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DOUARD

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Ministrio da Educao | Fundao Joaquim Nabuco Coordenao executiva Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari Comisso tcnica Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente) Antonio Carlos Caruso Ronca, Atade Alves, Carmen Lcia Bueno Valle, Clio da Cunha, Jane Cristina da Silva, Jos Carlos Wanderley Dias de Freitas, Justina Iva de Arajo Silva, Lcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fvero Reviso de contedo Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Clio da Cunha, Jder de Medeiros Britto, Jos Eustachio Romo, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia Secretaria executiva Ana Elizabete Negreiros Barroso Conceio Silva

Alceu Amoroso Lima | Almeida Jnior | Ansio Teixeira Aparecida Joly Gouveia | Armanda lvaro Alberto | Azeredo Coutinho Bertha Lutz | Ceclia Meireles | Celso Suckow da Fonseca | Darcy Ribeiro Durmeval Trigueiro Mendes | Fernando de Azevedo | Florestan Fernandes Frota Pessoa | Gilberto Freyre | Gustavo Capanema | Heitor Villa-Lobos Helena Antipoff | Humberto Mauro | Jos Mrio Pires Azanha Julio de Mesquita Filho | Loureno Filho | Manoel Bomfim Manuel da Nbrega | Nsia Floresta | Paschoal Lemme | Paulo Freire Roquette-Pinto | Rui Barbosa | Sampaio Dria | Valnir Chagas

Alfred Binet | Andrs Bello Anton Makarenko | Antonio Gramsci Bogdan Suchodolski | Carl Rogers | Clestin Freinet Domingo Sarmiento | douard Claparde | mile Durkheim Frederic Skinner | Friedrich Frbel | Friedrich Hegel Georg Kerschensteiner | Henri Wallon | Ivan Illich Jan Amos Comnio | Jean Piaget | Jean-Jacques Rousseau Jean-Ovide Decroly | Johann Herbart Johann Pestalozzi | John Dewey | Jos Mart | Lev Vygotsky Maria Montessori | Ortega y Gasset Pedro Varela | Roger Cousinet | Sigmund Freud

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CLAPARDEDaniel HamelineTraduo e organizao Elaine Terezinha Dal Mas Dias Izabel Petraglia

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ISBN 978-85-7019-561-6 2010 Coleo Educadores MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbito do Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de melhoria da equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicao no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites. A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia, estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98. Editora Massangana Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540 www.fundaj.gov.br Coleo Educadores Edio-geral Sidney Rocha Coordenao editorial Selma Corra Assessoria editorial Antonio Laurentino Patrcia Lima Reviso Sygma Comunicao Reviso tcnica Denise Gisele de Britto Damasco Ilustraes Miguel Falco Foi feito depsito legal Impresso no Brasil Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca) Hameline, Daniel. douard Claparde / Daniel Hameline; Izabel Petraglia, Elaine T. Dalmas Dias (orgs.). Recife: Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 148 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-561-6 1. Claparde, douard, 1873-1940. 2. Educao Pensadores Histria. I. Petraglia, Izabel. II. Dias, Elaine T. Dalmas. III. Ttulo. CDU 37

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SUMRIO

Apresentao, por Fernando Haddad, 7 Ensaio, por Daniel Hameline, 11 Um movimento heterogneo e controverso, 12 Cidado de Genebra, 14 Psiclogo ou moralista?, 15 A obra e o trabalho, 16 A obsesso do funcional, 18 O interesse, noo pedaggica central, 22 O rgido e o brando, 24 Trs questes fundamentais, 25 Claparde: funcionalista da Escola Nova, por Izabel Petraglia e Elaine T. Dal Mas Dias, 31 Textos selecionados, 37 Cronologia, 133 Bibliografia, 137 Obras de Claparde, 137 Obras sobre Claparde, 144 Obras de Claparde em portugus, 145 Obras sobre Claparde em portugus, 146

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APRESENTAO

O propsito de organizar uma coleo de livros sobre educadores e pensadores da educao surgiu da necessidade de se colocar disposio dos professores e dirigentes da educao de todo o pas obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram alguns dos principais expoentes da histria educacional, nos planos nacional e internacional. A disseminao de conhecimentos nessa rea, seguida de debates pblicos, constitui passo importante para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da prtica pedaggica em nosso pas. Para concretizar esse propsito, o Ministrio da Educao instituiu Comisso Tcnica em 2006, composta por representantes do MEC, de instituies educacionais, de universidades e da Unesco que, aps longas reunies, chegou a uma lista de trinta brasileiros e trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critrios o reconhecimento histrico e o alcance de suas reflexes e contribuies para o avano da educao. No plano internacional, optou-se por aproveitar a coleo Penseurs de lducation, organizada pelo International Bureau of Education (IBE) da Unesco em Genebra, que rene alguns dos maiores pensadores da educao de todos os tempos e culturas. Para garantir o xito e a qualidade deste ambicioso projeto editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo Freire e de diversas universidades, em condies de cumprir os objetivos previstos pelo projeto.7

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Ao se iniciar a publicao da Coleo Educadores*, o MEC, em parceria com a Unesco e a Fundao Joaquim Nabuco, favorece o aprofundamento das polticas educacionais no Brasil, como tambm contribui para a unio indissocivel entre a teoria e a prtica, que o de que mais necessitamos nestes tempos de transio para cenrios mais promissores. importante sublinhar que o lanamento desta Coleo coincide com o 80 aniversrio de criao do Ministrio da Educao e sugere reflexes oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em novembro de 1930, a educao brasileira vivia um clima de esperanas e expectativas alentadoras em decorrncia das mudanas que se operavam nos campos poltico, econmico e cultural. A divulgao do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundao, em 1934, da Universidade de So Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em 1935, so alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos to bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros. Todavia, a imposio ao pas da Constituio de 1937 e do Estado Novo, haveria de interromper por vrios anos a luta auspiciosa do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do sculo passado, que s seria retomada com a redemocratizao do pas, em 1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possibilitaram alguns avanos definitivos como as vrias campanhas educacionais nos anos 1950, a criao da Capes e do CNPq e a aprovao, aps muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no comeo da dcada de 1960. No entanto, as grandes esperanas e aspiraes retrabalhadas e reavivadas nessa fase e to bem sintetizadas pelo Manifesto dos Educadores de 1959, tambm redigido por Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decnios.

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A relao completa dos educadores que integram a coleo encontra-se no incio deste volume.

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Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estgio da educao brasileira representa uma retomada dos ideais dos manifestos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o tempo presente. Estou certo de que o lanamento, em 2007, do Plano de Desenvolvimento da Educao (PDE), como mecanismo de estado para a implementao do Plano Nacional da Educao comeou a resgatar muitos dos objetivos da poltica educacional presentes em ambos os manifestos. Acredito que no ser demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja reedio consta da presente Coleo, juntamente com o Manifesto de 1959, de impressionante atualidade: Na hierarquia dos problemas de uma nao, nenhum sobreleva em importncia, ao da educao. Esse lema inspira e d foras ao movimento de ideias e de aes a que hoje assistimos em todo o pas para fazer da educao uma prioridade de estado.

Fernando Haddad Ministro de Estado da Educao

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DOUARD CLAPARDE (1873-1940)1Daniel Hameline2

Para dar crdito breve resenha que dedica a Edouard Claparde o Thesaurus da nova edio da Enciclopaedia universalis (1985), a obra do psiclogo e pedagogo genebrino est hoje bastante esquecida, especialmente quando temos que reconhecer que sua influncia pessoal foi, em sua poca, bastante grande. Confessemos que, embora o elogio seja corts, no se percebe nele um grande entusiasmo. Contudo a publicao na Itlia, entre 1981 e 1984, de sete volumes escritos e comentados de textos inditos de Claparde, em edio de Carlo Trombetta e Sante Bucci; a elaborao de uma tese de graduao na Frana (Lyon, 1982); a celebrao, em Roma (1983) e em Genebra (1984), de dois simpsios sobre a atualidade desta obra, no deveram nos levar corrigir um pouco esta anlise?31 Este perfil foi publicado em Perspectives: revue trimestrielle dducation compare. Paris, Unesco: Escritrio Internacional de Educao, v. 24, n. 3-4, p. 808-821, 1994 (91/ 92). 2 Daniel Hameline (Sua): Facudade de Psicologia e Cincias da Educao, da Universidade de Genebra. 3 Trombetta, C.. Inediti psicologici. Roma: Bulzoni Ed., 1981, 1982. 6 v. Trombetta, C. Inediti pedagogici: saggio, introduzioni e note de Sante Bucci. Perugia: Universita degli Studi, 1984. Rogowski, S. La fonction de lducation dans la pense dEdouard Claparde. 1982. Thse (Doctorat) Universit de Lyon II. ACTES des Colloques de Rome (1983) et de Genve (1984). Studi di Psicologia de lEducazione, n. 3, nmero especial, 1984. Cabe destacar tambm trs manifestaes menos recentes: Centenaire de la naissance dEdouard Claparde. Genve, Fpse, Bulletin Socit Binet-Simon, Genve, Fpse, n. 73, p. 242-304, 1973; TROIS pionniers de lducation nouvelle: E. Claparde, H. Wallon, H. Bouchet. Lyon, Bulletin Socit Binet-Simon, n. 73, p. 242-304, 1973. Comite Franais pour Lducation Prescolaire. Edouard Claparde: journe nationale de lomep. Paris: Comit franais pour lducation prscolaire, 1976.

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Todavia, ns nos sentiramos tentados a dizer que a glria paradoxal de Claparde reside no fato de ter sido esquecido, na medida que as ideias pelas quais ele lutou figuram hoje entre os lugares comuns da cultura pedaggica, ao ponto de j no ser necessrio atribu-las a um determinado autor. Mas este anonimato se deve, na mesma medida, ao fato de que as ideias educativas de Claparde, mais que a elaborao de um pensamento original, constituam o reflexo de uma poca cujos equvocos se estendem at a nossa. necessrio especificar o papel e a contribuio singular de Claparde no movimento que se convencionou designar com o termo eminentemente vago de educao nova.Um movimento heterogneo e controverso

, efetivamente, nesta aparente Babel pedaggica onde viro a inscrever-se as iniciativas dos genebrinos e, em particular, a de Edouard Claparde quando faz sua clamorosa entrada no movimento com a publicao, em 1905, de seu livro, que ao longo das reedies chegara a converter-se em um imponente tratado, Psychologie de lenfant et pdagogie exprimentale. A partir desta obra, o tom claparediano fica estabelecido: um militantismo crtico contra as prticas escolares recebidas, um apelo cincia e sua objetividade para inaugurar novas prticas. Mas os adversrios, por sua vez, no deixam de ir ao seu encontro desde o incio. Seu squito, tambm heterclito, acompanhar fielmente as sucessivas geraes de entusiastas. Alis, entre os adeptos do movimento, constituido por uma Liga Internacional na ocasio do clebre Congreso de Calais de 1921, sero muitos a expressar crticas e reservas. E Claparde no ser o ltimo. Grande parte de sua autoridade sobre o movimento se dever sua polmica animosidade contra a escola tradicional, sua excepcional capacidade para ordenar o entorno ideolgico dos conceitos e torn-los funcionais: seu clebre conceito, de 1923, da noo

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da criana ativa, retomado em 1931 em Lducation fonctionnelle, constitui sem dvida, o exemplo mais notvel do que afirmamos. Seria possvel pensar, durante o grande salto dado pela educao escolar depois da Segunda Guerra Mundial e, em particular, durante as grandes campanhas efetuadas pela Unesco nas dcadas de cinquenta e sessenta, que os temas educativos apreciados por Claparde haviam se tornado aquisies definitivas e insuperveis da educao escolar moderna. Ora, conveniente saber que, durante a dcada de oitenta, assistimos a um questionamento renovado, vigoroso, convergente e seguro das concepes das quais Claparde foi um dos principais defensores. Analisam-se estas concepes, no tanto como resultado de uma abordagem racional e razovel do fenmeno educativo, mas sim como a persistncia de uma ideologia mistificadora a partir da qual o mais certo efeito o de conduzir as polticas escolares a impasses. Obras como a de Neil Postman nos Estados Unidos ou a de Jean-Claude Milner na Frana4 expressam, cada uma a seu modo, este questionamento radical. Questionamento este que assume ares panfletrios no texto de Carlos Lerena, quando evidencia as convergncias que se expressam atravs do discurso e iniciativas de grandes organizaes internacionais:A produo do homem contemporneo se realizou no interior de um templo positivista e totalitrio, em cujo plpito os pregadores mais eficazes tm sido os brandos e os rousseaunianos, e no os rgidos e os comtianos. Melhor dizendo, o sermo mais eficaz tem sido o dos tericos da infncia e da puerilidade, a pregao dos evangelizadores do psicologismo e do culto da problemtica das relaes interpessoais [...], o sermo do socratismo, da autoeducao [...] e, no extremo oposto, o antissermo da bomba desativada da desescolarizao e assim sucessivamente, at a ladainha tcnica da educao permanente da Unesco. Tudo isso nos leva a crer que foi Rousseau quem contribuiu para a construo deste templo positivista e comtiano; Rousseau, cujo caminho sempre retorna a Kant.4

Milner, J. C. De lcole. Paris: Editions du Seuil, 1983.

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Essa severa crtica no deixa de dar o que pensar, mesmo que sua virulncia diminua sua credibilidade num primeiro olhar. E o rodeio contemporneo de Claparde adquire, por si s, uma singular atualidade. Pois, em certo sentido, foi na prolongao de um enfoque positivista que se imps o princpio de uma construo cientfica das coisas humanas. Porm, Rousseau , efetivamente, a quem se recorre, como modelo, na hora de fundar o Instituto das Cincias da Educao que assegurar a reputao mundial de Genebra; Rousseau, a quem se considera precursor de sua prpria concepo funcional da infncia5. Terico efetivo da infncia, Claparde se encontra entre os paladinos de uma pedagogia da puerilidade? Defensor do primado da psicologia, foi o pregador fantico do evangelho psicologista? representante da revoluo copernicana que faz da criana ativa o centro em torno do qual se constri o processo ensinar-aprender?6Cidado de Genebra

Oriundo de uma linhagem de pastores languedocianos estabelecidos em Genebra depois da revogao do Edito de Nantes (1685), Edouard Claparde , definitivamente, o herdeiro da Genebra culta mais que da Genebra religiosa. Calvinista por tradio, seu protestantismo est mais prximo das correntes liberais que da ortodoxia eclesistica ou o do ressurgimento mstico. pleno, sobretudo, de esprito de iniciativa e de independncia, consubstanciado em um individualismo empreendedor, rico em mltiplas solidariedades valiosas e cultivadas. Graas admirao que dedica a outro douard Claparde, seu tio, zologo prestigiado e darwinista convicto, Genebra5 6

Ver Lducation fonctionnelle. Neuchtel: Delachaux; Paris: Niestl, 1931. pp. 97-136.

Georges Snyders depois de mais de vinte anos, fez a crtica, da perspectiva marxista, das correntes nascidas da Educao Nova. Veja a respeito: Snyders, G. Pdagogie progressiste. Paris: Presses Universitaires de France, 1971; Snyders, G. O vont les pdagogies non directives? Paris: Presses Universitaires de France, 1973.

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culta que Claparde se vincula. Homens como Charles Bonnet, os irmos de Candolle, Carl Vogt e seu tio Claparde instauraram e ancoraram nela uma tradio de investigao experimental, de rigor intelectual, de confiana nas cincias da natureza e, acima de tudo, na prpria natureza, de franqueza de expresso e liberdade de compromisso. Estes sbios so tambm cidados notveis. Porm seu status de homens da cincia lhes permite escapar dos entraves mundanos de uma cidade que, apesar de sua vocao internacional e seu cosmopolitismo, no deixa de ser, em muitos aspetos, uma cidade provinciana que se retrai, em seguida, diante das fachadas de seus convencionalismos. Claparde no tem por essa Genebra grande estima. Seu primeiro texto, em 1892, j foi uma crtica, demasiadamente moderada, do ensino recebido no Collge de Genve. Embora estas consideraes juvenis sobre a educao, j anunciem o pedagogo, so mais concernentes ao cidado. J se percebe a a singularidade do homem simpatizante das recm-chegadas cincias humanas. E, em 1898, voltamos a encontrar o cidado quando, a ttulo de trabalho de psicologia e de moral poltica, redige um Essai sur lopinion publique dans ses rapports avec la raison et la morale. S. Bucci7 comentou amplamente este texto indito de Claparde.Psiclogo ou moralista?

Mas atravs da psicologia (o ensaio de 1898 testemunha isso) que Claparde pensa promover a reforma da opinio pblica. Se refere, entre outros, a Gustave Le Bon e a seu clebre Psychologie des foules para criticar as incoerncias dramticas dos movimentos coletivos; no exita em transferir suas anlises para as classes favorecidas, s quais sua cultura deveria permitir escapar das inibi7

Trombetta, C. Inediti pedagogici: saggio, introduzioni e note de Sante Bucci. Perugia: Universita degli Studi, 1984. pp. 5-15. Pareceres muito sagazes sobre douard Claparde et son temps j haviam sido formulados por Alfred Berchtold, em Centenaire ddouard Claparde, op. cit., pp. 78-96.

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es, presses sociais enganosas, a preocupao com o que os outros dizem e a hipocrisia que as caraterizam e agravam sua responsabilidade perante questo social. A cincia neutra, proclamar o psiclogo Claparde insistentemente. Porm, como vrios cientificistas de seu tempo, est persuadido de que a aplicao da cincia s questes humanas constitui, no fim das contas, um progresso. E a melhora no se limita, a seus olhos, apenas a um maior conhecimento dos homens. Cabe escrever, com Carlo Trombetta8, que, em ltima anlise, Claparde d o passo em direo a uma tica da conduta social, entendida como a conduta do homem na sociedade. E cabe ressaltar, com todos os crticos de Claparde, como seu testamento espiritual, Morale et politique (1940), vem fechar o ciclo, o que significa que aps cinquenta anos persiste a mesma preocupao: a psicologia pode e deve ajudar a conceber uma sociedade na qual no se abra mo da integridade.A obra e o trabalho

Homem de cincia e militante, Claparde nos deixou uma obra escrita muito rica, que exerceu em sua poca uma influncia maior do que leva a crer a resenha citada no comeo. Mais de seiscentas publicaes entre 1892 e 1940, que surpreendem pela amplitude das preocupaes inteletuais, pelo enorme senso de compromisso, pela grandeza das exigncias morais e a variedade dos pblicos a que se dirigia um pensador seguro de suas convices. Claparde tem, evidentemente, uma abundante produo cientfica, nas revistas especializadas da poca, destinada a seus pares, porm sobre os assuntos mais diversos, ao ponto de se poder considerar a curiosidade cientfica um tanto caprichosa. No entanto, nele, curiosidade e abordagem metdica caminham constantemente juntas. Sendo assim, na psicologia, se permite abordar tudo:8

Trombetta, C. Inediti pedagogici, op. cit., v. 1, p. 45.

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sua arte a de fazer perguntas, arte eminentemente socrtica, no final das contas; no que se revela o pedagogo, tal como o descrevem seus alunos do Institut Rousseau. Todavia, Claparde , na mesma linha, de uma vasta e constante fonte de popularizao educativa destinada ao grande pblico por meio de mltiplos artigos ocasionais em semanrios ou na imprensa diria9. Claparde, enfim, est nos cursos, cujas notas preparatrias nos chegam atravs dos textos inditos publicados por Carlo Trombetta, testemunho de uma profunda erudio e dessa aptido altamente educativa de clarificar uma questo complexa tanto quanto de tornar problemtica uma questo aparentemente simples. No entanto, o cientista tambm um homem empreendedor. semelhana do americano John Dewey, a quem admira10, no concebe o ensino da psicologia pedaggica sem as instituies mnimas que permitam sua aplicao. Obviamente, ele no o nico a conceber o Instituto de Cincias da Educao que criar em 1912. Nem sequer o primeiro11. Porm, seu constante af apoiar a adequao da pedagogia aos ideais que ali se propagam e faz dele um verdadeiro laboratrio no qual teoria e prtica possam operar essa problemtica juno. Pierre Bovet, a quem Claparde recorre para dirigir o estabelecimento, relatou a aventura dos vinte primeiros anos desta escola superior que no queria ser como as outras12. Atravs do prisma da nostalgia, a aventura se revela comovedora, a Ilada ou Odisseia da nova pedagogia. Muitas coisas ficam por serem escritas. Uma certeza permanece: a obsti-

9 Estes artigos aparecem reunidos nas trs sries de Causeries psychologiques, Genebra, Naville, 1933, 1935 e 1937. 10

Claparde, E. Prface. In: Dewey, J. Lcole et lenfant. 7. ed. Neuchtel: Delachaux; Paris: Niestl, 1967. Em 1911, Maurice Millioud apresentou Faculdade de Letras de Lausanne um projeto no qual se inspiraro os genebrinos.

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Bovet, P. Vingt ans de vie, lInstitut Jean-Jacques Rousseau de 1912 1932. Neuchtel: Delachaux; Paris: Niestl, 1932.

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nao de Claparde frente a mltiplos entraves e speras oposies permitiu que esta histria comeasse e seguisse adiante. E esta mesma obstinao que encontramos em Claparde que a base operria da Internacional dos psiclogos, redator assduo at sua morte dos informes e das atas de seus congressos, fundador e diretor dos clebres Archives de psychologie. Tenta assim constituir a fauna cosmopolita e individualista, ou, ao contrrio, duvidosamente nacionalista, dos pesquisadores europeus em uma sociedade erudita internacional na qual a rivalidade se transforme em emulao, o conflito entre pessoas em confronto de ideias e a reteno cautelosa da informao em intercmbio aberto e cooperativo. Proclamado como cientificista sensato pela autonomia e a neutralidade moral da psicologia experimental que contribui para fundar, Claparde considera sua misso a de chamar a ateno dos pesquisadores sobre o carter fundamentalmente tico da atividade dos homens de cincia que antes citamos. Expressa uma tripla exigncia: a probidade intelectual na pesquisa; a responsabilidade do cientista na vida pblica; o compromisso coletivo dos homens de cincia contra a ameaa e o trgico retorno da barbrie, frente a qual no possivel, a seu ver, manter-se neutro. E se pode dizer, sem inteno de dramatizar a histria com alardes, que Claparde morreu em 1940 ao ver seus ideais agonizando.A obsesso do funcional

Estaramos, ento, dispostos a enunciar a contradio ao qual o pensamento claparediano teve de afrontar para fundar uma cincia positiva autnoma e ao mesmo tempo oferec-la como base de referncia para uma prtica do humano na qual suas mais valiosas convices se encontravam comprometidas? Ao assumir esta contradio, o pensamento de Claparde sobre a educao experimenta, por sua vez, a solidez e a fragilidade dos alicerces. A partir de 1911, Claparde assentou as bases de um pensamento em torno da educao que, at o ltimo momento, se18

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apresentaria como a aplicao prtica de uma antropologia biologista e funcionalista: o humano, para Claparde, , acima de tudo, uma realidade viva que funciona. E o nico recurso da educao , sem dvida alguma, o de coincidir com esse funcionamento, manter-se em harmonia com o mesmo, para se tornar, em vez deste sobrecarga artificial, pesado e ineficaz para milhares de crianas, a expresso natural de sua atividade e de seu desenvolvimento. Este funcionalismo o trao peculiar do pensamento claparediano sobre a educao, a chave de sua antropologia. Recorda-se, Claparde, em sua Autobiographie, que P. Bovet incorporou edio pstuma (1946) do Dveloppement mental. Adotar uma concepo funcional dos fenmenos psicolgicos consider-los, acima de tudo, do ponto de vista de sua funo na vida, do lugar que ocupa no conjunto do comportamento em um dado momento. Isto equivale a colocar a questo da sua utilidade. E Claparde prossegue: Depois de ter-me perguntado para que serve o sono, indaguei-me para que serve a infncia, para que serve a inteligncia, para que serve a vontade. Para que serve? Essa pergunta , aparentemente, trivial. Constatamos, para comear, que se assemelha preocupao utilitarista que domina os responsveis pelas decises polticas a partir de 1880, quando tm que investir em educao fundos cada vez mais considerveis e se perguntam, consequentemente, pela rentabilidade de tal investimento. Rentabilidade: Claparde no teme essa palavra. E estamos aqui j bem distantes da puerilidade e da terna idolatria da infncia. O rendimento no para ele um conceito pedaggico pejorativo. No campo do estudo dos indivduos, enxerga nele um componente essencial de toda aptido. Pois, esta ltima s se manifesta se for demandada por uma situao exterior que impe ao sujeito humano suas presses13. No mbito da13

Claparde, E. Comment diagnostiquer les aptitudes chez les coliers. Paris: Flammarion, 1923. p. 29 e seg.

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crtica social, Claparde recrimina esfecificamente a escola por no saber obter das inteligncias o melhor rendimento, desperdiando o capital intelectual das naes. Evidencia isto mostrando a divergncia que existe entre o xito escolar e a medida da inteligncia: as melhores inteligncias estagnam na escola, que est excessivamente adaptada maioria dos alunos, cuja inteligncia mediana. Claparde no se preocupa por parecer elitista, ao mesmo tempo que se orgulha pelos resultados obtidos na recuperao dos alunos menos dotados 14. Porm, esta acusao contra uma educao-desperdcio consequncia direta de sua prpria concepo da vida psquica. E tocante a este ponto, as duas grandes metforas claparedianas nos instruem perfeitamente. Robert Dottrens, que foi o primeiro professor nomeado pelo Institut Rousseau, cuja direo assumira posteriormente com Piaget, enxerga na tomada de deciso prise de position que abre a primeira edio de Psychologie de lenfant et pdagogie exprimentale o princpio de que todas as obras ulteriores sero, de certo modo, modulaes sucessivas: Que a pedagogia deve fundar-se no conhecimento da criana como a horticultura no das plantas parece ser uma verdade elementar. Entretanto, a mesma ignorada pela maior parte dos pedagogos e por quase todas as autoridades escolares15. E Carlo Trombetta, por poca de um curso sobre a Psychologie de lintrt, datado de 1904, destaca uma srie de metforas de relojoeiro que ele relaciona passagem da Association des ides (1903): Pegue um cronmetro, desmonte-o: encontrars nele engranagens por quase todas as partes. Quebre um s dente dessa engrenagem: seu relgio deixar de funcionar e assim ter perdido todo seu valor. Pode-se deduzir a partir disso que a engrenagem que faz a mquina andar? De modo algum: seu nico e verdadeiro motor a tenso14

Dottrens, R. Succs scolaire et intelligence. Journal de Genve, 21 mar. 1935; Trombetta, C. Causeries psychologiques., 3. ed. Genebra: Naville, 1937. pp. 10-15.

Claparde, E. Psychologie de lenfant et pdagogie exprimentale. 6.ed. Genve: Kundig; Paris: Fischbascher, 1916. p. 1.15

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da mola. A engrenagem tem um valor mecnico; a mola possui um valor dinmico, vital, poderamos dizer, assumindo o ponto de vista de nosso prprio cronmetro16. E j temos o cronmetro assimilado, finalmente, pela estrutura, dotado de um valor vital, sem dvida alguma metafrico, a partir do momento em que assumimos o ponto de vista do prprio cronmetro. Faamos agora a transposio ao terreno da educao e voltaremos a encontrar a revoluo copernicana que preconiza o clebre texto de 1919: A infncia tem uma significao biolgica (...). H que se estudar, portanto, as manifestaes naturais da criana e ajustar a elas a ao educativa. Os mtodos e os programas gravitando em torno da criana, e no a criana que gira ao redor de um programa imposto, sem poder contar com ele, tal a revoluo copernicana na qual o educador convidadeo a adentrar.17. Entre duas metforas e uma reviravolta, Claparde se encontra assim no centro da contradio terica que no tem mais soluo. Por um lado, o recurso metfora hortcola equivale, para ele, a invocar a natureza e seu funcionamento que de ordem vital. Mas, o que a vida? Um estudo cientfico dos fenmenos do ente vivo deve prescindir do vitalismo, resposta puramente verbal que conduz ao mistrio de uma virtude oculta de um princpio que escapa observao. O vitalismo no responde de maneira satisfatria nica pergunta que, segundo Claparde, pode interessar ao pedagogo, a questo psicolgica: Por que funciona dessa maneira? Ns o vemos, ento, remeter-se ao mecanismo e descrio das estruturas: como funciona? Todavia, esta descrio permite se dar conta das funes? No, responde Claparde, que insiste em perguntar para que serve?, negando-se a ver nesta obstinada pergunta a entrada na metafsica.16 17

Citado por Trombetta, C. Inediti psicologici, v.1, p. 34.

Claparde, E. Les nouvelles conceptions ducatives et leur vrification par lexprience. Scientia, v. 35, pp. 3-5, 1919.

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Nem mecanismo pois seria renunciar a surprender-se com um fenmeno como o desdobramento da infncia e a interpretar sua utilidade , nem vitalismo pois seria romancear a interpretao, a vida uma sucesso de aes diversas coordenadas que tm a funo de adaptar um organismo ao seu meio: a frmula de Herbert Spencer, citada por Bovet propsito de William James18. No entanto, como assinala Piaget, com sua contumaz sagacidade, os lugares comuns sobre os quais Claparde institui a psicologia e a educao funcionais so, sem dvida alguma, os de seu tempo. A antropologia evolucionista de Spencer fornece a noo central de utilidade adaptativa. O pragmatismo de James ou de Dewey mostra a gnese da conscincia como a histria dos reajustes sucessivos da ao s solicitaes do meio. Enfim, Claparde participa do que se poderia chamar de dinamogenismo, que compartilha, por exemplo, com Bergson: todo ser vivo e, especificamente a criana, dispe de uma capacidade motriz singular: A psicologia do sculo XX, comenta Piaget19, foi de sopeto e em todos as frentes uma afirmao e uma anlise da atividade (). Por toda parte se impe a ideia de que a vida do esprito uma realidade dinmica, a inteligncia uma atividade real e construtiva, a vontade e a personalidade criaes contnuas e irredutveis.O interesse, noo pedaggica central

, portanto, relativamente fcil compreender porque a noo de interesse, reformulada na perspetiva desta antropologia funcionalista, ocupa um lugar central na concepo psicopedaggica de Claparde. Ele no um ingnuo: compreendeu rapidamente o erro que havia cometido ao apoiar, nas primeiras edies de Psychologie de lenfant et pdagogie exprimentale (1905), a educao atraente. A partir de 1911,18

Bovet, P. William James psychologue, lintrt de son oeuvre pour les ducateurs. Neuchtel: Rossier et Grisel, 1910. p. 3. Claparde, E. Psychologie et pdagogie. Paris: Gonthier, 1969. p. 213.

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corrige sua colocao: sucessivamente falar de educao funcional20. Certamente, sua indignao perante o quadro dos alunos vtimas de tdio e desolao em um regime que vai contra a natureza, que esmaga a vida, mantm-se intacta. Mas, o interesse no se limita ao interessante. Claparde o entenderia melhor atravs da expresso coloquial Interesse-se... seno... quase em tom de ameaa, ou pelo menos, em tom de alerta: se o organismo no reage desta maneira, seu interesse ser prejudicado. Pois bem- encontra-se aqui o lugar comum que vincula Claparde a Jean-Jacques Rousseau a natureza conhece seu interesse, ela faz bem o que faz e melhor biloga que todos os pedagogos do mundo21. A natureza consequentemente, a criana em seu estado natural conhecem suas necessidades. Essas so em primeiro lugar: agir, construir, desenvolver-se atuando e construindo. O interesse da criana , antes de tudo, brincar. Claparde ser o primeiro a dar pleno alcance clebre teoria do suo Karl Groos sobre a brincadeira da criana. Para que serve a brincadeira?, pergunta o prosaico homem de cincia que Claparde pretende ser. A criana brinca porque encontra na brincadeira seu interesse e, a partir de ento, isso o interessa. Em suma, o funcionalismo claparediano aplicado educao uma espcie de cincia econmica em que se pode ver uma antecipao do enfoque sistmico contemporneo. No ecossistema de seu meio, o indivduo, portador do dinamismo de seu prprio crescimento, experimenta necessidades que o fazem voltar-se para o ambiente externo e se convertem em interesse, transformado este, por sua vez, em interesses evolutivos que os intercmbios com o meio tornam cada vez mais complexos. As consequncias dessa cincia econmica para a implementao da educao so, pelo menos em teoria, fceis de deduzir. A20 Claparde, E. La conception fonctionnelle de lducation. Bulletin de la socit libre pour ltude psychologique de lenfant. Paris, v. 11, p. 45 e seg. 1911. 21

Claparde, E. Psychologie de lenfant et pdagogie exprimentale, op. cit., p. 487.

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educao adaptao progressiva da qual o crescimento da criana seu motor. A infncia, em si, til. No se pode, portanto, queimar suas etapas. Se o interesse o motor da educao, esta no , por princpio, questo de castigo nem de recompensa, mas de adequao entre o que se tem que fazer e o sujeito que o faz: a disciplina est implcita. A escola deve ser ativa, laboratrio e no auditrio. O trabalho no pode, em hiptese alguma, ser insuportvel. A escola constitui um meio social vlido por si s e preparatrio para as realidades da vida adulta. Nela, o pedagogo , acima de tudo, um estimulador do interesse22. No difcil encontrar nesta lista os princpios da escola ativa, tal como Adolphe Ferrire ou Pierre Bovet os formularam ao mesmo tempo que Claparde e tal como os encontraremos tambm em Piaget. No entanto, o carter peculiar da contribuio de Claparde o rigor, que beira a rigidez , de sua elaborao dedutiva. Com Claparde assistimos, sem dvida alguma, construo terica de uma antropologia biolgica aplicada educao, embora, nas aplicaes prticas que extrai dela reconheamos perfeitamente a maioria dos slogans que pairam no ambiente da poca da Educao Nova.O rgido e o brando

A contribuio de Claparde cincia da educao seduz por sua lgica. Porm, no seria apenas um simples tempero cientificista da ideologia dominante em sua poca e que sobrevive at a nossa? Alberto Munari23 se questionou sobre a concepo esta mais prxima dos pressupostos nascidos no sculo XVIII do que dos pressupostos surgidos ao trmino do sculo XX.

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Dottrens, R. Edouard Claparde. Bulletin Socit Binet-Simon, v. 73, p. 259, 1973.

Munari, A. Edouard Claparde: quelles sciences de lducation? Studi di psicologia delleducazione. Rome, v. 3, p. 92-97, 1984.

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Naturalmente que, se voltamos s impertinentes questes expostas no pasquim de C. Lerena, parece-me patente que, mesmo quando Claparde ecoa as tendncias psicopedaggicas modernistas em voga entre as classes mdias ocidentais durante a primeira metade do sculo, temos que classific-lo entre os rgidos em vez de entre os brandos, caso se queira perpetuar esse dualismo metafrico. Claparde tudo menos um educador senil em xtase perante a criana-rei. sua antropologia que o induz a reconhecer na infncia um perodo fundador e que o faz declarar que o rendimento no proveniente dela. No confunde o interesse com a satisfao dos caprichos. E para ele, fazer psicologia, est longe de limitar-se a uma escuta benvola e sentimental; constitui um trabalho de investigao cientfica que contraria os hbitos e inclinaes rotineiras.Trs questes fundamentais

Face psicopedagogia claparediana, tomaria, de minha parte, trs distncias fundamentais que no me impedem de admirar o exemplo desse homem e de sua obra. Em primeiro lugar, o trabalho claparediano est longe de ter dado todos os frutos com os quais contava. Claparde no conseguiu, particularmente, conciliar a teoria e a prtica educativa. A partir de 1905, se pronuncia contra os prticos na acusao mais esmagadora que conheo. No esprito do mais puro taylorismo, Claparde contribuiu para reforar o poder dos especialistas, desqualificando seu terreno em beneficio do laboratrio, em que o psiclogo, constitudo em especialista, dispe da justa apreciao do que se fabrica nos centros educativos. O erro foi, no mnimo, estratgico. Esse erro colocar contra ele, por um longo perodo, a massa de educadores escolares e suscitar, sobretudo, a animosidade de seus formadores oficiais, mesmo quando nos anos vinte se havia esboado uma grande corrente favorvel escola ativa. Esta aliana efmera se

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desdobrar em debates bastante lamentveis nos quais Claparde nem sempre fez o melhor papel24. Mas o erro foi, tambm, terico. A evoluo posterior da investigao em educao, por um lado, colocou em evidncia o que havia de ilusrio no propsito de elucidar a ao educativa atravs do exclusivo enfoque psicolgico: levar em conta as variveis que estabelecem uma situao como educativa equivale a mobilizar os recursos interdisciplinares da sociologia, da psicossociologia de grupos, da etnometodologia etc. Por outro lado, o modelo tayloriano da supremacia do especialista exterior parece, por si mesmo, ter batido em retirada, na organizao racional do trabalho, cedendo a movimentos do tipo crculo de qualidade, cujo paradigma precisamente a inverso do lema taylorista: os prticos so os mais capacitados, a partir do momento em que sejam estimulados e reconhecidos como pesquisadores, para elaborar a teoria de sua prtica e melhorar seu rendimento. Paradoxalmente, isso redescobrir a escala da produtividade humana, os princpios da escola ativa. Demasiadamente imbudo da superioridade do especialista, Claparde no percebeu a contradio. Em segundo lugar, no h alternativa seno reconhecer que a psicopedagogia claparediana ficou no meio do caminho. No se deixou de destacar, j em sua poca, o carter demasiado geral, terico e abstrato das recomendaes pedaggicas que se depreendem de sua antropologia funcionalista. Por um lado, persistiu o contrassenso que assimila o interesse tal qual o define Claparde, como motor biolgico, s facilidades manipuladoras e demaggicas do aprendizado pelo entretenimento. E no fcil identificar os autores deste insistente contrassenso: seus implacveis detratores fazem coro com seus enfadonhos admiradores. A probidade, to exaltada24

Millet, L. Linstituteur vaudois en mal duniversit, le dbat sur la formation des matres primaires vaudois entre 1920 et 1930. Genve: Fpse, 1983. Hameline, D. Edouard Claparde, la force et la fragilit: prface S. Bucci. In: Bucci, S. Lducation fonctionnelle. Neuchtel: Delachaux; Paris: Niestl, 1931. p. ix-xx.

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pelo honrado Claparde, no compareceu ao encontro, fazendo, isto sim, a confuso. E o que existe nele de assombroso? A permissividade, como herana cultural do Ocidente nas relaes educativas, prevalecia claramente, na evoluo dos modos de fazer, pensar e dizer, sobre a funcionalidade, tentativa de interpretao cientfica excessivamente limitada ao universo dos cientistas. Por outro lado, as propostas concretas para melhorar a atividade pedaggica cotidiana das aulas no se compara, em Claparde, com a veemncia de sua indignao denunciadora. Para ele faltava, efetivamente, a experincia do manejo de uma classe nas condies comuns e pouco gloriosas da prtica cotidiana. Seus antagonistas no deixavam de lembrar-lhe disso, mesmo quando no o criticavam com m-f. o caso de Gabriel Compayr, eminente chefe da Instruo Pblica francesa que apoiou Claparde na fundao do Institut Rousseau e, no entanto, escreveu: O que nos perturba so as dificuldades de aplicao. Quando se apresenta ao Sr. Claparde a questo de saber como se pode tornar interessantes determinados estudos difceis, ele escapa, abstm-se de responder e declara que isso diz respeito a arte do educador; quando seria to til ter, justamente a, informaes sobre os meios a empregar para despertar interesse pelos assuntos que, particularmente no so interessantes25. significativo que, entre os inditos publicados por Carlo Trombetta, figure um projeto de obra entitulado ducation et intrt, datado de 1915, projeto este que consiste exatamente em responder ao desafio lanado por Compayr. Mas o nico captulo escrito uma vigorosa anlise do desgosto e, neste caso, da nusea psicolgica provocada pelos programas escolares. Os captulos seguintes, que deveriam dar alguns exemplos bem sucedidos de substituio do desgosto pelo interesse, nunca foram escritos. Mas,Citado por Trombetta, C. Inediti psicologici, op. cit., v. 1, pp. 106-107

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poderiam apenas dizer, se verdade, como expressa de modo profundo Michel Sotard 26, que a ltima mensagem de um Pestalozzi que o sentido mesmo da educao e de sua realizao pedaggica, se baseia na necessidade de manter constante o vnculo, mesmo que aberto o fosso entre a prtica e a teoria? Minha ltima observao refere-se coabitao do moralista e do psiclogo na obra e no destino de Claparde. Esta nos deixou o que podemos chamar de uma psicomoral. Ao fazer de sua psicologia da criana um funcionalismo biolgico, Claparde amplia a base sobre a qual se fundamenta a ao educativa. Pois essa psicologia, em certo sentido, no mais uma psicologia. Se se dilata, para transformar-se em uma antropologia naturalista. Seu conceito chave uma adaptao da que preciso pregar por ser infalvel por direito (j que a natureza no pode enganar-se no que diz respeito a seu interesse) e que se encontra, de fato, em um estado de falncia endmica, uma vez que a civilizao e, particularmente a escola, a comprometem no seio da histria. Fustigador veemente dos costumes da cidade, falta a Claparde uma verdadeira teoria da civilizao. Testemunha desolada da ascenso dos totalitarismos e do retorno da violncia, falta-lhe uma teoria da barbrie, dessa barbrie essencial, cuja funo no centro da cultura j definia Pestalozzi: A prpria barbrie em que o homem vive no mais que uma consequncia da aspirao da natureza cultura27. Recorrendo a Rousseau apenas para a construo de uma psicologia, Claparde conduz sua empresa de saneamento das relaes26

Sotard, M. Le problme de lunit des sciences de lducation: approche historique et philosophique. ducation compare. Paris, v. 31-32, p. 130,1983; Sotard, M. Le problme de lunit des sciences de lducation: approche historique et Philosophique. Pedagogica historica, Gent-Gand, v. 21, n. 2, p. 437, 1981; Sotard, M. Le problme de lunit des sciences de lducation: approche historique et Philosophique. Paideia. Varsovie, v. 10, p. 117, 1983. Sotard, M. ducation, (multi-)culturalisme et sauvagerie essentielle. In: Coloque C.E.S.E., Wrzburg, 1983. Actes... Blhau Verlag: Kln-Wien, 1985. pp. 93-106.

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humanas em nome de uma natureza boa e razovel. No imagina que o humano pode definir-se como tal pelo artifcio e a desnaturalizao original. Vamos aproxim-lo, por um instante, como faz Mireille Cifali28, de Freud, seu contemporneo. Claparde props, de fato, tornar equivalente o que um chamava de libido e o outro de interesse. Freud no aceitou a troca. Nada tinha de estranho. No podia subscrever a economia claparediana, obcecado como estava pelo artifcio fundador do processo de civilizao dos homens, assuno prioritria da violncia e da morte e, de modo algum, restaurao de uma natureza boa no harmonioso funcionamento de sua autoevoluo. A necessidade claparediana, vida plena em busca de um desenvolvimento funcional da vida, no podia confundir-se com o desejo freudiano, vida vazia em simples trgua de morte. Pode uma antropologia ser outra coisa seno romance e drama ? possvel no compartilhar das convices freudianas e encontrar em outros a chave das relaes entre a civilizao e a violncia. Isso no obstculo para que ele considerasse como nica via de interpretao em que a vida pode conceber-se, aquela que a comprende na morte. Assim, preso no crculo to facilmente sistmico da adaptao, poderia Claparde oferecer educao uma teoria vlida da vontade? Samuel Roller, um dos discpulos mais fervorosos do pedagogo genebrino, destacou admiravelmente os limites da contribuo claparediana sobre este tema educativo essencial. A boa vontade sai da ordem do funcional. O momento da vontade, escreve Roller29, no pode ser outra coisa seno um momento heroico. A alegria que dele se depreende no pode reduzir-se satisfao reguladora de uma necessidade. A alegria, diante da morte a alegria. E nada mais.28

Claparde, E. Entre Genve et Paris: Vienne; lments pour une histoire de la psychanalyse. Le Bloc-notes de la Psychanalyse. Genve, v. 2, pp. 91-130, 1982. Edouard Claparde et lducation de la volont. In: Centenaire dEdouard Claparde, op. cit., pp. 38-45.

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CLAPARDE: FUNCIONALISTA DA ESCOLA NOVAIzabel Petraglia e Elaine T. Dal Mas Dias

Neste trabalho, optou-se pela manuteno da linguagem prpria dos textos selecionados na antologia de Claparde, considerando a perspectiva de possibilitar ao leitor o contato direto com as ideias do autor, sem cortes, deturpaes e ou interpretaes. Vale tambm destacar que a deciso das autoras levou em conta o difcil acesso obra original que, em grande parte, encontra-se atualmente esgotada ou no foi traduzida para a lngua portuguesa; portanto, distante do amplo circuito editorial nacional. inconteste, que douard Claparde (1873-1940) exerceu influncia relevante no cenrio scio-cultural de sua poca e que as suas ideias tiveram impactos nos desgnios da histria da educao mundial, como tambm no pensamento pedaggico brasileiro, ainda que nos dias de hoje, seja lembrado como um cientista polmico e um educador controvertido. Desenvolveu estudos no campo da psicologia experimental que tiveram repercusses em importantes tericos como Sigmund Freud (1856-1939) e Jean Piaget (1896-1980) que at hoje so referncias fundamentais na psicologia e na educao. No entanto, Claparde ficou relegado quase que ao descaso nas cincias humanas e, nos dias atuais, a sua obra pouco estudada nos cursos de graduao. Poucos educadores e psiclogos conhecem as contribuies de seu trabalho ou reconhecem o seu legado. Mdico, psiclogo, educador e cientista suo, Claparde foi31

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detentor de vasta e expressiva obra, em torno de diferentes temas e preocupaes do universo psicolgico infantil, a partir de um enfoque interacionista. Expoente da psicologia funcionalista, que compreende o humano, primordialmente, como uma realidade viva e que funciona, foi marcado pela biologia e pelo evolucionismo de Charles Darwin (1809-1882), que apregoava a necessidade de preservao da vida em interao e adaptao contnua com o ambiente, embasado pelos princpios de eficincia e utilidade. Claparde compreendia a educao funcional como um processo endgeno capaz de permitir pessoa instruir-se e exercitar-se, para se tornar um ser autnomo. Para ele, o pensamento era mera atividade biolgica a servio do organismo que, ativado quando o comportamento reflexo insuficiente determinada situao. Destacou-se tambm como importante cone da pedagogia moderna e um severo crtico da escola tradicional. Entendia que, a funo precpua da educao era estar de acordo e, em harmonia com o funcionalismo da espcie. A Educao Nova teve em Claparde um de seus principais defensores. Colocava o aluno no centro do processo educativo e via a criana como responsvel por sua aprendizagem. Foi contemporneo do educador norte-americano John Dewey (1859-1952), com quem tambm compartilhava da ideia de uma escola ativa, em que a aprendizagem ocorre por meio da resoluo de problemas. J nas primeiras dcadas do sculo XX, considerava o professor como um estimulador de interesses e pensava que os mtodos educativos e os programas deveriam estar a servio e em torno do educando e no o contrrio. Priorizava a educao, a despeito da instruo e no atribua ao saber, algum valor funcional. Claparde acreditava na importncia de se despertar o interesse pelo conhecimento na pessoa desde cedo e entendia tambm que a escola deveria ensinar a sociedade a valorizar do mesmo modo as profisses liberais e as manuais, minimizando assim divergncias econmicas e sociais.

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Entendia tambm, como viria a concordar mais tarde o seu conterrneo suo, o geneticista, Jean Piaget, que o interesse o tnus da ao educativa. Os jogos e as brincadeiras, para Claparde colocavam-se como possibilidades reais e estratgicas para despertarem o interesse pueril. E, ao professor caberia, ento, o papel de estimulador de interesses ao aluno, com vistas aquisio de conhecimentos. Assim, valorizava a atitude ldica em detrimento da memorizao e, no adulto, esta atividade seria substituda, naturalmente, pelo trabalho. Queria uma escola mais parecida com um laboratrio do que com um auditrio; uma escola ativa. Afirmava que era devida escola, a tarefa de respeitar as fases de desenvolvimento da criana, preservando o tempo fsico e biolgico destinado infncia. Considerava a importncia da melhoria da formao de professores e a necessidade de despertar-lhes o gosto pela investigao cientfica. Dessa forma o professor seria capaz de fazer a criana amar a escola e o trabalho que ali se realiza. Tais ideias influenciaram positivamente no salto que daria a pedagogia e a psicologia infantil, especialmente no que tange ao processo de crena no sujeito, como autor de sua histria. No obstante isso, Claparde considerado at hoje, como um autor elitista, de moral exigente e incapaz de colocar sua teoria em consonncia com a prtica educacional. acusado de entrar para o ostracismo da histria da Educao, exata e paradoxalmente, porque suas ideias acolheram um paradigma reducionista e as perspectivas de seu tempo, lugar e cultura, inclusive os pensamentos mais controvertidos, ficando em demasia margem ou at, muitas vezes, distante das mudanas que a comunidade prescindia e que dele se esperava. Claparde alm de debruar-se, fundamentalmente, sobre o que iria constituir-se num movimento de Escola Nova, tambm se manifestou a favor de uma neutralidade cientfica e elaborou uma tica da conduta social que tratava de cidadania. Ele ousou

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ditar modos de comportamento, que eram aqueles esperados ao homem em sociedade. As bases antropolgicas de seu pensamento que tm no funcionalismo, a sua principal expresso, eram elitistas e contraditrias ao pautar-se na crena que existia um paradoxo entre a medida de inteligncia e o sucesso do educando. Criticava a escola tradicional, entendendo-a voltada para estudantes medianos, enquanto as inteligncias mais brilhantes eram deixadas de lado. Achava que a escola deveria classificar e dar um tratamento diferenciado aos alunos melhores e aos mais aptos. Tratava-se, em seu ponto de vista, de valorizar e aproveitar melhor as potencialidades intelectuais de cada um. Propunha uma pedagogia pouco inclusiva embasada na separao classificatria, sugerindo o agrupamento em classes, de maneira homognea e paralela: de um lado os mais inteligentes e, de outro os alunos com mais dificuldade de aprendizagem. Desenvolveu a ideia de uma escola sob medida, por entender que o educador precisava estudar a infncia em geral e cada criana em particular e atribua ao desenvolvimento de todo o indivduo as influncias hereditrias, como tambm as do meio. Respaldado por uma viso bio-psicolgica pouco dialgica e recursiva, apontava para uma relao determinista entre crescimento e desenvolvimento mental, valorizando prioritria e hierarquicamente os ensinamentos da natureza e do ambiente, colocava-os em substituio ao trabalho do educador. Pensador contestvel, Claparde foi tambm, em seu tempo, um educador polmico. Tinha ideia de uma escola, cuja funo social era utilitarista, medida que, deveria formar bons profissionais para servirem bem sociedade, ou seja, era preciso habilitar o sujeito tornando-o eficiente para disponibiliz-lo ao mercado de trabalho. Entendia que cabia ao sujeito fazer jus aos investimentos a ele destinados pelos governos e sociedades, por isso, a concep-

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o da criana aproveitar bem a infncia e ser feliz, se colocava em detrimento da preocupao com o maior rendimento. Era tambm contraditrio. Ao mesmo tempo em que valorizava o trabalho docente tambm o desqualificava. Acirrava a dicotomia teoria-prtica, atribuindo ao psiclogo um papel de terico e o destacando em detrimento do pedagogo, a quem denominava, pejorativamente, prtico. Colocava a teoria em lugar futurista e de destaque, enquanto que o conhecimento emprico era considerado de menor importncia. Desvalorizava a pedagogia, imputava-lhe a ausncia de mtodo e de base cientfica e acreditava que os professores no conseguiam bons resultados com os alunos, porque no tinham conhecimentos de psicologia e, por isso sua prtica poderia se confundir com a de um charlato. To inquestionvel o esprito provocador de douard Claparde, quanto a sua capacidade investigativa. Favoreceu o debate, entre diferentes pensadores das cincias humanas, a partir de sua obra to vasta e densa. Apresentou ideias inovadoras, mas muitas tambm passveis de questionamentos e crticas. Entendemos que correntes e tendncias surgem no universo educacional para serem conhecidas, estudadas e contestadas. do pluralismo e das divergncias que o prprio pensamento se nutre. Influenciado pelas conjunturas e elaborado a partir de concepes unas e mltiplas e, do debate saudvel e tico que podem despontar novos olhares e perspectivas capazes de darem luz a um novo pensamento pedaggico brasileiro. E, qui, nele se fundam os pilares necessrios para o estabelecimento de uma poltica de civilizao, mais justa e promotora de felicidade.

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TEXTOS SELECIONADOS

Psicologia, biologia, educao30

Mais de metade deste livro so artigos j publicados, cujas tiragens parte se esgotaram, ou que nunca apareceram separadamente. Pierre Bovet amavelmente me props reimprimi-los em sua Collection dactualits pdagogiques porque ai de mim! parece que ainda so atuais, visto como o pensamento que os inspira est longe de ter ganho de causa. Esse pensamento o da educao funcional. Ora, que educao funcional? Foi ali por 1911, creio que utilizei essa expresso para designar a educao que se prope desenvolver os processos mentais considerando-os no em si mesmos, e sim quanto sua significao biolgica, ao seu papel, sua utilidade para a ao presente ou futura, para a vida. A educao funcional a que toma a necessidade da criana, o seu interesse em atingir um fim, como alavanca da atividade que se deseja despertar nela31. No era nova, alis, essa concepo. Acha-se presente, principalmente, em toda a obra pedaggica de J. Dewey32. Eu mesmo a30

Texto extrado do livro: Claparde, E. A educao funcional. Traduo. J. B. Damasco Penna. 5. ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958. (Biblioteca Pedaggica Brasileira). Manteve-se a grafia do original. Cf. minha palestra na Section Lyonnaise de la Socit Psychologique de lenfant, maio de 1911: Claparde, E. La conception fonctionelle de lducation. Bull, de la Soc. libre pour l tude psychol. de lenfant, n. 75, p. 45, nov. 1911. (2) Dewey, J. Lcole et lenfat. trad. Pidouz. Genve et Neuchtel.

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havia desenvolvido em poca anterior a 1911, sob a denominao de educao atraente, ligando-a a uma concepo psicolgica do interesse33. Ela tem, porm, origem muito mais antiga ainda: folheai as obras dos grandes educadores e vereis que a maioria est animada do desejo de entrar de novo em contato com a natureza, desejo que inspira, precisamente, a educao funcional. So, no sculo XVI, Rabelais e Montaigne, que protestam contra a camisa de fora escolstica, contra a coero que deforma a criana que se desejaria formar (no faamos almas estropiadas, dizia Montaigne); no sculo XVII o tcheco Comnio, que defende o mtodo ativo, pedindo que sigamos a natureza da criana e o alemo Ratich suplicando que lhe no faamos violncia; ainda no sculo XVII Fnelon, apstolo da educao atraente e Roilin, que deseja, tambm, tornar o estudo agradvel34.33 34

Claparde, E. Psychologie de lenfant. 2. ed., Genve : [s.n.], 1909. p. 117.

O estudo da obra e da influncia desses autores clssicos (Rabelais, Montaigne etc.), de grande interesse para a compreenso da gnese de muitas das ideias atuais, pode ser feito, de maneira elementar, por meio dos compndios e manuais de histria da educao e da pedagogia. Para aprofundar, mister recorrer s obras originais, na ntegra ou em extratos criteriosamente selecionados, como, para dar apenas dois exemplos, a excelente edio do mile, de Rousseau, publicada, na coleo Classiques Garner (Garnier, Paris), pelos professores Franois e Pierre Richard (edio que no se deve confundir com as anteriores da mesma obra, na mesma coleo e que lhe so inferiores) e as Pages pdagogiques de Rabelais, anotadas por Mlle. Prier, Hatier, col. Les classiques pour tous, Paris, s/d. Lembraramos, para orientao geral, os seguintes trabalhos: Collard, F. Histoire de la pdagogie. Bruxelles: Boeek, 1920; Compayr, G. Histoire de la pdagogie. 21. ed. Paris: Delaplaqe, 1911; Cubberley, E. P. The history o education. Boston: Houghton Mifflin, 1920; EBY, F.; Arrowood, C. F. The development of modern education. New York: Prentice-Hall, 1941; Guex, E. Histoire de linstruction et de lducation.2. ed. Paris: Alean;Lausanne: Payot,1913; Hubert, R. Histria da pedagogia, v. 66. Trad. port. de Luiz Damasco Penem e J. B. Damasco Penem; Messenger, J. F. An interpretative history of education. New York: Crowell, 1931; Messer, A. Historia de la pedagoga. 2. ed, Trad. esp. de M. S. Sarto, Labor. Barcelona, 1930; Monroe, P. A text-book in the history of education. New York: Mac MilIan, 1905; Parker, S. C. Hstory of modern elementary education. Boston: Ginn, 1912; PEIXOTO, A. Noes de histria da educao, v. 5 So Paulo: [s.n.], 1933; Wickert, R. Historia de la pedagoga. trad. esp. dc L. Luzuriaga, Revista de pedagogia. Madrid: [s.n.], 1930. Veja-se tambm a contribuio dos dicionrios e enciclopdias de pedagogia, por exemplo, o Dicionrio de pedagoga publicado, sob a direo de Lus Sanches Sarto e com a colaborao de numerosos especialistas, pela casa Editora Labor, Barcelona, 1936. (Nota do tradutor).

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Como a histria da pedagogia, cmulo do tdio e da desolao enquanto no passa de um conjunto de lies que os infelizes alunos das escolas normais devem decorar para o exame, pode tornar-se, ao contrrio, epopeia palpitante, quando a consideramos como o quadro das sucessivas revoltas desencadeadas, em observadores avisados, por um regime de educao contra a natureza, esmagador da vida, contrrio prpria finalidade da educao, que expandir a vida! Se procuramos traduzir em linguagem mais psicolgica o que disseram esses antigos autores, chegaremos quase exatamente nossa concepo funcional. Parece que o gnio deles consistiu, simplesmente, em ter viso clara das coisas, no perturbada por esse vu da rotina e da tradio que nos oculta a realidade. Diremos educao funcional e, no, educao atraente. Pois, se toda educao funcional tem atrativo, por isso que est fundada num desejo, nem tudo que atraente tem, necessriamente, valor educativo. Verificamos, com efeito, que muitas coisas que atraem nossa ateno, e chegam mesmo a prend-la por alguns instantes, no suscitam, em ns, desejo de saber algo mais a seu respeito. Somos constitudos de maneira a ser momentneamente atrados por tudo que novo ou inslito35. H, entretanto, uma seleo entre o que, nessas coisas novas, corresponde a um interesse profundo, isto , a uma necessidade de ao de nosso ser, e o que, ao contrrio, no se liga a nenhum de nossos sistemas de pensamento ou de ao. Longe de serem assimilados, os estimulantes desta segunda categoria apenas deslisam na superfcie de nosso esprito, sem fecund-lo nem enriquec-lo. Em sugestivo artigo, Roger Cousinet36 denunciara h tempo o perigo das lies de coisas, que parecem interessar a criana e35 36

Comp. Ribot, Psychologia da ateno, (J. O.). Cousinet, R. Les ides e lei choses dans lenseignement. Educ. moderne, p. 328, 1909.

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inculcar-lhe noes precisas quando no fazem mais do que distra-la por um instante, diverti-la superficialmente37. Encontramos, no domnio da propaganda, um equivalente da diferena entre a atrao superficial e o despertar de um interesse profundo, capaz de dirigir a conduta e ativar a vontade. H uns trinta anos j que os psiclogos se vm interessando pelo problema do reclamo, pelas qualidades psicolgicas de um bom anncio. E, sem dvida, a primeira dessas qualidades a de ser atraente, isto , de chamar e prender a ateno. Sem ela, as outras seriam suprfluas. Porm, no basta prender a ateno. mister, sobretudo, que o anncio seja de natureza a despertar um desejo, um interesse, a fazer do transeunte indiferente um cliente possvel ou, melhor, um cliente provvel. Ora, s chegar a isso, apelando para as tendncias instintivas adormecidas na alma de cada um, despertando-as, criando um desejo, uma necessidade. O apelo inteligncia vem depois, em segundo lugar. Os raciocnios, as demonstraes da utilidade do produto anunciado s figuram para sustentar o desejo, se o desejo vier a enfraquecer-se, e para dar as indicaes prprias sua pronta realizao. Essa concepo, cuja justeza a prtica mostrou, uma concepo funcional do reclamo. Os pedagogistas nada de melhor podem fazer do que buscar inspirao nela. Tambm eles devem, antes de mais nada, apelar para as tendncias inatas da criana, a fim de nelas enxertar tudo quanto lhe querem ensinar. Tambm eles devem, para contar com uma clientela de trabalhadores que empreguem no trabalho todo o zelo e energia de que so capazes, criar necessidades, despertar desejos.

Roger Cousinet, reformador da orientao didtica do ensino pblico francs, a propsito desse pedagogista: Amor, C. S. El mtodo Cousinet. Revista de Pedagoga, La nueva educacin, Madrid, v. 12, 1929; Filho, L. Introduo aos estudos da Escola Nova. 4. ed. So Paulo: Melhoramentos, [s.d.]. (Bibliotheca de Educao; 11). pp. 105-107; Dicionrio de pedagogia, Labor, 1936, cols. 739-41, especialmente. (Nota do tradutor).

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Desejaria aqui, como introduo srie de artigos que formam este livro, esboar, a grandes traos, os fundamentos da psicologia sobre os quais deve assentar o edifcio da educao. uma psicologia biolgica; e oponho aqui essa psicologia, no s, claro, chamada psicologia racional, toda impregnada de filosofia, como psicologia exclusivamente introspectiva, unicamente descritiva, para a qual o esprito parece ter existncia independente e viver, de certo modo, para e por si mesmo, como tambm psicologia fisiolgica e mesmo psicologia experimental, no sentido estreito de que muita vez se tm revestido essas palavras e as coisas que designam.A educao fundada na psicologia - J. Locke

A ideia de basear a educao na psicologia no nova. Vemo-la pela primeira vez, sistemticamente aplicada, em Herbart. Rousseau, no entanto, j havia claramente visto que a arte de educar pressupe o conhecimento da criana. Antes desses pensadores, J. Locke tinha elaborado um sistema psicolgico, que no deixou de influir diretamente em seus pensamentos sobre a educao. Locke foi um homem notvel, que teve o imenso mrito de propagar, mais que ningum antes dele, a ideia da necessidade da experincia38. No foram, entretanto, preocupaes de natureza biolgica que o orientaram para a psicologia, embora fosse mdico, houvesse estudado o tratamento da varola e escrito um tratado sobre a respirao. O que o interessava, quando decidiu escrever seu famoso Ensaio sobre o entendimento humano (1690), era um problema inteiramente

John Locke (1632-1704), filsofo ingls, segundo o qual todas as nossas ideias (isto , o esprito todo inteiro) proviriam da sensao e da reflexo; o que representa uma compreenso empirista do conhecimento, oposta, por Locke, teoria das ideias inatas de Descartes. V., entre outros: Penjon-Ouy. Prcis dhistoire de la philosophie, 8. ed. Paris: Mellott, [s.d.]. pp. 308-314; Palhories. Vies et doctrines des grands philosophes. v. 2, Paris: Lanore, 1936. pp. 281-316; Janet; Seailles. Histoire de la Philosophie. 15 ed. Paris: Delagrave, 1932. (Nota do tradutor).

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filosfico, o problema do conhecimento, marcar os limites da certeza de nossos conhecimentos e os fundamentos das opinies que vemos reinar entre os homens. Enganou-se, porm, no mtodo a seguir para resolver essa questo, que estudou como psiclogo e no como epistemlogo39. No tinha percebido claramente a natureza do problema crtico, que Kant40 teve o mrito de ser o primeiro em pr em evidncia. Sua psicologia , de certo modo, uma teoria do conhecimento que no tomou conscincia de si mesma. Como quer que seja, postulando a tbula rasa41, a ausncia de toda capacidade inata na criana, Locke no mostrava ao educa-

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Epistemlogo, estudioso da epistemologia, parte da lgica que versa o conhecimento cientfico do ponto de vista do valor desse conhecimento, isto , do ponto de vista crtico. essencialmente o estudo crtico dos princpios, das hipteses e dos resultados das vrias cincias, com o fim de determinar-lhes a origem lgica (no psicolgica), o valor e o alcance objetivo (Lalande. Vocabulaire technique et critique de la philosophie, v. 1. 4. Ed. Paris: Alcan, 1938. p. 212. (Nota do tradutor).[Publicado no Brasil pela Martins Fontes (N.E).

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Emanuel Kant (1724-1804), filsofo alemo, a cujo grande nome est ligado o criticismo, doutrina segundo a qual o eixo de toda indagao filosfica est no problema do valor do conhecimento. Aspirou tambm a constituir uma moral independente da metafsica e baseada no imperativo categrico. Principais obras: Crtica da razo pura e Crtica da razo prtica. Mas, Kant se preocupou igualmente com pedagogia, alm de outros variados temas, campo sempre estreito para seu vasto e poderoso esprito; dele um tratado sobre a matria, Trait de pdagogie, na trad. fr. de Jules Barni, com estudo crtico de R. Thamin, Alcan, Bibli. de Philos. Contemp., Paris, 5. ed., 1931. V., a respeito desse filsofo to largamente estudado, entre muitos outros: Klpe, O. Kant. trad. esp. de Domingo M. Lpez, Labor. 2. ed. Barcelona: [s.n.], 1929; Ruysseb, T. Kant. Paris: Alcan, 1909; Cantecor, G. Kant. Paris: Mellotc, [s.d.]; Messer, A. De Kant a Hegel. trad. esp. de J. P. Bances. Revista de Occidente, Madrid, pp. 9-119, 1927, alm dos manuais de histria da filosofia e de histria da pedagogia. (Nota do tradutor).

41 Tbua rasa ou, como tambm se escreve, conservando a forma latina, tabula rasa, expresso que significa inexistncia de quaisquer impresses anteriores experincia. Na tbua de cera, plana e lisa, nada ainda se havia escrito: era uma tabula rasa. A expresso, tradicional na histria da filosofia e na da pedagogia, tem origem numa passagen de Aristteles, no seu livro de psicologia, De anima. Em Santo Toms de Aquino: A alma humana no tem em si as espcies inteligveis como um dado natural mas as possui em potncia, tal como uma tbua rasa na qual nada foi escrito... (sicut tabula rasa, in qua nihil est scriptum... Quaestiones disputate de Anima, VIII). Em Locke: Let us then, suppose the mind to be, as we say, white paper, void of all characters, without any Ideas... Suponhamos que o esprito seja, como dizemos, um papel branco, sem nada escrito, sem nenhuma ideia. (Essay concerning the understanding, II. I). Tbua rasa, papel branco; bem o sentido da expresso. Para Leibniz, racionalista opositor de Locke, a tabula rasa era uma fico impossvel. Cf. Laland. Vocabulaire, cit. (Nota do tradutor).

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dor a existncia desses mveis interiores sem os quais a atividade impossvel. O servio que prestou foi ter insistido na necessidade de pr a criana em presena das coisas, por isso que pelas coisas e no pelas palavras que a criana adquire ideias. Mas, isso mesmo no era nada novo. Comnio, especialmente, j o havia dito, uns vinte anos antes. E essa prescrio tinha um reverso: o fazer crer que bastava multiplicar as experincias de objetos, amontoar as ocasies de conhecimento, para desenvolver o esprito. Era dar um apoio pretensamente cientfico e filosfico a esse grande erro que viciou a pedagogia de todos os tempos e vicia ainda a pedagogia de nossos dias. No esqueamos, entretanto, que Locke, a despeito de sua hiptese da tbua rasa, no destitua o esprito de qualquer poder prprio, porque, se o mundo exterior o provia de sensaes, essas sensaes eram, por sua vez, objeto de operaes do esprito e estavam submetidas reflexo. O esprito no era, pois, para Locke, simples cera virgem, e, sim, rgo vivo, que reage s impresses. Entre vrias impresses, o esprito exerce suas preferncias, e a vontade significa apenas um poder ou capacidade de preferir ou de escolher (Liv. II, cap. 21)42. Mas, que que determina a vontade? , responde Locke, alguma inquietao atual e, de ordinrio, a que mais urgente. Essa inquietao, esse mal-estar, essa uneasiness no seno a necessidade, por isso que causada pela privao de algum bem ausente43. Vemos, pois, que, sem fazer caso dos postulados rigorosos do Locke epistemlogo, o Locke mdico, observador da natureza humana, reintroduz em seu sistema uma concepo biolgica que a famosa doutrina da tbua rasa fez esquecer. E veremos adiante, a propsito da lei do interesse momentneo, que Locke j a formulara perfeitamente.42 43

Comp. a teoria aperceptiva de Wundt. (J. G.).

A uneasiness, diz ainda Locke, o principal, para no dizer o nico aguilho que excita o engenho e a atividade dos homens (Liv. II, cap. 20).

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Se tomamos agora o admirvel livro do pensador ingls sobre a educao (1693)44, vemos que est mais fundamentado em excelente observao das crianas do que no sistema filosfico-psicolgico do autor. Aqui, muito mais ainda do que no Ensaio sobre o entendimento, Locke postula grande nmero de disposies ou poderes inatos, como a curiosidade, inclinaes diversas, paixes dominantes e um temperamento. As pginas consagradas curiosidade, maneira de ligar a alguma tendncia instintiva o que se deseja ensinar, so notveis (entretanto, nossos manuais correntes de histria da pedagogia deixam-nas de lado). Ora vejamos:A curiosidade... excelente meio que a Natureza proporcionou para dissipar a ignorncia em que as crianas vm ao mundo. Por estranhas que sejam as perguntas que uma criana possa fazer no devemos repelir nenhuma com desprezo, nem permitir zombarias. Ao contrrio, mister responder a tudo quanto ela perguntar... Mas, cuidado para lhe no perturbar o esprito com explicaes ou ideias que ultrapassem sua inteligncia, ou com a apresentao de uma quantidade de coisas sem relao alguma com o que ela deseja saber na ocasio.

As palavras que sublinhei, nesta ltima frase, mostram que Locke foi ao mago da concepo funcional da educao. Mas, continuemos: Porque o conhecimento to agradvel ao entendimento como a luz aos olhos; e as crianas em particular se comprazem extremamente em adquirir novos conhecimentos, sobretudo se veem que se lhes ouvem as perguntas. Locke viu muito bem que a criana no , de modo nenhum, naturalmente preguiosa. Instruir-se o que ela quer. Mas, ns a tornamos preguiosa no a instruindo sobre o que a interessa e forando-a a ouvir o que no a interessa:

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Some thouqhts concerning education, coleo, retocada, de cartas escritas por Locke a seu amigo Clarke, em l684-1685. J em 1695 o livro tinha sido traduzido para o francs, com grande xito. Excelente edio dessa obra notvel a publicada por Quick (na Pitt Press Series, Cambridge University Press, 1880), com, preciosa introduo e numerosas notas interpretativas do maior interesse. (Nota do tradutor).

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E no duvido de que uma das grandes razes pelas quais a maioria das crianas se entrega inteiramente a divertimentos inteis e emprega todo o seu tempo em futilidades o fato de ver que se lhes desprezava a curiosidade e pouco caso se fazia de suas perguntas.

E aqui temos uma passagem capital, que se aplica educao em geral, embora Locke a considere apenas como meio de corrigir a criana de uma preguia geral, que tem origem no temperamento. As duas molas das aes humanas, diz Locke, so o desejo e a previso. Que fazer, porm, se o temperamento de uma criana no permite pr essas molas em ao?Trata-se de achar um meio de plantar e fazer crescer essas duas coisas num terreno que lhes naturalmente contrrio. Desde que vos convencestes de que vosso filho est nesse caso, deveis cuidadosamente observar se ele tem prazer em alguma coisa e procurar saber de que mais gosta. Se puderdes descobrir que ele tem alguma inclinao particular, aumentai-a quanto vos fr possvel e utilizei-vos dela como de um meio para p-lo em ao e fazer nascer nele o desejo de dedicar-se a alguma coisa.

Essas citaes bastam para mostrar que, se no ficarmos presos ao rtulo sensualista que se cola na psicologia de Locke com razo, sem dvida, quando considerada do ponto de vista da teoria do conhecimento e penetrarmos em suas mincias, nela descobriremos, assim como em sua pedagogia, um pensamento profundamente dinmico e funcional. mister, entretanto, chegar a Rousseau para admirar o verdadeiro desabrochar desse pensamento funcional. No me detenho aqui no autor do Emlio, porque um captulo deste livro consagrado concepo da infncia segundo Rousseau.

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Depois de Rousseau, temos de esperar por Herbart45 para encontrar nova tentativa no sentido de basear a pedagogia na psicologia. Essa tentativa , agora, completamente consciente. A filosofia moral, diz ele, indica pedagogia o fim a atingir; mas a psicologia que lhe fornece os meios. Muito bem. Mas, ai! que psicologia Herbart vai dar como fundamento pedagogia? As intenes de nosso filsofo so, alis, excelentes: estabelecer a psicologia como cincia, repudiar as faculdades inatas, praticar o mtodo emprico, aplicar a matemtica s coisas do esprito... Que magnfico programa! Herbart, porm, no se atreve a ele. Protestando embora fazer da psicologia uma cincia e constru-la graas experincia, comea por deduzi-la a priori da metafsica; em seguida, nega que se possa praticar a experimentao no domnio psicolgico; finalmente, ignora o organismo e reduz a atividade mental a um jogo de representaes que se entrechocam, sem que se possa adivinhar qual o mvel profundo dessa agitao de ideias. Herbart nos diz, verdade, que a alma tende a conservar-se; mas, que sabe dela se declara explicitamente que a alma incognoscvel? Coisa curiosa: Herbart, cujo esfro metafsico parece ter tido por mvel o desejo de constituir um sistema coerente e sem qualJohann Friedrich Herbart (1776-1841), filsofo alemo, dedicado psicologia, metafsica, pedagogia. Herbart foi dos primeiros em tratar com orientao experimental a psicologia, em sua obra Da psicologia como cincia, baseada, pela primeira vez, na experincia, na metafsica e nas matemticas, 1924-1925. Deve-se-lhe a ideia de uma psicologia quantitativa, desenvolvida, ao depois, pelo fisiologista Weber e pelo fsico e filsofo Fechner. Em pedagogia devem-se a Herbart as doutrinas da instruo educativa e dos passos formais, com que dominou o pensamento pedaggico por largo tempo. Ribot, V. La psychologie allemande contemporaine (cole exprimentale). 7. ed. Paris: Alcan, 1909. pp. 1-57; Pillsbury, W. B. The history of psychology. 2. ed., Michigan: Wahr,, 1929. p. 139-44; Klemm, O. Historia de la psicologa. Trad. esp. de Santos Rubiano. Madrid: Jorro, 1919; Fritzsch, T.; Herbart; J. F. Trad. esp. de J. R. Ermengol. Barcelona: Labor, 1932; Dicionrio de pedagogia. Labor, op. cit. (Nota do tradutor)45

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quer contradio, vive a contradizer-se. Assim, declara que jamais se poder aplicar a anlise vida da alma e, no obstante, reduz o esprito a um agregado de representaes, que chega a considerar dotadas de existncia independente e permanente, a tal ponto que, at quando essas representaes j no so conscientes, continuam a permanecer abaixo do limiar da conscincia. Acabamos de dizer e outra contradio que, ao mesmo tempo que estabelece a psicologia como cincia, tira-a da metafsica negando-lhe o direito de experimentar. Outro ilogismo ainda: sua explicao da vontade. A vontade, a Streben, a tendncia a reaparecer manifestada por uma representao vtima de uma inibio (Hemmung), isto , mantida por outra representao no subsolo da conscincia. Mas, se a alma simples postulado fundamental de que Herbart pretende tirar toda a sua psicologia como pode formar, em seu seio, duas representaes bastante opostas e diversas para lutar uma contra a outra? S se pode compreender, alis, que duas representaes se oponham quando em virtude de razes afetivas, se uma agradvel e outra, desagradvel. Mas, ento, cai por terra toda a teoria que pretendia fazer da representao, da Vorstellung, o elemento ltimo e fundamental da psicologia! Ela j no esse elemento fundamental, por isso que est subordinada afetividade!46. Herbart teve, alis, algumas ideias geniais que, se certo que ele prprio no soube explorar, foram como sementes fecundas a germinar em outros espritos. Principalmente a ideia de aplicar a matemtica psicologia. Quando apareceram as obras psicoVer, a respeito de toda essa discusso sobre a vontade, Klpe. Die Lehre vom Willen in der n ueren psychologie. Philos: Studien, V., 1889. No enumero aqui outras contradies do filsofo. Eis o que disse a propsito Alf. Weber, em sua Histoire de la philosophie europenne, Paris, 1897, p. 582: A filosofia de Herbart, que toma como tarefa eliminar do pensamento toda contradio est, ela prpria, cheia dos mais chocantes contrastes. (Segue-se a enumerao dessas contradies): Sua Teodiceia, perfeitamente conservadora, sua teologia, toda espiritualista, chocam-se com o seu paradoxo do absoluto mltiplo que, logicamente leva ao politesmo e com o seu mecanicismo, muito prximo das teorias materialistas etc.46

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lgicas de Herbart, Fechner47 andava pelos vinte anos e estudava medicina e fsica em Berlim. Pode ser que a tentativa to nova de Herbart tivesse feito desabrochar, pela primeira vez, em seu crebro, a ideia de medir os fenmenos psquicos. Na verdade, no a Herbart, porm, que se liga a obra de Fechner, e sim s pesquisas dos fsicos e fisiologistas. Foi tambm Herbart quem lanou a ideia do limiar da conscincia e sugeriu a dos pensamentos recalcados, ativos embora subconscientes, noo fundamental da psicanlise de Freud. Sua psicologia nem por isso deixa de ser um amontoado de afirmaes abstrusas e, na maior parte, sem qualquer base. W. James chega mesmo ao ponto de tachar de horrvel a jeringona herbartiana48. E pergunta-se, no sem certa estupefao como trs ou quatro geraes de professores viram nessa pretensa psicologia a base ideal da cincia pedaggica, pois verdadeiramente impossvel que o artificial mecanismo das representaes descrito por Herbart lhes tivesse podido dar uma viso satisfatria do pensamento e da atividade humana, to inadequado ele para explic-los, to flutuante parece nas nuvens, tantas as contradies internas que encerra. Acaso tero descoberto, nisso tudo, belezas que no soubemos perceber? Se descobriram, no parece; porque, quando em seus livros resumem essa psicologia, a exposio no , em nada, mais clara que a do mestre. Eis, por exemplo, como um herbartiano convicto, Franois Guex, antigo diretor da Escola Normal de Lausanne, resume o mecanismo mental concebido por Herbart:G. Fechner (1801-1887), criador da psicofsica, que pretendia, realizando o ideal de rigor cientfico de Herbart, introduzir o clculo e a medida em psicologia. A grande obra de Fechner so seus Elementos de psicofsica (1860). Tambm trabalhou o pensador no campo da esttica, procurando fili-la . Psicofsica: um dos criadores da chamada esttica experimental. Ribot, op. cit., pp. 147-216; Pillsbury, op. cit., pp. 172-178; Foucault, M. La psychophysique. Paris: Alcan, 1901; Biervliet, J-J. Van La Psychologie quantitative. Paris: Alcan; Gand: Siffer-, 1907; BARBADO, M. O. P. Introduction la psychologie exprimentale. Trad. fr. de Ph. Mazoyer. Paris: Lethielleux, 1931. pp. 281285. (Nota do tradutor).48 47

JAMES, W. Psychology, v. 1, p. 603.

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(Herbart) distingue, em psicologia, uma esttica e uma mecnica das ideias, tal como existem, em fsica, uma teoria do equilbrio e do movimento dos corpos. Considera os fenmenos psquicos em repouso e em posio de equilbrio para apreender-lhes relaes de intensidade e formul-las numericamente. Toda a vida psquica deve ser reduzida a leis determinadas. nesse sentido que Herbart fala de presso, de reao, do estado latente das ideias, de oscilaes, de vibraes etc. A alma se lhe afigura uma espcie de cavidade com uma zona conhecida e outra, desconhecida49.

A alma, uma espcie de cavidade... Eis a viso que deixou a psicologia herbartiana no esprito de um de seus mais fiis discpulos! E continuo a perguntar qual pode ser a razo da seduo que essa psicologia exerceu nesses discpulos. Quando se consideram os reproches feitos psicologia contempornea por certos pedagogos de hoje (muito ligados tradio herbartiana)50, quando se v que eles lhe negam o direito de servir de fundamento pedagogia, sob o pretexto de que ainda uma cincia inacabada, menos ainda se compreende a indulgncia com que foi acolhida a Vorstellung- mechanik51, e o fanatismo que despertou. A seduo que exerceu esse sistema obscuro reside, talvez, em parte, na prpria obscuridade, que inspirava respeito. Como devia ser profundo, pois que no se compreendia! Mas foi, sobretudo, o edifcio imponente que ele levantou para a pedagogia com grande riqueza de mincias prticas, que lhe fez a voga entre os educadores. Porque, antes dele, nunca a pedagogia fra sistematizada em um corpo de doutrina bem arranjadinho em todas as suas partes52. Vrios princpios por ele formulados, como o da concentrao,49 50

Guex, F. Histoire de linstruction et de lducation. Lausanne, 1913. p. 396.

Ver por exemplo o artigo de: Chevallaz, G. La prparation des instituteurs. Suisse: Annuaire Instruct. Publique en Suisse, 1929. Mecnica das representaes (J. G.). Como o acentua justamente G. Compayr em seu opsculo sobre Herbart (p. 117): Se Herbart se fez ouvir... porque tem um sistema rico de frmulas: e sabemos qual o imprio, a fascinao que exerce sobre os espritos o despotismo de uma doutrina sistemtica. A preguia humana repousa de bom grado no leito macio de uma doutrina acabada, que previu as coisas at as ltimas mincias.

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ANTONIO GRAMSCI

e o da necessidade de tomar em considerao os perodos do desenvolvimento e o da individualidade so excelentes. Mas no foram, de modo algum deduzidos de sua concepo psicolgica. E quando nela procura enquadrar seus preceitos pedaggicos, falseia-os completamente. Foi a desgraa que lhe aconteceu a propsito do interesse. Herbart insistiu, muito justamente, na importncia do interesse para a educao e para a instruo. Desta vez pensar-se- muito bem: eis finalmente o princpio funcional como ncleo da pedagogia. Mas, qual o que! O interesse herbartiano, longe de ser essa necessidade de saber para agir que nos leva a adquirir conhecimentos ou a propor problemas, no passa de consequncia da mecnica das representaes, o resultado e no a causa da apercepo. Com efeito, tendo Herbart decretado que a alma um ser simples sem nenhuma espcie de predisposies naturais e que se limita a resistir s perturbaes no poderia admitir nela um interesse que a conduz para esses objetos fora dela, objetos que so, precisamente, causas de perturbao. Foi, pois, necessrio porque as crianas que observara como preceptor lhe haviam mostrado a importncia do interesse para dar um lugar a esse interesse em seu sistema psicolgico, faz-lo depender, de qualquer jeito, da mecnica das ideias53. No se poderia, contudo, negar que existe, no fundo da concepo herbartiana, um pensamento dinmico: toda a vida mental no seno a consequncia da resistncia oposta pela alma aos agentes que lhe ameaam a qualidade essencial; ela tende, naturalmente, conservao de si mesma (Selbsterhaltung). Por outras palavras, o eu tende a conservar-se. As representaes so apenas manifestaes dessa reao de defesa. certo que essa concepo equivale verificao dos biologistas de que o equilbrio orgnico tende a conservar-se.

53 Ver ainda, para a discusso da concepo herbartiana, meu artigo Rflexions dun psychologue, Annuaire de lInstr. Publique au Suisse, Lausanne, 1925. (Reproduzido neste volume Nota da editora).

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COLEO

EDUCADORES

Infelizmente, Herbart extraiu essa verdade profunda de apriorismos metafsicos sobre a natureza simples da mnada54 e, da, torn-la praticamente inoperante. A prova que, salvo erro, nenhum dos pedagogistas inspirados em Herbart defendeu o princpio de uma concepo dinmica e funcional da educao. A despeito, pois, dessa concordncia, toda verbal, entre o postulado da Selbsterhaltunq e o da biologia moderna, podemos considerar a pedagogia de Herbart e a psicologia tida com o seu fundamento, completamente desprovidas de senso biolgico. O indivduo que elas p