada muito longe, corre o riscode não ser compreendida pelos outros indivíduos. Alémdisso, os nossos próprios discurso e pensamento são deum modo geral controlados pelos outros e, se esse con-trolo se perder totalmente, também corremos o risco deperdermos o controle sobre nós mesmos, ou de nos per-dermos em especulações sem limites, em fantasias, brin-

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cando com as idéias. É muito difícil dirigir um precursoentre o Cila da física e o Caríbides da metafísica.

Não se deveria esperar demasiado de um simpleslivro. Uma orientação e inovação radicais como as queagora se esboçam, apresentadas com o esforço de definirsociologicamente as relações sociais, não podem ser man-tidas pela imaginação e o poder criativo de qualquer indi-víduo. Precisam dos esforços convergentes de muita gente.Afinal de contas, o factor crítico é a direcção do desen-volvimento social em todos os seus aspectos — o desen-volvimento da teia de relações humanas como um todo.Uma onda forte de novas idéias pode influenciar o decursodo desenvolvimento social global, contando que as tendên-cias de flutuação na distribuição do poder e nas conse-qüentes lutas para o adquirir não levem esta reorientaçãoa uma paralização total, destruindo o impulso que a sus-tenta. Na situação actual, as ciências sociais encontrama mesma dificuldade que afligiu as ciências naturaisdurante os séculos da sua ascensão: quanto maior for acólera e a paixão surgidas com o conflito, menor será apossibilidade de uma mudança para um pensamento maisrealista e menos fantasioso. E quanto mais fantasioso— mais longe da realidade — for o seu pensamento, menoscontroláveis serão a cólera e a paixão. Na antigüidade,surgiu rapidamente uma concepção da natureza mais deacordo com a realidade; mas foi posteriormente destruídacom o aparecimento de um novo surto da mitologia ligadoà absorção de estados menores, auto-governados, por gran-des estados imperialistas. Isto mostra como pode ser frá-gil uma tentativa prematura de mudança. Outro exemplo éo desenvolvimento de idéias utópicas saindo do pensamentocientífico de caracter social, durante os séculos XIX e XX.Ambos os exemplos apontam para um círculo vicioso; esterepresenta em si mesmo uma das forças compulsivas quenecessitam de uma investigação mais precisa. Referênciasa este facto poderão lançar luz sobre as tendências decientifização do pensamento, que ainda não tiveram aatenção que merecem2.

Uma das características que distingue a aquisição cien-tífica do conhecimento de uma aquisição pré-científica domesmo, está intimamente ligada ao mundo real dos objec-tos. O modo científico dá às pessoas a possibilidade dedistinguir mais claramente, à medida que se vai avan-çando, as idéias fantasiosas dos realistas. À primeira vista,isto pode parecer demasiado simplificado. A forte correntede nominalismo filosófico, que ainda invade e obscurece

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o pensamento filosófico, veio desacreditar conceitos taiscomo «realidade» e «facto». Mas não se trata aqui deespeculação filosófica, quer de tipo nominalista quer detipo positivista; trata-se sim de, relativamente à teoria daciência, estabelecer algo que possa ser verificado por obser-vações detalhadas e, se possível, revisto. Numa certa oca-sião pensou-se que a lua era uma deusa. Hoje temos umaidéia mais adequada, mais realista da lua. Amanhã poder--se-á descobrir que há ainda elementos fantasiosos na idéiaque hoje temos da lua, podendo as pessoas chegar a umaconcepção deste planeta, do sistema solar e de todo ouniverso, mais aproximada da realidade do que aquelaque actualmente temos. O comparativo desta asserção éimportante; pode ser utilizado para conduzir as idéiasentre os dois potentes e inamovíveis rochedos do nomina-lismo e do positivismo, servindo para deter a corrente deuma evolução a longo prazo de conhecimentos e de pen-samentos. Descrevemos a orientação desta corrente, cha-mando especial atenção para a diminuição dos elementosfantasiosos e para o aumento dos elementos realistas donosso pensamento, como sendo características da cienti-fização dos nossos modos de pensamento e de aquisiçãode conhecimentos. Seria preciso um estudo muito maisprofundo do que aquele que podemos desenvolver nestelivro, para que se investigassem as mudanças de equilíbrio,a freqüência relativa e o peso de elementos fantasiosose realistas nos conceitos aceites relativamente às socieda-des humanas. Ambos os conceitos podem ser vistos a mui-tos níveis. O de fantasia por exemplo; pode referir-se aossonhos individuais, aos sonhos acordados e aos desejos,à expressão imaginativa pela arte, à especulação metafí-sica, aos sistemas colectivos de crenças ou às ideologias,e a muitos mais para além destes.

No entanto houve um tipo de fantasia que desempe-nhou um papel indispensável no processo de cientifizaçãoe nos processos de aquisição crescente de domínio sobrea realidade. Foi o tipo de fantasia simultaneamente colo-cada em cheque e tornada frutífera por um contactoestreito com a observação factual. Como regra, nas suasmeditações os filósofos nominalistas não se dignam tra-çar a relação complexa dos factos com a fantasia nem osassimilam conceptualmente. Consequentemente, não estãoem posição de explicar ao seu público os efeitos da cres-cente cientifização do pensamento no que respeita a fenô-menos naturais não humanos. À medida que ocorre esteprocesso, com um constante feedback sobre os aspectos

práticos, podem aumentar as possibilidades de evitar operigo dos acontecimentos naturais, aumentando tambémas oportunidades de nos encaminharmos para metas quenós próprios escolhemos. Por exemplo, como podemosexplicar que em muitas sociedades haja uma melhoria denível de vida e de saúde, senão pelo facto dos nossosconhecimentos e pensamentos nesses campos se teremtornado menos carregados de emotividade e menos fanta-siosos, menos mágico-míticos e mais objectivos e realistas?

Hoje em dia, muita gente, incluindo os próprios soció-logos, fala da ciência com uma preocupação evidente, porvezes mesmo com um certo desprezo. Perguntam. «O que éque todas essas descobertas científicas — máquinas, fábri-cas, cidades, bombas nucleares e todos esses horrores daguerra tecnológica — têm feito por nós?» Este argumentoé um exemplo típico da supressão de uma explicação malaceite e da sua substituição por um tipo de explicaçãomais aceitável (um processo chamado «deslocação»). Defacto, os progressos da bomba de hidrogênio foram insti-gados por homens de estado, que seriam os primeiros aordenar a sua utilização caso a pensassem necessária. Con-tudo, para nós, a bomba nuclear funciona como uma espé-cie de feitiço, como um objecto no qual projectamos osnossos medos, enquanto o perigo real na hostilidade recí-proca manifestada por grupos de pessoas nas suas rela-ções umas com as outras. É de certo modo essa hostilidaderecíproca que faz com que grupos hostis dependam unsdos outros, podendo tornar-se tão profundamente envolvi-dos que já não consigam encontrar uma saída para essasituação. Censuramos a bomba e a actividade c os cientis-tas, cuja investigação a possibilitou, como pretexto paraescondermos a nós mesmos a cumplicidade que temosnessa hostilidade recíproca, pelo menos para escondermosa nossa incapacidade de uma ameaça ou de uma contra--ameaça. Censurando os cientistas, também fugimos à obri-gação de procurar uma explicação mais realista para osconflitos sociais, que levam a uma troca crescente deameaças entre grupos de pessoas. A queixa de que nostornámos «escravos da máquina» ou da tecnologia, é seme-lhante. Apesar dos pesadelos da ficção científica, as máqui-nas não têm uma vontade própria. Não podem por siniesmas inventar ou produzir e não podem obrigar-nosa que as sirvamos. Todas as decisões que tomam e acti-vidades que desempenham são decisões e actividades huma-nas. Projectamos nelas ameaças e coerções mas, se as exa-minarmos mais atentamente, veremos sempre grupos de

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pessoas ameaçando-se e coagindo-se mutuamente por inter-médio das máquinas. Quando nas sociedades científico--técnico-industriais atribuímos o nosso mal-estar às bom-bas ou às máquinas, aos cientistas ou aos engenheiros,estamos a fugir à difícil e talvez desagradável tarefa deprocurar uma interpretação mais clara e mais realista daestrutura das conexões humanas, particularmente dospadrões de conflito que nelas se fundamentam. Estaestrutura é a única responsável pelo desenvolvimento epela eventual utilização de armas científicas, pela vidaatribulada nas fábricas e nas metrópoles modernas.O desenvolvimento tecnológico tem uma influência realno curso que tomam as interconexões humanas. Mas arealidade tecnológica «em si mesma» nunca pode ser acausa da vida atribulada das pessoas e das forças com-pulsivas; estas são sempre provocadas pela utilização quefazemos da técnica e do seu ajustamento à estrutura social.Devemos temer, não tanto o poder destruidor das bombasnucleares, como o poder dos seres humanos ou iriaisexactamente das interconexões humanas. O perigo nãoreside no progresso da ciência e da tecnologia, mas nomodo como são usadas as descobertas científicas e asinvestigações tecnológicas sob pressão da sua estreitainterdependência, reside nas lutas comuns pelas oportu-nidades de distribuição de toda a espécie de poder. Poucose dirá destes problemas agudos nas páginas que se seguemdesta introdução à sociologia. É preocupação fundamentaldesta obra promover a evolução de um pensamento e deuma imaginação sociais relativamente à percepção dasinterconexões e configurações elaboradas pelas pessoas.Mas poderá ser útil como introdução, lembrar os pro-blemas agudos que afligem as interconexões sociais.

A fixação mental em fenômenos familiares e tangíveiscomo bombas nucleares e máquinas, ou, num sentido maislato, na ciência e na tecnologia, obscurecendo as causassociais de medo e de mal-estar, é sintoma de uma dascaracterísticas fundamentais da nossa época: esta residena discrepância entre, por um lado, a nossa capacidaderelativamente grande de ultrapassarmos — de um modoadequado e realista — problemas causados por aconteci-mentos naturais extra-humanos, e, por outro, a nossa limi-tada capacidade de resolver com a mesma segurança osproblemas de coexistência humana.

Embora possa parecer estranho, temos dois níveis depensamento já adquiridos. No domínio dos fenômenosnaturais, todos esses processos são elevada e crescente-

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mente realistas. Este domínio pode ser infinito. Mas den-tro dele, cresce contínua e cumulativamente o capital deconhecimentos científicos pouco seguros. O nível de auto-disciplina é relativamente elevado, e uma visão pessoal,egocêntrica, é contrariada por um controlo mútuo rela-tivamente eficiente, por parte de todos os investigadores,orientando as suas observações e pensamento essencial-mente para os objectos da sua investigação. Há relativa-mente pouco espaço para que as fantasias egocêntricas eetnocêntricas influenciem os resultados da investigação,pois estes são postos em cheque e descontados por meiode uma comparação atenta em cada fase ou momento dainvestigação. O elevado grau de auto-controlo na conside-ração dos fenômenos naturais e o correspondente grau decentração nos objectos, o realismo e a «racionalidade» depensamento e de acção nestes domínios, já não são exclu-sivos de investigadores especializados. São hoje atitudesbásicas sustentadas por pessoas de todas as sociedadesindustriais mais desenvolvidas. Na medida em que toda anossa vida, mesmo nos seus aspectos mais íntimos, foiinvadida pela técnica, estes princípios governam todos osnossos pensamentos e acções. Contudo, há ainda lugar nanossa vida privada para fantasias egocêntricas sobre osfenômenos naturais, embora na maior parte das vezesexista uma perfeita consciência de que não passam defantasias pessoais.

Em contraste, há nas mesmas sociedades um campoimenso para fantasias egocêntricas e etnocêntricas, queconstituem factores decisivos de percepção, pensamento eacção, em áreas da vida social não relacionadas com pro-blemas técnicos e científicos. No domínio das ciênciassociais nem sequer os investigadores dispõem de padrõescomuns para um controlo e auto-controlo mútuos, factoque lhes permitiria examinar o trabalho dos seus colegascom tanta segurança como fazem os seus homônimosdas ciências naturais. Nem para eles é fácil distinguiraquilo que constitui um produto arbitrário da fantasiaou de ideais políticos ou nacionalistas, daquilo que éum modelo da realidade, teoricamente orientado e veri-ficável numa investigação empírica. E em grande parte dasociedade os padrões sociais de pensamento sobre pro-blemas sociais ainda permitem que nos entreguemos àsnossas fantasias, sem as reconhecermos como tal. Isto fazlembrar a quantidade de fantasias que havia na IdadeMédia sobre os acontecimentos naturais. Nesta época, osestrangeiros, particularmente os judeus, eram considera-

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dos responsáveis pelos surtos de peste tendo muitos delessido massacrados. Neste tempo, não se conhecia umacausa mais científica e realista para explicar estas mor-tíferas epidemias maciças.

Como acontece tantas vezes, os grupos dominantesconvertiam em fantasias a sua ansiedade (tal como hoje,não controlada por um saber mais realista), o seu medodos horrores inexplicáveis da peste e a sua cólera apaixo-nada contra aquilo que percepcionavam como um ataqueincompreensível, fantasias pelas quais viam nos estrangei-ros e nos grupos socialmente mais fracos a causa do seupróprio sofrimento. O resultado era o assassinato emmassa. Durante o século XIX, as sociedades européiasforam atacadas por várias epidemias de cólera. Graçasao desenvolvimento do controle estatal no que respeitaao domínio da saúde pública, graças ao progresso dosconhecimentos científicos e à difusão de explicações cien-tíficas para a epidemia, esta infecção foi finalmente con-trolada. No século XX, tanto a competência da ciênciacomo o grau de prosperidade social cresceram, tornandopossível que teorias sobre a higiene pública se concreti-zassem em medidas preventivas. Assim, pela primeira vezdesde que a densidade populacional começou a aumentar,os europeus estão quase livres da ameaça de uma doençaepidêmica e quase se esqueceram dela. No entanto, osnossos pensamentos e acções, no que diz respeito à coexis-tência social, estão quase no mesmo nível de desenvolvi-mento que o pensamento e comportamento dos medievais,no que respeitava à peste. Em assuntos sociais, ainda hojeas pessoas estão sujeitas a pressões e ansiedades que nãoconseguem compreender. Como não conseguem viver naangústia, sem que para tal tenham uma explicação, preen-chem os lapsos de compreensão com fantasias.

No nosso tempo, o mito Nacional Socialista foi umexemplo deste tipo de interpretação para a inquietaçãoe angústia sociais. Para elas procurou alívio através daacção. Também aqui, tal como no caso da peste, a ansie-dade e inquietação sobre as misérias sociais encontraramsaída em explicações fantasiosas, que consideravam asminorias socialmente fracas como agitadoras e culpadas,levando consequentemente ao seu extermínio. Constatamosque é característica do nosso tempo a coexistência deuma compreensão factual altamente realista, no que res-peita a aspectos físicos e técnicos, e de soluções fanta-siosas dadas aos problemas sociais, problemas esses que

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actualmente não queremos ou ainda não conseguimosexpücar e ultrapassar com mais eficiência.

A esperança do Nacional Socialismo em resolver pro-blemas sociais com o extermínio dos judeus surge comoum exemplo máximo do que ainda prevalece universal-mente na vida social da humanidade. No entanto, demons-tra a função desempenhada pelas explicações fantasiosaspara a miséria social e para a ansiedade, cujas verdadeirascausas não podemos ou não queremos ver. Simultanea-mente, é sintomática de um dualismo significativo do pen-samento contemporâneo — que haja como que uma capade respeitabilidade dada pelas ciências naturais e pelabiologia a envolver uma fantasia social.

A palavra fantasia parece inofensiva. Não se trata dediscutir se a fantasia desempenha um papel indispensávele construtivo na vida humana. Tal como a capacidade deapresentar uma série de expressões faciais, de nos rirmosou de chorarmos, a elevada capacidade que o homem temde fantasiar é sua característica exclusiva. Mas aqui refe-rimo-nos à fantasia de um determinado tipo, ou mais pro-priamente a fantasias que são erradamente aplicadas àvida social. Quando não controlado pelo conhecimento dosfactos, este tipo de fantasia, especialmente numa ocasiãode crise, coloca-se entre os impulsos mais falíveis e mesmomais assassinos que governam a acção humana. Nestassituações, as pessoas não precisam de ser loucas para darlivre curso a estes impulsos.

Hoje gostamos de pensar que o elemento de fantasia,que desempenha um papel importante na orientação dasacções e idéias de um grupo relativamente às suas metas,não é mais do que um esconderijo — um disfarce sedutore excitante de propaganda. Imaginamos que líderes astu-ciosos a usam para esconder os seus fins arrojados que,em termos dos seus «próprios interesses», são altamente«racionais» ou «realistas». É claro que por vezes o são.Mas quando usamos o conceito de «razão» em expressõestais como «razões de estado» e o conceito de «realismo»em termos como Realpolitik e muitos outros conceitossemelhantes, ajudamos a reforçar a idéia já muito difun-dida de que as considerações racionais objectivas e realis-tas são geralmente as que dominam, quando há gruposÇ[ue lutam. A utilização do conceito de ideologia — mesmoPor parte dos sociólogos — mostra a mesma tendência.Porém, num estudo mais aprofundado, não é muito difícilverificarmos que tanto idéias realistas como fantasiosasinipregnam grandemente a concepção de «interesses de

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grupo»! Planos de mudança social realizados de um modorealista e metódico — mesmo temporários — traçados coma ajuda de modelos científicos de desenvolvimento, sãouma inovação muito recente. Muitas vezes os própriosmodelos de desenvolvimento são ainda muito imperfeitos,não correspondendo adequadamente às estruturas sociaissempre mutáveis a que se referem. Até agora, a histórianão tem sido mais do que um cemitério de sonhos huma-nos. Os sonhos realizam-se muitas vezes a curto prazo;contudo, no seu longo curso, parecem sempre acabar esva-ziados de toda a substância, sendo, portanto destruídos.A causa é que esperanças e objectivos a alcançar estãode tal forma saturados de fantasia, que o actual cursode contecimentos na sociedade lhes desfere golpes con-secutivos e o choque com a realidade revela a sua irrea-lidade, como sonhos que são. A esterilidade particular demuitas análises de ideologias resulta da tendência paraas considerarmos basicamente como estruturas racionaisde idéias, coincidindo com actuais interesses de grupos.A sua carga de afectividade e de fantasia, a sua faltaegocêntrica ou etnocêntrica de realidade é omitida, poispresumimos que elas são uma camuflagem calculada paraum conteúdo altamente racional.

Como exemplo, consideramos a situação de conflitoentre as grandes potências. Esta persiste desde a SegundaGuerra Mundial, tendo influenciado e obscurecido de ummodo sempre crescente os conflitos entre estados em todoo mundo. Parece que os representantes de cada uma dasgrandes potências pensam possuir um carisma nacionalúnico e que só eles e os seus ideais estão aptos a gover-nar o mundo. É muito difícil descobrir qualquer realconflito de interesses justificativo da grande escalada depreparação para a guerra.

As diferenças sociais práticas entre esses representan-tes são obviamente muito menores de que seria de espe-rar, se tivermos presentes os contrastes nítidos entre osseus sistemas de crenças e de ideais. Muito mais do quequalquer conflito real de interesses, o que faz com queas grandes potências — e não só elas — sejam reciproca-mente tão dura e irremediavelmente hostis é a colisão dosseus sonhos. Este antagonismo, que hoje assume umadimensão mundial, assemelha-se consideravelmente na suaestrutura ao antagonismo existente numa antiga Europa,em que os sonhos de príncipes e generais protestantes ecatólicos se chocavam. Nesses tempos, as pessoas eramtão apaixonadamente ávidas de matar-se indiscriminada-

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mente umas às outras, devido aos seus sistemas de cren-ças, como hoje parecem desejosas de matar indiscrimina-damente, pela simples razão de que alguns preferem osistema de crenças dos russos, outros o dos americanose outros o dos chineses. Tanto quanto podemos observar,é essencialmente a contradição entre os sistemas de cren-ças dos estados e o seu sentido carismático de uma mis-são nacional que torna este tipo de interligação opaco eincompreensível para aqueles que são apanhados nela,o que, por conseguinte, os torna incontroláveis. (Inciden-talmente, os sistemas nacionais de crenças têm pouco aver com a análise feita por Marx do antagonismo de clas-ses dentro dos estados, análises que, nessa altura, foi muitoadequada).

Também isto é um exemplo da dinâmica das inter-conexões sociais, cuja investigação sistemática cabe àsociologia. A este nível, as configurações são formadas porgrupos interdependentes de pessoas, organizados em esta-dos e não por indivíduos singulares interdependentes. Mas'também aqui, as unidades a que as pessoas se referem naprimeira pessoa — não só o «eu» singular mas também o«nós» plural — são experienciadas como se fossem total-mente autônomas. Quando crianças, na escola, já tinhamaprendido que o estado possuía uma «soberania» ilimi-tada, que era conceptualmente independente dos outrosestados. A imagem etnocêntrica da humanidade divididaem estados nacionais é análoga à imagem egocêntricaexpressa na figura 1. As elites dominantes e muitos dosseus seguidores em cada nação (ou pelo menos em cadagrande potência) imàginam-se no centro da humanidade,como se estivessem numa fortaleza, reprimidos e rodeadospor todas as outras nações e, no entanto, separados delas.Também neste caso, ainda não se alcançou propriamenteo estádio de autoconsciência em pensamento e acção,expresso na figura 2 — tomando-se aqui como unidade debase as nações e não os indivíduos singulares.

Presentemente, ainda mal começou a esboçar-se a con-cepção da nossa própria nação como sendo uma entremuitas outras interdependentes e a compreensão da estru-tura das configurações que todas formam. É raro encon-trarmos um modelo sociológico inteligível da dinâmica dasrelações entre os estados. Tomemos, por exemplo, a dinâ-mica da «guerra fria» entre as grandes potências. Ambas48 partes envolvidas procuram aumentar o potencial doSeu próprio poder, à custa do medo perante o potencialde poder do adversário. Assim se justificam os seus receios

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recíprocos. Continuam, portanto, a aumentar cada vez maiso seu próprio poder o que, por sua vez, instiga o rival afazer um esforço correspondente. Como não há nenhumárbitro com suficiente poder para os fazer sair deste becosem saída, a não ser que ambos os lados se apercebamsimultaneamente da dinâmica imanente da configuraçãoque formam em conjunto, as forças compulsivas farãoesforços contínuos para aumentar inevitavelmente o seupotencial de poder. Mas os blocos rivais interdependentese especialmente os oligarcas do partido em ambos os ladosnão intuem isto. A sua crença fundamental é que o seupróprio perigo e os esforços constantes para aumentaro seu potencial de poder se podem explicar totalmente seapontarmos para o outro lado, para os rivais de momento,com o seu «sistema social errado» e as suas «perigosascrenças nacionais». As nações são ainda incapazes de seolharem a si mesmas como componentes integrais de umaconfiguração, cuja dinâmica as obriga a fazer estes esfor-ços. A rigidez do sistema antagônico de crenças impede, osoligarcas dos partidos dominantes de ver claramente queeles próprios, as tradições do seu partido e os ideaissociais com os quais justificam as suas pretensões gover-nativas, estão constantemente a perder credibilidade. Estafalha de credibilidade deve-se ao contributo que vão dandoà hipótese de uma confrontação bélica perigosa, ao factode desperdiçarem em material de guerra os recursos cria-dos pelo trabalho humano e, finalmente, à sua actual uti-lização de força. Aqui novamente e, desta vez, de formaparadigmática, encontramos um domínio altamente rea-lista do meio físico e tecnológico, coexistindo com umaabordagem fantasiosa de problemas interpessoais sociais.

Olhando em-volta, não é difícil encontrar mais exem-plos desta discrepância. Contudo, há muita gente que hojeacredita ser possível uma abordagem dos problemas sociaisdo ponto de vista da sua própria «racionalidade» intrín-seca, independentemente do actual estádio de desenvolvi-mento do conhecimento e pensamento sociológicos e, noentanto, com a mesma «abordagem objectiva» que umfísico ou um engenheiro trazem aos problemas científicosou tecnológicos.

Assim, de um modo geral os governos actuais defen-dem — talvez de boa fé — que conseguirão ultrapassar deum modo «racional» e «realista» os seus problemas sociaismais prementes. Mas a verdade é que só conseguem preen-cher as lacunas do nosso ainda muito rudimentar conhe-cimento dos factos sociais, no que respeita à dinâmica das

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interconexões sociais, com doutrinas dogmáticas, panaceiasou considerações de interesses partidários a curto prazo.Como apenas por acaso tomam medidas, ficam à mercêdos acontecimentos e os governos percebem tão pouco doencadeamento destes como pouco percebem das pessoasque governam. Entretanto, os governados submetem-se aosseus chefes, confiando a estes a tarefa de empenhar osriscos e dificuldades com que a sociedade se depara eexigindo-lhes que, pelo menos, saibam para onde cami-nham. Quanto à máquina governativa, à burocracia, talveznão seja deslocado dizer, como Max Weber, que a estru-tura das burocracias e as atitudes dos burocratas se tor-naram mais racionais se as compararmos com as dosséculos anteriores; mas será pouco correcto pretendermos,como Max Weber na realidade pretendeu, que a burocraciacontemporânea é uma forma racional de organização eque o comportamento dos seus funcionários é um com-portamento racional. Isto é altamente enganador. Comoexemplo, apontemos apenas um aspecto: a burocracia tendehoje a reduzir as interdependências sociais complexas adepartamentos administrativos singulares; cada um delestem a sua área de jurisdição estritamente definida, sendoequipados com uma hierarquia de especialistas e uma oli-garquia de chefes administrativos, que raramente pensampara além da sua própria área de competência. Este tipode burocracia está muito mais perto de uma organizaçãotradicional que, na verdade, nunca foi racionalmente pla-neada, do que de uma organização clara e cuidadosamentepensada, cuja adequação às funções que desempenhadeverá estar constantemente sujeita a revisões.

Este exemplo basta. Talvez que com a sua ajuda sedetectem mais claramente certas preocupações fundamen-tais da sociologia. O facto das sociedades humanas seremconstituídas por seres humanos, por nós próprios, levaa que esqueçamos muito facilmente que o seu desenvol-vimento, estrutura e funções dos domínios físico-químicose^biológicos. E é importantíssimo que haja uma compreen-são gradual e crescente de todos os domínios. Os contactosque temos uns com os outros são tão banais e quotidianos,que facilmente escondem o facto de que somos actualmenteP objecto de investigação menos conhecido; somos tãoignorados no mapa dos conhecimentos humanos como osPólos terrestres ou a face da lua. Muita gente tem medode explorar mais profundamente este domínio, tal comooutrora, se temiam as descobertas científicas sobre o orga-nismo humano. E tal como antigamente, há pessoas que

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argumentam que as investigações científicas feitas em indi-víduos humanos por indivíduos humanos — algo que nãoquerem — são simplesmente impossíveis. Mas como homens,a quem falta uma compreensão mais sólida da dinâmicadas interconexões sociais, vogando desamparados de actosinsignificantes de autodestruição para outros muito maisgraves, e de um deslize para outro, tal ignorância român-tica perde muito do seu encanto como permissão paratodos os sonhos.

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A SOCIOLOGIA

- AS QUESTÕES POSTAS POR COMTE

Seja ou não sociólogo, quem abordar com idéias pré--concebidas as obras de grandes homens que durante oséculo XIX fizeram evoluir a ciência da sociedade, priva-sede uma herança intelectual importante. Vale a pena sepa-rar algumas das idéias que ainda são de utilidade na ten-tativa de construir uma análise científica das sociedades,das que são mera expressão dos valores transitórios daépoca. Enquanto a nossa concepção da herança marxistatem sido demasiadas vezes distorcida por ódios e louvores,Augusto Comte (1798-1851), que foi o primeiro a destacara palavra «sociologia» para título expresso de uma novaciência, tem sido muito menos falado.

A marca da herança de Comte (que. é como que umfantasma presente nos livros de estudo) apresenta-se comouma peça poierenta de museu. E podemos, na verdade,deixar alegremente ao pó uma parte considerável dos seusescritos. Comte escreveu muito. O seu estilo foi muitasvezes pomposo. Tinha obsessões, como por exemplo anoção de que todas as coisas importantes eram triparti-das — e muito provavelmente foi um tanto ou quantolouco. E, no entanto, se limparmos as suas idéias do pódas manias, excentricidades e perturbações, encontramosna obra de Comte conceitos que são virtualmente novos,idéias que foram parcialmente esquecidas ou mal com-preendidas e que são, a seu modo, tão importantes para° desenvolvimento da sociologia como as de Marx — quesairia do túmulo se soubesse que ele e Comte poderiamvir a ser mencionados num mesmo momento. Mas a dis-Paridade entre as suas atitudes políticas e os seus ideaisnão deveria constituir obstáculo. Aqui, eles não represen-

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tam a salvação. Para sermos categóricos, Comte foi umgrande homem, e a discrepância entre os problemas quelhe dizem respeito e as idéias que geralmente lhe sãoatribuídas é, na maior parte dos casos, espantosa. Nemsempre é fácil encontrar as razões desta discrepância enão será aqui que o faremos. Comte fez muito mais parao desenvolvimento da sociologia do que simplesmentearranjar-lhe uma designação. Como todos os pensadores,Comte construiu a partir daquilo que os seus antecessoresjá tinham produzido. Não vamos analisar detalhadamentequais as idéias que Comte foi buscar a Turgot, Saint-Simone outros autores e quais das suas idéias foram totalmenteoriginais. Ninguém começa do nada; todos começam ondeoutros ficaram. Comte definiu uma série de questões deum modo mais claro do que os seus predecessores. Trouxenova luz para uma quantidade de problemas. Muitos foramhoje esquecidos, embora tenham um grande significadocientífico. Da sua rejeição podemos inferir que a ciêncianão progride em linha recta.

Considera-se Comte não só como o pai da sociologia,mas também como o fundador do positivismo filosófico.A sua primeira grande obra, que apareceu em seis volu-mes entre 1830 e 1842, foi o Cours de philosophie positive.A palavra «positivo» foi usada por Comte como sinônimade «científico», entendendo por este termo a aquisição deconhecimentos por meio de teorias e observações empí-ricas1. Comte passou a ser chamado «positivista». E umpositivista é habitualmente considerado como aquele quedefende a teoria da ciência que sustenta serem e cogniçãoe o trabalho científico exclusivamente baseados na obser-vação a partir da qual se constróem as teorias. A idéiade que Comte foi um positivista deste tipo é uma dasmuitas distorções a que foi sujeito o seu pensamento.De tempos a tempos, as pessoas troçam da ingenuidadedeste «positivismo grosseiro». Admiram-se como foi pos-sível imaginar que se podem fazer observações não havendopreviamente uma teoria determinante da selecção de factosa observar e uma definição do problema ao qual esperá-vamos responder por meio da dita observação. E, noentanto, ninguém melhor do que Comte salientou explí-cita e consistentemente a interdependência da teoria e daobservação, como núcleo de todo o .trabalho científico.

Pois se, por um lado, toda a teoria positiva deve necessa-riamente basear-se na observação, por outro, é também verdadeque, para que se possam efectuar observações, os nossos espí-

ritos necessitam de uma teoria. Se, ao considerarmos os fenô-menos, os não relacionarmos imediatamente com alguns princí-pios, não só nos seria impossível relacionar estas observaçõesisoladas e, por conseguinte, tirarmos delas um significado, comotambém seríamos totalmente incapazes de as recordar e, namaior parte dos casos, os factos passariam despercebidos2.

A interacção constante destas duas operações mentais,dirigidas para a síntese teórica e os pormenores empí-ricos, é uma das teses fundamentais de Comte. Ele foitudo menos um positivista no actual sentido do termo;não acreditava que o trabalho científico resultasse de umapura indução da observação de coisas particulares, for-mando-se amplas teorias baseadas em observações parti-culares, como se fossem quase sua conseqüência. Comtenegou tão energicamente esta idéia como contrariou aasserção de que a investigação científica proviesse deteorias puras, formuladas sem qualquer referência aosfactos, ou de hipóteses primeiramente formuladas arbitrá-ria e especulativamente, só mais tarde confrontadas comos factos. Comte tinha boas razões para contar tão defi-nitivamente com uma tradição filosófica em que se tinhaprocurado provar incessantemente que uma destas opera-ções mentais deveria ter precedência sobre a outra. Duranteséculos, deducionistas e inducionistas, racionalistas e empi-ristas, aprioristas e positivistas ou quaisquer que fossemas designações que reciprocamente se davam, tinham lutadocom uma obstinação tenaz. Ora é um leitmotiv da teoriacomtiana da ciência, que a investigação científica repousanuma combinação indivisível de interpretação e observa-ção, de trabalho teórico e empírico.

A sua insistência constante no caracter positivo e cien-tífico de toda a investigação explica-se pelo facto de ele,como filósofo com experiência científica, se ter voltadodeterminantemente contra a filosofia dos séculos anteriores.Rejeitou muito particularmente a filosofia do século XVIII,cujos representantes se permitiam concluir proposiçõessem as consubstanciar por meio de uma relação sistemá-tica com a observação. Muitas destas proposições eram for-muladas de tal modo que não podiam ser contestadas pelosfactos observados. Comte, escolhendo a designação de «posi-tiva» para a sua filosofia, exprimiu a sua rejeição cons-ciente desta filosofia especulativa. Ela não tinha relaçõescom o trabalho científico e não progredia cientificamente.A representação distorcida de um Comte «arquipositivista»,Usando o termo no sentido diametralmente oposto às suas

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verdadeiras opiniões, demonstra uma vingança inconscientepor parte daqueles filósofos que continuaram a trabalharnos moldes da antiga tradição. Embora as soluções propos-tas por Comte nem sempre resultassem, embora a sua lutaconstante para exprimir conceitos novos com velhas for-mas de discurso nos torne difícil uma compreensão retros-pectiva dessas idéias novas, e embora uma tradução malfeita e incompreensível tenha obscurecido a obra de Comte,o seu modo de definir os problemas ainda surge como algode fresco e frutífero.

Três dos problemas que Comte levantou e tentou resol-ver na sua Philosophie positive têm particular importâncianuma introdução à sociologia. Comte procurou:

1. Desenvolver uma teoria sociológica do pensamentoe da ciência.

2. Determinar as relações entre os três mais impor-tante grupos de ciências do seu horizonte — asciências físicas, biológicas e sociológicas.

3. Estabelecer na estrutura do seu sistema de ciên-cias uma autonomia relativa da sociologia face àfísica e à biologia — uma autonomia firmementealicerçada na diferente natureza e finalidade doseu objecto fundamental — e determinar os méto-dos de actuação mais adequados para a sociologia.

A sua formulação de todos estes problemas está estrei-tamente ligada a uma intuição fundamental, comum a mui-tos pensadores da sua época: a de que as mudanças sociaisnão se podiam explicar simplesmente em termos de finse actuações de pessoas singulares, não se podendo comcerteza explicar pela acção exclusiva dos príncipes e dosgovernantes. Portanto, a sua tarefa seria chegar a instru-mentos de pensamento que nos permitissem reconhecerque os processos gradualmente compreendidos como rela-tivamente impessoais podiam ser expressos teoricamentecomo tal. As únicas categorias e conceitos então dispo-níveis como modelos para este fim tinham a sua origemnas ciências físicas e biológicas. Assim, durante muitotempo, recorreu-se inadvertidamente a instrumentos con-ceptuais, que tinham sido aplicados na resolução de pro-blemas físicos e biológicos, usando-os para resolver proble-mas sociológicos; isto ainda hoje acontece. Contudo, paraalém disso, era difícil distinguir claramente entre a «natu-reza» no sentido antigo das ciências naturais e os pro-cessos novos então em vias de descobrimento, a que hoje

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chamamos «sociedade». Quanto a isto, Comte deu um passoera. frente. Como estudante e mais tarde como professore examinador na famosa Ecole Polytechnique, adquiriuuma educação científica e matemática mais sólida do quea da maioria dos homens do seu tempo que se dedicavama problemas sociológicos. Compreendeu mais claramentedo que os seus predecessores que a investigação científicada sociedade não podia ser levada a cabo do mesmo modoque as ciências naturais, como se fosse um outro tipo defísica. Diz-se muitas vezes que Comte inventou o termo«sociologia» para a nova ciência. Mas a razão por queinventou uma nova designação foi o ter compreendido quea ciência da sociedade era um novo tipo de ciência; e estaciência não podia abrigar-se sob o mesmo guarda-chuvaconceptual da física e da biologia. O avanço decisivo deComte foi reconhecer a autonomia relativa da ciência dasociedade vis à vis das ciências mais antigas. Dando umnome novo a esta nova ciência expressou claramente estaidéia decisiva.

Comte considerou função essencial da nova ciência,detectar as regularidades tendenciais do desenvolvimentosocial. Para ele, como para muitos outros pensadores doséculo XIX, o problema básico centrava-se nas questõesprementes postas às elites intelectuais pelo desenvolvi-mento do progresso social e pela situação da burguesia eda classe trabalhadora adentro desse progresso. Pára ondevamos? Onde nos leva o desenvolvimento da humanidade?Será que se orienta na «direcção devida» e será essa adirecção dos meus objectivos e ideais? O modo como Comteataca estas questões trai o velho dilema que sempre con-frontou os filósofos. Tanto para eles como para os outros,aparecem como especialistas do pensamento. Portanto, o seupensamento centra-se muitas vezes na mente humana, nasua capacidade de pensar, na razão humana como chavede todos os aspectos da humanidade. Um pouco comoHegel — sem no entanto se exprimir de um modo meta-físico— Comte considerou umas vezes a evolução do pen-samento humano como apenas um dos problemas chavee outras vezes como o problema chave da evolução dahumanidade.

Marx foi o primeiro a afastar-se desta tradição comcerta determinação. Neste ponto, Comte manteve-se imper-turbavelmente dentro da tradição filosófica. E, no entanto,Para quem examine o problema mais de perto, é nítido queele cortou realmente com a tradição filosófica em trêsPontos decisivos. A sua ruptura teve conseqüências que

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ainda hoje não foram totalmente compreendidas, pois opróprio Comte muitas vezes só as esboçou levemente enuma linguagem um tanto ou quanto antiquada. Mas oimpulso que deu foi muito significativo para o desenvol-vimento da sociologia e para a filosofia da ciência.

VÊ UMA TEORIA FILOSÓFICA DO CONHECIMENTOA UMA TEORIA SOCIOLÓGICA DO MESMO

A teoria clássica do conhecimento e da ciência exa-mina o que acontece quando «o sujeito», um indivíduosolitário, pensa, percepciona e realiza um trabalho cientí-fico. Comte cortou com esta tradição. Parecia-lhe estranhaaos factos observáveis. O pensamento e investigação huma-nos são muito mais um processo contínuo ao longo degerações. O modo como uma pessoa individual pensa,percepciona e realiza um trabalho científico cimenta-se nosprocessos de pensamento das gerações anteriores. Paracompreendermos e explicarmos como é que se iniciamestas actividades, também temos que examinar o processosocial a longo prazo da evolução do pensamento e doconhecimento. A transição de uma teoria filosófica parauma teoria sociológica do conhecimento, o que Comte reali-zou, surge essencialmente como a substituição da pessoaindividual, enquanto sujeito'' de conhecimento, pela socie-dade humana. Se Comte considerava as questões relativasao pensamento centrais para o problema da sociologia,nunca tornou sociológica a nossa concepção do sujeitopensante.

DO CONHECIMENTO NÃO CIENTIFICOAO CONHECIMENTO CIENTIFICO

Na filosofia clássica européia, o pensamento «racional»— que encontra a sua expressão mais nítida nas ciênciasnaturais — é encarado como o tipo normal de pensamentopara todos os seres humanos. As teorias clássicas do conhe-cimento e da ciência não têm reconhecido que este tipo depensamento só surgiu numa fase tardia da evolução humanae que durante grande parte desse período de desenvolvi-mento as pessoas não se esforçavam por obter conhecimen-tos de um modo científico. Qualquer teoria deste gêneroera posta de lado. Para Comte, tornou-se uma questão cen-

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trai o problema das relações entre formas científicas e nãocientíficas de conhecimento. É característico da sua atitudesociológica o não ter considerado o pensamento pré-cientí-fico fundamentalmente pela sua validade, encarando-o sim-plesmente como facto social. É um facto observável, diziaele, que todo o conhecimento científico surge de idéias econhecimentos não científicos. Formulou esta intuição comouma regularidade tendencial do desenvolvimento social:

...Cada uma das nossas idéias fundamentais, cada ramodo nosso conhecimento, passa sucessivamente por três diferen-tes estados teóricos: o estado teológico ou especulativo, o estadometafísico ou abstracto e o estado científico ou positivo. Poroutras palavras, a mente humana, devido à sua própria natu-reza, utiliza sucessivamente em cada um dos seus campos deinvestigação três métodos de filosofar — primeiro o teológico,depois o metafísico e, finalmente, o método positivo3.

O pensamento e o conhecimento humanos podem énca-rar-se de dois modos, utilizando-se diferentes estruturas con-ceptuais. No primeiro, trata-se da concepção de pessoas indi-viduais, cada uma das quais — por sua própria iniciativa esem que a tal seja instigada — concebe a natureza como ummecanismo cego, automático, sem qualquer fim objectivo,mas funcionando no entanto de acordo com princípiosteóricos. Se rejeitarmos estas concepção, como Comte rejei-tou, e se considerarmos o conhecimento humano como oproduto final de um processo de evolução que abarca cen-tenas, talvez milhares de gerações, dificilmente poderemossaber como a procura de um conhecimento científico serelaciona com o conhecimento pré-científico. Comte tentouestabelecer uma tipologia classificatória dos estados dodesenvolvimento da humanidade. Nela assinalou que pri-meiro reflectimos sobre a natureza inanimada, depois sobrea natureza animada e, finalmente, sobre as sociedades.A nossa reflexão foi primeiramente baseada em especula-ções, na busca de respostas absolutas, concludentes e dogmá-ticas para todas as interrogações, com o desejo de explicartodos os acontecimentos emocionalmente significativos emtermos de acções, objectivos e fins de certas entidadescriadoras, sempre consideradas como pessoas. Durante afase metafísica, as explicações em termos de criadoresPersonificados são substituídas por explicações que tomama forma de abstracções personificadas. Aqui, Comte visavaespecialmente os filósofos do século XVIII, que habitual-mente personificavam abstracções tais como «Natureza»

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ou «Razão» para explicar muitos acontecimentos. Quando,finalmente, se alcança o estado do pensamento positivoou científico num ramo particular do conhecimento, deixa-sede procurar as origens absolutas ou os destinos; estes,embora possam ter um significado pessoal e emocionalbastante relevante, não encontram qualquer suporte naobservação. O objectivo do conhecimento será então o deencontrar relações entre factos reais. Numa linguagem dehoje, poderíamos dizer que as teorias são modelos de rela-ções observáveis. O próprio Comte, de acordo com o está-dio de conhecimento da sua época, ainda falou em «leis»que regulam essas relações. Hoje usaríamos termos comoregularidades tendenciais, estruturas e relações funcionais.

No entanto, para um trabalho ulterior, o problemaformulado por Comte é mais significativo do que a solu-ção por ele proposta. Uma teoria sociológica do conheci-mento e da ciência não pode pôr de lado questões rela-tivas ao desenvolvimento dos tipos de conhecimento e depensamento pré-científicos e à sua passagem ao estadocientífico, assim como não pode ignorar quais os proces-sos de transformação social que constituem o contextodeste desenvolvimento. O levantamento deste tipo de ques-tões é uma irrupção nas fronteiras até aqui fixadas poruma sociologia do conhecimento, bem como por uma teoriafilosófica do conhecimento. Classicamente, a sociologia doconhecimento limitava-se a tentar demonstrar as relaçõesque as idéias e ideologias pré-científicas tinham com asestruturas sociais. Os escritores que elaboraram conexõesentre certas idéias e a condição social particular dos seusdefensores, sempre tenderam para uma visão muito rela-tivista dessas idéias, considerando-as meras «ideologias»sem grande validade científica. A circularidade deste argu-mento pode quebrar-se, se investigarmos sobre o períodode completa mudança social durante o qual os processospré-científicos de aquisição de conhecimentos foram substi-tuídos por processos científicos. A lei comtiana dos trêsestados indicava entre outras coisas a possibilidade deconsiderarmos o desenvolvimento das idéias e processosde pensamento num contexto mais lato de mudançassociais, não os pondo simplesmente de parte como ideolo-gias falsas e pré-científicas. Comte assinalou todo estegrupo de questões mas não lhes deu resposta. No entanto,chamou-nos a atenção para um aspecto da relação entreformas científicas e pré-científicas de conhecimento, o quetem uma significado considerável para a compreensão daevolução do pensamento, de todos os conceitos que usa-

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e, finalmente, da linguagem. Mostrou que a gênesedo conhecimento científico só se pode conceber assentandonos alicerces daquilo a que chamou conhecimento teoló-gico e ao qual nós talvez chamemos simplesmente conhe-cimento religioso. A explicação comtiana deste facto mos-tra como ele era pouco «positivista». As pessoas, explicavaComte, deverão fazer observações para construir as suasteorias. Mas também terão que possuir teorias que lhespermitam fazer observações.

... a mente humana foi primeiro apanhada num círculovicioso, do qual nunca teria tido possibilidades de sair se nãotivesse felizmente encontrado uma saída natural para essa difi-culdade no desenvolvimento espontâneo de concepções teoló-gicas 4.

Aqui, Comte tocou num aspecto fundamental da evo-lução humana.

Imaginemo-nos num tempo em que a sociedade pos-suía um stock de conhecimentos muito menor. Para suaorientação, as pessoas precisavam de ter uma visão com-preensível, uma espécie de mapa que lhes mostrasse comose relacionavam reciprocamente os fenômenos naturaisque percepcionavam. Hoje, devido ao nosso próprio stockde experiências, sabemos que as teorias (mostrando comoos fenômenos individuais se relacionam uns com os outros)são extremamente úteis para a nossa orientação, permi-tindo-nos controlar os acontecimentos, quando são produ-zidos com um feedback constante, proveniente da obser-vação. Porém, nos tempos primitivos, as pessoas não tinhamuma experiência que lhes permitisse saber que a obser-vação sistemática lhes ensinaria algo sobre as relaçõesentre os factos. E, no entanto, é indispensável que hajamodelos dessas relações, para que nos orientemos nonosso mundo, que se construa aquilo a que hoje chama-mos teorias, com base no que Comte descreveu como acapacidade espontânea do homem para formar imagensdas relações entre factos por meio da imaginação e dafantasia. Esta explicação, dada por Comte na sua lei dostrês estados, sublinha mais uma vez a produtividade deuma teoria do conhecimento baseada na sociologia da evo-lução. É um começo que precisa de ser examinado maisde perto; mas o modelo intelectual que aqui se sublinhaé certamente merecedor de uma atenção maior do quea que até agora tem recebido.

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A INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA DAS CIÊNCIAS

A tradição filosófica da epistemologia e a teoria daciência que a acompanha repopsam numa hipótese sobrea relação entre a forma e o conteúdo do pensamento;ou, expresso de outro modo, entre as categorias e os ingre-dientes do conhecimento, ou entre o método científico eos objectos da ciência. Esta hipótese tem sido transmitidade gerações para gerações e indubitavelmente aceite comoevidente. Afirma que a «forma» do pensamento humanoé eterna e imutável, por muito que o seu conteúdo possamudar. Esta asserção corre como um fio inquebrável aolongo de muitas discussões da teoria filosófica do conhe-cimento. Considera-se que a ciência se identifica pela uti-lização de um método particular e não pelo caracter espe-cífico do seu objecto fundamental. Comte opôs-se decidi-damente a esta separação entre forma e conteúdo, métodocientífico e objecto científico, pensamento e conhecimento.Pode-se fazer uma distinção, dizia, mas não uma divisão.

Para que em cada instância do conhecimento haja umacorrespondência com a natureza específica e com a complexi-dade dos fenômenos, o método deve ser variado na sua aplica-ção e amplamente modificado. Assim, todas as concepções queo encaram como algo de geral são demasiado vagas para teremqualquer utilidade. Nos ramos mais simples das ciências,o método e a teoria não se separam: abstenhamo-nos entãode os separar quando estudamos os fenômenos complexos davida social... Portanto, não tentei fazer um cômputo da meto-dologia da sociologia antes de ter lidado deste modo com aciência5.

Comte referia-se aqui a um problema que desde entãotem sido posto de lado: a questão de como as formas depensamento se relacionam com o conhecimento. Há provassuficientes de que o conhecimento humano se altera àmedida que evolui e de que tem aumentado, abarcandoáreas cada vez mais latas de experiência com maior con-fiança e adequação. Basta-nos considerar o controlo cres-cente e cada vez mais amplo que exercem sobre as seqüên-cias de acontecimentos que nos influenciam. E, no entanto,mesmo nos nossos dias, imaginamos que embora o conhe-cimento possa mudar e crescer há ainda uma lei eterna eimutável subjacente à capacidade humana de pensamento.Mas a nossa distinção entre a «forma eterna de pensa-mento» e os seus «conteúdos mutáveis» não se baseia

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numa investigação dos factos verdadeiros. Baseia-se antesna necessidade humana de segurança — a necessidade dedescobrir algo de absoluto e de imutável para além dasuperfície mutável. Muitos conceitos e hábitos de pensa-mento, profundamente enraizados nas línguas européias,apoiam a idéia de que o processo de pensamento é natural,necessário, produtivo e aplicável a todos os problemas,especialmente aos problemas científicos. É o processo dereduzir mentalmente tudo o que se observa como variávele mutável a um estado absolutamente imutável. Uma obser-vação mais atenta mostra-nos que a tendência que temospara reduzir tudo o que muda a algo de imutável tem aver com um juízo de valor até então não discutido, queComte diagnosticou como um sintoma do modo teológicode pensamento. Considera-se evidente que aquilo que éem si mesmo imutável e que.pode ser detectado em ouna base de toda a mudança, é mais valioso do que a pró-pria mudança. Este juízo de valor exprime-se na teoriafilosófica do conhecimento e da ciência — na idéia de quehá formas eternas de pensamento, representadas por «cate-gorias» ou 'regras a que chamamos «lógicas», subjacentesa todas as comunicações interpessoais de idéias atravésdos séculos, quer orais quer escritas.

Tanto neste caso como noutros, a idéia de que asregras de lógica supostamente imutáveis constituem narealidade padrões regulares presentes em todo o pensa-mento humano, assenta numa confusão (que passa desper-cebida) entre factos e valores. Aristóteles, que deu ao con-ceito de lógica o seu significado monumental, compreendeuisto essencialmente, atribuindo-lhe regras, de argumentação,instruções sobre o modo como se deveriam construir osargumentos de uma discussão filosófica e como se pode-riam demonstrar os erros do adversário. A idéia de quea «lógica» devia constituir a prova da existência de leiseternas do pensamento só foi associada à herança aristo-télica nos fins da Idade Média ou mesmo depois. Quandohoje se usa o termo «lógica» confunde-se muitas vezes umaasserção — que as leis da lógica são eternas e universal-mente aplicáveis — com outra — que essas leis têm sido abase do pensamento das pessoas, observáveis em cadasociedade e em cada época. O mesmo se passa com aasserção de que existe apenas um único método científico.Também aqui aquilo que é norma e ideal é representadocomo um facto. A transição iniciada "por Comte de umateoria filosófica do conhecimento e do pensamento parauma teoria sociológica, baseou-se, entre outras coisas, no

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facto de Comte ter deslocado do centro da teoria a ques-tão de como é que a ciência deveria ser conduzida. Preo-cupou-se mais em descobrir quais eram exactamente ascaracterísticas específicas do método científico, caracterís-ticas que distinguiriam o pensamento científico do pré--científico. Uma teoria científica da ciência só pode partirde um exame positivo e científico daquilo que as ciênciasconseguem realizar, e ter na sua base uma pesquisa cien-tífica, que considera as próprias ciências como o seuobjecto fundamental. Ao longo destas linhas, depressa severifica ser expressão de um determinado juízo de valora idéia de que um método científico particular, geral-mente o da física, possa ser aplicado a todas as outrasciências como um modelo eternamente válido. Em casoscomo este, os filósofos instituem-se juizes, decidindo comocada um deve realizar o seu trabalho para passar porcientista. Até então, tal como Comte assinalou, o desen-volvimento autônomo da sociologia tinha sido contrariadopela mistura de facto e de valor feita pela filosofia. Estaselou o método usado numa ciência singular — a físicaclássica — como se este representasse a quinta essência dométodo científico.

A abordagem tradicional que a filosofia faz aos pro-blemas é egocêntrica, pois que se limita à questão de comoé que um indivíduo pode adquirir conhecimentos cientí-ficos. Contudo, as leis imutáveis do pensamento, que apare-cem na filosofia clássica, têm que ser compreendidas comoresultado de um desenvolvimento social do pensamento edo conhecimento durante milhares de anos. Vistas sobeste prisma, surge também o problema de haver qualquerjustificação factual para a distinção tradicional entre asformas de pensamento, consideradas invariáveis e os con-teúdos variáveis do conhecimento. Certamente que é umadas realizações de Comte o facto de ter abandonado estatradição filosófica ingenuamente egocêntrica, orientada parao pensamento científico natural. Talvez tenha ido demasiadolonge ao afirmar que, em conformidade com a sua lei dostrês estados, as formas pré-científicas de pensamento devemnecessariamente transformar-se em formas científicas. Oraisto tem que estar condicionado à orientação tomada pelodesenvolvimento social total. Mas certamente que Comtenão foi longe demais ao afirmar que todos os factos cien-tíficos de pensamento surgiram de formas pré-científicas.Estas primeiras formas de pensamento a que ele chamouteológicas ou metafísicas foram os primeiros e mais espon-tâneos tipos de pensamento humano; foram talvez os mais

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adequados e melhor orientados para a realidade. Esta idéiaanuncia outra «revolução coperniciana». E, no entanto,passados mais de cem anos, as perspectivas de Comteencontraram pouco eco, não tendo nunca sido considera-das, desenvolvidas e trazidas ao conhecimento de círculossociais mais latos, como componentes do conhecimentosociológico. Este facto demonstra as dificuldades que sedepararam e ainda se deparam no caminho do cumpri-mento desta resolução.

Em tempos, considerou-se evidente que a terra repou-sava, imóvel e imutável, no centro do universo. Hoje, muitagente considera evidente que os seus próprios processosde pensamento são imutáveis para toda a humanidade.Esta idéia é constantemente reforçada pela sua própriaexperiência; estes processos científico e racional de pen-samento têm dado provas de ser cada vez mais válidosnuma investigação empírica e numa aplicação prática aospormenores técnicos da vida quotidiana. Apresentam-seinfalivelmente como os processos «certos» de pensamento;achamos que foram uma dádiva da natureza, uma mani-festação do «senso comum» ou da «razão» — algo total-mente independente do seu próprio crescimento numadeterminada sociedade ou do desenvolvimento dessa socie-dade. Não nos podemos lembrar, e também ninguém nosensina, como foi difícil para a nossa sociedade chegar aprocessos científicos de pensamento, emergentes de modospré-científicos, e como foi difícil a esses processos cien-tíficos ganhar ascendência sobre todos os estratos sociais.Isto conseguiu-se devido a um ulterior desenvolvimentode stocks de pensamento e conhecimento que tinham sidoanteriormente acumulados por muitas outras sociedadeshumanas. Mas as pessoas não estão conscientes das mudan-ças particulares e totais que foram necessárias aos paíseseuropeus a fim de lhes permitir realizar a passagem a umpensamento científico, primeiramente em ligação com osfenômenos naturais. Assim, toda a gente interpreta instin-tivamente como uma dádiva natural as suas idéias «racio-nais» e as suas atitudes em relação aos factos naturais.Considerou-se automaticamente como sinal de fraqueza oude inferioridade o facto de outros povos noutras socieda-des serem fundamentalmente influenciados nas suas atitu-des em relação às forças naturais pelas idéias pré-cientí-ficas e mágico-míticas.

O modo como Comte formulou as suas idéias podeimpedir a utilização da brecha que ele tentou fazer nafortaleza da velha filosofia ou, finalmente, facilitar a dês-

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truição completa das suas muralhas. A seqüência dos tiposde pensamento que ele, de acordo com o hábito intelectualda sua época, designou por leis, compreende-se mais facil-mente se a evolução das estruturas de pensamento for emsi própria encarada como um aspecto da evolução dasestruturas sociais. Comte tinha perfeita consciência disto,pois falava sobre a relação entre o predomínio dos tiposde pensamento mágico-míticos e o governo de uma classemilitar ou sacerdotal, e da relação entre o predomínio detipos científicos de pensamento e o domínio de classesindustriais. Desde o seu tempo aumentou tanto o manan-cial de conhecimentos sociológicos sobre o desenvolvi-mento da sociedade humana, que não seria difícil fazermaior justiça à diferenciação e complexidade de taisconexões.

A SOCIOLOGIACOMO CIÊNCIA RELATIVAMENTE AUTÔNOMA

Comte demonstrou e explicou parcialmente, que oobjecto fundamental da sociologia é sui generis, nãopodendo ser reduzido às peculiaridades estruturais da bio-logia humana — ou, para usar a terminologia de Comte,da fisiologia. Foi o discernimento de uma autonomia rela-tiva do objecto da sociologia que constituiu o passo deci-sivo para o estabelecimento da sociologia como ciênciarelativamente autônoma. O problema ainda é actual. Aindahoje se fazem tentativas de reduzir a estrutura dos pro-cessos sociais à biologia ou à psicologia. Portanto, vale apena ver o modo como um homem como Comte, há maisde cento e trinta anos, combateu esta concepção errônea.

Em todos os fenômenos sociais, observamos primeiramentea influência das leis da fisiologia individual e, para além des-tas, algo de especial que modifica os seus efeitos e que dizrespeito à influência recíproca dos indivíduos, singularmentecomplicada na espécie humana pela influência de cada geraçãona geração seguinte. É pois evidente que para estudarmos devi-damente os fenômenos sociais devemos começar por ter umconhecimento completo das leis do organismo individual. Mas,por outro lado, a dependência necessária destes dois tipos deinvestigação não nos obriga a considerar a sociologia como sim-ples apêndice da fisiologia, tal como muitos fisiologistas emi-nentes foram levados a crer... De facto, seria impossível consi-derar o estudo colectivo da humanidade como uma pura dedução

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feita a partir do indivíduo humano, porque as condições sociaisque modificam os efeitos das leis fisiológicas são precisamentea consideração fundamental. Assim, a sociologia deve basear-senum campo de observações directas próprias, embora se atendaà sua íntima e necessária relacionação com a fisiologia numsentido estrito ".

Muitas das expressões que Comte utilizou têm desdeentão alterado o seu significado. A expressão «espéciehumana» (por vezes traduzida por «raça humana») temhoje em dia um nítido travo biológico. Comte usou-a semesta conotação, como sinônimo de «humanidade» que, porsua vez, era para ele sinônimo de sociedade.

A dificuldade intelectual com que se debateu deve-seà sua tentativa de explicar a inseparabilidade do estudodas sociedades humanas do estudo das característicasbiológicas humanas, tentando, no entanto, estabelecersimultaneamente uma relativa autonomia das primeirasem relação às segundas. Hoje, esta relação expressa-semais facilmente com a experiência e os novos instrumen-tos de pensamento de que dispomos. De há uns tempospara cá tem-se notado, em círculos biológicos, uma cres-cente difusão da compreensão de tipos específicos de orga-nização, entre os quais uma hierarquia de níveis interde-pendentes de funções de coordenação e integração de talmodo que as relações nos níveis mais complexos de coorde-nação e integração são relativamente autônomos dos níveismenos amplos. Substancialmente, os níveis mais amplos deintegração não são mais do que uma combinação de figu-rações de níveis menos amplos, que de certo modo osprimeiros regulam. Porém, o modo como funcionam osníveis mais altos de integração é relativamente autônomono que respeita aos seus componentes:

A actividade num nível inferior é sempre determinada pelaactividade num nível superior, mas em cada nível a coordena-ção é relativamente autônoma... O princípio da autonomia rela-tiva a cada nível particular de coordenação e integração dentrodeste esquema hierarquizado foi recentemente alvo de umaatenção especial7.

Tal como aqui se expõe, esta intuição apenas se refereá estrutura dos organismos. Mas como,modelo intelectual,ajuda grandemente à compreensão das relações entre oscampos de investigação dos vários tipos de ciência. Ciên-cias como a física, a biologia e a sociologia dizem respeito

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a diferentes níveis de integração no cosmos. Também aquise encontram em cada nível tipos de relações, de estrutu-ras e de regularidades que não podem ser explicadas oucompreendidas em termos do nível anterior de integração.Assim, o funcionamento do organismo humano não podeser explicado ou compreendido apenas em termos dascaracterísticas físico-químicas dos seus átomos; nem o fun-cionamento de um estado, de uma fábrica ou de uma famí-lia pode ser unicamente compreendido em termos dascaracterísticas biológicas ou psicológicas dos seus mem-bros individuais. Comte reconheceu de um modo inequí-voco a autonomia de certos grupos de ciências dentro detodo o sistema das ciências. Registou esta idéia mas nãoa verificou com a ajuda de uma investigação empírica ede modelos teóricos. Esta idéia manteve-se nele de ummodo intuitivo. Mas o problema tinha sido detectado.A tarefa agora seria encontrar uma solução mais convin-cente. Como veremos, os capítulos seguintes dedicam umaatenção particular a esta tarefa. Temos que mostrar comoe porquê a interpenetração de indivíduos interdependentesforma um nível de integração no qual as formas de orga-nização, estruturas e processos não podem ser deduzidosdas características biológicas e psicológicas que constituemos indivíduos.

O PROBLEMADA ESPECIALIZAÇÃO CIENTIFICA

Por fim, temos de mencionar outra questão posta porComte que antecipou dois dos problemas mais prementesdo nosso tempo. Talvez seja surpreendente que no começodo século XIX um homem se tenha preocupado com asconseqüências de uma especialização científica crescentee tenha ponderado de um modo profundo o que se poderiafazer para obviar as dificuldades que, segundo previa, serelacionariam com essa especialização. Não podemos enca-rar como coincidência o facto de pioneiros tais como Comtee Spencer se terem preocupado com um problema de teoriada ciência a que a teoria filosófica da ciência prestavapouca atenção. Em última instância, a diferença de atitu-des deve-se a que a teoria sociológica da ciência orientaa sua investigação como se as ciências fossem de factosociais, enquanto na teoria filosófica da ciência a visãodos factos se mistura com uma visão ideal. Vale a pena

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ler a formulação comtiana do problema: perdeu poucoda sua actualidade.

No estádio primitivo do nosso conhecimento não existequalquer divisão regular entre os nossos esforços intelectuais;todas as ciências são simultaneamente cultivadas pelos mesmosespíritos. Este processo de organização dos estudos humanos,primeiramente inevitável e mesmo essencial transforma-se apouco e pouco, proporcionalmente ao desenvolvimento das dife-rentes classes de conceitos. Devido a uma lei, cuja necessidadeé óbvia, cada ramo do sistema científico se separa gradualmentedo seu tronco, logo que cresceu suficientemente para constituiruma disciplina distinta. Isto significa que alcançou o ponto dese tornar apto para chamar a atenção de alguns intelectos.Evidentemente que é a esta divisão dos vários tipos de conhe-cimento pelos diferentes grupos de especialistas que devemoso desenvolvimento notável verificado actualmente em cada umdos distintos ramos de conhecimento. Isto fez com que fossemanifestamente impossível ao homem moderno chegar ao conhe-cimento polimático de todas as disciplinas especializadas, factotão fácil e comum nos primeiros tempos. Em resumo, a divisãointelectual do trabalho, levada cada vez mais longe, é um dosatributos fundamentais e característicos da filosofia positivista.

Mas, embora reconhecendo os resultados prodigiosos destadivisão do trabalho, e embora vendo que constitui actualmenteo fundamento real da organização geral do mundo culto, é poroutro lado impossível não nos impressionarmos com as des-vantagens produzidas pela especialização excessiva das idéiasque ocupam a atenção exclusiva de cada intelecto individual.Sem dúvida que esta conseqüência infeliz é até certo pontoinevitável e inerente ao próprio princípio de divisão de tra-balho. Por mais que façamos, nunca conseguiremos igualar aomnisciência dos nossos antecessores, os quais deviam estasuperioridade essencialmente ao desenvolvimento limitado dosseus conhecimentos. No entanto, parece-me que há processosadequados por meio dos quais podemos evitar os efeitos maisperniciosos de uma especialização exagerada, sem detrimentopara a influência revigorante da separação das disciplinas...Todos concordamos que as divisões efectuadas entre os dife-rentes ramos da ciência são sempre artificiais. Porém, apesardesta concordância, não esqueçamos que no mundo culto jáhá poucos espíritos que se preocupam com a totalidade, mesmode uma só ciência que, por seu lado, é apenas uma entre asmuitas ciências. A maior parte já se limita quase exclusiva-mente à consideração isolada de uma secção mais ou menosextensa de uma ciência determinada, sem dar muita atenção

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à relação destes esforços particulares com o sistema geral dasciências positivas. Apressemo-nos a remediar este mal antesque se torne mais sério. Acautelemo-nos, não vá a mente humanaperder-se numa confusão de detalhes. Não nos podemos iludir— este é o lado particularmente sensível onde os defensoresda filosofia teológica e metafísica podem atacar a filosofiapositiva com alguma esperança de sucesso.

O modo corrente de deter a influência nociva de umasuperespecialização na pesquisa individual (ameaça para o nossofuturo intelectual), não seria obviamente um regresso à primi-tiva confusão de esforços. Isso levaria a uma regressão doespírito humano, aliás impossível nos tempos que correm. Pelocontrário, a solução consiste no aperfeiçoamento da divisão dopróprio trabalho. Tudo o que precisamos é fazer do estudogeral da ciência uma outra grande especialidade, Temos neces-sidade de uma nova classe de intelectuais devidamente prepa-rada que, sem se entregar ao estudo específico de qualquerramo particular da filosofia natural, a relacione inteiramentecom as várias ciências positivas no seu estado actual, definindocom precisão a natureza de cada uma e revelando como seligam e se relacionam umas com as outras... Ao mesmo tempo,outros cientistas, antes de se entregarem às suas respectivasespecialidades, receberiam de futuro alguma instrução sobre osprincípios gerais das ciências positivas. Isto permitir-lhes-ia umaproveitamento imediato dos conhecimentos obtidos por aque-les que se dedicam ao estudo geral da ciência. E, por seu lado,os especialistas estariam aptos a corrigir os resultados dosglobalistas. Este é o estado de coisas de que os cientistasactuais se vão dia a dia visivelmente aproximando8.

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O SOCIÓLOGO

COMO DESTRUIDOR DE MITOS

Hoje em dia, a própria sociologia corre o perigo dese fragmentar em sociologias cada vez mais especializa-das— da sociologia da família à sociologia das organiza-ções industriais, da sociologia do conhecimento à sociologiadas mutações sociais, da sociologia do crime à sociologiada arte e da literatura, da sociologia do desporto a socio-logia da linguagem. Em breve, haverá especialistas em todosestes campos, elaborando os seus próprios termos técnicos,as suas teorias e métodos que se tornarão inacessíveis aosnão especialistas. Terão então realizado o ideal básico doprofissionalismo — a autonomia absoluta das novas espe-cializações. A forteleza estará completa, as pontes levadi-ças erguidas. Este processo tem-se repetido vezes semconta ao longo da evolução das actuais ciências sociais— psicologia, história, antropologia, economia, ciências polí-ticas e sociologia, para apenas nomearmos algumas delas.

Se temos de explicar o que é a sociologia, não pode-mos deixar de mencionar este processo, que ainda hoje seconsidera correcto. Levantam-se poucas objecções à cres-cente divisão do trabalho no campo das ciências sociaisem geral e da sociologia em particular. As pessoas não sedesligaram suficientemente dos problemas criados pela cres-cente especialização científica para os poderem investigarsistemática e cientificamente.

Foi esta a possibilidade que Comte tentou assinalar.Para lidar com problemas deste tipo, requere-se um novotipo de cientista especializado, encarregado de investigar°s processos sociais de longo curso, tais como a crescente

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diferenciação do trabalho científico e das forças sociaisque o conduzem. Tal como Comte afirmou, é óbvio que hátoda uma série de factores sociais que inibem o desenvol-vimento da investigação científica das ciências. Desde oseu tempo que a especialização científica tem continuadode um modo que ainda se mantém socialmente inexplicávele incontrolável — como se fosse um processo desordenado.E, no entanto, como a especialização tem aumentado tanto,estamos agora numa posição melhor para compreender oalcance dos problemas decorrentes de uma ciência espe-cializada de «segundo grau». Podemos agora ver como umainvestigação científica deste tipo difere das tentativas pré--filosóficas de formulação de uma teoria da ciência.

Estudos filosóficos das ciências têm como tarefa implí-cita— e por vezes explícita — determinar, baseados em cer-tos princípios, como a ciência deveria ser conduzida. Estesprincípios estão muitas vezes estreitamente relacionadoscom a idéia, proveniente da teologia, de que a finalidadeda ciência é formular afirmações eternamente válidas oupromulgar verdades absolutas. Tal como já dissemos, istoé uma visão imaginária da ciência, baseada numa tradiçãoteológica e filosófica que vem de longe; aplica-se as ciên-cias como um dogma pré-concebido, um postulado moralparcialmente implícito. Ás pessoas não consideram neces-sário que se verifique por meio de uma investigação expe-rimental se esta hipótese dogmática corresponde àquilo queos cientistas realmente fazem. Por exemplo, John StuartMill (1806-73) parecia acreditar que o processo indutivotinha primazia sobre o dedutivo, de modo que procederdo particular para o geral era melhor do que procederdo geral para o particular. Filósofos actuais, como porexemplo Karl Popper, parecem mais inclinados a dar pri-mazia à dedução sobre a indução. Mas tudo isto só setorna compreensível se partirmos da noção irreal de quea finalidade da teoria da ciência é decidir como é quealguém terá que proceder de modo a que o seu compor-tamento seja considerado de caracter científico. A teoriafilosófica da ciência assenta numa concepção falsa doproblema.

O critério decisivo pelo qual o trabalho de um cien-tista individual pode ser na verdade reconhecido, pareceser a sua contribuição para o progresso do conhecimentocientífico. Hoje, o conceito de «progresso» tem caído emdescrédito. Foi um dogma central da intelligentsia bur-

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guesa dos séculos XVIII e XIX na Europa; muitos inte-lectuais aderiram então à crença de que o desenvolvimentosocial total lutava implacavelmente por uma melhoria daqualidade de vida. Entre os seus sucessores, esta crençafoi perdendo a sua reputação. Como critério de desenvol-vimento social total, ou como expressão de uma convicçãodogmática, o conceito de progresso é na verdade inútil,porém, como expressão do modo como os próprios cien-tistas avaliam os resultados da sua investigação, leva-nosao cerne do assunto.

É difícil dizer se há «verdades eternas», válidas paratodo o sempre, na teoria da relatividade de Einstein, nadescoberta do bacilo da cólera ou na evolução dos mode-los tridimensionais da estrutura atômica das grandes molé-culas. Conceitos tradicionais tais como o de «verdades eter-nas» incluem valores inefáveis, eles próprios carecendo dejustificação. São basicamente de natureza edificante. Emclima de transição é claro que é reconfortante acreditarque certas coisas são imperecíveis. Os conceitos edifican-tes têm o seu lugar na vida humana, mas não há lugarpara eles na teoria da ciência. Todo aquele que, sob opretexto de dizer o que a ciência é, dá de facto a suaopinião sobre o que ela idealmente deverá ser, engana-sea si próprio e aos outros. É abusivo falarmos de umateoria da ciência sem que primeiro tenhamos assimiladoaquilo que na verdade pode ser observado e experimen-tado por meio de um estudo científico das ciências.

Se empreendermos este tipo de estudo, depressa des-cobrimos que a causa da ciência tem avançado em certassociedades pela acção de pequenos grupos que lutam con-tra sistemas de pensamento pré-científicos, não compro-vados experimentalmente. Para outros grupos, geralmentemuito mais poderosos, estas crenças surgem como perfei-tamente naturais. Grupos que pensam de um modo cien-tífico são grupos que geralmente criticam ou rejeitam asidéias dominantes aceites pela maioria da sociedade emque vivem, mesmo quando são defendidas pela autoridadereconhecida, pois descobriram que não correspondem aosfactos observáveis. Por outras palavras, os cientistas sãodestruidores de mitos. Por meio de uma observação dosfactos, esforçam-se por substituir mitos, idéias religiosas,especulações metafísicas e todo o tipo de imagens nãofundamentadas dos processos naturais, por teorias testá-veis, verificáveis e susceptíveis de correcção por meio da

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observação factual. A tarefa que a ciência tem de perseguiros mitos até à morte e de demonstrar que certas crençasgeneralizadas não são baseadas nos factos, nunca serátotalmente realizada, pois que, tanto dentro como fora dosgrupos de cientistas especializados, há sempre quem con-verta as teorias científicas em sistemas de crenças. Extra-polam-se as teorias e usam-se de um modo perfeitamentedivorciado de uma investigação dos factos teoricamenteorientada.

A despeito de tudo isto, o progresso ainda é critériopelo qual são julgados os resultados da investigação, quera nível teórico, quer a nível empírico, quer em ambos.Que avanço representam os resultados quando avaliadospor um conhecimento social corrente ou, mais especifica-mente, por stocks de conhecimentos científicos? Este tipode progresso tem muitas facetas. Pode implicar um acrés-cimo dos stocks de conhecimento. Pode implicar que seestabeleça de um modo mais correcto um tipo de conhe-cimento que anteriormente assentava em alicerces relati-vamente inseguros. Pode implicar que se incluam numamesma teoria certos factos que até então não se con-sideravam relacionados, ou que se relacionem aconteci-mentos uns com os outros sob um modelo mais amplodo que o oferecido por anteriores teorias. Tambémpode simplesmente significar que a teoria e a evidênciaempíricas se adequam mais intimamente uma à outra. Emcada um destes casos, é fundamental que critérios taiscomo «verdadeiro» ou «falso», «certo» ou «errado», deci-sivos na filosofia tradicional da ciência, se desloquem docentro para a periferia da teoria da ciência. É claro queainda é possível provar como absolutamente erradas cer-tas descobertas científicas. Porém, nas ciências mais desen-volvidas, a medida de comparação principal é a relaçãodas novas descobertas com os conhecimentos anterioresdisponíveis. Isto é algo que não se pode exprimir em pola-ridades estáticas como «verdadeiro» e «falso», mas apenaspela demonstração da diferença entre velho e novo; factoque se vai manifestando através da dinâmica dos processoscientíficos, no decurso dos quais o conhecimento teóricoe empírico se torna mais extensivo, mais correcto e maisadequado.

Se uma teoria sociológica do conhecimento se basearnão no postulado de utopias científicas mas na investiga-ção das ciências como processos sociais observáveis, então

tem de se centrar na natureza dos processos cognitivos nodecurso dos quais, primeiro poucos, depois grupos maiorese melhor organizados conseguiram trazer o conhecimentoe o pensamento humanos a uma concordância mais íntimacom uma série cada vez maior de dados observáveis.

Reconhecer esta tarefa é romper tanto com o absolu-tismo filosófico como com o relativismo sociológico, queainda prevalece grandemente. Podemos sair do círculovicioso que vezes sem conta nos prende a um relativismosociológico no próprio momento em que nos tínhamoslibertado do absolutismo filosófico; querer sair dessa arma-dilha leva-nos de novo ao refúgio falso e dogmático doabsolutismo filosófico.

Assim, por um lado temos a teoria filosófica do conheci-mento que toma o conhecimento científico como certo. Nãose preocupa como e porquê o modo científico de conheceremergiu do modo pré-científico. O problema filosófico ape-nas é posto em termos de alternativas estáticas e, destemodo, descobertas e formas de conhecimento pré-científicasou não científicas são consideradas «erradas» e «incor-rectas», enquanto as formas científicas são «certas» e «ver-dadeiras». Portanto, a teoria filosófica da ciência não nosoferece qualquer hipótese de tomar como sua preocupaçãocentral os problemas actuais do desenvolvimento científico.Não pode lutar com o processo pelo qual os esforços deinvestigação relativamente indiferenciados dos tempos pri-mitivos foram transformados em processos de investigaçãocada vez mais especializados. Mesmo hoje, ao falarmos deteoria da ciência, falamos de «ciência» e de «método cien-tífico», como se só houvesse uma ciência e um métodocientífico — idéia tão quimérica como a antiga noção deque só havia uma cura para todas as doenças.

Depois, por outro lado, há a teoria sociológica daciência que trata exclusivamente da determinação socialdos padrões de conhecimento pré-científicos. Tal como ateoria filosófica do conhecimento tomou quase exclusiva-mente como modelo o conhecimento científico dos aconte-cimentos naturais, assim também a teoria sociológica doconhecimento se tem preocupado até agora quase exclusi-vamente com conceitos sobre a sociedade e com ideologiasPolíticas e sociais. Não se tem interrogado acerca de comoe em que condições é possível o conhecimento não-ideoló-Qico e científico de relações naturais e sociais. Nem os

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sociólogos clarificaram totalmente, quer para eles própriosquer para os outros, de que modo as teorias sociológicasdiferem das ideologias sociais e se existe de facto tal dife-renciação. A prevalecente sociologia do conhecimento, talcomo a teoria filosófica do conhecimento, negligencia oproblemas das condições que permitem que os mitos eas ideologias pré-científicas se desenvolvam até formaremteorias científicas, quer sobre a natureza quer sobre asociedade.

A teoria sociológica da ciência, que emergiu primeira-mente da obra de Comte e que hoje finalmente se estáa tornar mais inteligível, coloca este mesmo problema numaposição de fundamental importância. Levanta uma ques-tão chave: sob que condições sociais foi possível alargaro conhecimento das sociedades humanas e reconciliar cons-tantemente esse conhecimento com os factos observados?Não podemos afirmar com segurança que o desenvolvi-mento social global levará necessariamente a uma eman-cipação progressiva das ciências sociais, tal como acon-teceu com as ciências naturais. É demasiado cedo parafazermos esta afirmação, pois o processo de emancipaçãoainda não terminou. No entanto, podemos estar mais segu-ros sobre o passado. A estrutura do pensamento começoua orientar-se numa direcção razoavelmente óbvia no períodoem que os problemas sociais começaram a ser tratadoscomo se fossem de caracter científico e não de caracterteológico ou filosófico. Examinando o processo de cienti-fização do pensamento e da percepção à luz da sociologiado desenvolvimento, podemos clarificar teoricamente aspropriedades estruturais que distinguem a pesquisa cientí-fica do conhecimento pré-científico. Isto está para alémda capacidade da tradicional teoria filosófica da ciência,pois esta é dominada pela hipótese fictícia de que o conhe-cimento científico é o «natural», «razoável», «normal» ou,de qualquer modo, a forma eterna, imutável e fixa doconhecimento humano.. Consequentemente, rejeita o estudodas origens sociais e do desenvolvimento da ciência como«meramente históricos», «não filosóficos» e, portanto, irre-levantes para uma teoria da ciência. Contudo, uma obser-vação deste tipo, em que se utiliza um método compa-rativo, é a única forma de separar sistematicamente aprodução de conhecimento não científico e menos cientí-fica da mais científica. Ao recusá-la, a abordagem filosóficanega-se a si mesma a única possibilidade de determinar aspropriedades estruturais distintas da pesquisa científica

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ao conhecimento, sem se arrastar por idéias e valores arbi-trários e pré-concebidos.

O desenvolvimento da ciência tem sido freqüente-mente encarado como um tema de estudo meramentehistórico, enquanto a ciência como objecto de investiga-ção filosófica sistemática tem sido vista como se estivessenum estado eterno e imutável. A abordagem que aquidefendemos evita esta dicotomia simplista. Não é nemsistemática nem histórica no sentido tradicional destesconceitos. O desenvolvimento do conhecimento científico,seja ele sobre a natureza ou sobre a sociedade, tem queser considerado como uma transição para uma nova fasena busca geral do conhecimento efectuada pela humani-dade; só então poderá ser investigado e definido teorica-mente. Este processo tem muitos aspectos e varia enor-memente nos seus pormenores. Mas é possível estabelecercom precisão a direcção de qualquer desses processos. Porexemplo, sempre que se encontram no vocabulário de umasociedade conceitos exprimindo idéias sobre uma relaçãode acontecimentos impessoal e, até certo ponto, auto--regulada e autoperpetuada, é certo que descendem emlinha recta de outros conceitos que implicam uma relaçãopessoal de acontecimentos. Em qualquer dos casos, estaúltima foi o ponto de partida. As pessoas modelam assuas idéias sobre todas as suas experiências, essencialmentesobre as experiências que tiveram dentro do seu própriogrupo. Os modelos de pensamento que desenvolveramsobre as suas próprias intenções, acções, planos e finsnem sempre foram adequados, quer para a compreensãoquer para a manipulação de relações de acontecimentos.Na verdade, isto é uma idéia de difícil compreensão elevou muito tempo a ser alcançada, implicando uma sériede esforços cumulativos e árduos de muitas gerações.O que hoje designamos por «natureza» tem sido sempreuma série de acontecimentos largamente auto-regulados,autoperpetuados e mais ou menos autônomos; mas decor-reu muito tempo antes que a humanidade estivesse aptaa conceber a infindável variedade de acontecimentos indi-viduais naturais como um sistema fortuito, mecânicoe regular, que ninguém tinha planeado ou pretendido.O desenvolvimento da sociedade humana e, consequente-mente do conhecimento e do pensamento, começou porser vagaroso e intermitente, mas acelera-se a partir daRenascença. Como e porquê as pessoas aprenderam aPercepcionar e a interpretar relações de acontecimentos°correntes na natureza, de um modo muito diferente das

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suas experiências pessoais imediatas, é um facto que nãonos interessa actualmente explicar.

A comparação com o processo de crescimento dasciências naturais facilita-nos uma visão precisa das difi-culdades que os homens tiveram de combater — e aindacombatem — ao tentar compreender as suas próprias inter-conexões sociais. Têm vindo lentamente a compreenderque as estruturas que formam com os outros podem sermelhor explicadas e compreendidas se não forem simples-mente consideradas como uma acumulação de indivíduosparticulares conhecidos pelo seu nome, mas também comoconfigurações impessoais, até certo ponto auto-reguladase autoperpetuadas. Não se pretende de modo algum suge-rir que as relações sociais nada têm de comum com otipo de relações que os físicos encontram no seu trabalho.O que se mostra claramente é que em ambos os casosa transição para processos científicos de pensamento serelaciona com uma nova concepção da natureza de acon-tecimentos particulares. O que anteriormente fora expe-rimentado, um pouco irreflectidamente, como uma varie-dade de acções, intenções e fins por parte de seres vivosparticulares, é hoje concebido como um tipo distinto derelação factual. É realmente experimentado com maiorimparcialidade como sendo relativamente autônomo, rela-tivamente incontrolado e impessoal. Podemos dizer queé condição de transição para o pensamento científico queestejamos aptos a percepcionar deste modo uma relaçãoparticular de acontecimentos. Dizendo de outro modo,é sintomático da transição de processos pré-científicospara processos científicos de conhecimento que os instru-mentos conceptuais que usamos passem lentamente deconceitos de acção a conceitos de função. O reconheci-mento crescente da autonomia relativa de um campo deinvestigação, encarado como tipo especial de relação fun-cional, é uma condição prévia das duas operações caracte-rísticas do procedimento científico. São elas a construçãode teorias relativamente autônomas sobre as relações entrepormenores observáveis, e a verificação destas teorias pormeio de observações sistemáticas.

Enquanto as pessoas acreditarem que os acontecimen-tos são conseqüência de planos e intenções mais ou menoscaprichosos de alguns seres vivos, não podem considerarrazoável o examinar de problemas com base na observa-ção. Se os acontecimentos forem atribuídos a seres sobre-naturais ou mesmo a seres humanos «nobres», o «mis-tério» só se pode resolver tendo acesso às autoridades que

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conhecem os planos e as intenções secretas. Pensa-se mui-tas vezes que a transição para tipos científicos de conhe-cimento depende essencialmente de uma mudança para autilização de um determinado método de investigação.A idéia de que podemos descobrir um método ou uminstrumento conceptual independentemente do modo comoconcebemos o objecto principal cujo conhecimento se pre-tende alcançar, é produto da imaginação filosófica. Muitasvezes se admite, provavelmente quase sem se pensar, quea imagem da natureza como um processo auto-regulado foisempre predominante e que só precisaríamos de descobrirum método que trouxesse luz aos exemplos individuais derelações regulares. Na verdade, a concepção teórica de umarelação de acontecimentos e o método de a investigardesenvolveram-se numa interdependência funcional. É par-ticularmente difícil desenvolver uma concepção de socie-dade relativamente autônoma, que possa servir de chavepara a descoberta científica, uma vez que tal concepçãoentra em conflito não só com concepções pré-científicasda sociedade, mas também com as concepções científicasdominantes sobre a natureza. As interconexões funcionaisna sociedade não são idênticas às interconexões de umnível mais baixo de integração, representadas pela natu-reza física; isto não é universalmente reconhecido. Todasas nossas idéias sobre as relações impessoais de aconte-cimentos radicam directamente no nível da natureza física;deste domínio de experiência derivam todas as categoriastais como a causalidade, todos os instrumentos de pensa-mento e métodos de investigação que podem ser utilizadosna compreensão de tais relações. Mais, os grupos profis-sionais que se dedicam à investigação nas ciências naturais,detêm um poder social considerável e, consequentemente,um estatuto social elevado. Os cientistas sociais, comotodos os grupos móveis ascendentes, estão ávidos de gozarda glória das ciências mais velhas, apressando-se emadoptar os seus prestigiosos modelos. Se não tivermos istoPresente, é impossível avaliarmos por que motivo a socio-logia levou tanto tempo a constituir-se como um campode investigação relativamente autônomo.

Lembrando tudo isto, estamos mais aptos a reconhe-cer o que se pode aprender sobre as propriedades estru-turais do conhecimento científico, estudando a sua eman-ciPação relativamente ao conhecimento pré-científico. Ten-tativas de estabelecimento de um método determinadocorno critério decisivo da ciência não nos levam ao cernedo problema. Nem é suficiente confiarmos no reconheci-

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mento de que todo o procedimento científico se baseianuma referência constante de modelos intelectuais inclu-sivos a observações particulares e destas observações amodelos intelectuais inclusivos. O que está mal nestas afir-mações é o seu caracter formal. A observação sistemáticasó adquire significado se tivermos uma idéia geral docampo de investigação. Mais uma vez se prova que aseparação da teoria e do método tem por base uma con-cepção errada. A evolução da concepção que as pessoastêm sobre o objecto fundamental é inseparável da con-cepção que têm sobre um método adequado à investigação.Ao mesmo tempo, compreende-se perfeitamente que lhesrepugne a idéia de que a sociedade, da qual elas própriassão membros, é uma relação funcional relativamente autô-noma dos objectos e intenções dos seus membros. Encon-trou-se uma resistência semelhante durante o período emque se lutou para que triunfasse a idéia de que os acon-tecimentos naturais eram uma relação funcional cega esem qualquer finalidade. Na seqüência imediata destereconhecimento, muitas vezes se experimentou uma sen-sação de falta de significado: «Então não há nenhumfim?» perguntava-se habitualmente. «Não haverá qualquerobjectivo para além da circulação eterna dos planetas?».Para chegarmos a um conceito de natureza como relaçãode funções mecânicas e regulares tivemos que nos libertarda idéia muito mais satisfatória de que por detrás decada acontecimento natural há uma finalidade significa-tiva, a actual força motivadora. O paradoxo está em quefomos incapazes de nos orientar contra a ameaça cons-tante dos acontecimentos naturais, até sermos capazes deperceber a ausência de significado, a ausência de finali-dade e a regularidade cega e mecânica dos acontecimentosfísicos. Ao tentar levar a cabo a idéia de que os processossociais também são relativamente autônomos das intençõese das finalidades humanas, ocorrem constantemente asmesmas dificuldades e os mesmos paradoxos. Muita genteconsidera esta idéia repugnante. É assustador compreen-dermos que formamos interconexões funcionais no interiordas quais muito do que fazemos é cego, sem finalidade einvoluntário. É muito mais reconfortante acreditarmos quea história — que é sempre a história de sociedades huma-nas particulares — tem um significado, um destino, talvezmesmo uma finalidade. E, na verdade, há sempre umaquantidade de gente que nos quer dizer qual é esse signi-ficado. É certo que a curto prazo o resultado imediato deuma descrição feita nestes termos — em que se conside-

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ram as interconexões sociais como relativamente autôno-mas e até certo ponto como relações funcionais auto-regu-ladas, não guiadas por objectivos ou intenções e não seesforçando por alcançar metas fixadas pelos valores cor-rentes— tem como conseqüência um sentimento de ausên-cia de significado. Porém, mais uma vez, neste longo per-curso, as pessoas só têm hipótese de dominar e dar sen-tido a estas conexões funcionais, sem qualquer finalidadee significado, se as conseguirem reconhecer como inter-conexões funcionais autônomas e distintas e se as investi-garem sistematicamente.

Este é o cerne da transição para processos científicosde pensar as sociedades. Tem-se feito freqüentes referên-cias ao conceito de «autonomia relativa». Esta refere-se atrês aspectos diferentes, mas totalmente interdependentesdas ciências. Primeiro, temos a autonomia relativa doobjecto fundamental de uma ciência no interior do uni-verso total de acontecimentos interdependentes. A divisãodo mundo científico numa quantidade de diferentes tiposde ciências, essencialmente centrados na física, na biologiae na sociologia, dificultaria muito o trabalho do cientistase esta divisão não correspondesse a uma organização dopróprio cosmos. Consequentemente, o primeiro nível deuma autonomia relativa, e o fundamento dos outros dois éa autonomia relativa do objecto fundamental de uma ciên-cia relativamente ao objecto fundamental das outras ciên-cias. O segundo nível é. a autonomia relativa da teoriacientífica em relação a este objecto fundamental. Isto signi-fica duas coisas. Já não está intimamente ligado a con-cepções pré-científicas do seu objecto fundamental, expressoem termos de finalidade, significado e intenção. É tambémrelativamente autônomo quanto a teorias sobre outros cam-Pos de investigação. O terceiro nível é a autonomia relativade uma dada ciência dentro das instituições acadêmicas queorientam o ensino e a investigação. Isto também envolvea autonomia relativa dos grupos de cientistas profissionais,°s especialistas de uma dada matéria, relativamente tanto08 grupos que representam outras ciências como aos nãocientistas. Esta definição social científica das propriedadesestruturais de uma ciência baseia-se inteiramente no estudoDaquilo que realmente existe. Emergiu da busca contínuade conhecimentos e pode ser rectificada à luz de uma inves-tigação ulterior, quer teórica quer experimental. Mas se oestudo científico das ciências for limitado deste modo, assua descobertas serão cada vez mais aplicáveis aos proble-

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mas práticos. Constantemente, grupos de cientistas procuramjustificar a sua posse ou aquisição de instituições acadêmi-cas relativamente autônomas por meio do desenvolvimentodas suas próprias teorias, métodos e termos técnicos,enquanto a autonomia relativa* dos seus dispositivos teó-ricos e conceptuais não se justifica pela autonomia relativado seu objecto principal. Por outras palavras, lado a ladocom a especialização científica justificada pelos camposcorrespondentemente separados de investigação, existe umagrande dose de pseuão-especialização.

Diferentemente da teoria filosófica, a teoria sociológicada ciência não nos dita leis nem decreta princípios esta-belecidos para determinar quais os métodos que são «ciên-cia válida» e quais os que não são. O que faz realmente émanter um contacto estreito com os resultados práticosdas ciências. Utilizando a teoria sociológica da ciência comoponto de partida, é possível investigar até que ponto aslinhas de demarcação habituais e institucionalizadas entreos objectos científicos correspondem em qualquer alturaao estado actual do conhecimento sobre a organização dosvários campos de investigação, e até que ponto o desen-volvimento das ciências tem causado discrepâncias. Final-mente, pode dizer-se que as teorias filosóficas se concentramna ciência ideal e, no interior desta, no método científico;como tantas vezes acontece na filosofia tradicional, as regrasdo jogo colocam uma espécie de barreira invisível entre opensador e o objecto do seu pensamento — neste caso asciências. Muitos problemas científicos agudos, aos quais sededica muito esforço prático no mundo real da ciência, são,dentro da estrutura da teoria filosófica da ciência, postosde lado como sendo filosoficamente irrelevantes. De acordocom as regras do jogo estão fora de questão. Assuntos queparecem fora de questão de acordo com as regras filosó-ficas são no entanto altamente significativos para uma teoriamais orientada para a realidade.

Assim, as características comuns estruturais de aqui-sição científica do conhecimento não podem ser descober-tas sem que se tome em consideração a totalidade do uni-verso científico, atendendo-se à multiplicidade das ciências.A orientação da nossa concepção de ciência para uma dis-ciplina particular, por exemplo para a física, é de certaforma equivalente ao modo como certas sociedades acre-ditam que toda a gente se lhes assemelha, e que se poracaso são diferentes, já não são verdadeiramente pessoas.Temos que voltar costas às regras restritivas do estudo filo-sófico da ciência, e considerar as ciências como objecto de

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uma investigação teórica e empírica. Em breve será evidenteque a concepção do objecto principal, tal como emerge nodecurso do trabalho científico, é funcionalmente interdepen-dente da concepção do método de investigação usado. Istoé compreensível. O que pensaríamos de alguém que susten-tasse ser sempre necessária a utilização de um eixo paramoldar qualquer material, fosse ele madeira, mármore oucera? Igualmente, a estrutura social da actividade científicanão pode ser ignorada, embora muitas vezes pareça sê-lo,por todo aquele que pretenda compreender os critérios quedeterminam o valor científico das suas descobertas. O pro-gresso em cada campo científico está em parte dependentedos padrões e costumes científicos dos que trabalham nessecampo. E o seu caracter competitivo, seja ele brando ouaceso, o seu terreno de luta e desacordo, determinam emúltima instância se e até que ponto os resultados obtidospor um determinado cientista podem ou não ser regista-dos como um progresso, como um avanço no conhecimentocientífico.

A natureza social da investigação científica é demons-trada pelo pedido muitas vezes renovado de que as suasdescobertas sejam «susceptíveis de repetição e verificação».A verificabilidade foi sempre entendida como capacidade dealgo ser verificado tanto por outras pessoas como peloinvestigador. Certamente que nenhum método científicopoderá garantir em si próprio a validade de todos os resul-tados obtidos pela sua aplicação. Se as atitudes de uminvestigador e os seus critérios científicos são de algummodo modelados por considerações heterónomas, extracien-tíficas, quer políticas, religiosas ou nacionais — ou mesmoconsiderações derivadas do estatuto profissional — todos osseu esforços podem eqüivaler a uma perda de tempo. Estetipo de coisas acontecia freqüentemente nas ciências sociaise, na verdade, ainda hoje acontece. Não é difícil descobrir-mos a razão. A investigação nas ciências sociais, pelo menosna sociologia, apenas alcançou uma relativa autonomia. Asdivergências internacionais e nacionais são tão violentas eintensas que os esforços para aumentar a autonomia dasteorias sociológicas relativamente a sistemas de crençasextracientíficas apenas obtiveram até agora um sucessolimitado. Aconteça o que acontecer, os padrões pelos quais°s especialistas na matéria julgam a investigação ainda sãograndemente determinados por este tipo de critério hete-fónomo. Uma das razões por que as pessoas em muitasdas ciências sociais se apegam a um certo método, comoProva da sua respeitabilidade científica, é provavelmente

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o facto de a veemência das suas disputas extracientíficasas impedirem de ultrapassar o problema das influênciasideológicas na actividade científica, quer a nível teóricoquer a nível prático.

Com estas reflexões, podemos avaliar melhor como atransição para processos mais científicos de pensar asociedade, iniciada lentamente nos fins do século XVIII edesenvolvida nos séculos XIX e XX, foi um acontecimentoespantoso. Por um lado, é de lamentar que a teoria socio-lógica não tenha chegado a uma maior autonomia; a defi-nição e selecção de problemas ainda se mistura com opensar os problemas sociais de um modo irreflectido enão científico. Por outro lado, atendendo-se à intensidadedos conflitos sociais desse tempo, podemo-nos interrogarcomo foi possível que as pessoas nunca se emancipassemsuficientemente dessas lutas, de modo a fazerem um pri-meiro esforço no sentido de um estudo científico destesfenômenos.

Compreende-se melhor a ascensão da sociologia,- setivermos presente que os conflitos sociais e as própriasdisputas sofreram uma despersonalização característicadurante o período de industrialização nos séculos XIXe XX. Houve uma tendência crescente para que se con-duzissem as lutas sociais não tanto em nome de determi-nadas pessoas, mas antes em nome de certos princípiosimpessoais e de certas crenças. Isto parece-nos óbvio e,portanto, muitas vezes não nos apercebemos de como foiestranho e singular as pessoas desses séculos começarema lutar já não em nome dos príncipes regentes e dos seusgenerais, nem em nome da religião, mas sobretudo emnome de princípios impessoais fixos, tais como «conser-vantismo», «comunismo», «socialismo» e «capitalismo». Nocentro de cada um desses sistemas de crenças sociais, emnome dos quais se lutava, estava a questão de como iriamas pessoas organizar conjuntamente as suas vidas emsociedade. Não só -da sociologia e de todas as ciênciassociais, mas também das idéias que dominaram as lutasem que participavam, se pode deduzir que nessa alturaas pessoas começavam a encarar-se a si mesmas de umanova maneira — como sociedades.

Decerto que muitas vezes se considerou difícil com-preender o que os sociólogos verdadeiramente pretendiamquando diziam ser a sociedade o objecto fundamental dasua investigação. Assim, talvez se torne mais fácil explicarqual o objecto da sociologia, se encararmos as circuns-tâncias em que as pessoas chegaram à consciência de si

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mesmas como sociedades — uma consciência comprovadanão só na forma da sociologia mas também nas suas dis-putas extracientíficas.

A mudança estrutural efectuada na autoconsciência dosindivíduos encontrou expressão na sua tendência para luta-rem cada vez mais em nome de grandes «ismos»; mas amudança não pode ser compreendida a menos que elaprópria seja considerada como reflexo de certas mudan-ças na vida social humana.

Toda a gente conhece essas mudanças e, no entanto,nem sempre são percebidas de um modo claro e inequívococomo mudanças de estrutura social. São geralmente clas-sificadas como «acontecimentos históricos». Por outraspalavras, apercebemo-nos de uma riqueza de pormenoressobre acontecimentos ocorridos nos diferentes países indus-triais europeus durante os séculos XIX e XX. Em Françahouve uma revolução. Reis e imperadores apareceram edesapareceram. Eventualmente, partidos burgueses e ope-rários lutaram por uma república e criaram-na. Em Ingla-terra os Reform Acts alargaram o direito de voto à bur-guesia e aos trabalhadores, admitindo representantes seusem lugares do governo. Diminuiu o poder dos Lordes,enquanto aumentou o dos Comuns. Como conseqüência,a Inglaterra tornou-se um país governado por uma bur-guesia intelectual e pelos trabalhadores da indústria. NaAlemanha, o facto de se terem perdido guerras contri-buiu para o declínio do poder dos estratos sociais domi-nantes dinástico-agrários e militares, enquanto se tornarammais importantes os indivíduos de estratos sociais maisbaixos. Consequentemente, depois de muitas oscilações dopêndulo, as velhas assembléias de estados foram substi-tuídas por assembléias parlamentares com representaçõesde partidos. Podíamos continuar a lista. Tal como disse-mos, os pormenores são-nos familiares. Porém, tal comohoje, a percepção científica não está suficientemente bemorganizada de modo a que se veja em toda esta massade pormenores uma direcção uniforme de desenvolvimento.As árvores impedem-nos de ver a floresta. Não temosprovas suficientemente profundas para descobrir o pro-blema real. Quais as razões para as transformações detoda a situação humana nestes e noutros países? Todos seMoviam numa mesma direcção; tinham em comum umacientifização crescente do controlo sobre a natureza, umadiferenciação ocupacional crescente e muitas outras ten-dências. É precisamente este o problema sociológico. Atéchegarmos a este ponto, é difícil compreendermos o que

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os sociólogos entendem por «sociedade». Quando lá che-garmos poderemos ver que entre as muitas diferenças depormenor histórico nos vários países, houve um parale-lismo estrutural no seu desenvolvimento de conjunto comosociedades.

O aparecimento de ciências que se dedicaram ao estudodas sociedades foi em si mesmo uma faceta desta fasede desenvolvimento de sociedades estados. Este episódiodistinguiu-se, entre outras coisas, pela crescente cientifi-zação de controlo sobre a natureza, que se verificou, porexemplo, na descoberta de novas fontes de energia, e numavanço correspondente na diferenciação ocupacional. Houveuma relação entre a tendência incipiente para uma cienti-fização do pensamento sobre a sociedade e as mudançasestruturais no interior das sociedades estados onde ocorre-ram estas transformações intelectuais. No entanto, a rela-ção só se torna evidente através da consciência da ten-dência comum que atrás referimos, no seu desenvolvimentoglobal.

Este paralelismo escapa-nos muito facilmente se ape-nas atendermos a uma esfera do desenvolvimento, seja eleeconômico, político ou social. Isto é uma das dificuldades.A industrialização, a cientifização, a burocratização, a urba-nização, a democratização ou o crescimento do naciona-lismo— seja qual for o conceito que se tome para demons-trar o paralelismo na mudança social, só realça um ououtro aspecto particular. Os nossos instrumentos con-ceptuais não estão suficientemente desenvolvidos paraexprimir a natureza da transformação social global, nempara explicar as relações entre os seus aspectos indivi-duais. E, no entanto, o problema sociológico que nos dizrespeito está precisamente nisso. A direcção comum temque ser esclarecida, não só numa esfera mas nas trans-formações mutuamente interligadas das relações humanas.Isto poderá realizar-se melhor — talvez provisoriamente —por meio de uma re-humanização mental de todos os con-ceitos desumanos utilizados para caracterizar o desenvol-vimento. Apesar de tudo, a industrialização não significamais do que haver cada vez mais pessoas a trabalhar comoempresários, empregados e operários. A cientifização decontrolo sobre a natureza significa que cada vez há maispessoas a trabalhar como físicos e engenheiros. A demo-cratização significa que o equilíbrio do poder se inclinouaté certo ponto a favor daqueles que anteriormente eramconsiderados «plebeus». O mesmo se passa com o modolisongeiro como dividimos mentalmente a sociedade em

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esferas «econômicas», «políticas» e «sociais». Todasse referem a relações específicas de funções que as pes-soas desempenham para si próprias e para os outros. Seas esferas políticas, econômicas e todas as outras foremencaradas como relações funcionais de pessoas interdepen-dentes, em breve se verá que a divisão é meramente con-ceptual. Mais, veremos que não tem relação com qualquermodelo sociológico da sua interdependência e, assim, des-viamos a investigação sociológica do seu caminho. Basta--nos considerar um fenômeno como os impostos. Serão osimpostos fenômenos de natureza «econômica», «social» ou«política»? Será a decisão quanto ao modo como a cargafiscal é suportada de caracter «puramente econômico»,«puramente político» ou «puramente social»? Ou não seráantes a conseqüência de um equilíbrio de poder entrevários grupos de pessoas, entre governantes e governados,entre os estratos sociais mais ricos e mais pobres, quepodem ser razoavelmente bem determinados sociologica-mente?

Ainda passará algum tempo até possuirmos conceitosfacilmente comunicáveis para facilitar o estudo de taismudanças sociais globais. Neste campo, é suficiente indi-car uma mudança central na representação global dasociedade. Entre as principais características mais comunsdo desenvolvimento da maioria dos países europeus dosséculos XIX e XX, temos uma certa mudança no equilí-brio de poder. Os cargos governamentais passaram a sercada vez mais preenchidos por representantes de partidospolíticos — organizações de massas que substituíram peque-nas elites que se distinguiram pela propriedade hereditáriaou pelos privilégios hereditários. Hoje em dia, os partidosocupam um lugar tão evidente na nossa vida social que,mesmo em estudos de caracter científico, nos limitamos adescrever e explicar apenas o seu exterior institucional. Jánão se fazem mais esforços para explicar porque é queem todas essas sociedades, o governo oligárquico compostoPor pequenos grupos privilegiados de caracter dinástico-•agrário-militar, deu mais cedo ou mais tarde lugar a umgoverno desempenhado por partidos, seja o regime pluri-Partido ou de partido único. Que mudança global de estru-tura dessas sociedades terá provocado um declínio de poderdos estratos governamentais dos séculos anteriores relati-vamente aos herdeiros sociais daqueles que eram muitasvezes referidos como a ralé? Sob o ponto de vista histórico,todos estes pormenores se conhecem bastante bem mas,

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Fno entanto, para além desses pormenores não vemos clara-mente. Não nos conseguimos aperceber de uma óbviadirecção comum das transformações dentro das interconé-xões funcionais e das configurações que as pessoas formamem conjunto. Nem, consequentemente, vemos os problemassociológicos levantados pela orientação comum do pro-gresso em muitas sociedades-estado. Em muitos aspectos,a sua história é diferente. Como explicar então que o equi-líbrio interno de poder em cada um desses países se tenhadeslocado numa mesma direcção?

A definição de um dos problemas fundamentais dasociologia do progresso pode ter ajudado a mostrar sobreo que versa a sociologia. Não podemos compreender asorigens da sociologia à margem desta transformação radi-cal da sociedade. As sociedades governadas oligarquica-mente pelos privilegiados hereditariamente transforma-,ram-se em sociedades governadas por representantes revo-gáveis de partidos políticos de massas. A alteração no equi-líbrio interno de poder é sintomática da transformaçãoglobal da sociedade. Podemos dizer das ciências sociais,especialmente da sociologia, que têm o mesmo parentescosocial que os sistemas de crenças dos grandes partidosde massas, as maiores ideologias sociais da nossa época.Por muito diferentes que possam ser a ciência social ea ideologia social, ambas são manifestações das mesmastransformações da estrutura da sociedade. Aqui temos quenos limitar a um breve levantamento de alguns aspectosdestas relações.

1. A redução de diferenças de poder entre governan-tes e governados

O alargamento do direito de voto foi a expressão ins-titucional mais evidente desta redução de diferenças depoder. Surgiu geralmente por estádios, variando de paíspara país, embora a direcção fosse sempre a mesma. Mui-tas vezes, o direito de voto estendeu-se primeiramente àclasse média proprietária, depois a todos os adultos dosexo masculino, depois a todos os adultos, tanto homenscomo mulheres. Uma visão da história que descreve asmudanças sociais como resultando de acontecimentos indi-viduais específicos pode facilmente levar à conclusão deque a legislação estatal de alargamento do direito de votofoi a causa do aumento comparativo do poder dos gover-

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nados relativamente aos governantes. Mas isto é pôr ocarro à frente dos bois. O alargamento legal do direitode voto, muitas vezes contra uma forte resistência, foi aconseqüência institucional manifesta da mudança latentena distribuição de poder relativamente a estratos maisalargados. Nos séculos anteriores, o acesso ao monopóliocentral do poder e influência estatais para a concessão decargos governamentais era geralmente limitada a pequenaselites dinásticas e aristocráticas. No entanto, as mudançasna textura das relações humanas, que ocorreram em todosos países mais desenvolvidos durante os séculos XIX e XX,foram de tal ordem, que nenhuma parte da sociedade semanteve simplesmente como um objecto relativamentepassivo de dominação alheia. Nenhuma delas se manteveinteiramente sem canais institucionais através dos quaispodiam exercer pressão, directa ou indirectamente, sobreos governos e, nalguns casos, podiam influenciar nasescolhas para os cargos públicos governamentais. O apare-cimento de organizações de massas de caracter partidárioe político nos séculos XIX e XX foi simplesmente umamanifestação desta redução limitada das diferenças depoder entre governantes e governados. Vistas na pers-pectiva da nossa época, é certo que essas diferenças depoder se mantêm bastante grandes. Mas, no entanto, vistasna perspectiva de um desenvolvimento a longo prazo dassociedades, as possibilidades que a massa dos governadostinha de controlar os governantes, relativamente às possi-bilidades do governo de controlar os governados, aumen-taram substancialmente. Os governantes de todos os paísestiveram que se justificar aos olhos dos seus súbditos emnome de princípios relativamente impessoais e em nomede ideais relativos à ordenação das condições sociais. Tive-ram que apresentar os seus próprios programas ideaispara a reorganização social como uma maneira de captarseguidores e crentes. E procuraram conquistar a simpatiadas massas com planos de melhoramento das suas condi-ções de vida. Tudo isto constituiu sintoma característicoda mudança relativa na distribuição de poder entre gover-nantes e governados. Só por estes factos se vê bem comoum aumento de interdependência acarreta uma transfor-mação do pensamento sobre a sociedade e a formação deProgramas relativamente impessoais para a melhoria dascondições sociais. Também conduz, consequentemente,à percepção das sociedades como relações funcionais dePessoas interdependentes.

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2. A redução de diferenças de poder entre os dife-rentes estratos

Vistas isoladamente, as diferenças na possibilidade deacesso ao poder, por parte dós diferentes estratos sociaisnos países mais desenvolvidos, são ainda na verdade muitograndes. Porém, encaradas no contexto da orientação deum desenvolvimento social a longo prazo nos últimos doisou três séculos, são correctas. É evidente que as diferen-ças de poder diminuiram, não só entre governantes egovernados, mas também entre os diferentes estratossociais. Há alguns séculos, os proprietários nobres erammuito menos dependentes dos seus aldeãos e os oficiaisde exército dos seus soldados mercenários do que osactuais industriais relativamente aos seus trabalhadoresou os oficiais de carreira relativamente aos milicianos.Para a maioria da população, que na verdade não tinhaqualquer poder, este último desenvolvimento resultou noaumento do seu poder potencial relativo. Excepto TIOSsítios em que o equilíbrio institucionalizado de podercorrespondia ao verdadeiro poder potencial das massas,este aumento concretizou-se em manifestações difusas dedescontentamento e de apatia, em rebeliões indistintas eem violência. Desde que a sociedade tivesse desenvolvidomeios institucionais que estabelecessem a distribuição depoder e os processos legais que permitissem efectuar ajus-tamentos constantes para acompanhar as mudanças nasrelações de poder, estes sentimentos podiam encontrarexpressão através da escolha eleitoral, através de grevese em demonstrações partidárias e movimentos de massas,cada um com os seus sistemas de crenças sociais. Pormuito que assim fosse, na esteira da transformação socialglobal, geralmente rotulada por um dos seus aspectos taiscomo «industrialização», tem havido uma diminuição dediferenças de poder entre todos os grupos e estratossociais — enquanto permanecem dentro da órbita funcio-nal constantemente mutável da sociedade. Esta última qua-lificação indica que cada vez mais no decurso da diferen-ciação social e da sua correspondente integração, certosgrupos sociais sofreram reduções no âmbito das suas fun-ções, tendo mesmo sofrido total perda de funções; as con-seqüências têm sido uma perda de poder potencial. Masa tendência global das transformações tem sido reduzirtodos os poderes potenciais entre os diferentes grupos,mesmo entre homens e mulheres, pais e filhos.

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Geralmente, designamos esta tendência pelo conceitode «democratização funcional». Este não se identifica coma tendência para um desenvolvimento da «democracia ins-titucional». Refere-se a uma alteração na distribuição socialdo poder, e isso pode manifestar-se de várias formas insti-tucionais, tanto em sistemas de partido único como emsistemas pluripartidários.

3. Transformação de todas as relações sociais no sen-tido de um maior grau de dependência multipolarrecíproca e de um maior controlo

No centro desta transformação social total têm estadoimpulsos que se orientam no sentido de uma especiali-zação crescente ou no sentido de uma diferenciação detodas as actividades sociais. Correspondentemente, temhavido impulsos orientados para uma integração de acti-vidades especializadas, que muitas vezes têm ficado paratrás. Também neste caso os cientistas sociais apenas 'aten-dem ao aspecto institucional e não à estrutura total dasociedade. Assim, falam de «sociedades pluralistas» signi-ficando essencialmente um sistema estrutural de institui-ções sujeitas a uma auto-regulação ou a um controlo porparte do governo. Mas a multipolaridade institucional cres-cente e o controlo recíproco entre os vários grupos sociaisé mais uma vez apenas uma manifestação institucional daatenuação das diferenças de poder entre todos os grupose todos os indivíduos no decurso da sua transformação.Devido às suas funções especializadas específicas, todosos grupos e indivíduos se tornam cada vez mais funcio-nalmente dependentes de um número cada vez maior depessoas. As cadeias de interdependência alargam-se e tor-nam-se mais diferenciadas; tornam-se consequentementemais opacas e mais incontroláveis, por parte de qualquergrupo singular ou por parte de qualquer indivíduo.

4. As ciências sociais e os ideais sociais como ins-trumentos de orientação quando os vínculos sociaissão relativamente opacos e quando a consciênciada sua opacidade é crescente.

A ligação entre o desenvolvimento das ciências sociaise o desenvolvimento social global surge aqui com maiornitidez. A opacidade das teias sociais relativamente às pes-

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soas que as constituem, devido ao seu controlo mútuo eà sua dependência, é uma característica das teias em todosos estádios do seu desenvolvimento. Porém, só numa deter-minada fase de desenvolvimento as pessoas puderam tomarconsciência desta opacidade e, 'consequentemente, tambémda sua incerteza enquanto sociedade. Algumas das proprie-dades estruturais desta fase de desenvolvimento têm sidoaqui expostas — propriedades que permitiram que as pes-soas tomassem consciência de si próprias como sociedades,como pessoas que conjuntamente formam várias espéciesde relações funcionais e configurações em constantemudança. Tornar-se superior entre elas é uma democra-tização funcional, um estreitamento das diferenças depoder e de desenvolvimento para com uma distribuiçãomais igual de oportunidades de poder; penetra em todaa gama de vínculos sociais, embora haja impulsos que sedirigem simultaneamente contra esta tendência. Por seulado, este desenvolvimento relaciona-se com a diferencia-ção crescente ou com a especialização de todas as activi-dades sociais, e a correspondente dependência crescentede cada pessoa e de cada grupo relativamente aos outros.O desenvolvimento de cadeias de interdependência humanacada vez mais complicadas, torna crescentemente óbviocomo é inadequado explicar os acontecimentos sociais emtermos pré-científicos, singularizando pessoas como seestas fossem a sua causa. As pessoas experimentam aopacidade e a complexidade crescentes das teias de rela-ções humanas. Pensam que diminuiu obviamente a possi-bilidade de qualquer indivíduo (por muito poderoso queseja) tomar decisões só por si, independentemente dosoutros. São testemunhas das decisões constantes tomadasno decurso de provas de força e de lutas pelo poder entremuitas pessoas e grupos — lutas muitas vezes conduzidasestritamente de acordo com as regras, outras vezes não.Toda esta experiência prática força-as a compreender quesão necessários outros modos de pensar mais impessoaisse é que querem compreender estes processos sociaisopacos.

Um dos resultados deste despertar da consciência darelativa opacidade dos processos sociais e da inadequaçãode explicações unicamente construídas em termos de pes-soas individuais foi um esforço para que se examinassemos processos sociais por meio de uma abordagem análogaàquela que é feita em ciências já mais antigas. São tra-tadas como relações funcionais internamente consistentes,

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grandemente auto-reguladas e relativamente autônomas;era. resumo, aplicam-se métodos científicos. Outro resul-tado tem sido o facto de as pessoas tenderem a orientar-separa situações sociais relativamente opacas, com a ajudade sistemas de crenças e de ideais relativamente impes-soais, mas carregados de emotividade. Estes são altamentesatisfatórios, pois geralmente prometem um alívio ime-diato para todas as doenças e sofrimentos sociais, oumesmo uma cura completa num futuro próximo. Os doistipos de orientação, o científico e o ideológico, têm-sedesenvolvido habitualmente numa associação estreita.A diferença entre estes dois tipos de orientação inte-lectual no universo humano ainda terá que ser traba-lhada em pormenor. O desenvolvimento da sociedadehumana ainda se mantém opaco e aquém dos poderes decontrolo. Mais cedo ou mais tarde teremos que decidirconscientemente quais dos dois tipos de orientação —a cien-tífica ou a que se baseia em crenças sociais pré-concebi-das —terá mais possibilidades de conseguir elucidar essasociedade e torná-la mais susceptível de controlo.

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/TI

MODELOS DE JOGO

Dado o actual estado do pensamento sociológico, esteé um dos problemas que nele persiste: como podem ossociólogos reivindicar um domínio próprio, distinto dodomínio dos biólogos, psicólogos, historiadores e outrosgrupos de especialistas? Porque o tema central da socio-logia é a «sociedade» e as sociedades, no fim de contas,não são mais do que unidades compósitas em que os sereshumanos individuais são as partes componentes. Não seráentão necessário que os sociólogos confiem primeiramentenas descobertas de todas as outras disciplinas, que, comoa biologia, a psicologia ou a história, estudam os sereshumanos individuais — as partes constituintes das socie-dades — e depois vejam se, como sociólogos, têm algo aacrescentar a estas descobertas? Além do mais, não seriamelhor e mais óbvio que os sociólogos estudassem primei-ramente as pessoas individuais isoladamente e depois vis-sem se podiam formular algumas generalizações a partirde uma série desses estudos individuais, generalizaçõesessas que poderiam ser apresentadas como propriedadesdas «sociedades»?

Na verdade, há um número considerável de sociólogosque procedem deste modo. Investigam o comportamento,as perspectivas e as experiências das pessoas individuaise submetem os seus resultados a processos estatísticos.Por meio deste tipo de investigações, centradas nas «par-tes componentes» das sociedades, procuram tornar evi-dentes as características das «unidades compósitas» dasPróprias sociedades. E, como algumas das suas descober-tas indicam de facto relações sociais e regularidades queultrapassam o alcance de outras disciplinas relacionadas

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com o estudo dos seres humanos isoladamente, estas des-cobertas sociológicas são muitas vezes implicitamente tra-tadas como solução para o problema de ser ou não possívelque a sociologia reivindique qualquer espécie de autono-mia relativamente às outras ciências sociais centradas noindivíduo. É uma resposta que assenta na prática cientí-fica, no êxito real ou pretenso de solução dos problemasempíricos, mais do que numa resposta teórica clara como,por exemplo, porque é que seria possível aos sociólogos,pelo estudo do comportamento ou da experiência daspessoas individuais, delimitar para si próprios um campoespecífico de investigação que já não tenha sido cobertopor outras disciplinas que também estudam as pessoasindividuais.

É perfeitamente compreensível que muita gente nopassado tenha acreditado, e ainda hoje acredite, que todaa realidade social pode e deve ser explicada em termos decaracterísticas psicológicas ou mesmo físicas das pessoas.A tradição clássica das ciências físicas tem tido muitainfluência. De acordo com essa tradição, o modo correctode investigar uma unidade compósita será dissecá-la nosseus componentes, depois estudar isoladamente as proprie-dades das partes componentes e, finalmente, explicar aspropriedades distintivas dessa unidade compósita em ter-mos dos componentes. Assim, as propriedades das molé-culas podem ser explicadas em termos das propriedadesdos átomos e estes, por seu lado, em termos das suaspartículas componentes. Mas será que este método se con-firma em todos os campos de investigação? A dificuldadeé que a tradição do atomismo científico (como podemosresumidamente chamar-lhe) ainda vive em teoria, enquantoa prática científica já tomou um rumo diferente em mui-tos campos. Como já demonstrámos algures mais detalha-damente 1, quanto mais. intimamente integrados forem oscomponentes de uma unidade compósita ou, por outraspalavras, quanto mais alto for o grau da sua interdepen-dência funcional, menos possível será explicar as proprie-dades dos últimos apenas em função das propriedades daprimeira. Torna-se necessário não só explorar uma uni-dade compósita em termos das suas partes componentes,como também explorar o modo como esses componentesindividuais se ligam uns aos outros, de modo a formaremuma unidade. O estudo da configuração' das partes unitá-rias ou, por outras palavras, a estrutura da unidade cam-pósitã, torna-se um estudo de direito próprio. Esta é arazão pela qual a sociologia não se pode reduzir à psicolo-

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gia, à biologia ou à física: o seu campo de estudo — as con-figurações de seres humanos interdependentes — não sepode explicar se estudarmos os seres humanos isolada-mente 2. Em muitos casos é aconselhável um procedimentocontrário — só podemos compreender muitos aspectos docomportamento ou das acções das pessoas individuais secomeçarmos pelo estudo do tipo da sua interdependência,da estrutura das suas sociedades, em resumo, das configu-rações que formam uns com os outros.

Há indivíduos que recusam esta idéia. Confundem-nacom uma asserção metafísica muito antiga que muitasvezes se resume na afirmação de que «o todo é maior doque a soma das suas partes». Usando o termo «todo» .ou«totalidade» cria-se um mistério para resolver outro mis-tério. Devemos mencionar esta aberração, porque pareceque muita gente acredita que só podemos ser uma coisaou outra — ou atomistas ou holistas. Poucas controvérsiastêm sido tão desinteressantes como esta em que dois gru-pos antagônicos andam à volta, em círculo, cada qualdefendendo a sua própria tese, especulativa e não veri-ficável, atacando o parceiro cuja tese é igualmente espe-culativa e não experienciável, pela razão de que não háuma terceira alternativa. No caso do atomismo e doholismo, certamente que há.

Como é possível chegar à conclusão de que os indi-víduos, devido à sua interdependência e ao modo comoas suas acções e experiências se interpenetram, formemum tipo de configuração, uma espécie de ordem relati-vamente autônoma do tipo de ordem dominante, se, talcomo os biólogos ou os psicólogos, estudamos os indivíduosquer como representativos da sua espécie quer como pes-soas isoladas?

Esta questão apresenta dificuldades. Torna-se mais fácilresponder-lhe se demonstrarmos, como se fosse um tipo deexperiência mental, por meio de uma série de modelos,o modo como se entrelaçam os fins e acções dós homens.Deste modo, os processos inerentemente complexos deinterpenetração são temporariamente isolados e focadosde perto, tornando-se mais facilmente compreensíveis. Osmodelos a descrever resumidamente são, com excepção doPrimeiro, modelos de competição que (pelo menos nassuas formas mais simples) se assemelham a jogos reaistais como o xadrez, bridge, futebol ou tênis. Representama competição realizada — mais ou menos — segundo regras.O primeiro modelo, a que chamaremos «Competição Pri-mária», é no entanto uma excepção teórica altamente signi-

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ficativa; representa uma competição real e mortal entredois grupos e não é de modo algum um jogo. Tanto aCompetição Primária como os modelos de jogo são úteiscomo treino para a imaginação sociológica, que tende aser bloqueada por formas correntes de pensamento. Todosos modelos se baseiam em duas ou mais pessoas quemedem as suas forças. Esta é a situação básica que encon-tramos sempre que os indivíduos entram ou se encontramem relação uns com os outros. No entanto, a consciênciadesse facto é muitas vezes suprimida quando reflectimossobre as relações humanas. Não há necessidade de dizerporque é que isto se verifica. Cada leitor poderá pensarpara si mesmo quais as razões, sem muita dificuldade;pode encarar esta tarefa como uma espécie de jogo decompetição entre ele e o autor. De facto, é este tipo dedesafio que aqui discutimos. Ele constitui um elementonormal de todas as relações humanas. Constantemente sesucedem provas de força maiores ou menores: serei eu omais forte? — serás tu o mais forte? Passado algum tempopoderemos chegar a um certo equilíbrio de poder que,de acordo com circunstâncias pessoais e sociais, poderá serestável ou instável.

Para muita gente, o termo «poder» tem um aromadesagradável. Isto deve-se ao facto de, durante todo oprocesso de desenvolvimento das sociedades humanas,o equilíbrio de poder ter sido extremamente desigual; pes-soas ou grupos de pessoas com possibilidades relativa-mente grandes de acesso ao poder, exerciam habitualmenteessas possibilidades em pleno, muitas vezes de um modobrutal e sem escrúpulos, tendo em vista os seus própriosfins. As conotações ofensivas que consequentemente acom-panham o conceito de «poder» podem impedir que sedistinga entre os dados factuais a que o conceito de poderse refere e a avaliação que se faz desses dados. Portanto,é útil que aqui nos concentremos nos primeiros. O equilí-brio de poder não se encontra unicamente na grande arenadas relações entre os estados, onde é freqüentementeespectacular, atraindo grande atenção. Constitui um ele-mento integral de todas as relações humanas. Este é omodo como deveríamos ler os modelos que se seguem.Também deveríamos ter presente que o equilíbrio de poder,tal como de um modo geral as relações humanas, é pelomenos bipolar e, usualmente, multipolar. Os modelos pode-rão ajudar relativamente a uma melhor compreensão dotal equilíbrio de poder, não como uma ocorrência extraor-dinária mas como uma ocorrência quotidiana. Desde que

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nasce, a criança tem poder sobre os pais, e não só os paissobre a criança. Pelo menos a criança tem poder sobreeles, desde que estes lhe atribuam qualquer tipo de valor.#0 caso contrário, perde o seu poder. Os pais podem aban-donar a criança se ela chorar demasiado. Podem deixá-lamorrer de fome e, deliberadamente ou não, causar a suamorte, no caso de esta não desempenhar qualquer funçãopara eles. Igualmente bipolar é o equilíbrio de poder entreum escravo e o seu senhor. O senhor tem poder sobre oescravo, mas o escravo também tem poder sobre o seusenhor, na proporção da função que desempenha para osenhor — é a dependência que o senhor tem relativamentea ele. Nas relações entre pais e filhos e entre senhor eescravo, as oportunidades de poder são distribuídas muitodesigualmente. Porém, sejam grandes ou pequenas as dife-renças de poder, o equilíbrio de poder está sempre pre-sente onde quer que haja uma interdependência funcionalentre pessoas. Sob este ponto de vista, a utilização sim-ples do termo «poder» pode induzir em erro. Dizemos queuma pessoa detém grande poder, como se o poder foss3uma coisa que ela metesse na algibeira. Esta utilização dapalavra é uma relíquia de idéias mágico-míticas. O podernão é um amuleto que um indivíduo possua e outro não;é uma característica estrutural das relações humanas — deiodas as relações humanas.

Os modelos demonstram de um modo simplificado ocaracter relacionai do poder. Ao utilizarmos os modelosde jogos de competição para tornar evidentes as confi-gurações de poder, o conceito de «relação de poder» éaqui substituído pelo termo «força relativa dos jogado-res». E mesmo esta frase pode ser mal interpretada, se aconsiderarmos como um absoluto. Contudo, é óbvio quea «força» do jogo de um jogador varia relativamente aoseu adversário. O mesmo acontece com o poder, e commuitos outros conceitos da nossa linguagem. Os modelosde jogo ajudam a mostrar como os problemas sociológicosse tornam mais claros e como é mais fácil lidar com elesse os reorganizarmos em termos de equilíbrio, mais doque em termos reificantes. Conceitos de equilíbrio sãomuito mais adequados ao que pode ser realmente obser-vado quando se investigam as relações funcionais que osseres humanos interdependentes mantêm uns com osoutros, do que os conceitos modelados em objectosimóveis.

As relações humanas orientadas por regras não sePodem compreender se houver uma suposição tácita de

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que as normas ou as regras estão universalmente presen-tes desde o início como propriedades invariáveis das rela-ções humanas. Esta suposição impede que se pergunte ese observe como e em que circunstâncias as competiçõessem regras se transformam em* relações com regras fixas.Guerras e outros tipos de relações humanas com poucasou mesmo nenhumas regras provam só por si de que nãose trata de um problema meramente hipotético. As teoriassociológicas segundo as quais as normas são a mola prin-cipal das relações sociais não têm em conta as possibi-lidades de uma relação humana sem normas e regras; dãouma visão distorcida das sociedades humanas. Esta é arazão por que os modelos de jogo têm como preâmbuloa Competição Primária, um modelo que mostra a relaçãoentre dois grupos não regulados por normas. De acordocom uma tradição sociológica relevante, as normas identi-ficam-se com a estrutura. A Competição Primária podeservir como advertência de que é perfeitamente possívelestruturar as relações sociais entre os indivíduos, mesmoque estas se desenrolem sem regras. Mesmo uma situaçãoque aparece às pessoas nela envolvidas como o cúmuloda desordem faz parte de uma ordem social. Não há qual-quer razão para que as «desordens» históricas — guerras,revoluções, rebeliões, massacres e toda a espécie de lutaspelo poder — não possam ser explicadas. Fazê-lo, é na ver-dade uma das tarefas da sociologia. Seria impossível expli-car conflitos sem normas, se estes não tivessem qualquerestrutura e, nesse sentido, qualquer ordem. A distinçãoentre «ordem» e «desordem», tão significativa para aspessoas envolvidas nestes fenômenos, sociologicamentefalando não tem qualquer significado. Entre os homens,tal como na natureza, não é possível o caos absoluto.

Portanto, se a palavra «sociologia» é aqui utilizadacomo um termo técnico, para um nível específico de inte-gração, e se as relações são vistas a este nível, comoconstituindo um tipo particular de ordem, a palavra«ordem» não está a ser usada no mesmo sentido do queque quando se fala de «ordem e lei» ou, de uma formaadjectiva, de uma pessoa «ordenada» em oposição a umapessoa «desordenada». Fala-se de ordem no mesmo sentidoem que se fala de uma ordem natural, na qual a decadên-cia e a destruição têm o seu lugar como processos estru-turados lado a lado com o crescimento e a síntese e amorte e a desintegração lado a lado com o nascimento ea integração. Para as pessoas nelas envolvidas, estas mani-festações parecem ser contraditórias e irreconciliáveis.

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Como objectos de estudo, são indivisíveis e de igual impor-tância. Por conseguinte, seria ilusório explicar o processodas interpenetrações sociais apenas em termos de modelos,que se referem às relações humanas regulamentadas pornormas fixas. A Competição Primária pode servir comouma advertência daquilo que é e se torna socialmenteregulado.

A COMPETIÇÃO PRIMARIA:UM MODELO DE COMPETIÇÃO SEM REGRAS

Duas pequenas tribos, A e B, encontram-se quandoandam à caça numa grande extensão de floresta. Ambastêm fome. Por razões que lhes são alheias, há já algumtempo que lhes tem sido cada vez mais difícil encontrarcomida suficiente. A caça tem-se tornado cada vez maisrara, as raízes e os frutos selvagens cada vez mais difíceisde encontrar e, consequentemente, a rivalidade e inimizadeentre os dois grupos cada vez mais feroz. O grupo A éformado por homens e mulheres bem constituídos e tempoucos jovens e crianças. No grupo B, seu adversário, osindivíduos são mais pequenos, menos robustos, mais rápi-dos e, em média, consideravelmente mais jovens.

Assim, os dois grupos encontram-se no caminho. Envol-vem-se numa luta prolongada. Os indivíduos mais pequenosdo grupo B rastejam de noite até ao outro campo, matamum ou dois dos outros no escuro e desaparecem rapida-mente quando os companheiros dos homens mortos, maisvagarosos e bem constituídos, tentam persegui-los. Oshomens do grupo A vingam-se pouco tempo depois. Matammulheres e crianças do grupo B, enquanto os homensestão fora, na caça.

Aqui, como noutros casos semelhantes, um antago-nismo razoavelmente estável revela-se como forma deinterdependência funcional. Os dois grupos são rivais narecolha de reservas alimentares. Dependem um do outro,como num jogo de xadrez (que originariamente foi umJogo guerreiro), os movimentos de um grupo determinamos movimentos do outro grupo e vice-versa. As estruturasinternas de cada grupo são determinadas, em maior ounienor grau, pelo que cada grupo pensa que o outroirá fazer depois. Por outras palavras, os grandes rivaisdesempenham uma função recíproca, pois que a interde-pendência de seres humanos devido à sua hostilidade nãoconstitui menos uma relação funcional do que a que éDevida à sua posição como amigos, aliados e especialistas,

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ligados uns aos outros por meio de uma divisão de tra-balho. A função recíproca que desempenham baseia-se nacoerção que exercem mutuamente devido à sua interde-pendência. Não é possível explicar as acções, os planose os objectivos de qualquer um dos dois grupos se elesforem conceptualizados como decisões, planos e objectivoscomuns a cada grupo, considerado por si mesmo, indepen-dentemente do outro grupo. Só se podem explicar setomarmos em consideração as forças coercivas que osgrupos exercem um sobre o outro, devido à sua interde-pendência, à função bilateral que desempenham como ini-migos.

O conceito de «função», tal como tem sido usado emcerto tipo de literatura sociológica e antropológica, espe-cialmente pelos teóricos «estruturalistas-funcionalistas», nãosó se baseia numa análise inadequada do objecto a quese refere, como também contém um juízo de valor impró-prio que, para mais, não se explicita nem na interpretaçãonem na utilização. O caracter inadequado da avaliaçãodeve-se ao facto de — sem intenção premeditada — se ten-der a usar estes termos para designar as tarefas empreen-didas por uma parte da sociedade, que são «boas» para a«totalidade», pois que contribuem para a conservação eintegridade do sistema social existente. Às actividadeshumanas que real ou aparentemente fracassam nessarealização atribui-se consequentemente o estigma da «dis-funcionais». É evidente que neste ponto as crenças sociaisse misturaram com a teoria científica. Só por esta razãoé útil considerarmos com .mais cuidado as implicaçõesdo modelo constituído pelos dois grupos de guerreirosrivais. Como inimigos, desempenham reciprocamente umafunção, da qual temos de estar conscientes se queremoscompreender as acções e planos de cada uma das duastribos rivais. Aqui, como podemos ver, o termo «função»não é usado como expressão de uma tarefa desempenhadapor uma parte, dentro de uma «totalidade» harmoniosa.O modelo indica-nos que, tal como o conceito de poder,o conceito de função deve ser compreendido como umconceito de relação. Só podemos falar de funções sociaisquando nos referimos a interdependências que constran-gem as pessoas, com maior ou menor amplitude. Este ele-mento de coerção pode observar-se nitidamente na funçãodesempenhada por cada grupo tribal enquanto inimigorecíproco. A dificuldade em utilizarmos o conceito de fun-ção como uma qualidade de uma unidade social singularé simplesmente o facto de ele omitir a reciprocidade,

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ã bipolaridade ou a multipolaridade de todas as funções.É impossível compreendermos a fundo que A desempenharelativamente a B, sem atendermos à função que B desem-penha relativamente a A. Isto é o que se pretende dizerquando se afirma que o conceito de função é um conceitode relação.

De um modo mais simples, poderíamos dizer: quandoa alguém (ou a um grupo de pessoas) falta algo que outroalguém ou grupo de pessoas possui, o último desempenhauma função relativamente ao primeiro. Assim, os homenstêm uma função para com as mulheres e as mulherespara com os homens, os pais para com os filhos e os filhospara com os pais. Os inimigos desempenham uma funçãorecíproca, pois uma vez que se tornaram interdependentestêm o poder de possuir reciprocamente necessidades ele-mentares, como por exemplo a de conservação da sua inte-gridade física e social e, em última instância, a da suasobrevivência.

Compreender deste modo o conceito de «função»demonstra a sua relação com o poder dentro do quadrodas relações humanas. Pessoas ou grupos que desempe-nham funções recíprocas exercem uma coerção mútua.O seu potencial de retenção recíproca daquilo que neces-sitam é geralmente desigual, o que significa que o podercoercivo é maior de um lado do que do outro. Mudançasna estrutura das sociedades, nas relações globais de inter-dependências funcionais, podem induzir um grupo a con-testar o poder de coerção do outro grupo, o seu «potencial»de retenção. Neste caso, estas mudanças iniciam provasde força, que podem irromper subitamente, sob formas delutas agudas e mesmo violentas pelo poder, ou podemexistir de um modo latente, durante longos períodos, comoum conflito permanente inerente à estrutura da sociedadedurante uma fase do seu desenvolvimento. Hoje em dia,as tensões e os conflitos construídos deste modo sãocaracterísticos das funções interdependentes de trabalha-dores e empresários, assim como entre grupos de estados.Em períodos anteriores, foram característicos de relaçõestriangulares entre reis, nobres e cidadãos, ou entre segmen-tos de uma tribo3. Não são menos característicos dasinterdependências funcionais entre maridos e mulheres oupais e filhos. Na raiz desta provas de força estão geral-mente problemas como estes: quem tem maior potencialde reter aquilo de que o outro necessita? Quem, por con-seqüência, está mais ou menos dependente do outro?Quem, portanto, tem que se submeter ou adaptar mais

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às exigências do outro? Em termos mais gerais, quem temuma proporção de poder mais elevado e pode, por conse-guinte, orientar mais as actividades do outro grupo doque propriamente as suas, pode exercer mais pressão sobreeles do que ser pressionado? *Se muda a estrutura globaldas sociedades, o problema pode tornar-se este: um doslados pode disfuncionalizar o outro, destruir todo o con-junto de posições sociais sobre o qual assenta o poder doadversário, ou destruir fisicamente a globalidade dos seusadversários 4.

A Competição Primária apresenta-se como um caso defronteira. Nela, um dos lados tem como fim privar o outro,não só das suas funções sociais como também da suaprópria vida. Ao estudarmos as interdependências mutáveisdos homens e a interpenetração dos seus objectivos e acti-vidades, não podemos esquecer a interdependência dosantagonismos violentos representada pelo modelo de Com-petição Primária. Só quando tivermos consciência desseúltimo recurso da relação entre os seres humanos — a inter-dependência através de uma luta acérrima pela sobrevi-vência— é possível compreender a natureza básica dosproblemas que aqui mencionámos: como é que as pessoasforam capazes — e como é que são capazes — de regularalgumas das suas interdependências, de tal modo que nãoprecisem de recorrer a esta última saída para a resoluçãodas suas tensões e conflitos. Ao mesmo tempo, este modelode uma competição sem regras lembra-nos que todas asrelações entre os homens, todas as suas interdependênciasfuncionais, são processos. Hoje usamos muitas vezes estesconceitos de modo a sugerir a sua relação com uma con-dição estacionaria em que qualquer mudança é acidental.Termos como «interpenetração» assinalam a natureza pro-cessual de tais relações.

Voltemos ao exemplo do comportamento de luta entreas duas tribos. Ele mostra-nos claramente a dinâmica ima-nente de uma relação de conflito. Neste conflito de vidaou de morte, cada um dos lados está constantemente aplanear um próximo ataque, vivendo num estado de alertapermanente, antecipando-se às movimentações que o outrolado poderá eventualmente fazer. Como não se orientampor regras comuns, apoiam totalmente a sua orientaçãona idéia que cada um faz dos recursos de poder que olado tem relativamente aos seus — na idéia que fazemsobre a força, astúcia, armas, abastecimento e reservasde comida respectivos. Estes recursos de poder e forçarelativa, que neste caso representam essencialmente força

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física e planeamento de estratégias para a sobrevivênciaQ para a aniquilação, são constantemente postos à provapor meio de incursões e escaramuças. Cada um dos ladostenta por todos os meios enfraquecer o outro. Cada umé confrontado com uma interpenetração contínua, nummovimento em que cada indivíduo singular se envolvetotalmente. Neste caso, como se pode ver, os grupos jánão são concebidos em termos de conceitos tais comonormas, regras, tipos-ideais, etc., o que faz com que pare-çam constituídos exclusivamente por processos intelectuais;as interpenetrações dizem respeito aos seres circundantes.Os modelos têm que ser interpretados como representaçõesde seres humanos ligados uns aos outros no tempo e noespaço. Entre os problemas que a competição primáriaimplica consideremos os seguintes: o grupo de indivíduosmais velhos, mais altos, mais musculosos, mas mais vaga-rosos conseguirá atrair os indivíduos mais rápidos, maispequenos, menos experientes, mas mais ágeis para fora doseu campo, matando algumas das mulheres e crianças?E o outro grupo conseguirá incitar o primeiro com insultosaté que este se enfureça e persiga de modo a cair nas suasratoeiras, sendo aniquilado? Será que se enfraquecem edestroem mutuamente a ponto de não terem ambos hipó-tese de recuperação? Esta é a razão por que, mesmo estecaso de interdependência entre inimigos violentos encerra-dos, numa luta de vida e de morte, é um processo de inter-penetração. A seqüência de movimentos em ambos os ladossó pode ser compreendida e explicada em termos da dinâ-mica imanente na sua interdependência. Se a seqüênciadas acções em ambos os lados fosse estudada isolada-mente, perderia todo o sentido. A interdependência funcio-nal dos movimentos em ambos os lados não é menor nestecaso do que no caso de um conflito ou de uma cooperaçãocom regras. Embora a interpenetração de ambos os ladosseja, no decorrer do tempo, um processo sem normas,é no entanto um processo com uma estrutura nítidapodendo esta ser analisada e explicada.

MODELOS DE JOGO:MODELOS DE PROCESSOSDE INTERPENETRAÇÃO COM NORMAS

Tal como o modelo inicial de competição sem regras,os modelos de jogos de competição com regras são expe-riências intelectuais simplificadoras. Com a sua ajuda,

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é-nos possível destacar graficamente o caracter processualdas relações entre pessoas interdependentes. Ao mesmotempo, mostram como a teia de relações humanas mudaquando muda a distribuição de poder. Uma das maneirasde conseguir uma simplificação, tem sido a substituiçãode uma série de hipóteses sobre a força relativa dos joga-dores, pelas diferenças de potencial de poder das pessoasou dos grupos nas suas relações uns com os outros.

Os modelos têm sido dispostos de modo a destacarmais nitidamente a transformação sofrida pela onda deinter-relações humanas quando diminuem as diferenças depoder.

Jogos de duas pessoas

(Ia) Imaginemos um jogo entre duas pessoas, sendouma delas muito superior à outra — A é um jogador muitoforte e B é muito fraco. Neste caso, A tem uma grandecapacidade de controlo sobre B. Até certo ponto, A podeforçar B a fazer determinadas jogadas. Por outras pala-vras, A tem «poder» sobre B. Estes termos significamexactamente que A consegue controlar em alto grau osmovimentos de B. Mas esta «capacidade de obrigar» nãoé ilimitada; o jogador B, embora seja relativamente fraco,tem um grau de poder sobre A. Na verdade, tal como B,ao realizar cada uma das suas jogadas, tem de se orientartomando em conta as anteriores jogadas de A, também Atem de se orientar atendendo às jogadas anteriores de B.B pode não ser tão forte como A, mas tem de ter umacerta força — se ele fosse zero não haveria jogo. Por outraspalavras, em todos os jogos os participantes têm de exer-cer sempre um controlo mútuo. Ao falarmos do «poder»que A tem sobre B, este conceito não se refere a umabsoluto mas a uma proporção de poder — a diferença(a favor de A) entre a força que A e B têm no jogo. Estadiferença — o equilíbrio desigual entre as forças dos doisjogadores no jogo — determina até que ponto as jogadasde A poderão moldar as de B, ou vice-versa. De acordocom estas hipóteses de modelo (Ia), a diferença entre aforça dos jogadores no jogo (a sua proporção de poder)é muito grande a favor de A. Igualmente grande é acapacidade que A tem de forçar um movimento determi-nado (um determinado «comportamento» ou «acção») noseu adversário5.

Contudo, a grande força de A no jogo não lhe dáapenas um grau de controlo sobre o seu adversário B.

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Também lhe dá, em acréscimo, um alto grau de controlosobre o jogo enquanto tal. Embora o seu controlo sobreo jogo não seja absoluto, pode em grande parte deter-minar o seu curso (o processamento do jogo) e, portanto,também o seu resultado. Ao interpretarmos este modelo,é importante fazer esta distinção conceptual entre doistipos de controlo, que resultam da força bastante superiorde um dos jogadores; por um lado, o controlo que elepode exercer sobre o seu adversário e, por outro, o con-trolo que como tal lhe é dado sobre p decurso do jogo.Isto não significa que, pelo facto de ser possível fazermosuma distinção entre o controlo sobre o jogador e o con-trolo sobre o jogo, se possa pensar e falar como se ojogador e o jogo existissem independentes um do outro.

(Ib) Imaginemos que a diferença entre a força de Ano jogo e a de B diminuía. Não interessa que isto aconteçapelo facto de a força de B aumentar ou pelo facto dade A diminuir. As possibilidades de A controlar as joga-das de B — ou seja o seu poder sobre B — diminuem pro-porcionalmente; as possibilidades de B controlar A aumen-tam proporcionalmente. O mesmo se verifica quanto à capa-cidade de A determinar o decurso e o resultado do jogo.Quanto mais diminui a diferença de forças entre A e Bmenos poder terá cada jogador para forçar uma determi-nada táctica no outro. Ambos os jogadores terão corres-pondentemente menos possibilidades de controlar as con-figurações mutáveis do jogo; e menos dependentes serãoas configurações mutáveis do jogo relativamente aos objecti-vos e planos que cada jogador formará por si mesmo sobreo decurso do jogo. Inversamente, mais forte se torna adependência dos planos globais dos jogadores e das suasjogadas relativamente às configurações mutáveis do jogo— ao processamento do jogo. Quanto mais o jogo se asse-melha a um processo social, menos se assemelha à reali-zação de um processo individual. Por outras palavras,à medida que a desigualdade de forças dos dois jogadoresdiminui, resultará da interpenetração de jogadas de duasPessoas individuais, um processo de jogo que nenhumadelas planeou.

Jogos de muitas pessoas a um só nível

(2a) Imaginemos um jogo em que o jogador A estásimultaneamente a jogar com vários outros indivíduos B,

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C, D, etc. nas seguintes condições: A é muito mais fortedo que qualquer um dos seus adversários e está a jogarseparadamente com cada um deles. Neste caso, a dispo-sição dos jogadores não é muito diferente da que foi des-crita no modelo (Ia). Os jogadores B, C, D, etc., não estãoa jogar em conjunto mas separadamente, e a única liga-ção que têm entre si ó o facto de cada indivíduo jogarseparadamente contra o mesmo adversário mais forte, A.Portanto, basicamente é uma série de jogos para duas pes-soas, tendo cada jogo o seu equilíbrio de poder e proces-sando-se de um modo próprio. O processamento dos jogosnão é directamente interdependente. Em cada um dosjogos, A é esmagadoramente mais poderoso; tem um altograu de controlo, tanto sobre o seu adversário como sobreo decurso do próprio jogo. Em cada um destes jogos adistribuição de poder é inequivocamente desigual, não elás-tica e estável. Talvez tivéssemos que acrescentar que aposição se alteraria com desvantagem para A se aumen-tasse o número de jogos independentes que ele joga.É possível que a sua superioridade sobre os jogadoresindependentes B, C, D e outros, pudesse diminuir gra-dualmente devido a um aumento do número dos adver-sários, todos independentes uns dos outros. Há um limitepara o número das relações activas independentes umasdas outras que uma pessoa pode realizar simultaneamente— por assim dizer, em compartimentos estanques.

(2b) Imaginemos um jogo em que o jogador A jogasimultaneamente com vários adversários mais fracos, nãoseparadamente, mas contra todos eles ao mesmo tempo.Assim, joga um jogo isoladamente contra um grupo deadversários, em que cada um por si é mais fraco do que A.Este modelo permite a formação de várias constelaçõesno equilíbrio de poder. A mais simples é aquela em queos jogadores B, C, D e os seus colegas formam um grupodirigido contra A, e não são perturbados por tensões entresi. Mesmo neste caso há mais dúvidas do que em (2a)sobre a distribuição de poder entre A e o grupo que selhe opõe, e sobre a possibilidade de um lado ou de outrocontrolar o decurso do jogo. Sem dúvida que o facto deum grupo ser inequivocamente formado por muitos joga-dores mais fracos representa um enfraquecimento para asuperioridade de A. Comparando com (Ia) há muito menoscerteza sobre o controle e planeamento do jogo e, por-tanto, menos certeza na previsão do seu resultado. Se osgrupos formados por jogadores mais fracos não tiverem

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tensões internas fortes, isto constituirá um factor de poderem seu favor. Inversamente, se os grupos formados porjogadores mais fracos tiverem fortes tensões internas, issoconstituirá um factor de podef a favor do seu adversário.Quanto maiores forem as tensões, mais possibilidades Aterá de controlar as jogadas de B, C, D e os seus aliados,assim como de controlar o decurso geral do jogo.

Em contraste com modelos de tipo ( D e com o modelode transição (2a), em que os jogos em questão são paraduas pessoas ou, falando de outro modo, para gruposbipolares, (2b) é exemplo de um jogo multipolar, ou seja,de um jogo para várias pessoas. Pode ser consideradocomo um modelo de transição para (2c).

(2c) Imaginemos que a força de A diminui num jogomultipolar, comparada com a dos seus adversários B, C,D e outros. As possibilidades de A controlar as jogadasdos seus adversários e de controlar o curso do jogo comotal mudam no mesmo sentido que (Ita), contando que ogrupo de adversários seja razoavelmente unido.

(2d) Imaginemos um jogo em que dois grupos B, C,D, E e U, V, W, X jogam uns contra os outros,segundo regras que dão a ambos os lados oportunidadesiguais de vencer, tendo cada lado aproximadamente amesma força. Neste caso, nenhum dos lados consegueexercer uma influência decisiva sobre o outro, na confusãode jogadas e contra-jogadas. Neste caso o decurso do jogonão pode ser controlado isoladamente por nenhum dosgrupos. O entrelaçar de jogadas efectuados alternadamentepor cada jogador e grupo de jogadores esboça-se de modoa formar um certo tipo de ordem, que pode ser definidoe explicado. Mas, para proceder assim, um observador temque se distanciar das posições tomadas por ambos oslados, tal como aparecem quando considerados isolada-mente. A ordem em questão é de um determinado tipo,uma teia ordenada de configuração, na qual nenhumaacção por parte de cada um dos lados poderá ser enca-rada como acção exclusiva desse lado. Antes deverá serinterpretada como continuando o processo de interpene-tração e fazendo parte da futura interpenetração de acçõesrealizada por ambos os lados.

Jogos multipessoais a vários níveis

Imaginemos um jogo para muitas pessoas, em que onúmero de participantes está constantemente a crescer.

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TIsto aumenta a pressão efectuada sobre os jogadores paraque mudem o seu agrupamento e organização. Um jogadorindividual terá que esperar cada vez mais pela sua vezde jogar. Tornar-se-á cada vez mais difícil ao jogador aconstituição de uma representação mental do decurso dojogo e da sua figuração. Faltando-lhe tal representaçãopode sentir-se perdido. Precisa de uma representaçãorazoavelmente clara do decurso do jogo e da sua confi-guração geral, que muda constantemente à medida que ojogo avança, para poder, de acordo com ela, planear asua próxima jogada. A configuração dos jogadores inter-dependentes e a do jogo que conjuntamente jogam, cons-titui uma estrutura para cada uma das jogadas indivi-duais. O jogador individual deve estar em posição de veresta configuração de modo a poder decidir qual a jogadaque lhe dará melhor oportunidade de ganhar ou de sedefender contra os ataques do adversário. Mas há umlimite para a expansão da teia de interdependências den-tro da qual um jogador individual se pode orientar adequa-damente planeando a sua estratégia pessoal sobre umasérie de jogadas. Se o número de jogadores interdepen-dentes crescer, a configuração, desenvolvimento e orien-tação do jogo tornar-se-ão cada vez mais opacas para ojogador individual. Por muito forte que seja, cada vezestará menos apto a controlá-los. Contudo, do ponto devista do jogador individual, há uma teia entrelaçada, cons-tituída por um número cada vez maior de jogadores, fun-cionando cada vez mais como se tivesse uma vida própria.Também aqui o jogo não é mais do que um jogo jogadopor muitos indivíduos. Porém, à medida que cresce onúmero de jogadores, o jogador individual não só começaa achar o jogo cada vez mais opaco e incontrolável comotambém se torna consciente da sua impossibilidade emcompreendê-lo e controlá-lo. Tanto a configuração do jogo,como a visão que o jogador individual tem dele — o modocomo ele se apercebe do decurso do jogo — mudam con-juntamente numa direcção específica. Mudam numa inter-dependência funcional, como duas dimensões inseparáveisdo mesmo processo. Podem ser considerados separada-mente, mas não como se fossem separados.

À medida que cresce o número de jogadores, torna-secada vez mais difícil para cada indivíduo — e consequente-mente para todos os jogadores — efectuar jogadas adequa-das ou correctas, avaliadas a partir da sua própria posiçãona totalidade do jogo. O jogo tornar-se-á progressivamente

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mais desorganizado; o seu funcionamento deteriorar-se-á.E, ao deteriorar-se o funcionamento", há uma pressãocrescente que se exerce no grupo de jogadores com vistaà sua reorganização. Abrem-se várias possibilidades; men-cionaremos três, embora só nos seja possível abordar deta-lhadamente uma delas.

Um acréscimo no número de jogadores pode levar ogrupo à desintegração, fragmentando-o numa série depequenos grupos. A sua relação uns com os outros poderevestir-se de duas formas possíveis. Os grupos fragmen-tados podem, quer movimentar-se à parte e continuar ajogar totalmente independentes dos outros grupos, querconstituir uma nova configuração de grupos interdepen-dentes, cada um jogando de um modo mais ou menosautônomo, embora todos rivalizem em certas oportunida-des, que todos eles procuram. Uma terceira possibilidadeé a de o grupo de jogadores — em certas circunstânciasque aqui não podemos referir — se manter integrado, for-mando, no entanto, uma configuração altamente complexa;pode desenvolver-se um grupo de dois níveis a partir deum grupo de um único nível.

Modelos de jogo de dois níveis: tipo oligárquico

(3a) A pressão exercida sobre os jogadores individuais,devido a um aumento do seu número, pode provocar umamudança dentro do grupo. Um grupo em que os indiví-duos jogam com os outros a um mesmo nível, pode con-verter-se num grupo de jogadores de «dois níveis». Todosos jogadores se mantêm interdependentes mas já nãojogam directamente uns com os outros. Esta função édesempenhada por funcionários especiais que coordenam ojogo — representantes, delegados, líderes, governos, cortesregias, elites monopolistas e assim por diante. Conjunta-mente, formam um segundo grupo mais pequeno. Pode-ríamos dizer que formam um grupo de nível secundário.Estes são os que jogam directamente uns com os outrose uns contra os outros, mas que se mantêm, no entanto,ligados de um ou de outro modo à massa de jogadoresque agora constituem uma «primeira camada». Tambémnão pode haver um segundo nível sem que haja um pri-meiro nível; as pessoas num segundo- nível apenas têmcomo função respeitar as do primeiro nível. Cada um dosníveis é mutuamente dependente possuindo reciprocamentediferentes oportunidades de poder, correspondentes ao grau

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da sua dependência mútua. Mas a distribuição de poderentre os indivíduos do primeiro e do segundo níveis podevariar muitíssimo. As diferenças de poder entre eles podemser muito grandes — em favor dos últimos — e podem tor-nar-se cada vez mais pequenas.

Consideremos o primeiro caso. A diferença entre oprimeiro e o segundo nível é muito grande. Só os joga-dores do segundo nível participam directa e activamenteno jogo. Têm o monopólio de acesso ao jogo: cada umdos jogadores do segundo nível encontra-se num círculode actividade, que já pode ser observado em jogos de umsó nível. Há um pequeno número de jogadores de modoque cada um está em posição de ter uma visão da confi-guração dos jogadores e do jogo; pode planear a sua estra-tégia de acordo com esta visão e pode intervir directa-mente em cada jogada na configuração do jogo que estáem constante movimento. Além do mais, pode influenciaresta configuração com maior ou menor alcance, conformea sua própria posição no grupo, podendo seguir as con-seqüências das suas jogadas no processo do jogo. Podeobservar as jogadas contrárias dos outros jogadores e omodo como a interpenetração das suas próprias jogadascom as dos outros se expressa através da configuraçãosempre mutável do jogo. Pode imaginar que o decurso dojogo, à medida que ele o vê desenrolar-se, lhe é mais oumenos transparente. Membros de elites oligárquicas pré--industriais — por exemplo cortesãos, homens como o duquede Saint-Simon, que escreveu as suas memórias no tempode Luís XIV — sentiam habitualmente . que tinham umconhecimento exacto das regras não escritas que orienta-vam o jogo no centro da sociedade-estado.

A ilusão de que o jogo é essencialmente transparentenunca se justifica completamente na realidade; e configu-rações de dois níveis — para não mencionarmos configu-rações de três, quatro ou cinco níveis, que aqui não tra-taremos devido à sua complexidade — são construçõesdemasiado complicadas pela sua estrutura e orientaçãopara serem clarificadas sem que haja uma investigaçãocientífica completa. Mas tais investigações só começam aser possíveis num estádio de desenvolvimento em que aspessoas já são capazes de ter consciência da sua faltade conhecimentos. Isto permite-lhes reconhecer a opaci-dade relativa do jogo a que se referem as suas jogadase a possibilidade de corrigir a sua falta de conhecimentospor meio de uma investigação sistemática. Isto só é possí-vel marginalmente dentro da estrutura de sociedades dinás-

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ticas aristocráticas que correspondem a um modelo oli-gárquico de dois níveis. O jogo que o grupo joga a nívelsuperior será encarado pelos jogadores não como um pro-cessamento do jogo mas como uma acumulação de acçõesde indivíduos. O valor explicativo desta «visão do jogo» étanto mais limitado quanto nenhum jogador individual numjogo de dois níveis, por muita força que tenha, possui algode semelhante à habilidade do jogador A no modelo (Ia)de controlar os outros jogadores, ou, ainda mais, de deter-minar o processamento do jogo. Mesmo num jogo que nãotenha mais do que dois níveis, a configuração do jogo edos jogadores já possui um grau de complexidade qufcimpede qualquer indivíduo de usar a sua superioridadeorientando o jogo na direcção das suas próprias metas edesejos. Ele realiza as suas jogadas tanto para fora comopara dentro da teia constituída por jogadores interdepen-dentes, onde há alianças e inimizades, cooperação e rivali-dade a diferentes níveis. Podemos distinguir pelo menostrês, senão quatro diferentes formas de equilíbrio de podernum jogo de dois níveis. Ajustam-se como rodas dentadas e,assim, indivíduos que são inimigos a um determinado nívelpodem ser aliados a outro nível. Primeiro, há o equilíbriode poder dentro do grupo pequeno de nível superior; emsegundo lugar, o equilíbrio de poder entre jogadores doprimeiro nível e jogadores do segundo; em terceiro lugar,o equilíbrio de poder entre os grupos de nível mais baixoe, se quisermos prosseguir, poderíamos acrescentar o equi-líbrio de poder dentro de cada um desses grupos de nívelbaixo. Modelos com três, quatro, cinco ou mais níveisteriam formas de equilíbrio de poder correspondentementemais interligadas. De facto, seriam modelos melhores emais adequados à maioria das sociedades estados7 contem-porâneas. Aqui, limitamo-nos aos modelos de jogo de doisníveis.

Num jogo de dois níveis de um gênero mais antigoe oligárquico, o equilíbrio de poder a favor do nível maiselevado é muito desproporcionado, rígido e estável. O cír-culo mais pequeno de jogadores, a nível mais alto, é muitosuperior em força ao círculo maior no nível mais baixo.No entanto, a interdependência dos dois círculos impõelimitações a cada jogador, mesmo aos de nível mais alto.Mesmo um jogador no nível mais alto, numa posição muitoforte, tem menos possibilidade de controlar o curso doJogo do que por exemplo o jogador A no modelo (2b).Também é de notar que as suas possibilidades de controlar0 jogo são mais fracas do que as do jogador A no

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modelo (Ia). Há uma razão forte para mais uma vezacentuarmos esta diferença: nas descrições históricas — quemuitas vezes apenas dizem respeito ao núcleo restrito dejogadores nos níveis mais altos de uma sociedade de mui-tos níveis — as acções dos jogadores em questão são mui-tas vezes explicadas como se fossem as jogadas do joga-dor A no modelo (Ia). Mas, na verdade, as três ou quatroformas de equilíbrio de poder, interdependentes nummodelo oligárquico de dois níveis, tornam possíveis mui-tas constelações que limitam consideravelmente as possi-bilidades de controlo mesmo pôr parte do jogador maisforte no nível superior. Se o equilíbrio global de um taljogo possibilitar que todos os jogadores em ambos osníveis se possam unir e jogar em conjunto contra o joga-dor mais forte, A, então são extremamente tênues as possi-bilidades que A tem de usar de uma estratégia que osforce a jogar de modo a lhe serem favoráveis, tendo estesgrandes hipóteses de usar uma estratégia que leve A aefectuar as jogadas que eles escolheram. Por outro lado,se houver grupos rivais de jogadores no nível superior,razoavelmente iguais em força, se estes se equilibrarem,sem que um ou outro possuam a chave de uma vitóriadecisiva, então um jogador individual A, de nível mais altomas estando fora de qualquer um dos grupos, terá umaboa oportunidade de conduzir os grupos rivais e, portanto,o decurso do jogo, contando que o faça com a maior cau-tela possível e com a maior .compreensão das caracterís-ticas destas configurações complexas. Neste caso, a suaforça repousa na intuição e habilidade com que capta asoportunidades oferecidas pela constelação das forças depoder, fazendo dela as bases da sua estratégia. Na ausên-cia de A, os grupos de nível mais baixo serão fortalecidospela rivalidade entre os grupos de nível mais alto.

Modelos de jogo a dois níveis:tipo democrático crescentemente simplificado

(3b) Imaginemos um modelo de dois níveis em quea força dos jogadores de nível mais baixo vai crescendo,lentamente mas de um modo nítido, relativamente à forçados jogadores de nível mais alto. Se diminuirem as dife-renças de poder entre os dois grupos, reduzindo-se as suasdesigualdades, então o equilíbrio de poder tornar-se-á maisflexível e elástico. Tenderá mais a flutuar, numa ou noutradirecção.

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A, o jogador mais forte do nível mais alto, pode serainda superior aos outros jogadores de nível mais alto.Quando os jogadores de nível mais baixo se tornam maispoderosos, as jogadas que A realiza durante o jogo cairãosob o controlo de uma configuração muito mais compli-cada do que aquela que influenciou A no modelo ante-rior (3a). Também aqui, a disposição dos jogadores queformam o nível mais baixo não tem meios para conduziro curso do jogo. Mas ainda tem um poder manifesto com-parativamente pequeno e nenhum controlo directo sobreo grupo de nível mais alto. Geralmente, os jogadores denível mais baixo apenas exercem uma influência latentee indirecta, sendo uma das razões a sua falta de organi-zação. Entre os sinais manifestos da sua força latente estãoa vigilância incessante dos jogadores de nível mais altoe a rede de precaução hermeticamente tecidas, servindopara os manter sob controlo, e que se estreita muitas vezesquando aumenta a sua força potencial. Em qualquer doscasos, as dependências que unem os jogadores de nívelmais alto aos de nível mais baixo constrangem os primei-ros de um modo muito menos visível. A sua superioridadeainda é tão grande que tendem a crer que são absoluta-mente livres relativamente aos jogadores de nível maisbaixo e que se poderão comportar como muito bem qui-serem. Sentem que apenas estão constrangidos e limita-dos pela sua interdependência relativamente aos camaradas— jogadores do mesmo nível — e pelo equilíbrio de poderque entre eles existe.

Se diminuirem as diferenças de poder entre os doisníveis, a dependência do nível mais alto em relação aomais baixo tornar-se-á mais forte — e sendo mais forte,todos os participantes têm dela maior consciência. Torna-semais evidente. Se as diferenças de poder continuarem adiminuir, mudam as funções dos jogadores de nível maisalto e, por fim, mudam os próprios jogadores. Enquantoas diferenças de poder forem grandes, parecerá às pessoasde nível superior que todo o jogo e, particularmente, osjogadores de nível inferior estão lá para os beneficiarem.À medida que o equilíbrio de poder se altera, muda esteestado de coisas. Cada vez mais parece a todos os parti-cipantes que os jogadores de nível mais alto estão no jogoPara benefício dos jogadores de nível mais baixo. Os pri-meiros tornam-se gradualmente, de uma forma mais abertae precisa, funcionários, porta-vozes ou representantes deum ou outro grupo de nível mais baixo. No modelo (3a)0 jogo compreendido no pequeno círculo de alto nível

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é nitidamente o centro de todo o jogo de dois níveis,aparecendo globalmente os jogadores de baixo nível comofiguras periféricas, como meras estatísticas. Porém, nomodelo (3b), à medida que cresce a influência dos joga-dores de baixo nível, o jogo torna-se cada vez mais com-plexo para todos os jogadores de nível mais alto. A estra-tégia de cada um, nas suas relações com os grupos denível mais baixo que representa, torna-se um aspecto dojogo tão importante como a sua estratégia relativamenteaos outros jogadores de nível mais alto. Agora cada joga-dor individual está muito mais constrangido e limitado,refreado pelo número de jogos simultaneamente interde-pendentes que tem que jogar com jogadores ou gruposde jogadores que se tornam cada vez menos inferioressocialmente. A configuração global destes jogos entrecru-zados torna-se visivelmente diferenciada e muitas vezesnão pode ser avaliada de um modo nítido, mesmo pelojogador mais dotado, de modo que se torna cada vez maisdifícil para o jogador, decidir por si mesmo qual a jogadamais adequada a efectuar.

Os jogadores de nível mais alto — por exemplo, os oli-garcas de uma partido — só estão aptos a efectivar as suasposições especiais se se tornarem membros de grupos maisou menos organizados. Grupos de jogadores de ambos osníveis ainda se podem reunir para formar uma espécie deconfiguração que permita a um indivíduo manter um equi-líbrio entre grupos interdependentes mas rivais. Destemodo, alcança uma posição que lhe dá mais oportunidadesde poder do que a qualquer outro indivíduo da confi-guração. Mas em condições que produzem um decréscimonas diferenças de poder — uma difusão geral de oportuni-dades de poder entre os jogadores e os grupos de joga-dores— se uma configuração torna as oportunidades depoder invulgarmente grandes, acessíveis a um único joga-dor ou a um pequeno grupo de jogadores, será extrema-mente instável, de acordo com esta estrutura de poderlatente. Tal configuração só aparecerá em tempos de crisee só com dificuldades consideráveis se poderá manter porum período mais longo. Mesmo um jogador que presen-temente ocupe uma posição de grande força terá muitomais responsabilidades para com os jogadores do nívelmais baixo cuja posição se tornou mais forte, do quetinha um jogador numa posição igualmente forte, nascondições do modelo (3a). O jogo coloca o jogador destaposição num estado de tensão permanente, muito maiordo que a suportada pelo jogador colocado na mesma

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situação nas condições do modelo (3a). Neste modelo, podeparecer que, em condições semelhantes o jogador e oseu grupo controlam e orientam eles próprios todo ojogo. À medida que a distribuição de poderes se tornamenos desigual e mais difusa, também é mais evidenteque um jogador isolado ou uma posição do grupo, poucopodem controlar e guiar o jogo. Na verdade, passa-se ocontrário. Torna-se claro que o decurso do jogo — que éo produto de jogadas que se cruzam, efectuadas por umgrande número de jogadores, entre os quais há uma dife-rença de poderes enfraquecida e tendendo cada vez maisa enfraquecer — por sua vez determina a estrutura dasjogadas individuais de cada jogador.

Portanto, vai mudar a concepção que os jogadorestêm do seu jogo — ou seja, as suas «idéias», os processosde discurso e pensamento com as quais tentam assimilare dominar a sua experiência do jogo. Em vez dos joga-dores acreditarem que o jogo vai tomando forma a partirdas jogadas individuais, manifestam uma tendência (quecresce lentamente) a produzir conceitos impessoais quedominem a sua experiência do jogo. Estes conceitos impes-soais têm em conta uma certa autonomia do processamentodo jogo relativamente às intenções dos jogadores indivi-duais. Implicam um processo longo e laborioso, produ-zindo meios de pensamento transmissíveis que correspon-derão à natureza do jogo, considerando-o como algo nãoimediatamente controlável, mesmo pelos próprios jogado-res. Usam-se metáforas que oscilam constantemente entrea idéia de que o decorrer do jogo pode reduzir-se àsacções dos jogadores individuais e a outra idéia que é ade que este é de uma natureza surprapessoal. Como ojogo não pode ser controlado pelos jogadores é facilmenteconcebido como uma espécie de entidade «super-humana».Durante muito tempo é particularmente difícil que os joga-dores compreendam que a sua incapacidade de controlaro jogo deriva da sua dependência mútua, das posições queocupam enquanto jogadores e das tensões e conflitos ine-rentes a esta teia que se entrelaça.

COMENTÁRIO

1. Seja qual for o seu conteúdo teórico, estes mode-*os de interpretação não são teóricos no sentido habitualdo termo. São modelos áiãácticos. Deste modo, a sua fina-Üdade essencial é facilitar a reorientação dos nossos pode-

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rés imaginativos e conceptuais de modo a que compreen-damos a natureza das tarefas com que se defronta asociologia. Diz-se que é tarefa da sociologia investigar sobrea sociedade. Mas não se define claramente o que devemosentender por «sociedade». Em muitos aspectos, a sociolo-gia parece ser uma ciência em busca do seu objecto. Istodeve-se em parte ao facto dos materiais verbais e instru-mentos conceptuais de que a nossa língua dispõe para defi-nir e investigar esse objecto, não serem suficientementeflexíveis. Qualquer tentativa feita no sentido de os desen-volver, de modo a que correspondam à especificidade desteobjecto fundamental, causará dificuldades de comunicação.Estes modelos didácticos são meios de ultrapassar tais difi-culdades. Utilizando a imagem dos participantes dum jogocomo metáfora das pessoas que formam as sociedades,é mais fácil repensar as idéias estáticas que se associamà maior parte dos conceitos correntes usados neste con-texto. Elas deverão transformar-se nos conceitos muito mais •versáteis de que necessitamos, se queremos melhorar- oequipamento mental com que tentamos resolver os proble-mas da sociologia. Só" precisamos de comparar as possibi-lidades imaginativas de conceitos tão estáticos como o deindivíduo e sociedade, ou o de ego e sistema, com as possi-bilidades imaginativas abertas pelo uso metafórico de váriasimagens de jogos e de jogadores; a comparação ajuda-nosa compreender que estes modelos serviram para desenvol-ver as nossas potências imaginativas.

2. Simultaneamente, os modelos servem para tornarmais acessíveis à reflexão científica certos problemas rela-tivos à vida social. Na verdade, estes problemas desem-penham um papel fundamental em todas as relações huma-nas, mas são muitas vezes ignorados quando se teorizaacerca delas. O mais importante entre eles é o problemado poder. Esta omissão pode em parte ser justificada pelosimples facto de os fenômenos sociais a que este conceitose refere serem extremamente complexos. Para simplificaro problema, uma forma única — talvez a forma militar oua econômica—, das muitas possíveis origens do poder aces-síveis às pessoas, é muitas vezes tomada como a origemdo poder, da qual se decalcam todas as outras formas deexercício de poder. As dificuldades que encontramos aoreflectir sobre os problemas do poder, radicam na natu-reza polimorfa das suas origens. Estes modelos não têmcomo finalidade explorar os problemas aqui levantados, tra-tados quer de um modo extensivo quer restrito. Neste caso,

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a tarefa não é resolver o problema do poder mas simples-mente «desbloqueá-lo», tornando-o facilmente acessível comosendo um dos problemas centrais em que a sociologia seempenha. A necessidade de um trabalho deste tipo rela-ciona-se com a dificuldade óbvia em examinarmos as ques-tões relativas ao poder sem nos envolvermos emocional-mente. O poder de outra pessoa deve ser temido: podeobrigar-nos a praticar um determinado acto quer queira-mos quer não. O poder é suspeito: as pessoas usam depoder para explorar outras para os seus próprios fins.O poder parece imoral: todos devíamos poder tomar pornós próprios todas as nossas decisões. E a névoa de medoe desconfiança que se apega a este conceito transfere-secompreensivelmente para a sua utilização numa teoria cien-tífica. Podemos dizer que alguém «tem» poder e ficarmospor aí, embora tal utilização, que implica tomar o poderpor uma coisa, nos conduza a um beco sem saída. Umasolução mais adequada para os problemas de poder seriao considerarmos este, de um modo inequívoco, como sendouma característica estrutural de uma relação, que a pene-tra totalmente; como característica estrutural que é, nãoé boa nem má. Pode mesmo ser boa e má. Dependemosdos outros; os outros dependem de nós. Na medida emque somos mais dependentes dos outros do que eles sãode nós, em que somos mais dirigidos pelos outros do queeles são por nós, estes têm poder sobre nós, quer nostenhamos tomado dependentes deles pela utilização quefizeram da força bruta ou pela necessidade que tínhamosde ser amados, pela necessidade de dinheiro, de cura, deestatuto, de uma carreira ou simplesmente de estímulo.Seja qual for a razão, numa relação directa entre duaspessoas, a relação que A tem para com B é também arelação que B tem para com A. Neste tipo de relações,a dependência de A relativamente a B está sempre rela-cionada com a dependência de B relativamente a A, exceptoem situações marginais. Mas pode ser que um seja muitomenos importante do que o outro. Pode acontecer que opoder de B sobre A, a sua capacidade de controlar e orien-tar o decorrer da acção de A, seja superior ao poder que Atem sobre B. Este equilíbrio de poder é avaliado em favor<te B. Os modelos da primeira série ilustram alguns dostipos mais simples de equilíbrio de poder que ocorrem nasrelações directas entre duas pessoas, e as respectivas con-seqüências destas relações. Ao mesmo tempo, também nosPoderão ajudar a corrigir o hábito de utilizar o conceito

relação como um conceito estático, recordando-nos que

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todas as relações — tal como os jogos humanos — são pro-cessos.

Mas as relações, e as condições de dependência queimplicam, podem compreender não só duas mas muitaspessoas. Tomemos uma configuração formada por muitosindivíduos interdependentes, em que todas as posições sãodotadas de oportunidades de poder aproximadamente iguais.A não é mais poderoso do que B, nem B mais poderosodo que C, nem C mais poderoso do que D e assim pordiante e vice-versa. O facto de serem interdependentes detantas pessoas, obrigará muito provavelmente os indivíduosa agir de uma forma diferente da que adoptariam casonão fossem obrigados a tal. Neste caso, temos tendênciapara personificar ou reificar a interdependência. A mito-logia que a utilização lingüística impõe leva-nos a acre-ditar que deve haver «alguém» que «detenha o poder».E assim, porque sentimos a pressão do «poder», inventa-mos sempre alguém que o exerça, ou um tipo de entidadesobre-humana como seja a «natureza» ou a «sociedade»nas quais o poder reside. Em pensamento, tornamo-las res-ponsáveis pela coacção a que nos sentimos sujeitos. Hácertas desvantagens práticas e teóricas no facto de nãoestarmos presentemente aptos a distinguir nitidamenteentre as coacções que qualquer interdependência possívelentre as pessoas exerce sobre essas pessoas — mesmo numaconfiguração em que todas as posições são igualmentedotadas de oportunidades de poder — e as coacções queradicam na variação de oportunidades de poder entre posi-ções sociais diferentes. Mas não podemos entrar agora noâmbito dos problemas aqui vislumbrados. Basta-nos dizerque os seres potenciais que somos à nascença nunca sedesenvolveriam até aos seres que somos, se nunca tivésse-mos sido sujeitos às obrigações impostas pela interdepen-dência. Porém, devemos acrescentar ainda que as formasactuais de interdependência exercem um tipo de coer-ção que conduz à realização óptima das potencialidadeshumanas.

3. No modelo (Ia) a estrutura do jogo é grandementedeterminada pelas intenções e acções de uma pessoa.O decurso do jogo pode ser explicado em termos de pla-nos e objectivos de um indivíduo. Assim, o modelo (Ia)corresponderá provavelmente às idéias de um maior númerode pessoas sobre o modo como se poderão explicar osacontecimentos sociais. Ao mesmo tempo, é uma reminis-cência dum bem conhecido modelo teórico da sociedade,

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que começa com a interacção de dois indivíduos, inicial-mente independentes um do outro. Expresso de outromodo, começa com a interacção do «ego» e do «alter».Mas o modelo não tem sido devidamente examinado.A relação ainda é vista essencialmente como um estadoe não como um processo. Os problemas levantados porestá visão da natureza das interdependências humanas edos equilíbrios de poder, conjuntamente com todos osproblemas envolventes, estão ainda aquém do horizontedas chamadas teorias da acção. Quanto muito, levam emconta o facto de que as interacções intencionais têm conse-qüências não intencionais. Mas escondem uma circunstân-cia que é fundamental na teoria e na prática sociológicas,nomeadamente que existem interdependências humanas nãointencionais, na base de todas as interacções intencionais.O modelo de competição primária talvez expresse estefacto de um modo mais directo. Não é possível construirum modelo sociológico adequado sem tomar em conside-ração que há tipos de interdependência que impelem oego e o alter a guerrear-se e a matar-se reciprocamente.

Certamente que o modelo (Ia) tem utilidade comomodelo de certas relações. Há casos em que pode seraplicado e seria um erro desprezá-lo. A relação entre ojogador A e o jogador B pode ser semelhante à que existeentre um especialista e um não especialista, um proprietá-rio de escravos e um escravo, ou um pintor famoso e ummecenas. Mas como modelo de sociedades, o modelo (Ia)é de uso marginal.

Em contraste, o modelo (2c) e mais ainda o modelo (3b)oferecem uma certa ajuda para a compreensão daquilo quemencionámos como sendo a experiência básica da ciênciaincipiente que é a sociologia — a experiência de que doentrecruzar das acções de muitas pessoas podem emergirconseqüências sociais que ninguém planeou. Ambos estesmodelos indicam as condições em que os jogadores podemcomeçar lentamente a encontrar um problema — o de queo processamento de um jogo, que surge inteiramente comoum resultado do cruzamento das jogadas individuais demuitos jogadores, toma um rumo que não foi planeado,determinado ou pensado antecipadamente por nenhum dosjogadores individuais. Pelo contrário, o decurso não pla-neado do jogo influencia repetidamente as jogadas de cadajogador individual. Assim, estes modelos ajudam a escla-recer um dos problemas centrais com que a sociologia sedefronta, cuja insuficiente compreensão constantemente nos

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leva a equívocos sobre o objecto e problemas da socio-logia.

Há uma discussão constante sobre o que é realmenteo objecto principal da sociologia. Se a resposta for «a socie-dade», como muitas vezes se' pretende, então muitos apensarão como sendo um agregado de pessoas individuais.A questão que se nos depara põe-se muitas vezes destemodo: poderá dizer-se algo sobre a sociedade que não possaser detectado a partir do estudo das pessoas individuais,por exemplo a partir de análises individuais, tanto psicoló-gicas como fisiológicas? O modelo (2c) e particularmenteo modelo (3b) mostram-nos como devemos procurar asrespostas para estas questões. Estes modelos indicam-nosa possibilidade de o decurso de um jogo realizado por 30,300 ou 3 000 jogadores não pode ser controlado e orientadopor nenhum desses jogadores. À medida que diminui adiferença de possibilidades de poder entre os jogadores,isto torna-se mais provável. Neste caso, o processamentodo jogo adquire uma autonomia relativa quanto a planose intenções de qualquer dos jogadores individuais que,através das suas acções, criam e mantêm o jogo. Isto podeser expresso negativamente dizendo-se que o decurso dojogo não está no poder de qualquer jogador. O reversoda moeda é que o decurso do próprio jogo tem poder sobreo comportamento e pensamento dos jogadores individuais,uma vez que as suas acções e idéias não podem ser expli-cadas e compreendidas se forem consideradas em si mes-mas; precisam de ser compreendidas e explicadas no inte-rior da estrutura do jogo. O modelo mostra-nos como ainterdependência das pessoas enquanto jogadores exercecoacção sobre cada um dos indivíduos que estão ligadosdeste modo; a coacção radica na natureza particular dasua relacionação e dependência enquanto jogadores. Tam-bém nesta instância o poder, é a característica estruturalde uma relação. Num primeiro contacto com modelos detipo (3b) pode parecer desconcertante o facto de nãopodermos indicar nenhum indivíduo ou mesmo grupo deindivíduos que exerçam um poder unilateral sobre todosos outros. Passado algum tempo, toma-se mais fácil com-preender que, à medida que diminuem as diferenças depoder entre indivíduos e grupos interdependentes, se tornadecrescente a possibilidade de quaisquer participantes, porsi próprios ou enquanto grupo, estarem aptos a influenciaro decurso global do jogo. Mas as oportunidades de con-trolar o jogo podem aumentar à medida que as pessoasse tornam cada vez mais distanciadas da sua própria teia,

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entrando mais na estrutura dinâmica do jogo. A autono-niia relativa da sociologia quanto a disciplinas tais comoa fisiologia e a psicologia, que tratam de pessoas indivi-duais, é baseada em última instância na autonomia rela-tiva, no que respeita às acções individuais, dos processosestruturais que resultam da interdependência e interpene-tração de acções de muitas pessoas. Esta autonomia existesempre, mas temos dela uma consciência mais aguda nasalturas em que a sociedade se torna mais diferenciada,alargando-se as cadeias de interdependência. O númerocrescente de indivíduos que formam estas cadeias implicadistâncias cada vez maiores, devido à especialização dassuas funções. Dadas as condições desta configuração, nota-mos especialmente que os processos de interpenetração sãoauto-reguladores e relativamente autônomos em relação àspessoas que formam a trama. Em resumo, lidamos comum nível de integração que, relativamente a níveis inferio-res de integração, como sejam os organismos individuaishumanos, revelam características específicas, formas deorganização totalmente inacessíveis à compreensão e inves-tigação científicas, se as tentarmos explicar reduzindo-asunicamente aos seus componentes individuais (pessoasindividuais, organismos individuais), como acontece nasformas de explicação psicológica ou biológica.

Os modelos de jogo são uma forma excelente de repre-sentar o caracter distintivo das formas de organização queencontramos no nível de integração que as sociedadeshumanas representam. A nossa herança de discursos e pen-samento pressiona-nos de certo modo a que interpretemostodas as relações de acontecimentos como cadeias unili-neares de causa e efeito. Há duas explicações de cadeiaunilineares que se relacionam intimamente. A mais antigapõe-se em termos das acções de um criador pessoal. Aolongo da história humana, esta explicação junta-se gradual-mente à explicação de uma cadeia unilinear em termos deuma causa impessoal. Quando se encontram padrões com-plexos de interpenetração, é habitual tentar explicá-los emtermos das mesmas categorias de causa e efeito e damesma visão de seqüências unilineares. Só que, neste caso,as pessoas imaginam que basta fazer um grupo de cadeiasde ligações deste tipo, curtas e unilineares. Em vez deexplicar tudo aquilo que necessita ser explicado em termosde uma causa ou de um criador, explicam tudo a partirde cinco, dez ou mesmo cem «factores», «variáveis» ou dequalquer outro termo. Mas tentemos aplicar este tipo de

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explicação à duodécima jogada de um jogador num jogode duas pessoas num só nível, em que ambos os joga-dores são igualmente fortes. Temos tendência para inter-pretar esta jogada em termos do caracter da pessoa quea efectuou. Talvez pudesse ser'explicada psicologicamente,como manifestação da sua grande inteligência, ou fisiolo-gicamente, em termos do seu cansaço extremo. Qualquerdestas explicações se podia justificar, mas nenhuma delasé suficiente, pois a duodécima jogada desse jogo já nãopode ser explicada adequadamente em termos de seqüên-cias causais curtas e unilineares. Nem uma explicação sepode basear no caracter individual de um ou outro joga-dor. Esta jogada só pode ser interpretada tendo em contao modo como se entrecruzavam as anteriores jogadas dosdois jogadores e a configuração específica que resultoudeste cruzamento. Qualquer tentativa de atribuir este entre-cruzamento a um ou outro jogador individual, ou a umamera acumulação da acção dos dois, como sendo a suaorigem ou causa, está condenada ao fracasso. Só o entre-cruzar progressivo de jogadas durante o processo do jogoe o seu resultado — a configuração do jogo anterior à12.a jornada — pode ser útil para a explicação da duodé-cima jogada. O jogador utiliza esta configuração para seorientar antes de efectuar a sua jogada. E, no entanto,este processo de entrecruzamento e o estado ou configu-ração actuais do jogo, pelo qual o jogador individual seorienta, revelam uma ordem própria. Esta ordem é umfenômeno com estruturas, relações e regularidades de dife-rentes tipos, nenhuma das quais existe acima dos indiví-duos e para além deles, sendo antes o resultado da suacombinação e entrecruzamento constantes. Tudo o quedizemos sobre as- «sociedades» ou «os factos sociais» serefere a esta ordem que, tal como dissemos, inclui tiposespecíficos de «desordem» semelhantes aos do modelo decompetição primária, tal como tipos constantemente recor-rentes de processos desintegrados e separados.

Quando consideramos estes factos, torna-se óbvio quemuitas das estruturas conceptuais correntes, que se nosimpõem quando neles pensamos, não correspondem aonível particular de integração a que se referem. Entreelas estão por exemplo expressões muito usadas tais como«o homem e o seu ambiente» ou o seu «backgroundsocial». Consideremos os modelos de jogo. Não ocorreriaa ninguém descrever o processo de jogo, em que umjogador coopera com e contra outros, como o seu

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«ambiente» ou o seu «background». O contraste repetida-mente traçado entre «indivíduo» e «sociedade» faz comque pareça que os indivíduos podem, até certo ponto,existir independentemente da sociedade e vice-versa. Istosurge como altamente duvidoso à luz dos modelos querevelam processos de interpenetração. E é uma supers-tição científica pensarmos que para investigar cientifica-mente os processos de interpenetração temos de os dissecarnecessariamente nas suas partes componentes. Os sociólo-gos já não procedem assim, embora alguns deles pareçamter um complexo de culpa devido a esta omissão.

Os sociólogos, especialmente quando trabalham empi-ricamente, utilizam muitas vezes uma estrutura teórica einstrumentos conceptuais que, na maior parte das vezes,são perfeitamente adequados ao caracter específico do tipode ordem produzida pela interpenetração humana e àscaracterísticas das sociedades e das configurações mutá-veis, constituídas por pessoas interdependentes. Porémitalvez seja conveniente que planeiem claramente as suasactividades, de modo a tomarem delas consciência plenae assim as justificarem. Consideremos por exemplo a expli-cação que Durkheim dá a certas regularidades existentesna proporção de suicídios dos vários grupos de pessoas.Ele vai baseá-la nas diferenças específicas existentes entreas estruturas de interpenetração a que eles pertencem.A estatística desempenha um papel essencial; mas a suafunção é de indicador, assinalando as variações específicasno modo como as pessoas são apanhadas numa rede derelações. Quer tentemos estudar as relações entre reis eparlamentos na Europa medieval8, quer investiguemos arelação entre «os instalados» e os «de fora»9, ou a estra-tégia de um líder carismático ou de um governante abso-luto nos círculos internos da sua corte, lidamos semprecom tipos de interpenetração que aqui ilustrámos com aajuda de alguns modelos.

4. Será útil alongarmo-nos um pouco no modo comoos modelos (3a) e (3b) foram simplificados. Como nosrecordamos, a série de modelos começou com um breveapanhado das mudanças possíveis no agrupamento dosjogadores que podiam resultar de um aumento do númeroüos mesmos. A maneira como o modelo começa pode darazo a confusões. Se se tomar como hipótese um aumentono número de jogadores é possível demonstrar de um modorelativamente simples e claro certas mudanças na confi-

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guração. Mas isto não significa que alterações na popu-lação, tomadas em si mesmas, sejam o principal estímulopara as mudanças sociais. As mudanças na população sãomudanças no número de pessoas que pertencem a uni-dades sociais particulares. Neste movimento populacional,a unidade de referência pode ser toda a humanidade ouuma parte do mundo, um estado ou uma tribo. No entanto,a idéia de um movimento populacional não tem significadosem que se tenha em conta uma unidade específica dereferência. Uma mudança na população não é um fenô-meno que possa ocorrer no vazio. Constitui sempre apenasum aspecto de uma mudança mais compreensiva numaunidade social particular. Se a sua população aumenta oudiminui num determinado período, podemos estar absolu-tamente seguros de que há uma mudança não só nonúmero de membros, mas também em muitos outrosaspectos — por outras palavras, a unidade de referênciacomo um todo altera-se durante este período. Mas seriaprecipitado concluir que nestas circunstâncias a alteraçãoda população seria a causa, sendo todas as outras mudan-ças as conseqüências. Nestes e noutros casos semelhantes,os estudantes de sociologia debatem-se com certas dificul-dades pelo facto de terem sido educados numa tradiçãoque os leva a esperar encontrar numa causa única a expli-cação para cada facto aparentemente inexplicável. Comojá foi indicado, este hábito mental não nos ajuda a com-preender as formas de organização que se encontram nonível de integração das sociedades humanas. Isto tambémse aplica a este caso. O rápido crescimento da populaçãoeuropéia nos séculos XVIII e XIX constitui simultanea-mente uma causa e um efeito no mecanismo das mudançasglobais ocorridas^ nas sociedades européias durante esteperíodo. Os actuais processos de democratização reflecti-dos nos modelos (3a) e (3b) não se relacionam apenascom o crescimento da população mas também com estamudança global. No entanto, é perfeitamente compensadorperguntarmo-nos (a nível de experiência mental) que tiposde mudanças nos grupos só são possíveis quando há umaumento de membros de uma sociedade.

A digressão:índice da complexidade das sociedades

Não é necessário discutir se o objecto central da socio-logia é mais complexo do que o dos níveis precedentesde integração — isto é, mais complexo do que o campo de

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investigação da biologia ou da física. No entanto, poderáser útil dar ao leitor oportunidade de formar uma idéiada complexidade das sociedades humanas.

Isto pode ser feito com razoável simplicidade se per-guntarmos em quanto aumenta o número das possíveisrelações dentro de um grupo, quando se eleva o númerode pessoas nesse grupo. É útil levantar esta questão,mesmo que ela tenha apenas como efeitos lembrar-nosque a seqüência de idéias muitas vezes complicadas dossociólogos só têm êxito e justificação se forem baseadasna complexidade demonstrável do campo em estudo. Nãodeviam ser o mero produto das contorções do investigadorquando este procura incluir forçosamente as suas obser-vações nos moldes de um sistema pré-concebido de pen-samento, totalmente rígido, devido a nele se envolveremocionalmente. A sociologia trata de pessoas; as interde-pendências que ocorrem entre elas são o seu problemacentral. O termo «relações humanas» evoca muitas vezesidéias do dia a dia, da experiência de hora a hora, quese processa dentro do círculo restrito que nos inclui anós, à nossa família e ao nosso emprego. Mas temosconsciência do problema criado pela possibilidade de cen-tenas, milhares e milhões de pessoas poderem estar rela-cionadas umas com as outras e dependentes umas dasoutras, mesmo que isto possa acontecer no mundomoderno. Apesar desta ausência geral de consciencializa-ção, a larga rede de dependências e interdependências quehoje ligam as pessoas situa-se entre os aspectos mais ele-mentares da vida humana.

O quadro l ajuda a que nos introduzamos nesta com-plexidade. Não há necessidade de aqui explorarmos outrassignificações teóricas que ele possa ter. De um modo rela-tivamente simples, permite-nos ver como se torna impos-sível às pessoas individuais, que constituem uma rede deinter-relações, compreender esse facto e nele traçar o seucaminho, sem qualquer ajuda. Também nos permite com-preender mais facilmente o facto desta trama de relaçõesinfluenciar constantemente o seu próprio desenvolvimento,âe um modo relativamente independente das intenções emetas subjacentes às acções dos indivíduos que a cons-tituem. Dado que é tarefa da sociologia tornar esta opaci-dade mais transparente, é importante que os estudantesde sociologia tenham consciência desta opacidade se que-rem, na realidade, compreender o que é a sociologia. Esteíndice de complexidade é um simples auxiliar. Mostra comoAumenta o número possível de relações, à medida que

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aumenta o número de pessoas. Esse número de relaçõescresce de um modo relativamente lento, se apenas aten-dermos a relações entre duas pessoas. Mas cresce de ummodo muito rápido, se considerarmos, em termos pura-mente numéricos, todas as possibilidades de relações queenvolvem mais do que duas pessoas. Se, mais realistica-mente, também atendermos ao facto de que cada partici-pante, naquilo que se considera como uma relação, temdela uma perspectiva diferente, ficamos com uma boa idéiado aumento de complexidade que acompanha um aumentono número de pessoas que constituem uma trama de rela-ções. A relação entre A e B, homem e mulher, estudantee professor, secretária e patrão, constitui, quando consi-derada de um modo mais preciso, não uma mas duasrelações — a de A para B e a de B para A.

Mas isto não basta. Até aqui, só atendemos aosaspectos quantitativos das mudanças do número das pos-síveis relações que acompanham um aumento do númerode indivíduos num grupo. Ainda não tomámos em consi-deração os modos como poderão ser modelados na confi-guração, especialmente o facto de que o equilíbrio de poderem cada uma das possíveis relações que considerámos podevariar muitíssimo. Limitar-nos-emos a ilustrar dois padrõessimples de configuração — a possibilidade de uma distri-buição de poder relativamente equilibrada e a de uma dis-tribuição desigual de poder. No último caso, há uma rela-ção nítida de superordenação e de subordinação entre aspessoas. Tomemos como exemplo uma relação de quatropessoas. Em quanto aumentará o número de possíveisrelações, se incluirmos tais diferenças de configuração nanossa taxa de complexidade, excluindo por agora a consi-deração de que todas as relações também têm múltiplasperspectivas sociais? Aqui, limitamos a nossa discussão agrupos de quatro pessoas. A coluna 4 mostra a possibi-lidade de onze relações singulares para esse grupo: seisrelações de duas pessoas, quatro relações de três pessoase uma relação de quatro pessoas. Atendendo aos possíveisequilíbrios de poder acima mencionados, há duas vezesmais relações de duas pessoas (doze), seis vezes maisrelações de três pessoas (vinte e quatro) e catorze vezesmais relações de quatro pessoas (catorze). Em vez determos num grupo de quatro pessoas onze possíveis rela-ções singulares, temos agora cinqüenta relações possíveisdiferentes. Se ainda considerarmos as variações de pers-pectiva dos participantes das relações, aumentará o grau<3e complexidade. Certamente que estas possibilidades não

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se irão concretizar todas num dado tempo. Mas quandoas estudamos ou quando meramente as vivemos, não pode-mos deixar de considerar esta cadeia de possibilidades,nem de perguntar quais delas realmente ocorrem.

Aqui, a preocupação imediata é tornar mais fácil a.compreensão de qual a tarefa da sociologia. Isto não sepode fazer sem que chamemos a atenção para a opacidadee para o caracter consequentemente incontrolável das teiasentrecruzadas de relações, formadas pelas pessoas. Um dosproblemas centrais que a sociologia deve fixar é tornarestas teias mais transparentes e, por conseguinte, impedirque arrastem consigo os seus membros, de um modo cegoe arbitrário. Isto aplica-se sobretudo às teias entrecruza-das que se difundem e estendem em grandes espaços enum tempo prolongado. Uma pergunta a que dificilmentese dá resposta é até que ponto estamos habitualmente cons-cientes de que formamos uma relação funcional que seestende pelo mundo e que, embora seja composta por pes-soas, é muito pouco controlável e compreensível. Há tam-bém a questão de saber até que ponto a situação é distor-cida pelas habituais fórmulas explicativas que atribuemtodos os acontecimentos às pessoas individuais ou a sis-temas sociais de crenças hostis. Talvez os índices de com-plexidade que aqui se estabelecem possam ajudar a que osassuntos quotidianos surjam como algo de estranho. E istoé necessário se queremos compreender porque é que ocampo de investigação da sociologia — os processos e estru-turas de interpenetração, as configurações formadas pelasacções de pessoas interdependentes, em resumo, pelas socie-dades— constitui um problema.

CARACTERÍSTICAS UNIVERSAIS

DA SOCIEDADE HUMANA

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A MUTABILIDADE NATURAL DA HUMANIDADECOMO CONSTANTE SOCIAL

Pode-se investigar como é que determinadas socieda-des humanas diferem umas das outras. Também se podeinvestigar como é que todas as sociedades humanas seassemelham. Rigorosamente falando, estas duas preocupa-ções são inseparáveis. Quem procurar uma visão clara dassemelhanças básicas de todas as sociedades — as caracte-rísticas universais da sociedade humana — tem que sesocorrer de grande riqueza de conhecimentos, válidos paraa sua própria sociedade, sobre as variações possíveis dassociedades humanas. Por outro lado, uma grande quanti-dade de informação sobre as diferenças existentes nassociedades pode apenas conduzir a um amontoado defactos sem qualquer relação. Para que tudo isto adquirasignificado, torna-se essencial uma concepção de base empí-rica sobre as semelhanças entre todas as possíveis socie-dades. Estas fornecerão uma estrutura de referência den-tro da qual se podem efectuar investigações particulares.Dentro dos limites desta introdução à sociologia, é total-mente impossível realizar tal tarefa de um modo satisfa-tório. Mas podem indicar-se alguns dos problemas quedeveriam facilitar uma abordagem ulterior mais detalhada.Esta torna-se muito necessária pois uma abordagem des-tes problemas requer uma reorientação radical dos hábi-tos correntes de pensamento. Nada há de supreendentese percebermos de um modo claro a situação em que nosencontramos quando lutamos para obter uma melhor com-preensão das sociedades que constituímos. Séculos de tra-

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balho proporcionaram um conhecimento razoável do modocomo os acontecimentos se inter-relacionam, naquilo que,relativamente falando, constitui o nível mais simples deintegração. Este conhecimento é-nos simbolizado por con-ceitos tais como os de matéria 'e energia, que, dado o pre-sente estado do conhecimento, abarcam a cadeia total defenômenos naturais, das partículas subatômicas às galáxias.Neste campo, alargaram-se os limites do conhecimento eas nossas oportunidades de controlar os factos aumen-taram a uma velocidade enormíssima. A ilha de conheci-mentos seguros que para nós próprios construímos nooceano da nossa ignorância, cresceu muito rapidamente,pelo menos no que respeita à natureza física. Só a preo-cupação humana com a felicidade diária e acima de tudocom as desventuras de momento, impediu que chegásse-mos a uma visão completa do desenvolvimento do conhe-cimento e do significado que ele tem para a sociedade,especialmente devido à concepção que fazemos de nós pró-prios. Processo semelhante está em curso, ganhando ter-reno no nível seguinte de integração — o nível dos orga-nismos. É evidente que as pessoas se empenham na defesada idéia aparentemente parodoxal de que as relações defactos altamente organizadas possam ser relativamenteautônomas das relações de factos menos organizadas. Estaconcepção, mesmo que não esteja sempre presente quandode uma abordagem teórica, está-o pelo menos numa práticade esforço científico. Vai crescendo lentamente a idéiade que um conjunto de fenômenos físicos, organizadoscomo organismos, plantas e animais, possuem regularidadese características estruturais que não podem ser compreen-didas pela mera redução a reacções físico-químicas. Poroutras palavras, unidades organizadas a um nível maisalto de integração, são relativamente autônomas no querespeita aos factos de nível de integração mais baixo.E, para os cientistas comprenderem de um modo correctoas formas organizativas dos níveis mais altos de integra-ção, requerem-se formas distintivas de pensamento e demétodos de investigação.

O mesmo se passa com os níveis mais altos de inte-gração que se seguem — os das espécies humanas. Maisuma vez, unidades que consideramos isoladamente, pare-cem pertencer a um nível anterior de integração, apare-cem ligadas por uma relação funcional, mas de um modocompletamente novo, totalmente diferente do modo comoas unidades físicas se unem para formar unidades bioló-gicas. No passado, as sociedades foram muitas vezes retra-

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tadas como se realmente constituíssem uma espécie desuperorganismos. Isto deve-se primeiramente ao facto deque o poder que as pessoas tinham para uma compreensãointelectual se limitava a uma concentração sobre as seme-lhanças entre os níveis mais altos e mais baixos de inte-gração. Ainda não estavam aptas para compreender as dife-renças em que se baseava a sua autonomia relativa.

De tudo isto não se deduz a idéia de uma barreiraontogenética entre os fenômenos naturais orgânicos e inor-gânicos, ou a existência de uma barreira, dentro destaúltima categoria, entre fenômenos humanos e não huma-nos. Significa muito simplesmente que o esforço para pro-duzir um domínio conceptual do universo observável temcomo resultado a idéia de que o universo está organizadoem vários níveis de integração. Depois de muitas tentativasde tornar adequados a esta organização observada os nos-sos processos de linguagem e de pensamento, ficou maisclaro ser este o centro de todas as dificuldades com quenos debatemos. No decurso do feedback comum na ciên-cia, feedback que vai da observação ao pensamento e dopensamento à observação, pode concluir-se que a este altonível de integração há formas de organização, tipos deestrutura e de função, fenômenos das mais variadas espé-cies, que diferem daqueles que encontramos no nível ante-rior de integração. Também podemos tirar outras conclu-sões: é que os fenômenos de nível mais alto não podemser explicados em termos de fenômenos de nível maisbaixo, que os primeiros são relativamente autônomos dossegundos e que, para a sua compreensão, são necessáriosprocessos de pensamento diferentes dos ocorridos no nívelanterior de integração.

Porém, se tirarmos tais conclusões, somos considera-dos pelos outros — e podemos considerar-nos a nós pró-prios— como aqueles que postulam uma rotura na conti-nuidade ontogenética e, por conseqüência, uma divisãobásica do universo em duas esferas absolutamente sepa-radas: a física e a metafísica. Podemos argumentar, emautodefesa, que no âmbito da nossa experiência social-mente verificável — que nos fornece o único tipo de infor-mação válida sobre o mundo em que vivemos — não háobservações que justifiquem uma tal divisão do mundo emníveis de integração absolutamente separados, não tendoentre si qualquer relação, tal como são os de matéria orgâ-nico e inorgânica. Mas esta asserção deixa uma porta abertaa equívocos — por exemplo, deduzir que as várias caracte-rísticas de nível mais alto podem ser explicadas de um

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modo conveniente e adequado em termos de factos de nívelmais baixo de integração — ou, por outras palavras, quetodos os fenômenos de nível mais alto se podem reduzira fenômenos de nível mais baixo. Não é imediatamenteevidente a idéia de que são compatíveis uma continuidadeontogenética total nos vários níveis de integração e a exis-tência em cada nível de formas de organização caracterís-ticas e irredutíveis, mas, tanto quanto podemos verificar,os múltiplos progressos nas ciências biológicas e agoraem sociologia, sugerem-na. Numa última análise, a auto-nomia tanto das ciências biológicas relativamente à física,como das ciências sociais relativamente à biologia, baseia-sena autonomia relativa dos respectivos campos de inves-tigação.

Muitos factos nos indicam este caminho. Conceitos taiscomo nascimento e morte só têm significado quando rela-cionados com tipos de integração a nível biológico. Não têmequivalente no nível anterior, que se aplica tanto aos átomoscomo às galáxias, mesmo se surgirem formas de transição.(Esta é outra ilustração de como o conceito de integração,tal como aqui se utiliza, inclui formas particulares de desin-tegração— neste caso o fenômeno da morte — tal como oconceito de ordem tem sido usado num sentido que incluidesordem.)

Do mesmo modo, encontramos em sociologia formasdistintas e específicas de integração e desintegração, mode-los de ordem e de desordem, tipos de relacionação e tiposde estrutura e função. Estas formas são diferentes das queencontramos nos níveis anteriores de integração, nãopodendo reduzir-se a elas. E, no entanto, as formas queencontrámos em todos os níveis constituem, sob o pontode vista ontogenético, um continuum único, embora subdi-vidido.

À. primeira vista, pode parecer desnecessário ir tãoao fundo numa mera discussão das características univer-sais da sociedade humana. Mas poucos problemas têm sidotratados de um modo tão confuso como o problema darelação entre sociologia e biologia. Constantemente seencontram tendências quer para reduzir os problemassociológicos aos biológicos quer para tratar os proble-mas sociológicos como se fossem totalmente autônomose independentes de tudo o quê se possa dizer sobre osorganismos humanos. A autonomia da sociologia relativa-mente à biologia baseia-se, em última instância, no factode as pessoas serem realmente organismos, mas orga-nismos que têm um caracter singular em certos aspectos.

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Ê necessário assentar neste ponto antes de discutir ascaracterísticas universais da sociedade humana. O factorcentral e inalterável em todas as sociedades é a naturezahumana. Mas o que torna o homem singular entre asoutras formas de vida, é demonstrado pelo facto de osignificado da palavra «natureza» quando referida à huma-nidade, diferir em certos aspectos do seu significado nou-tros contextos. De um modo geral, entende-se «natureza»como algo que se mantém inalterável, algo para além damudança. Um aspecto singular da humanidade é que osseres humanos são, de certo modo, mutáveis por natureza.Uma pergunta de exame, bem formulada e séria, mas quepoucas vezes aparece é: «Quais as características biológicasdo homem que tornam a história possível?» Ou, pondo-aem termos sociológicos mais precisos: «Que característicasbiológicas são requeridas para a mudança e, particular-mente, para a capacidade de evolução patenteada nas socie-dades humanas?»

Dispomos de uma grande riqueza de evidências empí-ricas para responder a esta questão. E, no entanto, ela épouco levantada, muitas vezes porque as várias ciênciashumanas (incluindo a biologia humana e a sociologia)prosseguem nos seus ensinamentos e investigações, nãonuma autonomia relativa mas numa autonomia absoluta.Consequentemente, os seus pressupostos teóricos são tãodiversos que quase não têm pontos de contacto. Nos últi-mos vinte anos verificou-se um avanço considerável nanossa compreensão da estrutura das sociedades animais,particularmente da natureza dos laços que unem os ani-mais. Isto deve-se essencialmente ao estudo empreendidopor membros da escola etológica. Mas, embora possamcontrariar as intenções dos investigadores, estas e outrasdescobertas apenas servem para sublinhar as diferençasentre as sociedades humanas e animais. Estas diferenças,por seu turno, indicam diferenças entre a natureza dohomem e a dos animais, ou, mais exactamente, diferençasentre a constituição biológica do homem e a de outrosorganismos. Em resumo, a estrutura das sociedades com-postas por criaturas não humanas só muda quando sealtera a estrutura biológica dessas criaturas. Animais damesma espécie formam sempre sociedades do mesmo tipo,exceptuando variações locais muito ligeiras. Isto porqueo comportamento que têm uns para c'om os outros é deter-minado por características estruturais hereditárias, caracte-rísticas de cada espécie, que apenas permitem um espaço

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muito limitado de modificações. Por seu lado, as sociedadeshumanas podem mudar sem que ocorra qualquer alteraçãona espécie — isto é, na constituição biológica do homem.Não há a mínima razão para supormos que a transforma-ção das sociedades européias pré-industriais em sociedadesindustriais se baseou numa mudança da espécie humana.O espaço de tempo em que se efectuou esta mudança édemasiado curto para que consideremos a idéia de umamudança na estrutura biológica da humanidade. E o mesmose pode dizer quanto ao desenvolvimento social do homem— dos caçadores e segadores aos agricultores e pastores oudos grupos tribais pré-estatais à formação das socieda-des — estado. Isto também se aplica a muitas outras mudan-ças sociais que, embora tendo ocorrido em épocas muitodiferentes, em partes do mundo muito diversas e, tantoquanto sabemos, totalmente independentes umas das outras,se têm efectuado em direcções paralelas.

Este é um exemplo gritante da autonomia relativa docampo da investigação sociológica no que respeita à biolo-gia— e consequentemente também da diferença entre osproblemas da sociologia e da biologia. As mudanças nassociedades animais são aspectos da evolução biológica. Asrelações sociais das espécies animais situadas abaixo donível do homem alteram-se em função da constituiçãobiológica global dessas criaturas. Mas as relações sociaise o comportamento da espécie Homo sapiens mudam semque haja qualquer alteração da sua constituição biológica.Isto confronta-nos com a tarefa de descobrirmos a «natu-reza» — no sentido de «caracter» — dessas mudanças sociais,e de as explicarmos sem recurso a teorias biológicas. Pelomenos, só deveríamos recorrer a estas na medida em quepermitem explicar como é possível a mudança nas socie-dades humanas e, portanto, no comportamento das pes-soas individuais e nos círculos que as unem, sem que hajaqualquer mudança na natureza biológica do homem.

Há uma resposta bastante simples para este problema.Vamos esboçá-la brevemente. Por natureza — por constitui-ção hereditária do organismo humano—, o comportamentodo homem, mais do que qualquer comportamento de outrosseres vivos, é menos dirigido por pulsões inatas e maisorientado por impulsos modelados pela experiência e peloconhecimento individuais. Devido à sua constituição bioló-gica, não só é verdade que os homerçs estão mais aptosa aprender a controlar o seu comportamento do que qual-quer outra criatura, como também que o seu comporta-mento deve trazer a marca daquilo que aprenderam. Os

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padrões de comportamento de uma criança não só podemmas devem evoluir muito por meio da aprendizagem, se éque a criança pretende sobreviver. «Comportamento» signi-fica ajustamento a situações mutáveis. De um ponto devista meramente técnico, é muito mais eficiente que ocomportamento seja orientado por uma aprendizagem indi-vidual do que por mecanismos inatos, funcionando àscegas. O processo de aprendizagem individual actua pormeio da acumulação mnésica de experiência, de modo quepodemos mais tarde recorrer a estas para que nos ajudema diagnosticar e prognosticar qualquer nova situação.A bagagem extra de que o homem precisa para a aprendi-zagem foi-lhe fornecida pela evolução da mão, do cérebroe da musculatura da face e da garganta. É condição destaevolução uma diminuição ou um relaxamento do controlocomportamental por impulsos cegos, automáticos e inatos.Através da evolução dos mamíferos podemos seguir o pas-sado desta mudança evolutiva orientada nitidamente nestadirecção ao longo de quase todo o reino animal. O com-portamento das rãs é muito mais orientado por mecanis-mos reflexos inatos e instintivos do que o comportamentodo ouriço ou da raposa e o destes muito mais do que odos símios antropóides. Mas mesmo que o comportamentodos símios seja mais dado a modificações por meio daaprendizagem, e apesar dos instintos serem neles maisfacilmente mitigados do que em animais de um nível maisbaixo da evolução biológica, estas tendências estão aindamuito pouco desenvolvidas em comparação com as asse-guradas pela organização biológica humana1. Isto é noentanto outro exemplo do preceito muitas vezes errada-mente interpretado, de que a continuidade ontogenética éperfeitamente compatível com a emergência de novas estru-turas. Os símios antropóides produzem ruídos muito maisvariados quando comunicam uns com os outros e sãomuito mais capazes de modificar o seu comportamentopor meio da aprendizagem do que animais cuja organiza-ção está a um nível muito baixo na escala evolutiva. E, noentanto, comparados com a capacidade humana de variare modificar os sons que produzem na comunicação social,as suas capacidades são extremamente limitadas. Certassituações levam o símio antropóide a produzir, automáticae quase involuntariamente, sons como gemidos, suspiros erisos involuntários. Estes sons sobrevivem no homem deuma forma rudimentar, mas sobrepondo-se a eles comomeio de comunicação, temos sistemas de sinais. Estes nãosão inatos, adquirem-se por meio da aprendizagem com

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os outros e são únicos no reino animal. Estes sistemasde sinais, ou línguas, são tão mutáveis como as sociedadesque os usam como meio de comunicação e de coesão.

Podemos obter uma visão nítida dos problemas dis-tintos e específicos da sociologia se compararmos o sis-tema inato de sinais de que dependem os animais de nívelevolutivo mais baixo do que o Homo sapiens e que só sepodem modificar ligeiramente pela aprendizagem, com ossistemas de sinais provenientes da aprendizagem, como porexemplo as línguas, por meio das quais as pessoas comu-nicam e que, tal como as sociedades humanas, são tor-nadas possíveis pela organização biológica humana. Não sepodem compreender os caracteres distintivos da vida socialhumana sem que se faça referência à laringe, à cavidadetaucal e à língua humanas, ao sistema nervoso e muscularespecializado, à evolução — nos lobos frontais — de umaregião de controlo das capacidades motoras da fala. Emresumo, não há compreensão possível sem que haja conhe-cimento da adaptação da organização biológica humana emfunção da aprendizagem. Porém, devido a esta dissociaçãorelativa dos mecanismos biológicos, biologicamente deter-minada, e devido à dependência dos seres humanos na suaaprendizagem uns com os outros, as sociedades humanasconstituem um campo de investigação com um tipo deordem e com formas de organização diferentes das queinteressam aos biólogos. Assim, em qualquer discussãosobre as características universais da sociedade humana,temos que considerar três factores fundamentais. São elesíprimeiro, a libertação relativa dos mecanismos comporta-mentais não aprendidos; em segundo lugar, a grande capa-cidade de modificação e alteração da experiência e com-portamento humanos dentro das suas próprias fronteirasnaturais; e em terceiro lugar, a dependência constitucionalda criança relativamente à aprendizagem com os outros.

A NECESSIDADEDE NOVOS MEIOS DE FALAR E DE PENSAR

Esta rubrica tem como objectivo revelar de um modoclaro os obstáculos que repetidamente têm impedido odesenvolvimento da sociologia enquanto ciência relativa-mente autônoma. Os recursos de linguagem e de pensa-mento de que o sociólogo presentemente dispõe são namaior parte das vezes desproporcionados em relação àtarefa que lhe é exigida. Ao tentarmos elaborar uma lista

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das características universais da sociedade, começamos atomar consciência das condições responsáveis pela auto-nomia relativa do nível de integração representado pelassociedades humanas. Devemos agora interrogar-nos se osprocessos de pensamento e de pesquisa de que dispomossão suficientemente autônomos dos processos emergentesda investigação em outros campos da realidade, de modoa que se ajustem à investigação dos aspectos humanos esociais. Na maior parte dos casos, revelam-se inadequados.De um modo geral, continuamos a usar os instrumentos decomunicação e de pensamento que derivam de uma tra-dição particular de discurso e de pensamento, sem que seproceda a uma nova avaliação, até se chegar ao pontode os pôr de lado como inúteis. A razão por que são tãoduradouros os modos de falar e de pensar, reside na suanatureza social. Para que cumpram o seu objectivo, têmque ser comunicáveis. Quando a sua inutilidade relativaé reconhecida e, portanto, se procura alargá-los, só é possí-vel fazê-lo muito lentamente. Se esta regra não for obser-vada, as palavras e as idéias perdem rapidamente a suacomunicabilidade.

À primeira vista, pode parecer que um primeiro esforçopara reorientarmos o nosso pensamento pode complicaro trabalho da sociologia. Porém, verifica-se precisamente oinverso. Se se fizer um tal esforço, o trabalho torna-semais simples. A complexidade de muitas teorias socioló-gicas modernas deve-se não à complexidade do campo deinvestigação que elas procuram elucidar, mas ao tipo deconceitos usados. Estes podem ser conceitos que ou jáprovaram a sua validade noutras ciências, geralmente nasciências físicas, ou não se adequam de modo algum àinvestigação de relações funcionais especificamente sociais.

Talvez já tenha ocorrido a muitos leitores a necessi-dade de uma reformulação substancial em muitos aspectosdo discurso e do pensamento sobre aquilo que é obser-vável. As nossas línguas são construídas de tal modo quemuitas vezes só conseguimos expressar quer o movimentoquer a mudança constantes, de uma forma que lhes con-fere as características de um objecto isolado em des-canso e, depois, quase como uma explicação, acrescen-tamos um verbo que exprime que o objecto possuidordessa característica está agora a mudar. Por exemplo,junto de um rio vemos o fluxo perpétuo da água. Porém,Para dominarmos conceptualmente este facto e para ocomunicarmos aos outros, não dizemos «vejam o fluxoconstante da água», mas sim «vejam como o rio corre

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depressa». Dizemos «o vento sopra» como se o vento fosserealmente algo em descanso que num dado momentocomeça a mover-se e a soprar. Falamos como se o ventose pudesse separar do seu «sopro», como se pudesse haverum vento que não soprasse. Esta redução de processos acondições estáticas, a que chamaremos «redução-proces-sual», surge como evidente para quem sempre usou essalíngua. Muitas vezes se imagina ser impossível pensar oufalar de outro modo. Mas isto não é correcto. Os lingüistasmostraram que muitas línguas têm estruturas que tornam

, possível uma assimilação diferente de tais experiências.A análise mais ousada e sugestiva destas limitações datradição européia de discurso e de pensamento encontra-sena obra de Benjamin Lee Whorf Language, Thought andReality2. Este autor demonstra-nos que nas línguas detipo europeu as frases se constróem com dois elementosfundamentais — o substantivo e o verbo ou o sujeito eo predicado. Antigamente, estas tendências lingüísticas jáse afirmavam e sistematizavam, constituindo um processoa que o trabalho de lógicos e gramáticos de tradiçãoaristotélica deu uma grande ajuda. Considerava-se ser esteo processo universal (o chamado processo «lógico» e «racio-nal») de transpor para conceitos e de expressar verbal-mente a realidade observada.

O próprio Whorf aponta a possibilidade de que taiscaracterísticas limitativas das nossas estruturas tradicio-nais de pensamento e linguagem sejam em parte respon-sáveis pelas grandes dificuldades que os físicos encontramquando tentam compreender certos aspectos da investiga-ção recente — especialmente a investigação relativa às par-tículas atômicas—je quando tentam conceptualizá-los ade-quadamente.

Não há dúvida nenhuma de que o mesmo se aplica àsociologia. As nossas línguas tendem a destacar substan-tivos que têm características de coisas em estado derepouso. Mais, tendem a expressar toda a mudança e todaa acção por meio de um atributo ou um verbo ou, pelomenos, como algo adicional, mais do que integral. Emmuitos casos, trata-se de uma técnica inadequada de con-ceptualizar aquilo que realmente observamos. Esta cons-tante redução processual tem como resultado que osaspectos imutáveis de todos os fenômenos sejam inter-pretados como sumamente reais e significativos. Istoalarga-se a esferas onde impõe uma limitação totalmentefalsa. Whorf menciona como involuntariamente estabele-cemos distinções conceptuais entre o actor e a sua acti-

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vidade, entre estruturas e processos ou entre objectos erelações. Esta última tendência é particularmente restri-tiva quando tentamos compreender as teias humanas;a nossa língua obriga-nos a falar e a pensar como setodos os «objectos» de pensamento — incluindo as pes-soas—fossem na realidade estáticos. Também os consi-dera como não estando implicados em relações. Exami-nando o conteúdo de manuais de sociologia encontramosmuitos termos que transmitem a idéia de referência aobjectos isolados e parados; mas se o examinarmos maisminuciosamente vemos que se referem a pessoas que estãoou estiveram constantemente em movimento e que se rela-cionam constantemente com outras pessoas. Pensemos emconceitos como norma e valor, estrutura e função, classesocial e sistema social. O próprio conceito de sociedadetem características de objecto isolado em estado derepouso, assim como o conceito de natureza. O mesmoacontece com o conceito de indivíduo. Em conseqüência,tendemos sempre a fazer distinções conceptuais sem 'sen-tido, tais como «o indivíduo e a sociedade», o que leva apensar que «o indivíduo» e a «sociedade» são duas coisasseparadas como mesas e cadeiras ou tachos e panelas.Podemos sentir-nos enredados em longas discussões sobrea natureza das relações entre dois objectos aparentementeseparados. E, no entanto, a um outro nível de consciên-cia, podemos saber perfeitamente que as sociedades secompõem de indivíduos e que os indivíduos só podem pos-suir características especificamente humanas tais comocapacidades de falar, pensar, e amar nas e pelas suas rela-ções com as outras pessoas — «em sociedade».

Estes exemplos podem bastar para nos convencer deque temos que encarar criticamente as estruturas do dis-curso e do pensamento que herdámos para vermos comoelas são úteis na investigação de relações ao nível espe-cífico de integração que a sociedade humana representa.

UMA CRITICADE «CATEGORIAS» SOCIOLÓGICAS

Não teríamos que nos defrontar com dificuldades tãograndes se muitas das tendências de conceptualização aquidiscutidas não tivessem sido reforçadas e estabilizadas porcertas características das ciências físico-químicas e pelaconstrução de teorias filosóficas da ciência que nelas sebaseiam. No período clássico do seu desenvolvimento,

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o objectivo da investigação da natureza física era reduzirtudo que se move e muda a algo de estático e imutável— ou seja, reduzir tudo às eternas leis da natureza. Umateoria filosófica do conhecimento e da ciência sancionousubseqüentemente esta tendência. Tem sido tarefa centralde toda a ciência, constituindo critério para o estatutocientífico de todo o campo de investigação, a redução detudo aquilo que se observava como sendo móvel e mutá-vel a algo de imutável e eterno. Consequentemente, mui-tos cientistas, especialmente sociólogos, sentem uma certainquietação e talvez mesmo a consciência pesada: por umlado, pretendem ser considerados cientistas mas, por outro,não querem sujeitar-se àquilo que se considera como oideal filosófico da ciência. Uma investigação mais apro-fundada talvez revele que, mesmo nas ciências físico-quí-micas, a procura das leis eternas da natureza e a reduçãode toda a mudança a formas eternas e imutáveis já nãoocupam a mesma posição central que detinham na físicaclássica. Mas para os sociólogos é importante demonstrarque a tendência para a redução processual se baseia numjuízo de valor muito específico, consagrado pela tradição.Que tudo aquilo que muda tem que ser efêmero, menosimportante, menos significativo e, em resumo, menosválido, aparece como uma proposição quase auto-evidente,reforçada constantemente por um consenso de silêncio.

Compreende-se esta escala de valores. Corresponde ànecessidade que temos de algo imortal. Mas não se deviaconsiderar que modos de pensar concordantes com estanecessidade e com estes valores são necessariamente maisadequados para a facilitação da investigação científica. Nãosão necessariamente os mais adequados para investigarqualquer dos aspectos do mundo em que vivemos, e muitomenos daquele mundo que mais nos diz respeito — a socie-dade humana. Podemos afirmar inequivocamente que tantoa tendência verificada nas ciências para a redução proces-sual como as teorias científicas que dão a esta tendênciaum estatuto de ideal já deram os seus frutos. Foi umadas idéias mais importantes a que os homens chegaram:a de que qualquer mudança observável pode ser explicadacomo efeito de uma «Primeira Causa» imóvel e estática.Uma reflexão breve e desprovida de preconceitos sobreeste tema mostra-nos que só podemos relacionar o movi-mento com o movimento e a mudança com a mudança.Esta idéia pode levantar certa inquietação. Então não hánada que dure, nada estático? Um velho argumento filo-sófico pergunta-nos como podemos falar de mudança se

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não consideramos a existência de algo que não muda ee que portanto é anterior a toda a mudança.

Pode verificar-se que os padrões de discurso discuti-dos anteriormente contribuem para uma reflexão sobretodos estes argumentos tradicionais. Temos que imaginaro rio como estático antes de dizermos que ele corre. Masquando falamos das características universais da sociedadehumana não estaremos à procura do imutável nas socie-dades sempre em mutação? De modo algum. Acentuou-seque as pessoas se adaptam naturalmente à mudança esão dotadas constitucionalmente de órgãos que lhes per-mitem aprender constantemente, armazenar constantementenovas experiências, ajustar o seu comportamento de modoadequado e mudar o padrão da sua vida social. A suamutabilidade característica, que surgiu através de umamudança evolutiva, é o próprio factor imutável que aquidiscutimos. Mas esta mutabilidade não é sinônimo de caos.É um determinado tipo de ordem. Homens como Comte,Marx, Spencer, e muitos outros sociólogos clássicos doséculo XIX, preocuparam-se com a investigação destaordem, a ordem da própria mudança. No século XX,a tendência para uma redução processual tem vindo gra-dualmente a ganhar vantagem em sociologia, em partedevido à reacção contra aspectos especulativos das teoriassociológicas clássicas sobre a mudança social. Foi-se tãolonge na direcção oposta, que líderes teóricos da sociolo-gia, como por exemplo Talcott Parsons, consideram a esta-bilidade e a imutabilidade como características normais deum sistema social, e a mudança apenas como conseqüên-cia de perturbações do estado normal de equilíbrio dassociedades. Não podemos aqui considerar as razões porque o pêndulo oscilou tanto3. Mas quando mencionámosuma reorientação do pensamento sociológico, pretendía-mos em parte dizer que a reacção contra as teorias evolu-cionistas do século XIX sobre a ordem subjacente àmudança social, foram longe demais na direcção oposta,nela permanecendo demasiado tempo. Numa altura emque, na prática, os problemas do desenvolvimento socialsão mais importantes do que nunca para a sociedade,as teorias que consideram as mudanças sociais como mani-festações de desordem roubaram-nos a possibilidade deum contacto mais íntimo entre a teoria e a prática.

Isto requer uma certa reorientação do pensamento eda percepção sociológicos. Presentemente, a sociologia estádominada por uma espécie de abstracção que parece lidarcom objectos isolados num estado de repouso. Mesmo o

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conceito de mudança social é muitas vezes usado como sese referisse a um estado fixo. Flutuamos, por assim dizer,entre o considerarmos o estado de repouso como sendoalgo normal e o movimento como um caso especial. Che-garemos a uma melhor compreensão das matérias-primascom que lida a sociologia, se não nos abstrairmos do seumovimento e do seu caracter processual e usarmos con-ceitos que captem a natureza processual das sociedadesem todos os seus diferentes aspectos, como uma estruturade referência para a investigação em qualquer situaçãosocial dada. Raciocínio semelhante se aplica à conceptua-lização da ligação entre as relações e os objectos relacio-nados. Em sociologia, muitos termos técnicos, de acordocom a tradição já mencionada, são formados de um modoque implica que aquilo que procuram representar é umobjecto sem quaisquer relações com outros objectos. Poroutras palavras, formas actuais de análise sociológica tor-nam possível a separação de coisas inter-relacionadas emcomponentes individuais — «variáveis» ou «factores» — semque haja qualquer necessidade de considerar como aspectostão separados e isolados de um contexto compreensivo serelacionam entre si. Aconteça o que acontecer, a relaçãoaparece como uma conseqüência, uma soma, que maistarde se adapta a objectos isolados, intrinsecamente nãorelacionados.

Também aqui há necessidade de uma reorientação.O tipo especial de ordem associado aos processos de inter-penetração social é melhor considerado se começarmospelas conexões, pelas relações, e trabalharmos a partirdelas para os elementos nelas envolvidos. Os nossos mode-los de processos de interpenetração já mostraram quetipos de conceitos são necessários se não queremos tornarabstractas as relações fundamentais que os indivíduos têmuns com os outros. O mesmo se passa com o conceito depoder. Mais uma vez o termo «poder» é usado como sese referisse a um objecto isolado em estado de descanso.Em vez disso, mostrou-se que o poder denota uma relaçãoentre duas ou mais pessoas, ou talvez mesmo entre pessoase objectos naturais, que o poder é um atributo de relações,que o termo é melhor usado conjuntamente com umaadvertência das alterações ãe poder mais ou menos flu-tuantes. Isto é um exemplo da transformação num con-ceito de relação, de um conceito que tradicionalmente sebaseia em componentes estáticos.

Há muitos outros exemplos. O conceito de indivíduo,por exemplo, é um dos conceitos mais confusos, não só

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em sociologia mas também no pensamento quotidiano. Talcomo é hoje utilizado, este conceito transmite a impressãode que se refere ao adulto isolado, independente dos outros,adulto esse que nunca foi criança. Com este sentido, o con-ceito tem perseguido como fantasma as línguas modernas,e tem o seu eco em idéias como «individualidade» e «indi-vidualismo». Encontra-se nas teorias de muitos sociólogosque se esforçam em vão por descobrir como é que tal«indivíduo» se pode relacionar com a «sociedade» que elesconcebem como uma entidade estática. Max Weber (1864--1920) — grande sociólogo da síntese intelectual dos dadosempíricos, pensador de grande intuição, que se esforçoupor clarificar as categorias básicas da sociologia — nuncaconseguiu resolver o problema da relação entre os doisobjectos basicamente isolados e estáticos que os conceitosde indivíduo singular e de sociedade aparentemente indi-cavam. Weber acreditava axiomaticamente no «indivíduoabsoluto», no sentido atrás referido, como sendo a ver-dadeira realidade social. Procurou forçar esta crença nummolde teórico, esperando que a sociologia pudesse, nestabase, estabelecer-se como uma disciplina mais ou menosautônoma. Mas desde o começo que este esforço estevevotado ao fracasso.

Isto em nada diminuiu a grandeza do seu trabalhonem a importância que teve para a sociologia. As lutase os conflitos, os erros e as derrotas dos grandes homenspodem ter um papel muito importante no desenvolvimentoda ciência. Porém, passado um certo tempo, os erros podemobstruir a via. Um leitor atento da literatura sociológicaclássica, encontrará freqüentemente vestígios deste pro-blema complexo da relação entre o indivíduo e a socie-dade. Dada a utilização prescritiva, estática e isolada destesdois conceitos, o problema era insolúvel. Weber procurouevitar as armadilhas tanto no seu trabalho teórico comono seu trabalho empírico, representando tiudo o que podeser dito sobre as «sociedades» como abstracções sem reali-dade actual, e considerando a sociologia como uma ciênciageneralizadora. O «estado» e a «nação», a «família» e o«exército» apareciam-lhe, consequentemente, como «estru-turas sem outro significado que não o de um padrão par-ticular da acção social das pessoas individuais».

Segundo este autor, os abstractos juízos da sociologianão podem nunca fazer justiça à multiplicidade das acçõesindividuais, tendo, contudo, a vantagem da precisão. Nasua teoria, Weber destruiu a «sociedade» transformando-anuma massa de acções mais ou menos desordenadas,

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efectuadas por indivíduos adultos separados, totalmenteindependentes e autoconfiantes. Esta atitude forçou-o auma posição em que as estruturas, tipos e regularidadesobserváveis surgem como irreais. Pôde considerar as estru-turas caracteristicamente sociais, tais como as administra-ções burocráticas, os sistemas econômicos capitalistas ouos tipos de domínio carismáticos, apenas como produtosartificiais dos próprios sociólogos, como concepções cien-tíficas precisas e ordenadas, referentes a. algo que na reali-dade não é estruturado e ordenado.

Assim, Max Weber foi no seu trabalho teórico umdos grandes representantes do nominalismo sociológico;para aqueles que se inclinavam por este modo de pensar,a sociedade humana surge como sendo um mero flatusvoeis. Emile Durkheim (1858-1917) perfilhou a concepçãooposta. Também ele se esforçou por encontrar uma solu-ção para o beco sem saída em que sempre se caiu, quando,tal como foi dito, contrapomos o conceito de indivíduo aode sociedade como se fossem dois fenômenos estáticos.Em De Ia ãivision ãu travail social escreveu:

É uma verdade evidente que não há nada na vida socialque não esteja nas consciências individuais. Contudo, tudo oque encontramos nestas vem da sociedade. A maior parte dosnossos estados de consciência não se teriam produzido entreseres isolados e produzir-se-iam de um modo totalmente dife-rente entre seres que se agrupassem de uma outra maneira4.

A literatura sociológica e outra literatura recente con-têm exemplos incontáveis deste problema «do ovo e dagalinha». Quer a «sociedade» quer o «indivíduo» podem servalorizados e, como tal, considerados como reais. Ou, talcomo tentou Talcott Parsons, podemos considerar comoreais primeiro um e depois o outro (com o «ego» ou o«indivíduo actuante», de um lado, e o «sistema social»,do outro). Mas não pode haver saída para esta ratoeiraintelectual enquanto ambos os conceitos — quer lhes cha-memos «actor» e «sistema», «pessoa única» e «tipo ideal»ou «indivíduo» e «sociedade» — mantiverem a sua caracte-rística tradicional enquanto substantivas, parecendo refe-rir-se a objectos isolados em estados de repouso.

Examinemos ao microscópio o conceito de indivíduo.Ao reunir os factos observáveis a que se refere, nada maisencontramos do que seres isolados que nascem, têm deser alimentados e protegidos durante largo tempo pelospais ou por outros adultos, crescem lentamente, passam

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a cuidar de si próprios nesta ou naquela posição social,podem casar e ter filhos e, finalmente, morrem. Assim,um indivíduo pode definir-se justificadamente como umapessoa que se automodifica, que, tal como muitas vezesse diz, atravessa um processo — um tipo de afirmaçãosemelhante à de «o rio corre» e «o vento sopra», comojá mencionámos. Embora vá contra os nossos hábitos dediscurso e pensamento, seria muito mais adequado dizerque uma pessoa está em constante movimento; ela nãosó atravessa um processo, ela é um processo. Então por-que é que os eruditos usam tantas vezes conceitos como,por exemplo, o de indivíduo, que levam a que cada pessoapareça um adulto totalmente auto-confiante, não estabe-lecendo quaisquer relações e mantendo-o totalmente iso-lado, como se nunca tivesse sido criança e, portanto, nuncase tenha tornado adulto? A resposta é relativamente sim-ples. O conceito tradicional de indivíduo, veicula uma ima-gem mental. Fomos educados desde pequenos para nostornarmos independentes, adultos perfeitamente auto-con-fiantes, desligados de toda a gente. Acabamos por acre-ditar e por sentir que somos realmente o que deveríamose talvez desejássemos ser. Mais precisamente, confundimosos factos com os ideais, ou seja, aquilo que é com aquiloque deveria ser.

Porém, recorrendo apenas a valores semiconscientes,não nos apercebemos totalmente desta estranha dissocia-ção das pessoas como indivíduos relativamente às pessoascomo sociedades. As raízes dessa dicotomia residem, emúltima instância, no modo peculiar como nos autoconhe-cemos, modo que tem sido característico de círculos cadavez mais latos nas sociedades européias a partir do Renas-cimento e que, eventualmente, caracterizaram algumas eli-tes intelectuais dos tempos primitivos. Somos levados aacreditar que o nosso «eu» existe de certo modo «dentro»de nós; e que há uma barreira invisível separando aquiloque está «dentro» daquilo que está «fora» — o chamado«mundo exterior». Aqueles que tomam consciência de sipróprios deste modo — como uma espécie de caixa fechada,como um Homo clausus — pensam que isto é imediata-mente evidente. Não conseguem imaginar que há indivíduosque não se vêem nem vêem deste modo o mundo em quevivem. Nunca perguntam qual a parte de si próprios queconstitui, de facto, o muro de separação e qual a parteque está encerrada dentro deles. Será a pele uma paredeque encerra o verdadeiro eu? Será o crânio ou a caixatoráxica? Onde está e qual é a barreira que separa o

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Tíntimo humano de tudo o que está lá fora, onde estáe qual é a substância que contém? É difícil sabê-lo, por-que dentro do crânio apenas encontramos o cérebro, den-tro da caixa toráxica, o coraçãoAe os órgãos vitais. Seráverdadeiramente este o cerne da individualidade, o eu ver-dadeiro, com uma existência à parte do mundo exterior e,portanto, à parte da «sociedade»? Usam-se muitas vezesmetáforas espaciais que nos localizam numa posição inde-monstrável, dentro de limites que de certo modo somosnós próprios, mas cuja existência é difícil provar. Estasmetáforas exprimem um sentimento humano extrema-mente forte e recorrente, de cuja autenticidade não pode-mos duvidar. Mas é duvidoso que esta concepção do eu,e esta imagem do ser humano em geral, correspondamaos factos. Sem que aprofundemos todos os problemasaqui levantados, devemos dizer que a imagem do homemcomo Homo clausus é problemática5. Bastará apontar queé este modo de autopercepção e esta imagem da humani-dade que dão poder e convicção à idéia de que a «socie-dade» existe para além dos indivíduos ou que os «indiví-duos» existem para além da sociedade. Os teóricos dasociologia demonstram-no claramente nas suas lutas fúteiscom tais problemas; como escreveu Durkheim:

Temos, por conseguinte, que considerar os fenômenos sociaisem si mesmos como sendo distintos das representações cons-cientes que deles temos; temos que os estudar objectivamentecomo coisas externas, pois é esta a característica que eles nosapresentam. Se se provar que essa exterioridade era apenasaparente, o avanço da ciência trará desilusões e veremos quea nossa concepção dos fenômenos sociais muda, tornando-sede objectivos que eram em subjcctivos".

Durkheim lutou toda a sua vida com este problema,mas em vão. Ao abordá-lo, deparou com problemas quese centravam na existência de fenômenos sociais «exterio-res» em relação ao indivíduo e à sua consciência «íntima»,e, estreitamente relacionados com estes, um conjunto deproblemas mais antigos da teoria do conhecimento quegiram em torno da existência de objectos «exteriores» eda sua relação com o sujeito gnosiológico individual e dasua «consciência», «espírito», «razão» e outros atributosigualmente «internos». Max Weber pegou no problema deum modo diferente. Mas, embora talvez tenha tido menosconsciência do que Durkheim das dificuldades, estas nãodeixam de aparecer claramente nos seus trabalhos, uma

vez que distinguiu entre as acções individuais que sãosociais e as acções individuais que o não são — que são,por conseguinte, puramente «individuais». Dos exemplosque deu, torna-se evidente como esta distinção era proble-mática. De acordo com Weber, abrir um chapéu de chuvaquando chove não é uma acção social. Aos seus olhos,a acção de abrir um chapéu de chuva é realizada semque se atenda aos outros. É claro que nunca lhe ocorreuque os chapéus de chuva só se encontram em certas socie-dades, não se fabricando nem se utilizando noutras. Domesmo modo, interpretou como não-social um choque entredois ciclistas; só os insultos e a pancada que eventual-mente se seguissem eram acções sociais. Weber sustentavaserem não sociais todas as acções que apenas se dirigema objectos inanimados, embora seja evidente que pessoasdiferentes poderão dar significados diversos a uma rocha,a um rio ou a uma tempestade. Assim, as pessoas nassociedades mais rudimentares, com sistemas de crençasmágico-míticas, atribuirão diferentes significados a esteáobjectos e, assim, o seu comportamento para com elestambém será diferente do comportamento de pessoas desociedades industriais mais secularizadas. Teve grandeinfluência no pensamento de Max Weber o sentimento deque deve haver algures uma linha de demarcação ou umadivisão entre o que podemos designar como individual eo que pode ser considerado social. Mais uma vez se podever como este modo de definir o problema foi modeladopelo conceito de indivíduo, parecendo referir-se a umapessoa aparentemente estática, mais do que a alguém quecresceu, mudou e está ainda a mudar, que está ainda a«transformar-se».

Esta pessoa estática é um mito. Se cada um for vistocomo um processo, podemos provavelmente dizer que,à medida que cresce, se torna cada vez mais independente— embora isto só seja verdade em sociedades que ofere-cem um escopo bastante lato de individualização. Mas cer-tamente que, quando criança, cada um de nós foi tãodependente quanto possível dos outros — tivemos queaprender com eles a falar e mesmo a pensar. E tantoquanto podemos averiguar, é totalmente alheio às crian-ças o sentimento de estarem desligadas, de estarem presas«dentro» do seu próprio eu. Encontram-se repetidamentecertas dificuldades sempre que queremos chegar a umasolução convincente para o problema das relações entreaquilo a que chamamos o indivíduo e aquilo a que chama-mos a sociedade. Certamente que estas dificuldades se

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relacionam estreitamente com a natureza destes dois con-ceitos. Ao procurarmos libertar as nossas mentes das limi-tações impostas pelas idéias que estes conceitos fomentam,a primeira coisa a notar é que elas se baseiam num sim-ples facto. Um conceito refere-se a pessoas no singular,o outro a pessoas no plural. Depois de traduzirmos istopor palavras, este estranho modo de nos conhecermos— como se cada pessoa singular existisse acima e paraalém das outras pessoas — vai afrouxando um pouco. Nãopodemos imaginar uma pessoa isolada e absolutamentesozinha num mundo que é, e sempre foi, desligado dosoutros. A imagem do homem que necessitamos para oestudo da sociologia não pode ser a da pessoa singular,do Homo Sociologicus. Tem que ser antes a de pessoasno plural; temos obviamente que começar com a imagemde uma multidão de pessoas, cada uma delas constituindoum processo aberto e interdependente. Tudo isto estavaimplícito nos modelos de jogo do capítulo anterior. Logoque nasce, todo o indivíduo começa a jogar com os outros.Mesmo o mais frágil bebê tem os seus trunfos no choroe no riso. Mas se fizermos justiça ao processo nuncaacabado pelo qual cada um se relaciona constantementecom os outros, será necessário modificar o processo deauto-experiência de que falámos anteriormente.

É provável que nunca compreendamos os problemasda sociologia se não nos conseguirmos ver como pessoasentre outras pessoas, envolvidas em jogos com os outros.

Poderá parecer fácil, talvez mesmo trivial, esta formu-lação da reorientação. Mas não é. Este processo de tomar-mos consciência de nós próprios como seres cujo «eu inte-rior» se situa à parte dos outros, desligado das «coisas exte-riores»— que significam tanto a «sociedade» como os«objectos»— por uma espécie de barreira invisível, temas suas raízes muito profundas em sociedades altamenteindividualizadas, ajustadas a uma grande reflexão inte-lectual; isto está de tal modo enraizado, que temos defazer um esforço ulterior de distanciamento antes de con-seguirmos chegar à idéia aparentemente simples de quecada pessoa é uma entre as outras, e a todas as conse-qüências que daí advêm. Actos de reflexão realizados comocoisas naturais pelos membros individuais de sociedadesdiferenciadas, implicam actos de autodistanciamento — dis-tanciamento relativamente aos objectos do seu própriopensamento. À medida que a sociedade humana se desen-volve, as pessoas vão tomando consciência de si mesmasde um modo cada vez mais intenso, como sendo entes

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separados, distintos tanto das outras pessoas como dosobjectos naturais. A reflexão e a consciência interpõem-sede um modo crescente no processo de adestramento social,como influências controladoras e dominadoras entre osimpulsos espontâneos que cada um tem para agir, e asoutras pessoas, os outros objectos naturais. Portanto, é difí-cil combinar a idéia de que o sentimento de uma linhade demarcação entre o «eu interior» e o «mundo exterior»é genuína e a idéia de que essa linha de demarcação éinexistente. De facto, reguere-se um esforço ulterior deauto-distanciamento. E isto é essencial se reconhecermosque a separação aparentemente real entre o eu e os outros,o indivíduo e a sociedade, o sujeito e os objectos, é defacto a reificação da libertação da nossa própria experiên-cia, libertação essa instilada pela própria sociedade.

OS PRONOMES PESSOAISCOMO MODELOS FIGURACIONAIS

Seria estranho que a nossa linguagem quotidiana nãonos fornecesse meios de discurso capazes de um desen-volvimento posterior ao longo destas páginas. De facto,temos à nossa disposição toda uma cadeia destes instru-mentos. É precisamente pelo facto de diferirem do tipohabitual de reificação de conceitos que temos uma cons-ciência insuficiente do seu potencial na conceptualizaçãocientífica. Um dos modelos mais promissórios que encon-tramos na nossa linguagem para uma formação não reifi-cante de conceitos está nos pronomes pessoais. Em ciênciashumanas não constitui novidade a utilização destes prono-mes para formar novos conceitos. Mas os primeiros pro-cessos de tal procedimento demonstram como é forte atradição que nos força (quando pensamos nelas) a trans-formar relações em objectos estáticos não relacionados.O pronome «eu» é geralmente usado para comunicar aosoutros que uma certa asserção se refere à pessoa quefala. Mas numa utilização científica é transformado abrupta-mente num substantivo e, dado o hábito predominante dediscurso, parece referir-se a uma pessoa independente eisolada. O conceito de ego tal como é usado por Freudou Parsons é um bom exemplo de como este conceito derelação se pode transformar num conceito de substância,no conceito de uma coisa. A utilização que Parsons faz dotermo «ego» demonstra a força de um modo de pensar

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que se centra no indivíduo. Foi muito característico o factode um sociólogo como Parsons ter deslocado o «eu», iso-lando-o da série de pronomes, contrastando-o com todas asoutras pessoas, embora na verdade nós as experimentemoscomo tu, ele, ela, nós, vós e eles e não como «alter» ou«o outro». Há poucas características da sociologia teóricahoje predominante que mostrem tão claramente como estasas suas limitações.

Compreende-se facilmente que a posição individualneste tipo de relações não possa ser tratada separada-mente. A função que o pronome «eu» desempenha nacomunicação humana só pode ser compreendida no con-texto de todas as outras posições relativamente às quaisse referem os outros termos da série. As seis outras pro-posições são absolutamente inseparáveis pois não conse-guimos imaginar um «eu» sem um «tu», sem um «ele» ouuma «ela», sem nós, vós ou eles.

Os pronomes pessoais representam o conjunto elemen-tar de coordenadas com as quais se podem esboçar todasas sociedades ou agrupamentos humanos. Ao comunicardirecta ou indirectamente, referimo-nos a nós próprioscomo «eu» ou «nós» e designamos por «tu» aqueles comquem queremos comunicar nesse momento. A terceira pes-soa que, de um modo temporário ou permanente, ficafora do grupo de comunicação, é designada por «ele» ou«ela», ou no plural por «eles» ou «elas». Há sociedadesque utilizam outros sinais que permitem aos seus mem-bros comunicar qual das posições básicas na trama dascomunicações é ocupada pela pessoa. a quem nos estamosa referir. Mas parece que todos os grupos humanos têmcertos símbolos estandardizados para o conjunto de coor-denadas que é enr^i mesmo uma das propriedades univer-sais das sociedades humanas. Os níveis mais baixos deintegração não têm qualquer forma de relação equivalentea experiência e agrupamento de «eus» como eu, tu, ele,ela, vós e eles. Esta forma de relação não pode ser reme-tida para níveis anteriores nem explicada em termos des-tes. Ilustra a autonomia relativa das sociedades formadaspor pessoas e dos tipos de comunicação que as caracte-rizam.

Como vimos, o conjunto de proposições a que se refe-rem os pronomes pessoais diferem daquilo que habitual-mente temos em mente quando falamos de posições sociaiscomo sendo papéis — conjuntos de posições como pai-mãe--filha-filho ou subalterno — sargento, cabo, recruta. Estes

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últimos termos devem (dentro de uma determinada formade comunicação) referir-se sempre à mesma pessoa. Carac-risticamente, podemos usar numa mesma situação, o mesmopronome pessoal, referindo-nos a várias pessoas. Isto é pos-sível porque os pronomes são relacionados e funcionais;exprimem uma posição que é relativa quer àquele que falanesse momento quer a todo o grupo que comunica. O con-ceito de «eu» — o pronome da primeira pessoa — é sinto-mático da natureza de todo o conjunto, indicando a posi-ção tomada pelas pessoas que comunicam nas suas relaçõesumas com as outras. Serve de meio de orientação numgrupo, quer os seus membros estejam ou não realmentepresentes, quer as pessoas apenas se refiram a si própriasem voz alta como «eu» quando estão na presença dosoutros, quer usem o conceito silenciosamente quando pen-sam em si mesmas. De qualquer modo, tem que incluir aidéia de outras pessoas que ocupam outras posições natrama de relações a que o conjunto de pronomes pessoaisse refere. Como já dissemos, não pode haver um «eu» semque haja um «tu», «ele», «ela», «nós», «vós», «eles». É per-feitamente ilusória a utilização dos conceitos de eu ouego, independentemente da sua posição dentro da tramade relações a que se referem os restantes pronomes.

Os pronomes pessoais são no seu conjunto uma expres-são elementar do facto de que cada um se relaciona fun-damentalmente com os outros e de que cada ser humanoindividual é essencialmente um ser social. Isto vê-se muitoclaramente na consciencialização que uma criança vai tendode si mesma como alguém desligado dos outros. A cons-ciência que cada um tem da sua própria existência sepa-rada é idêntica à consciência que cada um tem de que osoutros existem separadamente. A compreensão do signifi-cado do conceito de «eu» —que nem sempre é a mesmacoisa que a utilização da palavra eu — relaciona-se intima-mente com a compreensão do significado dos conceitos detu ou de nós. No desenvolvimento quer de indivíduos sin-gulares quer da totalidade de grupos de pessoas, podehaver etapas durante as quais a diferenciação conceptualentre as várias posições na trama de relações é menospronunciada do que no caso de uma utilização lingüísticaem sociedades mais diferenciadas. É certamente possívelque as expressões simbólicas da primeira e da terceirapessoas sejam menos distintas; para se referir a si mesmo,um homem pode usar o mesmo símbolo que os outrosusam — o seu nome. As crianças fazem-no muitas vezes.

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E provavelmente as expressões para a primeira pessoa dosingular e do plural não são igualmente diferenciadas emtodos os casos; nalgumas sociedades pode ser habitualdizermos «nós» em situações particulares em que outrassociedades se diz «eu». Há aqui um grande escopo paraestudos comparativos. Podem começar como estudos pura-mente lingüísticos, mas manter-se-iam incompletos a nãoser que se encarassem as diferenças de natureza e utili-zação dos pronomes pessoais como sendo sistemas dasdiferenças existentes na estrutura dos grupos relevantes,na sua relação interpessoal e no modo como essas rela-ções são percebidas. Por exemplo, teria interesse ver comoconjuntos de pronomes de designação se diferenciaram eevoluíram nas diferentes línguas européias7.

Não podemos, contudo, explorar a ampla série deproblemas empíricos afins. A nossa discussão sobre osignificado da série de pronomes pessoais conduz-nos ime-diatamente a uma transição fácil da imagem do homemcomo Homo clausus à de Homines aperti. Também nosajuda a compreender algo mais — que o conceito de indi-víduo se refere a pessoas interdependentes, e o conceitode sociedade a pessoas interdependentes no plural.

Justifica-se perfeitamente (tornando-se mesmo absolu-mente necessário), que o trabalho científico nestes doiscampos seja atribuído a dois grupos diferentes de espe-cialistas. O primeiro deveria ser do âmbito de psicólogose psiquiatras e o segundo de sociólogos e psicólogos sociais.Considerarmos os pronomes pessoais como modelos, tornamais fácil a compreensão de que é possível distinguir, nestalonga caminhada, a pesquisa efectuada sobre pessoas nosingular da pesquisa realizada sobre pessoas no plural, masque é impossível separá-las — tal como as pessoas no sin-gular não podem ser separadas das pessoas do plural.

Ao mesmo tempo, este modelo torna-nos mais clara aidéia de que certos hábitos de pensamento são pouco ade-quados à situação humana. Estes hábitos descrevem o «eu»real como se este residisse algures na pessoa individual,perfeitamente isolado dos outros a quem nos dirigimoscomo «tu», «nós», «eles» ou «elas». Tenhamos presente queo facto de nos percepcionarmos como pessoas de quem sediz «eu», implica que percepcionemos os outros como «ele»,«ela», «nós», «vós», «eles». Talvez esta lembrança nos tornemais fácil atingir um grau de distanciamento quanto aosentimento de que a nossa existência como pessoa é «inte-rior» enquanto a existência dos outros é «exterior».

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No entanto, há um outro grupo de problemas quepode ser abordado com a ajuda deste modelo, mas queseria de abordagem impossível se nos limitássemos a apli-car-lhes o tipo de formação de conceitos que habitualmentepredomina. Ao utilizar conceitos que parecem referir-se aobjectos isolados e estáticos, é difícil fazer justiça ao factode que todas as relações entre as pessoas são uma questãode perspectiva. Em relação com o índice de complexidade(ver p. 112) já foi sugerido que a relação AB entre duaspessoas compreende na realidade duas relações distintas— a relação AB vista sob a perspectiva de A e a relação BAvista sob a perspectiva de B. Ao trabalhar com conceitosque fazem as relações regulares parecer objectos estáticos,é difícil fazer justiça à natureza perspectivacional de todasas relações humanas. A seqüência de pronomes pessoaisdá-nos um material bruto de conceitos, permitindo-nos tra-balhar nestes problemas de um modo muito mais adequado.Para começar, torna-nos conscientes de que todas as pessoasde que falamos na terceira pessoa, falam de si próprias naprimeira, e de nós, na terceira pessoa. O conceito de funçãodá-nos um exemplo simples da natureza perspectivacionaldas relações humanas. É geralmente utilizada em relaçãocom a manutenção de um sistema social particular. De ummodo geral, diz-se que uma determinada instituição desem-penha esta ou aquela função para a sociedade. Mas seultrapassarmos o uso reificante do conceito de instituição,olhando para aqueles que a formam, torna-se evidente queconsiderarmos as funções .sociais de uma única perspectivaé uma simplificação grosseira. Isto liga-se com outra ins-tância em que a reificação esconde a verdadeira naturezados factos. Como o conceito natural de função é de naturezasubstantiva, fica oculto que as funções são atributos derelações e que são objecto de múltiplas perspectivas.

Assim, do ponto de vista daqueles que as constituem,as instituições nunca desempenham uma função exclusivapara o chamado «sistema», tal como um estado ou umatribo; desempenham também uma função para com osseus membros. Por outras palavras, têm uma «função deeu» assim como uma «função de ele» *. Cada uma dessasfunções pode predominar, de acordo com o modo de dis-tribuição do poder. Por exemplo, na França de Luís XIV,

* It iunction no original inglês e es Funktion no originalalemão. It e es são pronomes pessoais neutros sem correspon-dência na língua portuguesa (N. do T.).

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o ofício de rei desempenhava uma função para o próprioLuís XIV que tinha precedência sobre a sua função paraa França. Como resultado de uma democratização cres-cente, a função que os cargos governamentais desempe-nham numa sociedade-estado, têm precedência sobre afunção que eles têm para aqueles que os ocupam, emboraesta não desapareça completamente. Qualquer análise dasposições sociais e das funções sociais que não atenda aestas múltiplas perspectivas manter-se-á unilateral. Nãoconseguirá captar o que realmente acontece. Além disso,uma análise mais profunda mostra realmente que, pelomenos no que respeita a sociedades mais complexas devários níveis, o tema não se esgota nas funções de «eu»(ou de «ele»). Muitas vezes são precisos todos os pro-nomes da série para que se faça justiça às múltiplas pers-pectivas que caracterizam as funções das instituiçõessociais.

Já Max Weber se colocava na peugada deste pro-blema. Tal como muitos dos seus predecessores, tentouchamar a atenção para as perspectivas do «eu» e do «nós»nos factos sociais, tanto na sua obra teórica como ocasio-nalmente também no seu trabalho empírico. No centroda sua teoria há um desafio aos sociólogos para que estesresolvam o problema do significado, o sentido pretendidoque as acções e as metas sociais têm para os seus própriosautores. O próprio Max Weber só em parte resolveu esteproblema, mas aproximou-se mais da sua resolução doque qualquer dos seus predecessores. De um modo geral,têm dado a este processo de abordar o problema menosatenção do que ele merece. Uma das razões fundamentaisdeste esquecimento é o facto de não podermos fazer jus-tiça ao caracter rnultiperspectivacional das interconexõessociais sem que tenhamos uma estrutura relativamenteprecisa de tais relações, como por exemplo a que é for-necida pelo modelo de pronome.

O modelo de pronome pode ser assim utilizado comoconjunto de coordenadas com referência não só às funçõessociais mas também a qualquer «estrutura social parti-cular». Teve a vantagem de nos permitir ver novamenteas pessoas por detrás de tudo quanto é impessoal, mesmodas estruturas sociais extra-humanas, que tão copiosa edesordenadamente enchem as páginas dos manuais desociologia.

Mas é claro que não nos podemos simplesmente limi-tar a definir as perspectivas (de momento, unilaterais)dos jogadores que participam num jogo. Elas são indis-

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pensáveis mas por si só não conseguem explicar o decursodo jogo. Já foi explicado como e porquê as perspectivasdos jogadores individuais se cruzam de modo a constituirum jogo que nenhum jogador individual consegue contro-lar. Pelo contrário, é mais provável que as jogadas, os pla-nos e as perspectivas dos jogadores sejam influenciadospelo jogo. O modelo de pronome ajuda-nos a compreendera natureza perspectivacional das teias de interdependênciahumana. Num aspecto, torna possível uma afirmação maisnítida do problema sociológico. Utilizando termos como«estrutura», «sistema» e «função», procura tornar maisclara a perspectiva do «eles» nos caminhos que os jogostomam. Mas os sociólogos têm muitas vezes simultanea-mente outro problema — o de decidirem como é que ospróprios participantes vivem as suas jogadas no decursodo jogo. Portanto, a sociologia deve atender tanto à pers-pectiva da primeira como da terceira pessoas. Do mesmomodo, o modelo de pronome mostra que nunca podemosconsiderar as pessoas como seres singulares e isolados;temos sempre que as encarar inseridas em configurações.Um dos aspectos mais elementares e universais de todasas configurações humanas é o de que cada ser é inter-depente — cada um se pode referir a si mesmo como «eu»e aos outros como «tu», «ele», ou «ela», «nós», «vós» ou«eles». Não há ninguém que nunca tenha estado inseridonuma teia de pessoas. E designamos isto oralmente oupensamos nisto por meio de conceitos que se baseiamem pronomes ou noutros meios análogos de expressão.A concepção que cada um de nós tem destas configu-rações é uma condição básica para a concepção que cadaum tem de si próprio, como pessoa isolada. O sentido quecada um tem da sua identidade está estreitamente relacio-nado com as «relações de nós» e de «eles» no nosso pró-prio grupo e com a nossa posição dentro dessas unidadesque designamos por «nós» e «eles». Contudo, os pronomesnem sempre se referem às mesmas pessoas. As configura-ções a que habitualmente se referem podem mudar nodecurso de uma vida, tal como uma pessoa muda. Isto éverdadeiro não só para todas as pessoas consideradas sepa-radamente como também para todos os grupos e mesmopara todas as sociedades. Todos os seus membros dizem«nós» quando se referem a si mesmos e «eles» quando sereferem aos outros, porém, à medida que o tempo passa,podem dizer «nós» ou «eles» referindo-se a diferentespessoas.

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O CONCEITO DE CONFIGURAÇÃO

É pouco comum hoje em dia que uma obra sobreproblemas da sociedade trate de um modo profundo anoção de indivíduo, da pessoa "singular. A especializaçãocientífica é actualmente tão rigorosa que a inclusão naconsideração das características universais da sociedadede problemas que envolvam as pessoas no singular e noplural aparece quase como uma ilegalidade, uma infracçãode fronteiras ou mesmo como uma alteração das linhasde demarcação. Talvez já se tenham feito suficientessugestões de que o divórcio convencional do estudo cien-tífico da pessoa relativamente ao estudo científico das pes-soas é um problema discutível — mas notemos que setrata apenas de divórcio e não de distinção. Uma das falhasmais sérias das teorias sociológicas convencionais resideno facto de estarem de acordo quando tentam apresentaruma concepção clara das pessoas enquanto sociedades,fracassando quando pretendem fazer o mesmo no querespeita às pessoas enquanto indivíduos.

Deste modo, os horizontes da sociologia estão limi-tados, não porque estes dois aspectos constituam real-mente assuntos separados, mas devido a uma comparti-mentação profissional. Como resultado, os teóricos traba-lham como base numa certa concepção do indivíduo, «bem--fundada», mas que na verdade nunca foi submetida a umescrutínio crítico. Devido às suas teorias e hipóteses sobrea sociedade, aceitam sem quaisquer críticas uma das con-cepções pré-científicas sobre a pessoa, misturada com todaa espécie de juízos de valor e de ideais que lhe estãoimplícitos. Se encararmos de frente este problema, logose torna evidente que a divisão entre concepções da pessoae concepções das pessoas na sociedade é uma aberraçãointelectual. O prejuízo que isto provoca nas disciplinaspsicológicas não precisa de ser agora examinado de perto.As suas teorias são como holofotes que iluminam a pessoaindividualizada; o modo como esta se insere na sociedadefica, no entanto, nos limites sombrios da sua visão e dosseus interesses, chamando-lhe indiscriminadamente «back-ground», «ambiente» ou «meio». Os sociólogos não deviamde modo algum estar de acordo com uma tradição querestringe o escopo das teorias sociológicas exclusivamenteà «sociedade», que examina à lupa as teorias sobre a socie-dade, que as critica procurando conciliá-las com outrosconhecimentos disponíveis mas que, no entanto, não segueo mesmo caminho no que respeita às idéias sobre o indi-

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víduo. É óbvio que uma coisa não pode ser feita sem aoutra. Ao estudar a humanidade, é possível fazer incidirum feixe de luz primeiro sobre as pessoas singulares edepois sobre as configurações formadas por muitas pes-soas separadas. Mesmo assim, a compreensão de cada umdos níveis será afectada, a não ser que ambos os aspectossejam constantemente considerados. A utilização que hojefazemos destes conceitos poderia levar-nos a acreditar queo «indivíduo» e a «sociedade» denotam dois objectos queexistem independentemente, enquanto, na verdade, se refe-rem a dois níveis diferentes mas inseparáveis do mundohumano.

Se queremos introduzir novos conceitos de modo aabordar adequadamente o problema devemos refrear-nosum pouco. Muitas vezes os cientistas abusam do direitoque têm de pôr a circular novos conceitos que exprimamnovas idéias. Ora isto pode bloquear certos canais decomunicação, tanto dentro da disciplina em questão comoentre esta e outras disciplinas. No entanto, dado o estadopresente da discussão sociológica, há uma razão específicapara introduzirmos aqui o conceito de «configuração».Torna-nos possível resistir à pressão que sofremos porparte da sociedade e que nos leva a fragmentar e pola-rizar o nosso conceito de humanidade. Este tem-nos impe-dido repetidas vezes de pensarmos as pessoas como indi-víduos ao mesmo tempo que as pessoas como sociedades.Esta polarização conceptual é um reflexo muito nítido devários ideais sociais e sistemas de crenças. Por um lado,há um sistema de crenças cujos adeptos atribuem o maisalto valor à «sociedade»; por outro, há um sistema decrenças cujos adeptos atribuem o mais alto valor ao«indivíduo». O que daqui resulta — que há dois valoresdiferentes correspondendo a dois objectos que existemseparadamente — está a tornar-se uma idéia fixa na cons-ciência contemporânea. Isto reforça a idéia do eu como«estando numa caixa fechada» e do homem como H ornoclausus.

O conceito de configuração8 serve portanto de sim-ples instrumento conceptual que tem em vista afrouxar oconstrangimento social de falarmos e pensarmos como seo «indivíduo» e a «sociedade» fossem antagônicos e dife-rentes.

Os modelos de processos de interpenetração já des-critos neste livro tornam bastante clara a utilização doconceito de configuração. Se quatro pessoas se sentaremà volta de uma mesa e jogarem cartas, formam uma con-

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figuração. As suas acções são interdependentes. Neste caso,ainda é possível curvarmo-nos perante á tradição e falar-mos do jogo como se este tivesse uma existência própria.É possível dizer: «O jogo hoje a noite está muito lento!».Porém, apesar de todas as expressões que tendem aobjectivá-lo, neste caso o decurso tomado pelo jogo seráobviamente o resultado das acções de um grupo de indi-víduos interdependentes. Mostrámos que o decurso do jogoé relativamente autônomo de cada um dos jogadores indi-viduais, dado que todos os jogadores têm aproximadamentea mesma força. Mas este decurso não tem substância, nãotem ser, não tem uma existência independente dos joga-dores, como poderia ser sugerido pelo termo «jogo». Nemo jogo é uma idéia ou um «tipo ideal», construído por umobservador sociológico através da consideração do com-portamento individual de cada um dos jogadores, daabstracção das características particulares que os váriosjogadores têm em comum e da dedução que destas sefaz de um padrão regular de comportamento individual.O «jogo» não é mais abstracto do que os «jogadores».O mesmo se aplica à configuração formada pelos quatrojogadores à volta de uma mesa. Se o termo «concreto»tem algum significado, podemos dizer que a configuraçãoformada pelos jogadores é tão concreta como os própriosjogadores. Por configuração entendemos o padrão mutávelcriado pelo conjunto dos jogadores — não só pelos seusintelectos mas pelo que eles são no seu todo, a totalidadedas suas acções nas relações que sustentam uns com osoutros. Podemos ver que esta configuração forma umentrançado flexível de tensões. A interdependência dosjogadores, que é uma condição prévia para que formemuma configuração, pode ser uma interdependência dealiados ou de adversários.

Tomando como exemplo o futebol, podemos ver queuma configuração é uma estrutura de jogo que pode teruma hierarquia de várias relações de «eu» e «ele», «nós»ou «eles»9. Torna-se evidente que dois grupos de adver-sários, que têm entre si uma relação de «nós» e de «eles»,formam uma configuração singular. Só podemos compre-ender o fluxo constante do agrupamento dos jogadores deum dos lados, se virmos que o grupo de jogadores dooutro lado também está num fluxo constante. Se se pre-tende que os espectadores compreendam e gostem do jogo,terão que estar aptos a compreender o modo como estãorelacionadas as disposições mutáveis de cada lado — paraseguir a configuração fluida de cada uma das equipas.

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Assim, ainda se torna mais evidente o pouco sentido queteria a consideração de cada jogador individual como sendoalgo de «concreto» e a configuração formada pelo conjuntodos jogadores como algo de «abstracto»; ou encarar cadajogador individual como «real» e o grupo de jogadores(na configuração fluida que formam quando em campo)como «irreal». Mais, torna-se mais claro, porque é queo conceito de poder se transformou de um conceito desubstância num conceito de relação. No seio das configu-rações mutáveis — que constituem o próprio centro do pro-cesso de configuração — há um equilíbrio flutuante e elás-tico e um equilíbrio de poder, que se move para diantee para trás, inclinando-se primeiro para um lado e depoispara o outro. Este tipo de equilíbrio flutuante é umacaracterística estrutural do fluxo de cada configuração.

Estes exemplos podem ajudar a exprimir o significadodo conceito de configuração, tal como ele é aqui usado.Este pode ser aplicado tanto a grupos relativamente peque-nos como a sociedades constituídas por milhares ou milhõesde pessoas interdependentes. Professores e alunos numaaula, médico e doentes num grupo terapêutico, clienteshabituais num bar, crianças num infantário — todos elesconstituem configurações relativamente compreensíveis.Mas os habitantes da aldeia, da cidade ou da nação, tam-bém formam configurações embora, neste caso, as confi-gurações não se possam percepcionar directamente, porqueas cadeias de interdependência que os ligam são maiorese mais diferenciadas. Configurações tão complexas terãode ser abordadas indirectamente e compreendidas medianteuma análise dos elos de interdependência. Isto ilustra umavez mais porque é que a análise sociológica nunca podeusar justificadamente substantivos desumanizados comoinstrumento de investigação. Conceitos como estrutura, afunção, papel ou organização, economia ou cultura, nãoconseguem traduzir uma referência a determinadas confi-gurações de pessoas. O mesmo se aplica ao conceito de«jogo», se perdermos de vista o facto do jogo ser umaspecto de uma configuração particular de jogadores.

Torna-se, portanto, problemático o facto da sociologiaser designada como «ciência do comportamento», comotantas vezes acontece. Descrevê-la como tal dá a impressãode que os problemas sociológicos estariam em vias desolução se os sociólogos se concentrassem no comporta-mento dos indivíduos que, em conjunto, constituem asformações sociais em questão. As situações sociais apare-ceriam então como meras abstracções das características

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comuns do comportamento de muitos indivíduos distintos.Contudo, sem dúvida que isto representa uma visão dema-siado estreita e distorcida da tarefa sociológica. Uma inves-tigação que se restrinja ao comportamento de muitos indi-víduos separados apenas permite um acesso limitado aproblemas de estruturas sociais, de configurações mutáveisde pessoas, de distribuição de poder ou de equilíbrio detensões nas configurações, ou a muitas outras questõesespecificamente sociológicas.

Isto não significa que não haja lugar na investigaçãosociológica para os estudos estatísticos que lidam comcaracterísticas comuns do comportamento dos membrosde certos grupos. Estes são em muitos casos indispensá-veis. O ponto em questão é a hipótese teórica na base daqual se empreende um inquérito estatístico. Ou, por outraspalavras, como é que o inquérito define o problema queestá a procurar resolver? A estrutura teórica de uma socio-logia de configurações e de desenvolvimento deixa natural-mente um espaço para os inquéritos estatísticos. Porém,hoje em dia, as exigências da estatística muitas vezes ditamo modo como os sociólogos põem as suas questões. Fre-qüentemente, o tipo de estatística apenas se presta àinvestigação do comportamento de muitos indivíduos sepa-rados, imaginando-os como sendo absolutamente indepen-dentes uns dos outros. Em termos coloquiais, «é a caudaque abana o cão». Se a sociologia tem de investigar osprocessos configuracionais que se assemelham a jogoscomplexos, então os apoios estatísticos terão de ser desen-volvidos de acordo com esta tarefa.

O conceito de configuração chama a atenção para ainterdependência das pessoas. O que é que, na realidade,une as pessoas em configurações? Perguntas como estasnão podem ser respondidas se começarmos por considerartodas as pessoas individuais em si mesmas, como se cadauma fosse um Homo clausus. Isto seria ficarmos ao nívelda psicologia e da psiquiatria, que estudam a pessoa indi-vidual. De facto, o termo «ciência do comportamento»deriva delas, através de certas noções teóricas do behavio-rismo. Por outras palavras, todos os problemas especifi-camente sociológicos se reduzem por este meio a problemasde psicologia social. Há um assentimento tácito de queas sociedades — configurações formadas por pessoas inter-dependentes— não passam essencialmente de agregaçõesde átomos individuais. Os exemplos de jogos de cartas ede desafios de futebol podem ajudar a tornar mais notó-rias as conseqüências desta hipótese. O comportamento

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de muitas pessoas separadas enreda-se de modo a formarestruturas entrelaçadas. Uma visão atômica da sociedadebaseia-se certamente em parte numa incapacidade de com-preensão de que estas estruturas, sejam elas casamentosou parlamentos, crises econômicas ou guerras, não podemser compreendidas nem explicadas pela sua redução aocomportamento dos seus participantes tomados isolada-mente. Este tipo de redução implica uma falha na com-preensão da autonomia relativa do campo da investigaçãosociológica no que respeita ao campo da psicologia e, con-sequentemente, na compreensão da sociologia como disci-plina que se relaciona com a psicologia.

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AS INTERDEPENDÊNCIAS HUMANAS

- OS PROBLEMAS DAS LIGAÇÕES SOCIAIS

AS LIGAÇÕES AFECTIVAS

O conceito de configuração coloca o problema dasinterdependências humanas no centro da teoria socioló-gica. O que faz com que as pessoas se liguem umas àsoutras e sejam dependentes umas das outras? Este pro-blema é demasiado lato e multifacetado para o podermosabordar totalmente no âmbito desta obra. As dependênciasrecíprocas das pessoas não são obviamente sempre asmesmas em todas as sociedades nos seus vários estádiosde desenvolvimento. Podemos, no entanto, tentar centrar--nos numa ou duas formas de dependência e mostrarresumidamente como é que as interdependências mudam,à medida que as sociedades se tornam cada vez maisdiferenciadas e estratificadas.

A opinião de que as características biológicas do homem(contrastando com as das formas sub-humanas de vida)não têm qualquer participação na formação das socie-dades, é amplamente divulgada. Por exemplo, certa teoriasociológica postula que as normas humanas são essenciaispara uma integração da sociedade. Na verdade, isto fazcom que as condições biológicas do homem aparentem nãoter dado qualquer contribuição para a dependência desterelativamente aos outros homens. Não há dúvida de queas normas não se fixam biologicamente. Já mostrámos queé uma característica humana o facto do domínio das for-mas inatas de comportamento poder ser alargado, permi-tindo que as sociedades se desenvolvam sem que a huma-nidade se desenvolva como espécie biológica. Isto tambémpoderia significar que os dotes biológicos do homem não

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Ttêm qualquer papel na formação das configurações sociais.Se considerarmos certo — como faz Talcott Parsons1 — quea estrutura da personalidade humana é independente daestrutura social, então não admira que seja tomado comouma evidência ulterior da independência do indivíduo,o facto de o corpo humano ser uma fonte de «energiasmotivantes», podendo servir de «objecto de recompensa»,«complacência» e satisfação. Parsons não é o único teóricoa considerar a privacidade e individualidade das sensaçõescorporais de cada um como uma evidência de que ohomem é, por natureza, um ser fechado e solitário. Nestecaso, a concepção do homem como indivíduo solitário étão forte que esquecemos muitas vezes que a luta quecada um trava pela satisfação própria é orientada desdeo início para os outros. Nem a própria satisfação derivainteiramente do nosso corpo — também está muito depen-dente dos outros. Esta é, na verdade, uma das interdepen-dências universais que ligam as pessoas.

Além disso, seria certamente um erro imaginar queesta dependência elementar e biológica relativamente aosoutros se limita à satisfação de necessidades sexuais. Umasérie de evidências mostram que para além e acima daimediata satisfação das necessidades sexuais, procuramosos outros para a realização de toda uma gama de necessi-dades emocionais. Seria desnecessário investigar aqui oproblema de serem ou não de origem libidinosa as liga-ções extraordinariamente diversas e subtis que os indiví-duos estabelecem uns com os outros. Há boas razões paracrermos que precisamos de estimulação emocional porparte dos outros, mesmo quando as nossas valências sexuaisestão nitidamente unidas numa relação duradoira. Istoexpressa-se melhor se imaginarmos uma pessoa que tenhamuitas valências numa dada altura. Todas elas se orien-tam para os outros e muitas delas já estão nitidamenterelacionadas com eles. Mas outras valências estarão livrese abertas, procurando pessoas com quem possam estabe-lecer articulações e relações. O conceito de valências emo-cionais abertas, orientadas para os outros, ajuda à substi-tuição da imagem do homem como Homo clausus, pelaimagem de «indivíduo aberto» -.

Isto pode ilustrar-se com um simples exemplo. Pen-semos numa pessoa a quem morreu alguém que amava.Este exemplo demonstra como nos é necessário reorgani-zar a percepção se queremos compreender a duração típicadas ligações emocionais elementares entre as pessoas.Quando falamos das ligações sexuais estamos a separar

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e a acentuar um aspecto central, mas relativamente brevee transitória das relações humanas. A possibilidade de umaduração emocional superior ao acto sexual, e para alémdele, é característica das ligações emocionais humanas.Assim se coloca a possibilidade de haver uma grande varie-dade de ligações emocionais muito fortes sem qualquertonalidade sexual.

As categorias adequadas à investigação em níveis rela-tivamente baixos de integração são inadequadas quandoinvestigamos ao nível da integração humana e social.Quando alguém que amamos morre, não significa que algotenha acontecido no mundo social «exterior» daquele quelhe sobrevive, que actua como uma causa externa no seu«eu interior»; nem interessa dizer que algo aconteceu «ali»de que se sente o efeito «aqui». Tais categorias não con-seguem exprimir a relação emocional entre o sobreviventee a pessoa que ele amava. A morte desta significa que osobrevivente perdeu uma parte de si mesmo. Na configu-ração das suas valências de afeição ou de independência,uma dessas valências fixara-se na outra pessoa. Agora essapessoa morreu. Foi destruída uma parte integrante do seueu, a sua imagem de «eu e nós».

A valência que se afeiçoara a outro foi destruída.Como resultado, houve uma alteração da configuração par-ticular de todas as valências do sobrevivente e mudou-seo equilíbrio de toda a teia de relações pessoais. A suarelação com uma outra pessoa, que anteriormente apenasocupara um lugar marginal na configuração das suas valên-cias, pode tornar-se muito mais cordial. Pode haver umcerto arrefecimento nas suas relações com os outros, quedesempenhavam uma função especial na sua relação coma pessoa que morreu, talvez porque actuassem como cata-lizadores ou como espectadores benevolentes. Assim, é ver-dadeira a afirmação de que quando morre alguém quemuito amamos, toda a configuração das valências do sobre-vivente e todo o equilíbrio da sua teia de relações sealtera.

Este exemplo chama a atenção para a orientação fun-damental de cada um relativamente aos outros. Em socie-dades sub-humanas, esta orientação manifesta-se em modosde comportamento mais ou menos rígidos e estereotipados.Estes perderam-se nas sociedades humanas, mas a própriaorientação nunca se perdeu —ou seja, a profunda necessi-dade emocional que cada ser humano tem relativamenteaos outros membros da sua espécie. A sexualidade apenasconstitui uma manifestação mais forte e mais demons-

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trativa dessa necessidade. Estão ainda presentes os ins-tintos biologicamente determinados; podem no entanto sergrandemente modificados por meio da aprendizagem, daexperiência, e por meio de processos de sublimação. Nãose justifica que consideremos a constituição biológica dohomem como algo que apenas é relevante para o «indiví-duo» e não para a «sociedade», e à qual, consequentemente,não se dá atenção no estudo da sociologia.

É fundamental o tratamento destes problemas se que-remos resolver a questão de quais as relações que ligamas pessoas umas às outras, constituindo os alicerces dasua interdependência. Os sociólogos estão acostumados aencarar as ligações humanas essencialmente sob a pers-pectiva do «eles». Por exemplo, é possível proceder comoDurkheim e encarar as ligações humanas essencialmenteno contexto de uma especialização de trabalho crescente,que faz com que as pessoas se tornem cada vez maisdependentes umas das outras. Estas idéias são importantes,mas as ligações a que se referem são ainda meramenteeconômicas. Torna-se, no entanto, impossível tratar adequa-damente os problemas das ligações sociais das pessoas,especialmente das suas ligações emocionais, se apenas con-siderarmos interdependências relativamente interpessoais.Podemos obter uma visão mais completa da teoria socioló-gica se incluirmos as interdependências pessoais e sobre-tudo as ligações emocionais entre as pessoas, conside-rando-as como agentes unificadores de toda a sociedade.

O significado destes aspectos pessoais das ligaçõeshumanas pode não ser inteiramente claro se usarmos comoúnica ilustração o nexo de relações de uma pessoa isolada.No entanto, é essencial voltarmos à teia de relações pes-soais dessa pessoa isolada, para ver como é que ela aparecedo seu ponto de vista — como é que é sentida do pontode vista da perspectiva do «eu». Só assim se torna possívelcomprender toda uma cadeia de interdependências maisalargadas, baseadas em ligações pessoais emocionais. Emunidades sociais pequenas, contendo relativamente poucagente, a teia de relações pessoais de cada pessoa singularpode incluir nessa unidade todas as outras pessoas. A con-figuração das valências de afeição e de desapego de cadaum será certamente diferente da dos outros. Contudo,enquanto a unidade se mantiver pequena, a configuraçãoincluirá toda a tribo. À medida que as unidades sociaisse tornam maiores e mais estratificadas, encontram-senovas formas de ligação emocional. Simultaneamente comligações interpessoais, encontrar-se-ão ligações unindo as

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pessoas a símbolos de unidades maiores, unindo-as porexemplo, a cotas de armas, a bandeiras e a conceitos carre-gados de aspectos emotivos.

Deste modo, as pessoas ligam-se emocionalmente umasàs outras por meio de símbolos. Este tipo de ligação nãoé menos significativo da interdependência humana do queas ligações criadas, tal como acima mencionámos, por umaespecialização crescente. As valências emocionais que unemas pessoas, quer directamente por meio de relações facea face, quer indirectamente pela «ua ligação a símboloscomuns, constituem um nível à parte de ligações. Fundi-das com outro tipo de ligação mais impessoal, sublinhama consciência alargada do «eu e nós», que até aqui sem-pre pareceu indispensável na ligação não só de pequenastribos mas de grandes unidades sociais como estados enações, abrangendo muitos milhões de pessoas. A afeiçãodas pessoas por estas grandes unidades sociais é muitasvezes tão intensa como a sua afeição por uma pessoaamada. O indivíduo que formou esta ligação será tão pro-fundamente afectado quanto esta unidade social, à qualestá afectivamente ligado, for conquistada ou destruída,depreciada ou humilhada, como quando morre alguémamado. Uma das maiores lacunas das teorias mais antigasda sociologia contemporânea é o facto de investigaremessencialmente as perspectivas sociais do «eles», quase nãose servindo de instrumentos conceptuais rigorosos parainvestigar a perspectiva de «eu e nós».

LIGAÇÕES POLÍTICAS E ECONÔMICAS

A maior parte das afirmações que hoje se fazem emsociologia referem-se essencialmente a sociedades que seorganizam em estados ou tribos. E, no entanto, dificil-mente podemos justificar a selecção desses tipos parti-culares de sociedade como base de tudo o que se dizsobre a «sociedade» ou sobre os sistemas sociais «emgeral». Porque não escolhemos a aldeia ou a cidade comomodelos de sociedade ou (como se fazia no século XIX)a sociedade humana como um todo? O que tornará tãoimportantes conjuntos como os estados e as tribos demodo que o seu significado é aceite sem discussão sem-pre que nos referimos a «totalidades» sociais?

Ao tentar resolver tais questões, a' primeira conside-ração que fazemos é que os estados e as tribos são, atécerto ponto, objectos de identificação comuns — objectos

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a que se ligam muitas valências individuais. Mas porqueé que as ligações emocionais às sociedades-estados — quehoje em dia são nações-estados — têm prioridade sobre asligações a outras configurações? Noutros estádios de desen-volvimento social, as cidades, as tribos e mesmo as aldeiastambém tiveram prioridade. Quais serão as característicascomuns das diferentes configurações que, nos vários está-dios de desenvolvimento, ligaram os indivíduos por estetipo de vínculo predominantemente emocional?

Primeiro que tudo, todas estas unidades aparentamter exercido um controlo bastante severo sobre o recursoà violência física nas relações entre os seus membros.Ao mesmo tempo, permitiram e muitas vezes encorajaramos seus membros a usar de violência física sobre os não--membros. Até à data, faltou à sociologia uma concepçãoclara das características comuns deste tipo de agrupamen-tos solidários nos vários níveis de desenvolvimento social.É óbvia a função que desempenham: unem as pessoas emtorno de objectivos comuns — a defesa comum das suasvidas, a sobrevivência do seu grupo em face de ataquesefectuados por outros grupos e, por uma variedade derazões, ataques em comum a outros grupos. Assim, a pri-meira função de uma tal aliança é, quer a extinção físicados outros, quer a protecção dos seus próprios membrosquanto a um perigo de extinção física. Visto que o poten-cial de ataque de tais unidades é inseparável do seu poten-cial de defesa, podem ser chamados «unidades de ataquee de defesa» ou «unidades de sobrevivência». No estádioactual do desenvolvimento social, tomam a forma de nações--estados. No futuro, poderão ser amálgamas de váriasnações-estados anteriores3. No passado, eram representa-dos por cidades-estadòs ou por habitantes de uma forta-leza. O seu tamanho e estrutura variam: a função man-tém-se a mesma. Esta ligação destaca-se de todas as outrasem todos os estádios de desenvolvimento, sempre que aspessoas se vincularam e integraram em unidades, tendocomo fim o ataque e a defesa. Esta função de sobrevi-vência, envolvendo o uso da força física contra os outros,cria interdependências de determinado tipo. Desempenhaum papel nas configurações que as pessoas formam, talveznão superior mas também não mais desprezível que asligações «ocupacionais». Embora não possa ser reduzidaa uma função «econômica», não pode também dela serseparada.

Devido a toda uma série de experiências, o europeudo século XIX compreenderia o perigo imediato que repre-

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sentavam indivíduos esfomeados devido a uma desigualdistribuição de poder dentro de um estado, enquanto lhepareceria secundário o risco de ser subjugado ou mortopor um inimigo externo. Assim, Marx foi um homemcaracterístico da sua época, ao percepcionar, embora deum modo mais agudo e claro do que qualquer um antesdele, as interdependências decorrentes da divisão de tra-balho na produção dos meios de subsistência e de outrosbens. Consequentemente, também se apercebeu mais cla-ramente do que os seus predecessores da estrutura deconflito associada ao monopólio dos meios de produçãode certos grupos. No entanto, ó também característico ofacto de Marx não ter percebido que o perigo de umgrupo ser subjugado ou extinto fisicamente por outro eraaltamente significante, como base para certos tipos de inte-gração e interdependência. Marx observou um determinadoestádio de desenvolvimento da sociedade industrial. Nessecontexto, acredito que as funções e recursos de poder doestado podiam ser explicados como derivando de funçõese recursos de poder dos grupos empresariais burgueses.Finalmente, acreditou que eles também derivam dos inte-resses de classe daqueles grupos sociais a quem devemoso significado dos conceitos de «economia» e «econômico»,uma vez que, na altura em que Marx escrevia, ainda erauma idéia relativamente nova que certas formas de inter-dependência— aquelas que mais intimamente se ligam àsactividades de negócios dos estratos empresariais — tinhamleis próprias, sendo até certo ponto autônomas em relaçãoa todas as outras actividades sociais. Esta esfera de acti-vidades era designada pelo termo, então relativamentenovo, de «economia». Por um lado, o reconhecimento dasua autonomia associava-se ao desenvolvimento da novaciência econômica. Por outro, a exposição teórica da auto-nomia das relações funcionais «econômicas» e da sua auto-nomia dentro do contexto geral de uma sociedade-estadoestava muito intimamente ligada à rica classe média inglesaem ascensão, na sua procura de libertação da intervençãoestatal nas suas próprias empresas. Pretendiam que dei-xassem as leis «econômicas» — o jogo livre da oferta e daprocura — seguir o seu próprio curso «natural».

Para a burguesia empresarial ascendente, lutando poruma libertação da intervenção governamental, cujos mem-bros eram ainda essencialmente influenciados' pela aris-tocracia pré-industrial, podia parecer que a «economia»tinha uma autonomia funcional absoluta relativamente ao«estado». Esta idéia encontrou a sua expressão simbólica

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no desenvolvimento do nome da ciência nascente. De«economia política», simbolizando que a esfera econômicaé uma subdivisão da política, derivou o termo «economia»,expressão simbólica da idéia de que à medida que a socie-dade se desenvolve, surge uma esfera econômica indepen-dente, com as suas leis próprias, autônomas e imanentes.A reivindicação da burguesia empresarial de que a «econo-mia» deveria ser autônoma e livre da intervenção estatal,metamorfoseou-se. A partir dela se desenvolveu a idéiade que a economia, enquanto campo de uma relação fun-cional da sociedade-estado, era na verdade autônoma. Esteconjunto de idéias liberais reflectiu-se nitidamente na con-cepção de Marx da relação entre a economia e o estado.Levou-o a pensar a esfera da «economia» como uma rela-ção funcional autônoma e isolada, com leis próprias,embora dentro das relações funcionais de toda a socie-dade. Tanto a burguesia empresarial como a ciência econô-mica defendiam que o estado devia obviamente ser umainstituição visando a protecção dos interesses burgueses.De acordo com estas concepções, Marx descreveu a orga-nização estatal como se ela na verdade nada mais fizesseque isto, não tendo qualquer outra função que não adefesa dos interesses econômicos da burguesia. Por outraspalavras, apropriou-se de uma ideologia derivada da ciênciaeconômica burguesa, mudando, por assim dizer, o sinal demais para menos. Do ponto de vista da classe trabalhadora,a defesa dos interesses burgueses parecia nociva; conse-quentemente, a organização estatal também deveria serperniciosa.

Numa análise mais cuidada, à luz da sociologia dodesenvolvimento4, torna-se claro que o desenvolvimentodas estruturas políticas e econômicas são dois aspectosabsolutamente inseparáveis da evolução de toda a relaçãofuncional da sociedade. Intimamente associados ao desen-volvimento das instituições políticas, havia muitos proces-sos conducentes ao alargamento das cadeias de interdepen-dência social. Entre esses processos estavam a crescentedivisão «econômica» do trabalho e a substituição de mer-cados locais restritos e de empresas, enquanto pontosnodais de uma rede social, por outros pontos muito maisamplos. As instituições estatais eram capazes de garantira segurança dos comerciantes e dos seus bens (agoratransportados a distâncias cada vez maiores), de asseguraro cumprimento dos contratos, de cobrar taxas de impor-tação para proteger as indústrias nascentes da competiçãoestrangeira, e muito mais do que isso. Por seu lado, o desen-

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volvimento das instituições políticas estava intimamenteligado ao alargamento das redes de comércio e indústria.De um ponto de vista sociológico, o desenvolvimento daorganização estatal e política e da estrutura ocupacionaleram aspectos indivisíveis do desenvolvimento da mesmarelação funcional. Na verdade, as chamadas «esferas» dasociedade não são mais do que aspectos respectivamenteintegradores e diferenciados do desenvolvimento da mesmateia de interdependências. Porém, muitas vezes a diferen-ciação social da sociedade «desloca-se» dissimuladamente,ultrapassando o desenvolvimento das instituições de inte-gração e de coordenação da época. Na industrialização deInglaterra, o grande salto em frente realizado cerca de 1800é um exemplo de como os processos de diferenciação sepodem superar deste modo. O desenvolvimento correspon-dente das instituições coordenadoras era manifestamentevagaroso. Esta situação apoiava-se na idéia de que a«esfera econômica» pode ser considerada como motor detodo o desenvolvimento social. Contudo, o desenvolvimentoda economia sem o correspondente desenvolvimento dasorganizações estatais e políticas é tão absurdo como odestas sem o desenvolvimento da primeira, dado que ambassão parte de teias de interdependência crescente. A sepa-ração conceptual destas duas esferas, e a autonomia abso-luta das ciências sociais que delas se ocupam, são umresíduo do período «ideologicamente» definido por libera-lismo econômico. Sociologicamente falando, foi, tal comodissemos, um período em que as diferenças funcionais decadeias de interdependência ultrapassaram os processoscorrespondentes de integração. Se, em lugar do modelotradicional das «esferas», utilizarmos um modelo de fun-ções diferenciais e de integração crescentes e decrescen-tes, avançaremos imediatamente. Somos levados a umaconcepção sociológica da sociedade, afastando a imagemextremamente artificial da sociedade como sendo uma mis-tura de esferas adjacentes mas não relacionadas, ondeprimeiro uma e depois a outra é individualizada comoa força verdadeiramente orientadora do desenvolvimentosocial.

Mas a correcção destes hábitos de pensamento terágrandes conseqüências, quer teóricas quer práticas. Aquiapenas mencionamos uma implicação. Enquanto a esfera«econômica» for encarada como funcionando de um modomais ou menos autônomo, por si e para si, dentro docontexto global da sociedade-estado, a estratificação socialé passível de ser encarada em termos desta separação de

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esferas. Assim, a estratificação nas sociedades industriaisé considerada em termos de classes sociais e dos seusconflitos de interesses, sendo estes primariamente deter-minados por factores econômicos. Esta concepção corres-ponde exactamente à visão central "dos estratos sociais nelaenvolvidos. Nesta perspectiva, as lutas pelo poder parecemsurgir simplesmente em função da distribuição das possi-bilidades econômicas, em função do equilíbrio mutável deganhos e perdas.

No entanto, também aqui um estudo mais atento revelacomo é pouco adequada a idéia de que as tensões e con-flitos entre as duas grandes classes da sociedade industrial— a classe industrial trabalhadora e a burguesia indus-trial— podem ser explicados se nos centrarmos nas possi-bilidades «econômicas», excluindo todas as outras possibi-lidades sujeitas a conflito. Quando comparado com o quehoje se pode observar, isto pode ser verdadeiramente enga-nador. Num exame mais cuidado, o problema parece rela-cionar-se com a distribuição de poder em toda a extensãoe em todos os níveis das multifacetadas sociedades-estadosindustriais. Por exemplo, um dos seus aspectos é a dis-tribuição de possibilidades de exercer poder ao nível deuma fábrica. Quais os grupos que nela têm acesso a posi-ções de comando, responsabilizando-se pela coordenaçãoe integração? E quais os grupos que não têm acesso aopoder? Os que ocupam a posição de patrões são interde-pendentes dos que ocupam a posição de trabalhadores,devido à relação funcional que existe entre as duas posi-ções. Mas a sua dependência recíproca não é a mesma— as forças do poder não são igualmente distribuídas.Mesmo a este nível, o problema não diz apenas respeitoao modo como o rendimento disponível é realmente divi-dido entre grupos que ocupam posições diferentes. A dis-tribuição destas possibilidades «econômicas» é ela própriafunção de um maior equilíbrio de poder — a distribuiçãodas possibilidades de exercer o poder entre estes grupos.O equilíbrio de poder dos interesses comerciais, não seexpressa unicamente na distribuição de possibilidades«econômicas» mas também na distribuição de possibili-dades que os membros de um desses grupos têm de con-trolar, de comandar e de despedir os outros, no decursodo seu trabalho.

Tendo presente a distribuição de poder entre capita-listas e trabalhadores, que Marx testemunhou na Inglaterrada primeira metade do século XIX, compreende-se perfei-tamente que ele tenha prestado uma atenção quase exclu-

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siva à análise da distribuição das possibilidades econômi-cas. Uma parte considerável da força trabalhadora viviaao nível da mera subsistência. Os trabalhadores estavammuito pouco organizados a nível de fábrica e ainda menosnos níveis mais altos do estado nacional. De qualquer modo,o conceito que Marx fazia de classe aplicava-se apenas aum nível. Tal como verificou, o único ponto de contactoentre as classes trabalhadoras e as classes capitalistasresidia nos locais de produção; o seu resultado era exclu-sivamente o resultado da natureza das suas posições noprocesso de produção. No seu tempo, trabalhadores epatrões nunca se encontravam em qualquer outro nível,dado que nenhum dos grupos possuía quaisquer organi-zações de unificação em níveis mais altos de integraçãoda sociedade, exceptuando algumas organizações nacionaisou de partido. Portanto, é compreensível que a sua con-cepção de classe se referisse unicamente a grupos espe-cíficos de posições no processo de produção e a sua aná-lise não perdeu de modo algum relevância, à medida queas sociedades industriais se desenvolveram. Mas agorapodemos ver de um modo mais claro que a análise,embora indispensável, é incompleta. Mesmo no tempo deMarx, o equilíbrio de poder na fábrica entre trabalhadorese patrões não era um fenômeno isolado; alguma diferençase fazia sentir se os então agentes estatais viciavam abalança, beneficiando um ou outro lado. À medida quese desenvolveram as sociedades industriais, houve umatendência para o declínio da importância das lutas, esca-ramuças, compromissos e acordos passados a nível defábrica relativamente a níveis mais altos de integração,nomeadamente as instituições centrais do estado, tal comoo parlamento e o governo.

Torna-se, pois, necessária a correcção da concepçãotradicional de classe a um só nível, que parecia basear-seinteiramente na distribuição das possibilidades econômi-cas. É necessária uma concepção de classe que atenda aofacto de que as lutas funcional e organizacionalmenteinterdependentes entre trabalhadores e patrões se proces-sam a muitos outros níveis de integração que não os dafábrica. Processam-se especialmente ao mais alto nível deintegração de uma sociedade-estado. Esta nova concepçãotem de atender a que, nas sociedades mais desenvolvidas,as duas classes organizadas estão hoje muito mais inte-gradas nessas organizações estatais do que estavam notempo de Marx. De facto, ambas essas classes industriaisse tornaram classes dominantes, pois estão representadas

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7em todos os diferentes níveis de integração da sociedadeindustrial — a nível local e regional, assim como a nívelnacional. A distribuição de poder entre as duas classesé ainda muito desigual, especialmente ao nível da fábrica,mas não tão desigual como era no "tempo de Marx. E sur-gem tensões de outro tipo, acompanhando as tensões queMarx assinalara na sua época, quando essas classes sociaisainda podiam ser encaradas como formações sociais homo-gêneas de um só nível, a nível de fábrica. Estas novastensões surgem entre governantes e governados, não impe-dindo as tensões entre pessoas que representam a mesmaclasse em diferentes níveis de integração.

, A relação muitas vezes desprezada dos processos deintegração e de diferenciação é muito útil quando se estu-dam as mudanças sociais a longo termo. Estes processosnão são tão complicados como muitas vezes parecem. Istoé um exemplo de como as dificuldades se devem mais aconfusões teóricas do que à complexidade do próprioassunto. Há toda uma variedade de possibilidades relati-vamente simples de análise de processos de integração ediferenciação sociais a longo termo. Quando consideramosa integração, uma das possibilidades será a determinaçãodo número de níveis de integração hierarquicamente gra-duados que se encontram nas sociedades sujeitas a umaanálise estrutural. Verificar-se-á que se as diferentes socie-dades têm o mesmo número de níveis, também terão outrassemelhanças estruturais. Há também processos igualmentesimples de análise de estádios de diferenciação. Um édeterminar o número de ocupações que a sociedade designacom nomes diferentes. É claro que este material de basenem sempre é disponível e acessível, mas muitas das fontesdisponíveis ainda não foram exploradas.

Este simples processo de determinar com maior pre-cisão o estádio a que chegou a divisão de trabalho, numadada época, esclarece curiosamente aquilo que, um poucounilateralmente, designávamos por «processos de industria-lização». Comparado com todo o tipo de sociedades pré--industriais, e especialmente com as sociedades medievais,é espantoso o número de grupos ocupacionais nas socie-dades industriais designados por um nome diferente. Alémdisso, esse número aumenta em proporções desconhecidasem épocas anteriores. Isto significa que o indivíduo ficapreso em cadeias de interdependência cada vez maiores,instituindo relações funcionais que não consegue controlar.Ao mesmo tempo, em comparação com o que sucedia nassociedades anteriores, as possibilidades de poder serão dis-

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tribuídas de um modo menos desigual, e a confiança mútuada interdependência de posições tornar-se-á relativamentemenos unilateral e mais recíproca. No entanto, isto tam-bém significa que, à medida que a diferenciação funcionaltorna as pessoas interdependentes a muitos níveis, elasse tornam simultaneamente mais dependentes do centro,no que respeita à sua coordenação e integração. Aquelesque têm acesso e que ocupam posições de coordenaçãoe de integração disporão obviamente de grandes possibi-lidades de poder. Consequentemente, embora a integraçãoe a coordenação das posições sociais sejam indispensáveis,um dos problemas principais em sociedades altamentediferenciadas é o de como manter um controlo institu-cional efectivo sobre elas. Como poderemos assegurarsocialmente que aqueles que ocupam tais posições nãosubordinem em grande parte as suas funções de «ele» *e de «eles» aos seus próprios fins?

A EVOLUÇÃODO CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO

Quando, na segunda metade do século XX, se falado desenvolvimento das sociedades, utiliza-se de um modogeral este conceito em relação a problemas práticos clara-mente definidos. É muito comum falar-se de países «emvias de desenvolvimento», em que cada um dos governosrespectivos luta com diferentes graus de energia (masgeralmente com a ajuda de sociedades mais ricas e maispoderosas) no sentido de desenvolver o seu próprio país.Neste sentido, o «desenvolvimento» significa uma activi-dade, algo que as pessoas fazem tendo em vista objectivosnítidos e com um certo grau de planeamento. Naquilo quetem de essencial, o grande objectivo deste desenvolvimentoplanifiçado é bastante simples: melhorar a pobreza rela-tiva dessas sociedades. Procura-se vias e processos deaumentar o rendimento da maioria e não o aumento dariqueza de um grupo de pessoas — porque em quase todosos países pobres há usualmente alguns indivíduos extraor-dinariamente ricos, geralmente mais ricos do que em paísesem melhor situação. Face a problemas tão concretos, ecli-

* It -function no original inglês e es Funktion no originalalemão. It e es são pronomes pessoais neutros sem correspon-dência em português (N. do T.).

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psam-se frivolidades filosóficas tais como o da existênciaou não existência da sociedade acima e para além de mui-tos indivíduos separados, e de poderem ou não os «indi-víduos» existir sem as sociedades ou as «sociedades» semos indivíduos. Quando somos confrontados com os pro-blemas dos «países em vias de desenvolvimento», varrem-seos obstáculos à compreensão de que as sociedades são con-figurações de pessoas interdependentes. Ao procurar odesenvolvimento destas sociedades, tentando aliviar apobreza de todo o povo e não só a de alguns dos seusmembros, são necessárias medidas decisivas para regulara produtividade e o rendimento de todos os indivíduospoliticamente integrados num estado particular.

Neste sentido, o «desenvolvimento» surge como sendoessencialmente uma actividade levada a cabo por pessoas.É sobretudo executada por aqueles que detêm cargosgovernamentais e pelos seus ajudantes, peritos no desen-volvimento de países «mais avançados». Especialmente aosolhos destes, o desenvolvimento aparece como um pro-blema «econômico». Lutam para aumentar o «potencialeconômico» dessas sociedades-estados mais pobres. Pro-curam aumentar o stock de capitais. Constróem centraisde energia, estradas, pontes, caminhos de ferro e fábri-cas. Tentam impulsionar a produção agrícola. Mas quandoo desenvolvimento especificamente «econômico» é assimimpulsionado, tendo como objectivo limitado o melhora-mento do nível de vida, torna-se evidente que é impossíveldesenvolver o potencial econômico sem que haja umatransformação total da sociedade. Planos puramente econô-micos podem falhar, porque outros aspectos não econô-micos, mas funcionalmente interdependentes de uma socie-dade, actuam como um travão, empurrando-os na direcçãooposta. É possível que o «desenvolvimento», orientadoconscientemente no sentido de uma transformação econô-mica, ponha em acção um desenvolvimento de um tipomuito diferente, que o próprio governo que fez os planosnão pretendia. Se a actividade desempenhada pelo governono planeamento do desenvolvimento (que constitui umaacção humana intencional) se pode descrever conceptual-mente por meio de um verbo, então será necessária umaexpressão mais impessoal para aquelas mudanças sociaisque não foram deliberadamente iniciadas nem controladaspor projectistas ou actores. Acções planeadas, revestindoa forma de decisões governamentais, podem ter conse-qüências inesperadas e indesejadas. De um modo bastanteoptimista, Hegel designou-as por «a habilidade da razão».

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Torna-se hoje óbvio que as conseqüências não planeadasde acções humanas planeadas surjem das suas repercus-sões no interior de uma teia tecida pelas acções de muitosindivíduos. Ao tornar explícita esta idéia, um conceito deacção transforma-se em conceito de função. Em vez defalarmos de pessoas que actuam para desenvolver as socie-dades, temos que falar de um modo mais impessoal, noprocesso de desenvolvimento.

Embora não planeado e não imediatamente controlá-vel, o processo global do desenvolvimento de uma socie-dade não é de modo algum incompreensível. Por detrásdele não há quaisquer forças sociais «misteriosas». É umaquestão de conseqüências decorrentes da interpenetraçãodas acções de inúmeras pessoas, cujas propriedades estru-turais já foram ilustradas por meio dos modelos de jogo.À medida que se entrecruzam as jogadas de milhares dejogadores interdependentes, nenhum jogador isolado ougrupo de jogadores, actuando sozinhos, poderão determinaro decurso do jogo, por muito poderosos que sejam. Aquiloque no capítulo 3 se descrevia como sendo o «decurso dojogo» encontra-se aqui como «evolução». Implica umamudança parcialmente auto-regulada numa configuraçãode pessoas interdependentes parcialmente auto-organizadae auto-reprodutora, tendendo todo o processo para umacerta direcção. Lidamos com estados de equilíbrio entreduas tendências opostas para a auto-regulação dessas con-figurações: a tendência para se manter como antes e atendência para a mudança. São muitas vezes, mas nemsempre nem exclusivamente, representadas por dois gru-pos de pessoas. É perfeitamente possível que, devido àssuas próprias acções, haja grupos conscientemente orien-tados para a. conservação e manutenção da configuraçãopresente, mas que de facto fortalecem a sua tendência paraa mudança. É igualmente possível que grupos orientadosconscientemente para uma mudança fortaleçam a tendên-cia da sua configuração para se manter tal qual está.

As hipóteses teóricas dominantes dão precedência àstendências para a persistência. Inclinamo-nos para consi-derar «normal» o facto de uma sociedade se manter noestado que atingiu, contanto que os defeitos e os desviosda norma deixem imperturbável o seu equilíbrio. Facil-mente compreendemos este facto como expressão de umideal, particularmente num período em que todas as con-dições da vida estão num fluxo permanente, que aparen-temente ninguém conseguirá controlar. «Onde encontra-mos ordem, a não ser nesse fluxo implacável?», escreveu

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um investigador que se debruçou sobre este tipo de pro-blemas econômicos5. Mas talvez a verdadeira razão pelaqual o desenvolvimento social se nos afigura tão descon-certante, seja o facto de os nossos esforços se dirigiremmenos para a compreensão e explicação daquilo que real-mente acontece e para a elaboração de um diagnóstico,do que para a elaboração de um esperançoso prognóstico.

Contudo, é-nos difícil compreender o conceito de «evo-lução», considerando-o mais como funcional do que comooperacional. Talvez na vida quotidiana já não seja muitodifícil perceber o significado da afirmação «a sociedadeevolui», uma vez que há hoje em dia muita gente coma bagagem intelectual necessária, para quem a palavra«evolução» comunica uma idéia de transformação socialrelativamente impessoal e espontânea. Contudo, há duzen-tos ou trezentos anos, tal facto não era compreendidodeste modo. Mesmo os homens mais instruídos dessa épocaeram incapazes de compreender o conceito de evoluçãoque hoje é aceite. O verbo «evoluir» e os seus derivadoseram apenas usados para exprimir certas acções humanas— por exemplo era compreendido como o contrário de«envolver»*. O único vestígio que ficou deste significadomais antigo da palavra foi o da sua aplicação às foto-grafias. Quando falamos em «revelar» fotografias utiliza-mos apenas um conceito de acção. Revelamos a imagemescondida. Antigamente também podíamos falar em revelarum segredo escondido. Mas nem o conceito nem a imagemmental que hoje associamos ao termo «evolução» eramacessíveis aos indivíduos de outras épocas.

Porém, interrogamo-nos, será que eles não viam queas crianças evoluíam, tornando-se adultos? Não viam quea sua própria sociedade evoluía constantemente? Não,eram incapazes de ver, nunca viam. Não conseguiam con-ceptualizar aquilo que «viam» tal como nós o fazemos e,assim, eram incapazes de percepcionar a realidade domesmo modo que nós. Eventualmente, o conceito de evolu-ção foi remodelado, associando-se a uma seqüência impes-soal de acontecimentos, sendo esta grandemente auto-regu-ladora e tendendo para uma determinada direcção. Masesta transformação necessitava de muitas gerações de pen-

* O autor joga com os termos «develop» e «envolop».O termo inglês «develop» tem também o significado de revelaçãofotográfica, facto de que o autor se serve quando examina umdos seus possíveis significados (N. do T.).

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samento, e de um acréscimo contínuo e cumulativo dostock da experiência social e de conceitos, tendo entre sium contínuo feedback.

Durante muito tempo foi extremamente difícil imagi-nar-se que uma série de acontecimentos encadeados (querfossem ou não controlados) pudesse ser simultaneamenteordenada e não planificada, estruturada e, contudo, nãointencional. Uma das razões da dificuldade devia-se a queesta concepção não correspondia às questões que se levan-tavam sobre os acontecimentos, as questões que interes-savam as pessoas. Estava numa oposição directa aos valo-res prevalecentes e aos sistemas de crença. Mas adquirimosuma idéia muito mais clara sobre o significado e funçãodo conceito, se compreendermos as dificuldades que sur-giram no seu caminho: Talvez o maior obstáculo para aconceptualização de certas mudanças observáveis, consi-derando-as como «evolução», estivesse relacionada com oque as pessoas esperavam quando levantavam questõessobre estas mudanças observáveis. O principal objectivo,subjacente a todas as questões fundamentais levantadasa propósito do que se observava como mutável, era adescoberta de algo imutável em toda a mudança ou paraalém dela. A única resposta satisfatória às dúvidas quese levantavam sobre as mudanças observáveis, seria a quefizesse referência a um último objectivo. As pessoas for-mulam sempre as suas perguntas consoante aquilo quepensam ser uma resposta satisfatória. Assim, naqueletempo, as perguntas eram estruturadas de tal modo quese chamava a atenção para o fim que lhes estava subja-cente. As perguntas eram formuladas de modo a revelara «essência», «o princípio básico», «a lei fundamental»,a «primeira causa», «a última meta», ou qualquer outraexplicação que se julgava eterna e imutável. Queria-seconhecer o que estava por detrás da cadeia sempre mutá-vel dos acontecimentos. Mais uma vez se faziam avaliaçõescom conceitos pré-determinados. Atribuía-se implicitamentemais valor ao imutável do que àquilo que mudava. Destemodo, aceitava-se como verdadeiro que, na busca de conhe-cimentos, o mutável se deveria reduzir ao imutável.A humanidade trilhou um caminho longo e laborioso antesde se conseguir libertar do controlo desta escala domi-nante de valores, pois ela estava profundamente intrincadaem toda a busca de conhecimentos, dominando totalmentevários campos de investigação. Não nos é possível traçarde novo esta história, mas podemos dizer que esta escalacie valores e os padrões de pensamento, métodos de inves-

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tigação e tipos de perguntas que a acompanhavam nãotinham na sua base qualquer exame deliberativo da suaadequação ao campo de investigação a que se destinavam.Antes se baseavam nas necessidades daqueles que levan-tavam as questões — necessidades "do tipo expresso nasquestões a que já nos deferimos. Onde podemos encon-trar uma ordem entre o fluxo incessante das coisas?Neste sentido, a ordem deve eo ipso significar algo deimutável que nos ajuda intelectualmente a fugir ao fluxoinquietante dos acontecimentos.

Contudo, a partir da segunda metade do século XVIII,depois de muitos começos em falso, iniciou-se uma alte-ração gradual na avaliação dos fenômenos mutáveis. Pri-meiramente, esta alteração limitou-se a certas áreas emque o conhecimento científico progredia. Algumas mudan-ças sociais (tendo-nos já referido a algumas delas), parti-cularmente a exigência de uma mudança social durantee depois da Revolução Francesa, a actuação dos mecanis-mos do mercado em condições comerciais relativamentelivres, e o progresso científico, libertaram a capacidadeimaginativa das pessoas, permitindo-lhes a compreensãode relações que até aí não tinham lugar nos esquemastradicionais. Adquiriu-se a capacidade de conceber umaordem que não se detectava através da redução de todaa mudança a algo de imutável, mas que antes se mostravacomo uma ordem imanente de mudança. Começaram adescobrir-se, tanto na natureza como na sociedade, alte-rações que não podiam ser explicadas em termos desubstâncias externas ou de causas imutáveis. Gradual-mente as questões científicas passaram a ter outra orien-tação— de uma procura do imutável passam a procuraruma ordem imanente^de mudança. O exemplo mais conhe-cido é o de como as classificações estáticas dos organis-mos, primeiro a de Aristóteles e depois a de Lineus, seconverteram gradualmente no conceito darwiniano de umaordem evolutiva. Esta concepção defende essencialmenteque, com algumas regressões, há formas de vida mais com-plexas e diferenciadas que se desenvolvem de um modocego e sem qualquer finalidade, a partir de formas de vidamenos complexas e menos diferenciadas.

A diferença entre a concepção da sociedade de Aris-tóteles e mais tarde de Montesquieu, por um lado, e a deComte, Spencer e Marx, por outro, é um exemplo ulteriordesta mudança de orientação. Estes davam grande impor-tância à questão da ordem imanente de mudança. Certa-mente que tiveram precursores, porém, muito mais do

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que noutras épocas, os fundadores da sociologia advoga-ram a idéia geral de uma mudança social e fizeram-noreferindo-se estreitamente a evidências empíricas de umou de outro tipo. As teorias da evolução, propostas pelosgrandes sociólogos do século XIX, foram apenas um passona direcção certa; e, como agora sabemos, seguiu-se-lhes,no século XX, um passo em direcção contrária. Porém,à medida que os cientistas começaram a afastar-se deuma redução da mutabilidade observada a uma imutabi-lidade imaginária, efectuou-se um grande progresso no sen-tido de tornar os instrumentos do pensamento humanomais adequados às relações observáveis.

No século XX, desencadeou-se uma reacção extraor-dinariamente forte contra as teorias evolucionistas dasociologia do século XIX. Os conhecimentos que serviamde base aos sociólogos do século XIX eram muito limi-tados, comparados com a quantidade crescente de conhe-cimentos isolados sobre a evolução das sociedades huma-nas, hoje disponíveis a qualquer interessado. Foi-lhes assimmuito mais fácil perceber a orientação nítida na evoluçãoda sociedade. A sua capacidade de compreensão não foraainda submersa pela imensidade de pormenores a que hojetemos de atender em qualquer modelo compreensivo deconhecimento. Viam mais nitidamente o bosque do queas árvores — exactamente o que nós mal conseguimosfazer. Muitas vezes parece que a quantidade de informa-ções de que hoje dispomos não se ajusta a nenhumesquema unificado da evolução social.

Certamente que não se ajusta aos modelos sinópticosda evolução social que nos foram legados pelos grandespioneiros da sociologia do século XIX. E, no entanto, foiprecisamente porque este pioneiros não se curvaram sobo peso de uma informação parcelar excessiva, não tendoconsciência das lacunas dos seus conhecimentos, que esti-veram aptos — inocentemente, mas com muito êxito —a preencher as lacunas com uma especulação inspirada,essencialmente influenciados pelos problemas sociais maisagudos da sua época. Quase todos os pioneiros da socio-logia evolutiva do século XIX estavam obcecados com oproblema de uma ordem nova e melhor, que esperavame acreditavam que surgisse num futuro não muito dis-tante. Consideravam como um axioma que a condiçãofutura da humanidade deveria ser melhor do que a dasua época. Como uma espécie de religião social, partilha-vam a crença de que a sociedade evoluía e progredia numapaz serena. No entanto, as idéias que tinham sobre a

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direcção deste progresso pacífico variavam muito, deacordo com a diversidade dos seus ideais políticos esociais. A idéia que Marx tinha do progresso era muitodiferente da de Comte, cuja idéia era também muito dife-rente da de Spencer. Mas partilhavam a compreensão deque a sociedade evoluía de um modo mais ou menos «auto-mático», rumo a uma ordem social melhor. Valorizavamcertos elementos da evolução social passada em detri-mento de outros, sendo seu critério o ideal que tinhamde uma ordem social futura mais perfeita. Neste sentido,todas as teorias sociológicas do século XIX tinham cono-tações teológicas muito fortes; caíam na velha noção deque toda a mudança ocorre dentro de um contexto maisou menos imutável. Mesmo Marx não conseguiu libertar-secompletamente da idéia de que a vitória do proletariadoporia de lado a causa essencial da evolução social — a lutade classes e as contradições internas da sociedade — e deque a evolução social, na sua forma conhecida, cessaria.Assim, levadas à sua conclusão lógica, estas idéias sobrea mudança levavam ao conceito de sociedade no seu estadoúltimo imutável; um conceito de ideal realizado que cons-tituía a medida última ou o ponto de referência.

Esta mistura constante de referências factuais comideais sociais nos modelos da evolução social, construídospelos grandes sociólogos do século XIX, é sem dúvidauma das razões por que, durante muito tempo, a sociolo-gia do século XX não os tomou em consideração nas suasteorias modernas da evolução social. O pensamento socio-lógico deixou de preocupar-se com a dinâmica a longoprazo da sociedade, preocupando-se com problemas a umcurto prazo relativo, especialmente com os que dizetn res-peito a condições imediatas e actuais. O factor decisivodesta mudança não foi tanto qualquer crítica aos modelosclássicos da evolução, mas antes o facto de que as teoriassociológicas do século XX se misturaram com ideais sociaise políticos que valorizam grandemente certas sociedadesexistentes. Talvez se tenha deitado fora o bebê com aágua do banho. Devido a uma oposição relativamente aosideais implícitos nos modelos clássicos da sociologia, rejei-taram-se de improviso muitas produções férteis do pensa-mento sociológico clássico, inclusive um interesse pela inves-tigação da mudança social enquanto mudança estruturada.

De acordo com ideais centrados em certas sociedadesde hoje, os teóricos da sociologia viraram-se para a cons-trução de modelos de sociedade em estado de repouso— modelos de «sistemas sociais». Quando ainda se ocupam

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de problemas de evolução social a longo prazo, procuramdominá-los reduzindo-os primeiramente a várias fases daevolução social e, finalmente, a tipos estáticos tais comoa «sociedade feudal» e «a sociedade industrial». Teóricoseminentes da sociologia abandonaram pura e simplesmenteo problema de como as sociedades mudaram de uma paraoutra fase, à medida que evoluíram. A imutabilidade étratada como condição normal da sociedade. Encaixa-seem conceitos sociológicos básicos como os de «estruturasocial» e «função social». Problemas de mudança socialaparecem hoje adicionalmente, reservando-se-lhes um capí-tulo designado por «Mudança Social». Não se atribui qual-quer ordem imanente à própria mudança. Houve umarevivescência da velha idéia de que as alterações devemser reduzidas a algo de imutável* constituindo as actuais«regularidades» estruturais. Perdeu-se o grande avanço dossociólogos do século XIX, no sentido de um reconheci-mento de que a própria mudança tem uma ordem e umaestrutura imanentes. Isto não significa que «ordem» sejasinônimo de «consenso» e de «harmonia». O termo «ordem»significa simplesmente que a seqüência da mudança nãoé «desordenada» ou «caótica». Significa que é possíveldescobrir e explicar como é que formações sociais tardiasemergem de formações primitivas. Este é o problemaessencial da «sociologia evolutiva».

VALORES SOCIAIS E CIÊNCIA SOCIAL

Mesmo hoje, a investigação sociológica, especialmentede nível teórico, conseguiu pouca autonomia relativamenteaos grandes sistemas de crenças sociais pelos quais aspessoas se orientam face a crises e revoltas por elasconsideradas opacas e inexplicáveis. Como se vê pelo des-tino que teve o conceito de «evolução social», a própriaevolução da ciência sociológica tem-se ligado a mudançasde distribuição do poder e a lutas entre os grandes siste-mas sociais de crenças.

Todo aquele que se dedica à sociologia deve levantaras seguintes questões. Primeiro: ao construir ou ao cri-ticar as teorias sociológicas, até que ponto estou essen-cialmente a tentar estabelecer a validade de uma idéiapré-concebida de como as sociedades humanas deviam serordenadas. Segundo: até que ponto aceito os resultadosde investigações teóricas e empíricas que vão confirmaros meus próprios objectivos e esperanças, não atendendo

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aos que com eles são incompatíveis? Terceiro: até queponto me preocupa essencialmente encontrar ligações entreos acontecimentos sociais particulares, perceber como pode-mos explicar a sua seqüência? E, por último: que ajudapoderão dar as teorias sociológicas à explicação e deter-minação do curso dos problemas sociais e até que pontoestou interessado em encontrar soluções práticas para eles?

Subjacente a esta obra há uma resposta clara paraestas interrogações. Não se devia pedir ao sociólogo (nemse devia esperar dele) que expressasse as suas convicçõessobre o modo como a sociedade deveria evoluir. Os soció-logos deviam libertar-se da noção de que há ou haveráqualquer correspondência necessária entre a sociedade queestudam e as suas próprias crenças sociais, os seus dese-jos e esperanças, as suas predilecções morais e as suasconcepções daquilo que é justo e humano.

Esta atitude no tratamento dos problemas sociológicosbaseia-se na convicção de que não é relevante nem per-missível que estes dois problemas se misturem ou con-fundam. A sociologia e a ideologia têm funções muito dife-rentes. Há quem defenda que é impossível separar asconvicções pré-concebidas de cada um, da abordagem teórica,científica e sociológica que se faz dos problemas. Clamamque todos nós misturamos os dois aspectos, que todos nosenvolvemos e comprometemos. São muito claros nas hipó-teses tácitas que levantam quando defendem uma misturada teoria e do valor na ciência social. Assumem implici-tamente uma espécie de harmonia pré-estabelecida entreo ideal social e a realidade social. Esta visão correspondede um modo tosco às concepções da natureza que muitasvezes se encontram nos séculos XVII e XVIII. Predominavaentão a noção de que a natureza era fundamentalmenteorganizada, de tal modo que as pessoas a consideravamracional, útil e boa. De igual modo, muitos teóricos dasociologia aceitam sem discussão que as sociedades huma-nas evoluem de acordo com os seus próprios valores,modelando-se espontaneamente de um modo que lhes parecesignificativo.

Aqui não está implícita qualquer hipótese deste gênero.Durante um período de tempo bastante longo, as seqüên-cias sociais prosseguiam cegamente, sem orientação — talcomo o decurso de um jogo. A tarefa da pesquisa socio-lógica é tornar mais acessíveis à compreensão humanaestes processos cegos e não controlados, explicando-os epermitindo às pessoas uma orientação dentro da teia social— a qual, embora criada pelas suas próprias necessidades

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e acções, ainda lhes é opaca — e, assim, um melhor con-trolo desta. Contudo, para que tal aconteça, a visão deque a sociedade parece centrar-se em nós próprios, ou nogrupo com o qual nos identificamos, tem de ser substi-tuída pela visão de que nós próprios e o nosso grupo nãosomos o ponto central. Esta transição exige um certoesforço de distanciamento, tal como aconteceu com a tran-sição da perspectiva geocêntrica do sistema planetário paraa heliocêntrica. Este distanciamento é a parte difícil. Mesmonos nossos dias, a distinção entre tal distanciamento socio-lógico e um compromisso ideológico centrado a curto prazonos problemas e valores actuais, fica para além do alcancede muitos, quer em pensamento quer na acção. Pareceque muitas vezes esperamos encontrar revelações sobreo futuro nas entranhas da história, tal como faziam osaugures romanos nas entranhas dos animais que sacri-ficavam. Apesar de toda a evidência passada e presente,ainda nos é difícil chegar à idéia de que embora os pro-cessos evolutivos da sociedade humana possam na verdadeser explicados, não têm qualquer objectivo ou significadopré-existentes. O seu único significado poderá ser aqueleque as pessoas um dia atribuirão às seqüências de aconte-cimentos que hoje nos parecem fortuitos e incontroláveis,uma vez que aprenderam a compreendê-los e a controlá--los melhor.

É óbvio que então, muitos acharão confuso que deum ou de outro modo o curso da evolução social possatomar uma direcção aparentemente «significativa» em ter-mos do seu próprio sistema de valores. Lembremo-nos queCondorcet (1743-94), a quem Comte por vezes chamava oseu «verdadeiro pai espiritual», afirmou durante o turbi-lhão da Revolução Francesa que as esperanças futuras dahumanidade podiam resumir-se a três tópicos6. Estas espe-ranças tinham como objectivo primeiro o fim da desigual-dade entre raças e países; visavam em segundo lugar oprogresso para uma maior igualdade entre todos os habi-tantes de um país; e, em terceiro lugar, a perfeição dahumanidade. Se pusermos cuidadosamente de parte esteúltimo ponto, podemos afirmar que a humanidade conti-nuou a evoluir desde então na direcção que Condorcetesperava. Mas isto levanta um problema ainda não devi-damente apreciado. Embora se tenha verificado, desde osfinais do século XVIII, uma redução progressiva da desi-gualdade entre os países e dentro deles, é absolutamentecerto que ninguém a planeou conscientemente ou a reali-zou intencionalmente. O problema que então se põe é o

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seguinte: como podemos explicar o facto de que durantetodo este tempo certos mecanismos de interpenetração,embora não planeados e incontroláveis, se tenham orien-tado cegamente para uma humanização crescente das rela-ções sociais? Primeiro que tudo é'essencial termos cons-ciência do caracter cego dessas tendências e da possibilidadede elas serem modificadas por razões desconhecidas. Sóentão o problema sociológico da análise e explicação detais processos sairá da sombra projectada por aquilo aque chamámos fé na harmonia pré-estabelecida do ideale do real.

Mas isto não diz respeito apenas aos processos evolu-tivos a curto prazo, que se efectuaram desde o tempo deCondorcet. Conhecemos muitas orientações da evolução alongo prazo, para as quais precisamos de uma explicação.Há uma orientação a longo prazo que visa uma maiordiferenciação de todas as funções sociais, patente na pro-liferação de actividades sociais especializadas. Tende-separa que unidades de ataque e de defesa, relativamentepequenas e de um só nível, se tornem maiores e de váriosníveis. Tende-se a longo prazo para uma civilidade queleva a um controlo mais firme e mais completo das emo-ções e a uma identificação recíproca mais fácil, sem quese atenda às origens sociais de cada um. Há, pelo menosnas sociedades-estados, a tendência para uma diminuiçãodas desigualdades na distribuição do poder. Mas nenhumadessas tendências se orienta linearmente; todas se envol-vem em conflitos, por vezes muito grandes. Tambémocorrem mudanças sociais numa direcção oposta. É prá-tica corrente referirmo-nos apenas à «mudança social»geralmente sem qualquer indicação de que esta se podeorientar numa direcção consistente, para uma maior oumenor diferenciação e complexidade. Quando existe essaindicação, o conceito de «mudança social» geralmente ape-nas se aplica a tendências para uma maior complexidade;talvez devesse ser aplicado à mudança em qualquer direcçãoconsistente. De qualquer modo, o verdadeiro problema éa estrutura destas mudanças. Podemos seguir muitas des-tas orientações evolutivas a longo prazo durante centenase milhares de anos. Planear e realizar tais mudanças estru-turadas, está para além da previdência ou do poder huma-nos. Portanto, como podemos interpretar a consistênciacom que as sociedades humanas evoluem numa determi-nada direcção? Como podemos, por exemplo, explicar ofacto de que apesar de todas as regressões, as sociedadesrecuperem sempre o seu curso, que as orienta para uma

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maior diferenciação funcional, para uma integração a mui-tos níveis e para a formação de organizações mais amplasde ataque e de defesa? Sem a estrutura de uma teoriaevolutiva não podemos aspirar a um diagnóstico adequadoe a uma explicação dos problemas sociológicos da socie-dade contemporânea. Uma estrutura deste tipo torna-nospossível compreender como é que formas actuais da socie-dade emergiram de formas primitivas. Assim, as caracte-rísticas estruturais das nações-estados mal se poderão dis-tinguir, a não ser que se disponha de um modelo teóricoque explique como é que os estados dinásticos se torna-ram nações-estados e todo o processo da formação doestado 7.

Nesta altura, poderá ser útil darmos pelo menos umexemplo de conceitos com os quais podemos identificare medir os diferentes estádios da evolução social a longoprazo. Entre as características universais da sociedade,coloca-se a tríade dos controlos básicos. O estádio de evo-lução atingido por uma sociedade pode determinar-se:

1. Pelo maior ou menor alcance das possibilidadesde controlar séries de acontecimentos não huma-nos— ou seja, o controlo daquilo a que normal-mente se chama «os acontecimentos naturais».

2. Pelo maior ou menor alcance das possibilidadesde controlar relações interpessoais — ou seja, aquiloque usualmente se designa por «relações sociais».

3. Pela maior ou menor facilidade com que cada umdos seus membros se controla a si próprio enquantoindivíduo — pois que, por muito dependente queseja dos outros, aprendeu desde a infância a con-trolar-se a um maior ou menor grau.

Estes três tipos de controlo são interdependentes,tanto na sua evolução como no seu funcionamento, emqualquer estádio evolutivo. Podemos dizer dos dois pri-meiros, que as oportunidades de controlo aumentam gra-dualmente à medida que a sociedade evolui, embora hajamuitos retrocessos. Mas não aumentam na mesma pro-porção. Por exemplo, é altamente característico das socie-dades modernas o facto das suas oportunidades de controlosobre as relações naturais não humanas serem maiorese crescerem mais rapidamente do que as suas oportuni-dades de controlo sobre relações sociais interpessoais. -Estadiferença reflecte-se, entre outras coisas, no desenvolvi-mento a que chegaram as ciências naturais e sociais. Estas

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últimas estão ainda grandemente encurraladas num cír-culo vicioso característico, semelhante àquele de que saí-ram com grande dificuldade, num estádio anterior daevolução social, as ciências naturais, ao mudarem da suaforma mágico-mítica para uma forma científica. Resu-mindo, quanto menos uma dada esfera de acontecimentosfor passível de controlo humano, quanto mais emocional-mente as pessoas a pensarão; e quanto mais emocionaise fantasiosas forem as suas idéias, menos capazes serãode construir modelos mais exactos dessas relações, con-seguindo assim um maior controlo sobre elas.

Alternativamente, podíamos distinguir a tríade de con-trolos básicos de um modo mais comum. O primeiro tipode controlo corresponde ao que habitualmente se designapor desenvolvimento técnico. O segundo tipo correspondegrosso modo ao desenvolvimento da organização social;os processos gêmeos de diferenciação crescente e de cres-cente integração das ligações sociais serão um exemplode como este tipo de controlo se expande. Um exemplodo terceiro tipo de controlo é aquilo que se conhece por«processo civilizador»8. O processo civilizador é um casoespecial, uma vez que, contrariamente aos dois primeirostipos, a direcção em que evolui não pode ser simplesmentedescrita como um alargamento ou um aumento de con-trolo. Num processo civilizador, ocorrem mudanças noautocontrolo de cada um que não são necessariamenteunilineares. O aumento de controlo sobre a natureza édirectamente interdependente das mudanças tanto de auto-controlo como de controlo sobre relações interpessoais,facto que as viagens espaciais evidenciam espectacular-mente. Mesmo assim, será útil estarmos de sobreavisocontra a concepção mecanicista de que a interdependênciados três tipos de controlo se deve entender em termosde aumentos paralelos nos três.

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O PROBLEMA DA "INEVITABILIDADE"

DA EVOLUÇÃO SOCIAL

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Quando se faz referência a estas seqüências a longoprazo da evolução como um crescente domínio do homemsobre a natureza ou uma divisão progressiva do trabalho,surge muitas vezes a pergunta se tais processos de evolu-ção são inevitáveis.

Surge como evidência para muita gente que a des-crição de qualquer tendência a longo prazo no fluxo con-figuracional dos acontecimentos passados, implica imedia-tamente uma previsão definitiva para o futuro. Se na«modelação» do comportamento interpessoal se demons-trou uma tendência civilizadora a longo prazo, aceita-sesem discussão que o investigador estava a tentar provarque as pessoas são obrigadas no futuro a tornar-se maiscivilizadas. Um modelo que mostre como e quando umaconfiguração passada de unidades sociais relativamentecentralizadas e indiferenciadas evolui no sentido de umaconfiguração mais centralizada e mais complexa, facil-mente nos desperta a suspeita de que o investigador nasua pesquisa projectou no passado os seus objectivos edesejos de presente e de futuro. Supõe-se que ao trabalharum modelo do processo de formação dos estados, o inves-tigador atribuiu um determinado valor ao estado, e quisprovar que este teria sempre uma determinada importân-cia. Quem quer que se preocupe com a construção demodelos de evolução social de base empírica, está sujeitoa defrontar-se com a obstrução constante dos argumentosque se tornaram correntes, em oposição aos modelos deevolução das gerações anteriores.

Diz-se muitas vezes que os generais planeiam umanova guerra como se ela fosse uma continuação da ante-

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rior. Do mesmo modo, parece haver muitas idéias aceitesque constituem um obstáculo às teorias da evolução social— as mesmas idéias que foram utilizadas contra modelosanteriores de evolução. Uma delas é a noção de que odiagnóstico de uma tendência evolutiva a longo prazo nopassado, implica necessariamente que essa mesma tendên-cia deva continuar, automática e inevitavelmente no futuro.Muitas vezes, esta idéia é ainda fortalecida pela entãodominante filosofia das ciências, a qual, de entre todasas funções de uma teoria científica, selecciona a funçãode previsão como critério decisivo da validade científica.

Assim, talvez seja útil a discussão da finalidade dasteorias sociológicas da evolução social e dos modelos dosprocessos específicos de evolução — tais como os proces-sos de uma especialização ocupacional ou da formaçãodos estados — baseada no estudo das seqüências dos acon-tecimentos passados. Tais modelos são instrumentos dediagnóstico e de explicação sociais. Exemplificando: asnações-estados surgiram geralmente de estados dinásticos,e os estados dinásticos de organizações menos centrali-zadas ou tribais. Por vezes as primeiras surgiram directa-mente das últimas, omitindo-se os estádios intermédios.Como e porque se passaram deste modo as coisas emcada um dos casos? Ou, pegando noutro exemplo, de socie-dades com mercados locais, com pequena divisão de tra-balho, com cadeias limitadas de interdependência e comníveis de vida relativamente humildes, surgiram sociedadescom redes comerciais de longo alcance, com grande varie-dade de profissões especializadas, longas cadeias de inter-dependência e um nível de vida relativamente alto. Umavez mais, como e porque se desenvolveu esta última formade organização a partir das primeiras? Este é o tipo deseqüência de acontecimentos para a qual procuramos expli-cação. Um modelo teórico de tal seqüência tem uma funçãodupla — como explicação e como escala de medida. Nãose trata necessariamente de uma medida quantitativa, massim de assinalar graficamente as diferenças existentes nasconfigurações. O modelo serve para responder a questões,como por exemplo que nível representa esta ou aquelasociedade numa determinada seqüência da evolução, ouque estádio atingiu agora a sociedade. Um modelo evolu-tivo serve para explicar e, portanto, para diagnosticar, mastambém serve para fazer prognósticos. Toda a explicaçãotorna possível previsões de outro tipo.

Contudo, as previsões científicas não têm de modoalgum o caracter relativamente impreciso das «profecias».

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Por exemplo, não é possível utilizar a teoria da evoluçãocomo base para prever o futuro desenvolvimento da huma-nidade, anunciando talvez uma raça de super-homens. É, noentanto, possível utilizar a teoria da evolução, conjunta-mente com algumas outras afirmações teóricas, para pre-ver que nunca nenhum dente humano poderá ser encon-trado num sulco de carvão — a não ser que algum mineiroaí o coloque. Se alguma vez se encontrasse um dentehumano num sulco de carvão, toda a teoria da evoluçãoprecisaria de uma correcção substancial. De igual modo,com a ajuda de um modelo de processos de formação doestado, baseado no estudo da formação do estado nopassado, poderão fazer-se certas predições sobre os pro-cessos de crescimentos dos estados contemporâneos. Nesteponto, uma simples analogia pode ajudar à clarificação dafunção das teorias. Em certos aspectos, as teorias asseme-lham-se a mapas. Se estamos num ponto A, em que secruzam três caminhos, não podemos «ver» directamenteonde estes nos levam. Não podemos «ver» se aquela estradaou aquele caminho conduzem a uma ponte sobre o rioque pretendemos atravessar. Portanto, usamos um mapa.Por outras palavras, uma teoria dá ao homem que seencontra no sopé da montanha, a visão que um pássarotem dos caminhos e relações que esse homem não con-segue ver por si próprio. A descoberta de relações previa-mente desconhecidas constitui uma tarefa central da inves-tigação científica. Tal como os mapas, os modelos teóricosmostram as conexões entre acontecimentos que já conhe-cemos. Como os mapas de regiões desconhecidas, mostramespaços em branco onde ainda não se conhecem as rela-ções. Como os mapas, a sua falsidade pode ser demons-trada por uma investigação ulterior, podendo ser corri-gidos. Talvez se deva acrescentar que, contrastando comos mapas, os modelos sociológicos devem ser vizualizadosno tempo e no espaço, como modelos em quatro dimensões.

Afirmou-se que os modelos de evolução podem ser exa-minados e corrigidos à luz de uma ulterior investigação,mais detalhada. Mais se disse ainda que podem ter funçõesde diagnóstico e de explicação, bem como funções de pre-visão. Isto talvez seja melhor ilustrado por meio de umasimples reflexão, que também ajudará a clarificar o quesignifica dizer-se que qualquer evolução social é «inevi-tável».

A evolução pode ser representada esquematicamentecomo uma série de vectores A — B -»• C -* D. Aqui as letrasrepresentam várias configurações de pessoas, decorrendo

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cada configuração da anterior, à medida que a evoluçãose processa de rA para D. Muitas vezes um estudo retros-pectivo mostrará claramente não só que a configuraçãono ponto C é uma condição prévia necessária para D,assim como B para C e A para B, como também asrazões porque isto se processa deste modo. Contudo, futu-ramente, de qualquer ponto do fluxo das configurações,só podemos geralmente estabelecer que a configuração Bé uma transformação possível de A, e de igual modo Cde B e D de C. Por outras palavras, ao estudarmos ofluxo das configurações, há duas perspectivas possíveis narelação entre uma configuração escolhida a partir de umfluxo contínuo e outra configuração posterior. Do pontode vista da configuração anterior, a última é — em quasetodos senão em todos os casos — apenas uma das diferen-tes possibilidades de mudança. Do ponto de vista da con-figuração posterior, a primeira é geralmente uma condiçãonecessária para a formação da que se lhe segue. Será útilacrescentarmos que tais relações sociogenéticas entre con-figurações anteriores e posteriores, poderão ser expressasmais adequadamente se evitarmos conceitos como os de«causa» e de «efeito».

Resumindo, é esta a razão da diferença entre as duasperspectivas. O grau de maleabilidade e plasticidade (ouinversamente o grau de rigidez) varia de uma configu-ração para outra. Assim, também varia a cadeia de pos-sibilidades de mudança. Uma configuração pode ter umpotencial de mudança muito maior do que outra. Umavez mais, configurações diferentes podem ter um potencialpara diferentes tipos de mudança. Por conseguinte, umaconfiguração pode ter um grande potencial de mudançasem que nenhuma dás possíveis alterações seja de caracterevolutivo — nenhuma delas implica uma mudança estru-tural; por mudança entendemos potencial de poder de cer-tas posições sociais (mais do que meras alterações deconjunto) entre os ocupantes dessas posições. Ou podeuma configuração ter pouco potencial de mudança e, noentanto, haver grandes possibilidades de ser evolutivaqualquer mudança que ocorra.

Em muitos, senão em todos os casos, as configuraçõesformadas por pessoas interdependentes são tão plásticas,que a configuração num estádio tardio do fluxo configu-racional é de facto apenas uma das muitas possíveis trans-formações de uma configuração anterior. Porém, à medidaque .uma determinada configuração se transforma noutra,dá-se o estreitamente de uma grande dispersão de possí-

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veis transformações até surgir uma única conseqüência.Retrospectivamente, é tão plausível examinarmos a cadeiade potenciais conseqüências como descobrir a constelaçãoparticular de factores responsáveis pela emergência destae não doutra configuração, dentro das alternativas pos-síveis.

Isto explica porque é que uma investigação evolutivaefectuada retrospectivamente pode muitas vezes demons-trar com alto grau de certeza que uma configuração tevede surgir de certa configuração anterior, ou mesmo deum tipo determinado de séries seqüenciais de configura-ções, mas não afirma que as configurações anteriores tives-sem necessariamente que se transformar nas que lhe sãosubsequentes. Assim, quando se estuda a alteração confi-guracional, é útil termos presente a idéia chave de quetoda a configuração relativamente complexa, relativamentediferenciada e altamente integrada deve ser precedida edeve surgir de configurações relativamente menos comple-xas, menos diferenciadas e menos integradas. Sem qual-quer referência ao fluxo de configurações que as produziu,será impossível compreender e explicar a interdependênciade todas as posições de uma configuração, num dadomomento, ou a disposição das pessoas cujas relaçõesdirectas, socialmente reguladas, dão siginificado a estasposições. Esta afirmação não é idêntica a uma outra alter-nativa com a qual facilmente se confunde — a de que umfluxo configuracional tem inevitavelmente de produzir queruma determinada configuração mais complexa, quer qual-quer configuração mais complexa. Quando lidamos com ainevitabilidade da evolução temos de distinguir claramenteentre a proposição que afirma dever a configuração A serimediatamente seguida da configuração B, e a proposiçãoque diz que a configuração A era necessariamente precur-sora da configuração B. Encontrar-se-ão constantementerelações deste tipo quando se investigam problemas deevolução social. E qualquer inquérito sobre as origens dasconfigurações científicas aponta para essas relações. Comosurgiram os estados? Quais foram as origens do capita-lismo? Como surgiram as revoluções? Estas e muitasoutras questões semelhantes são variações da seguintequestão: é a configuração B resultado inevitável de umaconfiguração anterior A? Neste sentido, o conceito de evo-lução refere-se a uma ordem genealógica. Tem que seexplicar como e porquê uma determinada configuraçãoulterior surgiu de uma configuração prévia. Enquanto aexistência desta última configuração for aceite simples-

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mente sem que se levantem problemas, e enquanto elafor destacada do fluxo configuracional do qual emergiu,será apenas possível descrever e não compreender ouexplicar, como funciona a configuração e como determi-nadas posições particulares se relacionam umas com asoutras.

Uma fonte de confusão é o facto de, presentemente,uma explicação científica ser geralmente compreendidacomo sendo de tipo unilinear e causai. Assim, conceitoscomo os de capitalismo e protestantismo são muitas vezesutilizados como se denotassem dois objectos separados,existindo independentes um do outro. Há discussões sobreo facto de Max Weber estar ou não certo, quando afirmaque o protestantismo é a causa e o capitalismo o efeito.Uma das diferenças fundamentais da sociologia evolutivaé precisar de modelos para representar configurações emconstante mudança, sem começo nem fim. Tradicional-mente, o conceito de causalidade implicou sempre aprocura de um começo absoluto — na realidade, de uma_primeira causa. Assim, não podemos esperar que o tipode explicação necessária para a investigação na sociologiaevolutiva seja semelhante às explicações que se ajustamao padrão dos modelos tradicionais de causalidade. Emvez desse tipo de explicação, temos de explicar as mudan-ças ocorridas nas configurações por meio de outrasmudanças anteriores; cada movimento deverá ser expli-cado por outro movimento e não por uma «primeiracausa» que, por assim dizer, pôs tudo em movimento,sendo ela própria imóvel.

É sempre possível estabelecer que a configuração Btinha de ser precedida de uma determinada configura-ção A, embora não^se possa afirmar com a mesma cer-teza que a configuração A leve inevitavelmente à configu-ração B. «As forças compulsivas» deste segundo tipo nãosão desconhecidas no seu conjunto. Contudo, aplicar-lheso conceito de «inevitabilidade» é arriscarmo-nos a ficarenvolvidos na selva das associações físicas e metafísicas,que mesmo hoje são evocadas sempre que se mencionaa «inevitabilidade» em relação a uma evolução social pro-gressiva.

Neste caso, é mais justificável e correcto falarmosem graus variáveis de possibilidade e de probabilidade,do que em inevitabilidade. Recorrendo a um exemploóbvio, pode observar-se que a configuração das nações--estados tende actualmente, de um modo muito nítido,a formar unidades vastas que representam um nível ulte-

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rior de integração e, organizacionalmente, uma nova série.Tensões e conflitos estruturados, que ainda não podemser muito controlados por aqueles que neles se envolvem,formam como sempre parte integrante desta tendênciaevolutiva, cuja dinâmica está ainda por investigar. Dandooutro exemplo, podemos observar nos últimos estádios doImpério Romano uma forte tendência para a descentra-lização e, depois, para a desintegração. Embora tenhahavido repetidos movimentos de insurreição e esforços dereintegração, é óbvio que esta tendência foi adquirindogradualmente um ímpeto que a tornou irreversível. Outroexemplo significativo é a tendência imanente pela qualuma configuração de muitas unidades aproximadamentedo mesmo tamanho, competindo livremente, se orientano sentido de uma configuração monopolística. Vemosalgo de semelhante a este processo nos estádios primi-tivos da formação dos estados, assim como na evoluçãoda configuração de unidades econômicas competitivas nassociedades-estados européias dos séculos XIX e XX. Aoexplicar- estes processos, não se deveriam excluir certosfactores exógenos. Contudo, os exemplos dados são pro-cessos que se devem entender primariamente em termosda sua própria dinâmica configuracional endógena. O meca-nismo de monopólio, que analisei profundamente noutraobra1, é um bom exemplo de como as forças sociais podemser compulsivas, de modo a justificar a asserção de queé provável que mais tarde ou mais cedo surja uma con-figuração ainda não existente, a partir de uma configu-ração anterior já existente.

Presentemente, a discussão de tais problemas é muitasvezes obscurecida por equívocos na aplicação de conceitoscomo os de «inevitabilidade» e «probabilidade». Quandoaplicados à dinâmica evolutiva das configurações, que secompõem de pessoas, não significam o mesmo comoquando se aplicam a relações causais mecânicas. É prová-vel que para muitas pessoas, polaridades conceptuais rela-tivamente indiferenciadas, como «determinação» e «inde-terminação», sejam emocionalmente satisfatórias. Mas difi-cultam que se faça justiça às muitas gradações existentesentre os dois pólos, presentes nas configurações de indi-víduos e no seu processo de mudança. Assim, uma dadaconfiguração dentro de um fluxo configuracional pode teruma flexibilidade muito grande (embora não ilimitada)sem que as últimas fases da configuração deixem de serde um modo distinto e reconhecível a conseqüência decertas formas anteriores da configuração. É claro que a

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comparação de duas configurações muito distantes nomesmo fluxo configuracional, tais como a Inglaterra dosséculos XII e XX, pouco revela daquilo que se mantémcaracterístico desta configuração, ao longo de toda a suaevolução. Por conseqüência, conceitos como os de cultura,civilização e tradição, usados num sentido estático, podemser muito enganadores quando se referem a seqüênciasconfiguracionais a longo prazo.

Por outro lado, as configurações não têm de modoalgum a mesma capacidade de mudança. Em muitos casos,a probabilidade é de que, se mudam alguma coisa, seránuma certa direcção. Uma análise configuracional mostra--nos muitas vezes porque é que isto tem de ser assim.Embora tais tendências não sejam independentes das inten-ções e acções dos indivíduos que constituem as configu-rações, a forma que a configuração toma não será deter-minada por planos deliberados ou pelas intenções dealguns dos seus membros, nem por grupos deles, nemmesmo por todos eles em conjunto. Por exemplo, parase explicar como sociedades-estados bastante centralizadasevoluíram recentemente a partir de unidades sociais muitomenos centralizadas e diferenciadas, têm, de se elaborarmodelos verificáveis e modificáveis de processos de for-mação a longo prazo dos estados. Contudo, estes cons-tituem obviamente processos evolutivos de uma tal dura-ção, que estão para além do alcance da imaginaçãosociológica contemporânea; esta centra-se em perspectivasde prazos muito breves.

Hoje em dia, é-nos bastante familiar a idéia de queprocessos de evolução num passado recente — tais comoos de urbanização, industrialização e burocratização nospaíses europeus — foram processos perfeitamente bemdeterminados de mudança configuracional com caracterís-ticas estruturais e específicas próprias. E, no entanto, falarda estrutura dos processos ainda está em desacordo como modo estático como se utiliza hoje o conceito de estru-tura. E a estrutura de certas transformações sociais fun-damentais, raramente se vê — incluindo a de uma trans-formação no sentido de uma centralização crescente,seguida muitas vezes de um controlo crescente sobre con-troladores centrais, por parte de pessoas até aí sujeitasa regras unilaterais vindas de cima.

Vale a pena lembrar que, tanto quanto sabemos, osprocessos de formação do estado têm prosseguido inde-pendentemente uns dos outros, em épocas diferentes eem diferentes partes do globo. Isto significa que até certo

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ponto devem ter seguido o seu curso respectivo de acordocom dinâmicas configuracionais imanentes, relativamenteautônomas. Contentamo-nos muitas vezes com pseudo--explicações de tais mudanças configuracionais paralelas.São muitas vezes atribuídas à capacidade especial decertas pessoas para a formação de um estado — por exem-plo os Incas ou os antigos Egípcios. Este tipo de explica-ção revela, quanto muito, um certo expediente. Em todosestes casos, lidamos nitidamente com configurações quepossuem uma tendência interna muito forte num certorumo. Conceitos como os de probabilidade e inevitabili-dade denotam mudanças observáveis em configurações quenão podem — ou ainda não podem — ser controladas edirigidas pelos indivíduos que as constituem. A tendênciamoderna dos estados contemporâneos para se envolveremem problemas militares hostis é outro exemplo deste tipode tendência evolutiva. Os problemas são criados unica-mente por forças que certas pessoas exercem sobre outras,que grupos de homens exercem sobre outros grupos dehomens; e, no entanto, as tendências evolutivas são opacase incontroláveis para os próprios indivíduos que as origi-naram. Tais configurações são produzidas por tipos espe-cíficos de interpenetração, e é certamente possível que ainvestigação sociológica empírica nos possa aproximar dasua compreensão. Porém, estas tendências evolutivas ape-nas se podem compreender e comunicar aos outros, seestivermos libertos de uma total identificação com qual-quer das unidades que conjuntamente constituem a con-figuração. Por outras palavras, a compreensão da autono-mia relativa e da dinâmica imanente de uma configuraçãoé impossível para aqueles que a constituem, enquantoestiverem totalmente envolvidos e intrincados nas alter-cações e conflitos decorrentes das suas interdependências.Para compreendermos as configurações humanas, é neces-sário que tenhamos alcançado um distanciamento inte-lectual considerável relativamente à configuração em queparticipamos, às suas tendências de mudança, à sua «inevi-tabilidade» e às forças que certos grupos que se entre-cruzam, mas que simultaneamente se opõem, exercem unssobre os outros.

Uma vez adquirido um maior grau de distanciamentointelectual relativamente à configuração de que se fazparte, surge a possibilidade de uma melhor compreensãodas forças que todos os membros exercem mutuamente,em virtude da sua interdependência, e a resultante «inevi-tabilidade» de uma mudança configuracional. E, se houver

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uma oportunidade de comunicar aos centros de poder acompreensão que se vai adquirindo dentro dos gruposentrecruzados, também haverá uma possibilidade cres-cente no sentido de se aliviar a-pressão destas forças e,em última instância, de as controlar e dirigir. Mas nenhumadessas possibilidades (e muito menos a do distanciamentointelectual) depende simplesmente dos dons pessoais dosindivíduos de uma configuração. Dependem todas, emúltima análise, das características específicas da própriaconfiguração.

Surge aqui, uma vez mais, o círculo vicioso anterior-mente discutido. Para que os indivíduos tenham uma visão«do exterior», têm necessidade de se distanciar da confi-guração em que se situam como adversários. Contudo,não estão em posição de o fazer enquanto forem relati-vamente grandes os perigos e ameaças que representamuns para os outros na sua interdependência e enquanto,consequentemente, encararem e percepcionarem com grandeemotividade o seu envolvimento mútuo. No entanto, o perigoe as ameaças recíprocas só diminuem se o seu pensamentoe comportamento se tornarem afectivamente menos pesa-,dos, o que, por sua vez, depende da diminuição de perigo.Na sua relação com as forças naturais não humanas, tam-bém a humanidade esteve durante muito tempo encurra-lada neste círculo vicioso; a evolução do controlo humanosobre a natureza é um feito não menos difícil do quehoje é a fuga ao círculo vicioso das suas relações mútuas.Hoje em dia está grandemente realizada a fuga a essaprimeira ratoeira. Valeria a pena um estudo detalhado domodo como as pessoas nessa esfera conseguiram esca-par ao círculo vicioso das ameaças «objectivas» auto-agra-vantes e a um pensamento e comportamento emocional«subjectivo» — e quanto tempo demoraram a fazê-lo.

A gênese social de uma racionalidade crescente, acarre-tando uma libertação de forças até aí incontroláveis, repre-senta uma evolução longa e difícil. A compreensão docaracter específico das forças configuracionais que aspessoas exercem umas sobre as outras, representa umasacudidela na velha disputa sobre o problema da deter-minação e «inevitabilidade» do desenvolvimento social.Torna possível navegar com segurança entre Sila, repre-sentado pela física e Caríbides, representado pela meta-física. As discussões tradicionais pouco se preocuparamcom as qualidades únicas que se encontram ao nível daintegração que a sociedade humana representa. Historica-mente, «o determinismo» tem habitualmente denotado uma

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determinação mecânica do tipo que se observa nas seqüên-cias físicas casualmente condicionadas. Contrariamente,quando se acentua a indeterminação e a liberdade do indi-víduo, esquece-se geralmente que existem sempre simul-taneamente muitos indivíduos numa dependência mútua,cuja maior ou menor dependência limita o escopo de acçãode cada um. Por seu lado, estas limitações constituem umaparte essencial da sua humanidade. Se queremos resolverestes problemas necessitamos de instrumentos conceptuaismais subtis do que a habitual antítese «liberdade-determi-nismo».

TEORIA DA EVOLUÇÃO SOCIAL

Restam alguns pontos sobre a evolução social, insu-ficientemente confirmados pela sociologia contemporânea.O primeiro deles refere-se à unidade social que se con-sidera em evolução. No século XIX, os modelos de evolu-ção eram geralmente construídos como se fosse caracterís-tica de toda a humanidade uma única linha de evolução,repetindo-se mais ou menos do mesmo modo em todasas sociedades isoladas. Entendia-se vulgarmente por socie-dade isolada a que era constituída por um único estado.

Hoje em dia, quando falamos de evolução, temos geral-mente em vista a evolução de um determinado país — nova-mente uma sociedade-estado ou, possivelmente, uma tribo.De qualquer forma, as unidades actuais de ataque e defesaconsideram-se implicitamente como unidades de referên-cia para a .evolução social.

Facilmente nos apercebemos como é insatisfatóriolimitar os modelos evolutivos aos processos internos dosestados. Uma razão óbvia para os restringir deste modoé o facto de, presentemente, a atenção se concentrarnaquilo a que podemos chamar os aspectos econômicosda evolução. Mas mesmo no caso dos países em vias dedesenvolvimento, é perfeitamente artificial considerarmosos chamados processos de evolução econômica como sendoo núcleo real do desenvolvimento social. Estamos maispróximos da realidade se encararmos os processos de dife-renciação e de integração como o verdadeiro centro daevolução social. Consequentemente, os aspectos econômicosda evolução deveriam ser considerados ao mesmo tempoque os processos de formação dos estados. Estes últimossão aspectos estruturados de evolução global, e é certa-

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mente impossível separá-los dos aspectos econômicos nospaíses em vias de desenvolvimento.

Mas quer examinemos o desenvolvimento dos paísesdo «Terceiro Mundo», quer o desenvolvimento contínuodos países altamente industrializados — onde os processosde evolução estatal não desempenham um papel de menorimportância — os processos endógenos de evolução socialmanter-se-ão incompreensíveis e inexplicáveis, a menos quese atenda simultaneamente à evolução dos sistemas dosestados, dado que cada uma das sociedades-estados isoladaestá imiscuída num sistema de estados. Há uma tradiçãono facto dos sociólogos se limitarem quase inteiramenteao estudo dos processos dentro das sociedades. As teoriassociológicas, especialmente num passado recente, agar-ram-se quase sempre a uma tradição em que se conside-ram as fronteiras dos estados coincidentes, de um modolato, com as das «sociedades». Por um consenso geral,as relações entre os estados pertencem a um outro campoacadêmico — o da «ciência política».

A distinção entre as relações dentro das sociedadesou estados e as que existem entre as sociedades ou esta-dos não só é falsa no contexto dos problemas actuais daevolução; ela é sempre enganadora. Seja uma tribo ouum estado, a evolução interna de cada uma das unidadesde ataque e defesa relaciona-se sempre funcionalmente coma evolução do «equilíbrio de poder» predominante, na con-figuração mais ampla em que as várias unidades de ataquee de defesa se unem.

Num passado recente, a interdependência de uma evo-lução intra e inter-sociedades tem-se tornado mais do quenunca familiar, abarcando uma série de aspectos. Aper-taram-se e alongaram-se as cadeias de interdependênciaeconômica. A produção de armas intercontinentais simul-taneamente com outros progressos da ciência e da tecnolo-gia tornaram a evolução interna de cada sociedade-estadomais significativa do que nunca, no que respeita à evoluçãode relações entre os estados — muitas vezes à escala mun-dial e vice-versa. Assim, cada vez é menos realista a dis-tinção teórica entre, por um lado, a evolução social consi-derada interna para o estado em questão e, por outro,a evolução das relações entre os estados, do sistema deequilíbrio de poder à escala mundial, ou, por outras pala-vras, a sociedade de estados, que se considera tema de«política externa».

Isto torna-se sobretudo evidente se compararmos otratamento teórico tradicional que se faz do conflito social,

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com os conflitos reais que se processam diante dos nossosolhos. O nosso processo habitual de formação conceptualleva-nos a efectuar uma distinção nítida entre dois tiposde conflito. Os conflitos que requerem a utilização daforça física dentro de uma sociedade-estado aparecem con-ceptualmente distintos dos conflitos que envolvem o usode forças entre as diferentes sociedades-estados, sendo esteo processo de evolução da sociedade de estados. Classifi-cam-se habitualmente os primeiros como revoluções e ossegundos como guerras. A teoria das revoluções que Marxe os seus seguidores apresentaram, constitui ainda, emlarga medida, veículo para esta distinção conceptual entrea estrutura de conflitos violentos nos dois níveis de inte-gração. Da evidência de lutas revolucionárias vitoriosasempreendidas por estratos sociais oprimidos dentro deuma sociedade-estado isolada, Marx e Engels deduziramcomo teoricamente certo que em todo o lado as classesoprimidas mais tarde ou mais cedo iniciariam revoluções.O facto de Marx e Engels não terem encarado os conflitosviolentos simplesmente como caóticos e não estruturadosfoi um grande passo em frente na teoria sociológica. Con-sideravam-nos como estando enraizados na estrutura daevolução social e, por conseguinte, como possuindo de seupróprio direito uma estrutura. A teoria de Marx reflectiuum estádio de desenvolvimento das ciências sociais ondea evolução intra-sociedade é encarada como estruturada e,assim, como um objecto possível de investigação cientí-fica. Contudo, as relações entre os estados — especialmenteos conflitos que implicam a utilização de força — eramainda percepcionados como não estruturados. Deste modo,os conflitos entre os estados não eram considerados comomaterial bruto que proporcionasse a construção de teoriascientíficas. Com a interdependência crescente das lutaspelo poder intra e inter-sociedades — quer nas suas for-mas controladas e não violentas quer nas suas formasincontroladas e violentas — os processos de evolução intrae internacionais interpenetram-se e aglutinam-se de muitasformas.

Um exemplo (de entre os muitos possíveis) é suficientepara demonstrar a impossibilidade de tratarmos separa-damente os processos evolutivos nos dois diferentes níveisde integração. Consideremos a dialéctica dos movimentosrevolucionários e contra-revolucionários no xadrez dasrepúblicas sul-americanas. Como em muitas outras socie-dades-estados relativamente pequenas, a polarização degrupos mais vastos de poder na cena internacional levou

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à polarização das elites dominantes dentro das sociedades--estados. Mas os estratos que englobam a maioria dos indi-víduos— neste caso os camponeses — ficam desamparadose são comprimidos num autêntico torno. As sociedades--estados mais poderosas não são menos constrangidas doque as sociedades mais pequenas e menos poderosas, quetêm sido arrastadas na sua órbita. Formam em conjuntouma configuração comum — um «corpo a corpo» estrutu-ral. O equilíbrio de poder entre estados interdependentesé tal, cada um está tão dependente dos outros, que vêem cada estado que se lhe opõe uma ameaça à sua pró-pria distribuição interna de poder, à sua independência emesmo à sua existência física. O resultado deste «corpoa corpo» é que cada uma das partes tenta constantementeuma melhoria do seu potencial de poder e das suas possi-bilidades estratégicas no que respeita a qualquer eventualreencontro guerreiro. Cada um dos aumentos das possi-bilidades de poder verificado numa das partes, por muitopequeno que seja, será encarado pelo outro lado comoum enfraquecimento e um recuo da sua própria posição.Constituirá um recuo dentro da estrutura desta configu-ração. Assim, desencadear-se-ão contramovimentos à medidaque o lado mais fraco tenta melhorar as suas possibili-dades; e estes, por sua vez, provocarão o primeiro ladoa empreender os seus próprios contramovimentos. O poten-cial de poder da humanidade é assim polarizado em doiscampos — ou três, se incluirmos a China. Os membros deum dos grupos reúnem-se sob o estandarte dos sistemasde crenças comunistas de variadas matizes; os do outrogrupo sob o do capitalismo. Um dos lados apoia o governopermanente de um partido; o outro lado, o governo dequalquer dos vários partidos que na altura adquira domi-nância. Esta polarização tem-se imposto e difundido emconflitos locais, por todo o mundo.

Isto aplica-se particularmente a todas as sociedades--estados que se situam na fronteira entre os bastiões vigentes(aquilo a que antigamente se chamavam as esferas deinfluência) das maiores unidades de ataque e de defesa.O equilíbrio de poder entre estes agrupamentos das gran-des potências tornou-se bloqueado e, em muitas das socie-dades-estados ao longo de uma fronteira estratégica, talfacto levou a rupturas entre zonas ou secções da popu-lação que se inclinam para diferentes blocos de poder.De cada vez que se altera a fronteira, dá-se uma pertur-bação no equilíbrio flexível de tensões entre os grandesblocos de poder, uma perda potencial de um lado e uma

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potencial vitória do outro. Enquanto persistir esta confi-guração de poderes polarizados, cada tentativa séria dealteração da fronteira aproxima-nos mais da fase críticaem que uma confrontação armada entre opositores inter-dependentes degenera para a utilização aberta da forçaarmada.

A fronteira entre os grupos de poderes adversáriosjá não é uma simples linha geográfica, embora haja aindano mapa da Europa e da Ásia uma linha estratégica nítidaque vai do Oceano Pacífico ao Mar Báltico. Fora disso,a interdependência mundial crescente da evolução intrae inter-sociedades, levou a confrontações quer latentes querabertas entre muitas sociedades-estados médias ou peque-nas, entre partidos que apoiam quer uma quer outra dasprincipais sociedades polarizadas. É certo que, duranteoutras fases da evolução humana houve divisões parti-dárias dentro de estados, vinculados em maior ou menorgrau a divisões que transcendem as fronteiras estatais.Contudo, à medida que se estreita a teia de relações mun-diais, estas interdependências alastram-se e tornam-se maisfortes. Sociologicamente falando, a guerra e a guerra civil— e mesmo a sua ameaça — cada vez mais se entrosame interpenetram. Os eixos fundamentais de tensão nasrelações internacionais exercem uma espécie de atracçãomagnética sobre muitas divisões partidárias locais, dentrodas sociedades-estados individuais.

Um eixo de tensões internas de um estado tende aconvergir com os eixos de tensões entre os estados. Con-sequentemente, a fronteira estratégica entre as grandespotências passa muitas vezes, de um modo franco oulatente, por meio das sociedades-estados individuais. Assim,os países menos desenvolvidos e mais pobres são parti-cularmente susceptíveis a eclosões de conflitos armados eas suas elites alinharão provavelmente com a polarizaçãodominante das superpotências. Todo o tipo de grupos locais— guerrilheiros e tropas do governo, revolucionários e con-tra-revolucionários — entrarão em conflitos subalternos unscom os outros, como representantes dos grandes poderesopostos. Nas sociedades altamente desenvolvidas e relati-vamente prósperas, a ameaça dialéctica da força nãoimpede, e pode mesmo promover positivamente, um desen-volvimento ulterior e uma riqueza social crescente; con-tudo, em todos os países pobres, a polarização de revolu-cionários e contra-revolucionários, geralmente apenas con-duz a um empobrecimento. Examinada mais de perto,a ajuda das grandes potências prova ser apenas um palia-

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tivo. Com ela, pretendem essencialmente, não tanto ajudarno desenvolvimento dos países em questão, como ganharadeptos para um ou outro lado.

O entrelaçamento das duas formas principais de violên-cia social, entre estados (guerra) e dentro dos estados(revolução), é um exemplo entre os muitos para os quaisos modelos de evolução social de um só nível se revelamnão adequados. É igualmente insatisfatória a utilização demodelos de processos de evolução econômica como resumode tudo o que pode ser dito sobre a evolução social. Asteorias que apenas tratam os aspectos econômicos damudança configuracional como estruturados, só podem terum valor muito limitado como linhas orientadoras parauma investigação empírica ou para uma solução práticado problemas. A sua fraqueza reside em que tratam todosos outros aspectos (embora estes sejam funcionalmenteinterdependentes de um modo nítido) como não estrutu-rados, como meros acidentes, incapazes de ser estudadoscientificamente ou representados num modelo teórico. Taisteorias negligenciam mesmo a posição mutável dos esta-dos dentro da sociedade de estados em desenvolvimento.A crença de que a evolução global da sociedade se podeexplicar ou pode mesmo ser controlada apenas sob o pontode vista econômico, leva necessariamente a juízos impre-cisos e a planos errôneos. Ora, em vez disso, são precisosmodelos de evolução econômica de dois níveis, incluindoprocessos de integração assim como de diferenciação, evo-lução internacional assim como interna, reconhecendo-seque todos eles são aspectos estruturados de um processoglobal.

Muitas vezes parece que esquecemos deliberadamenteque a evolução social está relacionada com alterações nainterdependência humana e com mudanças nos próprioshomens. Mas se não se atender ao que se passa com aspessoas no decurso da mudança social — as mudanças nasconfigurações compostas por pessoas — então não vale apena qualquer esforço científico. Embora possa ter umsignificado diferente, a evolução social implica semprealterações da natureza e das relações das posições sociais,ocupadas pelos vários grupos de pessoas. Tem que signi-ficar sempre e inevitavelmente que no decurso da evoluçãohá certas posições sociais ou grupos de posições que cedem,total ou parcialmente, as suas funções, dentro de um com-plexo funcional. Ao mesmo tempo, outros grupos de posi-ções (por vezes mais antigos, mas na maioria das vezes,bastante novos) adquirem novas funções ganhando impor-

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tância dentro de uma sociedade mais lata. Assim, é inade-quado, quando analisamos uma mudança social, para nãodizer quando a planificamos, confinarmo-nos a uma mani-pulação intelectual de conceitos aparentemente impessoaistais como: investimento de capital, salários, produtividadee assim por diante.

Não se deve dar mais atenção ao novo, que está aaparecer, enquanto se despreza o velho, que está em declí-nio ou em desaparição no decurso da evolução. Podemsurgir novas posições com novas funções; podem-se aumen-tar ou reduzir (talvez mesmo anular) as funções das velhasposições. Mas é errado pensar que duas correntes dentrode uma configuração, uma ascendente, a outra em declíniono decurso da evolução social, podem ser encaradas comoacontecimentos impessoais num plano extra-humano. Narealidade, esta ascenção e queda significam a ascenção equeda de grupos de pessoas. Significam que certos gruposterão maiores oportunidades de poder; significam queoutros, perdendo algumas ou todas as suas funções, per-derão todas ou parte das suas oportunidades de poder2.

Uma das características mais surpreendentes de muitasteorias sociológicas e econômicas é que mal reconhecemo papel central que as tensões e os conflitos desempenhamem toda a evolução social. Dá-se muitas vezes a impressãode que os cientistas sociais imaginam semiconscientementeque, sem qualquer intenção, poderão produzir tais tensõese conflitos caso os incluam nos seus modelos de sociedade.Ou que receiam parecer aprovar estas tensões e conflitos.Mas nunca as tensões e conflitos desaparecerão da socie-dade pelo facto de terem sido omitidos nas teorias.

É fácil verificar que tensões e conflitos entre gruposque estão a perder funções e outros que adquirem fun-ções novas ou as aumentam, são uma característica estru-tural vital de toda a evolução. Por outras palavras, nãose trata apenas de uma questão de tensões e conflitos pes-soais, essencialmente acidentais, embora quem neles estejaenvolvido os encare habitualmente como tal. Do ponto devista dos grupos que se entrecruzam, podem por vezesconsiderar-se como expressões de uma animosidade pes-soal, outras como conseqüência da ideologia de um oude outro lado. E, no entanto, trata-se antes de conflitose tensões estruturados. Em muitos casos, eles e os seusresultados constituem o centro de um processo de evo-lução.

São ainda raras as investigações sociológicas sistemá-ticas sobre estas deslocações de função e as conseqüentes

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alterações de equilíbrio "de poder no centro dos processosevolutivos. No entanto, o que acima se disse sobre aspropriedades estruturais da evolução social, pode-se ilus-trar com um exemplo evidente. O seu significado, emboracomum, é facilmente omitido. No decurso de certos pro-cessos evolutivos das sociedades européias durante osséculos XIX e XX, deu-se uma erosão — por vezes gradual,por vezes rápida — das funções de posições de príncipese nobres. Até ao século XVIII, em todos os estados maisimportantes, as subversões e revoltas tinham sempre comoobjectivo derrubar um soberano em favor de outro, ouaumentar ou reduzir o poder de partes da nobreza rela-tivamente ao soberano, ou em relação a outros estratosda nobreza. Mas estes esforços nunca foram permanentese raras vezes tinham como objectivo a abolição das posi-ções de soberanos e nobres enquanto tal. Mesmo depoisda execução do rei de Inglaterra (Carlos I em 1649),a posição do líder revolucionário (Cromwell) em brevereverteu a favor de uma posição monárquica, quando oregresso representativo da antiga dinastia real (Carlos IIque reinou de 1660 a 1685) reassumiu a posição tradicionalde rei. Uma análise mais aprofundada poderia facilmenterevelar as propriedades estruturais das sociedades-estadospré-industriais, responsáveis pela eventual ocorrência detais revoltas. Porque, apesar de todas as suas fantasias,estas sociedades caíam sempre em configurações que trans-formavam pequenos estratos privilegiados em nobres ereis, revestindo-se este tipo de elite de grandes oportuni-dades de poder, em comparação com as da maioria dapopulação. Desde então, o poder tem sido gradualmenteescoado das posições da nobreza em todas as sociedadeseuropéias semelhantes; em muitos casos, estas posiçõesdesapareceram totalmente. No entanto, as explicações nãosociológicas da evolução da sociedade européia dão muitasvezes a impressão de que tudo isto foi uma ocorrênciafortuita, um acontecimento histórico singular.

Porém, um estudo mais atento do decurso da Revo-lução Francesa, mostra muito nitidamente que, mesmoantes da revolução, sob a capa do ancien regime as posi-ções do rei e da nobreza tinham vindo a perder funçõesà medida que a sociedade francesa pré-industrial se tor-nava mais comercializada. Os privilégios associados às suasposições, particularmente a desigual distribuição de impos-tos a seu favor, parecia a muitos observadores coevos.nãoter qualquer relação com a sua «função para a nação»,como o Abade Sieyès lhe chamou. Se examinarmos deta-

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Ihádamente o decurso desta evolução, é evidente que aexpropriação revolucionária das funções do rei e da nobrezanão surgiu simplesmente pelo ataque violento dos estratosrebeldes. Foi também iniciada pela incapacidade compre-ensível do rei e da nobreza em se adaptarem ao factode as suas posições perderem gradualmente funções,e pela sua recusa em concordar numa redução dos seusprivilégios correspondente ao seu potencial de poder emdecréscimo.

A ascensão e queda de grupos dentro das configura-ções e as tensões e conflitos estruturais concomitantes, sãocentrais em todos os processos evolutivos. Têm que sercolocados no centro de qualquer teoria sociológica daevolução. De outra forma, torna-se impossível chegar aoproblema (teórico e prático) central com o qual os soció-logos constantemente se defrontam. Este problema é see até que ponto as tensões e os conflitos não controlados,entre diferentes grupos de pessoas, podem ser sujeitos aum controlo e a uma orientação conscientes por partedaqueles que neles estão envolvidos, ou se tais tensõese conflitos apenas podem ser resolvidos pela violência,quer como revoluções dentro dos estados, quer como guer-ras entre eles.

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lNOTAS E REFERÊNCIAS

Introdução1 Para simplificar, só se mostram neste diagrama os tipos

mais elementares das necessidades recíprocas de cada um edas suas ligações recíprocas — apenas as valências afectivas(v. p. 147 e segs.). Há muitos outros tipos com funções semelhan-tes. Precisamos uns dos outros, orientamo-nos uns para ps outrose estamos ligados uns aos outros. Isto resulta da divisão dotrabalho, da especialização ocupacional, da integração em tribosou estados, de um sentido comum de identidade e de um anta-gonismo partilhado com os outros ou de um ódio e de umainimizade recíprocos.

0 principal objectivo da figura 2 é facilitar a reorientaçãodos conceitos e modelos sociológicos, que se torna possível sedeixarmos de encarar os seres humanos, incluindo nós próprios,como unidades totalmente autônomas, passando então a per-cepcioná-los como unidades semi-autónomas .precisando umasdas outras, dependentes umas das outras e ligadas umas àsoutras de modo muito diversos. O diagrama indica estes equi-líbrios de poder instáveis (ver p. 80) e as provas de forçareferidas colocam-se entre as propriedades básicas de todas asrelações humanas, quer sejam relações relativamente simplesentre duas pessoas, como ocorre no casamento, ou configura-ções de muitos membros como as cidades ou estados, consti-tuídas por muitos indivíduos.

2 Ver N. Elias, «Problems of Involvement and Detachment»,British Journal of Sociology, vol. 7, n.° 3, 1956, pp. 226-52.

1. A Sociologia — As questões postas por Comte1 Muitos homens desta época usaram o termo «positivo»

neste sentido. Comte, tal como antes dele Turgot, utilizou-o comoantônimo de tudo aquilo que considerava especulativo, quer serevestisse da forma teológica quer da filosófica. Comte chamouà sua teoria das ciências «Filosofia positiva» para a distinguircomo sendo uma filosofia científica (ou, como poderíamos dizer,uma teoria científica) da ciência, opondo-se às teorias filosó-

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ficas da ciência, de caracter especulativo, habituais na suaépoca, tal como na nossa.

2 Auguste Comte, Cours de Philosophie Positive, 1830-425." edição, 1907, vol. l, p. 5.

3 Ibid., p. 2.* Ibid., p. 5.5 Ibid., p. 6.« Ibid., p. 52.7 Wolfgang Wiener, Organismen, Strukturen, Maschinen:

Zu eine Lehrer vom Organismus, Frankfurt am Main, 1959,pp. 64, 68.

8 Comte, pp. 15-16 (os itálicos são da minha autoria).

3. Modelos de jogo1 Ver N. Elias, «Problems of involvement and detachment»,

British Journal of Sociology, vol. 7, n.° 3, 1956, pp. 226-52.2 Aquilo a que chamamos «configuração» em relação às

partes constituintes é semelhante àquilo a que chamamos «estru-tura» em relação à unidade composta. Se falamos da estruturadas sociedades e da configuração ou padrão de vinculação dosindivíduos que formam essas sociedades, estamos de facto afalar da mesma coisa encarada de diferentes ângulos.

3 A análise bem conhecida de E. E. Evans-Pritchard dafunção dos feudos entre os grupos de linhagem Nuer constituium exemplo instrutivo da utilização teleológica do conceito defunção. Esta é adulterada, utilizando-se como um conceito quetem por finalidade a conservação de um sistema social existente.«A função do feudo, encarada deste modo, é por conseguinte ade manter o equilíbrio estrutural entre segmentos tribais opostosque, no entanto, se fundem politicamente relativamente a unida-des maiores» (E. E. Eyans-Pritchard, The Nuer, Oxford, 1940,cap. 3, p. 159). Seria mais adequado dizer que, durante o períododa investigação, as funções que cada um dos grupos segmen-tários desempenhava reciprocamente, na qualidade de aliadose companheiros de tribo, ultrapassava a função que desempe-nhavam enquanto rivais.

4 Podemos encontrar um exame mais detalhado das fun-ções e das relações de poder entre grupos especializados emN. Elias Die Hõfische Gesele schaft, Neuwied e Berlim, 1970,caps. II e IV.

5 Não há necessidade de acentuar a reflexão crítica sobreas teorias da acção e da interacção, que prestam pouca ounenhuma atenção à estrutura das pressões que a «acção» deuma pessoa ou de um grupo exerce sobre os outros.

6 O conceito de «funcionamento enfraquecido» no contextode processos sociais observáveis não pode ser confundido como conceito de «disfunção» de Merton, que não tem qualquerutilidade na investigação sociológica. O conceito mertonianobaseia-se num conjunto pré-determinado de valores; refere-sea uma imagem ideal de sociedades estáticas funcionando har-moniosamente— uma imagem que em nada corresponde ao quese observa na vida real.

7 Contudo, muitas sociedades que ainda não se transfor-maram em estados funcionam em mais do que dois níveis.Mesmo numa federação de tribos integradas de um modo tão

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simples e frouxo como a dos antigos Iroqueses, o processofederal quando um indivíduo queria propor algo à federação,era o seguinte (a fonte é um relato contemporâneo feito peloRev. Asher Wright, citado por Edmund Wilson, Apologies tothe Iroquois, Londres, 1960, p. 174):

«Uma medida tem de obter primeiro o consentimento dafamília do proponente, depois o do seu clã, depois o dos quatroclãs que, por sua vez, se relacionam com a casa do conselho,depois o da nação e, por último, na devida altura o assuntoserá apresentado aos representantes da Confederação. Numaordem inversa, as medidas tomadas pelo Conselho Geral eramapresentadas ao povo para serem aprovadas. Era regra esta-belecida que toda a acção deveria ser unânime. Por isso, todasas discussões, sem qualquer excepção, se prolongavam até serrebatida toda a oposição, ou até a medida proposta ser aban-donada.»

8 H. J. Kõnigsberger, «Dominium regale or dominium etregale?: Monarchies and Parliaments in Early Modem Europe»,em Human Figurations: Essays for Norbert Elias, ed. P. Glei-chmann, J. Goudsblom and H. Korte, Amesterdão, 1977.

8 N. Elias e J. Scotson, The Established and the Outsiders,Londres, 1965.

10 O meu colega Richard Brown da Universidade de Durham,teve a amabilidade de ler esta parte do manuscrito e observou-meque cálculos deste tipo já apareceram em E. F. C. Brech, Orga-nisation, Londres e Nova Iorque, 1957, pp. 77 e segs., emboranum contexto de problemas teóricos bastante diferente.

4. Características universais da sociedade humana1 É impossível dar aqui suficientes exemplos que provem

que neste domínio ainda é tudo muito confuso. Mas devíamosmencionar que mesmo um cientista da envergadura de KonradLorenz, líder teórico e empírico no seu campo de investigação,pode esquecer a simples distinção entre os tipos humanos decomportamento que são na sua maioria aprendidos, e os tiposde comportamento de organismos não humanos, que são na suamaior parte automáticos e não aprendidos. Ele observa um para-lelismo superficial entre certos tipos de comportamento socialhumano regido por normas e o comportamento social dos lobose dos gansos europeus. Na sua especialidade, a sociologia animal,Konrad Lorenz apoia-se habitualmente num trabalho elaboradocom grande cuidado e minúcia, tomando-o como base de formu-lação das suas teorias. Por isso, poderíamos ter esperança emque ele se familiarizasse com os resultados da investigação socio-lógica sobre as sociedades humanas, prestando-lhes a mesmaatenção cuidadosa e a mesma minúcia, antes de formular con-clusões sobre a agressão humana e as leis que a regem — con-clusões extraídas dos seus conhecimentos sobre a agressão esuas leis no que respeita às sociedades animais (ver KonradLorenz, edição portuguesa — A Agressão, «Temas e Problemas»,Moraes, Lisboa, 1974). Pode facilmente demonstrar-se que aformação de normas e toda a impregnação social do compor-tamento agressivo humano no decurso das relações recíprocasque vamos sofrendo, são extremamente variáveis. Podem variargrandemente de uma para outra sociedade ou mesmo entre

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diferentes estratos de uma mesma sociedade. Diferem muitode sociedades industriais para sociedades em que os estratosdominantes se compõem de guerreiros. Encontra-se materialrelevante para este problema em Norbert Elias, Über den Pro-zess der Zivilisation, 2." ed., Berna e Munique, 1969.

O único processo de concluir com alguma certeza se eaté que ponto a raiz de todo o comportamento agressivo seencontra numa tendência comportamental comum a toda aespécie, implica a promoção de exaustivos estudos comparativosem muitas sociedades em graus variáveis de evolução social.Como já foi afirmado, o comportamento humano, tal como oobservamos, é sempre a conseqüência de um equilíbrio de ten-sões muitas vezes extremamente complexo entre impulsos corti-cais e subcorticais. Lorenz parece desprezar a interiorização doscontrolos comportamentais aprendidos, que é possível na natu-reza humana, mas não, fazendo fé nas suas investigações, nanatureza dos gansos europeus. Está fora de questão acreditar-mos que a história natural da agressão se processa numa Unharecta do esgana-gata ao homem.

Sobre este tema seria interessante apontar outro equívocoque está na base das teses do filósofo Arnold Gehlen. Este parececonfundir a maior plasticidade do comportamento instintivohumano, que implica uma maior habilidade por parte do homemno controlo dos seus instintos, com a humanidade enquantoespécie, possuindo instintos fracos. A evidência de que dispo-mos não justifica a conclusão de que, sendo os instintos huma-nos os mais maleáveis, tem necessariamente de ser fracos. Nãohá qualquer prova de que os instintos humanos sejam maisfracos que os dos leões, macacos ou pardais.

2 B. L. Whorf, Language Thought and Reality: SelectedWritings, MIT, Press, Cambridge, Mass., 1956. É muito agra-dável ler Whorf, pois com grande conhecimento do assunto,ataca vigorosamente problemas que têm necessidade urgentede investigação. A comparação sistemática dos tipos de lin-guagem, primeiramente empreendida por Humboldt, parece vira dar fruto em sociologia. Contudo, Whorf começou pela hipó-tese posteriormente elaborada por Lévy-Strauss, de que a estru-tura da linguagem cçnstitui um estrato independente da reali-dade, existindo por si e para si. Bem podemos perdoar aos lin-güistas, se eles de vez em quando se esquecem do facto deque aquilo que reificamos enquanto linguagem não é mais doque um sistema de sinais que as pessoas utilizam para comu-nicar umas com as outras. Não é muito fácil compreender oque Lévy-Strauss tem em mente quando toma a estrutura deuma língua por um modelo, mesmo por uma matriz da estru-tura social, em vez de se limitar a relacionar a estrutura deuma língua com a estrutura da sociedade onde essa língua éfalada. (Ver Claude Lévy-Strauss, Anthropologie Structural.)O próprio Whorf não conseguiu evitar completamente o perigode tratar uma língua falada como algo que não evolui e nãomuda. Assim, tende a neutralizar a ameaça que uma críticaradical tem de fazer não só a conceitos particulares mas a todoo processo tradicional de formação de conceitos numa socie-dade— às formas de linguagem e de pensamento que se aceitamsem discussão. Uma crítica deste tipo ameaça a confiança deuma tal sociedade. Sugerir que as formas habituais de pensa-mento— auxiliares indispensáveis de uma experiência arguta,

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instrumentos habituais de orientação — apenas são válidos den-tro da estrutura da nossa própria sociedade, é colocarmo-nose aos outros no risco de sucumbirmos de desespero relativista.

Contudo, este perigo só persiste enquanto o criticismo radi-cal das formas de discurso e de pensamento se não combinarcom tentativas de abrandamento. E isto para aqueles que seconsciencializam do caracter não adequado dessas formas rela-tivamente às tarefas em que são utilizadas. Resumindo, podemosevitar o risco usando esta crítica como meio de abrir possi-bilidades para tornar os modos de falar e pensar habituaisnuma sociedade mais adequados às suas tarefas, se tal fornecessário. Entre os lingüistas, há alguns estruturalistas que porvezes se referem à estrutura das línguas como se a estruturaexistente na língua de uma sociedade fosse concomitante dessamesma sociedade, pertencendo-lhe para todo o sempre. Isto éapenas uma outra versão da idéia de que a condição actualde uma determinada sociedade — e neste caso também da sualíngua — é fixa e imutável.3 Pode encontrar-se um breve estudo sociológico destebalançar do pêndulo no prefácio a Norbert Elias Über den Pro-zess der Zivilisation, 2." ed., Berna e Munique, 1969.

4 Emile Durkheim, De Ia Division du Travail Social, 7." ed.,Paris, 1960, p. 342.

5 Ver Norbert Elias, Über den Prozess der Zivilisation,e Elias, Díe Hofische Gesellschaft, Neuwied e Berlim, 1969.

6 Emile Durkheim, Lês Régles de Ia Méthode Sociologique,11.' ed., Paris, 1950, p. 28.

7 Ver R. Brown e A. Gilman, «The Pronouns of Power andSolidarity», em P. P. Giglioli (Ed.), Language and Social Context,Penguin, Harmondsworth, 1972.

» Ver a figura 2, p. 15 e a nota l da Introdução, p. 193.9 Estes problemas são abordados mais detalhadamente em

Norbert Elias e Eric Dunning, «Dynamics of sport groups withspecial reference to football, British Journal of Sociology, vol. 17,n.» 4, 1966, pp. 388-401.

5. As interdependências humanas — Os problemas das liga-ções sociais

1 Talcott Parsons, «Psychology and Sociology», em JohnGillin (Ed.), For a Science of Social Man, Nova Iorque, 1954,p. 84. Aqui, Parsons afirma que «a estrutura da personalidadeé uma espécie de 'imagem num espelho' da estrutura do sistema— objecto social», e depois acrescenta imediatamente, como umaespécie de advertência, que «devemos ter muito cuidado na inter-pretação destas afirmações. Elas não significam que uma perso-lidade enquanto sistema seja simplesmente um reflexo da situa-ção social desse tempo. Isto seria a negação do postulado daindependência do sistema de personalidade». Não faz qualquertentativa para explicar como é que a idéia de uma persona-lidade tomada como imagem num espelho da sociedade terá queestar de acordo com a sua defesa da independência do indi-víduo. As duas afirmações colocam-se lado a lado no sistemade Parsons, nunca sendo verdadeiramente reconciliadas.

" Este conjunto de problemas é abordado mais detalha-damente em Norbert Elias, «Sociology and Psychiatry», em

197

Page 101: ELIAS, Norbert Iintrodução à Sociologia

S. H. Foulkes and G. S. Prince (Eds.), Psychiatry in a Chan-ging Society, Londres, 1969, pp. 117-44.

3 Este problema manter-se-á até que as primitivas unida-des de ataque e defesa sejam efectivamente integradas numasó — a humanidade.

4 Ver Elias, Über den Prozess der Zivilisation, 2." ed.,Berna e Munique, 1969.

8 Allen M. Sievers, Revolution, Evolution and the Econo-mic Order, Englewood Cliffs, N. J., 1962, p. 1.

0 Ver S. Krynska, Entwicklung una Fortschritt nach Con-dorcet una Comte, Berna, 1908, p. 27.

7 Podemos encontrar um modelo dos processos de forma-ção de estados — embora pudesse evidentemente ser mais alar-gado e aperfeiçoado — em Elias, Über den Prozess der Zivili-sation.

8 Ibid., vol. I.

6. O problema da «inevitabilidade» da evolução social1 Ver N. Elias, Über den Proze,ss der Zivilisation, 2." ed.,

Berna e Munique, 1969.2 Uma das maiores realizações de Marx, e de maior utili-^

dade para a evolução da sociologia, foi o facto de ter reconhe-cido a ascensão e queda das classes sociais como de importânciacentral para uma teoria da evolução social, tentando investigá-laempiricamente. No entanto, tal como outras teorizações ante-riores, o seu modelo estava impregnado dos seus conceitosmetafísicos de valores. Era incapaz de se libertar da idéia deque os estratos que subiam eram «bons» e os que declinavameram «maus». Traçou com grande nitidez a frente de batalhada classe média industrial ascendente, contra a classe maisbaixa de trabalhadores industriais, também em ascensão. Poroutro lado, desprezou a luta (ainda muito evidente na época)travada pelas classes médias ascendentes pela superação dasclasses dominantes tradicionais (aristocráticas, militares e pro-prietárias), como se a Revolução Francesa tivesse de facto des-truído totalmente o poder destas. Devido à sua superioridadenesta batalha, foi incapaz de ver claramente que entre a bur-guesia industrial e a classe trabalhadora industrial havia estratosascendentes e decadentes, como de resto sempre houve. Talvezfosse impossível na sua época compreender tal facto. Hoje esta-mos em posição de construir um modelo muito mais com-preensivo e diferenciador da ascensão e queda dos estratossociais. Mas em sociologia, tal como nas outras ciências, todaa teoria ulterior se desenvolve simultaneamente como continua-ção de teorias anteriores, tomando-as, no entanto, dum pontode vista crítico.

198

ÍNDICE REMISSIVO

Absolulismo filosófico, 57.Accão

conceitos de, 60, 131, 161, 162.teorias de, 102, 194 n.

Alemanha, 67.Antropomorfismo, 16, 19.Apriorismo, 37.Aristóteles, 49, 122, 164.Ataque e defesa, unidades de,

152, 153, 170, 186, 198 n.Atomismo científico, 78, 144-145.Autodistanciamento, v. Distancia-

mento.Autonomia relativa

conceito de, 48, 50, 63, 116-117.da sociologia relativamente àbiologia e à psicologia, 38 seg.,48, 50, 77 seg., 114-116.da sociologia relativamente àsideologias, 65.dos processos sociais, 38 seg.,60 seg., 89, 103-104.

Brech, E. F. C., 195 n.Brown, Richard, 195 n.Brown, Roger, 197 n.Burguesia, 153 seg.Burocracia, 33.Burocratização, 68.

Cadeias de interdependência, v.Interdependência.

Capitalismo, 177.

Capitalistas, 157 seg., v. tambémBurguesia.

Características biológicas humanas,147 seg.

Carlos I, rei de Inglaterra, 190. •Carlos II, rei de Inglaterra, 190.Categorias sociológicas, 4445, 123-

-133.Causalidade, 22, 61, 176-177, 179.Ciência, teoria sociológica da,

38-40, 58 seg.Ciência, teorias filosóficas da, 19,

40 seg., 54 seg., 123-124, 193 n.«Ciência do comportamento», a

sociologia como, 143-144.Ciências naturais, modelos das,

16 seg.Cientifização do pensamento, 16

seg., 23-24, 67-69.Civilização, conceito de, 180.Civilização, processo de, 170, 172,

195-198 n.Classe média, 198 n, v. também

Burguesia.Classe social, conceito de, 123.Classe trabalhadora, 154-195, 198 n.Competição primária, 79-87, 106.Complexidade, índice de, 108-111,

137.Comte, Auguste, 35-52, 125, 164,

166, 169, 193 n, 194 n.

199

Page 102: ELIAS, Norbert Iintrodução à Sociologia

Conceitos, formação de, 13 seg.,99-100, 120 seg., 133 seg.

Concepção de si próprio, 139.Condorcet, marquês de, 169-170.Configuração, 15, 18, 21, 88 seg.,

139-145, 161, 175 seg., 194 n,v. também Interdependência,Interpenetração.

Conflito, 26, 189 seg.Conflito de classe, 30.Conhecimento

científico, 40 seg.não científico, 38 seg.sociologia do, 57-58.teoria filosófica do, 40 seg.teoria sociológica do, 40 seg.

Consenso, 167.Conseqüências inesperadas, 160.Continuidade ontogenética, 115.Cromwell, Oliver, 190.Cultura, conceito de, 179-180.

Darwin, Charles, 164-165.Dedução, 37, 54.Democratização, 67-69, 108-109.Desenvolvimento

conceito de, 159-167.tecnológico, 25-26.

Deslocação, 25.Determinismo, 22, 179, 183.Diferenciação social, 67, 147, 158,

172.Disfunção, conceito de, 194 n.Distanciamento, 132-133, 169,

193 n, 194 n.Dunning, Eric, 197 n.Durkheim, Émile, 107, 128-131,

150, 197 n.

Economia, 152-153.Ego, conceito de, 14-15, 103, 128,

133-134.Egocentrismo, 14 seg., 19, 26-27,

29-31.Ele, função de, 137, 159.Eles, função de, 159.Eles, perspectivas de, 139, 150, 151.

Elias, Norbert, 193-198 n.Elite, 31, 69, 93, 129, 198 n.Empirismo, 37.Engels, Friedrich, 185.Epidemia, 28.Especialização

científica, 50-52, 63-64.ocupacional, 150.

Estatística, utilização na investiga-ção social, 77, 107-108, 144.Estrutura, v. Configuração.Estruturalismo, 196-197 n.Etnocentrismo, 27, 30-31.Etologia, 117.Eu, funções do, 138.Eu, perspectivas do, 150.Evans-Pritchard, E. E., 194 n.Evolução

social, 173-191.teorias da, 164 seg.

Expressão e pensamento, formasde, v. Conceitos, formação de.

«Factores» da explicação socioló-gica, 126.

Fantasia, 22-24, 27-30, 32, 43.Física e sociologia, 38 seg., 46.Força, provas de, 85, 193 n.Forças sociais compulsivas, 17-18,

20-21, 23, 32, 178.França, 67.Freud, Sigmund, 133.Função, conceito de, 60, 84-85,

137-139, 143, 160-161.Funcionalismo estrutural, v. Fun-

ção, conceito de.«Funcionamento enfraquecido»,

conceito de, 194 n.Futebol, 142-143, 197 n.

Gehlen, Arnold, 196 n.Gilman, A., 197 n.Guerra fria, 30-31.

«Habilidade da razão» (Hegel),160.

Hegel, G. W. F., 39, 160.

200

Holismo, 79 seg.Homines aperti, 136, 148.Homo clausus, 129-130, 136, 141,

144, 148.Homo sociológicas, 132.Humboldt, W. von, 196 n.

Ideais, v. Ideologias, Valores.Identidade pessoal, 139.Ideologias, 42, 57-58, 66, 73-75, 99,

165-172.Império Romano, 179.Indeterminação, 179, 183.«Indivíduo», conceito de, 13 seg.,

107, 123, 126 seg., 140 seg.Indução, 37, 54.Industrialização, 68.Inglaterra, 67, 155.Instintos humanos, 149-150, 195-

-196 n.Integração social, 158, 172.Interacção, teorias da, 194 n.Interdependência, 15, 26, 69, 73,

81 seg., 130 seg., 147-172, 174,184, v. também Configuração,Interpenetração.

«Interesses de grupo», 29-30.Interpenetração, 86-107, 141-170,

v. também Configuração, Inter-dependência.

Iroqueses, 195 n.

Jogo, modelos de, 77-108, 138-139,160-161.

Jogos, 142-143.judeus, 27-29.

Kõnigsberger, H. J., 195 n.Krynska, S., 198 n.

Lei dos Três Estados (Comte), 40seg.

«Leis científicas», 22.Lévi-Strauss, Claude, 196 n.Liberalismo, 154.Liberdade, v. Indeterminação.

Ligaçõesafectivas, 147-151.sociais, v. Interdependência.

Lineu, 164.Língua, 120 seg.Lógica, 45-46, 122.Lorenz, Konrad, 195-196 n.Luís XIV, rei de França, 137-138.

Mágico-mítico, pensamento, 18,131.

Marx, Karl, 31, 35, 39, 125, 153--154, 156-158, 164-166, 185, 198 n.Marxismo, 35.Mercados, 154, 174.Merton, Robert K., 194 n.Mill, John Stuart, 54.Mitos, 55 seg.Montesquieu, Charles, barão de,

164.

Nacional Socialismo, 28-29.Necessidades sexuais, 148-150.Neologismos, 21.Nobreza, posição social de, 190-

-191.Nominalismo, 23-24, 128.Normas, 82 seg., 123, 147.Nuer, 194 n.

Observação, 24, 36.Oligarquias, 69 seg., 93 seg.Opacidade (das configurações so-

ciais), 73 seg., 92, 94, 167,169, 181.

Ordem social, conceito de, 82, 167.

Parsons, Talcott, 125, 128, 133--134, 148, 197 n.

Partidos políticos, 69-71.Perspectivas múltiplas, 109-110, 137

seg.Poder

conceito de, 80 seg., 99-102,126, 143.

diferenças de, 70 seg., 88-99.distribuição de, 23, 88 seg.,

153 seg., 170.

201

Page 103: ELIAS, Norbert Iintrodução à Sociologia

e interdependência, 102.equilíbrio do, 68, 80 seg., 143,

184 seg., 193 n.forças de, 96.lutas pelo, 23.origens do, 100.potencial de, 32.

Popper, Sir Karl R., 54.População, efeitos do aumento da,

107-108.Positivismo, 24, 36.Previsão científica, 174 seg.Processos de formação de estados,

154-155, 173-183, 198 n.Processos sociais não planeados,

161, 170, v. também Opacidade.Profecias históricas, 174.Progresso, 54 seg., 166.Pronomes pessoais, 133-139.Protestantismo, 178.Psicologia, a sociologia na sua

relação com a, 50, 105-106, 140--141, 143-145, 197 n.

Racionalidade, 27, 29, 32, 40, 182.Racionalismo, 37.«Razão», 22, 29, 39, 47, 130.Realidade, 24.Realismo, 29, 32.Realpolitik, 29.Redução processual, 122 seg.Reducionismo, 144-145, v. também

Atomismo científico.Rcform Acts (Inglaterra), 67.Rei, posição social de, 190-191.Reificação, 133.Relações entre os «instalados» e

os «de fora», 107.Relações internacionais, 30-31, 184

seg.Relações orientadas por regras,

81-82.Relalivismo sociológico, 57.Renascença, 59, 129.Revoluções, 185 seg.

francesa, 67, 169, 190, 198 n.

Saint-Simon, Claude, duque de,94.

Saint-Simon, Henri, conde de, 36.Scotson, J. L., 195 n.Senso comum, 22, 47.Sievers, Allen M., 198 n.Sieyès, Abade, 190.Símbolos, 151.Sistema social, conceito de, 123,

128, 137-138, 166.Soberania, 31.«Sociedade», conceito de, v. In-divíduo, conceito de.Sociedades animais, 117.Sociedades-estado, 68, 70, 152, 157,

183 seg.«Sociedades pluralistas», conceito

de, 73.Sociologia do desenvolvimento,

144, 154-155, 167.Spencer, Herbert, 125, 164, 166.Suicídio, 107.

Teia social, v. Interdependência,Configuração, Interpenetração.

Teias de Interdependência, v. In-terdependência.Teorias científicas, 36, 175.Teorias sociais evolucionistas, 125.Tipos ideais, 128, 142.Tradição, conceito de, 180.Transferência (das configurações

sociais), v. Opacidade.Turgot, Jacques, 36, 193 n.

Urbanização, 68.

Valcncias, 15, 148-149, 193 n.Valores sociais, 123, 128-130, 140

seg., 163, 167-172.«Variáveis» em sociologia, 126.

Weber, Max. 33, 127-128, 130-131,138, 178.

Whorf, Benjamin Lee, 122, 196 n.Wienen, Wolfgang, 194 n.Wilson, Edmund, 195 n.Wright, Rev. Asher, 195 n.

202

Í N D I C E

Agradecimento do Autor

Prefácio

INTRODUÇÃO . . . .

9

11

13

1. A SOCIOLOGIA —AS QUESTÕES POSTAS PORCOMTE 35

De uma teoria filosófica do conhecimento a uma teoriasociológica do mesmo 40

Do conhecimento não científico ao conhecimentocientífico 40

A investigação científica das ciências 44

A sociologia como ciência relativamente autônoma 48

O problema da especialização científica 50

2. O SOCIÓLOGO COMO DESTRUIDOR DE MITOS . . 53

3. MODELOS DE JOGO 77

A Competição Primária: um modelo de competiçãosem regras

Comentário

83

Modelos de jogo: modelos de processos de interpene-tração com normas 87

99

Page 104: ELIAS, Norbert Iintrodução à Sociologia

4. CARACTERÍSTICAS UNIVERSAIS DA SOCIEDADEHUMANA 113

A mutabilidade natural da humanidade como cons-tante social 113

A necessidade de novos meios de falar e de pensar . 120

Uma crítica de «categorias» sociológicas 123

Os pronomes pessoais como modelos figuracionais . 133

O conceito de configuração 140

5. AS INTERDEPENDÊNCIAS HUMANAS —OS PRO-BLEMAS DAS LIGAÇÕES SOCIAIS 147

As ligações afectivas 147

Ligações políticas e econômicas 151

A evolução do conceito de desenvolvimento . . . . 159

Valores sociais e ciência social 167

6. O PROBLEMA DA «INEVITABILIDADE» DA EVO-LUÇÃO SOCIAL 173

Teoria da evolução social 183

Notas e Referências 193

índice Remissivo 199

Page 105: ELIAS, Norbert Iintrodução à Sociologia

Tendo sido eminentemente um sociólogocom vasta obra publicada, pese emborao seu reconhecimento tardio, NorbertElias abordou no entanto vários assuntosque transcendem a esfera das ciênciassociais.