UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS
CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS
ALCOOLISMO, DOENA E PESSOA UMA ETNOGRAFIA DA ASSOCIAO DE EX-BEBEDORES
ALCOLICOS ANNIMOS
Edemilson Antunes de Campos
2005
ii
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS
CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS
ALCOOLISMO, DOENA E PESSOA UMA ETNOGRAFIA DA ASSOCIAO DE EX-BEBEDORES
ALCOLICOS ANNIMOS
Tese apresentada em cumprimento parcial s exigncias do
Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar),
para obteno do grau de Doutor. Orientadora: Prof. Dr. Marina Denise Cardoso.
Edemilson Antunes de Campos
2005
Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria/UFSCar
C198ad
Campos, Edemilson Antunes de. Alcoolismo, doena e pessoa: uma etnografia da associao de ex-bebedores Alcolicos Annimos / Edemilson Antunes de Campos. -- So Carlos : UFSCar, 2005. 206 p. Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2005. 1. Antropologia. 2. Antropologia da sade. 3. Alcoolismo aspectos scio culturais. I. Ttulo. CDD: 301 (20a)
Para Veridiana, minha mulher
e companheira de todas as horas
iv
Agradecimentos
Este trabalho fruto de um encontro entre mim e a irmandade dos Alcolicos
Annimos. Todavia, durante a pesquisa, outros encontros tambm foram fundamentais
para a sua execuo. Logo, no poderia de deixar de agradecer a todos aqueles que,
direta ou indiretamente, ajudaram na sua elaborao.
Em primeiro lugar, sou grato orientao da Profa. Dra. Marina Denise
Cardoso, do Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais PPGCSo da
Universidade Federal de So Carlos UFSCar , pelo apoio e incentivo na elaborao,
inicialmente, do projeto de pesquisa e, posteriormente, desta tese. Sua dedicao, suas
sugestes e seu rigor intelectual foram valiosos na conduo e realizao desta
verdadeira aventura antropolgica.
Sou grato tambm professora Sylvie Fainzang, do Centre de Recherche
Mdicine, Sciences, Sant et Socit CERMES da cole des Hautes en Sciences
Sociales EHESS , pela acolhida e pela orientao no perodo em que l estive como
estagirio de doutorado. Sua colaborao foi preciosa para a definio de muitos dos
enfoques fundamentais desta pesquisa.
O contato com outras universidades e com professores na Frana foi importante
para a ampliao do campo de interlocuo e para a obteno de dados bibliogrficos.
Quero, assim, agradecer aos professores: Afrnio Garcia, diretor do Centre de
Recherche sur le Brsil Contemporain CRBC da EHESS, pela acolhida e pelo apoio
na abertura de oportunidades de participao em encontros acadmicos; Didier Fassin,
da EHESS, pela acolhida e interlocuo durante seus seminrios; Annie Hubert, diretora
de pesquisa do laboratrio Socits Sant Dveloppement, da Universit Bordeaux 2,
pelo encontro que tivemos e pelos comentrios sobre meu projeto de pesquisa, bem
como pelas indicaes bibliogrficas, que foram fundamentais para a ampliao de meu
campo de viso sobre as relaes entre o consumo de bebidas alcolicas e as formas de
sociabilidade.
v
Quero tambm agradecer s instituies brasileiras e francesas que deram apoio
pesquisa: UFSCar e ao PPGCSo, cujas instalaes e cujo fecundo ambiente
intelectual possibilitaram a realizao do presente trabalho. Um agradecimento
EHESS, ao CERMES e ao CRBC pela acolhida nos seminrios e nas pesquisas que l
realizei. Agradeo tambm ao IREB Institut de Recherches Scientifiques sur les
Boissons , cujo valioso acervo foi fundamental para o levantamento de dados
bibliogrficos para a pesquisa. Agradeo tambm Maison du Brsil, pela acolhida no
perodo letivo 2002/2003, durante minha estada em Paris.
Durante a pesquisa, alguns contatos e encontros com pesquisadores de
universidades brasileiras tambm foram muito valiosos para a conduo da pesquisa.
Quero agradecer, em especial, professora Delma Pessanha Neves, do Programa de
Ps-graduao em Antropologia Social e Cincia Poltica da Universidade Federal
Fluminense UFF , que, sempre atenciosa, foi uma importante interlocutora,
permitindo-me o contato com um rico material bibliogrfico, fundamental para as
reflexes aqui apresentadas. Agradeo tambm professora Maria Helena Villas-Boas
Concone, do Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais da Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo PUC/SP , pelas discusses e sugestes em torno
de meu projeto de pesquisa.
Agradeo tambm aos professores Luiz Henrique de Toledo e Jacob Carlos
Lima, ambos do PPGCSo/UFSCar, pelas crticas e observaes feitas durante o exame
de qualificao, cuja incorporao nesta tese so de minha inteira responsabilidade.
Obrigado tambm aos professores Maria Ins Rauter Mancuso (PPGCSo/UFSCar), Luiz
Henrique de Toledo (PPGCSo/UFSCar), Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP) e Delma
Pessanha Neves (UFF-RJ) pelas valiosas crticas e sugestes quando da defesa da tese
no Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais da UFSCar.
No posso deixar de agradecer s instituies que, em momentos distintos,
deram apoio pesquisa: ao CNPq, pela concesso de bolsa de pesquisa para realizao
do projeto, e CAPES, pela concesso de bolsa de estudos no exterior, para a realizao
de estgio de doutorado sanduche na EHESS, em Paris. Ambas as bolsas foram
imprescindveis para o desenvolvimento do trabalho de pesquisa. preciso reconhecer e
ressaltar que a poltica pblica de apoio e fomento pesquisa constitui uma ao
poderosa e fundamental para o desenvolvimento cientfico do Pas.
vi
Quero tambm agradecer a todos aqueles que ajudaram a mim e a minha esposa
durante o processo de mudana para a Frana e de retorno ao Brasil, como aos amigos
Ana Maria e Aloysio, Andr, Iara, Aldo, Joo Petrucio, Rayane, Pedroso e Kelen.
Agradeo tambm os parentes envolvidos nessa empreitada, em especial tia Yara, ao
senhor Police e dona Ma, vov Irene, ao Neto e Silmara, a minha me Anzia e a
meus irmos Edson e Silvia. A todos, o reconhecimento de que a ajuda e o apoio foram
fundamentais para aplacar a saudade provocada pelo o exlio acadmico, durante o
tempo em que estivemos fora do Pas.
Aos amigos Benevides, Vanderlan e Josemar, companheiros solidrios durante
nossa estada em Paris, com os quais compartilhamos momentos inesquecveis,
recheados de conversas estimulantes, que deixaram saudades, o reconhecimento de que
nossa amizade ser para sempre.
Agradeo tambm amiga ngela, cuja ajuda foi fundamental para o meu
aperfeioamento na lngua francesa; ao amigo Amin Simaika, pela ajuda na traduo de
meu projeto de pesquisa; e aos amigos Alfredo Dias DAlmeida e Ana Paula Quadros
Gomes, que, com competncia e pacincia, fizeram a reviso desta tese.
Agradeo ao amigo Urias, que me abriu as portas do grupo Sapopemba de
Alcolicos Annimos, facilitando meu acesso a esse universo social. Agradeo,
especialmente, a todos os homens e a todas as mulheres que compartilharam comigo
suas dores e suas alegrias em sua luta cotidiana para manter a sobriedade; a todos os
membros de Alcolicos Annimos, aqui presentes atravs de seus depoimentos, que me
ajudaram a escrever esse trabalho, o meu mais sincero agradecimento.
Quero, enfim, fazer um agradecimento especial minha mulher Veridiana,
companheira que sempre esteve prxima, nunca faltando com seu apoio e ateno, e que
aceitou embarcar em toda essa aventura, compartilhando comigo a cumplicidade do
olhar que descobre e revela os novos universos.
[...] o objeto da etnografia: uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos das quais os tiques nervosos, as piscadelas, as falsas piscadelas, as imitaes, os ensaios das imitaes so produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato no existiriam [...], no importa o que algum fizesse ou no com sua prpria plpebra. Clifford Geertz
[...] o objetivo ltimo das cincias humanas no constituir o homem, mas dissolv-lo. Claude Lvi-Strauss
viii
Sumrio
RESUMO...................................................................................................................................x
ABSTRACT............................................................................................................................. xi
LISTA DE QUADROS.......................................................................................................... xii
INTRODUO.........................................................................................................................1
Captulo 1
UM OLHAR ANTROPOLGICO SOBRE O ALCOOLISMO E OS
ALCOLICOS ANNIMOS..................................................................................................6
1.1 A construo da pessoa alcolica: um enfoque antropolgico .................................10
1.2 A pesquisa de campo: encontrando os alcolicos annimos ........................................20
1.3 Um no-alcolico em Alcolicos Annimos ............................................................27
Captulo 2
O LCOOL E O ALCOOLISMO: ENTRE O DESVIO E A DOENA.................33
2.1 Um flau social..........................................................................................................39
2.1.1 As campanhas antialcolicas no Brasil.................................................................44
2.2 Uma doena da vontade ............................................................................................47
2.3 O mal do alcoolismo e suas causas........................................................................52
2.3.1 Teoria da doena e estratgia teraputica em A.A...................................................57
2.4 Delineando os contornos da pessoa alcolica ...........................................................62
Captulo 3
ALCOLICOS ANNIMOS: A CONSTRUO DA DOENA ALCOLICA E
DO ALCOLICO COMO DOENTE...................................................................................67
3.1 Os doze passos na construo da pessoa alcolica. ..................................................72
3.2 As doze tradies e as fronteiras simblicas da irmandade..........................................82
3.3 Recuperao, servio e unidade em A.A. ....................................................................86
3.4 O grupo de A.A.: uma rede de ajuda para o indivduo doente .....................................90
ix
Captulo 4
OLHANDO DE PERTO: RITUAIS TERAPUTICOS EM ALCOLICOS
ANNIMOS............................................................................................................................95
4.1 Reunio de entrega de fichas: uma celebrao da sobriedade ....................................101
4.2 O lugar do ritual em A.A. ...........................................................................................104
4.3 O espao e o tempo ritualizados .................................................................................108
4.4 A linguagem do ritual .................................................................................................113
Captulo 5
A LINGUAGEM DA DOENA EM ALCOLICOS ANNIMOS..............................117
5.1 O sistema dos Alcolicos Annimos ..........................................................................122
5.2 Uma nosografia fsica e moral da doena alcolica ...................................................126
5.3 O lcool, os nervos e o sangue: as representaes da pessoa alcolica ..................129
5.4 A lgica teraputica dos Alcolicos Annimos..........................................................133
Captulo 6
O ALCOOLISMO UMA DOENA DA FAMLIA ................................................137
6.1 O homem alcolico.....................................................................................................143
6.2 A mulher alcolica......................................................................................................149
6.3 O alcoolismo uma doena contagiosa?.................................................................152
6.3.1 O contgio moral do alcoolismo .....................................................................155
6.3.2 Alcolicos Annimos, famlia e recuperao .....................................................158
Captulo 7
ALCOOLISMO, DOENA E PESSOA...........................................................................164
7.1 Alcolicos Annimos e sua eficcia teraputica ........................................................166
7.2 Anonimato, identidade e pessoa .................................................................................173
7.3 O alcoolismo e as imagens do eu ............................................................................180
7.4 A fabricao da pessoa alcolica ............................................................................184
CONSIDERAES FINAIS ...............................................................................................193
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................197
x
RESUMO
O objetivo deste trabalho o de apresentar uma reflexo sobre o modelo teraputico construdo pela irmandade de Alcolicos Annimos (A.A.) para dar conta da chamada doena do alcoolismo, relacionando-o fabricao de uma noo de pessoa em seu interior, notadamente a partir da edificao da identidade de doente alcolico em recuperao.
A partir dos dados da pesquisa etnogrfica realizada no grupo Sapopemba de A.A., localizado na periferia da cidade de So Paulo, busca-se analisar o problema do alcoolismo a partir de uma perspectiva mica, isto , tal como ele pensado e gerido por aqueles que se reconhecem como doentes alcolicos. Com isso, pretende-se articular as representaes construdas sobre o lcool e o alcoolismo com a fabricao de uma noo de pessoa alcolica, de maneira a estabelecer contrastes com o campo ideolgico do individualismo moderno.
Ao longo deste trabalho, demonstra-se que, para os membros de A.A., a doena alcolica entendida como uma doena da famlia, ou seja, uma doena que atinge o indivduo, mas tambm afeta a todos aqueles que esto a seu redor, sobretudo, seus familiares. Com efeito, evidenciam-se as condies de possibilidade de contgio em torno do alcoolismo, condies essas diretamente ligadas s representaes construdas sobre o alcoolismo, entendido como uma doena fsica e moral, e a seus efeitos sobre o conjunto de relaes sociais familiares e profissionais nas quais o ex-bebedor est envolvido.
Em suas atividades e reunies, os membros da irmandade se reconhecem como doentes alcolicos em recuperao, isto , como portadores de uma doena incurvel; de um mal que est alojado dentro de cada um e com o qual devero aprender a conviver. Esse processo corresponde, fundamentalmente, instaurao de um peculiar regime de alteridade, baseado na fabricao de um corpo e de um esprito doentes, no qual a doena alcolica apreendida como um outro que cada dependente traz dentro de si mesmo; condio essa que deve ser compartilhada com os demais membros do grupo, possibilitando, assim, a manuteno da sobriedade e o resgate dos laos sociais, perdidos no tempo do alcoolismo ativo, notadamente, na famlia e no trabalho.
Palavras-chave: Alcolicos Annimos; alcoolismo; doena; noo de pessoa.
xi
ABSTRACT
The major aim of this thesis is to introduce a reflection of the therapeutic model built
by the Alcoholics Anonymous (A.A.) fellowship to care for the so-called alcoholism
disease and to relate this model to the construction of the notion of the person as it appears in
this model, since it is related to the construction of the identity of an alcoholic in recovery.
Based on an ethnographic research carried out in the Sapopemba A.A. group located
in the outskirts of the city of So Paulo, we attempt to analyze the problem of alcoholism
from an emic perspective, i.e., as it is thought of and managed by those who acknowledge
themselves as alcoholics. In this way we try to articulate the representations built on alcohol
and alcoholism by re-constructing the notion of alcoholic person, in order to set contrasts with
the ideological field of modern individualism.
The thesis also looks for to demonstrate that, for A.A. members, the alcoholic
disease is understood as a family disease, i.e., a disease that not only concerns the
individuals but also affects those around them, family members most of all. In fact, the
possibility of contagion around alcoholism is clearly identifiable. Such condition is directly
linked to representations built on alcoholism, understood as a physical and moral disease.
It is also linked to its effects on the set of social relationships both familial and professional
in which the ex-drinker is involved.
In their activities and meetings, the members of the fellowship acknowledge
themselves as alcoholics in recovery, i.e., as carriers of an incurable disease, a disorder
housed inside each of them with which they must learn to deal. Fundamentally, this process
corresponds to setting a peculiar regime of alterity, based on the construction of an ill body
and soul, in which ex-drinker is seen as another person that each alcoholic carries within;
this condition must be shared with the other group members to facilitate preservation of
soberness and recuperation of social bonds that were lost in the times of active alcoholism,
particularly within the family and in the workplace.
Key-words: Alcoholics Anonymous; alcoholism; disease; personhood.
xii
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Tempo entre ingresso e afastamento em A.A........................................................24
Quadro 2 Tempo de permanncia no grupo ..........................................................................24
Quadro 3 Fichas de sobriedade (tempo/cor)........................................................................102
Quadro 4 Expresses que designam a passagem de alcolico ativo
para alcolico em recuperao .............................................................................125
Quadro 5 Expresses que designam o ato de beber ............................................................126
Quadro 6 Nosografia do alcoolismo sintomas fsicos ....................................................127
Quadro 7 Sintomas fsicos x efeitos mentais.......................................................................127
Quadro 8 Categorias morais x conseqncias .....................................................................128
Quadro 9 Qualidades que compem a pessoa alcolica ..................................................190
1
INTRODUO
Este trabalho o resultado de uma pesquisa etnogrfica feita na irmandade de
Alcolicos Annimos (A.A.)1, que, todas as noites, rene homens e mulheres para
compartilhar suas experincias com o objetivo de superar a chamada doena do
alcoolismo. Nele, discuto as relaes entre o binmio alcoolismo/doena e a
construo de uma noo de pessoa no interior de A.A., a partir de uma anlise dos
mecanismos simblicos colocados em prtica para fazer referncia ao lcool e ao
alcoolismo.
Em um momento em que o problema do alcoolismo desperta a ateno das
autoridades responsveis pelas polticas de sade pblica em vrios pases,
particularmente, no Brasil e os AAs se expandem em escala mundial e, notadamente, na
sociedade brasileira, pareceu-me fundamental compreender a maneira atravs da qual os
membros da irmandade orientam suas prticas tendo em vista sua recuperao, ao
mesmo tempo em que forjam uma representao especfica da noo de pessoa,
reconhecendo-se como doentes alcolicos.
Durante um ano freqentei suas reunies e conversei com os membros de um
grupo de A.A. localizado na periferia da cidade de So Paulo, visando compreender o
modo como eles vivenciam o alcoolismo e tentam mant-lo sob controle, concebendo-o
como uma doena incurvel, progressiva e fatal. Nesses encontros, verifiquei que o
alcoolismo considerado um problema, na medida em que conduz aqueles que vivem
essa experincia a uma situao de marginalidade e de excluso. isso que os AAs
expressam em suas narrativas, nas quais procuram construir um sentido para suas vidas,
ressaltando as perdas provocadas pelo uso do lcool, notadamente, na famlia e no
trabalho e as conquistas obtidas aps a entrada na irmandade.
1 Nas pginas seguintes, seguindo a maneira pela qual os membros de Alcolicos Annimos se referem irmandade, utilizarei as siglas A.A., para me referir irmandade dos Alcolicos Annimos, e AAs, quando me referir a seus membros. Para diferenciar de citaes, as falas dos AAs sero sempre grafadas em itlico.
2
Com isso, a medida em que o trabalho avanava percebi que as falas dos AAs
envolviam, sobretudo, referncias s suas relaes na vida familiar e profissional. Nas
reunies, eles falavam de si mesmos e dos conflitos vividos no tempo em que faziam
uso do lcool, ao mesmo tempo em que ressaltavam a recuperao dos papis sociais de
pai/me, esposo(a) e trabalhador(a). O programa de A.A. possibilitava, queles que
haviam tocado o chamado fundo do poo, a recuperao da responsabilidade pelo
cuidado de si e tambm de sua famlia.
Esse dado acabou dirigindo meu interesse tambm ao estudo da construo da
noo de pessoa dentro da irmandade e suas relaes com o modelo teraputico de
A.A.. Pois, se o alcoolismo , como dizem os AAs, uma doena individual, ele
tambm compreendido como uma doena da famlia, que afeta todos que vivem a
seu redor, notadamente, o cnjuge e seus filhos.
Dentro da irmandade se conjugam duas lgicas que presidem o processo
sade/doena aqui estudado: de um lado, uma lgica que prioriza o indivduo, tomando-
o como um doente alcolico em recuperao, e centro articulador do modelo
teraputico, e de outro, uma lgica hierrquica ligada aos valores famlia e trabalho,
que preside a fala da doena elaborada pelos AAs, na qual eles articulam e mobilizam
elementos do universo social no qual esto inseridos, atribuindo, assim, um sentido
experincia do alcoolismo, ao mesmo tempo em que definem uma compreenso prpria
de si mesmos.
Nesse sentido, este trabalho foi um mergulho para dentro desse universo, em
busca dos significados que o outro atribui sua existncia. Significados que, como
aponta Geertz (1989: 17) na epgrafe que abre este estudo, do sentido aos atos
cotidianos, tornando-os inteligveis para aqueles que os praticam. Trata-se, ento, de
procurar entender um outro universo de significao, na tentativa de desvendar a lgica
que lhe subjacente, a partir de um dilogo travado entre dois sujeitos, o pesquisador
e o pesquisado, reconhecendo os limites que essa relao impe.
Uma das idias fundamentais que norteiam as reflexes aqui apresentadas a de
que a realidade nada seria no fosse esse conjunto de significantes, por meio do qual
eventos, fatos, aes e contextos so produzidos, percebidos e interpretados, e sem os
quais no existem como categorial cultural. Nessa linha, buscou-se ler e compreender
tanto a maneira como os AAs orientam suas prticas, tendo em vista sua recuperao,
como as categorias que compem sua fala da doena, delimitando, assim, os contornos
3
de uma noo de pessoa alcolica que deve se responsabilizar pelo cuidado de si e
pelo provimento de sua famlia. Optou-se, tambm, por traduzir as citaes de
livros editados em lngua estrangeira - listados na bibliografia - como forma de
ampliar o universo de possveis leitores, incluindo a os AAs que ajudaram na pesquisa.
O itinerrio etnogrfico, contudo, s se completa no momento da escrita, no qual
a etnografia se converte, para usar, ainda, uma expresso de Geertz (1997), em
traduo. Ou seja, durante a escrita que os dados etnogrficos so lapidados e
possibilitam entrever a lgica das formas de expresso deles [os nativos], com nossa
fraseologia (1997: 20). Dessa maneira, as formas de expresso e de pensamento
daqueles que se consideram como doentes alcolicos em recuperao so tratadas
com seriedade, isto , consideradas como um objeto de descrio analtica e de
reflexo interpretativa (1997: 231).
Nessa perspectiva, nas pginas seguintes apresenta-se, a partir dos dados
etnogrficos, a conexo entre alcoolismo, doena e pessoa. O roteiro que nos servir de
guia composto de sete captulos. No captulo 1, apresenta-se o itinerrio terico e
metodolgico da pesquisa em A.A., ressaltando as caractersticas do local onde se
desenrolou a prtica etnogrfica e a de seus atores, ao mesmo tempo em que se
discutem os limites da relao entre pesquisador e pesquisado dentro de uma associao
de ex-bebedores. Apresentam-se, ainda, as leituras feitas sobre o modelo teraputico de
A.A. e suas relaes com o processo de individualizao vivido na modernidade,
buscando estabelecer contrastes com o campo ideolgico do individualismo moderno.
No captulo 2, apresentam-se os modos de compreenso do lcool e do
alcoolismo e tambm de suas estratgias teraputicas, com nfase especial tanto nos
esquemas de interpretao da doena como no modelo de A.A. e sua compreenso da
doena alcolica, entendida como uma doena inata, progressiva e fatal, que leva o
alcolico a perder o controle sobre o lcool. Busca-se estabelecer as relaes entre as
representaes elaboradas sobre o alcoolismo e a estratgia teraputica, enfocando as
sociedades de temperana norte-americanas, o higienismo francs e as campanhas
antialcolicas brasileiras do final do sculo XIX e incio do sculo XX. Busca-se
tambm delinear os contornos da noo de pessoa elaborada dentro da irmandade, a
partir da construo da identidade de doente alcolico em recuperao.
No captulo 3, discute-se o modo como se delineiam as fronteiras da
irmandade, a partir de uma anlise do programa de recuperao dos Doze Passos e das
4
Doze Tradies, demarcando seus limites em relao sociedade em geral e enfocando
o individualismo institucional que se elabora em seu interior, essencial para a
construo da identidade do doente alcolico em recuperao e da noo de pessoa
elaborada pela irmandade.
J, no captulo 4, aborda-se a reunio de recuperao de A.A., com nfase nas
prticas e nos rituais realizados em seu interior, com o objetivo de dar conta da doena
do alcoolismo, ressaltando o modo atravs do qual os AAs constroem um significado
experincia do alcoolismo, que orienta suas prticas tendo em vista recuperao, ao
mesmo tempo em que reforam os contornos da pessoa alcolica dentro do grupo.
No captulo 5, por sua vez, encontra-se a exposio da linguagem da doena
alcolica elaborada em A.A., a partir de uma anlise das categorias atravs das quais os
significados do alcoolismo so construdos. O modelo de A.A. entendido, aqui, como
um sistema simblico dentro do qual se constri uma nosografia fsica e moral da
doena alcolica, que envolve a totalidade da pessoa. Analise-se tambm a lgica
teraputica do modelo de A.A., evidenciando sua relao com os valores famlia e
trabalho, atravs dos quais os conflitos vividos nos tempos do alcoolismo ativo so
traduzidos.
No captulo 6, busca-se discutir as implicaes da doena alcolica sobre o
universo social no qual os AAs esto envolvidos, notadamente na famlia e no trabalho.
A partir da categorizao do alcoolismo como doena da famlia, evidencia-se a
maneira como os membros do grupo mobilizam aspectos presentes no universo social
no qual esto inseridos para construrem um sentido para a experincia da doena.
Discutem-se, ainda, as bases da compreenso do alcoolismo como uma doena
contagiosa, que atinge o indivduo ao mesmo tempo em que afeta a todos os que esto
ao redor, sobretudo a seus familiares.
No captulo 7, acompanha-se mais de perto a construo da identidade de
doente alcolico em recuperao, a partir de uma anlise dos mecanismos simblicos
colocados em prtica para dar conta da doena alcolica, com nfase na anlise tanto
da experincia do alcoolismo como uma derrota total, que conduz o alcolico ao
chamado fundo do poo, como da questo do anonimato na irmandade. Enfim,
desenham-se os contornos da pessoa alcolica fabricada dentro do grupo, enfatizando
o regime de alteridade instaurado pelo modelo teraputico da irmandade, no qual o
indivduo deve conviver com o mal do alcoolismo alojado em seu interior. A teraputica
5
de A.A. entendida, aqui, como um mecanismo ritual de estranhamento, que isola a
frao doente de si mesmo, representada na idia de um mal que o indivduo carrega
dentro de si, que faz parte dele, criando, assim, as condies necessrias para o controle
da doena e o conseqente resgate de seu lugar no universo relacional da famlia e do
trabalho.
6
Captulo 1
UM OLHAR ANTROPOLGICO SOBRE O
ALCOOLISMO E OS ALCOLICOS ANNIMOS
O alcoolismo considerado um dos mais srios problemas de sade pblica da
atualidade, despertando a ateno de autoridades mdicas e sanitrias de diversos
pases. Segundo os dados do I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas
Psicotrpicas no Brasil, realizado em 2001 pelo Centro Brasileiro de Informaes sobre
Drogas Psicotrpicas CEBRID (2002) , da Universidade Federal de So Paulo
UNIFESP , em conjunto com a Secretaria Nacional Anti Drogas SENAD ,
envolvendo as 107 maiores cidades do Pas, 11,2% da populao brasileira so
dependentes do lcool (2002: 37), e a prevalncia da dependncia est na faixa etria de
18 a 24 anos, em um total de 15,5% (2002: 47).
Na Frana, um estudo conduzido pelo Institut National de la Sant et de la
Recherche Mdicale (INSERM: 2003) aponta que, apesar de o consumo global de
lcool ter diminudo 40% nos ltimos quarenta anos, cerca de 8,6% da populao com
idade entre 12 a 75 anos tem algum problema relacionado ao lcool, o que totaliza
aproximadamente 5 milhes de pessoas, entre os quais 2 milhes so dependentes do
lcool (2003: 255). J nos EUA, estudos epidemiolgicos apontam para a prevalncia
da dependncia do lcool na faixa etria de 15 a 54 anos, atingindo cerca de 15% da
populao geral (2003: 252).
Nesse cenrio, a irmandade de A.A. tem se expandido em escala mundial,
fazendo parte do itinerrio teraputico de milhares de pessoas. Segundo Gabhainn
(2003), o nmero dos membros da irmandade tem crescido em progresso geomtrica,
tendo passado de 100 membros, em 1940, para 476.000, em 1980; para 653.000, em
1983; e para 979.000, em 1990. Em 2002, estimava-se que o nmero de grupos de A.A.
em todo mundo fosse de pouco mais de 100 mil, totalizando 2.215.293 membros,
segundo dados do Escritrio Mundial de Alcolicos Annimos. No Brasil, o primeiro
grupo surgiu em 1947 e, atualmente, h cerca de 5.700 grupos, perfazendo cerca de
7
120.000 membros, segundo dados do Escritrio de Servios Gerais de Alcolicos
Annimos.
Outro sinal da sua relevncia o surgimento posterior de outros grupos que
seguem o mesmo modelo teraputico, o que faz de A.A. uma espcie de grandparent
dos grupos de mtua ajuda (Gilbert, 1991: 353) destinados ao tratamento de outras
patologias, tais como: os Narcticos Annimos, que congrega os dependentes
qumicos e usurios de drogas; os Comedores Compulsivos Annimos, que rene
aqueles que sofrem de compulso alimentar; o grupo Mulheres que Amam Demais
Annimas, voltado para as mulheres com problemas afetivos e de relacionamentos; os
Neurticos Annimos, para os portadores de doena mental e emocional; os
Jogadores Annimos, para os dependentes de jogos de azar; o Al-Anon, para os
familiares e os amigos de dependentes do lcool; etc.
A crescente expanso da irmandade tambm chamou a ateno da mdia
impressa2 e visual, notadamente do cinema norte-americano (Room, 1989) e, nos
ltimos anos, de algumas telenovelas brasileiras3, todas preocupadas em abordar a
temtica do alcoolismo e o papel do modelo teraputico praticado pelos AAs.
Erigido em objeto de estudo privilegiado da medicina epidemiolgica e
psiquitrica, a partir dos estudos pioneiros do mdico sueco Magnus Huss, no sculo
XIX, o alcoolismo tratado, em geral, como problema patolgico, individual e social.
Com efeito, quer se trate do modelo mdico-moral, cujas anlises centraram-se no
chamado consumo excessivo de bebidas alcolicas e serviram de base para as aes dos
movimentos de temperana e das ligas antialcolicas do sculo XIX, que apareceram
principalmente na sociedade norte-americana (Blumberg, 1977; Soares, 1998), quer se
trate do modelo biomdico, preocupado com o estudo da dependncia alcolica, na
tentativa de traar sua etiologia e formas de tratamento (Jellinek, 1960; Descombey,
1998; Vaillant, 1998), tais estudos sempre tratam o alcoolismo como problema
individual, entendido, respectivamente, sob a tica do desvio e da patologia.
2 Destacam-se, nessa linha, as reportagens A luta contra o vcio, Revista Veja, So Paulo, n.8, 96-103, 24 fev 1999 e A salvao pelo anonimato, Revista Carta Capital, So Paulo, n. 255, 8-15, 27 ago 2003. 3 Para uma anlise da presena da temtica do alcoolismo e do modelo teraputico de A.A. nas telenovelas brasileiras, ver: Campos, 2004a.
8
Nesse sentido, se certa a prevalncia do problema do alcoolismo nos dias
atuais, ainda so raros os trabalhos, no mbito das cincias sociais, especialmente no
Brasil, que se ocupam tanto com o chamado uso patolgico de bebidas alcolicas
quanto das estratgias teraputicas utilizadas pelos AAs para dar conta da doena
alcolica, mesmo sendo conhecido o fato de que o Brasil um dos pases com maior
nmero de grupos de A.A. no mundo (Soares, 1999: 15)4.
Em geral, nas cincias sociais, como lembra Neves (2004), o alcoolismo aparece
como tema tangencial em estudos preocupados com a compreenso das formas e
maneiras de beber, de modo que o ato de beber entendido, sobretudo, como um ato
social (Machado e Silva, 1978; Dufour, 1989; Guedes, 1997; Bernand, 2000; Magnani,
2003), sinalizando para os contextos nos quais o uso do lcool valorizado e nos quais
opera como uma espcie de lubrificante social (Neves, 2004: 9) e favorece a
construo de laos de reciprocidade, constitutivos dos espaos de sociabilidade.
Ora, a equao alcoolismo/doena pode se revelar um importante objeto de
estudo, notadamente quando os prprios nativos entendem o alcoolismo como
doena. Mas tomar o alcoolismo como doena no significa necessariamente ratificar
o modelo biomdico, quando este o ponto de vista dos entrevistados, tal como ocorre,
por exemplo, em A.A.. Durante suas reunies, os ex-bebedores se reconhecem como
doentes alcolicos: Sou um doente alcolico em recuperao e venho s reunies
para deixar de ser aquele cachaceiro que eu era, dizem os AAs, assinalando a
passagem de uma posio na qual o beber considerado abusivo estigmatizado para
uma posio na qual o ato de beber entendido de maneira patolgica.
Nessa medida, o par alcoolismo/doena relativizado e entendido dentro de um
contexto cultural especfico. Os grupos de A.A. podem, ento, ser compreendidos como
um universo social, com seus ritos, representaes, smbolos e valores prprios, que
proporciona aos seus membros, tanto a possibilidade de reorganizarem suas condutas
como a de atriburem significados prprios ao problema do alcoolismo, ao mesmo
tempo em que constroem uma representao especfica de si mesmos.
4 importante ressaltar, contudo, os esforos empreendidos nos ltimos anos em Programas de Ps-graduao de vrios institutos vinculados s universidades brasileiras, com o intuito de preencher essa lacuna, atravs do estmulo a pesquisas focalizadas na equao alcoolismo/doena e, sobretudo, na atuao dos grupos de Alcolicos Annimos (cf. Barros, 2001; Garcia, 2004; Mota, 2004).
9
A irmandade torna-se, assim, um local privilegiado para o estudo das
representaes e dos significados produzidos em torno da chamada doena alcolica,
e suas relaes com a construo da noo de pessoa. Isso porque, nos espaos
construdos pelos seus membros, so vivenciados, como sublinha Neves (2004), os
modos de construo do alcolico como identidade redentora, graas entre-ajuda ou
soluo coletiva5 (2004: 12 grifo do original), de forma que os associados podem
falar de si mesmos sem as presses da culpa e do preconceito.
Ao analisar o modelo teraputico de A.A., pode-se compreender o alcoolismo de
uma maneira mica, isto , tal como ele pensado e gerido por aqueles que se
reconhecem como doentes alcolicos em recuperao. Com isso, pode-se entender a
maneira atravs da qual os AAs abordam o alcoolismo, como eles o explicam, o
vivenciam e tentam super-lo, concebendo-o como uma doena crnica e fatal, ao
mesmo tempo em que forjam uma compreenso especfica de si mesmos.
O objetivo deste trabalho examinar esse quadro, relacionando-o com a
construo da noo de pessoa. Trata-se de pensar no s no contexto da expanso de
A.A., mas, sobretudo, em seu modus operandi, atravs da anlise dos mecanismos
simblicos colocados em prtica para dar conta do lcool e do alcoolismo, e que tornam
possvel a construo de uma representao de si mesmos como doentes, ao mesmo
tempo em que se forja uma noo de pessoa dentro da irmandade.
Nessa linha, pretende-se contribuir para preencher a lacuna existente nos estudos
sobre o par alcoolismo/doena sob a tica das cincias sociais, oferecendo uma
interpretao desse fenmeno a partir da maneira pela qual aqueles que se identificam
como doentes alcolicos reinventam a experincia do alcoolismo, deslocando seu
discurso de uma posio de marginalidade social para uma posio na qual se vislumbra
a possibilidade de integrao e resgate dos laos sociais.
5 Vale tambm recuperar a advertncia de Neves (2004) sobre as dificuldades e os limites da investigao antropolgica, no contexto da investigao sobre alcoolismo, e a necessidade de se explicitar os contextos culturais e simblicos com os quais se constroem os significados sobre as diferentes formas e maneiras de beber e suas interdies.
10
1.1 A construo da pessoa alcolica: um enfoque antropolgico
Mas qual a relao existente entre o alcoolismo, entendido como uma doena
crnica e fatal, de base gentica, e a construo da noo de pessoa em A.A.? Como a
irmandade, entendida como uma entidade autnoma e auto-suficiente, sem vnculos
institucionais com o Estado, contribui para forjar uma representao prpria da noo
de pessoa? Como seu modelo teraputico contribui para (re)construo subjetiva de seus
membros?
Os AAs se ocupam, nica e exclusivamente, da recuperao do indivduo que
sofre do alcoolismo, considerado um doente alcolico em recuperao. Seguindo suas
prprias tradies, a irmandade no se envolve em polmicas pblicas, sejam sobre as
causas do alcoolismo sejam sobre seus efeitos no organismo. Como conseqncia, seus
membros no se engajam em polticas sociais que visem estabelecer um controle social
sobre o consumo de bebidas alcolicas.
Nessa linha, opera-se com um modelo cuja unidade central o indivduo,
valorizado em sua singularidade. Ao longo dos anos, um vasto repertrio de expresses
foi criado e reproduzido no interior da irmandade, acentuando o carter individual de
seu programa de recuperao: A.A. um programa egostico ou Primeiro eu,
segundo eu, terceiro eu. Todas essas falas ressaltam a necessidade de o indivduo que
se considera doente se engajar no processo teraputico, tornando-se responsvel por sua
prpria recuperao, reafirmando seu compromisso de evitar o primeiro gole a cada
24 horas.
Ora, essa centralidade no indivduo nos leva a refletir sobre como o modelo de
A.A. se inscreve no interior do processo de individualizao prprio das sociedades
modernas. A irmandade foi edificada durante as transformaes que sacudiram a
sociedade norte-americana do final do sculo XIX e do incio do sculo XX,
notadamente em torno do debate sobre o uso e os efeitos do consumo de bebidas
alcolicas. Sua origem protestante, e veio no bojo do debate em torno da temperana,
11
que resultou na promulgao da Lei seca nos Estados Unidos6. Seus fundamentos
pragmticos, seu esprito associativista e sua relao com o modelo biomdico de
combate ao alcoolismo fazem da irmandade um empreendimento solidrio aos valores
da sociedade que a produziu, tais como: a autonomia, a escolha, a liberdade, a
responsabilidade e a vontade, que h muito foram apontados por Tocqueville como
os valores caractersticos da modernidade.
Em seu livro De la dmocratie en Amrique, publicado em duas edies
sucessivas, em 1835 e em 1840, Tocqueville aponta o modo como a sociedade norte-
americana edifica os pilares da democracia moderna, cujo fundamento principal est na
noo de indivduo, considerado como um ser autnomo e soberano, ao mesmo
tempo em que reflete sobre as conseqncias do individualismo moderno (cf. Renaut,
1998: 25-38):
O individualismo origina-se da democracia e ameaa desenvolver-se na medida em que as condies se tornam iguais [...] Na medida em que as condies se tornam iguais, aumenta o nmero de indivduos que, j no sendo ricos ou poderosos o bastante para exercer grande influncia sobre o destino de seus semelhantes, conservaram ou adquiriram, no obstante, instruo e bens suficientes para bastarem-se a si mesmos. Nada devem a ningum; habituam-se a se considerarem sempre de forma isolada e at imaginam que seu destino esteja em suas mos. Assim, a democracia no s leva cada homem a esquecer-se de seus antepassados, mas tambm lhe esconde seus descendentes e o separa de seus contemporneos; sem cessar, ela o traz de volta para si mesmo, ameaando enclausur-lo na solido de seu corao 7 (Tocqueville, 1961: 144-145 trad. minha).
O debate travado em torno do alcoolismo e de seus efeitos sobre a vida fsica e
moral do alcolico envolvem, portanto, as relaes entre o livre-arbtrio e a
determinao, entre a vontade e a necessidade, entre a responsabilidade e a
dependncia, entre a capacidade de escolha e a perda de controle sobre o lcool.
6 A irmandade dos Alcolicos Annimos nasceu em 1935, em Akron, no Estado de Ohio, nos Estados Unidos, aps uma conversa entre um corretor da Bolsa de Nova York e um mdico, ambos conhecidos, respectivamente, como Bill Wilson e Bob Smith. Eles constataram que, por alguma razo at ali no bem compreendida, conseguiam ficar sem beber durante bons perodos depois que passavam algum tempo conversando e compartilhando seu problema. Aps vivenciar uma verdadeira experincia espiritual e experimentar fortes sentimentos de triunfo, paz e serenidade, segundo depoimento do prprio corretor, ele decidiu trabalhar para que outros alcolicos se beneficiassem com a descoberta e montou os primeiros grupos. 7 Os textos em lngua estrangeira citados ao longo deste trabalho, como destacamos na Introduo, foram todos por mim traduzidos. Quando possvel, cotejamos com tradues disponveis em lngua portuguesa.
12
Evidentemente, os valores que compem o eixo semntico da modernidade no
foram inventados pelo A.A., mas so rearranjados em seu interior, delineando, assim, os
contornos de uma noo de pessoa que se faz necessrio investigar.
Essa investigao ainda mais se justifica se levarmos em conta que alguns
comentadores tendem a inserir o modelo de A.A. no interior daquele eixo semntico,
acentuando, de maneira unvoca, o carter individualista de seu programa de
recuperao.
Exemplo disso a leitura que Giddens (1996; 1997) faz do papel desempenhado
por A.A. nos dias atuais. Para esse autor, o programa de recuperao da irmandade
favorece a reflexividade individual, na medida em que contribui para a ampliao da
autonomia de seus membros. A partir do intercmbio de elementos da vida pessoal, a
irmandade possibilita uma maior interao entre os indivduos, favorecendo seu
amadurecimento, dotando-os de mais autonomia.
Dessa perspectiva, a irmandade se constitui em um cenrio de ao, no
interior do qual os indivduos podem exercitar a reflexividade, tornando-se agentes
responsveis8. Conversando e interagindo, atravs do intercmbio de elementos de
suas vidas emocionais, os AAs podem superar os obstculos impostos pelos chamados
vcios e comportamentos compulsivos.
Para Giddens, os chamados vcios e comportamentos compulsivos esto
diretamente ligados s estruturas da modernidade. Nesse sentido, o vcio, antes de ser
um fenmeno fisiolgico, um fenmeno social e psicolgico (1997: 90). Com efeito,
a compulsividade, em sentido mais amplo, uma incapacidade para escapar do
passado (1997: 85), estando diretamente ligada tradio. Ou, como sugere Giddens,
na modernidade a tradio se transforma em compulso. Ou seja, trata-se da natureza
obsessiva da modernidade, na qual os indivduos repetem suas aes, mas agora sem o
sentido tradicional que as alimentava, constituindo-se, portanto, num poderoso
obstculo emancipao e autonomia do sujeito. Nessa linha, a compulsividade pode
8 Para Giddens (1991:45): a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as prticas sociais so constantemente examinadas e reformuladas luz de informao renovada sobre essas mesmas prticas, alterando assim constitutivamente seu carter. Nessa linha, o que caracteriza a modernidade no o apetite para o novo como comumente de diz , mas a suposio de uma reflexividade indiscriminada, que inclui a reflexo sobre a natureza da prpria reflexo. Nas sociedades modernas, o passado no pode ser utilizado pelos agentes como nica fonte de inspirao e sabedoria no monitoramento de suas aes. No mundo moderno, os agentes sociais usam de sua capacidade reflexiva, isto , utilizam o conhecimento produzido sobre suas prprias prticas para (re)avali-las e justific-las.
13
ser entendida como o outro lado da revoluo cognitiva proposta pela modernidade,
impedindo os indivduos de se tornarem mais conscientes e responsveis pelas suas
aes.
As prticas e conversas estabelecidas no interior dos grupos so, ento,
fundamentais para que os indivduos, no sentido moderno do termo, tornem-se agentes,
capazes de monitorar reflexivamente suas aes.
Com efeito, seu modelo possibilita a realizao de uma espcie de democracia
das emoes, capaz de conduzir os indivduos a ter um bom entendimento de sua
prpria constituio emocional (1996: 25). Os indivduos que so capazes de se
comunicar de maneira eficiente com os outros, em uma base pessoal, provavelmente
esto bem preparados para as tarefas e responsabilidades mais amplas da cidadania
(1996: 25). Os AAs exercem, ento, uma importante influncia democratizadora no
interior das sociedades atuais graas prpria forma de sua associao social (1996:
138). Para Giddens (1996: 138) , o grupo:
Possui uma forma organizacional que inibe as hierarquias fixas. Ele [o A.A.] propositadamente se dispe a criar o mximo de espao discursivo para seus membros; alm disso, tambm est interessado no desenvolvimento de autonomia. A comunicao com os outros, produzida por uma autocompreenso aumentada e para ela contribuindo, o meio pelo qual a pessoa que padece de um vcio torna-se capaz de super-lo.
Alm dessa funo democratizadora, esse autor tambm ressalta o
importante papel de agente fiscalizador desempenhado pelos AAs, pois contestam
definies antes tidas como oficiais. Paralelamente a isso, eles tambm atuariam
como agentes equalizadores do poder tcnico-cientfico, importantes para arrebatar o
poder dos peritos e na recuperao leiga da percia, de forma mais genrica (1996:
139).
A anlise que Giddens faz do modelo adotado pela irmandade se aproxima
muito de uma perspectiva que cada vez mais ganha espao nas anlises dos grupos de
apoio formados, sobretudo, pelos prprios doentes, a saber, a perspectiva do
empowerment. Vasconcelos (2003), em estudo sobre portadores de doena mental e
suas estratgias de tratamento, define o empowerment como: o aumento de poder e
autonomia pessoal e coletiva de indivduos e grupos sociais nas relaes interpessoais e
institucionais, principalmente daqueles submetidos a relaes de opresso, dominao e
14
discriminao social (2003: 20). Para o autor, A.A. um caso exemplar desse conceito,
na medida em que favorece o ganho de autonomia de seus membros, que encontram um
modo prprio para gerir a doena do alcoolismo, responsabilizando-se pelo cuidado
de si mesmos.
A leitura psiquitrica de Edwards (1995) tambm acentua o carter
individualista do programa de recuperao do alcoolismo de A.A.. Para ele, o programa
de recuperao um programa egosta, no qual cada um busca a sobriedade por ele
mesmo, e no para agradar quem quer que seja, sem se manter refm do destino (1995:
213). Nessa linha, o programa visa, notadamente, autonomia do indivduo, uma vez
que, ao partilhar suas experincias, o alcolico est, na verdade, ajudando a si mesmo,
confirmando suas prprias foras. Com efeito, a tarefa da irmandade no [a de] fazer
proselitismo, mas sim a de garantir a sobriedade e, conseqentemente, a autonomia dos
membros da irmandade.
Tanto a anlise de Giddens quanto a de Vasconcelos e a de Edwards enfatizam o
carter individualista-reflexivo do modelo de A.A. e o conseqente ganho de
autonomia por parte dos doentes alcolicos, ao colocarem em prtica o programa de
recuperao do alcoolismo da irmandade. Tudo se passa como se esse modelo fosse um
resultado da individualizao do processo sade/doena. Os AAs so, ento,
identificados como agentes capazes de controlarem a doena alcolica, recuperando,
assim, a autonomia perdida nos tempos do alcoolismo ativo. Ao contrrio do indivduo
dependente, que perdeu o controle sobre o lcool, tornando-se incapaz de controlar
sua vida seguindo sua prpria vontade, os AAs so entendidos como agentes
autnomos que recuperaram a capacidade de escolha e o controle da prpria
doena, responsabilizando-se pelo cuidado de si mesmos.
Todavia, se certo que o indivduo doente ocupa uma posio central no modelo
de A.A., atuando como eixo articulador em torno do qual se constri toda sua estratgia
teraputica, cabe avaliar a maneira como esse modelo sinaliza para uma construo
particular da noo de pessoa, estabelecendo contrastes em relao ao processo de
individualizao da modernidade. Ao contrrio do que concebem as leituras
anteriormente descritas, neste trabalho enfatiza-se a maneira pela qual o modelo
teraputico da irmandade forja uma noo de pessoa diferencial, que relativiza o
processo de individualizao, caracterstico da modernidade.
15
Desde o estudo de Marcel Mauss (2001a), publicado originalmente em 1938:
Une catgorie de lesprit humain la notion de personne celle de moi, os estudos
sobre a noo de pessoa tm assumido uma posio de destaque dentro do campo
conceitual da antropologia. Em seu estudo, Mauss retoma o empreendimento
durkheiminiano de traar uma histria social das categorias do esprito humano,
aplicando-o noo de pessoa. Assim, em vez de ser um dado a priori e de ter uma
validade universal, a noo de pessoa aparece como uma construo cultural, histrica e
social. Partindo de um fundo primitivo, no qual o indivduo no se distingue do prprio
cl, Mauss aponta como a pessoa vai se destacando de seu enraizamento social para se
afirmar como categoria jurdica, moral e lgica (Goldman, 1996: 86). A compreenso
da noo de pessoa depende, ento, de um inventrio minucioso das formas adquiridas
por essa noo no interior das vrias construes culturais (Velho, 1999).
Como j enfatizaram Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979), o texto de
Mauss assume o papel formador que as categorias coletivas de uma sociedade exercem
sobre a organizao e a prtica concreta nessa sociedade (1979: 6 grifo do original).
Nesse sentido, a noo de pessoa entendida como uma categoria coletivamente
construda, que d um significado ao vivido. Em outros termos: a noo de pessoa
assume a condio de categoria antropolgica, isto , a de uma unidade socialmente
investida de significao, cabendo antropologia descrever os modos pelos quais as
diferentes culturas e grupos sociais a elaboram.
Essa relativizao da noo de pessoa encontra eco na obra de Louis Dumont,
notadamente em sua definio terica da hierarquia e a conseqente especificao da
chamada ideologia do individualismo. assim que, aprofundando a linha aberta por
Mauss, sua obra coloca no centro da reflexo antropolgica a noo de indivduo,
fundamento sobre o qual se eleva o edifcio da modernidade.
Em os Essais sur lindividualisme: une perspective sur lidologie moderne
(1983), Dumont investiga as bases dessa noo de indivduo, entendida como valor
articulador da experincia moderna. Contra a idia de um indivduo universal, sua obra
descortina as bases que fundamentam essa pretensa universalidade, a saber, a
ideologia prpria modernidade.
A noo de ideologia assume, aqui, um sentido distinto do carter negativo
presente na tradio marxista. Em vez de um vu ou cmara obscura que encobriria
a realidade, a ideologia vista como um sistema de idias e de valores que tem curso
16
em um dado meio social (1983: 20). Mas, qual ideologia sustenta a moderna
concepo do indivduo como valor supremo? A resposta encontrada no
individualismo: a ideologia moderna individualista sendo o individualismo
definido sociologicamente do ponto de vista dos valores globais (1983: 21). Para
Dumont, portanto, o valor indivduo compe o eixo semntico em torno do qual se
estrutura toda cultura ocidental moderna9.
No Ocidente, a ideologia do individualismo assume um aspecto determinante,
elevando a categoria do indivduo a um plano superior, diferenciando a cultura ocidental
de outras formaes culturais. O valor indivduo assume, ento, o sentido da
totalidade; de um valor que engloba as experincias na vida social moderna,
acentuando, como lembra Duarte (1983: 2-27), o carter paradoxal da modernidade10.
O paradoxo torna-se mais evidente se levarmos em conta sua teoria da
hierarquia, que opera como um princpio estruturador dos sistemas sociais e [das]
vises de mundo em que prevalecem representaes de pessoa (Duarte, 2003: 175).
A hierarquia entendida como o princpio pelo qual toda a experincia humana
(intelectual ou prtica) pressupe uma distribuio diferencial (culturalmente definida)
do valor no mundo, que permite justamente a orientao do sujeito em situao
(Duarte, 2003: 175-176). no interior dos sistemas holsticos que se elabora o sentido
da totalidade e so construdas as representaes da pessoa que orientam os sentidos das
aes na vida social. tambm pelo princpio da hierarquia que a vivncia
propriamente cultural pode se incorporar em um valor, traduzindo de maneira
diferencial o sentido da totalidade, que caracteriza uma determinada configurao
9 Dumont recorre antropologia comparativa para estabelecer a especificidade e a unidade da cultura ocidental moderna. Com efeito, o autor traa uma comparao entre a sociedade ocidental e a sociedade hindu, demonstrando que, enquanto na ndia impera um padro holstico, cujo valor recai sobre a totalidade social, no Ocidente impera a noo do indivduo como valor supremo. 10 Se acompanharmos a proposta de Dumont de entender a categoria religio como aquela que no universo do pensamento segmentado mais se refere ao sentido da totalidade, do valor encompassador, e, por outro lado, se aceitarmos como legitima a hiptese que o eixo semntico desse valor se armaria em nossa cultura em torno da noo de Indivduo, encontramo-nos com um curioso paradoxo [...], pois teramos como totalidade justamente um princpio que a nega; como valor encompassador justamente o que segmenta, privatiza, individualiza, e como religio, justamente o que seculariza, des-magiciza e racionaliza (Duarte, 1983: 6).
17
social. Paradoxalmente, na sociedade ocidental moderna, o princpio que traduz a
totalidade justamente aquele que incorpora a parte, isto , o indivduo11.
A obra de Dumont aponta, assim, para a crtica da idia substancialista de
indivduo, isto , de uma noo de indivduo a priori, independentemente das condies
histricas e sociais. O empreendimento dumontiano, expresso, particularmente, em seu
livro Homo aequalis (2000), de procurar compreender nosso tipo moderno de
sociedade, fundada na igualdade, a partir de um modelo de sociedade baseado na
hierarquia, revelou a importncia da aplicao do mtodo antropolgico comparativo
no estudo da construo moderna de indivduo, elevando-o condio de valor supremo
da modernidade, dissolvendo a clssica oposio entre igualdade e hierarquia. Em
suma, como explica Dumont (2000: 15), essa oposio,
trata de valores sociais gerais, englobantes, que devem ser distinguidos claramente da simples presena de um trao e de uma idia num plano ou noutro da sociedade. Em um sentido mais amplo, igualdade e hierarquia esto necessariamente combinados, de uma forma ou outra, em todo sistema social.
Torna-se fundamental, portanto, a compreenso dos modos diferenciais de
construo da noo de indivduo, integrado s representaes e aos valores que
orientam as aes na vida social. Como lembra Velho: Cabe distinguir o lugar do
indivduo na construo social da identidade de qualquer grupo ou sociedade e o
desenvolvimento de uma ideologia individualista que, em princpio, estaria vinculada a
tipos particulares de experincia e histria (Velho, 1999: 44-45 grifos do original).
Ora, o estudo do modelo teraputico construdo por A.A. para dar conta da
doena alcolica pode ser uma via de acesso para a compreenso do modo diferencial
de construo dessa noo, a partir da fabricao da pessoa alcolica no interior da
irmandade12. Em A.A. assiste-se construo de uma noo de doena alcolica
11 Ainda segundo Duarte (1986a: 92): Esse seria um dos sentidos mais profundos da teoria de Dumont sobre a hierarquia: o de demonstrar que mesmo esta ideologia individualista que a nega no seno em ltima instncia um seu caso particular e paradoxal. Como ocorre com as representaes holistas e hierrquicas tradicionais, tambm as nossas operam com as diferenas procurando uni-las sob a gide de um valor. nossa grande vantagem e nosso instigante enigma que esse valor totalizante seja a prpria parte, o prprio indivduo. 12 Como lembra Duarte (2003: 180), a experincia da sade e da doena uma importante via de acesso no estudo das formas diferenciais de construo da noo de pessoa : a experincia da sade/doena interpela a integralidade da identidade pessoal, impondo aes e reaes mobilizadoras de sentido [...] Pe em cena horizontes de significao e princpios de ao complexos e diferenciados, que o esquema analtico da pessoa/indivduo ajuda a compreender em nossa sociedade.
18
crnica e fatal e da identidade do doente alcolico em recuperao no interior de
uma ordem prpria, na qual se constroem os significados da experincia do alcoolismo.
Nas reunies, os AAs reiteram sua condio de doentes, reconhecendo-se impotentes
em relao ao lcool, e que precisam de ajuda para sua recuperao. Nos relatos do
chamado tempo da ativa, no qual faziam um uso compulsivo do lcool, eles narram
a perda de controle sobre as doses ingeridas. Em outras palavras, eles narram como o
alcoolismo os conduziu condio de heteronomia, na qual no podiam dirigir suas
vidas seguindo a prpria vontade, tornando-se incapazes de escolher entre beber ou no
beber.
Como conseqncia, os AAs reconhecem que a chamada doena alcolica os
conduziu perda da responsabilidade tanto no cuidado de si quanto no provimento da
sua famlia atravs do trabalho. Refns do lcool, eles reconhecem que chegaram ao
fundo do poo, isto , que viveram perdas relacionais, rompendo todos os elos que
os ligavam aos amigos, famlia e ao trabalho. Com isso, o alcoolismo revela sua dupla
face, isto , uma doena do indivduo, que conduz o doente a fechar-se sobre si
mesmo, encerrando-o no ciclo da dependncia do lcool, mas que tambm entendido
como uma doena da famlia, que afeta todos aqueles que vivem ao seu redor,
notadamente, cnjuge e filhos.
Nessa perspectiva, a recuperao s pode ocorrer dentro da irmandade, com a
ajuda do Poder Superior, consubstanciado nos depoimentos dos demais membros do
grupo. Ou seja, s participando das reunies e ouvindo os depoimentos dos demais
companheiros que os AAs podem recuperar a responsabilidade perdida no tempo do
alcoolismo ativo.
O modelo teraputico da irmandade funda-se, assim, na relao de troca, na qual
o dar, o receber e o retribuir das experincias vividas constituem a base do lao social e
das relaes de reciprocidade capazes de fazer os AAs manterem-se sbrios. Como
assinala Godbout (2004a: 104),
[o modelo ] fundado sobre o princpio da ddiva. Uma pessoa que aceita tornar-se membro deve reconhecer que alcolica e que ela no pode se recuperar sozinha, que sua capacidade de se recuperar vir de fora, de uma ddiva de uma fora superior tal como ela mesma a compreende.
19
Esse processo corresponde, fundamentalmente, instaurao de um peculiar
regime de alteridade, baseado na fabricao de um corpo e de um esprito doentes, de
maneira que a doena alcolica apreendida como um outro que cada dependente
traz dentro de si mesmo, que est alojado em seu interior; condio essa que deve ser
compartilhada com os demais membros do grupo, possibilitando, assim, a manuteno
da sobriedade.
No estaramos aqui justamente diante da fabricao de uma noo de pessoa
que problematiza a idia de indivduo como uma realidade a priori, ao mesmo tempo
em que relativiza a crena moderna na indivisibilidade e na auto-suficincia de uma
noo do prprio eu, considerado autnomo e soberano? O modelo de A.A.
parece indicar que a capacidade de escolha e a responsabilidade s podem ser
recuperadas dentro da matriz relacional da irmandade, a partir do reconhecimento das
prprias limitaes e da impossibilidade de se enfrentar a doena do alcoolismo
sozinho.
A noo de indivduo responsvel pelo cuidado de si e de sua famlia s pode
florescer dentro do grupo, na comunicao com os demais membros que se encontram
na mesma situao, a partir do reconhecimento de que necessrio aprender a conviver
com um outro dentro de si, representado pela idia de que se portador da doena
crnica e fatal do alcoolismo. Somente assim, o indivduo considerado doente pode se
responsabilizar pelo cuidado de si mesmo, ao mesmo tempo em que recupera os papis
sociais de pai/me, esposo(a) e trabalhador(a).
nessa perspectiva que este trabalho busca caracterizar o diferencial da
construo da pessoa em A.A., relacionando-o maneira como se d organizao social
da irmandade e, notadamente, fabricao da identidade durante o processo teraputico,
de modo a lanar contrastes ao individualismo, e assinalando as possveis
(des)continuidades em relao ao campo ideolgico moderno.
A definio dessa temtica foi objeto de uma confluncia de aspectos tericos e
metodolgicos que tornaram possvel articular, a partir do trabalho etnogrfico, as
prticas e os significados elaborados em torno do lcool e do alcoolismo, enfocando o
processo de construo social da identidade do doente alcolico em recuperao e,
por essa via, da noo de pessoa. Vale a pena, portanto, retraar o itinerrio etnogrfico
que resultou na sua realizao.
20
1.2 A pesquisa de campo: encontrando os alcolicos annimos
O etngrafo inscreve o discurso social: ele o anota. Ao faz-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu prprio momento de ocorrncia, em um relato, que existe em sua inscrio e que pode ser consultado novamente. Clifford Geertz
Para dar conta dos objetivos propostos, realizamos uma pesquisa de campo,
entre setembro de 2001 e setembro de 2002, no grupo Sapopemba de A.A., que faz
parte do 42 distrito de Alcolicos Annimos do Estado de So Paulo, do Setor A
Capital13. A escolha desse grupo deveu-se ao fato de se tratar de um j consolidado na
promoo de reunies de recuperao, que acontecem desde de sua fundao, em 16 de
maro de 1981.
Meu encontro com os Alcolicos Annimos ocorreu por intermdio de um
amigo que, durante uma conversa, na qual eu relatava meu interesse em fazer uma
pesquisa sobre o programa de recuperao do alcoolismo desenvolvido pela entidade,
disse-me conhecer um grupo prximo sua residncia, localizada na Vila Ema,
pertencente ao populoso distrito de Sapopemba14, na zona leste da cidade de So Paulo.
Ele tambm me disse que os AAs se reuniam todas as noites e que poderia lhes fazer
uma consulta sobre a possibilidade de eu realizar minha pesquisa ali. Aps ele ter
consultado os membros do grupo, marcamos um dia para minha ida ao local.
No dia marcado, encontrei-o na estao do metr Belm e seguimos de nibus
para a sede do grupo. O percurso levou cerca de uma hora, e eu estava preocupado com
a pontualidade importante ressaltar que todas as reunies em que tive a
possibilidade de participar comearam pontualmente s 20h , pois no queria me
atrasar em meu primeiro encontro.
13 A irmandade de Alcolicos Annimos conta com 524 grupos em todo Estado de So Paulo, organizados em 56 distritos, divididos em 11 setores. No setor A (Capital), existem 204 grupos de A.A., organizados em 19 distritos, segundo dados do Escritrio de Servios Locais - ESG/SP. Disponvel em: Acesso em: 13.01.2005. 14 Segundo dados do IBGE e da Fundao SEADE, o distrito de Sapopemba o segundo distrito paulistano em densidade populacional, contando, em 2004, com 286.857 habitantes. Disponvel em: Acesso em 20.12.2004.
21
O itinerrio percorrido foi revelando a paisagem tpica das periferias das grandes
cidades. Posteriormente, percorrendo as ruas do distrito, foi possvel discernir traos
importantes de sua formao social. O distrito de Sapopemba localiza-se em uma regio
limtrofe com o parque industrial do ABC, conhecido pela grande concentrao de
indstrias do setor automobilstico. Essa proximidade, decisiva para a configurao
social do distrito, foi responsvel pelo fluxo migratrio, a partir dos anos 1950, de um
grande contingente populacional, atrado pela promessa de melhores condies de vida.
O bairro concentra uma populao majoritariamente trabalhadora, que depende
do prprio salrio para sua reproduo social, e assemelha-se, em sua forma, aos bairros
vizinhos, delineando os contornos de uma paisagem composta por casas simples, ou
inacabadas, ou em processo de construo, e que servem de local de moradia, ao mesmo
tempo, para a prpria famlia e para a de seus filhos, quando estes vm a se casar.
Exemplo disso o vivido por Jorge15, 63 anos, casado, 4 anos de A.A., taxista, que
mora com sua esposa e seus trs filhos em uma casa onde, na parte cima, um cmodo
foi construdo para abrigar sua outra filha, seu genro e seus dois netos.
Alm de abrigo para o ncleo familiar, a casa tambm tem um papel importante,
funcionando, muitas vezes, como local de atividade econmica, na maioria das vezes
informal, um recurso utilizado como forma de aumentar a renda familiar16. So
pequenos estabelecimentos que oferecem os mais variados servios, tais como: conserto
de sapatos, venda de salgadinhos, cabeleireiro, costureira, servios de pedreiro, conserto
de geladeiras, de ferro de passar roupas etc. Aqui, mais uma vez Jorge quem nos d o
exemplo: ele me relatou que certa vez tinha resolvido comprar equipamentos para abrir,
em sua casa, um pequeno comrcio de venda de salgados e lanches, que seria
administrado por ele e sua esposa. Com isso, ele esperava, ao mesmo tempo, aumentar a
renda familiar e deixar de trabalhar com o txi, que dirigia h mais de 20 anos, deixando
para seu filho mais velho esse ofcio. Aps algum tempo, constatou-se que o negcio
no havia prosperado; resolveu-se, ento, vender a geladeira e o fogo adquiridos e
fechou o estabelecimento. Jorge e sua esposa montaram um pequeno salo de
15 Atendendo solicitao dos entrevistados, de preservao do principio do anonimato, os AAs so tratados, aqui, por pseudnimos. 16 Segundo dados do IBGE e da Fundao SEADE, referentes ao Censo de 2000, 61,38% dos habitantes do distrito de Sapopemba vivem com uma renda familiar que oscila na faixa de 2 a menos de 10 salrios mnimos. J 18,08% da populao vivem com renda familiar inferior a 2 salrios mnimos. Disponve; em: (Acesso em 20.12.2004).
22
cabeleireiro, onde ela atualmente trabalha, para aumentar a renda familiar. Ele voltou a
dirigir o txi noite, enquanto o filho trabalha com o carro durante o dia.
A situao vivida por Jorge emblemtica da queda do nmero de empregos
formais, em funo das sucessivas crises econmicas vividas nas ltimas dcadas. Estas
so responsveis por colocar um contingente expressivo de trabalhadores da regio na
situao de risco de perda do emprego, aumentando a fragilidade econmica em que
vivem. Percorrendo a avenida Sapopemba, que atravessa, em sua longa extenso, todo o
distrito, possvel constatar o aumento da atividade informal pelo grande nmero de
barracas de marreteiro que se distribuem em suas caladas.
Nos ltimos anos, ocorreu um avano do setor de servios na regio, com a
abertura tanto de redes de fast-food como de grandes supermercados, o que contribuiu
para o aumento da oferta de empregos formais, mas essa oferta ainda est longe de
absorver um grande contingente de trabalhadores, na sua maioria com pouca ou
nenhuma especializao profissional17.
Mas viver no distrito de Sapopemba tambm permite formular uma viso prpria
sobre a vida nas periferias das grandes metrpoles:
Eu percebo que nosso bairro periferia. Ento, na periferia, aquela dificuldade, a maioria da populao toda desempregada. [...] Eu, como sou daqui, cheguei aqui no bairro em 1970, j faz um bocado de anos que eu fao parte desta comunidade [...] Eu vejo que no existe um lazer na regio, o lugar mais prximo no parque do Carmo. Eu vejo uma dificuldade de conduo. Aqui em Sapopemba no tem um posto de sade (Paulo, 48 anos, casado, 22 anos de A.A., sapateiro, entrevistado em 25 jan. 2005).
No olhar de Paulo, o bairro aparece classificado como periferia, cuja condio se
define atravs das dificuldades compartilhadas cotidianamente, dentre as quais se
destacam o desemprego e a falta de infra-estrutura de transporte e sade, tornando mais
difcil a luta pela sobrevivncia.
Segundo recorte feito a partir dos dados oficiais, relativos ao ano de 2002, o
distrito no contava com equipamentos culturais tais como, por exemplo: salas de
cinema, salas de teatro, casas de cultura, centros de cultura, museus e espaos e oficinas
17 Segundo dados do IBGE e da Fundao SEADE, em 2002, o setor de servios foi responsvel por 54,4% dos vnculos empregatcios formais, no distrito de Sapopemba, contra 16,3% da indstria. Disponvel em: (Acesso em 20.12.2004).
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culturais18. Todavia, circulando por suas ruas, possvel visualizar uma sociabilidade
que se desenvolve em espaos de lazer, os quais instauram uma alteridade em relao ao
espao domstico e ao local de trabalho. Esse o caso, por exemplo, dos bares, que, em
nmeros expressivos, povoam suas esquinas e ruas. O bar aparece, muitas vezes, como
uma das poucas alternativas de lazer para os moradores da regio.
O distrito abriga ainda uma escola de samba a Combinados de Sapopemba
, da qual fazem parte alguns membros de A.A., e cujos ensaios para o carnaval
mobilizam os moradores em seus momentos de lazer. No ms de junho, ocorre o
aniversrio do distrito, que comemorado em uma grande festa a Festa de
Sapopemba , engajando seus moradores nos preparativos necessrios sua
organizao e realizao. H tambm uma igreja catlica, centros espritas e terreiros de
umbanda, que convivem com uma quantidade cada vez mais crescente de igrejas
evanglicas, instaurando um circuito religioso pelo qual seus moradores circulam,
participando de atividades que, muitas vezes, concorrem com as poucas opes de lazer
oferecidas na regio. A igreja catlica tambm abriga reunies de Narcticos Annimos
e do Al-Anon, irmandades paralelas, dirigidas, como j foi dito, aos dependentes de
drogas e aos familiares e aos amigos de dependentes do lcool, respectivamente. No
raro, tambm possvel ver algum membro de A.A. durante a missa, fazendo a
divulgao das reunies do grupo.
Durante a pesquisa, constatamos, no chamado livro de registro19 e, tambm,
em conversas com o coordenador e com o responsvel pela manuteno da sala de
reunies do grupo Sapopemba, um total de 86 pessoas registradas como membros
ingressantes no grupo. Destes, 81 so homens e 5 mulheres. A presena macia de
homens uma caracterstica marcante dos grupos de A.A., o que tambm confirmado
por Garcia (2004: 57-60) em sua pesquisa no grupo Doze Tradies, localizado no
municpio de So Gonalo, no Estado do Rio de Janeiro.
18 Disponvel em: Acesso em 20.12.2004. 19 Embora no faa um controle rigoroso da freqncia s atividades, o grupo Sapopemba mantm um livro de registro no qual so anotados os nomes dos membros quando de sua entrada no grupo e, tambm, daqueles veteranos que continuam participando das suas reunies. Os AAs me disseram que esse livro deve sua existncia autonomia do grupo, que pode decidir manter um controle desse tipo, caso seus membros julguem necessrio. Eles disseram, ainda, que, atravs desse livro, possvel saber a mdia de membros que freqentam o grupo, facilitando o repasse da contribuio do grupo aos rgos de servios da irmandade. Alm do livro de registro, h tambm um livro de freqncia, que os membros assinam todos os dias, quando chegam para as reunies.
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Segundo as informaes colhidas, dos 86 ingressantes, 37 deles se afastaram do
grupo: 36 homens e uma mulher. A grande rotatividade de membros outra
caracterstica presente no cotidiano da irmandade20. No caderno de ingresso, possvel
observar o seguinte o quadro, referente ao tempo existente entre o ingresso e o
afastamento do grupo:
Quadro 1 Tempo entre ingresso e afastamento em A.A.
Tempo decorrido entre o ingresso no
grupo e o afastamento
Nmero de membros
Menos de 1 ms 00 entre 1 ms e 6 meses 15 entre 7 e 12 meses 13 entre 13 e 18 meses 07 entre 19 e 24 meses 02
Em relao aos membros que mantm um vnculo permanente com a irmandade,
possvel estabelecer o seguinte quadro, segundo os registros mantidos pelo grupo:
Quadro 2 Tempo de permanncia no grupo
Tempo de permanncia no grupo Nmero de membros
at um 1 ano 11 entre 2 e 5 anos 17 entre 6 e 10 anos 02 entre 11 e 15 anos 09 entre 16 e 20 anos 07 mais de 20 anos 03
Atravs da observao das atividades do grupo e tambm dos registros em seu
caderno de presena, constatamos que, nas reunies de recuperao, h uma freqncia
mdia de 15 membros. Entre aqueles com os quais conversamos, 18 no total, apenas um
tem menos de 40 anos. Os demais esto em uma faixa etria que varia entre 40 e 73
anos. Esse dado tambm confirmado por Garcia, que v nele um indcio de que a
20 Garcia (2004: 60-61) observa que, no grupo Doze Tradies, no ano de 2002, 5 membros no chegaram a completar um ms de permanncia; 4 atingiram 9 meses; 18 esto entre 1 e 9 anos; 11 tm entre 10 e 19 anos; e 4 tm 20 e 29 anos de permanncia. Os motivos aventados para o afastamento de um membro do grupo so, segundo comentrios feitos por aqueles que permanecem, as chamadas recadas, situao em que o alcolico volta a beber, a mudana para outros grupos ou a busca por outras opes de tratamento.
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maturidade fsica um fator relevante na percepo das perdas e na deciso de filiar-
se associao (2004: 59 grifo do original).
Todavia, se certo que a elevada faixa etria dos AAs um indicador de que a
maturidade fsica favorece a percepo das perdas acumuladas durante o chamado
tempo do alcoolismo ativo, isso se deve tambm ao fato de que o uso considerado
abusivo do lcool provoca efeitos danosos no s ao organismo do alcolico, mas
sobretudo, sua famlia. Logo, a elevada faixa etria parece tambm ser um indcio da
percepo do elo existente entre os planos fsico e moral que a doena do alcoolismo
envolve.
Entre os membros que contatamos21, significativo o nmero de aposentados
(seis), os quais ainda continuam trabalhando em atividades informais, chamadas de
bicos, como forma de obter alguma renda. Destacam-se tambm cinco membros que
no tm vnculo empregatcio formal: um marceneiro, dois pedreiros, um sapateiro e um
taxista. Em nmero menor (trs), esto os que tm um emprego formal: um assistente
administrativo, um motorista e um zelador. Entre as mulheres, duas so donas de
casa, como elas prprias se consideram, uma funcionria pblica e uma est
aposentada.
A associao do uso de lcool s massas trabalhadoras constitui uma referncia
consagrada no mbito das pesquisas relativas aos sistemas de classificao e s relaes
de poder, que visam estabelecer formas de controle social sobre os membros das
camadas populares22 (Neves, 2004: 11). Contudo, ao se priorizar a escolha de um grupo
de A.A. sediado em um bairro popular, no se pretendeu, com isso, deduzir os
significados elaborados em torno da doena do alcoolismo da condio social de seus
membros. Trata-se sim, metodologicamente, de analisar, a partir de um caso concreto, o
modo como a fala da doena articula e mobiliza elementos do universo social no qual os
21 Como no foi possvel entrevistar todos os membros do grupo, os dados apresentados referem-se queles membros com os quais mantivemos contato nos dias em que participvamos das reunies de recuperao. 22 Para Neves (2004), um eixo de anlise muito recorrente aquele que associa o uso do lcool s massas trabalhadoras, enfatizando as situaes de precariedade socioeconmica, aglutinado-se em torno da equao pobreza, precariedade e alcoolismo, acabando por legitimar intervenes sobre esse contingente da populao. Com efeito, de um modo positivo, a associao tende a valorizar a relao entre precrias e adversas condies de trabalho e o uso sistemtico ou abusivo de lcool. De um modo negativo, a associao tende a consagrar a articulao entre o uso abusivo de bebida alcolica e a imprevidncia individual, incompatvel com desempenhos de papis de esposo, companheiro e pai (2004: 11).
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AAs esto inseridos, permitindo-lhes atribuir um sentido experincia do alcoolismo,
ao mesmo tempo em que definem uma compreenso prpria de si mesmos.
Durante os depoimentos, os AAs destacam, sobretudo, as perdas acumuladas na
vida em famlia, durante o perodo ativo do alcoolismo. A esfera familiar uma
referncia fundamental para os membros do grupo. significativo que a maioria se
tenha declarado casada. Entre os homens, nove se declararam casados, trs, solteiros, e
um, vivo. Entre as mulheres, duas se declararam casadas e duas vivas. exceo dos
solteiros, os demais declararam todos que tm filhos.
A metodologia de pesquisa contou, fundamentalmente, com a realizao de
entrevistas e com a observao de diversas atividades promovidas pela irmandade dos
Alcolicos Annimos. Foram observadas as reunies de recuperao do grupo (ver
captulo 3), alm de outras atividades promovidas pelo grupo, tais como: encontros,
reunies de servios, reunies de unidade, reunies temticas, festas comemorativas do
aniversrio do grupo etc. Nesses encontros, os AAs narram uns aos outros, em
verdadeiros depoimentos pessoais, feitos em primeira pessoa e chamados de partilhas,
suas experincias vividas antes e depois da entrada em A.A.
J as entrevistas foram individuais e semi-estruturadas, e aconteceram, em sua
maior parte, em 2001 e 2002. Como forma de se obter um melhor controle sobre os
dados coletados, realizamos outras, no final do ano 2004 e incio do de 2005. Ao longo
da pesquisa de campo, tambm foram entrevistados familiares de um dos AAs, sua
esposa e suas duas filhas, com a finalidade de avaliar as representaes elaboradas sobre
o lcool, o alcoolismo e o programa de A.A. e suas repercusses na vida familiar de um
alcolico. Essas foram as nicas entrevistas fora da sala do grupo.
A possibilidade de entrevist-los ocorreu a partir da relao de afinidade
estabelecida entre mim e Jorge. Fui convidado a ir sua casa em um domingo para
almoar e depois conversar com sua esposa e suas filhas sobre o problema que foi o
alcoolismo. Fui recebido por sua esposa, que estava na cozinha, preparando uma
galinhada e, logo que cheguei, fui alertado para no reparar na desarrumao,
pois ela estava desde de cedo cozinhando. Esse encontro foi fundamental, pois me
permitiu vivenciar um aspecto importante que ordena a convivncia cotidiana na famlia
de um morador do distrito de Sapopemba. Ser convidado para um almoo um signo de
distino, sobretudo, porque, como lembra Sarti (2005b: 61),
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os papis familiares complementam-se para realizar aquilo que importa para os pobres, repartir o pouco que tm [...] Na mesma medida em que a alimentao a prioridade dos gastos familiares, oferecer comida tambm um valor fundamental, fazendo os pobres prdigos em oferec-la.
Durante a conversa com sua esposa e suas filhas, Jorge se ausentou da sala, o
que permitiu que elas ficassem vontade, como ele mesmo fez questo de frisar,
para falar sobre os efeitos de seu alcoolismo na convivncia familiar. Essas entrevistas
tambm foram semi-estruturadas, e os depoimentos foram todos transcritos. As entrevistas individuais e com os familiares de um alcolico foram
fundamentais para a pesquisa, pois permitiram uma aproximao mais intensa com os
membros do grupo. Com efeito, se, nas reunies, foi possvel delimitar a fala a respeito
da doena no interior do modelo teraputico fornecido pela irmandade, nas entrevistas
individuais foi possvel estabelecer um maior controle sobre os dados, de maneira a
compreender o modo como os alcolicos elaboram uma compreenso prpria do
programa de recuperao e de como este repercute em suas vidas, favorecendo a
construo da identidade de doente alcolico em recuperao e, ao mesmo tempo, de
uma noo particular de pessoa.
1.3 Um no-alcolico em Alcolicos Annimos
A realizao de um trabalho de campo, contudo, no se limita simples coleta
de dados para a pesquisa. Como lembra Geertz (1989: 29), o etngrafo inscreve o
discurso social em suas anotaes, transformando-o de acontecimento passado em um
relato que existe em sua inscrio. O trabalho de campo nos coloca, assim, diante do
universo do outro; e viver essa experincia da alteridade tambm implica um
questionamento sobre ns mesmos.
Vive-se, ento, uma situao complexa, na qual o necessrio engajamento
exigido para a compreenso do ponto de vista dos nativos tambm traz consigo a
problematizao da questo epistemolgica dos limites entre o pesquisador e o
pesquisado. Isso se torna mais evidente quando estamos diante de um grupo que faz
parte da mesma sociedade do pesquisador, a exemplo da irmandade de Alcolicos
Annimos.
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Desde de minha chegada ao grupo, pude sentir o impacto de estar adentrando um
local onde eu representava o papel do diferente, do estranho; em uma palavra, do
outro. Primeiramente, fui apresentado como professor e pesquisador a Paulo,
poca secretrio geral do grupo, que me recebeu muito bem, oferecendo-me caf e
bolachas.
Mas logo percebi que minha presena chamava a ateno de todos, despertando
sua curiosidade. Eles queriam saber sobre o que era o meu trabalho, como eu ficara
sabendo da existncia de Alcolicos Annimos e do grupo e o porqu de meu interesse
pelo alcoolismo. Meu amigo e Paulo me apresentavam a todos como professor e eu
respondia s perguntas do modo mais direto e simples possvel, dizendo que tinha
interesse em conhecer melhor o modo como a irmandade tratava o problema do
alcoolismo e que iria escrever um livro sobre esse assunto. A princpio, essa resposta
satisfez a todos, que passaram a me tratar como algum que ali estava para apreender o
programa de A.A.
Desde o primeiro momento, eu deixei claro quais eram meus interesses em
participar das reunies do grupo. Todavia, o fato de eu ter sido apresentado ao grupo
por algum que mantinha relaes com os alcolicos praticantes dos pass
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