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Mnica Cristina Ribeiro
ARQUEOLOGIA MODERNISTA
Viagens e Reabilitao do Primitivo em Mrio e Oswald de Andrade
Dissertao de mestrado apresentada ao Departa-mento de Antropologia Social do Instituto de Filo-sofia e Cincias Humanas da Universidade Estadu-al de Campinas sob a orientao da Profa. Dra. He-losa Pontes.
Este exemplar corresponde redao final da dissertao defendida e aprovada pela Comisso Julgadora em 14/12/2005
BANCA
Profa. Dra. Heloisa Pontes
Prof. Dr. Guilherme Simes Gomes Jr
Profa. Dra. Fernanda Peixoto
DEZEMBRO/2005
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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Palavras-chave em ingls (Keywords): Culture
Travel Modernism rea de Concentrao: Antropologia Social Titulao: Mestre em Antropologia Banca examinadora: Heloisa Andre Pontes (orientador)
Fernanda Peixoto Guilherme Simes Gomes Jr. Data da defesa: 14 de dezembro de 2005.
Ribeiro, Mnica Cristina R354a Arqueologia Modernista : viagens e reabilitao do primitivo em
Mrio e Oswald de Andrade / Mnica Cristina Ribeiro. - - Campinas, SP : [s. n.], 2005.
Orientador: Heloisa Andre Pontes. Tese (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.
1. Cultura. 2. Viagens. 3. Modernismo. I. Pontes, Heloisa Andre. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.
(sfm/ifch)
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resumo
Este trabalho pretende desvendar a importncia das viagens na vida e na obra de Mrio e Oswald de Andrade na dcada de 1920. Mais ainda, como as viagens mostraram-se uma importante fora forma-dora e transformadora do modernismo desses dois autores e na verdade do modernismo paulistano e brasileiro no mesmo perodo e como foram determinantes para os rumos de Mrio e Oswald na dcada seguinte. Estas questes so alinhavadas a partir do delicado acontecimento do contato com o outro entendido aqui, fundamen-talmente, como possibilidade de reavaliao e de contato consigo mesmo. A anlise feita a partir das cartas trocadas entre Mrio de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e C-mara Cascudo, e tambm a partir de artigos e entrevistas de Oswald de Andrade. Os depoimentos dos dois modernistas so cruzados com as obras de sua autoria concebidas na dcada de 1920, tudo is-so analisado luz das viagens e das tentativas de reabilitao do primitivo empreendidas pelo modernismo.
abstract This work intends to unmask the importance of the trips in the life and the workmanship of Mario and Oswald de Andrade in the decade of 1920. Even more, as the trips had revealed to an importante forma-tion and transforming force of the modernism of these two authors and in fact the paulistano and Brazilian modernism in the same pe-riod and how they had been determinative for the ways of Mario and Oswald in the following decade. These questions are tacked from the delicate event of the contact with the other understood here, basi-cally, as reevaluation possibility and contact with oneself. The analy-sis is made from letters changed between Mario de Andrade and Car-los Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Camara Cascudo, and also from articles and interviews of Oswald de Andrade. The depositions of the two modernists are crossed with the workmanship of its authorship conceived in the decada of 1920, everything ana-lyzed to the light of the trips and the attempts of whitewashing of primitive elements undestaken by the modernism.
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I n d i c e
Agradecimentos.......................................................................................................................5
Introduo.................................................................................................................................9
Captulo 1 Comeando uma conversa.......................................................................21
1.1 - Preparando as bases.............................................................................................28
1.2 - Ainda o primitivo e as vanguardas europias.....................................................46
Captulo 2 As viagens .....................................................................................................57
2.1 - Antecedentes de Oswald turista intuitivo.........................................................57
2.2 - Antecedentes de Mrio turista aprendiz..........................................................65
2.3 - A redescoberta de 1924........................................................................................73
2.4 - Civilizao versus Cultura....................................................................................82
2.5 Itinerrios..............................................................................................................94
2.6 A descoberta dos Brasis......................................................................................117
Concluso: O olho armado impresses e dirios de viagem..........................121
Referncias bibliogrficas...............................................................................................139
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Agradecimentos
Esse trabalho foi concludo em meio a um profundo questionamento s minhas diver-
sas esferas de pertencimento. A sensao de desencontro foi constante durante sua feitura.
Meus agradecimentos so para as pessoas que, durante o processo de construo do texto,
contriburam para que essas esferas voltassem a gravitar em torno do eixo do equilbrio.
A presena de Luiz Ruffato, grande amigo, foi fundamental para conversas informais
ainda que em menor nmero do que eu gostaria a respeito de minha posio no mundo.
Mundo das letras, mundo paulistano, mundo da mineiridade. Foi ainda Ruffato o responsvel
indireto por meu ingresso no programa de ps-graduao da Antropologia na UNICAMP,
incitando sempre meu questionamento, j existente, profisso por mim escolhida e desper-
tando os modernistas adormecidos dentro de mim desde a iniciao cientfica em histria,
realizada em meu perodo de graduao. Ruffato tambm foi fundamental na discusso das
questes que aqui se encontram colocadas e na sensibilidade em me presentear com livros que
se desdobraram em fontes preciosas, direta ou indiretamente, para este trabalho.
No campo afetivo, agradeo a pacincia, o carinho e a compreenso de Cac Hansen,
com quem divido minha vida h alguns anos, que soube respeitar os perodos de isolamento
necessrios e foi muito presente em toda essa trajetria. Agradeo ainda amigos importantes
nessa jornada pela acolhida, pelo carinho e pela compreenso, dos quais no cito nomes para
no tornar este agradecimento mais extenso do que deveria. Finalmente, agradeo aos meus
pais, que embora no tenham acompanhado de perto este trabalho, sempre apoiaram minhas
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decises e projetos, e mais do que isso, minha teimosia em fazer coisas que pareciam impos-
sveis.
Bela Bianco, atravs de sua disciplina Etnografia e sociedades modernas, me fez apu-
rar o olhar para a questo das viagens, das fronteiras e das chamadas dimenses dispricas,
nas palavras de James Clifford. Sueli Kofes foi fundamental para desbravar Lvi-Strauss e
seu Pensamento Selvagem, proporcionando oportunidade para nova leitura guiada por outros
passos.
Mariza Corra merece um agradecimento muito especial. Meu primeiro contato com o
Departamento de Antropologia foi feito atravs dela, via e-mail, apresentando uma idia ainda
rala, sem consistncia alguma, dizendo que prestaria o concurso para o mestrado e gostaria de
t-la como orientadora. Tivemos uma formao com alguns pontos de semelhana, ela tam-
bm jornalista que enveredou-se pela antropologia. Mariza me pediu que entrasse em contato
com Helosa Pontes, que teria o perfil mais interessante para me orientar. Esse talvez seja meu
maior agradecimento a Mariza.
Helosa Pontes foi a melhor orientadora que eu poderia ter encontrado. Fui uma orien-
tanda um tanto quanto calada, e sempre pensei que isso a afligia de algum modo. O fato de eu
ter optado por no aceitar a bolsa e manter minhas atividades profissionais causou certa frou-
xido nos prazos que impus a mim mesma. A inexperincia com leituras antropolgicas, fruto
de minha formao jornalstica, e a necessidade de atualizao das leituras sobre o modernis-
mo em pauta neste trabalho me fizeram demorar a delimitar o objeto de estudo, e isso causava
incmodo at a mim mesma. Helosa foi paciente em esperar que eu fizesse minhas costuras
at chegar ao produto final, digamos assim. Foi hbil em compor a banca da qualificao, tra-
zendo duas pessoas de fundamental importncia para a construo deste trabalho tal qual se
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encontra agora: Fernanda Peixoto e Guilherme Simes Gomes Jr. A essas duas pessoas tam-
bm registro meu agradecimento por, de comum acordo, terem ajudado a traar o norte desta
dissertao. Agradeo Helosa por tudo isso e pela pacincia e delicadeza com que conduziu
todo o processo de orientao.
Finalmente, meu agradecimento a Mrio de Andrade, que atravs de uma carta a Onei-
da Alvarenga, de agosto de 1940, deu-me um sbio conselho, num momento em que eu me
encontrava enredada em alguns dilemas para finalizar o trabalho: Mas voc sofre daquele
delrio honesto de perfeio que lhe quer impedir escrever sobre um assunto enquanto no
tiver lido toda a bibliografia desse assunto. Conheo essa tentao do Demnio que eu tam-
bm sofri. a mesma que faz os neocomungantes se perguntarem angustiados si no enguli-
ram alguma gotinha dgua enquanto lavavam os dentes. Deixe de bobagem, Oneida, vamos
pra diante. Voc no percebe que tudo isso so tentaes da preguia, impedimentos da vaida-
de, mscaras da covardia? Faa a sua conferncia e saia dela com a convico, no de ter dado
tudo o que podia, mas o suficiente para ser til e honesta.Tudo a existncia, e custa uma
vida. S no dia da morte voc ter dado tudo quanto poude.
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Introduo
Mrio e Oswald de Andrade so figuras emblemticas do modernismo brasileiro, e j
tiveram vida e obra devassadas em diversas reas do conhecimento. Estudos literrios, biogr-
ficos, sociolgicos, histricos, enfim, buscaram e buscam desvendar suas palavras e as inten-
es por trs delas. A renovao constante desses estudos tem conseguido acrescentar novos
retratos ao modernismo dos dois autores, o que mais do que bem-vindo. essa renovao
que nos permite desvelar as diversas camadas em que se encontrava arquitetado o pensamento
desses dois Andrades.
Dentre essas contribuies, talvez a que mais tardiamente tenha se configurado e que
esteja, ainda hoje, buscando seu espao seja a da antropologia. So poucas as anlises vin-
culando a primeira gerao modernista, essencialmente em sua feio paulista, antropologia.
Dentre as contribuies que merecem destaque figura a tese de doutorado de Amir Geiger1,
que trabalha a questo da crtica e do primitivismo no modernismo brasileiro. O trabalho de
Geiger se volta basicamente para duas direes possveis: observar a forma como os moder-
nistas recorreram a conceitos antropolgicos e os modificaram, elaborando idias relacionadas
a temas prprios ou prximos disciplina; observar a disposio ou capacidade de reconhecer
um pensamento em fatos nativos que a princpio no condizem com as expectativas de racio-
nalidade.
1 Cf. GEIGER, Amir. Uma antropologia sem metier primitivismo e crtica cultural no moder-nismo brasileiro. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional, 1999.
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Segundo Geiger, essas duas direes se cruzam e se complementam no par paradigm-
tico do modernismo brasileiro, que ser tambm objeto de anlise neste trabalho: Mrio e Os-
wald de Andrade.
Em Mrio, uma reflexo profunda e continuada, um conhecimento extenso
de tanta coisa que veio a se tornar objeto dos estudos de folclore e antropolo-
gia. Mas cujo exame vem sempre mostrar a distncia que o separa da disci-
plina da qual pode a justo ttulo ser considerado um precursor. (...) Em Os-
wald, a sntese intuitiva, a legendria falta de leituras, as intervenes provo-
cativas e no construtivas tudo parece separ-lo do que h de metdico e
objetivo nas cincias sociais. (...) E como no levar em conta que descartar
seu pensamento como confuso, no fundamentado, intuitivo e irracional etc
perigosamente semelhante dificuldade da primeira antropologia em reco-
nhecer no primitivo um pensamento digno desse nome? (GEIGER, 1999: 3-
4)
Quero crer que, mesmo antes de existir disciplinarmente no Brasil uma preocupao
com o estudo da antropologia, o movimento modernista teve momentos de inspirao eminen-
temente antropolgica, em que categorias ou noes caras a essa rea de estudos foram mani-
puladas numa situao muito peculiar, vivida pelos intelectuais de um pas que comemorava
ento, especificamente no ano em que se realizava a Semana de Arte Moderna, apenas cem
anos de independncia de Portugal. Para isso, parto do pressuposto, tambm experimentado
por Geiger, que o modernismo da dcada de 1920 deve ser considerado como efetiva ruptura,
momento ou local em que elementos de representao e interpretao do Brasil sofrem um
rearranjo significativo.
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Flagrando o modernismo brasileiro em sua feio paulista, este trabalho intenta des-
vendar como Mrio e Oswald de Andrade produziram obras2 de algum modo marcadas por
uma inspirao antropolgica ao lidarem com categorias e/ou noes como primitivismo, exo-
tismo, civilizao, cultura, brasilidade e carter brasileiro. Pretende ainda revelar a importn-
cia dos itinerrios de viagem na conformao do modernismo desses dois autores.
O recorte escolhido para essa anlise concentra-se na dcada de 1920. O Brasil encon-
trava-se ento em plena Repblica Velha. Era ainda um pas predominantemente agrcola que
comeava a testemunhar um surto de industrializao, em especial no sudeste, e tambm de
urbanizao. Todas as cidades estavam em processo de crescimento. No entanto, o salto mais
espetacular deste perodo foi registrado pela capital do Estado de So Paulo. O crescimento
industrial daquela cidade devia-se a dois fatores em especial: o caf e os imigrantes.
Os movimentos sociais ganhavam fora no campo tais como Canudos e o movimen-
to que se formou em torno de Padre Ccero Romo Batista em Juazeiro. Greves por salrios e
melhores condies de trabalho aconteciam tambm nas fazendas cafeeiras de So Paulo.
Movimentos sociais urbanos surgiram com a vinda dos imigrantes. Entre 1917 e 1920 um
ciclo de greves de grandes propores tomou as principais cidades do pas, em especial em
So Paulo e no Rio de Janeiro.
O Partido Republicano Paulista, constitudo pela burguesia cafeeira, tinha grande peso
na poltica federal, e dominava juntamente com os militares. Os dois segmentos constituam-
se nas grandes foras de disputa pelo poder. No entanto, na dcada de 1920 comeamos a ter
uma maior diversificao partidria, com a fundao do Partido Comunista Brasileiro do Bra-
2 As obras em questo so, essencialmente, Manifesto Poesia Pau-Brasil (1924), Pau-Brasil (1925) e Manifesto Antropfago (1928), no caso de Oswald de Andrade, e Cl do Jabuti (1927) e Macunama (1928), no caso de Mrio de Andrade. Considero estas obras sntese do pensa-mento dos dois modernistas na dcada de 1920. O que no impede, no entanto, que outras obras de sua autoria tenham sido consultadas e apaream ao longo deste trabalho.
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sil em 1922 e do Partido Democrtico em 1926. A dcada testemunharia ainda o tenentismo,
movimento de revolta contra o governo da Repblica movido por figuras oficiais de nvel in-
termedirio do Exrcito. Em pauta, o conflito entre tenentes e oligarquia dominante.
A sociedade civil paulistana que promoveu a Semana de Arte Moderna na cidade de
So Paulo compunha um segmento apartado de toda esta movimentao. O movimento surgiu
nos grandes sales de arte e do convvio de uma elite que passava parte do tempo na Europa a
negcios ou para completar sua formao artstica. deste pequeno mundo que saem Oswald
de Andrade (1890-1954), Paulo Prado (1869-1943) e Tarsila do Amaral (1886-1973), por e-
xemplo. E de um outro mundo, intermedirio entre este e o anterior, que surge Mrio de
Andrade (1893-1945).
As escolhas partidrias de Oswald e Mrio refletem suas origens e preocupaes. Os-
wald nasceu dentro do Partido Republicano, do qual seu pai fazia parte. E a ele permaneceu
fiel at o ano de 1929, quando o crash da bolsa de Nova York o fez perder muito dinheiro.
Dali pulou direto para o Partido Comunista, e para a causa operria, convertido em leitor de
Karl Marx, renegando suas razes e literatura burguesas. Mrio de Andrade, por sua vez, esta-
va entre os fundadores do Partido Democrtico, cujo programa poltico tinha muitos pontos
em comum com seus posicionamentos sociais e estticos: reforma poltica por meio do voto
secreto e obrigatrio; representao das minorias; independncia dos trs poderes etc.
Em meio a todas essas mudanas aceleradas que tomavam a capital de So Paulo na
dcada de 1920, esse grupo de modernistas testemunhava o progresso e a civilizao que aos
poucos se refletiam na fisionomia da cidade. Comearam ento a buscar uma arte e uma est-
tica que fossem condizentes com tudo isso. A vanguarda europia, em especial a francesa,
serviria de mola mestra para o abandono do passadismo. No entanto, no meio deste percurso,
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nossos modernistas se do conta que a atualizao e a modernizao da linguagem e dos pin-
cis em si no bastava. Eles sentiam falta de um contedo expressamente nacional por trs das
novas formas experimentadas. O modernismo da dcada de 1920 ser ento marcado por esses
dois compassos atualizao e tentativa de nacionalizao.
Oswald de Andrade fazia parte da elite burguesa que passava grande parte do ano na
Europa. Viajava constantemente, tanto a negcios quanto para promover o modernismo brasi-
leiro diga-se paulistano e conhecer de perto as manifestaes inspiradoras da vanguarda.
Mrio de Andrade, por sua vez, parece interessado, desde o incio da dcada de 1920, em des-
vendar o Brasil pelo vis da cultura popular. Por esse motivo, embora no tenha ido Europa
uma nica vez, tem trs destinos de viagem importantes, que so aqui abordados: Minas, Nor-
te e Nordeste.
As questes pontuadas acima acerca das mudanas significativas que tomavam o pas
no passaram desapercebidas pelos modernistas. A produo de obras ditas revolucionrias
pelo prprio grupo no incio da dcada de 1920 seria balanada tambm, e no s pelo
contato com o outro. As viagens de Oswald Europa e de Mrio por parte do Brasil propor-
cionaram o encontro com realidades diversas daquela experimentada pelo grupo em So Pau-
lo. Este o ponto que interessa a esse trabalho.3
Na constituio da histria da etnologia, muitos foram os casos em que o contato com
o outro promovido pelas viagens despertou o questionamento s esferas pessoais de pertenci-
mento. Cito aqui apenas dois: Kurt Nimuendaju e Buel Quain. O primeiro o exemplo do
3 Ao abordar o modernismo de Mrio e Oswald de Andrade na dcada de 1920 pelo vis da antropologia, este trabalho no intenta, de modo algum, enquadrar a obra e as viagens empreen-didas por esta dupla no quadro de experincias de campo que integram a constituio da etnolo-gia. Pretende apenas empreender uma leitura deste contexto pelo vis da inspirao antropol-gica que pode ser depreendido das viagens realizadas pela dupla e do encontro com o outro num perodo bastante complexo da histria do pas.
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gone native, que resolveu alterar seu modo de vida e permanecer entre os nativos estudados,
adotando alguns de seus postulados de vida. O alemo Kurt Unkel, posteriormente batizado
pelos ndios como Nimuendaju, permaneceu entre os Guarani, Caingang, J e Tukuna durante
40 anos. H relatos de que ele se envolvia profundamente com as sociedades que estudava,
demonstrando inclusive dificuldade em esconder sua antipatia por grupos tribais que no pas-
sado tinham ajudado brancos a combater outros indgenas.4 O segundo, um americano que
veio ao Brasil na dcada de 1930, suicidou-se brutalmente em 1939 no Amazonas, entre os
ndios krah, contando apenas 27 anos. Sua histria rendeu o livro Nove Noites, de Bernardo
Carvalho, onde o autor intui que a morte do americano tinha algo a ver com sua vida: ou Qua-
in saiu esvaziado da experincia com os ndios ou foi tomado por uma crise existencial anteri-
or, que levou-o a se misturar com os Krah. Carvalho se dedica a investigar a histria, mas
mostra-se, ao fim de sua obra, guiado por obsesses que tm a ver com seu prprio passado.
O encontro com o outro mostra-se, assim, ponte para encontro consigo mesmo. Mrio
de Andrade, no relato de suas viagens ao Norte e ao Nordeste, reunidos no livro O Turista
Aprendiz, j dizia em 18 de maio de 1927, durante sua estada no Amazonas: H uma espcie
de sensao ficada da insuficincia, de sarapintao, que me estraga todo o europeu cinzento e
bem-arranjadinho que ainda tenho dentro de mim.5 Lvi-Strauss, em Tristes Trpicos, inda-
ga-se: Seria ento isso, a viagem? Uma explorao dos desertos de minha memria, e no
tanto daqueles que me rodeavam?6
Procurei construir este trabalho a partir de um argumento especfico: a importncia das
viagens na vida e na obra de Mrio e Oswald de Andrade na dcada de 1920. Mais ainda, des-
4 Cf. MELATTI, Julio Cezar. Curt Nimuendaju e os js, palestra proferida no 3 Curso de Indi-genismo realizado em Curitiba em 1983 e publicada na Srie Antropologia n 49 5 Cf. ANDRADE, Mrio. O Turista Aprendiz. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002, p. 59-60. 6 Cf. LVI-STRAUSS, Claude. Tristes trpicos. So Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 357.
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vendar como as viagens mostraram-se uma importante fora formadora e transformadora do
modernismo desses dois autores e na verdade do modernismo paulistano e brasileiro no
mesmo perodo e como foram determinantes para os rumos de Mrio e Oswald na dcada se-
guinte. Busco alinhavar estas questes a partir do delicado acontecimento do contato com o
outro entendido aqui, fundamentalmente, como possibilidade de reavaliao e de contato
consigo mesmo.
Para discutir esse argumento, fao uma reviso bibliogrfica do movimento modernista
sem a pretenso de passar por todos os livros, artigos e ensaios produzidos sobre os autores
em questo. Ao contrrio, durante as leituras procurei me concentrar nas obras mais respeita-
das, significativas e de certo modo tambm as clssicas.
Essa reviso se faz nos moldes de Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade: co-
mea de trs para diante. A primeira parte da dissertao situa os dois modernistas na dcada
de 1930, estampando sua atuao como conseqncia de toda a movimentao dos anos 1920.
Ocupa-se justamente de promover a reviso do modernismo desde o ano de 1917, contextuali-
zando a questo da produo literria nos diversos acontecimentos e na produo de conheci-
mento que tomava o mundo, at o final da dcada de 1920. Alm de demonstrar como a arte
de vanguarda europia alimentava-se, naquele momento, de elementos considerados exticos,
trazidos de outras culturas atravs das crescentes viagens pelo mundo e da etnologia - ento
uma cincia em plena conformao -, busco mapear outros pontos de interseo, tais como a
psicanlise de Freud e o trabalho de Lvy-Bruhl. Aponto tambm o descompasso encontrado
pelos modernistas entre uma So Paulo que crescia num ritmo rpido e a mentalidade de sua
gente, que ainda refletia o burgo anterior ao progresso, e busco traar como Mrio e Oswald
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de Andrade tentaram equacionar tudo isso na busca de uma certa brasilidade, no dizer de E-
duardo Jardim de Morais, ou do carter brasileiro, expresso de Dante Moreira Leite.
Esse ensaio esboado na primeira parte do trabalho mostra-se fundamental para a an-
lise que se seguir no momento seguinte: o dilema nacional versus estrangeiro, j to farta-
mente documentado e estudado. Proponho uma leitura deste dilema a partir do trabalho de
Norbert Elias Processo Civilizatrio -, demonstrando que a situao vivenciada pelos mo-
dernistas (a formao europia como padro e o confronto com uma realidade totalmente di-
versa) apresenta pontos de semelhana com o dilema vivido por franceses e alemes no sculo
XVIII. Como o prprio Elias afirma, o conceito de civilizao d expresso a uma tendncia
expansionista de grupos colonizadores (Frana), enquanto o de kultur reflete a conscincia de
uma nao que buscou e constituiu suas fronteiras e se perguntou repetidas vezes qual era sua
identidade (Alemanha). A aproximao que proponho aqui que enquanto os modernistas
procuravam se equiparar civilizao francesa em termos de produo artstica cosmopoli-
ta, de vanguarda -, ao mesmo tempo comearam a buscar sua identidade, em processo de de-
limitao semelhante ao da Alemanha, guardadas as devidas propores. Movimentos que
aparentemente parecem contraditrios e excludentes, mas que estiveram presentes no moder-
nismo de 1920.
A segunda parte do trabalho traz tambm a reconstituio das viagens de Oswald e de
Mrio de Andrade, analisando como elas interferiram em suas vidas e obras mais significati-
vas. Os destinos de viagem, as experincias sensoriais, os turistas intuitivo (Oswald) e apren-
diz (Mrio). As formas de apreenso e de apropriao das realidades encontradas em seus iti-
nerrios.
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importante mencionar que, para construir essa parte, busquei as prprias palavras da
dupla modernista. Mrio de Andrade, afeito a longas e numerosas missivas, deixou testemu-
nhos a diversos destinatrios. Entretanto, como estamos aqui lidando com viagens especficas
a Minas, ao Norte e ao Nordeste, escolhi os correspondentes que de algum modo tm relao
com esses itinerrios e so, ao mesmo tempo, aqueles que mais discutiram com Mrio as
questes de interesse deste trabalho: Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira e C-
mara Cascudo. Muitas vezes as respostas dos destinatrios tambm foram fontes de informa-
o para as questes postas.
No caso de Oswald de Andrade, as pesquisas em sua correspondncia depositada no
Centro de Documentao Alexandre Eullio (CEDAE)7 foram infrutferas. Em suas cartas
encontrei apenas menes a amores e finanas. Sinais claros de que Oswald no costumava
escrever longas cartas e que preferia as conversas pessoais para debater questes pertinentes
ao modernismo so o fato de Mrio mencionar, em carta a Drummond, que Oswald no es-
crevia cartas, e sim fazia poesias, indicando que o estilo telegrfico de sua escrita prevalecia
tambm nas missivas, e de enviar cartas a Tarsila, no perodo em que ela e Oswald estavam na
Frana, com questes claramente dirigidas ao enfant terrible, utilizando Tarsila como inter-
mediria de sua conversa. Para suprir essa lacuna e dar voz tambm a Oswald de modo mini-
mamente equilibrado, recorri a depoimentos em entrevistas no perodo estudado, a artigos
publicados e ainda s suas memrias, nos quais ele propagandeava seu biscoito fino e arroga-
va a si mesmo ares de arauto do movimento modernista. Menes em cartas trocadas entre
Mrio e os j citados destinatrios tambm foram teis nesta empreitada. A anlise da influn-
cia dos itinerrios de viagens na obra desses dois modernistas foi feita com base nas prprias
7 No CEDAE, localizado na UNICAMP, est depositada boa parte do acervo de Oswald de Andrade, incluindo cartas, postais e cadernos manuscritos.
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obras, tecendo uma costura entre as sensaes despertadas pelo encontro com o outro e a pro-
duo intelectual.
preciso ainda dizer que, no af de recortar o objeto, deixei de fora do corpo central
de anlise relaes e personagens em ntima conexo com este trabalho. Eles esto presentes
nas margens perifricas, nas notas de rodap e na bibliografia, e foram fundamentais para a
compreenso de todo o quadro posto.
O principal ponto de conexo entre essa primeira fase modernista e a antropologia pa-
rece-me, enfim, o fato de o movimento de 1920 ter imaginado antropologicamente a nao
(GEIGER, 1999 : 128). Ele prepara o terreno de uma representao ou um conhecimento bra-
sileiros do Brasil. Mrio e Oswald o fazem dialogando com duas frentes uma terica, de
atualizao junto s matrizes de pensamento predominantemente europias (que fazia com
que Lvy-Bruhl, Freud, cronistas, viajantes e outros nomes e/ou correntes que se projetavam
na rea da antropologia/etnologia fossem lidos, comentados e canibalizados pelos modernistas
e refletidos em alguns pontos de sua obra) e uma prtica, de contato com a realidade (que no
refletia, de modo algum, aquilo sobre o que teorizavam baseados no pensamento estrangeiro).
Esse imaginar antropologicamente a nao ser revelado, aqui, atravs da inspirao
antropolgica que guiou nossos modernistas na confeco das obras da dcada de 1920. Essa
inspirao, trazida pelo encontro com o outro nas viagens empreendidas por eles, mostra-se
responsvel por desvelar mais um retrato do modernismo dos anos 1920, ampliando a vasta
galeria de trabalhos que elegeram esse perodo como objeto de anlise privilegiado.
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Por fim, importante mencionar que o encontro com o outro requer um desarranjo
das expectativas pessoais e culturais8. Freud afirmava que o que estrangeiro corresponde ao
no-familiar, ao desconhecido. Entretanto, o outro objeto ambguo, porque plo de fascina-
o e repulso. (...) Se constitui como familiar-estrangeiro.9 Essa sensao dbia, sem som-
bra de dvida, parece ter sido experimentada por Oswald na Frana onde se sente em casa,
por conta de sua formao, e no entanto, ao voltar ao Brasil, percebe descompassos de grande
escala no pas onde nasceu e ao qual pertence. Mrio de Andrade, por sua vez, experimenta
sensaes semelhantes em suas viagens pelo interior do Norte, e do Nordeste, comparativa-
mente com o ambiente em que vive na cidade de So Paulo.
Para conjugar o encontro desses outros mostra-se necessria, afinal, a busca de uma
lgica, que ser aparentemente encontrada na dcada seguinte a todo este turbilho, quando
Mrio estar frente no Departamento de Cultura da Prefeitura de So Paulo, dando feio
concreta a tudo aquilo que descobrira e em que acreditava, e quando Oswald engaja-se no
Partido Comunista, renegando suas razes no Partido Republicano Paulista e na elite burguesa
de So Paulo.
8 Cf. CLIFFORD, James. Routes: travel and translation in the late twentieth century. London: Harvard University Press, 1997. 9 Cf. FUKS, Betty B. Freud & a Cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
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Captulo 1
Comeando uma conversa
Se, como j afirmamos, o modernismo de Mrio e Oswald de Andrade na dcada de
1920 consegue imaginar antropologicamente a nao, podemos dizer ainda que naquela dca-
da registra-se uma fermentao - ligada questo da ruptura em relao percepo do Brasil
que mostrou-se fundamental para a aproximao ainda maior do modernismo e da antropo-
logia anos mais tarde. A dcada seguinte trouxe a Universidade Estadual de So Paulo (USP)
e, com ela, nomes importantes para conformar o campo de estudos da antropologia no Brasil:
Jean Maug, Claude Lvi-Strauss, Pierre Monbeig e Roger Bastide.10 Todos jovens em incio
de carreira, sem ttulos e publicaes, que encontraram no Brasil campo aberto para pesquisa:
(...)O Brasil significava tambm um campo desconhecido e inexplorado pelos
pesquisadores, uma possibilidade de especializao temtica. No perodo,
umas outras tantas fontes esto em expanso: o indianismo atravs de Bou-
gl, a sinologia via Granet e o africanismo pelas mos de Griaule. O ame-
ricanismo era mais um terreno em busca de estudos... (PEIXOTO, 2001 :
503)
10 A fundao da USP, em 1934, se deu num momento em que o Brasil comeava a se conhe-cer. Heloisa Pontes d o tom do contexto: A Fundao da Universidade de So Paulo, em 1934, ocorreu no interior de um contexto intelectual mais amplo de interesse renovado pelo Brasil que se expressou nos mais variados setores da vida cultural do pas: na instruo pblica, nas reformas do ensino primrio e secundrio, na produo artstica e literria, nos meios de difuso cultural e, sobretudo, na nfase proposta no conhecimento do pas. (...) A realidade brasileira tornou-se o conceito-chave do perodo, encarnando-se nos estudos histrico-sociolgicos, polticos, geogrficos, econmicos e antropolgicos. Assim, esse momento rico, em que se buscava escarafunchar a realidade brasileira, pode ser considerado tributrio do mo-mento imediatamente anterior o modernismo da dcada de 1920 -, que sinalizou as diretrizes escolhidas e concretizadas na dcada seguinte. Cf. PONTES, Heloisa. Destinos Mistos os crticos do Grupo Clima em So Paulo (1940-68). So Paulo, Cia das Letras, 1998, p.89.
22
Mrio e Oswald de Andrade travaram contato com esse grupo, direta ou indiretamen-
te, nos anos 1930. Prova disso que a nica fotografia de Mrio de Andrade em campo, com
caderneta de anotaes em punho, foi registrada por Lvi-Strauss entre 1935/37, nos arredores
de So Paulo.
Carlos Sandroni, em texto produzido para um nmero especial da Revista do Patrim-
nio Histrico e Artstico Nacional, dedicado totalmente a Mrio de Andrade, informa que re-
cebeu duas cpias desta foto das mos do prprio Lvi-Strauss, durante entrevista realizada
por ele em 1993. Nesta entrevista, Lvi-Strauss d uma amostra da relao estabelecida com o
grupo modernista:
Havia uma ligao estreita entre o nosso grupo e o deles. Para comear, t-
nhamos quase a mesma idade; eles eram todos extremamente cultivados, mui-
to a par da literatura e da arte europias. O contato com eles era, portanto, ao
mesmo tempo muito fcil e muito proveitoso. E eles eram totalmente abertos
a coisas que nos interessavam muito, como o surrealismo; e ao mesmo tempo
ao folclore, cultura popular. Ns nos sentamos muito vontade com is-
so...em todo caso eu me sentia, pois tambm me interessava pelas duas coisas.
Havia tambm outro poeta, Oswald de Andrade, que, quanto a ele, estava um
pouco parte, num grupo de poetas e artistas, mas sem interesse pela cultura
popular. Enquanto que Mrio e eu estvamos continuamente transitando entre
a vanguarda e a arte popular. Quando havia uma festa popular nas imediaes
de So Paulo no me lembro o nome das cidades, Itu, Pirapora, Mogi das
Cruzes -, ns partamos em expedio. Foi numa destas expedies que tirei
esta foto. 11
So Paulo, na dcada de 1930, passava por uma renovao educacional e cultural, que
inclua a criao de instituies como a Escola de Sociologia e Poltica, a Universidade de So
11 Cf. SANDRONI, Carlos. Entrevista com Claude Lvi-Strauss (9 de fevereiro de 1993). In: Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - Mrio de Andrade. n.30. Braslia: I-PHAN, 2000, p. 283-245.
23
Paulo e o Departamento de Cultura. Em 1935, Mrio de Andrade foi nomeado diretor do De-
partamento e chefe da Diviso de Expanso Cultural. No ano seguinte, Mrio promoveu o
Curso de Etnografia e Folclore, ministrado por Dina Lvi-Strauss, fundando, no final do ano,
a Sociedade de Etnografia e Folclore, da qual a ento esposa de Lvi-Strauss faria parte.12 No
perodo em que esteve frente do Departamento de Cultura rgo municipal de So Paulo -,
Mrio, junto a seus auxiliares Luis Saia e Nuto SantAna, fez viagens s zonas de colonizao
antiga de So Paulo (incluindo a capital e o entorno, a regio de Itu e litoral), examinando o
que havia a ser inventariado. Nestas excurses, o escritor s vezes ia acompanhado por pesso-
as como Paulo Duarte e o casal Lvi-Strauss.13
Integrante da primeira leva de franceses que veio compor os quadros da USP, Lvi-
Strauss era na poca o mais jovem professor. Ele e Pierre Monbeig contavam apenas 27 anos
ao chegarem ao Brasil. Em entrevista publicada no jornal Le Monde por ocasio do ano do
Brasil na Frana e reproduzida pelo jornal Folha de S.Paulo14 -, o antroplogo situa sua re-
12 Uma das pesquisas realizada com apoio de Mrio de Andrade e recursos financeiros do De-partamento de Cultura foi a viagem a Mato Grosso, que Claude e Dina Lvi-Strauss realizaram em 1937 objetivando estudar os ndios Bororo. Em troca, eles deveriam publicar os resultados da pesquisa na Revista do Arquivo Municipal, filmar costumes e tradies dos povos visitados e ajudar a formar uma coleo de objetos etnogrficos, destinada a fazer parte do projetado Mu-seu Folclrico da Discoteca Pblica Municipal. Em dezembro de 1936, o Departamento de Cultura institura um concurso de etnografia, publicando os melhores trabalhos na Seo Arqui-vo Etnogrfico da Revista do Arquivo Municipal. Cf. Acervo de Pesquisas Folclricas de M-rio de Andrade 1935-1938, catlogo do Centro Cultural So Paulo. 13 Sobre as relaes entre Mrio de Andrade e o casal Lvi-Strauss, cf. PEIXOTO, Fernanda. Mrio e os primeiros tempos da USP. In: Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional Mrio de Andrade. n.30. Braslia: IPHAN, 2000, p. 156-169. Lvi-Strauss menciona essas pequenas viagens aos arredores de So Paulo: (...) nos arredores de So Paulo, podia-se obser-var e registrar um folclore rstico: festas de maio, quando as aldeias enfeitavam-se de palmas verdes, combates comemorativos fiis tradio portuguesa, entre mouros e cristos, procis-so da nau catarineta, navio de papelo armado com velas de papel (...). Havia tambm as crendices e as supersties cujo mapa era interessante fazer: cura do terol pela frico de um anel de ouro; repartio de todos os alimentos em dois grupos incompatveis: comida quente, comida fria. E outras associaes malficas: peixe e carne, manga com bebida alcolica ou banana com leite. Cf. LVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trpicos. So Paulo: Cia das Lestras, 2000, p. 105. 14 Cf. Entrevista com Claude Lvi-Strauss. So Paulo: Folha de S.Paulo/Caderno Mundo, 22 de fevereiro de 2005.
24
lao com nosso pas naquela poca, passadas sete dcadas de sua chegada aqui: O Brasil
representa a experincia mais importante de minha vida, ao mesmo tempo pela distncia e
pelo contraste, mas tambm porque foi ela que determinou minha carreira. A experincia
brasileira, como bem aponta Fernanda Peixoto15, que no caso de Lvi-Strauss durou trs anos,
proporcionou a ele novo direcionamento na carreira.
Oswald e Mrio de Andrade j tinham rompido relaes nesse perodo, talvez por isso
Lvi-Strauss, em memria j citada, se refira a Oswald como um poeta que estava um pouco
parte, num grupo de poetas e artistas, mas sem interesse pela cultura popular. Entretanto, a
biografia de Oswald d conta de que, em 1935, o modernista conhece atravs de Julieta
Guerrini, que freqenta o curso de sociologia da USP, os professores Roger Bastide, Giuseppe
Ungaretti e Claude Lvi-Strauss, a quem acompanha em excurso turstica s cataratas da Foz
do Iguau.16
Em 1931 Oswald comeara a atuar no Partido Comunista e sua obra passaria por uma
reorientao, prevalecendo a discusso sobre poltica, os bastidores da poltica nacional, a
histria de sua ligao com o partido. Em 1933, o modernista publicaria Serafim Ponte Gran-
de, em cujo prefcio auto-crtico se dizia curado do sarampo antropofgico. A citao de
trechos de seu texto bastar para situar a nova orientao de sua produo literria:
A situao revolucionria desta bosta mental sul-americana, apresentava-se
assim: o contrrio do burgus no era o proletrio era o bomio! As massas,
ignoradas no territrio e, como hoje, sob a completa devassido econmica
dos polticos e dos ricos. Os intelectuais brincando de roda. De vez em quan-
do davam tiros entre rimas. (...) Enquanto os padres, de parceria sacrlega, em
S.Paulo com o professor Mrio de Andrade (...) cantam e entoam, nas ltimas
15 Cf. PEIXOTO, Fernanda. Franceses e norte-americanos nas cincias sociais brasileiras (1930-1960). In: Histria das Cincias Sociais no Brasil Vol. I, org. Srgio Miceli. So Pau-lo: Editora Sumar, 2001, p. 477-532. 16 O registro biogrfico de Oswald de Andrade aqui utilizado consta do livro Um homem sem profisso, de autoria do prprio Oswald edio do ano 2000, publicada pela Editora Globo.
25
novenas repletas de Brasil: No cu, no cu/ com sua me estarei!, eu prefiro
simplesmente me declarar enjoado de tudo. E possudo de uma nica vontade.
Ser pelo menos, casaca de ferro na Revoluo Proletria.17
Parece haver um hiato na obra de Oswald, no qual seus interesses mudam radicalmente
de foco, findo o qual ele retoma a antropofagia e a questo da cultura nacional.18 Esse retorno
se d na dcada de 1940, e a leitura de entrevistas, palestras e artigos produzidos pelo chama-
do enfant terrible do modernismo paulistano deixa entrever que a volta se d recheada de lei-
turas de interesse antropolgico:
chegado o instante de tomar posio para o Brasil. (...) Uma cultura nativa
se forma e resiste entre ns. No domnio da sociologia mudou-se muito de-
pois de Franz Boas e sua escola. Tivemos aqui um fenmeno curioso que foi
o sucesso fulminante da obra de Gilberto Freyre, Casa-Grande e Senzala. Eis
a um livro que muitas vezes eu tenho chamado de totmico, isto , um livro
17 Cf. ANDRADE, Oswald. Serafim Ponte Grande. So Paulo: Ed. Globo, 1990, p. 37. Em artigo sobre as relaes de Oswald com o Partido Comunista, Vincius Dantas afirma: De fato, foi o prefcio a Serafim a pea-chave de sua manifestao do que era tornar-se comunista: uma auto-exposio violenta e implacvel da prpria condio burguesa, submetida ao escrnio, e o antigo Oswald tratado como um palhao da burguesia. O epitfio de sua classe social se con-fundia, com rara e portentosa emoo, com seu prprio epitfio a vida s comearia quando mudasse de lado e trasse a prpria condio de classe. Cf. DANTAS, Vincius. As relaes de Oswald de Andrade com o PCB. In: Margem Esquerda n.06. So Paulo: Boitempo, 2005, p. 147-161. 18 Oswald coloca sua vida/obra em funo da experimentao. Cada trabalho possui um vinculo especfico com o momento em que produzido. Toda a produo literria deste modernista est impregnada pelos acontecimentos da poca em que foi concebida, e da prpria vida do escritor, seja no jornalismo ou na literatura. Escrever e viver so, para ele, sinnimos. O modernismo foi preparado numa primeira fase, que podemos dizer que comeou em 1917, sendo deflagrado em 1922. Em 1924, novas perspectivas: o movimento repensa seus objetivos reflexo sobre a relao de dependncia do modernismo europeu e tentativa de resgatar a brasilidade. O Mani-festo Poesia Pau-Brasil denuncia nossa cultura como impostura. O conhecimento das realiza-es modernistas europias contribui para o processo criativo do movimento brasileiro. No entanto, para Oswald, todas as nossas reformas, todas as nossas reaes costumam ser feitas dentro do bonde da civilizao importada. Precisamos saltar do bonde, precisamos queimar o bonde. Para saltar do bonde, Oswald prope a antropofagia, o que em ns outro, para a produo de algo novo. A Antropofagia em seu veculo prprio, a Revista Antropofgica registra a lngua falada do povo, num perodo de grande contingente imigrante em So Paulo. Tem pretenso de renovao esttica. A obra e a orientao artstica de Oswald vivem, at 1929, impregnadas por estas questes, alimentadas por Tarsila do Amaral e sua obra modernis-ta. Depois deste perodo, Oswald conhece Pagu, atua junto ao Partido Comunista e engaja-se politicamente. Isso tambm reflete-se em sua obra.
26
que apia e protege a nacionalidade. (...) De um certo modo Casa-Grande
um complemento social dOs Sertes de Euclides, pois estuda a fixao dos
engenhos enquanto a magistral gravura euclideana exprime a resistncia do
elemento mstico em torno de um chefe nmade.19
A volta de Oswald se d pela interseo da antropofagia desprezada no perodo de
engajamento mximo no Partido Comunista e do marxismo, apimentada pelas leituras de
interesse antropolgico. Em texto publicado em 1946 na Revista Acadmica, Oswald afirma
que O antropfago habitar a cidade de Marx. Terminados os dramas da pr-histria. Socia-
lizados os meios de produo. Encontrada a sntese que procuramos desde Prometeu.20 Em
outras produes de Oswald, tambm da dcada de 1940, encontram-se referncias a Mali-
nowski, Lvi-Strauss e ao embate entre civilizao e cultura.21
Voltando dcada de 1930, Mrio e Oswald eram bandas aparentemente opostas num
pas em que a articulao poltico-partidria crescia e se diversificava. O prprio Oswald re-
memora a diviso poltica do grupo modernista de 1920 em texto publicado no jornal Correio
da Manh em 1951:22
Nesse momento [1920] o modernismo tinha uma unidade guerreira que no
comportava cises. At 30, mesmo quando surgiu o movimento Antropofgi-
co, no havia divergncias essenciais. S com o vendaval poltico-econmico
19 Cf. ANDRADE, Oswald de. O sentido do interior. Palestra proferida em Bauru, em 31 de julho de 1948, reproduzida no livro Esttica e poltica, organizado por Maria Eugnia Boaven-tura, p. 191-202. 20 Cf. ANDRADE, Oswald de. Mensagem ao Antropfago Desconhecido.Este texto encontra-se reproduzido no livro Esttica e poltica, organizado por Maria Eugnia Boaventura, p.285-286. 21 Cf. ANDRADE, Oswald de. Civlizao e Dinheiro, conferncia proferida pelo escritor em 1949 no Centro de Debates Casper Lbero, no IEL UNICAMP, reproduzida no livro Esttica e Poltica, na qual Oswald busca estabelecer a diferena entre civilizao e cultura: cultura podem-se ligar dois conceitos: o de sentimento e o de carter. civilizao, dois outros: o de razo e o de tcnica. Lvi-Strauss e Malinowski so evocados pelo modernista em texto ma-nuscrito a lpis, intitulado O Antropfago, sem data, tambm reproduzido no livro Esttica e Poltica. 22 Cf. ANDRADE, Oswald de. Notas para o meu dirio confessional. In: Esttica e Poltica. Org. Maria Eugnia Boaventura. So Paulo: Ed. Globo, 1990, p. 135-138.
27
se definiram posies ideolgicas. O sr. Plnio Salgado, que ficara nos cama-
rins da Semana, fundou o Integralismo. O grupo chefiado pelo sr. Mrio de
Andrade, atravs do Dirio Nacional, foi para a liberal democracia e para a
revoluo paulista de 32. Os senhores Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia
encaminharam-se para a cooperao pblica com o sr. Getlio Vargas. E o
grupo restante mais numeroso, e de que eu fazia parte com Di Cavalcanti, Pa-
gu, Osvaldo da Costa, Geraldo Ferraz, Jaime Adour da Cmara e Tarsila, di-
rigiu-se para o marxismo e para a cadeia. 23
Foi essa unidade guerreira que proporcionou o compasso dos interesses de Mrio de
Andrade e Lvi-Strauss na dcada de 1930 e o retorno de Oswald de Andrade antropofagia
desta vez temperada com marxismo e pitadas de antropologia na dcada seguinte. A dcada
de 1930, como bem coloca Alfredo Bosi, assistiria construo de uma nova viso de Brasil,
vinda de Artur Ramos, Roquette Pinto, Gilberto Freyre, Caio Prado, Srgio Buarque de Ho-
landa, Fernando de Azevedo. Caminho palmilhado, guardadas as devidas propores, por M-
rio e Oswald na dcada anterior.24
23 Jorge Schwartz, em Vanguardas Latino-americanas, lembra que o final dos anos 1920 j comea a se confirmar como o ocaso dos movimentos vanguardistas, especialmente no que diz respeito a seu carter experimental. Se as vanguarda latino-americanas podem ser vistas como conseqncia dos ismos europeus, tambm neste caso as preocupaes poltico-sociais das primeiras nos anos 1930 so melhor compreendidas quando situadas em um contexto interna-cional. E, embora o ltimo dos ismos europeus seja o surrealismo, cujo primeiro manifesto data de 1924, na Amrica Latina justamente o Movimento de Vanguarda da Nicargua, de 1931, que representa, de maneira inconsistente, a ltima corrente de ruptura. A organizao dos mo-vimentos socialistas e anarquistas, a fundao dos vrios partidos comunistas, a criao em 1924 do APRA peruano (Alianza Popular Revolucionaria Americana) e a intensificao das greves operrias no continente, tudo isso vai desembocar em meio a uma generalizada crise econmica motivada pelo crack de 1929 em vrios golpes militares cujas conseqncias sero devastadoras no setor cultural. O marco desses eventos ser 1930: no Peru, o coronel Snchez Cerro derruba o governo Legua; na Argentina, o general Uriburu depe o governo democrtico de Yrigoyen; e, no Brasil, a Revoluo de 30, liderada por Getlio Vargas, levar ao Estado Novo. O prprio Schwartz aponta que Oswald de Andrade abandona ento o experimentalismo literrio e a vanguarda antropofgica para mergulhar na ao social, e testemunhos dessa nova orientao so a revista O Homem do Povo, o prefcio de Serafim Ponte Grande e a mudana literria que se observa a partir de Marco Zero e do teatro de tese. Cf. SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-americanas. So Paulo: EDUSP/Iluminuras, 1995, p. 32-34. 24 Em sua Histria concisa da literatura brasileira, Bosi afirma que as dcadas de 30 e 40 ensi-nariam coisas teis aos intelectuais brasileiros. Por exemplo, que o tenentismo liberal e a pol-tica getuliana s em parte aboliram o velho mundo, pois compuseram-se aos poucos com as
28
1.1 Preparando as bases
O primeiro tempo modernista no Brasil definido por grande parte da crtica especia-
lizada como marcado por uma data em especial: 1922 - ano da Semana de Arte Moderna. Po-
demos dizer que esse perodo compreende uma grande renovao esttica das artes e das letras
no pas. Influenciados pelas vanguardas europias, artistas e escritores passaram a questionar
tudo o que rotulavam como passadismo incluem-se aqui escritos guiados pelo portugus
arcaico legado pela colonizao, muito distantes da lngua coloquial utilizada no pas, e pintu-
ras que reproduziam cores plidas tipicamente europias e paisagens nada tropicais.
Oswald de Andrade dava a medida da necessidade dessa ruptura na conferncia que
proferiu em 1923 na Sorbonne:
Na pintura como na literatura, a lembrana das frmulas clssicas impediu
durante muito tempo a ecloso da verdadeira arte nacional. Sempre a obses-
so da Arcdia com seus pastores, sempre os mitos gregos ou ento a imita-
o das paisagens da Europa, com seus caminhos fceis e seus campos bem
alinhados, tudo isso numa terra onde a natureza rebelde, a luz vertical e a
vida est em plena construo. A reao contra os museus da Europa, de
quem resultou a decadncia da nossa pintura oficial, foi operada pela semana
oligarquias regionais, rebatizando antigas estruturas partidrias, embora acenassem com lemas patriticos ou populares para o crescente operariado e as crescentes classes mdias. Que a aris-tocracia do caf, patrocinadora da Semana, to atingida em 29, iria conviver muito bem com a nova burguesia industrial dos centros urbanos, deixando para trs como casos psicolgicos os desfrutadores literrios da crise. Enfim, que o peso da tradio no se remove nem se abala com frmulas mais ou menos anrquicas, mas pela vivncia sofrida e lcida das tenses que com-pem as estruturas materiais e morais do grupo em que se vive. Essa compreenso dos pro-blemas viria de escritores que amadureceram depois de 1930 tais como Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade e Jos Lins do Rego e de socialistas como Astrogildo Pereira, Caio Prado Jr, Jorge Amado, entre outros, que selaram com sua esperana o ofcio do escritor, dando a esses anos a tnica da participao, aquela atitude interessada diante da vida contem-pornea, que Mrio de Andrade reclamava dos primeiros modernistas.
29
darte moderna, que se realizou em So Paulo. (...) Os novos artistas (...) co-
mearam a reao adotando os processos modernos, oriundos do movimento
cubista da Europa. O cubismo foi um protesto contra a arte imitadora dos mu-
seus. 25
O futurismo de Marinetti cujo manifesto foi trazido ao Brasil por Oswald de Andrade
influenciou grandemente este primeiro momento do modernismo.26 Os paulistas viviam en-
to uma transformao radical, uma plstica em sua cidade, que de burgo passara rapidamente
a grande cidade, embelezada por uma arquitetura tambm importada. Grandes invenes to-
mavam o mundo. Automveis, dirigveis, cinema, psicanlise, raio X, reflexo condicionado,
fotografia em cores, 14 Bis. Tudo bastante rpido e telegrfico. So Paulo comeava a entrar
na rota. O boom cafeeiro possibilitara o progresso. Essa primeira fase do movimento, que
culminou com a Semana de 1922, foi amplamente influenciada pelo frenesi do progresso e
dos avanos da cincia e da tcnica.
Moderno se torna a palavra-origem, o novo absoluto, a palavra-futuro, a pa-
lavra-ao, a palavra-potncia, a palavra-libertao, a palavra-alumbramento,
a palavra-reencantamento, a palavra-epifania. Ela introduz um novo sentido
histria, alterando o vetor dinmico do tempo que revela sua ndole no a
partir de algum ponto remoto no passado, mas de algum lugar no futuro. O
passado , alis, revisitado e revisto para autorizar a originalidade absoluta
do futuro. Reconstrues histricas das primeiras civilizaes orientais,
estrelando a diva Theda Bara no cinema, a mais tecnolgica das artes, so
apresentadas ao mesmo tempo como exticas e modernas. Modernas porque
exticas e exticas porque modernas: escavaes arqueolgicas, turismo,
imagens foto e cinematogrficas, fantasias de abolio do espao e do tempo,
s artificialmente podem ser separadas nas imaginaes modernas, formadas 25 Cf. ANDRADE, Oswald de. O esforo intelectual do Brasil contemporneo. In: Esttica e Poltica. Org. Maria Eugnia Boaventura. So Paulo: Ed. Globo, 1991, p. 29-38. 26 De fevereiro a setembro de 1912, Oswald de Andrade viajava Europa, visitando Itlia, A-lemanha, Blgica, Inglaterra, Frana e Espanha. Retornando ao Brasil a bordo do Oceania, trazia consigo uma cpia no Manifesto Futurista de Marinetti e logo comearia a divulg-lo junto queles que formariam o grupo modernista da Semana de 1922. Cf. ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profisso. So Paulo: Ed. Globo, 2000. p. 221-236.
30
artificialmente podem ser separadas nas imaginaes modernas, formadas pe-
las novas tecnologias de comunicao. (SEVCENKO, 1998: 228)
Os modernistas tomaram o Teatro Municipal em fevereiro de 1922 propondo uma no-
va esttica para a arte brasileira. Versos livres e pintura liberta dos padres herdados desde a
vinda da Misso Francesa ao Brasil, em 181627, eram alguns dos postulados reivindicados por
esses jovens. Propunham a demolio dos parmetros antigos atravs de uma linguagem de-
sestruturada, que reproduzia sensaes e experincias de vida urbana. Era preciso uma arte
que desvendasse as inovaes tecnolgicas que conferiam nova plstica s metrpoles.28
27Se Inglaterra coube dominar por mais de cem anos a economia brasileira, Frana caber a primeira colonizao cultural. Jlio Bandeira, no livro A Misso Francesa, situa o leitor de forma bastante precisa sobre a funo dos artistas franceses ao chegarem ao Brasil de D. Joo VI: A bandeira nacional, as condecoraes, os cenrios de teatro e os arcos de triunfo das solenidades tudo nasce da incubadora francesa. (...) A loua podia ser inglesa, mas o souffl que alimentaria cada vez mais a alma brasileira, francs. No mesmo livro, Pedro Martins comenta um dos pontos mais tocados por crticos da histria da arte brasileira quando o assunto a Misso Francesa: Um argumento clssico contrrio influncia dos artistas franceses e seus imediatos seguidores brasileiros que o desenvolvimento natural da arte brasileira dentro dos princpios formais do Barroco foi interrompido abruptamente por uma proposta artstica aliengena que impediu a continuidade da trajetria natural da nossa arte, formulada no perodo colonial. Entretanto, o prprio Pedro Martins consegue sair desta arapuca da crtica sustentan-do uma posio, com a qual concordamos e que era tambm sustentada por Mrio Barata j em 1976, em Histria Geral da Civilizao Brasileira que demonstra que a Misso no pode ser unicamente culpada de haver cortado o desenvolvimento do Barroco no Brasil. Este corte foi devido prpria situao histrica, e o Neoclassicismo, aqui chegado antes dos artistas franceses, teria evoludo, no sculo XIX, mesmo sem a vinda deles. H que se mencionar aqui, entretanto, que se de fato a Misso Francesa legou tamanha influncia cultural arte dos cen-tros de importncia econmica do Brasil de ento, ela se concretizou mais claramente no Rio de Janeiro, cidade onde se instalou a Corte de D. Joo VI e para onde foram direcionados esforos do monarca portugus no sentido de promover uma modernizao cultural capaz de atender prpria corte. Esse fato trouxe marcantes diferenas em relao questo artstica no Rio e em So Paulo, fundamentais para compreender a realizao da Semana de 1922 em So Paulo e toda a mobilizao que se concentrou em torno dos artistas paulistanos, integrantes da elite em sua quase totalidade. Tadeu Chiarelli, em Um Jeca nos vernissages, d bem a medida desta distino: (...) no Rio de Janeiro o ambiente artstico desde a chegada da Misso Artstica Francesa em 1816 era gerido pelo Estado, atravs de seus quadros profissionais, sem que a burguesia precisasse colocar frente de seus eventos elementos de seu grupo. J na cena paulis-ta, a burguesia sem contar com funcionrios que a representassem, devido ao recente cresci-mento do Estado -, desde o incio da Repblica, viu-se obrigada a tomar para si a responsabili-dade do Estado, inclusive os aspectos ligados educao, cultura e arte. Foi caracterstica da elite paulista desde o incio da Primeira Repblica confundir-se com o prprio governo estadual, sem nenhum tipo de problema. 28 O ano de 1922 foi emblemtico no sentido de apontar as mudanas que tomariam o Brasil a partir de ento. A Semana de Arte Moderna, o incio do tenentismo e a fundao do Partido
31
Essa modernidade esttica, trazida da Europa e democratizada em saraus, jantares,
cafs e conversas, encontrou resistncia numa sociedade como a paulista que, apesar de co-
mear a usufruir a riqueza trazida pela cultura cafeeira, refletia em suas aes a mentalidade
do antigo burgo que cresceu e tomou a dianteira do progresso no pas. Uma elite que se for-
mou tendo como padro artstico aquele trazido pela Misso Francesa e que tomava isso como
smbolo da boa arte, de fato aceitou mal as vanguardas trazidas pelo grupo de modernistas que
tomou contato com a nova arte europia do incio do sculo XX.
A dificuldade em aclimatar essa modernidade no Brasil se manifestaria logo cedo no
campo das artes. Se tomarmos aqui a exposio de Anita Malfatti em 1917, atacada por Mon-
teiro Lobato e amplamente criticada por boa parte da aristocracia artstica, teremos uma amos-
tra disso.29 Anita desviou-se da consensual rota francesa e foi estudar na Alemanha e, posteri-
Comunista foram acontecimentos que mostraram o caminho da ruptura com o Brasil arcaico e a emergncia de novos tempos. Um corte poltico, econmico e cultural. A modernizao das estruturas, que viria em conseqncia do movimento ento desencadeado, certamente no teve a profundidade dos processos autenticamente revolucionrios, mas com certeza colocou o Brasil diante de muitas incertezas e opes inditas. Cf. LOPEZ, Luiz Roberto. Cultura brasileira: de 1808 ao pr-modernismo. Porto Alegre: Ed. UFRS, 1995, p. 98-100. 29 Sobre a querela Monteiro Lobato versus Anita Malfatti, Tadeu Chiarelli constri um panora-ma diverso daquele institudo oficialmente por modernistas como Mrio de Andrade e Menotti del Picchia e corroborado por grande parte da crtica do movimento modernista -, o qual colo-cava Anita meramente como vtima das palavras da Monteiro, ento um pintor frustrado que no compreendia a modernidade. Segundo Chiarelli, os dois representavam problemas a serem resolvidos na construo do movimento modernista tal como queriam os rapazes da gerao de 1922. Lobato porque, devido sua atuao como intelectual engajado na causa nacionalista, havia criado, a partir de 1915, um espao de dissidncia, de contestao e ruptura no ambiente cultural da cidade, at ento bastante conservador. Era intelectual respeitado e de grande impor-tncia. Os modernistas tentaram traz-lo para a movimentao que propunham sem conseguir, no entanto, sucesso. Anita, por sua vez, ainda segundo Chiarelli, j demonstrava, em 1917, um retorno ordem, processo comum aos artistas internacionais ligados s tendncias de van-guarda, no qual iniciavam um processo de distanciamento em relao quelas proposies. Esse retorno ordem inclua, entre outras coisas, a necessidade de recuperar a cultura visual de cada pas onde prosperou. Assim, Malfatti, ao montar a Exposio de Pintura Moderna Anita Malfatti em dezembro de 1917, j havia iniciado seu processo de refluxo em relao s van-guardas. Mesmo que ali tambm tenha mostrado suas obras mais radicais nos perodos alemo e norte-americano, a produo realizada entre 1916 e 1917 j denunciava claramente que a artista colocava em dvida, naquele momento, os postulados da arte moderna. Chiarelli aponta uma estratgia dos modernistas no sentido de desviar da artista a responsabilidade pelo seu recuo em relao s vanguardas, lanando-a a Lobato. Assim, j que Lobato no revira seus posiciona-mentos para aderir ao grupo, vinha muito a calhar a possibilidade de imputar-lhe a responsabili-
32
ormente, nos Estados Unidos, onde sua pintura adquiriu fora plstica e autoral. Entretanto,
anos mais tarde, com uma bolsa do pensionato artstico francs, refez a rota desviada, sendo
influenciada por artistas de peso da Escola de Paris, o que significou um retrocesso em sua
tcnica. Artista madura, marcada j por um estilo absolutamente pessoal, renuncia a ele para
disciplinar sua pintura aos padres franceses aceitos pela elite artstica brasileira. Anita
Malfatti foi, sem sombra de dvida, com sua exposio de 1917, a catalisadora do movimento
modernista, embora o posto de musa fosse arrebatado mais tarde por Tarsila do Amaral. (MI-
CELI, 2003 : 103-149).30
No incio do sculo XX, o mundo moderno europeu vivia uma verdadeira revoluo
nas artes. Picasso tirara de seus pincis o impressionante Les demoiselles dAvignon em 1907.
O cubismo revolucionava o meio artstico. Em 1912, novamente Picasso, acompanhado por
Braque, introduzia nova revoluo dentro do cubismo inventando as colagens de enorme
repercusso mais tarde no Dadasmo e no Surrealismo.
dade pelo recuo de Malfatti, que deste modo no corria o risco de ser vista como uma artista moderna arrependida, mas como a mrtir do movimento. CF. CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages. So Paulo: EDUSP, 1995. 30 Cf. MICELI, Srgio. Nacional Estrangeiro. So Paulo: Cia das Letras, 2003. O autor sustenta que a relao do grupo modernista de 1922 era mediada, tambm, pelo filtro da querela nacio-nal x estrangeiro. Um dos focos de tenso, segundo Miceli, possua um inequvoco componen-te tnico: os nacionais Mrio, Tarsila e Oswald versus os oriundi Anita e Menotti. Os percalos de Anita para conquistar a bolsa de estudos concedida pelo Patronato Artstico, as reaes ambivalentes de Mrio e o rechao terminante de Oswald perante os escritos romanes-cos de Menotti, e as ciumeiras entre Tarsila e Anita so alguns dos episdios capazes de sinali-zar os caminhos tortuosos desse embate de foras e capitais desiguais, instigados pelo acicate venenoso do desapreo tnico, misto de competio, embarao e desconforto envolvendo esses parceiros com trunfos to desiguais. De fato, como o prprio autor menciona, Anita Malfatti em 1922 e Lasar Segall em 1923 tinham total familiaridade com as vanguardas europias, em especial a alem e a americana, e mostravam-se artistas muito mais avanados do que Tarsila, cuja resposta plstica esteve sempre afinada com os programas nativistas da liderana literria. Aracy Amaral, em Tarsila, sua obra e seu tempo d a entender, inclusive, que a exposio rea-lizada por Anita em 1917 no foi compreendida pela prpria Tarsila: Anita Malfatti expe em dezembro de 1917, de volta de sua viagem aos Estados Unidos. E Tarsila lembra-se de ter visi-tado a exposio, que pareceu desagradvel aluna de Pedro Alexandrino... O trecho foi extra-do de entrevista concedida por Tarsila Amaral autora. Cf. AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra e seu tempo. So Paulo: Editora 34/EDUSP, 2003.
33
A Primeira Guerra Mundial acirrou ainda mais o rumo dessas transformaes. Os cria-
dores da chamada arte moderna na Europa, traumatizados pelo impacto do cataclismo, cansa-
dos do excesso de civilidade do velho continente, reformulam seus sentidos. Buscam alterna-
tivas. Assim,
das cinzas do cubismo e da Guerra nasceria o Esprito Novo, fuso da arte
com o instinto, elevado condio de guia supremo e transcendente. O Pu-
rismo/Primitivismo, fuso da arte com os sentidos, o xtase e o extico; e os
ultra-realismos, fuso da arte com a ao pura, com o automatismo sincopado
e com a utilidade. (SEVCENKO, 2000 : 200-201)
O contato com outras civilizaes, proporcionado pelo imperialismo em larga escala
no mundo, trouxe o encontro com o outro, com outras culturas. Os artistas europeus foram
influenciados pelas formas, cores, plsticas de outras civilizaes. O nome emblemtico da
verdadeira revoluo provocada na arte europia no incio do sculo XX, sem sombra de d-
vida, Pablo Picasso. Podemos dizer que o incio da grande transformao em sua obra se d
a partir do encontro com uma exposio de esculturas ibricas no Louvre, em 1906 aps o
que pinta Retrato de Gertrude Stein e Auto-retrato com paleta , e com a visita ao Museu de
Etnografia de Paris, onde trava contato com a arte africana em 1907, ano em que concebe
Demoiselles dAvignon. (WALTHER, 2000 : 90-95)
Dentro desse quadro de referncia artstica europeu, o conceito de primitivo foi usado
tanto pejorativamente quanto como uma medida de valor positivo. Para grande parte do pbli-
co burgus dessa poca, a palavra significava povos e culturas atrasados e incivilizados. Fran-
ceses, britnicos e alemes estendiam suas conquistas coloniais na frica e nos mares do sul e
criavam museus etnogrficos e vrias formas de estudo antropolgico institucionalizado. Arte-
34
fatos de povos colonizados eram vistos muitas vezes como provas de sua natureza inciviliza-
da. (PERRY, 1998 : 5). 31
Hlio Silva ressalta o tema antropolgico do outro como portador ou testemunha de
um modo de pensar diferente, alterado. Tema encontrado com mais fora e radicalidade em
Lvi-Bruhl, em A mentalidade primitiva.
Esse componente os primitivos como detentores de conhecimentos arcaicos,
sobreviventes nos civilizados, mas no direta ou conscientemente acessveis, se
encontra com o tema modernista da regresso (como o da anlise freudiana),
da busca do arcaico como encontro com o sentido. O conhecimento/pensamento
primitivo que d sentido ao moderno no por um evolucionismo simples,
que marca a distncia percorrida desde os primrdios da espcie, nem numa e-
quiparao direta... (SILVA, 1986: 105-106)
Antnio Cndido lembra o papel que a arte primitiva, o folclore e a etnografia tiveram
na definio das estticas modernas, atentas a elementos arcaicos e populares, apontando para
o fato de, no Brasil, as culturas primitivas se misturarem vida cotidiana ou serem reminis-
cncias ainda vivas de um passado recente.
31 Cf. PERRY, Gill. O primitivismo e o moderno. In: Primitivismo, cubismo, abstrao come-o do sculo XX. So Paulo: Cosac & Naif Edies, 1998, p.5. De maneira geral, a palavra primitivo foi usada desde pelo menos o sculo XIX para distinguir as sociedades europias contemporneas e suas culturas de outras sociedades e culturas que eram ento consideradas menos civilizadas. At meados do sculo XIX, o termo era tambm usado para descrever obras italianas e flamengas do sculo XIV e XV. Mas na virada do sculo seu alcance foi ampliado para referir-se s antigas culturas egpcia, persa, indiana, javanesa, peruana e japonesa, aos produtos de sociedade vistas como mais prximas da natureza e ao que muitos historiadores de arte chamaram a arte tribal da frica e da Oceania. Dentro desta concepo, preciso ter em mente que o contato com elementos ditos primitivos era j visvel na arte europia antes mesmo do aparecimento de Damoiselles dAvignon. Paul Gauguin e sua relao com o Tahiti, transparente em suas telas, como tambm Matisse e o movimento fauve so exemplos anteriores do uso de elementos ditos primitivos. Gauguin, alis, identificado freqentemente como o primeiro artista moderno para quem o contato com o outro se tornou a pedra de toque de sua filosofia na arte.
35
As terrveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan
Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herana cultural do que
com a deles. O hbito em que estvamos do fetichismo negro, dos calungas,
dos ex-votos, da poesia folclrica, nos predispunha a aceitar e assimilar pro-
cessos artsticos que na Europa representavam ruptura profunda com o meio
social e as tradies espirituais. Os nossos modernistas se informaram pois
rapidamente da arte europia de vanguarda, aprenderam a psicanlise e plas-
maram um tipo ao mesmo tempo local e universal de expresso, reencontran-
do a influncia europia por um mergulho no detalhe brasileiro. (CANDIDO,
2002: 121)
ainda Cndido quem afirma a existncia de uma ambigidade fundamental em nossa
cultura: a de sermos um povo latino, de herana cultural europia, mas etnicamente mestio,
influenciado por culturas primitivas, amerndias e africanas. A idealizao geralmente era o
caminho para se resolver esse impasse. Assim, o ndio era europeizado nas virtudes e costu-
mes (processo tanto mais fcil quanto desde o sculo XVIII os nossos centros intelectuais no
o conheciam mais diretamente); a mestiagem era ignorada, a paisagem, amaneirada.
(CANDIDO, 2002: 119).
O Modernismo rompe com essa postura e passa a interpretar as deficincias, supostas
ou reais, como superioridades. O mulato e o negro so definitivamente incorporados como
temas de estudo, inspirao, exemplo. O primitivismo agora fonte de beleza e no mais em-
pecilho elaborao da cultura. Isso, na literatura, na pintura, na msica, nas cincias do ho-
mem. (CANDIDO, 2002: 120)
Essa orientao esteve presente na obra de Mrio e de Oswald na dcada de 1920. A
tentativa de reabilitao do primitivo, expresso usada por Oswald em texto de sua autoria,
36
lido durante o Encontro dos Intelectuais realizado em 1954 no Rio de Janeiro,32 parece ter
perseguido esse modernista desde 1922, norteando a criao dos manifestos Poesia Pau-
Brasil (1924) e Antropfago (1928). Entenda-se aqui primitivo como sentimento brasileiro, a
ecloso das realidades presentes, nas palavras do prprio Oswald, proferidas na conferncia
de 1923 na Sorbonne.
O percurso histrico de reconstituio apontado por Oswald em sua conferncia reto-
ma, de certa forma, o caminho que as tentativas de reabilitao do primitivo traaram em nos-
sa histria literria:
Verdade que o sentimento brasileiro se anunciava j nos cantos de Baslio
de Gama, no instinto indianista do nosso poeta Gonalves Dias e na lngua pi-
toresca de Jos de Alencar. Havia mesmo nos romances deste ltimo o esboo
de tipos que poderiam servir ainda hoje de base psquica nossa literatura. O
aventureiro Lauredano, Isabel, Rogrio Dias, o explorador de minas ilusrias,
so verdadeiras bandeiras das nossas preocupaes criadoras. Mas ao lado
dessas realidades havia o Guarany idealizado e falso, Iracema, verdadeira-
mente chateaubrianesca. (...) O portugus boquiabriu-se diante da natureza do
mundo descoberto e, para exprimir o seu entusiasmo, recorreu aos seus co-
nhecimentos greco-latinos. Alencar no foi um desses bons coloniais que es-
creveram nossos primeiros poemas, misturando o astucioso Ulisses e a divina
32 Cf. ANDRADE, Oswald de. A reabilitao do primitivo. In: Esttica e Poltica. Org. Maria Eugnia Boaventura. So Paulo: Ed. Globo, 1991, p. 231-232. Na citada comunicao, escrita por Oswald e enviada para ser lida durante o Encontro dos Intelectuais no Rio de Janeiro, em 1954, o modernista deixa clara sua volta antropofagia e s questes que o mobilizaram na dcada de 1920. Escreveu Oswald: A reabilitao do primitivo uma tarefa que compete aos americanos. Todo mundo sabe o conceito deprimente de que se utilizaram os europeus para fins colonizadores.(...) Hoje as cincias sociais caminharam, fazendo ver como o homem um s, dependendo a sua diferenciao das condies de raa, de clima e de economia. Ficou no entan-to um resduo que consiste no preconceito de julgar inferiores as raas primitivas. Ora, ao nosso indgena no falta sequer uma alta concepo da vida para se opor s filosofias vigentes que o encontraram e o procuraram submeter. Tenho a impresso de que isso que os cristos descobri-dores apontaram como o mximo horror e a mxima depravao, quero falar da antropofagia, no passava entretanto de um alto rito que trazia em si uma (...) concepo da vida e do mundo. O indgena no comia carne humana nem por fome nem por gula. Tratava-se de uma espcie de comunho do valor que tinha em si a importncia de toda uma posio filosfica.
37
Aspsia com os cocos e com as bananas...Mas no logrou libertar-se da influ-
ncia de importao que vinha ampliar o cenrio dos novos pramos.33
Oswald elogiava a matria psicolgica e o sentimento tnico do Brasil (este desta-
cado no incio de sua conferncia, quando mencionou a presena de trs elementos na forma-
o inicial do Brasil ndio, portugus e padre latino -, aos quais agregou-se mais tarde o ne-
gro), afirmando que para o Brasil atingir o apogeu na arte era necessrio aliar essas riquezas a
uma expresso e uma forma prprias. Assim, afirmava ele, recebemos como benefcio todos
os erros de sintaxe do romancista Jos de Alencar e do poeta Castro Alves, e o folk-lore no
atingiu somente o domnio filosfico. Mostrava-se assim tributrio do caminho j iniciado
em nossa literatura, e em grande escala j apontado pelos romnticos.34
O primitivismo proposto ento por Oswald e pelos modernistas que, de incio, com-
punham um coro unido, embora heterogneo, em torno da criao de uma arte modernista
33 Cf. ANDRADE, Oswald. O esforo intelectual do Brasil contemporneo. In: Esttica e Pol-tica. Org. Maria Eugnia Boaventura. So Paulo: Ed. Globo, 1990, p. 29-38. 34. Mrio tambm mostra-se tributrio ao dedicar Macunama a Jos de Alencar. Antes do mo-dernismo, os romnticos j buscavam promover a reabilitao do primitivo atravs do india-nismo, do mito do heri nacional. Ressuscitava-se o mito do bom selvagem, naquele momento o heri de uma nao que queria afirmar-se, livre de Portugal. Fez-se ento, tal como o faria Oswald mais tarde, uma revisita aos textos e testemunhos dos viajantes que passaram por este Brasil mtico, firmando-se, como aponta Alfredo Bosi, em Histria Concisa da Literatura Bra-sileira, uma leitura intencional dos documentos, que contrapunha malcia e hipocrisia do europeu a simplicidade do ndio. Trasmitia-se o mito da terra me, orgulhosa do passado dos filhos, esperanosa do futuro. Bosi lembra ainda que o Brasil ideal de Alencar, por exemplo, seria uma espcie de cenrio selvagem onde, expulsos os portugueses, reinariam capites alti-vos, senhores de barao e cutelo rodeados de sertanejos, pees, livres sim, mas fiis at a morte. A reabilitao do primitivo dos romnticos estava no apenas ligada ao bom selvagem mas ao resgate do paraso terreal, agora livre do dominador portugus. Antnio Cndido, em Literatura e Sociedade, lembra que o regionalismo, desde o incio de nosso romance, constitui uma das principais vias de autodefinio da conscincia local, com Jos de Alencar, Bernardo Guima-res, Franklin Tvora, Taunay. Trata-se da fase, compreendida entre 1900 e 1922, em que a literatura procura, na sua vocao cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais tpicas. Ainda segundo Candido, a publicao de Os Sertes, de Eucli-des da Cunha, em 1902, assim como a divulgao dos estudos de etnografia e folclore, contriburam certamente para esse movimento. Ele falhou na medida em que no soube corresponder ao interesse ento multiplicado pelas coisas e os homens do interior do Brasil, que se isolavam no retardamento das culturas rsticas. Caberia ao modernismo orienta-lo no rumo certo, ao redescobrir a viso de Euclides, que no comporta o pitoresco extico da literatura sertaneja.
38
tinha a ver com a expresso brbaro e nosso, do Manifesto Poesia Pau-Brasil. Tratava-se de
uma oposio representao do ndio e do negro de forma pitoresca ou extica, o que vinha
sendo feito pelas tentativas anteriores de reabilitao do primitivo.
O primitivismo brasileiro de que falamos aqui se d na literatura no tem pretenso
a validade cientfica e tem sentido de crtica cultural (entendida tambm no sentido de inter-
veno transformadora); mas tem (...) uma noo forte de cultura, naquele sentido de integri-
dade e integrao dos mltiplos aspectos da vida coletiva. (GEIGER, 1999: 241)
Uma amostra disso est em texto de autoria de Oswald, publicado em 1928 em O Jor-
nal:
Ao chorrilho de ismos, que recebamos mensalmente, vamos opor este ltimo
e nico: poderamos dar-lhe tambm um sufixo em ismo: naturalismo, primi-
tivismo, eternismo, troglodismo etc. Preferimos, entretanto, o nome cientifico
puro, sem berloques beletristas. Antropofagia est bom. Est muito bom. 35
Configurava-se assim, aos olhos de Oswald, a possvel colaborao brasileira para o
quadro mundial. A Poesia Pau-Brasil e a Antropofagia foram solues propostas por Oswald
para reabilitar nosso primitivismo, entendendo-se aqui o termo primitivismo como imbudo de
um sentido simblico eminentemente cultural. Conceito polmico utilizado pelas vanguardas
para assinalar a busca de elementos originrios, o primitivismo a que Oswald se referia cor-
respondeu
ao sobressalto tnico que atingiu o sculo XX, encurvando a sensibilidade
moderna menos na direo da arte primitiva propriamente dita do que no ru-
mo, por essa arte apontado, em decorrncia do choque que a sua descoberta
produziu na cultura europia, do pensamento selvagem pensamento mito-
potico, que participa da lgica do imaginrio, e que selvagem por oposi-
o ao pensar cultivado, utilitrio e domesticado (NUNES, 2001: 10-11).
35 Cf. ANDRADE, Oswald de. Nova escola literria. In: Os dentes do drago. Org. Maria Eu-gnia Boaventura. So Paulo: Ed. Globo, 1990, p. 42-47).
39
Assim, a reabilitao do primitivo se daria, para Oswald, atravs da negao da carga
livresca, buscando se livrar do Lado Doutor e valorizar a intuio. Ainda segundo Nunes, o
Manifesto Poesia Pau-Brasil inaugurou o primitivismo nativo dentro do movimento moder-
nista, enquanto o Manifesto Antropfago trouxe um diagnstico para a realidade scio-cultural
brasileira na dcada de 1920.
A reabilitao do primitivo de que falamos tinha no Brasil um apelo ainda maior, na
medida em que visava tambm um programa de reeducao da sensibilidade e uma teoria da
cultura brasileira. Oswald chamava o artista a ver com olhos livres os fatos que circunscre-
vem sua realidade cultural e a valoriz-los poeticamente, sem excetuar aqueles populares e
etnogrficos, sobre os quais pesou a interdio das elites intelectuais, e que melhor expri-
mem a originalidade nativa. (NUNES, 2002: 11).
O primitivo teria ainda outra acepo, mais presente em Mrio de Andrade, embora
no fuja de todo da proposta de Oswald. Essa acepo muito bem colocada por Geiger:
(...) os primitivos do tempo que se iniciava no seriam os modernizadores ou
modernizantes, mas os modernistas, isto , aqueles capazes de captar o que h
de novo e autntico na modernidade. H a uma reflexibilidade de mtua de-
pendncia e potencializao entre a condio moderna e o encontro com o
primitivo como original e autntico. Isto , a modernidade modernista no nos
afasta dos dados primitivos, daqueles elementos nativos, mas faz com eles
nosso ingresso na modernidade e na universalidade. (...) Em vez de um mo-
vimento progressivo de incorporao e disciplinamento e aprimoramento dos
elementos brutos seja da arte, da inteligncia ou da nacionalidade a ida ao
primitivo seria a verdadeira cultura, sem parmetros (no sem elementos) im-
portados impostos. (GEIGER, 1999 : 233).
40
, em outras palavras, o que Mrio de Andrade define em carta a Carlos Drummond de
Andrade, datada de 18 de fevereiro de 1925, ao afirmar que o que representa o Brasil no
sua parte extica at pra ns e que no colabora no presente universal, mas a forma cultural
que pode adquirir a nacionalidade no desenvolvimento de si mesma. O que extico serve
apenas de condimento.
Elizabeth Travassos, ao analisar o primitivismo em Mrio de Andrade, corrobora o
contedo da carta enviada a Drummond, ao apontar que, a certa altura do debate modernista,
Mrio teria se oposto ao primitivismo da Poesia Pau-Brasil e da Antropofagia, sobretudo por-
que sugeriam descrena na cultura e inteligncia, mas que, apesar disso, o interesse por
fenmenos primitivos marcaria toda a anlise de msica e cultura popular deste autor.
ndios puros e livres de misturas eram exticos, exteriores ao ncleo nacional tal
como o concebia Mrio, embora do ponto de vista europeu pudessem passar por
brasileiros. Para esse ncleo de identidade, no qual particularismos culturais ori-
ginrios j se teriam diludo, no qual, portanto, no havia mais ndios e africanos
os povos primitivos dos esquemas evolucionistas -, ele transferiu as idias pri-
mitivistas. (TRAVASSOS, 1997: 159).
Em crtica ao livro Raa, de Guilherme de Almeida, escrita em carta de 26 de julho de
1925, endereada a Drummond, Mrio evoca a frmula para concretizar uma realidade real-
mente brasileira:
[Guilherme] Esqueceu a realidade brasileira atual e evocou uma realidade brasi-
leira em que a atual civilizao e tendncia civilizadoras das grandes cidades Rio,
Recife, Belo Horizonte etc e todo o Estado de So Paulo inteiramente automobili-
zado e eletrificado, no entram. A parte brasileira do poema, sob o ponto de vista
ideal crtico de realidade brasileira no corresponde verdade, porm a uma con-
veno que se vai tornando extica dentro do Brasil e que regional, no duma s
regio, porm de regies que no representam a realidade com que o Brasil con-
corre pra atual civilizao universal. Porque essa concorrncia se realiza com a
41
parte progressista dum pas, com o que nele til pra civilizao e no com o que
nele extico. Que no pode ser desprezado por ns, porm que lcito atuali-
dade universal ignorar como parte representativa. Uma hbil mistura dessas duas
realidades a soluo que pode realmente concretizar uma realidade brasileira
que possa se dizer em marcha.36
A reabilitao do primitivo, no caso de Mrio, estava intimamente ligada recupera-
o de um passado, de uma tradio, de vestgios, numa busca quase arqueolgica de caracte-
rsticas genuinamente brasileiras que se refletissem na msica, nas artes plsticas, enfim, na
cultura. Vestgios que por si s j se encontrassem diludos no inconsciente do brasileiro e
fossem identificveis em canes, nas danas dramticas, na lngua, enfim, na cultura popular.
A unio dos signos do progresso com esses vestgios buscados por este modernista em tra-
os indgenas de diversas fontes, cerimnias africanas, canes de roda ibricas, tradies
lusas, contos brasileiros, entre outros - pode ser definida ento como frmula proposta por
Mrio para conformar o carter brasileiro.
O tupi tangendo um alade deixava j claro no Prefcio Interessantssimo de sua Pau-
licia Desvairada o sentido que essa reabilitao do primitivo teria em sua obra: No quis
tambm tentar primitivismo vesgo e insincero. Somos na realidade os primitivos duma era
nova. Esteticamente: fui buscar entre as hipteses feitas por psiclogos, naturalistas e crticos
sobre os primitivos das eras passadas, expresso mais humana e livre de arte. O passado
lio para se meditar, no para reproduzir37. Em carta a Manuel Bandeira, datada de 25 de
janeiro de 1925, afirma tratar-se sua obra de ento sistematizao culta e no fotografia do
36 Cf. Carlos & Mrio Correspondncia de Carlos Drummond de Andrade e Mrio de An-drade. Org. e notas de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 2002. 37 Cf. ANDRADE, Mrio de. Paulicia Desvairada. In: De Paulicia Desv
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