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Educao Fsica na Europa e no Brasil: um sentido comum que mostra uma identidade universalAntnio Camilo Cunha
Resumo
Apoiando-se nas vrias concepes/tendncias de Educao Fsica em duas
regies geogrficas diferentes Europa e Brasil o autor tenta mostrar que existem
concepes idnticas e diferentes de olhar o ato pedaggico da Educao Fsica em
contextos formais, informais e no formais. Quanto ao sentido do idntico, far-se-
um elogio ideia de um comum que estrutura uma identidade global e, por isso,
universal. Esse fato parece evidenciar que existe um caminho (eixo) ontolgico/
metafsico comum que trespassa e diz o que a Educao Fsica. Essa constatao
est acima das diversidades (e convices) sociais, curriculares, lingusticas, polticas,
ideolgicas e geogrficas.
Palavras-chave: Educao Fsica; abordagem ontolgica; abordagem
epistemolgica; Europa; Brasil; anlise comparativa.
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AbstractPhysical Education in Europe and Brazil: a common sense that shows a universal identity
Relying on various concepts / tendencies of Physical Education in two different
geographic regions Europe and Brazil the author tries to show that there are
similar and different conceptions of looking at the act of teaching Physical Education
in formal, informal and non-formal contexts. Through the sense of identical it will
be done a compliment to the idea of a common, that organizes a global identity
and therefore universal. This fact seems to evidence that there is a common
ontological/ metaphysical way (axis) that pierces and tells what Physical Education
is. This conception is above social, curricular, linguistic, political, ideological and
geographical diversities (and convictions).
Keywords: Physical Education; ontological approach; epistemological approach;
Europe; Brazil; comparative analysis.
Introduo
Este ensaio terico tem como objetivo realizar uma sntese das grandes
concepes/tendncias da Educao Fsica na Europa e no Brasil, que se desenvolvem
em espaos e tempos formais, informais e no formais. Depois da anlise de cada
uma das realidades e concepes, pode-se eventualmente fazer elevar um sentido
comum que estrutura uma identidade global e, por isso, universal. Esse fato parece
evidenciar que existe um sentido ontolgico/metafsico comum que est acima das
diversidades (e convices) sociais, curriculares, lingusticas (linguagem), polticas,
ideolgicas e geogrficas.
Trata-se de uma reflexo terica (comparativa) que partiu da anlise de duas
realidades: a da Educao Fsica da Europa e a do Brasil, tomando como fonte de
dados alguns escritos (textos) e reflexes do autor sobre a problemtica.
Iremos constatar ao longo do texto que vai emergir um sentido comum um
sentido ontolgico/metafsico que se d a conhecer em trs eixos estruturantes/
universais:
1) o homem-todo;
2) as propriedades as palavras intrnsecas, ntimas e estruturantes da
Educao Fsica: brincar, jogar, competir, novos/antigos (ideia de
histria) movimentos e novas formas de pensamento e ao;
3) a cultura e a axiologia.
Dessas constataes, tomamos a liberdade de dizer que a Educao Fsica
tem uma essncia primeira (ontolgica/metafsica) que do campo do universal,
tem uma identidade universal a ponto de podermos afirmar que, quando um homem
se move, toda a humanidade que se move.
Afonso AlvesRealce
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Educao Fsica na Europa
Ao fazermos uma anlise (macro) Educao Fsica na Europa (Cunha, [no
prelo]), podemos dizer que existem (pelo olhar da histria) pelo menos seis grandes
concepes, que apresentamos em seguida e de forma sinttica:
1) Psicomotricidade concepo muito ligada corrente francesa. Neste
envolvimento, para alm da dimenso aprendizagem e desenvolvimento
psicomotor, existe tambm a ideia do ldico, do jogo, dos movimentos
fundamentais, da psicologia do comportamento e desenvolvimento (a
estruturao de fases, etapas de aprendizagem). As tcnicas desportivas
(dimenso desportiva) tambm esto presentes alis, essa perspectiva
transversal a todas as tendncias que iremos apresentar. Esta tendncia
identificada com maior enfoque em pases como Frana, Portugal, Espanha,
Blgica, Itlia, Grcia.
2) Desportivista concepo muito ligada ao modelo alemo. Os profissionais
apresentam uma dupla formao (por exemplo, professores de Educao
Fsica e de Biologia). A Educao Fsica aparece como disciplina menor,
dando maior nfase ao desporto (que, no entanto, em nosso entendimento,
uma dimenso da ao fsica). Esse fato tem a ver com o trao cultural
forte muito ligado ideia de atitude, disciplina, eficcia, sucesso, trabalho,
produtividade, rendimento (dimenso quantitativa). No entanto, deve-se
salientar algumas propostas que fazem o elogio Educao Fsica de cariz
pedaggica nomeadamente por meio da corrente escola do movimento
movimentar-se. Nesse contexto, o movimento aparece como algo
intrnseco ao homem homem interior, mas tambm experiencial,
intencional , emergindo daqui a ideia do fenomenolgico, interpretativo,
hermenutico.
3) Educao Desportiva esta concepo faz o elogio ao desporto como uma
forma de entender a vida e a cultura. Quando nasce uma criana, ela
scia de um clube, de uma cultura. Muito associada a esta perspectiva
est tambm a defesa do conceito do Estado/Nao e da tradio
preservao e divulgao da tradio (cultura), por exemplo, do grande
ateno defesa e divulgao dos jogos tradicionais. Mais do que passado
(raiz, arqutipo), esses jogos so coisa do futuro mostram, iluminam o
futuro. Esta tendncia tpica de pases como Inglaterra, Esccia, Irlanda.
4) Especializao Precoce concepo que faz elevar o desporto precoce,
especializao precoce, deteco de talentos, rendimento. Aqui ainda est
expressa a ideia de que o cidado pertena do Estado, portanto, uma
concepo ainda influenciada pelos caminhos poltico-ideolgicos. Os
antigos pases do leste europeu ainda preconizam esta tendncia.
5) Voluntariado A Educao Fsica vista como uma concepo de vida
muito ligada ao tempo livre, socializao, aos valores (o axiolgico),
ecologia, sade e ao lazer. tambm um trao cultural que parece
convocar a antiga metfora socrtica: tempo livre para se dedicar ao eu
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interior. Concepo de grande representao social e familiar e se situa
em pases como Sucia, Noruega, Holanda, Dinamarca.
6) Novos Movimentos A Educao Fsica que convoca os novos
movimentos na terra, no ar, na gua , resultado da evoluo tcnica e
de um retorno do homem natureza. A este fato, no esto alheios os
novos discursos poltico-sociais sobre a proteo e promoo da natureza/
ecolgico.
Educao Fsica no Brasil
Ao fazermos igualmente uma anlise (macro) Educao Fsica no Brasil
(Azevedo, Shigunov, 2001), podemos dizer que existem (pelo olhar da histria) pelo
menos 11 grandes concepes que apresentamos em seguida e de forma sinttica.
A) Concepes preditivas
A.1) Concepo Aulas Abertas defende a vida de movimento das crianas,
materializado nas histrias de vida e na biografia motora (desportiva)
dos estudantes de Educao Fsica como processo formativo ( uma
concepo formativa tambm). Esta concepo considera a possibilidade
de co-deciso no planejamento das atividades desportivas/motoras
(objetivos, contedos, competncias, formas pedaggicas e didticas)
entre professores e alunos. Esse olhar defende tambm uma nova viso
formativa e profissional pela compreenso de professores e alunos sobre
o sentido que tem a aula jogo, movimento, desporto, entre outros
(Hildebrandt, Laging, 1986).
A.2) Concepo Atividade Fsica para a Promoo da Sade defende uma
nova atitude pedaggica que tenha em considerao metas (organizao
e desenvolvimento de experincias) em termos de promoo da sade
e formas de tornar as crianas e os jovens mais ativos fisicamente tanto
no presente quanto no futuro (vida adulta). Esta concepo faz elevar a
ideia de qualidade de vida tendo como pano de fundo a conscincia da
sade, do lazer, dos hbitos alimentares e dos estilos de vida no
sedentrios (Guedes, Guedes, 1993; Nahas, 1998).
A.3) Concepo Construtivista-Interacionista sua inteno a construo
do conhecimento a partir da interao do sujeito com o mundo,
respeitando o universo cultural do aluno. Explora, assim, as diversas
possibilidades pedaggicas de atividades motoras espontneas, propondo
gradualmente tarefas cada vez mais complexas e desafiadoras com vista
construo do conhecimento mediante mtodos no diretivos , como
acontece no modelo tradicional da prtica da Educao Fsica. O jogo
o elemento de base para a dinmica pedaggica (modo/meio de
ensinar), pois convoca um ambiente ldico de prazer. Corpo e mente
que se emancipam (Freire, 1992).
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A.4) Concepo Crtico-Emancipadora e Didtica Comunicativa enfatiza a
possibilidade de ensinar o desporto pela transformao didtico-
pedaggica, tornando o ensino escolar como um momento em que
crianas e jovens fazem elevar a competncia crtica e emancipada; uma
educao mais emancipadora que afaste as imagens negativas da tradio
autoritria e domesticada (instrumentalizao tcnica) da Educao
Fsica. A emancipao neste envolvimento entendida como um processo
contnuo de libertao do aluno das condies limitadoras das suas
capacidades racionais crticas e at mesmo do seu agir no contexto
sociocultural desportivo. O conceito crtico , nesse caso, entendido como
a capacidade de questionar e analisar as condies e a complexidade de
diferentes realidades de forma fundamentada pelo agir comunicativo,
questionador, argumentativo, autoavaliativo (Kunz, 1996).
A.5) Concepo Crtico-Superadora tem como fundamento o discurso
poltico-pedaggico, convocando questes como a justia social, o poder,
interesse e contestao crtica luz da dimenso social (realidade dos
homens). A Educao Fsica, nesse contexto, vista como uma disciplina
que trata o jogo, a ginstica, o desporto, a capoeira e a dana como
conhecimentos da cultura corporal do movimento. mais do que
transferir e repetir conhecimentos, essa disciplina cria a possibilidade
de sentido crtico (constatar, interpretar, compreender) desses
conhecimentos luz da histria e do bem social (sua conquista); tem
um sentido poltico de participao e transformao forte (Soares et al.,
1992).
A.6) Concepo Desenvolvimentista tem como meio e fim principal da
Educao Fsica o movimento. Toma como referncia os ensinamentos
do crescimento fsico, fisiolgico, motor, cognitivo, afetivo e social. Tem
como olhar pedaggico-didtico a aprendizagem do movimento, a
aprendizagem por meio do movimento e a aprendizagem sobre o
movimento (Tani, 1998). Esta concepo defende o maior estmulo
(diversidade e complexidade de movimentos) para que as habilidades
motoras sejam alcanadas.
A.7) Concepo da Educao Fsica Plural encara o movimento humano
enquanto tcnica corporal construda culturalmente e definida pelas
caratersticas de determinado grupo social. Considera todo gesto como
uma tcnica corporal por ser uma tcnica cultural. A Educao Fsica
escolar deve ter como tarefa ofertar vrios sentidos (pluralidade de aes)
motores, abrangendo todos os alunos, seja qual for a sua condio alto,
baixo, magro, obeso, menos hbil, menina (Daolio, 1996). A dimenso
eficcia, rendimento, certo ou errado no tida em considerao.
B) Concepes no preditivas
B.1) Concepo Humanista situa-se no plano da formao integral. As
atividades propostas (jogo, dana, desporto, ginstica, etc.) constituem-
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se como meios de formao integral, e no como fim. O professor um
orientador de aprendizagem, cabendo a ele a promoo do crescimento
pessoal e social (crtica, participao, cidadania) dos alunos. As atividades
so selecionadas pelo professor e pelos alunos a partir dos seus interesses
e necessidades (Oliveira, 1985).
B.2) Concepo Psicomotricista utiliza a atividade ldica e o jogo como
impulsionadores dos processos de desenvolvimento e aprendizagem.
Explora as condutas motoras: lateralidade, coordenao, equilbrio,
percepo, histria motora, bem como o jogo e seus significados.
Aproxima a histria da psicomotricidade associada s condutas
exploratrias e espontneas das crianas. A ideia de assimilao e a de
acomodao esto presentes, assim como a de sujeito interno e externo
(Le Boulch, 1986).
B.3) Concepo Sistmica nela, a Educao Fsica concebida como um
sistema adaptativo, complexo, hierrquico e aberto (Betti, 1991, p.
134). O autor destaca que o carter aberto do sistema se manifesta na
influncia recebida do nvel macrossocial por meio da poltica educacional
e de outras foras sociais que possuem interesse pela Educao Fsica,
com mais evidncia o sistema militar e o esportivo. A Educao Fsica
deve proporcionar uma vivncia corporal na dimenso experincia da
cultura do movimento. Defende a no excluso e a estimulao de
diversidade de atividades pela partilha e transformao das formas
culturais da atividade fsica jogo, desporto, dana, ginstica. Enfatiza
a importncia de conduzir o aluno na descoberta dos motivos da prtica
de sua atividade fsica como forma de cultura e cidadania (Betti, 1994).
A Educao Fsica: um sentido comum que mostra uma identidade universal
Perante as diversas concepes apresentadas, somos impelidos a perguntar:
Afinal, o que a Educao Fsica?
Pergunta to simples e ao mesmo tempo to complexa. Simples na sua
essncia, complexa na sua interpretao (nossas interpretaes 10 concepes no
Brasil e 6 na Europa e aquilo que h de vir). Peguemos na simples peguemos na
essncia.
A Educao Fsica antes e mais do campo ontolgico/metafsico, essa sua
essncia.
Para desconstruirmos essa constatao ontolgica/metafsica, colocamos duas
questes, tambm ontolgicas/metafsicas:
A Educao Fsica existe? Sim, existe. Todos ns, como profissionais e
espritos de misso, mostramos e desenvolvemos as propriedades dela.
Como sabemos que ela existe? Ela existe porque h um ser material (corpo)
e espiritual o homem que vai mostrar as propriedades da Educao Fsica (por
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exemplo, de movimento), e, por outro lado, elas vo ajudar o mesmo homem a ser
mais a ir para diante.
Assim, de forma simples, podemos dizer que a Educao Fsica um conjunto
de propriedades (no sentido de propriedade/qualidade) que fazem parte do universo
e do homem este ltimo, pelo pensamento e pelo movimento (corpo), d sentido
e significado a essas propriedades.
A Educao Fsica constitui-se assim como palavra ela essncia,
propriedade(s), manifestao e possibilidade.
Nesse enfoque, a Educao Fsica antes de ser sociolgica, antropolgica,
poltica, ideolgica, biolgica, fsica, qumica, mecnica, cientfica/epistemolgica,
matemtica, nmero faz parte () do campo ontolgico/metafsico que quer fazer
histria individual e coletiva. aqui que, em nosso entender, a Educao Fsica se
legitima e encontra a sua identidade.
Ela universal e, por isso, seu cho se encontra na filosofia (que se preocupa
com os universais), e no em quaisquer das concepes de Educao Fsica campos
parcelares. Com isso, no queremos fazer crtica s vrias concepes de Educao
Fsica, pelo contrrio, todas elas contribuem de uma forma ou de outra para dar
visibilidade e mostrar sua essncia.
H uma ideia generalizada de que a Educao Fsica est em crise (crise de identidade)
Crise pela existncia de inmeras concepes de Educao Fsica, que chamam
a si mtodos e objetos de interveno pedaggica, e de pesquisa muito particulares
levando a uma disperso e a lutas de legitimao que parecem procurar
exclusividades.
Crise porque o modelo desportivo e a pesquisa predominantemente positivista,
quer na formao quer na profisso (escola), parece continuar a ser dominante, e
que pode tudo ou quase tudo.
Crise porque os modelos pedaggico-didticos continuam presos a um a priori,
materializados em currculos, modelos, programas rgidos. A to falada didtica da
relao, da configurao, da interao e do contexto parece no existir e se existe
talvez no numa forma desejvel.
Crise pela discrepncia entre o mundo pensado e o mundo vivido. De um lado
esto alguns estudiosos com argumentos tericos numa crtica crtica forte (palavra/
tericos) perante a Educao Fsica , do outro lado, os prticos preocupados com a
visibilidade numrica da sua ao e pesquisa, por exemplo, o excesso de nmeros
pesquisa/artigos de cariz positivista.
Crise pela falta de consenso sobre os caminhos epistemolgicos a seguir. De
um lado, os positivistas lgicos (com seu excessivo rigor metodolgico e com grande
apetite pela generalizao), do outro, o sentido mais qualitativo, fenomenolgico,
hermenutico, linguagem que, perante uma realidade complexa, dinmica,
multidimensional, parece defender o ousar metodologicamente. Qual o valor de cada
um desses caminhos?
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Poderamos chamar outras realidades que mostram a (eventual) crise, mas a
questo que gostaramos de colocar : Elas so as maiores responsveis pela crise?
Em nosso entendimento, no. No cremos que a crise seja de responsabilidade
exclusiva dessas realidades. A existir uma crise, ela est assente numa crise primeira,
numa de origem: a crise ontolgica crise da interioridade. A crise ser o resultado
de uma ausncia de conscincia consciente sobre os trs eixos que estruturam o
sentido ontolgico e metafsico da Educao Fsica. So esses eixos que mostram as
propriedades, as qualidades as palavras da Educao Fsica: Que eixos so esses?
Os eixos que mostram as propriedades/palavras da Educao Fsica
1 eixo A ideia de homem-todo: esse homem-todo j nos tinha sido
transmitido pela herana helnica. Ele o sensvel, o inteligvel, o imanente e o
transcendente, e s existe porque h corpo e movimento espera que o impulsione
para um fim, bom fim, fim perfectvel. A Educao Fsica para ser ela ter,
necessariamente, que convocar o homem-todo.
2 eixo As propriedades (palavras) estruturantes da Educao Fsica: brincar,
jogar, competir, novos/antigos (ideia de histria) movimentos e novas/antigas
formas de pensamento e ao so as palavras, as essncias, as unidades de sentido,
as existncias, os princpios fundadores e intemporais. Essas so as palavras que
mostram e dizem a Educao Fsica, a qual, para ser ela, ter necessariamente que
convocar o brincar, o jogar, o competir e os novos movimentos/novas formas de
pensamento e ao. Os profissionais da Educao Fsica conhecem muito bem essas
palavras/propriedades, contudo, parece que elas se confundem na teoria e na prtica
parece existir uma dificuldade em trabalhar, em diferenciar pedagogicamente,
conforme os contextos, as necessidades e as pessoas envolvidas. Por outro lado, a
formao desses profissionais (graduao, formao continuada e especializada)
parece no fazer um esclarecimento claro e preciso desses sentidos, dessas essncias.
Apesar de essas essncias serem trabalhadas, percebidas, pesquisadas, elas no se
expressam de acordo com o seu real valor.
3 eixo A cultura e a axiologia: a Educao Fsica para ser ela ter,
necessariamente, que convocar a cultura e as questes axiolgicas.
A Educao Fsica e seus eixos (propriedades, palavras) desenvolvimento
Analisemos com mais cuidado cada um dos eixos (propriedades, palavras).
1 eixo A ideia de homem-todo
Ele um ser sensvel, inteligvel, imanente e transcendente. do campo da
metafsica realista, que na cultura ocidental tem Parmnides, Plato e Aristteles
como grandes precursores (Morente, 1980). s perguntas da metafsica realista, vo
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surgir respostas realistas: Quem existe? O que existe? Existem as coisas, o mundo
das coisas e o homem entre elas. As coisas, os seres, o homem, as substncias tm
inteligibilidade, e podemos conhecer o mundo das coisas pelo estabelecimento de
conceitos e propriedades. A inteligibilidade das coisas mesmas o postulado essencial
do realismo. Mas o homem tem tambm outra grande fora o seu idealismo
(metafsica idealista), pela capacidade de convocar a utopia, o mito, o simblico e o
metafrico.
Nesse sentido, o homem-todo do campo realista e idealista. A Educao
Fsica tambm o , pois as propriedades so suas e do prprio homem na realidade
e na mente.
2 eixo As propriedades/palavras intrnsecas/ntimas da Educao Fsica
Analisemos cada uma das propriedades/palavras.
A 1 propriedade/palavra O brincar
O brincar o incio. A criana brinca, o adulto brinca, os animais brincam: o
co, o gato, os pssaros, etc. O brincar contm a raiz, a potncia, a luz inicial. Contm
uma dimenso pr-reflexiva, estruturando-se como fundao, arqutipo,
recolhimento. Estamos aqui perante a ideia de anncio, de a priori, do amoroso, do
sensvel, do sonho acordado e, se quisermos, de uma certa forma de poesia. O brincar
da ordem do movimento quente. Esta a primeira propriedade que fenomenolgica
e existencialista coisa da interioridade primeira e profunda. a nossa ligao com
o divino.
A 2 propriedade/palavra O jogar
O jogar o meio. O jogo s existe porque h uma palavra mgica que a razo
fez nascer: regra. Ele uma forma de organizar o que j existe (brincar). um modo
de dar ordem, sistematizar, mas tambm criar o novo novos movimentos, novos
pensamentos. S o homem joga pensando na racionalidade humana; mas a natureza
tambm joga pensando numa racionalidade da natureza. O jogo coloca em marcha
aquilo que j aconteceu, dando-lhe ordem com a regra e pela regra. O homem
precisa de ordem.
A 3 propriedade/palavra O competir, a competio
A competio emerge como mola de impulso. Depois de ultrapassar (faz
parte da nossa massa) a ideia de competir para sobreviver, ter poder, territrio,
alimento, reproduo os animais fazem isso , a humanidade descobriu na
competio/desporto a oportunidade de ser mais real, simblico e metafrico.
nessa ideia de competio que encontramos palavras (relacionadas ao) como:
trabalho, superao, treino, esforo, rendimento, ir mais alm.
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uma Educao Fsica que mostra o desporto pluralidade desportiva (e o
desporto escolar). Uma Educao Fsica do rendimento, da competio, do resultado,
dos melhores que devem ser cada um e, por isso, os piores tambm esto ali.
Um desporto com forte sentido educativo e pedaggico. Educao no, para e pelo
desporto. Um modelo de educao desportiva no sentido de todos e para todos.
A 4 propriedade/palavra Os novos/antigos (ideia de histria)
movimentos e novas formas de pensamento e ao
a Educao Fsica das atividades em espaos modernos e na natureza (ar,
terra, gua). Traduz um certo eterno retorno do homem natureza, ao primeiro
locus de felicidade, primeira esttica, mas tambm a Educao Fsica do homem
na (sua) modernidade: turismo, lazer, sade, danas, artes, lutas, treino, mercado,
mdia, trabalho, bem-estar, fitness, aventura, risco, recreao, tenso, expresso,
cosmtico, novas interpretaes da linguagem, da comunicao, da experincia.
uma Educao Fsica que convoca outras formas de interveno, assim como outras
reas do ser, do saber e do fazer humano.
Todas essas propriedades tm quadros tericos, prticos, histricos, sociais,
de pesquisa, pedaggicos, didticos, prprios, mas tambm canais de frtil
comunicao (fluxo) entre elas. Por outro lado, todas elas esto edificadas em dois
pilares que funcionam como mola de impulso: a cultura e a axiologia.
3 eixo A cultura e a axiologia
A cultura
Muitas reas do conhecimento abordam a ideia de cultura. Identificamo-nos
aqui com o olhar de um grande pensador portugus, Ferreira Patrcio (2009), o qual
destaca que a cultura aquilo que o homem acrescenta natureza (sua natureza
ontolgica; natureza/natureza ecolgica) em virtude da sua atividade criadora e
transformadora.
A cultura eleva-nos acima da nossa condio animal e torna-nos mais
completos e inovadores, mais largos, profundos, mais leves, ricos e desejavelmente
melhores no necessariamente melhores. A cultura um caminho de excelncia
para atingir a liberdade.
Um homem culto tem apontado a si duas setas: uma para a razo e outra para
o corao, que far dele um sbio. No entanto, tambm gostaramos de ressaltar
que existe cultura que pode no ser boa, como a que no promove ideais de
humanizao esttica/tica.
A Educao Fsica encontra na cultura (e vice-versa) um campo frtil para ser
mais tender para a sabedoria.
A axiologia
Existem vrias taxonomias sobre os valores da religio, da f, da
racionalidade, da cultura, do ontolgico (este talvez o grande valor).
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Identificamo-nos neste contexto com a anlise feita por Ricoeur (1990; 2000)
sobre a ideia de moral e tica.
A moral corresponde ao anterior. a moral pensada, a institucionalizao de
cdigos, as normas jurdicas so os mnimos, o deve ser.
A tica corresponde ao posterior, pela colocao em prtica das normas, dos
cdigos, das leis da moral vivida. Quando estamos no campo da moral vivida,
estamos no campo da tica so os mximos, o da ao.
Refere-se tambm ideia de novas circunstncias aspecto importante para
esta anlise. Podero existir novas circunstncias que permitem uma mudana do
quadro moral e tico sobretudo tico (ao). No uma mudana sumria a servio
de interesses pessoais, grupais ou ideolgicos, como parece demonstrar o
individualismo, o niilismo ou hedonismo deste tempo ps-moderno com o slogan
relativista, relativismo moral (coisas da exterioridade), mas uma mudana que tem
como bssola o maior valor, o ontolgico (presente em todos os homens ditos
normais). Santo Agostinho j nos havia dado essa pista com a ideia de chama interior
que habita em ns, mas foi Kant ([s. d.]; 1998) que melhor a demonstrou ao referir
que duas coisas atormentam meu esprito os cus grandiosos e infinitos sobre
mim e a lei moral dentro de mim. essa lei moral que habita em ns, que todos
os dias nos julga e nos recomenda a boa ao (constante apelo tico) o bem, o bom
e o belo, trilogia que vai estruturar uma esttica.
A Educao Fsica, tendo como distintivo mximo a ao/boa ao, tem em si
um estilo privilegiado para desenvolver o apelo tico, o qual convoca sistematicamente:
Estilo racional: julgar o que se faz, pensar sobre a ao.
Ressonncia afetiva: pela partilha de emoes, afetos, poesia, etc.
Estilo relacional: pelo sentido comum e comunitrio: comunidades
altrustas, alteridade, pertena, valorizao, ateno, cuidado. A tica
relacional torna as pessoas melhores.
Estilo ontolgico: ser em si, o ser para si, ser experincia, intencionalidade,
vivncia (imanncia, transcendncia).
Estilo ecolgico: eu, comunidade, natureza.
Estilo ntimo: a passagem da potncia ao, numa intimidade de cariz
humanista, de felicidade total e, por isso, radical.
A Educao Fsica encontra na axiologia uma bssola orientadora para ser
mais tico, mais nobre, ter carter.
Em jeito de uma sntese conclusiva
Este ensaio apenas uma pequena reflexo feita com liberdade de esprito,
razo e corao. Tenta mostrar que a Educao Fsica tem uma essncia primeira
(ontolgica/metafsica) que do campo do universal, tem uma identidade universal
a ponto de poder estar em todos os nveis do pensamento e da ao humana do
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micro, passando pelo meso e terminando no macro (megaeventos). do campo
realista.
Mas a Educao Fsica tem tambm outra grande fora o seu idealismo, pela
capacidade de convocar o sentido metafrico espiritualizado, por exemplo, a ideia
de que, quando um homem se move, toda a humanidade que se move.
O bom incio, ir para a frente, ir para diante; o bom fim, sem fim. A Educao
Fsica isto: um bem maior coisa ontolgica, excelncia educativa, e constitui-
se como patrimnio e oportunidade humana. palavra fundadora e fecunda, que
tem e transporta futuro.
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Antnio Camilo Cunha professor doutor do Instituto de Educao da
Universidade do Minho, Centro de Investigao em Estudos da Criana (Ciec),
Portugal.
Recebido em 22 de outubro de 2012.
Aprovado em 18 de fevereiro de 2013.
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