UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM TEORIA LITERAacuteRIA
E LITERATURA COMPARADA
DIFERENTES PERCURSOS DE TRADUCcedilAtildeO DA EacutePICA
HOMEacuteRICA COMO PARADIGMAS METODOLOacuteGICOS
DE RECRIACcedilAtildeO POEacuteTICA
Um estudo propositivo sobre linguagem poesia e traduccedilatildeo
Orientadora Aurora Fornoni Bernardini
Orientando Marcelo Taacutepia
Tese apresentada agrave Banca Examinadora para obtenccedilatildeo
do grau de Doutor em Teoria Literaacuteria e Literatura Comparada
2012
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Resumo A tese discute inicialmente a conceituaccedilatildeo de poesia a especificidade da
traduccedilatildeo poeacutetica e as possibilidades de anaacutelise de poemas para com base nessas
consideraccedilotildees analisar fragmentos das traduccedilotildees da eacutepica de Homero agrave liacutengua
portuguesa realizadas por Manuel Odorico Mendes Carlos Alberto Nunes e Haroldo de
Campos considerando-se as respectivas concepccedilotildees acerca da atividade tradutoacuteria A
partir das obras estudadas busca-se a identificaccedilatildeo de diferentes paradigmas
metodoloacutegicos de recriaccedilatildeo poeacutetica apresentando-se por fim uma proposta de meacutetodo
tradutoacuterio da poesia eacutepica que envolve uma concepccedilatildeo riacutetmica baseada em
possibilidades de adaptaccedilatildeo em portuguecircs do padratildeo hexameacutetrico da poesia greco-
latina
Palavras-chaves Poesia traduccedilatildeo poeacutetica recriaccedilatildeo poeacutetica eacutepica grega Homero
Abstract
Firstly the present thesis discusses the conceptualization of Poetry the specificity of
poetry translation and possible ways of analysing poems and bearing these aspects in
mind the aim is to analyse some excerpts of Homerrsquos Epic translated into Portuguese
by Manuel Odorico Mendes Carlos Alberto Nunes and Haroldo de Campos taking into
consideration their respective views on translation work next by using the works
analysed different methodological paradigms applied to poetic recreation are identified
and finally a proposal for a translational method deemed suitable to Epic poetry is
presented envolving a rhythmic conception based on possibilities of adaptation to Portuguese
of the Greek and Latin hexameter patterns
Keywords Poetry poetic translation poetic recriation Greek epic Homer
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Este trabalho eacute dedicado agrave memoacuteria de minha matildee
Maria Aparecida Belli Taacutepia e ao meu pai Acircngelo Taacutepia Fernandes
Agradeccedilo agrave minha mulher Peacuterola Wajnsztejn Taacutepia e ao meu filho Daniel Taacutepia pela
cooperaccedilatildeo e pelo estiacutemulo agrave minha filha Ana Luiza Taacutepia de modo especial por sua decisiva
influecircncia em minha iniciativa de formar-me ainda que tardiamente em Letras
Agradeccedilo tambeacutem a Aurora Bernardini por ter-me concedido o privileacutegio de me acolher
como seu orientando e a Jaa Torrano por seus tatildeo proveitosos conselhos
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Sumaacuterio
Introduccedilatildeohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip5
Capiacutetulo I
1 Sobre poesia e traduccedilatildeo poeacutetica9
A A questatildeo da especificidade da linguagem poeacutetica9
B Traduccedilatildeo poeacutetica incertezas caminhos e superaccedilatildeo da impossibilidade50 B1 Reflexotildees sobre a tarefa do tradutor de poesia50
B2 Consideraccedilotildees sobre a impossibilidade da traduccedilatildeo poeacutetica 68
B3 Breve panorama teoacuterico e histoacuterico da traduccedilatildeo71 B31 Panorama atual das teorias da traduccedilatildeo77
B4 Breve discussatildeo sobre a possibilidade metodoloacutegica de comparaccedilatildeo entre traduccedilotildees81
B5 Esboccedilo de uma proposta de anaacutelise 88
Capiacutetulo II
A Os tradutores cujas obras seratildeo centralmente objeto de estudo
apresentaccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo95 A1 Manuel Odorico Mendes (1799-1864)95
A2 Carlos Alberto Nunes (1897-1990)107
A3 Haroldo de Campos (1929-2003)114 B Poetas-tradutores teoacutericos da traduccedilatildeo poeacutetica no Brasil
um trabalho precursor de conceitos e praacuteticas atuais122
C A teoria da transcriaccedilatildeo de Haroldo de Campos
a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica paramoacuterfica 124 C1 Transcriar eacute fazer de novo ou refazer o novo Um exemplo de transcriaccedilatildeo131
C2 ldquoA tarefa do tradutorrdquo de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos133
C3 A recriaccedilatildeo pela estrutura137 C4 Sobre a transcriaccedilatildeo da Iliacuteada140
Capiacutetulo III Vozes para Homero144
A1 Sobre a poesia eacutepica grega a questatildeo da oralidade145
A2 Iliacuteada fragmentos152
A3 Anaacutelise comparativa das traduccedilotildees uma primeira abordagem154 A4 Caminhando em possibilidades de anaacutelise181
Capiacutetulo IV Proposiccedilatildeo de referecircncia riacutetmico-meacutetrica associada a meacutetodo tradutoacuterio
o hexacircmetro em portuguecircs240
1 Apresentaccedilatildeo sucinta de um meacutetodo tradutoacuterio261
Conclusatildeo271
Bibliografia275
Apecircndices282
5
Introduccedilatildeo
A traduccedilatildeo de poesia eacute um terreno movediccedilo Chatildeo deslizante sobre o qual se
atua feito de elementos errantes como as rochas mencionadas no canto XII da Odisseacuteia
Mas natildeo soacute pelos obstaacuteculos tambeacutem pela incerteza pela mutabilidade do sentido pela
multiplicidade de opccedilotildees potencialmente vaacutelidas
Admitindo-se que a poesia exista pela especificidade de sua linguagem e que a
traduccedilatildeo de poesia seja possiacutevel ndash eacute o que se admite e se busca discutir neste estudo ndash
seraacute na diversidade que se poderatildeo obter talvez (como aqui se quer demonstrar)
indicativos de pontos de convergecircncia de processos de criaccedilatildeo e recriaccedilatildeo
Este trabalho ndash elaborado com a perspectiva de entendimento da teoria literaacuteria
como um amplo campo no qual se pode recorrer a fundamentos provenientes de uma
abordagem interdisciplinar ndash se iniciaraacute com uma discussatildeo sobre a natureza da poesia
tendo-se como referecircncia diferentes esforccedilos teoacutericos voltados agrave identificaccedilatildeo e agrave
definiccedilatildeo do que se entende por ldquopoeacuteticordquo Argumentos contraacuterios a essa possibilidade
de identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas imanentes agrave linguagem poeacutetica (e que envolvem
portanto a sua distinccedilatildeo da prosa) seratildeo tambeacutem considerados procurando-se algum
pensamento norteador para a tarefa empreendida que incluiraacute anaacutelise de trechos da
poesia homeacuterica e de suas recriaccedilotildees em nossa liacutengua Assim faraacute parte de nossos
propoacutesitos a reflexatildeo sobre procedimentos de anaacutelise assim como a proposiccedilatildeo de
certos procedimentos que se consideraratildeo adequados aos objetivos gerais do estudo
Como natildeo poderia deixar de ser tambeacutem se discutiratildeo oacutepticas diversas e conceitos
referentes agrave traduccedilatildeo e particularmente agrave traduccedilatildeo de poesia aplicando-se nas anaacutelises
e nas propostas que seratildeo feitas relativamente agrave tarefa tradutoacuteria as conclusotildees
consideradas pertinentes como fundamentaccedilatildeo para as formulaccedilotildees introduzidas
Noacutes leitores de liacutengua portuguesa somos privilegiados pela oferta generosa de
traduccedilotildees da eacutepica homeacuterica ao nosso idioma E isso mesmo desconsiderando-se as
diversas versotildees em prosa que escaparatildeo ao campo de interesse deste trabalho
dedicado essencialmente a questotildees sobre traduccedilatildeo de poesia a partir de um objeto de
interesse tomado como fonte para identificaccedilatildeo de modos e procedimentos tradutoacuterios
Para cumprir sua finalidade o estudo se valeraacute de obras que se pretendem ndash guardadas
as diferenccedilas de eacutepoca de princiacutepios e de resultados ndash produtos do que poderiacuteamos
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chamar de traduccedilatildeo poeacutetica dos poemas gregos ou seja de um processo tradutoacuterio que
busca atender agraves expectativas de realizaccedilatildeo de poemas eacutepicos em nossa liacutengua a partir
das composiccedilotildees originais Hoje apenas no Brasil dispomos de trecircs versotildees integrais da
Iliacuteada ndash a de Manuel Odorico Mendes (em versos decassiacutelabos) publicada em 1874 a
de Carlos Alberto Nunes (em hexacircmetros dactiacutelicos) publicada em 1962 e a de
Haroldo de Campos (em dodecassiacutelabos) publicada em dois volumes 2000-2002 aleacutem
de traduccedilotildees parciais significativas caso da apresentada em 2000 por Andreacute Malta
Campos (em versos compostos pela junccedilatildeo de dois heptassiacutelabos) Dispomos tambeacutem
de quatro versotildees da Odisseacuteia ndash a de Manuel Odorico Mendes (tambeacutem em
decassiacutelabos) a de Carlos Alberto Nunes (tambeacutem em hexacircmetros) a de Donaldo
Schuumller (em versos livres) e a de Trajano Vieira (em dodecassiacutelabos) aleacutem de uma
quinta a sair de Christian Werner (em versos livres) tambeacutem haacute traduccedilotildees
significativas de excertos da obra caso das realizadas por Haroldo de Campos (em
dodecassiacutelabos) que vieram a lume postumamente em 2006
Este estudo se concentraraacute na obra dos dois primeiros tradutores da obra integral
de Homero no paiacutes Odorico e Nunes e no trabalho de Haroldo de Campos que aleacutem
de particularmente importante como realizaccedilatildeo esteacutetica associa-se ao mais
desenvolvido e influente constructo teoacuterico sobre traduccedilatildeo poeacutetica levado a termo por
um poeta brasileiro Por essa razatildeo e por representar sua versatildeo da Iliacuteada a
contribuiccedilatildeo da maturidade de um tradutor-pensador da recriaccedilatildeo de poesia a produccedilatildeo
teoacuterico-criacutetica de Campos constituiraacute uma dimensatildeo relativamente privilegiada deste
trabalho
As demais traduccedilotildees mencionadas dos poemas homeacutericos natildeo seratildeo
investigadas por necessidade de delimitaccedilatildeo do jaacute vasto objeto dadas sua riqueza e sua
significaccedilatildeo talvez venham a constituir futuramente o foco de algum novo trabalho
que eu venha a empreender
Uma abordagem referencial a ser demonstrada
A argumentaccedilatildeo que deveraacute ser construiacuteda ao longo deste estudo teraacute de certo
modo como ponto de partida e de chegada a referecircncia norteadora (preacutevia portanto ao
pensamento a ser elaborado e alvo da conclusatildeo de seus objetivos) de uma
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conceituaccedilatildeo de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica brevemente apresentada a
seguir
Em anotaccedilotildees manuscritas para uma apresentaccedilatildeo realizada em 13 de dezembro
de 1979 Campos esquematiza pensamentos seus que se encontram de diversas formas
expostos no conjunto de seus textos teoacutericos sobre traduccedilatildeo poeacutetica os quais visam a
construir o conceito do que denomina ldquotranscriaccedilatildeordquo Elabora contudo um esquema
que encontra particularidade em sua configuraccedilatildeo teoacuterica pelo enfoque que traz
relativamente agrave definiccedilatildeo da traduccedilatildeo de poesia Em vez de se ater ao conceito fundador
de sua teorizaccedilatildeo manifesto em diversos ensaios ndash a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica
ou paramoacuterfica ndash nestas anotaccedilotildees ele a entende como uma ldquooperaccedilatildeo semioacutetica em
dois sentidosrdquo O primeiro desses constitui-se no sentido ldquoestritordquo o de que a traduccedilatildeo
poeacutetica eacute uma ldquopraacutetica semioacuteticardquo especial ldquona medida em que visa ao intracoacutedigo que
opera na poesia de todas as liacutenguasrdquo Para o autor
esse intracoacutedigo definido de um ponto de vista linguiacutestico seria o espaccedilo
operatoacuterio da funccedilatildeo poeacutetica de Jakobson ou na expressatildeo alegoacuterica de Walter
Benjamin die Reine Sprache a liacutengua pura a ser desocultada resgatada pela
operaccedilatildeo tradutora no cerne do original (ao inveacutes do conteuacutedo cuja transmissatildeo eacute
afeita agrave traduccedilatildeo referencial)
O segundo o sentido ldquolatordquo diz respeito agrave traduccedilatildeo como um ldquoprocesso semioacuteticordquo de
ldquosemiose ilimitadardquo Afirma Campos
A traduccedilatildeo eacute o capiacutetulo por excelecircncia de toda teoria literaacuteria na medida em que a
literatura eacute um imenso canto paralelo um movimento paroacutedico em que uma dada
tradiccedilatildeo eacute sempre reproposta e reformulada na traduccedilatildeo [] Processo de semiose
ilimitada agrave maneira de Peirce
Assim a traduccedilatildeo seria correlata da proacutepria literatura e do processo essencial de
sua realizaccedilatildeo como campo abrangente de produccedilatildeo parodiacutestica
Pelo teor sinteacutetico e consistente da abordagem por seu amplo alcance e pelas
questotildees que desperta ndash incluindo-se a da proacutepria noccedilatildeo de ldquointracoacutedigordquo ou da
dimensatildeo intratextual ndash estas breves anotaccedilotildees podem consistir num marco preacutevio e
8
posterior a minha proacutepria tentativa de contribuiccedilatildeo ao pensamento sobre traduccedilatildeo
poeacutetica em geral e sobre a recriaccedilatildeo da eacutepica de Homero em particular
A tiacutetulo de ilustraccedilatildeo veja-se uma coacutepia da referida paacutegina manuscrita1 por
Haroldo de Campos da qual resultaram as observaccedilotildees aqui inseridas
1A coacutepia do manuscrito de Haroldo de Campos (assim como de outras paacuteginas reproduzidas neste
trabalho) foi-me gentilmente cedida pelos herdeiros do autor durante processo de pesquisa de sua obra e
de seus originais do qual participei a fim de organizar em colaboraccedilatildeo com Thelma Noacutebrega uma
ediccedilatildeo contendo artigos de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica quase todos originalmente publicados em
perioacutedicos e natildeo recolhidos em livro (o volume seraacute publicado em 2012 pela Editora Perspectiva com o
tiacutetulo de Transcriaccedilatildeo e conteraacute reproduccedilatildeo de originais do autor)
9
Capiacutetulo I
1 Sobre poesia e traduccedilatildeo poeacutetica
A A questatildeo da especificidade da linguagem poeacutetica
Ao considerar as versotildees da eacutepica grega ao portuguecircs como trabalhos de
traduccedilatildeo poeacutetica de modo a associaacute-los ao pensamento sobre traduccedilatildeo proacuteprio dos
diversos tradutores abordados neste estudo e a vislumbrar neles diferentes percursos
tradutoacuterios que podem constituir paradigmas metodoloacutegicos de recriaccedilatildeo torna-se
necessaacuteria a formulaccedilatildeo acerca do que se entenderaacute por poesia para em seguida
conceituar-se preliminarmente a traduccedilatildeo poeacutetica como atividade recriadora
A poesia existe Esta questatildeo revela a natureza da reflexatildeo relativizadora que
marcou as uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX por influecircncia da obra de pensadores como
Jacques Derrida2 Roland Barthes e Stanley Fish entre outros que propiciaram a
formaccedilatildeo do que seria a conceituaccedilatildeo poacutes-estruturalista acerca da linguagem Para situar
o problema numa breve abordagem geral que serviraacute como referecircncia a
complementaccedilotildees menos ligeiras opto3 por valer-me da quase totalidade de um artigo ndash
cujo tiacutetulo consiste na pergunta com a qual se inicia este paraacutegrafo ndash por mim escrito
com a finalidade de apresentaccedilatildeo do problema a um puacuteblico indiferenciado4
procurando-se adequar a linguagem a seus objetivos gerais
[] Ao questionarmos a existecircncia da poesia teremos dois caminhos ou
responder de imediato com um simples e indignado ldquosimrdquo (eu mesmo dedico
grande parte de minha vida a ela direta ou indiretamente e natildeo creio devotar-me a
algo inexistente) ou principiar uma discussatildeo que certamente natildeo cabe nos limites
de um texto de uma coluna como esta Mas o assunto surgiu porque penso que
talvez seja interessante relatar duas breves experiecircncias vividas durante os cursos
que tenho dado [] em torno do tema ldquoPoesia leitura anaacutelise e interpretaccedilatildeordquo A
2 Obras dos autores referidos relacionadas ao tema constam das Referecircncias Bibliograacuteficas 3 De modo atiacutepico num trabalho desta natureza uma vez que o artigo poderia integrar os anexos tal
expediente se deve agrave minha visatildeo de que as reflexotildees e experiecircncias nele relatadas seratildeo uacuteteis como
introduccedilatildeo agraves discussotildees posteriores 4 Trata-se de uma coluna em site literaacuterio (Cronopios wwwcronopioscombr) consultado em
24112011
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primeira aconteceu jaacute haacute algum tempo [] e foi uma proposta inspirada no
conhecido estudo do teoacuterico e professor norte-americano Stanley Fish (autor de Is
there a text in the class The authority of interpretive communities [1980]) que
pediu a um grupo de alunos dedicados ao estudo da poesia religiosa do seacutec XVII
que analisassem o ldquopoemardquo escrito na lousa na verdade o que havia no quadro era
uma relaccedilatildeo de nomes de autores que integravam uma bibliografia sugerida Os
estudantes ndash habituados agrave anaacutelise e dotados de repertoacuterio para tanto ndash realizaram a
tarefa a contento estabelecendo correlaccedilotildees entre os nomes isso levou o autor a
considerar a literariedade um constructo motivado para ele a interpretaccedilatildeo natildeo eacute a
arte de entender mas a arte de construir afirma tambeacutem que o que eacute reconhecido
como literatura resulta de uma decisatildeo da ldquocomunidade interpretativardquo acerca do
que eacute literaacuterio ou natildeo Eacute faacutecil encontrar exemplos que ilustrem esta uacuteltima
proposiccedilatildeo alguns poemas hoje considerados como tal natildeo o seriam um seacuteculo
atraacutes Mas voltemos agrave experiecircncia agrave qual me referi tomei dois trechos de textos
que natildeo foram escritos como poemas ndash um fragmento de um dos Ensaios de
Montaigne e outro da coluna assinada por Contardo Calligaris no jornal Folha de
Satildeo Paulo ndash e os apresentei (divididos em ldquoversosrdquo) como poemas aos alunos
pedindo que discutissem suas caracteriacutesticas Conforme esperava os grupos
assinalaram diversos aspectos considerados interessantes nos ldquopoemasrdquo levando-
os a seacuterio como poesia ndash de fato nossa leitura eacute decisiva na qualificaccedilatildeo de um
texto Mas ocorreu algo que daacute subsiacutedio para outra questatildeo um dos alunos
observou que os poemas seriam ldquologopeiasrdquo Referia-se agrave classificaccedilatildeo de Pound
sobre as modalidades de poesia enquadrando os textos analisados naquela
categoria em que prevalece a ldquodanccedila do intelecto entre as palavrasrdquo ou seja em
que o engendramento loacutegico prevalece sobre outros aspectos como a musicalidade
(quando esta prepondera trata-se de ldquomelopeacuteiardquo) ou a forccedila de imagens (o
prevalecimento desta caracteriza a ldquofanopeiardquo) Ou seja notou que embora
aqueles textos fossem poesia ndash pois assim lhe foram apresentados ndash natildeo se podia
destacar neles por exemplo a melodia dos versos eram conforme lhe parecia
poemas de um tipo mais semelhante agrave prosa Quero discutir com isto a questatildeo de
que se a leitura pode atribuir a um texto um teor qualquer desde que haja ldquodecisatildeo
comunitaacuteriardquo acerca de sua qualificaccedilatildeo isto natildeo quer dizer que natildeo existam
elementos que lhe satildeo intriacutensecos e que permitem sua observaccedilatildeo diante da leitura
adequada Isto pode parecer oacutebvio mas natildeo eacute bem assim pois com base na ideia
da leitura como uma ldquoarte de construirrdquo pode-se dizer ndash como o faz Rosemary
Arrojo em seu jaacute ldquoclaacutessicordquo Oficina de traduccedilatildeo ndash que ldquoo poeacutetico eacute na verdade
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uma estrateacutegia de leitura uma maneira de ler e natildeo [] um conjunto de
propriedades estaacuteveis que objetivamente encontramos em certos textosrdquo Quando
se diz ldquopropriedades estaacuteveisrdquo estaacute-se pensando nos sentidos do poema que
conforme tal visatildeo ndash afinada com as proposiccedilotildees poacutes-estruturalistas e
particularmente com o desconstrucionismo de Jacques Derrida ndash decorrem da
leitura ldquocomo leitores do poemardquo ndash diz Arrojo ndash ldquoaceitamos o desafio impliacutecito de
interpretaacute-lo poeticamente e passamos a procurar um sentido coerente para elerdquo
tal sentido contribuiraacute para ldquoa construccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeordquo De acordo com
essa concepccedilatildeo quando lemos um texto ldquopoeticamenterdquo passamos a buscar
dimensotildees de sentido compatiacuteveis com a proacutepria ideia de poema que pode ser a de
um texto capaz de dizer muitas coisas ao mesmo tempo e que tenha na
ambiguidade muitas vezes um instrumento gerador de sentido inesperado
insoacutelito um texto em que todos os seus elementos devam ser considerados numa
teia de associaccedilotildees no processo interpretativo que pode resultar em conclusotildees
diversas e igualmente ldquoverdadeirasrdquo (considerando-se que natildeo haacute do ponto de
vista da desconstruccedilatildeo ldquoverdaderdquo original ou estaacutevel) Se pensarmos em termos de
sentido natildeo haveraacute mesmo propriedades ou elementos fixos no texto a leitura
cria ldquosignificadosrdquo ndash mesmo porque estes natildeo existem como uacutenicos e estaacuteveis
dentro de uma liacutengua Mas ndash e sem querer levar muito longe esta discussatildeo que
pode ser infindaacutevel e infinita ndash natildeo se pode negar sob outro ponto de vista que
uma leitura ao envolver muacuteltiplas possibilidades interpretativas teraacute de atentar
para aqueles elementos que laacute estatildeo inclusive com suas caracteriacutesticas sonoras e
visuais (quando for o caso) que por sinal contribuem para a construccedilatildeo do
sentido Mesmo que eu possa ler como poema um texto que natildeo foi criado como
tal isto natildeo quer dizer que natildeo possa distinguir nele caracteriacutesticas que me
permitam por exemplo afirmar que natildeo apresenta musicalidade ou imagens ou
que a sonoridade produzida por seus constituintes eacute pobre e embora eu possa
ldquojustificaacute-lordquo como poema a partir de outras qualidades que nele encontre ele natildeo
seraacute visto como uma melopeacuteia mesmo que eu me esforce para tanto (Antes de
prosseguir um parecircntese eacute claro que a ideia sobre o que eacute poesia mudou e muda
com o tempo e o contexto e que hoje haacute uma pluralidade indefinida do que se
considera poesia inclusive a jaacute usual ldquopoesia em prosardquo mas pensando no
experimento de Fish quanto de sua autoridade sobre os alunos natildeo restringiu uma
afirmaccedilatildeo do tipo ldquoo rei estaacute nurdquo ou seja ldquoisto natildeo eacute um poemardquo No meu caso
guardadas as devidas desproporccedilotildees o caso seria semelhante em que uma simples
autoridade de professor pode dificultar ou impedir uma questatildeo aleacutem do proposto
12
e ademais no meu caso particular devo admitir que a escolha teraacute envolvido de
certa forma uma preacute-leitura do que poderia dar margem a uma discussatildeo
estimulante) Claro que se pode dizer mas o que eacute considerado ldquomusicalrdquo tambeacutem
o eacute por decisatildeo da comunidade cultural assim como o que vem a ser muacutesica satildeo
muitos os exemplos que corroborariam esta afirmaccedilatildeo como o caso das
composiccedilotildees atonais (que sofreram grande resistecircncia no proacuteprio meio em que
foram criadas) e outras experimentais que muitos natildeo reconhecem como muacutesica
Nestes termos natildeo haacute qualquer possibilidade de definiccedilatildeo do que seja muacutesica
pintura ou literatura ou poesia nada disso existe a natildeo ser a partir do ldquoacordordquo
que cria sua identificaccedilatildeo Mas de novo a partir de outro ponto de vista uma
composiccedilatildeo feita de ruiacutedos e sons ldquoestranhosrdquo com base num sistema natildeo
convencional teraacute em si um esquema de relaccedilotildees ditado por suas proacuteprias regras
que podem ser ou natildeo percebidas conhecidas Um poema independentemente de
sua qualificaccedilatildeo como ldquomusicalrdquo traz em si por exemplo fonemas que se repetem
ou natildeo palavras que trazem a mesma terminaccedilatildeo ou natildeo vogais fechadas que
sucedem outras abertas ou vice-versa apresenta sons que escorrem fluidos ou que
se seguem em solavancos obstaacuteculos haacute a distribuiccedilatildeo de siacutelabas tocircnicas e pausas
que impotildeem um ritmo ao conjunto haacute sim ndash e de novo o oacutebvio pode natildeo o ser ndash
uma dimensatildeo fiacutesica do signo (poderiacuteamos dizer que considero aqui em termos da
semioacutetica de Charles Peirce o ldquoobjeto imediatordquo do signo isto eacute sua aparecircncia
graacutefica ou acuacutestica) que eacute uma espeacutecie de mateacuteria-prima do artista e que mesmo
natildeo se dissociando da produccedilatildeo de sentido pela leitura permite o estabelecimento
de regras internas de composiccedilatildeo e a sua identificaccedilatildeo por diferenccedila relativamente
a outras obras Assim da mesma forma como natildeo se pode atribuir musicalidade a
um determinado texto ndash nascido crocircnica por exemplo ndash que ao priorizar a ldquofunccedilatildeo
cognitivardquo (na classificaccedilatildeo de Jakobson) empregando as palavras como ldquosignos-
parardquo e natildeo como ldquosignos-derdquo (conforme a distinccedilatildeo de Charles Morris) isto eacute ao
usaacute-las como ldquoveiacuteculosrdquo que conduzem a algo natildeo apresenta relaccedilotildees que
sobressaiam no plano sonoro tambeacutem natildeo se pode negar musicalidade a um texto
que nascido poema ndash vale dizer tambeacutem ldquolidordquo como um poema por seu autor ndash
manifeste uma elaboraccedilatildeo discerniacutevel da tessitura dos sons Claro eacute no entanto
que mesmo um poema feito como tal e dotado de caracteriacutesticas consideradas
poeacuteticas ndash inclusive no campo da sonoridade ndash pode ser lido de maneira a natildeo se
perceberem seus elementos tudo pode ldquopassar batidordquo pelo leitor desavisado que
lecirc um poema como se leria uma notiacutecia de jornal ou uma narrativa qualquer ou
seja que natildeo se dispotildee a uma leitura que possibilite natildeo soacute a dita ldquoproduccedilatildeo de
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sentidordquo como tambeacutem a simples percepccedilatildeo dos aspectos sonoro e visual das
palavras O reconhecimento portanto de certas caracteriacutesticas do texto observadas
a partir dos sons que se relacionam entre si por diferenccedilas e semelhanccedilas ndash
poderiacuteamos dizer que estamos focalizando em termos da teoria linguiacutestica de
Hjelmslev (para quem o signo eacute a junccedilatildeo de um ldquoplano de expressatildeordquo e um ldquoplano
de conteuacutedordquo cada plano compreendendo os niacuteveis da ldquoformardquo e da ldquosubstacircnciardquo)
a forma da expressatildeo dada pelas diferenccedilas focircnicas (lembrando que as oposiccedilotildees
se constroem sobre identidades) ndash tambeacutem depende de uma atitude de leitura que
envolve inclusive um repertoacuterio voltado agrave percepccedilatildeo de formas Muitas vezes o
leitor natildeo estaacute preparado para observar os elementos natildeo-verbais (embora
associados ao signo verbal ou integrantes deste) que se apresentam no texto
compondo sua identidade riacutetmica e sonora e buscaraacute num poema apenas o que
este ldquoquer dizerrdquo podemos dizer que neste caso o poema se perde porque a leitura
natildeo se faz ldquopoeticamenterdquo ou seja natildeo visa agrave percepccedilatildeo do acircmbito relativo ao que
Jakobson denominou ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo ndash caracterizada conforme
observa Deacutecio Pignatari em seu O que eacute comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquopela projeccedilatildeo de
coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais etc) sobre o coacutedigo verbalrdquo esta
pode ser uma maneira de compreendecirc-la Como diz ainda Deacutecio ldquoA maioria das
pessoas lecirc poesia como se fosse prosa A maioria quer lsquoconteuacutedosrsquo ndash mas natildeo
percebe formasrdquo Se lermos poesia como poesia ela existiraacute para noacutes com tudo
aquilo que a identifica em maior ou menor grau conforme seu niacutevel de realizaccedilatildeo
esteacutetica alcanccedila e assim desempenharaacute a funccedilatildeo que lhe cabe diferente da de um
texto natildeo poeacutetico
Mas voltando a questotildees iniciais o que deveraacute fazer com que leiamos um texto
como poesia Seraacute acaso a sua simples disposiccedilatildeo em versos Natildeo poderaacute ser
pois haacute poemas que natildeo satildeo em versos e haacute textos assim dispostos que
dificilmente poderemos chamar de poesia Ou seraacute sua qualificaccedilatildeo anterior como
um poema Isto nos levaraacute a lecirc-lo como tal mas eacute preciso considerar que os
criteacuterios para tanto satildeo variaacuteveis e mesmo que a informaccedilatildeo pode ser falsa Ou
ainda outras caracteriacutesticas ldquoformaisrdquo Natildeo pois podem ser considerados poemas
textos de caracteriacutesticas muito diversas O que entatildeo Resta-nos atentar para as
estruturas que nos permitam a percepccedilatildeo ndash e consequente apreciaccedilatildeo esteacutetica ndash de
elementos que se associam daquele modo peculiar que possibilitou a formulaccedilatildeo de
um conceito como ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo de nos abrirmos
aprioristicamente agrave leitura esteacutetica de um texto que se insinue como dotado de
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algo mais do que a simples funccedilatildeo de ldquotransmissatildeo de mensagensrdquo de o vermos e
ouvirmos com olhos e ouvidos o mais possiacutevel libertos do sistema loacutegico-
discursivo facultando-nos o pensamento analoacutegico Se o texto nos eacute dado como
poesia seja qual for o ldquotipordquo de poema eacute claro que esta atitude seraacute ativa e
predeterminada ainda que natildeo o reconheccedilamos de imediato como poesia
conforme os padrotildees que adotamos se natildeo nos for dado como tal tambeacutem
poderemos nos surpreender ao encontrarmos pela frente por exemplo no meio de
um romance trechos que parecem emergir do contexto como um ser que salta do
plano da prosa para o da poesia Eacute o caso entre tantos outros de alguns fragmentos
de romances do autor cubano Alejo Carpentier ndash e eacute a partir de um deles que se deu
a segunda experiecircncia a que me referi no iniacutecio deste artigo mas como este jaacute se
alongou muito aleacutem de sua apropriada medida deixemos este tema para outra vez
Muitas satildeo as referecircncias feitas de passagem nesse artigo aqui evocado para
explicitar as concepccedilotildees envolvidas no suporte dessa abordagem precisaremos de
acreacutescimos significativos aleacutem de algumas reiteraccedilotildees No entanto esse texto pode dar
conta de apresentar a complexidade da discussatildeo pela tentativa mais ou menos bem
sucedida de formulaccedilatildeo de um ponto de vista Consideraremos neste trabalho para a
proacutepria presenccedila de um objeto de estudo no modo em que eacute proposto que a poesia
existe e possui caracteriacutesticas distinguiacuteveis que podemos buscar independentemente da
diversidade do que se chama ou chamou de poesia (da antiguidade ocidental ateacute nossos
dias)
Mencionou-se no artigo a teoacuterica brasileira Rosemary Arrojo sua leitura e sua
sistematizaccedilatildeo acerca das concepccedilotildees desconstrucionistas e sua aplicaccedilatildeo na
(in)definiccedilatildeo e na leitura de poesia assim como no entendimento da atividade de
traduccedilatildeo seratildeo frequentemente citados por tudo o que possibilitam de discussatildeo e
reflexatildeo Mas antes focalizemos da maneira mais breve possiacutevel (poreacutem mais detida
que o artigo apresentado) algo do principal arcabouccedilo teoacuterico da linguiacutestica estrutural
(fundamentada nas noccedilotildees de Ferdinand de Saussure5) sobre poesia
Natildeo cabe apresentar aqui a histoacuteria do estruturalismo na linguiacutestica pela
limitaccedilatildeo naturalmente imposta a explanaccedilotildees de fundamentaccedilatildeo ao tema central e pelo
fato de ser esse um tema amplamente difundido e explorado no seacuteculo XX apenas
5 SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Traduccedilatildeo de Antocircnio Chelini Joseacute Paulo Paes e Izidoro
Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 1977
15
como indicaccedilatildeo contudo e para se manter alguma ilusatildeo de autonomia deste trabalho
leia-se uma abordagem sinteacutetica de Michael Peters a respeito do assunto conforme
afirma o estruturalismo
[] tem sua origem na linguiacutestica estrutural tal como desenvolvida por Ferdinand
de Saussure e por Roman Jakobson na virada do seacuteculo Saussure ministrou um
curso sobre linguiacutestica geral de 1907 a 1911 morreu em 1913 Seus alunos
publicaram em 1916 o livro Cours de linguistique reconstituiacutedo a partir de suas
anotaccedilotildees de aula O Cours de linguistique concebia a linguagem como um sistema
de significaccedilatildeo vendo seus elementos de uma forma relacional []6
Conheccedilam-se tambeacutem os esclarecimentos de Margarita Petter acerca do tema
Para o mestre genebrino a Linguiacutestica tem por uacutenico e verdadeiro objeto a liacutengua
considerada em si mesma e por si mesma Os seguidores dos princiacutepios
saussureanos esforccedilaram-se por explicar a liacutengua por ela proacutepria examinando as
relaccedilotildees que unem os elementos no discurso e buscando determinar o valor
funcional desses diferentes tipos de relaccedilotildees A liacutengua eacute considerada uma estrutura
constituiacuteda por uma rede de elementos em que cada elemento tem um valor
funcional determinado A teoria de anaacutelise linguiacutestica que desenvolveram herdeira
das ideias de Saussure foi denominada estruturalismo Os princiacutepios teoacuterico-
metodoloacutegicos dessa teoria ultrapassaram as fronteiras da Linguiacutestica e a tomaram
ciecircncia piloto entre as demais ciecircncias humanas [] (Fiorin 2002 14)7
Eacute importante que haja aqui ndash para que se tornem fundamentos a discussotildees
posteriores ndash uma referecircncia breve a conceituaccedilotildees e princiacutepios estabelecidos pelo
linguista suiacuteccedilo Ferdinand de Saussure (1857-1913) Sobre a linguagem e o conceito de
signo diz sinteticamente Haroldo de Campos8
6PETERS M Poacutes-estruturalismo e filosofia da diferenccedila ndash Uma introduccedilatildeo Belo Horizonte Autecircntica
2000 7 FIORIN Joseacute Luiz (org) Introduccedilatildeo agrave Linguiacutestica I Objetos teoacutericos Satildeo Paulo Contexto 2002 8 Citaccedilatildeo do artigo ldquoA comunicaccedilatildeo na poesia de vanguardardquo In CAMPOS H de A arte no horizonte
do provaacutevel Satildeo Paulo Perspectiva 1975 pp 131-154
16
A linguagem eacute um sistema de signos O signo entatildeo eacute a unidade linguiacutestica Para
Saussure cujas concepccedilotildees pioneiras ainda estatildeo impregnadas de psicologismo9 o
signo linguiacutestico eacute uma entidade psiacutequica de duas faces unindo natildeo uma coisa e
um nome mas um conceito e uma imagem acuacutestica10
o significante eacute a imagem
sensorial psiacutequica (natildeo a pura materialidade fiacutesica do som) da forma focircnica e o
significado eacute a imagem mental da coisa (que pode estar ligada a outro significante
conforme o idioma) (1975 134)
Por sua vez Joseacute Luiz Fiorin observa que
A definiccedilatildeo de signo dada por Saussure eacute substancialista pois ele trata do signo em
si como uniatildeo de um significante e um significado No entanto no Curso de
linguiacutestica geral ele insiste no fato de que na liacutengua natildeo haacute senatildeo diferenccedilas ou
seja de que cada elemento linguiacutestico deve ser diferente dos outros elementos com
os quais contrai relaccedilatildeo Por isso eacute preciso considerar o signo natildeo mais em sua
composiccedilatildeo mas em seus contornos dados por suas relaccedilotildees com os outros signos
Por isso Saussure cria a noccedilatildeo de valor [] Com ela daacute-se uma definiccedilatildeo
negativa do signo um signo eacute o que os outros natildeo satildeo O valor proveacutem da situaccedilatildeo
reciacuteproca das peccedilas na liacutengua pois importa menos o que existe de conceito e de
mateacuteria focircnica num signo do que o que haacute ao seu redor A significaccedilatildeo eacute entatildeo
uma diferenccedila entre um signo e outro signo pois o que existe na liacutengua satildeo a
produccedilatildeo e a interpretaccedilatildeo de diferenccedilas (2002 58)
Eacute pertinente ndash por questotildees terminoloacutegicas e conceituais ndash incluir-se aqui a
ideia de signo para Hjelmslev11
Hjelmslev [] Comeccedila por dizer que o signo eacute a uniatildeo de um plano de conteuacutedo a
um plano de expressatildeo[] Para Hjelmslev cada plano compreende dois niacuteveis a
9 A observaccedilatildeo criacutetica de Campos eacute reveladora de sua posiccedilatildeo teoacuterica como se poderaacute verificar
posteriormente Agrave apresentaccedilatildeo do que seria o signo para Saussure o autor faz suceder a conceituaccedilatildeo de
signo segundo Jakobson ldquoJakobson deixando de lado o mentalismo saussuriano prefere distinguir entre
signans o aspecto sensualmente perceptiacutevel do signo e signatum o seu aspecto inteligiacutevel traduziacutevel
para concluir lsquoToda entidade linguiacutestica da maior agrave menor eacute uma conjunccedilatildeo necessaacuteria de signans e signatum Assim se define o traccedilo distintivo na base do signans como uma propriedade socircnica opositiva
aliada ao seu signatum que eacute a funccedilatildeo distintiva do traccedilo ndash a sua capacidade de diferenciar significaccedilotildeesrdquo 10 Campos usa aqui a mesma definiccedilatildeo que aparece no Curso de linguiacutestica geral de Saussure ldquoO signo
linguiacutestico une natildeo uma coisa e uma palavra mas um conceito e uma imagem acuacutesticardquo (1977 80) 11HJELMSLEV H Capiacutetulo ldquoExpressatildeo e conteuacutedordquo integrante de Hjelmslev H Prolegocircmenos a uma
teoria da linguagem Satildeo Paulo Perspectiva 1975
17
forma e a substacircncia Assim haacute uma forma do conteuacutedo e uma substacircncia do
conteuacutedo uma forma da expressatildeo e uma substacircncia da expressatildeo
[] A forma corresponde ao que Saussure chama valor ou seja eacute um conjunto de
diferenccedilas Para estabelecer uma definiccedilatildeo formal de um som ou de um sentido eacute
preciso estabelecer oposiccedilotildees entre eles por traccedilos pois os sons e os sentidos natildeo
se opotildeem em bloco [] A mesma coisa ocorre no acircmbito do sentido []
Assim o signo para Hjelmslev une uma forma da expressatildeo a uma forma de
conteuacutedo Essas duas formas geram duas substacircncias uma da expressatildeo e uma do
conteuacutedo A forma da expressatildeo satildeo diferenccedilas tocircnicas e suas regras
combinatoacuterias a forma do conteuacutedo satildeo diferenccedilas semacircnticas e suas regras
combinatoacuterias a substacircncia da expressatildeo satildeo os sons a substacircncia do conteuacutedo os
conceitos (2002 59)
Satildeo as seguintes as caracteriacutesticas do signo linguiacutestico assim apresentadas (aqui
em citaccedilotildees sucessivas) por J L Fiorin
Para Saussure o signo linguiacutestico tem duas caracteriacutesticas principais a
arbitrariedade do signo e a linearidade do significante []
[] o signo linguiacutestico eacute arbitraacuterio e portanto cultural Arbitraacuterio eacute o contraacuterio de
motivado[] ou seja [] natildeo haacute nenhuma relaccedilatildeo necessaacuteria entre o som e o
sentido [] natildeo haacute qualquer necessidade natural que determine a uniatildeo de um
significante e de um significado Isso eacute comprovado pela diversidade das liacutenguas
[] Algumas pessoas criticaram a concepccedilatildeo da arbitrariedade do signo
mostrando que as onomatopeacuteias [] satildeo motivadas No entanto eacute preciso dizer
que em [] as onomatopeacuteias ocupam um lugar marginal na liacutengua e [] elas satildeo
submetidas agraves coerccedilotildees fonoloacutegicas de cada liacutengua []
O corolaacuterio da arbitrariedade eacute a convenccedilatildeo[]
Como diz Jakobson12
ldquoo proacuteprio Saussure atenuou seu lsquoprinciacutepio fundamental
do arbitraacuteriorsquo distinguindo em cada liacutengua aquilo que eacute lsquoradicalmentersquo arbitraacuterio
daquilo que soacute o eacute lsquorelativamentersquo (1973 109) Explica Fiorin
[] Jakobson (196998-117)13
mostra que embora estivesse correta a afirmaccedilatildeo
saussurreana de que os signos linguiacutesticos satildeo arbitraacuterios ela deveria ser matizada
12 JAKOBSON Roman Em traduccedilatildeo de Izidoro Blikstein e Joseacute Paulo Paes Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo
Satildeo Paulo Clutrix 1973 6ordf ediccedilatildeo
18
pois em muitos casos em todos os niacuteveis da liacutengua aparecem motivaccedilotildees Os sons
parecem ter um simbolismo universal A oposiccedilatildeo de fonemas graves como o a
e agudos como o i eacute capaz de sugerir a imagem do claro e do escuro do pontudo
e do arredondado do fino e do grosso do ligeiro e do maciccedilo Por isso quando se
vai indicar nas histoacuterias em quadrinho o riso dos homens e das mulheres usam-
se respectivamente ha ha ha e hi hi hi Ainda nas histoacuterias em quadrinho as
onomatopeacuteias que indicam ruiacutedo sons brutais e repentinos como pancadas
comeccedilam sempre por consoantes oclusivas que satildeo momentacircneas como um golpe
(pb td kg) pum paacute taacute Isso natildeo ocorre segundo Jakobson apenas nas
onomatopeacuteias Haacute regiotildees do leacutexico em que conjuntos de palavras apresentam
sentidos similares associados a sons similares Em inglecircs temos bash golpe
mash mistura smash golpe duro crash fragor desmoronamento dash
choque lash chicotada hash confusatildeo rash erupccedilatildeo brash ruiacutenas
clash choque violento trash repelente plash marulho splash salpico
flash relacircmpago[] (2002 62)
Ressaltem-se as observaccedilotildees que se seguem acerca da ldquomotivaccedilatildeordquo na poesia
Eacute na poesia no entanto que a motivaccedilatildeo do signo aparece em toda sua forccedila O
poeta busca motivar a relaccedilatildeo entre o significante e o significado Essa motivaccedilatildeo
natildeo aparece no niacutevel do signo miacutenimo mas no do signo-texto Por isso no texto
poeacutetico o plano da expressatildeo serve natildeo apenas para veicular conteuacutedos mas para
recriaacute-los em sua organizaccedilatildeo O material sonoro contribui para produzir
significaccedilatildeo o plano da expressatildeo eacute colocado em funccedilatildeo do conteuacutedo Os
elementos da cadeia sonora lembram de algum modo o significado presente no
plano do conteuacutedo As aliteraccedilotildees as assonacircncias os ritmos imitam aquilo de que
fala o poema pois ele eacute na frase do poeta Valeacutery um hesitaccedilatildeo prolongada entre
o som e o sentido Os sons na poesia satildeo escolhidos em razatildeo de seu poder
imitativo Nos versos abaixo de Os Lusiacuteadas a repeticcedilatildeo de consoantes oclusivas
especialmente do t imita as explosotildees que a tempestade produzia
Em tempo de tormenta e vento esquivo
De tempestade escura e triste pranto (V 18 3-4) (2002 63-64)
13 ID Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo em sua primeira ediccedilatildeo (1969) especificamente ao capiacutetulo ldquoAgrave procura
da essecircncia da linguagemrdquo que trata da motivaccedilatildeo de signos linguiacutesticos
19
A respeito da contribuiccedilatildeo do material sonoro para a significaccedilatildeo evoque-se a
teoria de Maurice Grammont citada por Antonio Candido em seu Estudo analiacutetico do
poema14
Candido refere-se ao que eacute exposto na segunda parte (ldquoLes sons consideres
comme moyens dexpressionrdquo p 193-375) do livro Le vers franccedilais como ldquoexemplo de
uma teoria que afirma a existecircncia de correspondecircncias entre a sonoridade e o
sentimentordquo15
Ponto de partida [da teoria de Grammont] Pode-se pintar uma ideia por meio de
sons todos sabem que isto eacute praticaacutevel na muacutesica e a poesia sem ser muacutesica eacute
() em certa medida uma muacutesica as vogais satildeo espeacutecies de notas []
Todavia Grammont eacute bastante prudente para observar e em seguida insistir
repetidas vezes que o som por si soacute natildeo produz efeitos se natildeo estiver ligado ao
sentido Em resumo todos os sons da linguagem vogais ou consoantes podem
assumir valores precisos quando isto eacute possibilitado pelo sentido da palavra em que
ocorrem se o sentido natildeo for suscetiacutevel de os realccedilar permanecem inexpressivos
[]
Distingue os seguintes casos 1 Repeticcedilatildeo de fonemas quaisquer 2 Vogais 3
Consoantes 4 Hiato 5 Rima
Destaquem-se as afirmaccedilotildees referentes agrave necessidade de associaccedilatildeo entre o som
e o sentido para a produccedilatildeo de efeitos e tambeacutem a distinccedilatildeo em sua teoria dos
diferentes casos de repeticcedilatildeo Grammont assim se refere agrave repeticcedilatildeo de consoantes e
vogais
Vogais 1 Agudas dor desespero alegria coacutelera ironia e desprezo aacutecido troccedila
2 Claras leveza doccedilura3 Brilhantes barulhos rumorosos 4 Sombrias barulhos
surdos raiva peso gravidade ideias sombrias 5 Nasais repetem os efeitos das
baacutesicas modificando-as
Consoantes 1 Momentacircneas Satildeo as explosivas proacuteprias a qualquer ideia de
choque oclusivas surdas e sonoras As primeiras mais fortes produzem mais
14 CANDIDO Antonio O estudo analiacutetico do poema Satildeo Paulo Humanitas 1996 pp 31-37 O
conteuacutedo do livro proveacutem de cursos ministrados pelo autor na USP em 1963 e 1964 15 Seraacute feito na Conclusatildeo deste trabalho breve comentaacuterio relativo agrave teoria de Grammont (assim como agrave
concepccedilatildeo de Castilho mencionada na proacutexima paacutegina) agrave luz de conceitos da semioacutetica de C S Peirce
20
efeito (T C P) que as segundas (DG B) Exprimem ou ajudam a dar ideia de um
ruiacutedo seco repetido [] (1996 31-37)
No seacuteculo XIX o escritor e teoacuterico da versificaccedilatildeo Antoacutenio Feliciano de
Castilho (1800-1875) jaacute se referia agrave potencialidade expressiva das vogais
Se a vogal A [] expressa a grandeza e a alegria o I [] parece conviraacute com as
ideias de pequenez e de tristeza O E parece incapaz de algum valor onomatoacutepico
ou representativo a natildeo ser para expressar languidez tibieza quietaccedilatildeo e ainda os
gozos serenos [] O O eacute [] som franco rasgado eneacutergico eacute como que uma
explosatildeo da alma [] O U [] sumido e soturno parece convir agrave desanimaccedilatildeo agrave
tristeza profunda aos assuntos lutuosos sepulcro tuacutemulo fuacutenebre funeacutereo etc16
Retornando agrave discussatildeo sobre a arbitrariedade do signo mencione-se a
referecircncia que faz Haroldo de Campos agrave objeccedilatildeo de Jakobson relativamente a tal
princiacutepio da linguiacutestica
Como observa Mattoso Cacircmara17
Jakobson nega a arbitrariedade absoluta do
signo fonoloacutegico sustentando que toda liacutengua que toda liacutengua necessariamente
procede a uma seleccedilatildeo entre um limitado nuacutemero de tipos de sons vocais e suas
combinaccedilotildees inclusive por uma injunccedilatildeo biopsicoloacutegica de que resulta a presenccedila
constante de certos tipos baacutesicos A tese do linguista russo encontra respaldo nas
posiccedilotildees de E Benveniste18
para quem haacute uma relaccedilatildeo de necessidade e
consubstancialidade entre os dois componentes do signo linguiacutestico (significante e
significado) ldquoSe a liacutengua eacute algo diverso de um conglomerado fortuito de noccedilotildees
erraacuteticas e de sons emitidos ao acaso isto se daacute porque haacute uma necessidade
imanente agrave sua estrutura como a toda estruturardquo afirma Benveniste Em todo caso
o que se poderaacute desde logo sustentar de maneira incontrastaacutevel eacute que na poesia
(onde como proclama Jakobson reina o jogo de palavras a paronomaacutesia figura
16 CASTILHO A F de Tratado de metrificaccedilatildeo portuguesa ndash Para em pouco tempo e ateacute sem mestre
se aprenderem a fazer versos de todoas as medidas e composiccedilotildees Lisboa Imprensa Nacional 1851 pp 65-70 17 Referecircncia ao conceituado linguista brasileiro Joaquim Mattoso Cacircmara Juacutenior (1904-1970) ndash que foi
aluno de Jakobson nos Estados Unidos ndash autor de Histoacuteria da linguiacutestica entre outras obras 18 Referecircncia ao linguista estruturalista francecircs Eacutemile Benveniste (1902-1976) conhecido por seus
estudos sobre as liacutenguas indo-europeias e pela expansatildeo do paradigma linguiacutestico estabelecido por
Saussure Em portuguecircs eacute referecircncia a obra Problemas de Linguiacutestica Geral publicada em dois volumes
21
esta entendida num sentido amplo de correlaccedilatildeo de som e sentido) esta
arbitrariedade natildeo existe (1975 143)
Resta apresentar a outra caracteriacutestica essencial do signo na proposiccedilatildeo de
Saussure a ldquolinearidade do significanterdquo
O caraacuteter auditivo do significante linguiacutestico faz com que ele se desenvolva no
tempo Ele representa uma extensatildeo e essa extensatildeo eacute mensuraacutevel numa soacute
dimensatildeo eacute uma linha A escrita ao representar a fala representa essa linearidade
no espaccedilo [] (FIORIN 2002 65)
Roman Jakobson diga-se questionou tambeacutem esse outro postulado baacutesico da
linguiacutestica Saussuriana diz ele em seu estudo ldquoDois aspectos da linguagem e dois tipos
de afasiardquo ldquoPode-se dizer que a concorrecircncia de entidades simultacircneas e a concatenaccedilatildeo
de entidades sucessivas satildeo os dois modos segundo os quais noacutes que falamos
combinamos os constituintes linguiacutesticosrdquo (1973 38)19
Referecircncias que persistem em relaccedilatildeo agrave compreensatildeo e agrave anaacutelise da linguagem
poeacutetica contemporaneamente apesar das relativizaccedilotildees ocasionadas pelas concepccedilotildees
poacutes-estruturalistas20
nas anaacutelises de poesia satildeo exatamente as ideias de Roman
Jakobson21
(1896-1982) (e persistem tambeacutem como se poderaacute ver relativamente agrave
traduccedilatildeo poeacutetica)22
Sobre elas leia-se inicialmente um esclarecimento sinteacutetico sobre
poesia do proacuteprio Jakobson expresso no artigo ldquoAspectos linguiacutesticos da traduccedilatildeordquo
Em poesia as equaccedilotildees verbais satildeo elevadas agrave categoria de princiacutepio construtivo
do texto As categorias sintaacuteticas e morfoloacutegicas os fonemas e seus componentes
19 Em seu trabalho sobre os afaacutesicos Jakobson aponta as duas formas para ele existentes de arranjo dos
signos combinaccedilatildeo e seleccedilatildeo esta postulaccedilatildeo seraacute fundamental para a compreensatildeo da funccedilatildeo poeacutetica da
linguagem (caracterizada pela projeccedilatildeo do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de combinaccedilatildeo como seraacute visto
adiante) 20 Mais adiante seratildeo mencionados por meio de citaccedilotildees alguns aspectos baacutesicos do denominado ldquopoacutes-
estruturalismordquo 21 Cabe que se incluam em nota como menccedilatildeo geral observaccedilotildees de Michael Peters
[] Roman Jakobson eacute uma figura central no desenvolvimento histoacuterico da linguiacutestica estrutural
Ele foi instrumental no estabelecimento do Formalismo Russo ajudando a fundar tanto o Ciacuterculo Linguiacutestico de Moscou quanto a Sociedade para o Estudo da Linguagem Poeacutetica (OPOJAZ) em
Satildeo Petersburgo antes de se mudar para a Checoslovaacutequia em 1920 para fundar o Ciacuterculo
Linguiacutestico de Praga []Opcit 2000 22 Veja-se por exemplo no livro O que eacute poesia (Rio de Janeiro 2009) a referecircncia presente entre poetas
brasileiros que expressam definiccedilotildees de caraacuteter mais teacutecnico ou que adotam referecircncias diretas a
conceitos de ordem linguiacutestica
22
(traccedilos distintivos) ndash em suma todos os constituintes do coacutedigo verbal ndash satildeo
confrontados justapostos colocados em relaccedilatildeo de contiguidade de acordo com o
princiacutepio de similaridade e de contraste e transmitem assim uma significaccedilatildeo
proacutepria A semelhanccedila fonoloacutegica eacute sentida como um parentesco semacircntico O
trocadilho ou para empregar um termo mais erudito e mais preciso a
paronomaacutesia reina na arte poeacuteticardquo (1973 72)
Ressalte-se a afirmaccedilatildeo ldquoA semelhanccedila fonoloacutegica eacute sentida como um
parentesco semacircnticordquo particularmente relevante para indicar a participaccedilatildeo das
relaccedilotildees focircnicas na construccedilatildeo do sentido de um poema entendimento que teremos em
vista na abordagem de certas passagens das traduccedilotildees que satildeo nosso objeto de estudo
Seraacute de interesse prioritaacuterio para este trabalho a formulaccedilatildeo de Jakobson sobre
as ldquofunccedilotildees da linguagemrdquo com base em sistema elaborado pelo linguista e psicoacutelogo
austriacuteaco Karl Buumlhler (1869-1963)23
Este identificou em 1934 a existecircncia de trecircs
dessas funccedilotildees Darstellungsfunktion a funccedilatildeo propriamente comunicativa que informa
sobre o conteuacutedo objetivo factual da realidade extralinguiacutestica Kundgabefunktion
(ldquofunccedilatildeo de exteriorizaccedilatildeordquo ou de ldquoexpressatildeordquo) Appelfunktion (ldquofunccedilatildeo de apelordquo ou
ldquoconativardquo) (Campos 1975 136-137) Para Jakobson seriam seis as funccedilotildees da
linguagem associadas respectivamente a cada um dos elementos que compotildeem o
esquema relativo agrave comunicaccedilatildeo verbal por ele proposto
23 ldquo[Buumlhler] [] participou em 1930 da Conferecircncia Fonoloacutegica Internacional convocada pelo Ciacuterculo de
Praga em 1930 e [] desenvolveu atividades na Universidade de Viena nos anos 30rdquo (Campos 1975
136)
23
Em raacutepida passagem cite-se a apresentaccedilatildeo do primeiro quadro por Diana
Pessoa de Barros
Para Jakobson na esteira dos estudos sobre a informaccedilatildeo haacute na comunicaccedilatildeo um
remetente que envia uma mensagem a um destinataacuterio e essa mensagem para ser
eficaz requer um contexto (ou um referente) a que se refere apreensiacutevel pelo
remetente e pelo destinataacuterio um coacutedigo total ou parcialmente comum a ambos e
um contato isto eacute um canal fiacutesico e uma conexatildeo psicoloacutegica entre o remetente e o
destinataacuterio que os capacitem a entrar e a permanecer em comunicaccedilatildeo (FIORIN
2002 28)
E de modo tambeacutem breve diga-se sobre as funccedilotildees que
1 A Emotiva centrada no remetente funda-se no ldquoeurdquo ou seja na primeira
pessoa do singular sendo-lhe afim a classe gramatical das interjeiccedilotildees uma vez que
ldquovida a suscitar reaccedilotildees de tipo emotivordquo (Campos 1975 137) Sobre esta funccedilatildeo diz
Haroldo de Campos ldquoEacute importante natildeo confundir esta funccedilatildeo com a funccedilatildeo poeacutetica O
Romantismo privilegiando a poesia do EU eacute o grande responsaacutevel por este equiacutevoco
que se perpetua na ideia vulgar que se tem de poesiardquo (1975 138)
2 A Referencial ou Cognitiva eacute aquela fulcrada no referente correspondente agrave
terceira pessoa do singular ldquoA mensagem denota coisas reais ou transmite
conhecimentos de ordem loacutegico-discursiva sobre determinado objeto [] Eacute a funccedilatildeo por
excelecircncia do conviacutevio diaacuteriordquo (CAMPOS 1975 138)
3 A Conativa centrada no destinataacuterio corresponde ao ldquoturdquo a segunda pessoa
do singular a ela se ligam as categorias gramaticais do imperativo e do vocativo ldquoA
mensagem representa uma ordem exortaccedilatildeo ou suacuteplica [] No acircmbito desta mesma
funccedilatildeo se enquadra a funccedilatildeo maacutegica ou encantatoacuteria expressa em foacutermulas optativas
[] como lsquoDeus te guardersquo ou em conjuros []rdquo (ib)
4 A Faacutetica centra-se no contato da comunicaccedilatildeo seu nome proveacutem do grego
phaacutetis (ruiacutedo rumor) As mensagens faacuteticas servem para ldquoestabelecer prolongar ou
interromper a comunicaccedilatildeordquo (p 139) consistindo em expressotildees como ldquoolaacuterdquo ldquoalocircrdquo
ldquoclarordquo ldquocomo vairdquo ldquonatildeo eacuterdquo etc
5 A Metalinguiacutestica centrada no coacutedigo eacute aquela em cujo exerciacutecio a
ldquomensagem se dirige para uma outra mensagem tomada como linguagem-objetordquo []
Os verbetes do dicionaacuterio exprimem tambeacutem esta funccedilatildeordquo (p 140)
24
6 A Poeacutetica eacute aquela funccedilatildeo em que a mensagem se volta sobre si mesma (ib
141) Sobre ela diz o proacuteprio Jakobson (as citaccedilotildees que se seguem ndash na versatildeo ao
portuguecircs dos tradutores jaacute mencionados ndash tornaratildeo o item relativo a esta funccedilatildeo maior
que os demais dada a sua importacircncia para a conceituaccedilatildeo de ldquopoesiardquo)
O pendor (Einstellung) para a MENSAGEM como tal o enfoque da mensagem por
ela proacutepria eis a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem []
A funccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute a uacutenica funccedilatildeo da arte verbal mas tatildeo-somente a funccedilatildeo
dominante determinante ao passo que em todas as outras atividades verbais ela
funciona como um constituinte acessoacuterio subsidiaacuterio (JAKOBSON 1973 127-
128)
[] Qualquer tentativa de reduzir a esfera da funccedilatildeo poeacutetica agrave poesia ou de
confinar a poesia agrave funccedilatildeo poeacutetica seria uma simplificaccedilatildeo excessiva e
enganadora A funccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute a uacutenica funccedilatildeo da arte verbal mas tatildeo
somente a funccedilatildeo dominante ao passo que em todas as outras atividades
verbais ela funciona como um constituinte acessoacuterio subsidiaacuterio (128)
[] qual eacute o caracteriacutestico indispensaacutevel inerente a toda obra poeacutetica Para
responder a esta pergunta devemos recordar os dois modos baacutesicos de arranjo
utilizados no comportamento verbal seleccedilatildeo e combinaccedilatildeo [] A seleccedilatildeo eacute feita
em base de equivalecircncia semelhanccedila e dessemelhanccedila sinoniacutemia e antoniacutemia ao
passo que a combinaccedilatildeo a construccedilatildeo da sequecircncia se baseia na contiguidade
(129)
[] A funccedilatildeo poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre
o eixo de combinaccedilatildeo (130) []
Os versos mnemocircnicos citados por Hopkins [] os modernos jungles de
propaganda e as leis medievais versificadas [] ou finalmente os tratados
cientiacuteficos sacircnscritos em verso [] ndash todos esses textos meacutetricos fazem uso da
funccedilatildeo poeacutetica sem contudo atribuir-lhe o papel coercitivo determinante que ela
tem na poesiardquo (131)
Sobre a funccedilatildeo poeacutetica e a poesia eacute importante ressaltar-se o seguinte
comentaacuterio do linguista que menciona a associaccedilatildeo de funccedilotildees nos diferentes gecircneros
poeacuteticos
25
Conforme dissemos o estudo linguiacutestico da funccedilatildeo poeacutetica deve ultrapassar os
limites da poesia e por outro lado o escrutiacutenio linguiacutestico da poesia natildeo se pode
limitar agrave funccedilatildeo poeacutetica As particularidades dos diversos gecircneros poeacuteticos
implicam uma participaccedilatildeo em ordem hieraacuterquica variaacutevel das outras funccedilotildees
verbais a par da funccedilatildeo poeacutetica dominante A poesia eacutepica centrada na terceira
pessoa potildee intensamente em destaque a funccedilatildeo referencial da linguagem a liacuterica
orientada para a primeira pessoa estaacute intimamente vinculada agrave funccedilatildeo emotiva a
poesia da segunda pessoa estaacute imbuiacuteda de funccedilatildeo conativa e eacute ou suacuteplice ou
exortativa dependendo de a primeira pessoa estar subordinada agrave segunda ou esta agrave
primeira (1973 129)
No caso da eacutepica portanto devido a seu teor narrativo prevaleceria aleacutem da
funccedilatildeo poeacutetica ndash comum aos gecircneros ndash a funccedilatildeo cognitiva mas isto natildeo excluiraacute as
demais funccedilotildees (lembre-se por exemplo de momentos de fala em primeira pessoa de
Odisseu)
Acerca das funccedilotildees da linguagem nos diversos gecircneros poeacuteticos diz Haroldo de
Campos
Na poesia o determinante eacute o exerciacutecio da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem aquela
que se volta sobre o lado sensiacutevel palpaacutevel dos signos linguiacutesticos [] Mas o
poeta usa concorrentemente outras funccedilotildees em caraacuteter acessoacuterio A maneira como
ele hierarquiza as funccedilotildees dentro de sua mensagem decide da natureza desta
Assim na poesia claacutessica caracterizada pela eacutepica a funccedilatildeo cognitiva ou
referencial eacute associada preferentemente agrave poeacutetica produzindo-se uma poesia da 3ordf
pessoa impessoal objetiva descritiva (na epopeacuteia haacute a representaccedilatildeo do objeto em
sua objetividade mesma Hegel) Na poesia romacircntica eacute a funccedilatildeo emotiva a
poesia do eu-liacuterico que ganha a palma sobre as remanescentes associando-se agrave
funccedilatildeo poeacutetica (tambeacutem a funccedilatildeo maacutegica eacute enfatizada pelo poeta romacircntico) Surge
assim uma poesia biograacutefico-emocional exortativa suplicatoacuteria encantatoacuteria uma
poesia do soluccedilo em que rebenta o sentimento pessoal na foacutermula de Musset
lembrada por Antocircnio Cacircndido Mas tanto na poesia claacutessica como na poesia
romacircntica se as funccedilotildees acessoacuterias determinantes do motivo primeiro do poetar
em cada uma dessas escolas natildeo forem por seu turno determinadas pela funccedilatildeo
poeacutetica ou configuradora da mensagem a informaccedilatildeo esteacutetica natildeo se realiza o
poema claacutessico ficaraacute entatildeo mero enunciado prosaico de ideias de descriccedilotildees de
informaccedilotildees documentaacuterias uma retoacuterica do pensamento cognitivo e o poema
26
romacircntico natildeo assumiraacute o estado esteacutetico do poema mas permaneceraacute no grito na
laacutegrima na explosatildeo emotiva na retoacuterica do coraccedilatildeo A fraqueza de boa parte do
Romantismo poeacutetico no Brasil e fora dele estaacute nesse dissiacutedio entre a motivaccedilatildeo
emocional e a capacidade de exerciacutecio da funccedilatildeo propriamente poeacutetica
(diagramadora configuradora) por parte de alguns de seus nomes mais conhecidos
[] A grandeza de um Camotildees de outro lado estaacute na sua capacidade de
equacionar na materialidade dos signos atraveacutes de operaccedilotildees de seleccedilatildeo e
combinaccedilatildeo de palavras o seu ideal classicista e no aporte de novidade que sua
poesia traz nesse sentido em relaccedilatildeo ao repertoacuterio da poesia portuguesa precedente
(1975 147-148)
Campos prossegue numa breve anaacutelise exemplo (entre tantos outros que
poderiam ser aqui incluiacutedos) ilustrativo de possibilidades de leitura ndash a partir da noccedilatildeo
de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem (e conceitos correlatos) ndash que apontam para o exerciacutecio
a ser feito neste trabalho ao se abordar a eacutepica homeacuterica
Camotildees eacute um soberbo ldquodesignerrdquo da linguagem como se poderaacute ver pela anaacutelise
do exemplo seguinte
No mais interno fundo das profundas
Cavernas altas onde o mar se esconde
Laacute donde as ondas saem furibundas
Quando agraves iras do vento o mar responde
Netuno mora e moram as jocundas
Nereidas e outros deuses do mar onde
As aacuteguas campo deixam agraves cidades
Que habitam estas uacutemidas deidades
(Os Lusiacuteadas C VI n VIII)
Pode-se dizer para limitar nosso exame a este ponto fundamental que o efeito
poeacutetico desta descriccedilatildeo do reino marinho estaacute na habilidade com que o autor
estabelece um encadeamento de som e sentido fazendo com a palavra onda (seja
diretamente seja na sua forma latina unda por associaccedilatildeo etimoloacutegica) engaste-se
ou ressoe em outras palavras fundo profundas jocundas onde esconde donde
responde fonemas de unda podem ser vislumbrados ainda redistribuidamente em
ldquouacutemidasrdquo e ldquoNetunordquo aleacutem disto entre Nereidas e o epiacuteteto que lhes daacute Camotildees ndash
ldquouacutemidas deidadesrdquo haacute uma espeacutecie de apelo cruzado pois os fonemas finais da
27
primeira palavra se repetem no comeccedilo da segunda Toda esta oitava eacute percorrida
pela imagem semacircntica da agitaccedilatildeo das ondas atraveacutes de uma sucessatildeo de
projeccedilotildees focircnicas (Ib 148)
O poeta tradutor e semioticista brasileiro Deacutecio Pignatari estabelece uma
relaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo jakobsoniana de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem e o pensamento
do criador da semioacutetica norte-americana contemporacircneo de Saussure o filoacutesofo
cientista e matemaacutetico Charles Sanders Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo eacute inadequada
embora se possa considerar que haja resistecircncia entre os estudiosos da linguiacutestica e da
semioacutetica de relacionarem os dois sistemas de estudo da linguagem (da linguiacutestica de
Saussure dedicada exclusivamente ao signo verbal emerge uma ldquosemiologiardquo mais
geral de reflexatildeo baseada no trabalho de Jakobson emergiria uma ldquosemioacutetica poeacuteticardquo
desenvolvida por A J Greimas e seguidores24
) pois o proacuteprio Jakobson aborda a
semioacutetica peirciana estabelecendo relaccedilotildees com a teorizaccedilatildeo de Saussure em seu
estudo ldquoAgrave procura da essecircncia da linguagemrdquo Citem-se as explicaccedilotildees de Pignatari
(ademais esclarecedoras acerca das proposiccedilotildees de Jakobson) nas quais se estabelece a
referida relaccedilatildeo (no trecho inicial o autor baseia-se no artigo do linguista sobre a
afasia)
Dois satildeo os processos de associaccedilatildeo ou organizaccedilatildeo das coisas por contiguidade
(proximidade) e por similaridade (semelhanccedila) Esses dois processos formam dois
eixos um eacute o eixo de seleccedilatildeo (por similaridade) chamado paradigma ou eixo
paradigmaacutetico o outro eacute o eixo de combinaccedilatildeo (por contiguidade)25
chamado
sintagma ou eixo sintagmaacutetico [] (2005 13)
Descobriu Jakobson que a linguagem apresenta e exerce funccedilatildeo poeacutetica quando o
eixo de similaridade se projeta sobre o eixo de contiguidade Quando o paradigma
se projeta sobre o sintagma Em termos da semioacutetica de Peirce podemos dizer que
a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem se marca pela projeccedilatildeo do iacutecone sobre o siacutembolo ndash
ou seja ndash pela projeccedilatildeo de coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais etc)
sobre o coacutedigo verbal Fazer poesia eacute transformar o siacutembolo (palavra) em iacutecone
24 Veja-se o livro Ensaios de semioacutetica poeacutetica (Satildeo Paulo Cultrix Ed da Univers de S Paulo 1976) Uma breve referecircncia a proposiccedilotildees da semioacutetica greimasiana seraacute feita adiante 25 A respeito de tais conceitos diz Pignatari em Semioacutetica e literatura (referindo-se agrave teoria de Peirce)
ldquoAs sugestotildees associativas satildeo inferecircncias segundo Peirce e as inferecircncias podem ser de dois tipos por
Contiguidade (Contiguity) e por Semelhanccedila (Resemblance) expressotildees cunhadas por David Hume
(1711-76) e que tiveram o mais amplo curso no pensamento moderno como o demonstram os exemplos
da psicologia da gestalt e da linguiacutestica estruturalrdquo (1979 35)
28
(figura) Figura eacute soacute desenho visual Natildeo Os sons de uma tosse e de uma melodia
tambeacutem satildeo figuras sonoras
Em poesia vocecirc observa a projeccedilatildeo de uma analoacutegica sobre a loacutegica da linguagem
a projeccedilatildeo de uma ldquogramaacuteticardquo analoacutegica sobre a gramaacutetica loacutegicardquo (p 17-18)
Para que seja elucidadas as concepccedilotildees de Charles Peirce (que serviratildeo para
referecircncias posteriores de anaacutelise) incluem-se a seguir esquemas e citaccedilotildees que
permitiratildeo do modo mais sinteacutetico possiacutevel uma compreensatildeo ligeira do assunto
Considere-se inicialmente uma das definiccedilotildees de signo propostas pelo ldquopai da
semioacuteticardquo
Qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um
objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto) de modo idecircntico transformando-
se o interpretante por sua vez em signo e assim sucessivamente ad infinitum
(1977 74)26
Veja-se acerca do conceito expresso em tal definiccedilatildeo a representaccedilatildeo do
modelo triaacutedico peirciano27
por meio de esquema incluiacutedo por Pignatari em Semioacutetica amp
literatura
E em seguida a apresentaccedilatildeo que faz Pignatari iniciando-se com outra das
definiccedilotildees de signo propostas por Peirce
26 PEIRCE Charles S Semioacutetica Trad Joseacute Teixeira Coelho Neto Satildeo Paulo Perspectiva 1997 27 Sobre o esquema diz Pignatari ldquoJaacute se tornou bem conhecido o diagrama triangular com que C K
Ogden e I A Richards procuraram traduzir a relaccedilatildeo triaacutedica baacutesica de Peirce relativa ao problema do
significado envolvendo os termos de Signo ou Representame Objeto ou Referente Interpretanterdquo
(1979 25)
29
ldquoSigno ou Representame eacute um Primeiro que estaacute em tal genuiacutena relaccedilatildeo com o
Segundo chamado seu Objeto de forma a ser capaz de determinar que um
Terceiro chamado seu Interpretante assuma a mesma relaccedilatildeo triaacutedica (com o
Objeto) que ele signo manteacutem em relaccedilatildeo ao mesmo objetordquo []
Superando a relaccedilatildeo didaacutetica tipo signifiant signifieacute ndash que causa diga-se as
maiores dificuldades ao desenvolvimento de uma semiologia de extraccedilatildeo
saussuriana ndash Pierce cria um terceiro veacutertice chamado Interpretante que eacute o signo
de um signo ou como tentei definir em outra oportunidade um supersigno cujo
Objeto natildeo eacute o mesmo do signo primeiro pois que engloba natildeo somente Objeto e
Signo como a ele proacuteprio num contiacutenuo jogo de espelhos []
Um dos postulados baacutesicos ndash melhor dizendo ndash uma das descobertas fundamentais
de Peirce eacute a de que o significado de um signo eacute sempre outro signo (um dicionaacuterio
eacute o exemplo que ocorre imediatamente) portanto o significado eacute um processo
significante que se desenvolve por relaccedilotildees triaacutedicas ndash e o Interpretante eacute o signo-
resultado contiacutenuo que resulta desse processo
Acerca da classificaccedilatildeo dos signos segundo a semioacutetica norte-americana
observa Lucia Santaella que ldquoPeirce estabeleceu uma rede de classificaccedilotildees sempre
triaacutediacutecas (isto eacute trecircs a trecircs) dos tipos possiacuteveis de signordquo28
Antes que se prossiga no
entanto com excertos de texto de Santaella referentes ao tema leia-se o sinteacutetico e
esclarecedor escrito de Lucreacutecia DacuteAleacutessio Ferrara
Charles Sanders Peirce salienta trecircs tipos de representaccedilatildeo que satildeo de extrema
importacircncia porque apresentam de modo jaacute bem organizado a classificaccedilatildeo do
signo em iacutecone iacutendice e siacutembolo O iacutecone apresenta-se como uma representaccedilatildeo
que se manteacutem com o objeto ao qual se refere uma relaccedilatildeo de qualidade o iacutendice
se apresenta como uma representaccedilatildeo que manteacutem com o objeto ao qual se refere
uma correspondecircncia de fato o siacutembolo se apresenta como uma representaccedilatildeo que
manteacutem com o objeto ao qual se refere uma relaccedilatildeo imposta (A estrateacutegia os
signos 1981 67)
Seguem-se as colocaccedilotildees de Santaella acerca da tipologia siacutegnica de Peirce
28 SANTAELLA L O que eacute semioacutetica Satildeo Paulo Brasiliense 1983 p 83
30
Tomando como base as relaccedilotildees que se apresentam no signo por exemplo de
acordo com o modo de apreensatildeo do signo em si mesmo ou de acordo com o
modo de apresentaccedilatildeo do objeto imediato ou de acordo com o modo de ser do
objeto dinacircmico etc foram estabelecidas 10 tricotomias isto eacute 10 divisotildees
triaacutedicas do signo de cuja combinatoacuteria resultam 64 classes de signos e a
possibilidade loacutegica de 59049 tipos de signos
[] um exame mais minucioso dessas classificaccedilotildees pode nos habilitar para a
leitura de todo e qualquer processo siacutegnico []
Dentre todas essas tricotomias haacute trecircs as mais gerais agraves quais Peirce dedicou
exploraccedilotildees minuciosas Satildeo as que ficaram mais conhecidas e que tecircm sido mais
divulgadas Tomando-se a relaccedilatildeo do signo consigo mesmo (1ordm) a relaccedilatildeo do signo
com seu objeto dinacircmico (2ordm) e a relaccedilatildeo do signo com seu interpretante (3ordm)
tem-se
[] na relaccedilatildeo do signo consigo mesmo no seu modo de ser aspecto ou aparecircncia
(isto eacute a maneira como aparece) o signo pode ser uma mera qualidade um
existente (sin-signo singular) ou uma lei
Lembremos se algo aparece como pura qualidade este algo eacute primeiro Eacute claro
que uma qualidade natildeo pode aparecer e portanto natildeo pode funcionar como signo
sem estar encarnada em algum objeto Contudo o quali-signo diz respeito tatildeo-soacute e
apenas agrave pura qualidade
[] se o signo aparece como simples qualidade na sua relaccedilatildeo com seu objeto ele
soacute pode ser um iacutecone Isso porque qualidades natildeo representam nada Elas se
apresentam Ora se natildeo representam natildeo podem funcionar como signo Daiacute que o
iacutecone seja sempre um quase-signo algo que se daacute agrave contemplaccedilatildeo []
[] porque natildeo representam efetivamente nada senatildeo formas e sentimentos
(visuais sonoros taacuteteis viscerais) os iacutecones tecircm um alto poder de sugestatildeo []
Sem deixar aqui de lembrar o quanto as formas de criaccedilatildeo na arte e as descobertas
na ciecircncia tecircm a ver com iacutecones examinemos agora as modalidades de hipoiacutecones
31
ou melhor dos signos que representam seus objetos por semelhanccedila Assim uma
imagem eacute um hipoiacutecone porque a qualidade de sua aparecircncia eacute semelhante agrave
qualidade da aparecircncia do objeto que a imagem representa Todas as formas de
desenhos e pinturas figurativas satildeo imagens []
[] o interpretante que o iacutecone estaacute apto a produzir eacute tambeacutem ele uma mera
possibilidade (qualidade ou impressatildeo) ou no maacuteximo no niacutevel do raciociacutenio um
rema isto eacute uma conjectura ou hipoacutetese Daiacute que diante de iacutecones costumamos
dizer ldquoParece uma escadardquo ldquoNatildeo parece uma cachoeirardquo [] e assim por diante
sempre no niacutevel do parecer29
[] Qualquer coisa que se apresente diante de vocecirc como um existente singular
material aqui e agora eacute um sin-signo
Isso em termos amplos e vastos Concretizando poreacutem em termos particulares o
iacutendice como seu proacuteprio nome diz eacute um signo que como tal funciona porque
indica uma outra coisa com a qual ele estaacute atualmente ligado Haacute entre ambos
uma conexatildeo de fato Assim o girassol eacute um iacutendice isto eacute aponta para o lugar do
sol no ceacuteu []
Rastros pegadas resiacuteduos remanecircncias satildeo todos iacutendices de alguma coisa que por
laacute passou deixando suas marcas []
Quanto agraves triacuteades ao niacutevel de terceiridade elas comparecem quando em si mesmo
o signo eacute de lei (legi-signo) Sendo uma lei em relaccedilatildeo ao seu objeto o signo eacute um
siacutembolo Isto porque ele natildeo representa seu objeto em virtude do caraacuteter de sua
qualidade (hipoiacutecone) nem por manter em relaccedilatildeo ao seu objeto uma conexatildeo de
fato (iacutendice) mas extrai seu poder de representaccedilatildeo porque eacute portador de uma lei
que por convenccedilatildeo ou pacto coletivo determina que aquele signo represente seu
objeto []
[Os siacutembolos satildeo] signos triaacutedicos genuiacutenos pois produziratildeo como interpretante
um outro tipo geral ou interpretante em si que para ser interpretado exigiraacute um
outro signo e assim ad infinitum Siacutembolos crescem e se disseminam mas eles
trazem embutidos em si caracteres icocircnicos e indiciais30
(1983 83-94)
29 Haacute algo importante a se observar ligado agraves conceituaccedilotildees apresentadas por vezes as anaacutelises de fragmentos da eacutepica homeacuterica realizadas neste trabalho enfrentaratildeo o limite da incomensurabilidade da
inviabilidade de avaliaccedilatildeo objetiva exatamente porque lidando-se com o plano esteacutetico ndash no acircmbito
portanto da iconicidade ndash muito do que se poderaacute dizer a respeito do objeto estudado seraacute apenas
impressatildeo percepccedilatildeo diante do sugerido 30 Estas observaccedilotildees finais do trecho satildeo especialmente relevantes para este trabalho a oacuteptica da
semioacutetica peirceana prevecirc a existecircncia ldquomaterialrdquo do signo que ainda que verbal convencionado traz em
32
Mencionem-se as dez classes de signo31
formuladas por Peirce assim
relacionadas por Santaella em A teoria geral dos signos (2000) com base em C
Hardwick32
I Quali-signo icocircnico remaacutetico Por exemplo um sentimento de
vermelhidatildeo
II Sin-signo icocircnico remaacutetico Um diagrama individual
III Sin-signo indicativo remaacutetico Um grito espontacircneo
IV Sin-signo indicativo dicente Um catavento
V Legi-signo icocircnico remaacutetico Um diagrama abstraindo-se sua
individualidade
VI Legi-signo indicativo remaacutetico Um pronome demonstrativo
VII Legi-signo indicativo dicente Um pregatildeo de rua
VIII Legi-signo simboacutelico remaacutetico Um substantivo comum
IX Legi-signo simboacutelico dicente Uma proposiccedilatildeo
X Legi-signo simboacutelico argumental Um soligismo
Eacute possiacutevel fazer-se tambeacutem uma relaccedilatildeo aparentemente imprevista entre
funccedilatildeo poeacutetica ldquoiconicidade verbalrdquo e o pensamento de um ldquooutro Saussurerdquo aquele
que se dedicou intensamente a identificar principalmente em versos latinos
ldquosaturninosrdquo a presenccedila de anagramas descobertos de certo modo como uma
determinaccedilatildeo interna ao signo arbitraacuterio arranjo simultacircneo natildeo-linear de fonemas o
pesquisador e anotador incansaacutevel dos cadernos deixados de lado ateacute a iniciativa de seu
disciacutepulo Jean Starobinski de apresentaacute-los e publicaacute-los O conceito que emerge dessas
anotaccedilotildees permite uma visatildeo da poeticidade ou da linguagem poeacutetica por um caminho
proacuteprio que pode ser considerado anaacutelogo e complementar agraves duas visotildees jaacute
relacionadas
Jakobson assim se refere ao trabalho de Saussure em entrevista concedida em
1966 ldquoquando indagado sobre a unidade da linguiacutestica e da poeacuteticardquo
si a presenccedila icocircnica ou indicial Com base nesta concepccedilatildeo podem ser feitas anaacutelises identificadoras da
iconicidade e da indicialidade manifestas nos textos poeacuteticos estudados 31 A identificaccedilatildeo das classes serviraacute de subsiacutedio para algum apontamento integrante deste estudo 32 HARDWICK C Semiotics and significs Bloomington Indiana University Press 1977 p 161
33
Uma tal unidade pode jaacute pode ser extraiacuteda dos ensinamentos de Saussure Veja os
seus ldquoAnnagrammesrdquo Acabo justamente de examinar os seus manuscritos em
Genebra graccedilas a Starobinski Trata-se sua obra mais genial que chegou a assustar
ateacute mesmo seus disciacutepulos Daiacute a tentativa destes uacuteltimos de manter essa parte da
obra saussuriana em segredo tanto tempo quanto possiacutevel Saussure todavia em
carta a Meillet dizia considerar esse trabalho como sendo sua obra-prima
(CAMPOS H 1976 106-107)33
Sobre o propoacutesito de Saussure diz Haroldo de Campos
O anagrama propriamente dito noacutes o sabemos lida com as letras os sinais
graacuteficos os diacutegitos do alfabeto foneacutetico [] Assim EVA eacute anagrama de AVE
ROMA de AMOR e reciprocamente
Saussure poreacutem interessou-se pelo anagrama no plano exclusivamente dos
fonemas pelo anagrama enquanto ldquofigura focircnicardquo como diria Jakobson
constituiacutedo pela repeticcedilatildeo de certos sons cuja combinaccedilatildeo imitaria uma dada
palavra []
As observaccedilotildees de Saussure nasceram do estudo do verso saturnino latino
caracterizado pela aliteraccedilatildeo Ao cabo do exame que empreendeu a praacutetica
aliterativa pareceu-lhe neste verso a manifestaccedilatildeo particular e menos significativa
de determinadas leis focircnicas cujo fulcro estaria justamente no anagrama e na
afonia Assim no exemplo
Taurasia Cisauna samnio cepit
Saussure reconhece o nome de Scipio (Cipiatildeo) convocando para esta reconstruccedilatildeo
fonoloacutegica as siacutelabas Ci (de Cisauna) pi (de cepit) e io (de Samnio) aleacutem de
vislumbrar uma outra repeticcedilatildeo quase-perfeita do mesmo nome-tema em
fonemas de Samnio cepit (a sibilante inicial e as vogais finais da primeira palavra
os quatro primeiros fonemas da segunda) [] (A operaccedilatildeo do texto 1976 107)
O ponto nodal das reflexotildees de Saussure sobre os fenocircmenos anagramaacuteticos estaacute
justamente naquilo em que elas tocam a questatildeo da lienaridade da liacutengua []
Como eacute sabido um dos postulados fundamentais da linguiacutestica saussuriana eacute o da
linearidade do significante do signo linguiacutestico [] Jakobson contestou a validade
33 CAMPOS H de A operaccedilatildeo do texto Satildeo Paulo Perspectiva 1976
34
desta assertiva invocando para infirmaacute-la o caraacuteter natildeo-linear mas simultacircneo
dos traccedilos distintivos que constituem o fonema (Ib 110)
Repeticcedilatildeo aliada agrave simultaneidade talvez seja esta (ressalte-se como referencial
proposto) a resposta mais evidente agrave necessidade de se identificar uma condiccedilatildeo de
leitura dada pela reincidecircncia que permita a identificaccedilatildeo do que caracterizaria ateacute
onde a generalizaccedilatildeo pudesse propiciar a linguagem poeacutetica Neste sentido um fator
miacutenimo ndash e muacuteltiplo ndash comum (formado pelos dois fatores associados ou seja pela
possibilidade de se ldquolerrdquo ou perceber uma unidade por meio de elementos que se
juntam pela repeticcedilatildeo) serviraacute de base a uma aproximaccedilatildeo dos objetos escolhidos para
este trabalho
Retornando ao empenho do pesquisador genebrino citem-se comentaacuterios
relevantes de Jakobson sobre ele no artigo ldquoA primeira carta de Ferdinand de Saussure
a A Meillet sobre os Anagramasrdquo (em traduccedilatildeo de Joatildeo Alexandre Barbosa)
Eacute muito surpreendente que os noventa e nove cadernos manuscritos de Saussure
consagrados agrave ldquopoeacutetica fonizanterdquo e em particular ao ldquoprinciacutepio do anagramardquo
tenham podido permanecer ocultados aos leitores por mais de meio seacuteculo ateacute que
Jean Starobinski tivera a feliz ideia de publicar vaacuterias amostras cuidadosamente
escolhidas e comentadas (1990 9)34
[]
A anaacutelise linguiacutestica dos versos latinos gregos veacutedicos e germacircnicos esboccedilada
por Saussure eacute sem nenhuma duacutevida salutar natildeo somente para a poeacutetica mas
tambeacutem segundo a expressatildeo do autor ldquopara a proacutepria linguiacutesticardquo ldquoA genialidade
da intuiccedilatildeordquo do pesquisador potildee agrave luz a natureza essencial e eacute preciso acrescentar
universalmente polifocircnica e polissecircmica da linguagem poeacutetica e desafia como
Meillet bem observou a concepccedilatildeo corrente ldquode uma arte racionalistardquo em outras
palavras a ideia oca e importuna de uma poesia infalivelmente racional (p 12)
Talvez a atitude de disciacutepulos do linguista de ocultarem seu trabalho sobre
anagramas natildeo seja surpreendente o proacuteprio Saussure manifestava duacutevidas acerca da
pertinecircncia de sua pesquisa e da proacutepria existecircncia real de seu objeto de estudo como
34 JAKOBSON Roman Poeacutetica em accedilatildeo Seleccedilatildeo prefaacutecio e org de Joatildeo Alexandre Barbosa Satildeo
Paulo Perspectiva Ed da Univers de S Paulo 1990
35
revela a carta referida no tiacutetulo do artigo de Jakobson a primeira das por ele enviadas ao
linguista francecircs Paul Jules Antoine Meillet (1866-1936)
Poderia o senhor por amizade fazer-me o favor de ler as notas sobre o annagrame
dans les poegravemes homeacuteriques que reuni entre outros estudos no decorrer das
pesquisas sobre o verso saturnino e a respeito dos quais eu o consulto
confidencialmente porque eacute quase impossiacutevel agravequele que teve a ideia saber se eacute
viacutetima de uma ilusatildeo ou se alguma coisa de verdadeiro estaacute na base de sua ideia
ou se a verdade existe apenas parcialmente (1990 4)
A duacutevida de Saussure quanto agrave existecircncia dos anagramas que distinguia eacute para
este toacutepico do presente estudo de particular importacircncia primeiro porque reflete a
questatildeo da existecircncia de caracteriacutesticas inerentes agrave linguagem poeacutetica segundo porque
evidencia os limites incertos entre o que seria de fato integrante de um texto e o que
seria originado pela proacutepria leitura terceiro porque a questatildeo da ldquoveracidaderdquo das
descobertas esbarra no questionamento da intencionalidade do produtor do texto assim
como da do leitor intencionalidade esta que poderaacute depender da postura teoacuterica dos
objetivos e do repertoacuterio de quem exerce a leitura Estes aspectos seratildeo aqui discutidos
com base na contraposiccedilatildeo entre as oacutepticas estruturalista e poacutes-estruturalista
desconstrucionista35
(Neste ponto da exposiccedilatildeo cabe referir-me a um texto meu que acredito poderaacute
cumprir um papel de informaccedilatildeo (ou de expressatildeo) adicional ao que tem sido exposto36
e por isso encontra-se anexo a este trabalho Trata-se de um texto ficcional sobre o
Saussure dos anagramas (e sobre os anagramas de Saussure) ilustrativo do trabalho do
linguista e de seu contexto (e auto-referido pela inserccedilatildeo de anagramas desvendaacuteveis
conscientes ou inconscientes para o autor) o conto ldquoAo som de duas insocircniasrdquo que
apresenta uma imaginada situaccedilatildeo referente agrave derradeira tentativa do pesquisador em
35 Os focos teoacutericos escolhidos para discussatildeo integram possiacuteveis categorias em que se podem agrupar as
teorias sobre traduccedilatildeo Na classificaccedilatildeo de Anthony Pym (2011) ndash que seraacute abordada em outro toacutepico ndash
teorias advindas do estruturalismo baseado em Saussure como as de Catford e Nida (que creem na possibilidade de ldquotransporterdquo dos significados de uma liacutengua a outra e de equivalecircncia de sentido entre
palavras de liacutenguas diversas) satildeo enquadradas na categoria de ldquoTeorias da equivalecircnciardquo enquanto que a
teorizaccedilatildeo estruturalista de Jakobson integra a categoria ldquoTeorias descritivistasrdquo o desconstrucionismo
por sua vez pertence agrave categoria de ldquoteorias indeterministasrdquo 36 O conto ldquoAo som de duas insocircniasrdquo estaacute publicado na revista eletrocircnica Zunaacutei (wwwrevistazunaicom)
consultado em 24112011
36
obter confirmaccedilatildeo quanto agrave pertinecircncia de sua pesquisa suscitando reflexotildees sobre o
existente e o imaginado desejaacuteveis aos objetivos gerais deste estudo)
Mas retornemos agrave discussatildeo sobre linguagem poeacutetica por meio de postulaccedilotildees a
serem consideradas complementarmente Entre as inuacutemeras reflexotildees baseadas nas
proposiccedilotildees de ordem estrutural sobre poesia ndash cuja amplitude e diversidade
ultrapassariam em muito os limites deste estudo ndash escolho algumas que particularmente
satildeo de interesse por adicionarem alguns aspectos apontados sobre a especificidade da
linguagem poeacutetica visando agrave disponibilizaccedilatildeo de referecircncias internas ao trabalho
Apresentemos inicialmente neste toacutepico complementar a visatildeo expressa em
hipoacutetese do linguista Jean Cohen37
sobre a caracterizaccedilatildeo da poesia
[] O fato inicial em que se basearaacute nossa anaacutelise eacute que o poeta natildeo fala como
todo mundo Sua linguagem eacute anormal e tal anormalidade confere-lhe um estilo A
poeacutetica eacute a ciecircncia do estilo poeacutetico (1978 16)
admitimos pelo menos a tiacutetulo de hipoacutetese de trabalho a existecircncia na linguagem
de todos os poetas de uma invariante que permanece atraveacutes das variaccedilotildees
individuais ou seja uma maneira idecircntica de desviar da norma uma regra
imanente ao proacuteprio desvio (ib)
O verso natildeo eacute simplesmente diferente da prosa Opotildee-se a ela natildeo eacute natildeo-prosa
mas antiprosa [] (p 80)
Como a prosa a poesia compotildee um discurso isto eacute alinha seacuteries de termos
foneticamente diferentes Todavia na linha das diferenccedilas semacircnticas o verso
adapta toda uma seacuterie de semelhanccedilas focircnicas eacute como tal que ele eacute verso (p 81)
[] temos o direito de concluir que a redundacircncia eacute um processo que caracteriza
como tal a linguagem poeacutetica (p 121)
[] A diferenccedila entre prosa e poesia eacute de natureza linguiacutestica38
vale dizer formal
Natildeo se acha nem na substacircncia sonora nem na substacircncia ideoloacutegica mas no tipo
particular de relaccedilotildees que o poema institui entre o significante e o significado de
um lado e os significados entre si de outro
37 Os excertos de textos do autor satildeo colhidos de Estrutura da linguagem poeacutetica (Struture du langage poeacutetique) publicado originalmente em 1966 e de A plenitude da linguagem ndash teoria da poeticidade (Le
haut langage ndash theorie de la poeticite) publicado originalmente em 1979 38 Explicitamente (de modo anaacutelogo agraves demais procuras e definiccedilotildees estruturalistas) o autor atribui
caracteriacutesticas e diferenccedilas da poesia agrave proacutepria linguagem a contraposiccedilatildeo desta oacuteptica com a concepccedilatildeo
poacutes-estruturalista (que atribui agrave leitura o papel preponderante na identificaccedilatildeo dos ldquogecircnerosrdquo) seraacute
novamente discutida adiante
37
[] Esse tipo particular de relaccedilotildees caracteriza-se pela sua negatividade jaacute que
cada um dos processos ou ldquofigurasrdquo que constituem a linguagem poeacutetica em sua
especificidade eacute uma maneira diferente segundo os niacuteveis de violar o coacutedigo da
linguagem normal39
(1978 161)
[] A funccedilatildeo da prosa eacute denotativa a funccedilatildeo da poesia eacute conotativa A teoria
conotativa da linguagem poeacutetica natildeo eacute nova [] Valeacutery jaacute distinguia ldquodois efeitos
de expressatildeo pela linguagem transmitir um fato ndash produzir uma emoccedilatildeo A poesia
eacute um compromisso ou certa proporccedilatildeo destas duas funccedilotildeesrdquo (p 165)
Em A plenitude da linguagem Cohen comeccedila por afirmar a existecircncia da poesia
como objeto de estudo de uma ciecircncia e como tal deveraacute apresentar invariantes que a
definam (conforme jaacute anunciara em sua obra anterior)
A poesia eacute uma segunda potecircncia da linguagem um poder de magia e de
encantamento cujos segredos a poeacutetica tem por objetivo descobrir []
O primeiro postulado da presente pesquisa eacute o postulado da existecircncia de seu
objeto Se a palavra ldquopoesiardquo tem um sentido [] eacute necessaacuterio que em todos os
objetos designados por esta palavra exista alguma coisa de idecircntico uma ou
algumas invariantes subjacentes que transcendam a variedade infinita dos textos
individuais [] Pode-se dar um nome a essa variacircncia Platatildeo dizia que o belo eacute
ldquoaquilo por que satildeo belas todas as coisas belasrdquo [Hiacutepias maior] Definiccedilatildeo que soacute eacute
tautoloacutegica na aparecircncia pois postulando uma essecircncia comum a todos os objetos
belos faz escapar a beleza ao relativismo e fornece um objeto especiacutefico agrave esteacutetica
como ciecircncia [] (1987 7)
O autor prossegue propondo (em continuidade ao que propusera em seu estudo
anteriormente publicado) uma anaacutelise que em vez de considerar a poesia como algo
mais do que a prosa a considere um ldquoanticoacutedigordquo (de passagem critica a teoria de
Jakobson e a teoria dos anagramas de Saussure40
)
39 Embora o autor utilize uma terminologia em parte diferenciada relativa a aspectos definidos ao longo
de seu amplo estudo Estrutura da linguagem poeacutetica pode-se compreender esta siacutentese por seu sentido
geral 40 Sobre a primeira diz Cohen ldquoo princiacutepio de lsquoprojeccedilatildeo do eixo das equivalecircncias no eixo das
combinaccedilotildees lsquogeneraliza aos trecircs niacuteveis da linguagem as recorrecircncias formais que a versificaccedilatildeo reserva
em exclusivo ao niacutevel sonoro O que podemos chamar sentido natildeo eacute em princiacutepio afetado pela adiccedilatildeo
das regras de equivalecircncia e permanece parafraseaacutevel em prosardquo [O autor parece desconsiderar que
Jakobson prevecirc uma associaccedilatildeo entre som e sentido (relativo ao plano semacircntico) que comporia como se
pode deduzir um ldquosentidordquo mais amplo integrado] Sobre a segunda afirma ldquoA perspectiva
38
O conjunto das teorias poeacuteticas conhecidas ateacute aqui assenta num postulado comum
[] convergem para aceitar como traccedilo pertinente da diferenccedila poesianatildeo poesia
(ou prosa) um caraacuteter propriamente quantitativo A poesia natildeo eacute coisa diferente da
prosa ela eacute mais [] (p 10)
Ao inveacutes das teorias precedentes [a anaacutelise proposta] constitui a linguagem poeacutetica
natildeo como hipercoacutedigo mas como anticoacutedigo [] (p 14)41
Para destacar uma proposiccedilatildeo que particularmente interessaraacute a este estudo
mencione-se que no texto ldquoPoesia e redundacircnciardquo integrante da obra O discurso da
poesia42
Cohen reafirma com novo alcance o conceito expresso em frase jaacute aqui
transcrita
A redundacircncia eacute a lei constitutiva do discurso poeacutetico (1982 17)
No livro mencionado acrescente-se o autor ndash que sustenta que a ldquocoerecircncia [nos
poemas] eacute obtida no niacutevel da sinoniacutemia pateacuteticardquo distingue a existecircncia em poesia de
trecircs espeacutecies de redundacircncia do signo (repeticcedilatildeo de palavra a estrofe) do significante
(total ndash homoniacutemia ou parcial ndash rimas etc) e do significado (total ndash sinoniacutemia ou
parcial ndash pleonasmo) (pp 54-57)
Passemos a apresentar aspectos da proposiccedilatildeo do linguista Samuel R Levin por
meio da citaccedilatildeo de postulaccedilotildees suas
Vaacuterias satildeo as teacutecnicas empregadas em criacutetica literaacuteria mas um dos resultados a que
todas chegam parece ser o de evidenciar que em oposiccedilatildeo agrave prosa a poesia se
distingue por uma singular unidade de estrutura []
A anaacutelise revela certas estruturas que satildeo peculiares agrave linguagem da poesia [] A
tais estruturas chamamos ACOPLAMENTOS (couplings) [] o conceito de
acoplamento alcanccedila explicar uma experiecircncia generalizada a saber a de que a
contemporacircnea herdada da teoria dos anagramas de Saussure [] natildeo vecirc na poesia mais que um traccedilo
suplementar Se num texto em que se trata de Cipiatildeo se deve (re)constituir o nome lsquoCipiatildeorsquo disperso na
cadeia sintagmaacutetica teremos aiacute um signo adicional que faz do texto [] qualquer coisa lsquomaisrsquordquo (1979 12-13) 41 As citaccedilotildees servem para exemplificar o esforccedilo na concepccedilatildeo estruturalista de identificaccedilatildeo de
caracteriacutesticas intriacutensecas agrave linguagem poeacutetica e em primeira e uacuteltima anaacutelise a afirmaccedilatildeo da existecircncia
da poesia 42 COHEN Jean ldquoPoesia e redundacircnciardquo In O discurso da poesia Coimbra [Poeacutetique 28] Almedina
1982
39
poesia tende a permanecer na memoacuteria do leitor Possui ela uma qualidade
duradoura [] (1975 13-14)
Um poema combina no eixo sintagmaacutetico elementos que na base de suas
equivalecircncias naturais constituem classes ou paradigmas de equivalecircncia []
Ademais a exploraccedilatildeo dessas equivalecircncias que podem derivar de traccedilos focircnicos
eou semacircnticos natildeo eacute fortuita mas processa-se sistematicamente num poema Tal
exploraccedilatildeo sistemaacutetica assume a forma de colocaccedilatildeo de elementos linguiacutesticos
naturalmente equivalentes em posiccedilotildees equivalentes ou para dizecirc-lo de outro
modo de uso de posiccedilotildees equivalentes como engastes para elementos focircnicos eou
semacircnticos equivalentes (pp 51-52)
Neste ponto da apresentaccedilatildeo de uma questatildeo primeira para os objetivos de nosso
estudo cabe observar a possibilidade (simplificadora) de identificaccedilatildeo de um fator
comum agraves principais teorias mencionadas seja pela associaccedilatildeo de signos por
semelhanccedila seja pela detecccedilatildeo de anagramas subjacentes conforme regras de reiteraccedilatildeo
seja pela visatildeo de unidade a partir de redundacircncias isto eacute pela identificaccedilatildeo de
elementos em posiccedilotildees equivalentes haacute inerentemente agraves configuraccedilotildees vislumbradas
a ocorrecircncia de repeticcedilatildeo De modos diversos e em diferentes planos da linguagem a
reincidecircncia de elementos permite que se perceba a repeticcedilatildeo ainda que esta seja
aproximativa isto eacute guarde algum niacutevel de variaccedilatildeo (que natildeo impeccedila o seu
reconhecimento) e dependa de certo grau interpretativo Em um de seus textos
referenciais sobre poesia do qual transcrevemos a seguir alguns excertos Jakobson
afirma a importacircncia da repeticcedilatildeo nos versos antes de expressar ndash com base na lapidar e
famosa frase de Paul Valeacutery (Le poegraveme mdash cette hesitation prolongeacutee entre le son et le
sens)43
ndash sua visatildeo relativa agraves ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo
A poesia eacute um facto inelutaacutevel Dizem os antropoacutelogos que natildeo haacute um soacute grupo
eacutetnico desprovido de poesia mesmo na sociedades denominadas primitivas
Trata-se pois dum fenocircmeno universal exactamente como a linguagem em certos
grupos eacutetnicos apenas existe a par da linguagem quotidiana a linguagem poeacutetica
desconhecem-se poreacutem sociedades em que aleacutem da linguagem corrente se
cultive exclusivamente a prosa artiacutestica [] Note-se por outro lado que em certas
43 VALEacuteRY Paul Varieacuteteacute II Œuvres II (1941) Paris Gallimard col Bibliothegraveque de la Pleiade 1960
p 636
40
sociedades soacute existe poesia sob a forma de poesia cantada eacute o sincretismo
primitivo da palavra poeacutetica e da muacutesica Mais em certas tribos que natildeo possuem
muacutesica instrumental opotildeem-se o conjunto poesia-muacutesica dum lado e a linguagem
corrente do outro Nas tribos que possuem muacutesica vocal e muacutesica instrumental
observa-se por via de regra uma estreita ligaccedilatildeo entre a muacutesica instrumental e a
danccedila Logo dois sincretismos muacutesica instrumental-danccedila e muacutesica vocal-poesia
[] Como se sabe a palavra poesia que eacute de origem grega prende-se a um verbo
que significa criar e na verdade a poesia natildeo sendo o uacutenico aspecto criador eacute o
domiacutenio mais criador da linguagem[] versus quer dizer ldquoretorno um discurso
que comporta regressos ndash e penso ser este um fenocircmeno fundamental [] no verso
a repeticcedilatildeo desempenha um papel de que estamos conscientes Projeta-se na
linguagem poeacutetica o princiacutepio da equivalecircncia na sequecircncia as siacutelabas Os acentos
tornam-se unidades equivalentes Donde vem a importacircncia da repeticcedilatildeo Cumpre
natildeo esquecer que as frases satildeo feitas de palavras e grupos de palavras e se por
assim dizer ldquovivemos a repeticcedilatildeo das silabas dos acentos das entoaccedilotildees as
palavras que se correspondem pela sua posiccedilatildeo avaliamo-las subconscientemente
do ponto de vista de sua equivalecircncia []
A questatildeo fundamental reside em poesia nas relaccedilotildees entre som e sentido []
Fala-se de estruturas ritmicas fala-se de aliteraccedilatildeo ou de rima satildeo sem duacutevida
realidades mas natildeo se trata soacute de muacutesica estaacute sempre em jogo a relaccedilatildeo entre som
e sentido [] (JAKOBSON R ldquoO que fazem os poetas com as palavrasrdquo revista
Coloacutequio Letras nordm 12 Marccedilo de 1973 5-9)
Uma das consequecircncias previsiacuteveis da repeticcedilatildeo eacute a criaccedilatildeo de expectativas que
podem incluir a proacutepria expectativa de coerecircncia ou unidade capaz de influir na
apreensatildeo do objeto de linguagem favorecendo por exemplo a memorizaccedilatildeo Mas a
expectativa de repeticcedilatildeo eacute a prerrogativa do ritmo como diz Dubois
Ritmo e expectativa estatildeo sempre ligados Eacute a repeticcedilatildeo regular isoacutecrona de um
evento que estabelecendo forte correlaccedilatildeo leva agrave percepccedilatildeo do ritmo cria a
previsibilidade e provoca a expectativa [] a experiecircncia demonstra que as
condiccedilotildees de percepccedilatildeo do ritmo correspondem a regras flutuantes [] O
isocronismo antes de tudo pode ser muito aproximativo satildeo necessaacuterios
intervalos [] que variem do simples ao duplo para destruir a percepccedilatildeo do ritmo
[] (DUBOIS Jacques et al Retoacuterica da poesia 1980 134)rlm
41
Assim sendo natildeo seraacute despropositada a opiniatildeo ateacute certo ponto generalizada
entre poetas e estudiosos de arte poeacutetica de que a poesia envolve sempre ritmo tambeacutem
natildeo o seraacute a visatildeo de alguns de que a poesia nasceria da percepccedilatildeo dele em diferentes
niacuteveis em que se possa denominar ritmo a associaccedilatildeo de elementos reincidentes44
Para prosseguir com a menccedilatildeo de esforccedilos para a caracterizaccedilatildeo da linguagem
poeacutetica cite-se no acircmbito sinteacutetico de nosso estudo que o contato com referecircncias
importantes natildeo tocadas aqui podem ser obtidas por meio do trabalho do teoacuterico
brasileiro da traduccedilatildeo Maacuterio Laranjeira45
Apoacutes apresentar em seu estudo proposiccedilotildees
estruturalistas e gerativistas46
o referido autor observa o que considera serem limitaccedilotildees
proacuteprias de tais ldquogramaacuteticasrdquo (cujos recursos natildeo bastariam para caracterizar o texto
como poema) propotildee logo a utilizaccedilatildeo do conceito de ldquoautotelicidaderdquo (funccedilatildeo interior
ao texto este se portador dessa funccedilatildeo natildeo teria objetivos externos a si mesmo) com
base em J M Adam (Pour lire le poegraveme) Apoacutes considerar que a contribuiccedilatildeo da
linguiacutestica eacute ldquoincontestavelmente preciosa e insubstituiacutevelrdquo afirma ser ela ldquonecessaacuteria
mas natildeo suficienterdquo Para ele a ldquoPoeacutetica transcende os estritos limites da linguiacutesticardquo e
para ldquocobrir pelo menos parcialmente essa lacunardquo opta por lanccedilar matildeo
principalmente da semanaacutelise desenvolvida pela filoacutesofa semioticista e criacutetica buacutelgaro-
francesa Julia Kristeva (1941) Apoiando-se em conceitos como o de significacircncia
(ldquoComo o poema sempre nos diz uma coisa e significa outra a sua marca identificadora
estaacute nessa maneira obliacutequa de gerar o seu proacuteprio sentidordquo ldquoa essa lsquounidade formal e
semacircntica que conteacutem todos os sinais de obliquidadersquo Riffaterre chama significacircnciardquo)
Laranjeira encaminha sua importante contribuiccedilatildeo para o entendimento da traduccedilatildeo
poeacutetica como sendo uma tarefa que deve considerar a ldquounidade de significacircnciardquo ldquoa
unidade de significacircncia eacute o texto inteirordquo ldquo[] se eacute o poema todo que constitui a
unidade de significacircncia tambeacutem seraacute o poema todo a unidade da traduccedilatildeo poeacuteticardquo
Este ponto de vista diga-se de passagem relaciona-se com a conclusatildeo desde cedo
manifesta por Haroldo de Campos com base no conceito de informaccedilatildeo esteacutetica de
44 Para o poeta e tradutor brasileiro Guilherme de Almeida ldquoDo paralelismo da ideia com a expressatildeo ndash
brotadas a um mesmo tempo de um mesmo ritmo ndash vem esse misteacuterio do verso puro Ideia expressatildeo e
ritmo satildeo necessariamente inseparaacuteveisrdquo Almeida Guilherme de Ritmo elemento de expressatildeo (tese de
concurso) Satildeo Paulo 1926 45 LARANJEIRA Maacuterio Poeacutetica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Edusp Fapesp 2003 46 Natildeo consideradas neste trabalho devido ao recorte escolhido tendo-se em conta os propoacutesitos e
encaminhamento das proposiccedilotildees que o integraratildeo (ldquoGerativismo teoria linguiacutestica desenvolvida por
Noam Chomsky (1928-) desde 1957 que representa a capacidade linguiacutestica humana por meio de um
sistema formalizado de regras de aplicaccedilatildeo mecacircnica (gramaacutetica gerativa) baseadas em princiacutepios de
caraacuteter universalrdquo Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001)
42
Max Bense Mas natildeo se deve ainda iniciar a discussatildeo relativa agrave traduccedilatildeo poeacutetica
propriamente dita reservada para outro capiacutetulo deste trabalho Comente-se no entanto
em relaccedilatildeo agraves consideraccedilotildees de Laranjeira que embora sejam relevantes as referidas
fundamentaccedilotildees sobre as quais constroacutei o proacuteprio pensamento natildeo nos deteremos nelas
por considerarmos que as postulaccedilotildees aqui adotadas como suporte agrave discussatildeo sejam
suficientes e as mais adequadas aos objetivos imediatos relativos agrave afirmaccedilatildeo da
existecircncia da linguagem poeacutetica (e portanto da proacutepria poesia) para contraposiccedilatildeo agrave
visatildeo desconstrucionista que abordaremos adiante assim como aos objetivos gerais de
apreciaccedilatildeo das traduccedilotildees da eacutepica homeacuterica como paracircmetros de diferentes condutas de
recriaccedilatildeo textual
Resta-nos ainda incluir referecircncia ao jaacute mencionado instrumental propiciado
pela semioacutetica poeacutetica desenvolvida por Greimas e colaboradores Para tanto dadas as
delimitaccedilotildees deste estudo contarei com elementos de percuciente artigo de J L Fiorin
(2003)47
que traz proposiccedilatildeo para superar o que ele considera ser insuficiente na
semioacutetica greimasiana para a anaacutelise de textos poeacuteticos seu artigo que eacute esclarecedor
sobre os proacuteprios conceitos e propoacutesitos dessa semioacutetica interessa-nos pela abordagem
analiacutetica apresentada Devido agrave siacutentese que nos propicia seraacute uma oportunidade para se
elucidar um modo de ver questotildees baacutesicas da linguagem poeacutetica e por isso ocasionaraacute
alguma breve reflexatildeo de minha parte Um parecircntese inicial a anaacutelise realizada penso
parte de um pressuposto como as demais possibilidades que temos visto de que o texto
apresenta caracteriacutesticas que o distinguem em relaccedilatildeo a outro que a ele se contrapotildee
sendo um ldquotexto com funccedilatildeo esteacuteticardquo (caso da poesia) seu oposto seraacute um ldquotexto com
funccedilatildeo utilitaacuteriardquo O que torna distinto o texto poeacutetico eacute o objeto de partida de toda
anaacutelise mesmo quando as caracteriacutesticas que o distinguem satildeo atribuiacutedas agrave leitura e natildeo
agrave dimensatildeo intratextual (como se buscaraacute discutir adiante) Mas uma questatildeo como essa
natildeo faria parte de uma abordagem como a do referido texto cujo pressuposto da
existecircncia de caracteriacutesticas distintivas da poesia satildeo a base de sua execuccedilatildeo
Na parte inicial do artigo conceituam-se os dois tipos de texto mencionados
47 FIORIN Joseacute Luiz ldquoTrecircs questotildees sobre a relaccedilatildeo entre expressatildeo e conteuacutedordquo In Revista Itineraacuterios
no especial pp 77-89 Araraquara Unesp Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios 2003
43
Do ponto de vista da relaccedilatildeo entre conteuacutedo e expressatildeo haacute dois tipos de texto
aqueles que tecircm funccedilatildeo utilitaacuteria (informar convencer explicar documentar etc)
e os que tecircm funccedilatildeo esteacutetica Se algueacutem ouve ou lecirc um texto com funccedilatildeo utilitaacuteria
natildeo se importa com o plano de expressatildeo Ao contraacuterio atravessa-o e vai
diretamente ao conteuacutedo para entender a informaccedilatildeo No texto com funccedilatildeo
esteacutetica a expressatildeo ganha relevacircncia pois o escritor procura natildeo apenas dizer o
mundo mas recriaacute-lo nas palavras de tal sorte que importa natildeo apenas o que se
diz mas o modo como se diz Como o poeta recria o conteuacutedo na expressatildeo a
articulaccedilatildeo entre os dois planos contribui para a significaccedilatildeo global do texto A
compreensatildeo de um texto com funccedilatildeo esteacutetica exige que se entenda natildeo somente o
conteuacutedo mas tambeacutem o significado dos elementos da expressatildeo (2003 77-78)
Segundo o autor a fim de ldquoexplicar essa relaccedilatildeo a semioacutetica acolheu [] a
diferenccedila entre sistemas simboacutelicos e sistemas semioacuteticosrdquo nos primeiros haveria uma
conformidade total entre os planos de conteuacutedo e de expressatildeo (por exemplo ldquoa foice
simboliza sempre o campesinato o martelo o proletariado e o cruzamento dos dois a
uniatildeo dessas duas classesrdquo) enquanto nos ldquosemioacuteticosrdquo ldquoNatildeo haacute uma conformidade
entre o planos de expressatildeo e o do conteuacutedordquo Para lidar com a falta de correspondecircncia
entre unidades dos dois planos ldquoa Semioacutetica cria o conceito de sistemas semi-
simboacutelicosrdquo nos quais a correspondecircncia se daria por categorias em vez de unidades
(por exemplo ldquona gestualidade a categoria da expressatildeo verticalidade vs
horizontalidade correlaciona-se agrave categoria do conteuacutedo afirmaccedilatildeo vs negaccedilatildeordquo) Na
conceituaccedilatildeo de Greimas tais sistemas constituiriam a base dos textos poeacuteticos no
entanto Fiorin considera que ldquona anaacutelise de textos poeacuteticos essa definiccedilatildeo eacute claramente
insuficienterdquo Ocorre que a semioacutetica distingue diferentes niacuteveis do chamado ldquopercurso
gerativo de sentidordquo do mais ao menos profundo segundo o autor as categorias do
conteuacutedo que se correlacionam (realizam ldquohomologaccedilotildeesrdquo) com as categorias da
expressatildeo satildeo abstratas e ldquoremetem aos niacuteveis mais profundosrdquo do dito percurso
enquanto em poesia os ldquoefeitos de sentidordquo gerados por recursos do poema (como
aliteraccedilotildees e rimas) manteriam correlaccedilatildeo ldquoem todos os niacuteveis do percurso gerativo de
sentidordquo e por isso deve-se propor que seja ampliada ldquoa definiccedilatildeo de sistema semi-
simboacutelico eacute o que estabelece correlaccedilotildees entre categorias situadas em todos os niacuteveis
do percurso gerativo de sentidordquo Como se vecirc o esforccedilo eacute para modificar um conceito a
fim de que um constructo teoacuterico e metodoloacutegico possa dar conta da anaacutelise de poesia eacute
44
de nosso interesse sobretudo a condiccedilatildeo praacutetica da proposta o autor passaraacute a buscar
as diversas ldquohomologaccedilotildeesrdquo entre categorias da expressatildeo e do conteuacutedo em poemas
mostrando-nos exemplos de sua anaacutelise Um dos textos analisados eacute o poema
ldquoDebussyrdquo de Manuel Bandeira
Para caacute para laacute
Para caacute para laacute
Um novelozinho de linha
Para caacute para laacute
Para caacute para laacute
Oscila no ar pela matildeo de uma crianccedila
(Vem e vai)
Que delicadamente e quase a adormecer o balanccedila
ndash Psio ndash
Para caacute para laacute
Para caacute e
ndash O novelozinho caiu
(BANDEIRA 1973 p 64)48
Comenta o autor
O poeta vai acompanhando o movimento pendular de alguma coisa Os versos
como um metrocircnomo tecircm um ritmo que acompanha o movimento ldquopara caacute para
laacuterdquo Esse ritmo eacute interrompido e explica-se o que estava oscilando um novelozinho
de linha [] as reticecircncias interrompem a comunicaccedilatildeo Eacute como se o poeta
estivesse a contemplar a crianccedila que estava para adormecer e parasse o que ia dizer
para contemplar novamente o novelozinho na matildeo da crianccedila ldquopara caacute para laacuterdquo
Ele diz que o novelozinho ldquooscila no ar pela matildeo de uma crianccedila () que
delicadamente e quase a adormecer o balanccedilardquo Entre os dois versos da fala do
poeta haacute um verso que aparece entre parecircnteses a indicar que enquanto o poeta
fala o movimento do novelo continua Ele mostra que seu vaiveacutem prossegue
sempre igual primeiro para caacute (vem) e depois para laacute (vai) As reticecircncias revelam
que o movimento eacute contiacutenuo
48 BANDEIRA M Estrela da vida inteira 4ordf ed Rio de Janeiro J Olympio 1973 (Fonte do autor do
artigo)
45
Depois de ter-nos informado que esse ldquopara caacute para laacuterdquo [] eacute o movimento de um
novelozinho de linha que oscila no ar pela matildeo de uma crianccedila que delicadamente
e quase a adormecer o balanccedila o poeta impede nossa manifestaccedilatildeo com um psio
para natildeo acordarmos a crianccedila quase adormecida
O ritmo do verso continua a recriar o ritmo do balanccedilo A interrupccedilatildeo do verso
seguinte que mostra o movimento apenas numa direccedilatildeo significa que a crianccedila
dormiu e portanto derrubou o novelo O uacuteltimo verso reitera esse significado para
noacutes
Temos aqui a homologaccedilatildeo de uma categoria da expressatildeo riacutetmico vs arritmico
a uma categoria figurativa balanccedilo vs natildeo balanccedilo [] temos tambeacutem quando
se observa a interrupccedilatildeo riacutetmica do penuacuteltimo verso em contraste com os outros
versos que indicam o balanccedilo uma homologaccedilatildeo a uma categoria narrativa
disjunccedilatildeo com o sono vs conjunccedilatildeo com o sono
O tiacutetulo do poema eacute o nome do compositor francecircs Debussy cuja obra Childrenrsquos
corner [] possui uma peccedila intitulada ldquoA menina dos cabelos de linhordquo composta
de movimentos ascendentes (vem) e descendentes (vai) e terminada com uma
cadecircncia harmocircnica com movimento meloacutedico descendente (caiu)
Para um ponto de vista que natildeo pretende circunscrever-se no meacutetodo de anaacutelise
no acircmbito da semioacutetica greimasiana o mais importante nesse rico estudo eacute a busca bem
sucedida de demonstrar as diferentes correlaccedilotildees entre os planos de conteuacutedo e de
expressatildeo Isso comeccedila com a escolha desse exemplo (e dos demais) cuja coesatildeo entre
os planos eacute particularmente clara o ritmo e os recursos de sequecircncia corte e pontuaccedilatildeo
dos versos se relacionam com o que se diz o poeta ldquorecria o mundo com palavrasrdquo na
conceituaccedilatildeo dita inicialmente (Faccedila-se aqui um comentaacuterio em terreno adjascente a
visatildeo da poesia como recriaccedilatildeo do mundo estaacute expressa no proacuteprio discurso de anaacutelise
cria-se uma cena cujo protagonista eacute o poeta ldquoo poeta vai acompanhando o
movimentordquo se depreendemos o movimento este eacute uma recriaccedilatildeo do que o poeta vecirc
ou viu O ldquomundordquo do poema seria portanto um correlato da realidade (com elementos
associados entre si) que se revela por meio das relaccedilotildees percebidas Um modo de
interpretar o que poderia ser visto como simples criaccedilatildeo de uma realidade com os
elementos que lhe satildeo proacuteprios mas dependeraacute sempre da leitura para sua re-criaccedilatildeo
Esse modo de abordagem vecirc de maneira geral ndash e aqui num ldquolivre pensamentordquo natildeo
uso terminologia ldquoteacutecnicardquo ndash o poema como uma ldquofiguraccedilatildeordquo uma representaccedilatildeo
figurativa da realidade No caso do poema de Bandeira o ldquodesenhordquo eacute niacutetido as
46
sugestotildees satildeo delineadas delimitadas de modo a se perceber com nitidez a ldquofigurardquo
nem sempre seraacute assim no entanto em poesia as sugestotildees poderatildeo ser mais vagas as
relaccedilotildees mais difusas por exemplo quando inseridas no contexto vasto de um poema
extenso e ao se considerarem elementos impressivos com associaccedilatildeo menos imediata agrave
dimensatildeo do sentido49
(anaacutelogos talvez aos de uma obra de arte abstrata por exemplo)
Mais uma vez no artigo em questatildeo evidencia-se o caminho da anaacutelise de
poesia pela criaccedilatildeo de modos de identificaccedilatildeo das ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo e pelo
esforccedilo em recriar a adequaccedilatildeo de modelo e meacutetodo a um objeto que poderaacute talvez
sempre escapar de sua proacutepria definiccedilatildeo por meio de um constructo especiacutefico Mas
diante de esforccedilos como esse dificilmente se poderaacute atribuir apenas agrave leitura o que se
demonstra de existente na dimensatildeo intratextual ainda que se ponham em questatildeo
elementos interpretativos como sendo criados pela leitura O movimento no sentido de
se ampliarem conceitos de maneira a estender o alcance da anaacutelise e da demonstraccedilatildeo
do modo como se realiza e se aprecia o texto esteacutetico eacute considero o caminho para a
proacutepria noccedilatildeo de existecircncia da poesia como linguagem diferenciada por mais extensa
que sejam suas possibilidades e por mais difiacutecil que seja abrangecirc-la num modelo
teoacuterico
Mas retornemos ao texto discutido Fiorin anuncia uma segunda questatildeo relativa
ao tema da relaccedilatildeo entre os dois referidos planos postulando que embora geralmente se
pense ldquoque as categorias [de expressatildeo e de conteuacutedo] precisam estar efetivamente
manifestadas com seus dois termos em oposiccedilatildeordquo haveria na verdade ldquoduas maneiras
de manifestaccedilatildeo das relaccedilotildees semi-simboacutelicas presenccedila vs presenccedila dos elementos
correlacionados ou presenccedila vs ausecircncia dos elementos correlacionadosrdquo Para o autor
ldquona anaacutelise de uma categoria do plano da expressatildeo e de sua correlaccedilatildeo com uma
categoria do plano do conteuacutedo natildeo eacute preciso que os dois termos estejam manifestados
porque a manifestaccedilatildeo de um pressupotildee a presenccedila do outrordquo O exemplo tomado para a
primeira das maneiras apontadas eacute o poema ldquoA ondardquo de Manuel Bandeira
a onda anda
aonde anda
a onda
49 Nas partes posteriores deste trabalho ao se tratar de possibilidades de anaacutelise seraacute feita uma tentativa
de discussatildeo da ldquoobjetividaderdquo no estudo da poesia como limitada agrave natureza qualitativa do signo icocircnico
tendo-se como referecircncia (num esfoccedilo desapegado de um ou outro constructo teoacuterico) a semioacutetica de
Peirce
47
a onda ainda
ainda onda
ainda anda
aonde
aonde
a onda a onda
(1973 p 286)
O autor apoacutes assinalar diversos aspectos da composiccedilatildeo (o poema eacute ldquoconstituiacutedo
de uma oposiccedilatildeo entre vogal oral e vogal nasalrdquo ldquoeacute constituiacutedo basicamente com
vogais que do ponto de vista acuacutestico satildeo ondas perioacutedicasrdquo ldquoa uacutenica consoante que
ocorre no texto eacute o d que por ser oclusiva eacute momentacircnea e explosiva e por ser sonora
conteacutem uma certa periodicidaderdquo etc) afirma que todos os ldquoelementos focircnicos (ritmo
assonacircncia alternacircncia de orais e nasais etc) recriam no plano da expressatildeo o
movimento ondulatoacuterio ininterrupto das ondas do marrdquo e conclui que ldquoo poema eacute
constituiacutedo por oposiccedilotildees da expressatildeo que se correlacionam com oposiccedilotildees do
conteuacutedo para recriar sensivelmente o movimento ondulatoacuterio das ondasrdquo A segunda
maneira (de manifestaccedilatildeo das relaccedilotildees semi-simboacutelicas) eacute ilustrada por um fragmento
do poema ldquoA valsardquo de Casimiro de Abreu
Tu ontem
Na danccedila
Que cansa
Voavas
Coas faces
Em rosas
Formosas
De vivo
Lascivo
Carmim
Na valsa
Corrias
Fugias
Ardente
Contente
48
Tranquila
Serena
Sem pena
De mim
(ABREU 1974 p 49-50)50
Sobre ele afirma o autor que ldquoeacute feito com versos dissiacutelabos com acento na
segunda siacutelaba o que cria o ritmo raacutepido da valsa Natildeo temos o contraste entre dois
ritmos mas entre a presenccedila do ritmo e sua ausecircncia pressupostardquo
Haacute ainda como o tiacutetulo do artigo indica uma terceira questatildeo a se considerar
que ldquodiz respeito agrave utilizaccedilatildeo das formas fixas em poesiardquo O autor observa que ldquoa
especificidade da semioacutetica poeacutetica caracteriza-se pela correlaccedilatildeo entre expressatildeo e
conteuacutedo ou seja que o discurso poeacutetico eacute um discurso duplo pois projeta suas
articulaccedilotildees simultaneamente no plano da expressatildeo e no do conteuacutedo (GREIMAS
1976 p 12)51
rdquo e comenta que o plano de conteuacutedo (ao qual o de expressatildeo deve
articular-se) possibilitaraacute vaacuterias leituras por caracterizar-se pela densidade Segundo
Fiorin ldquoesses postulados natildeo permitem confundir versificaccedilatildeo com poesiardquo no entanto
para o autor no caso dos ldquograndes poetasrdquo ldquoas formas fixas constituem uma maneira
codificada de segmentar o discurso poeacutetico em unidadesrdquo haveria ldquono plano de
expressatildeo da poesiardquo ldquocategorias topoloacutegicas que se relacionam com as categorias do
conteuacutedordquo Para Fiorin essa eacute uma sugestatildeo que precisa ser resgatada ldquopara verificar
que a distribuiccedilatildeo do conteuacutedo eacute homoacuteloga a sua estruturaccedilatildeordquo (tal verificaccedilatildeo
exemplificada no artigo por meio de dois sonetos natildeo seraacute aqui incluiacuteda)
Numa observaccedilatildeo um tanto externa ao foco da discussatildeo caberia perguntar se a
produccedilatildeo de ldquograndes poetasrdquo (uma categoria vaga e relativa) seria a referecircncia para a
verificaccedilatildeo das correlaccedilotildees entre estruturaccedilatildeo meacutetrica e conteuacutedo ou se seria o proacuteprio
modo de produccedilatildeo que pode envolver tais correlaccedilotildees mesmo sem alto desempenho
esteacutetico
Como se vecirc mais uma vez a procura desse ponto de vista eacute sempre de se
possibilitar a identificaccedilatildeo das correlaccedilotildees identificaacuteveis num texto poeacutetico No caso das
traduccedilotildees da eacutepica grega o aspecto meacutetrico teraacute papel importante na proacutepria
50 ABREU C Poesia 4ordf ed Rio de Janeiro Agir 1974 (Fonte do autor do artigo) 51
GREIMASS A J (org) Ensaios de semioacutetica poeacutetica Satildeo Paulo Cultrix 1976 (Fonte do autor do artigo)
49
configuraccedilatildeo do conteuacutedo ainda que nem sempre se possam estabelecer relaccedilotildees semi-
simboacutelicas entre tais dimensotildees do poema
Jaacute se apontou de passagem que mesmo a oacuteptica questionadora da existecircncia do
ldquotexto de partida como um objeto definidordquo pode recorrer agrave anaacutelise de poesia baseada em
estabelecimento de relaccedilotildees entre elementos do poema Eacute o que se poderaacute constatar durante a
discussatildeo exposta no proacuteximo toacutepico
50
B Traduccedilatildeo poeacutetica incertezas caminhos e superaccedilatildeo da impossibilidade
B1 Reflexotildees sobre a tarefa do tradutor de poesia
A discussatildeo em torno de conceituaccedilotildees linguiacutestico-estruturalistas de um lado e
desconstrucionistas de outro alusivas agrave existecircncia ndash ou natildeo ndash de aspectos intriacutensecos ao
texto poeacutetico seraacute fundamental para a discussatildeo que se seguiraacute sobre a tarefa do
tradutor de poesia que por sua vez serviraacute de suporte agraves posteriores colocaccedilotildees e
anaacutelises relativas agrave eacutepica grega que este trabalho abrangeraacute Natildeo se pretende aqui
evidentemente tratar de modo amplo das controveacutersias que tecircm alimentado nas uacuteltimas
deacutecadas um debate inesgotaacutevel tampouco se tem a intenccedilatildeo de expor com mais
profundidade as conceituaccedilotildees desconstrucionistas52
baseadas em Jacques Derrida este
assunto seria por si soacute suficiente para um estudo de grande focirclego a limitaccedilatildeo
decorrente de nossos objetivos impotildee que apenas se identifiquem os pontos de vista em
conflito (ou natildeo) a fim de se propor um modo de ver as fundamentaccedilotildees e caminhos
para a traduccedilatildeo de poesia
Em ensaio53
de importacircncia particular para a discussatildeo da traduccedilatildeo neste estudo
(e que por isso seraacute evocado repetidas vezes) Rosemary Arrojo afirma
Em linhas muito gerais as teorias da linguagem que emergem da tradiccedilatildeo
intelectual do Ocidente alicerccediladas no logocentrismo e na crenccedila no que Jacques
Derrida chama de ldquosignificado transcendentalrdquo tecircm considerado o texto de partida
como um objeto definido congelado receptaacuteculo de significados estaacuteveis
geralmente identificados com as intenccedilotildees de seu autor Obviamente esse conceito
de texto traz consigo uma concepccedilatildeo de leitura que atribui ao leitor a tarefa de
ldquodescobrirrdquo os significados ldquooriginaisrdquo do texto (ou de seu autor) Ler seria em
uacuteltima anaacutelise uma atividade que propotildee a ldquoproteccedilatildeordquo dos significados
originalmente depositados no texto por seu autor (1993 16)
52 Sobre a ldquodesconstruccedilatildeordquo diz Edwin Gentzler ldquoDerrida lsquobasesrsquo his lsquotheoryrsquo of desconstruction on non-
identity on non-presence on unrepresentability What does exist according to Derrida are different chains of signification ndash including the lsquooriginalrsquo and its translations in a symbiotic relationship ndash mutually
supplementing each other defining and redefining a phantasm of sameness which never has existed nor
will exist as something fixed graspable known or understoodrdquo GENTZLER E Contemporary
translation theories New York Routledge 1993 p 147 53 ldquoA que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo In ARROJO R Traduccedilatildeo desconstruccedilatildeo e
psicanaacutelise Rio de Janeiro Imago 1993
51
Sobre a ldquotradiccedilatildeo intelectual do Ocidenterdquo baseada na ldquocrenccedila no Logosrdquo
afirma Arrojo em outro artigo seu54
Nessa tradiccedilatildeo cultural que crecirc na possibilidade de uma distinccedilatildeo intriacutenseca entre
sujeito e objeto a origem do significado eacute necessariamente localizada no
significante (no texto na mensagem na palavra) nas intenccedilotildees (conscientes) do
emissorautor ou numa combinaccedilatildeo ou alternacircncia dessas duas possibilidades A
primeira delas se reflete por exemplo na noccedilatildeo de literalidade que autoriza a
possibilidade de um significado subordinado agrave letra anterior a qualquer
interpretaccedilatildeo e independente de qualquer contexto Reflete-se tambeacutem na
concepccedilatildeo de literariedade que ainda domina a tradiccedilatildeo dos estudos literaacuterios entre
noacutes a noccedilatildeo de que o literaacuterio eo poeacutetico se encontram no texto como
propriedades intriacutensecas que o marcam indelevelmente e o distinguem dos textos
natildeo-literaacuterios Segundo essa visatildeo o leitor [] deve poder encontrar os
significados [] no texto e em suas marcas que teriam portanto a propriedade de
preservar seus conteuacutedos []
A segunda possibilidade como vimos projeta no emissorautor a origem
dosignificado [] Compreender ouler envolveria [] a descoberta e o resgate
daquilo que o emissor ou o autor quis dizer [] (2003 37-38)
Como veremos mais agrave frente ideias sobre traduccedilatildeo baseadas em conceitos que
incluem destacadamente os constructos teoacutericos de Jakobson ndash refiro-me centralmente
agrave teorizaccedilatildeo de Haroldo de Campos ndash podem compatibilizar-se embora por outro vieacutes
de compreensatildeo com a postura de natildeo-submissatildeo a desejos autorais ou de descrenccedila na
preservaccedilatildeo de ldquoconteuacutedosrdquo nos textos Aponte-se jaacute contudo que a accedilatildeo de atribuir a
elementos do texto ndash perceptiacuteveis na leitura que busca caracteriacutesticas do poema ou da
proacutepria poesia como tais ndash a dimensatildeo de ldquosignificadosrdquo ou de preservaccedilatildeo de
ldquoconteuacutedosrdquo parece reducionista e desvirtuadora dos propoacutesitos de investigaccedilatildeo das
especificidades da linguagem poeacutetica os elementos que possivelmente a caracterizam
podem ser vistos como figuras iacutecones passiacuteveis de apreensatildeo pela leitura que os busca e
encontra em poemas de diversas eacutepocas ldquogecircnerosrdquo e tendecircncias construindo ou
reconstruindo (ainda que a ldquointenccedilatildeordquo possa ser de descoberta de elementos presentes
no texto) uma configuraccedilatildeo que comporaacute a trama de ldquosentidordquo Observar a existecircncia de
54 ldquoA desconstruccedilatildeo do logocentrismo e a origem do significadordquo In ARROJO R (org) O signo
desconstruiacutedo Campinas Pontes 2003
52
repeticcedilotildees (em diferentes planos) semelhanccedilas focircnicas aspectos visuais e outros
elementos que permitam a formulaccedilatildeo (na leitura) de relaccedilotildees entre som e sentido
permitidas pelo texto eacute um ato que natildeo pode ser desqualificado pela pressuposiccedilatildeo de
que ele resulta da busca de significados preservados ou intriacutensecos ainda que a maneira
de aproximaccedilatildeo ou de discurso feita pelo investigador possa ser enquadrada no que seria
a revelaccedilatildeo de elementos intriacutensecos (e natildeo propriamente ldquosignificadosrdquo) ao texto O
exemplo de Saussure permanentemente em duacutevida com a existecircncia ou natildeo do que via
nos versos latinos (e outros) atribui por si soacute a consideraccedilatildeo da leitura como
participante do processo de produccedilatildeo ou construccedilatildeo de sentido os diversos exemplos de
anaacutelise de Jakobson como a que realizou do poema ldquoThe ravenrdquo de E A Poe mostra a
importacircncia de leituras analiacuteticas que ao buscar desvelar relaccedilotildees paradigmaacuteticas entre
elementos do texto edificam suas particularidades linguiacutesticas e esteacuteticas (admitindo-se
o entendimento do poema como obra de arte verbal) independentemente de
corresponderem as ldquodescobertasrdquo a intenccedilotildees do autor do poema Mesmo que Poe natildeo
tenha pretendido ao menos conscientemente articular a relaccedilatildeo fonicamente especular
entre ldquoravenrdquo e ldquoneverrdquo esta observaccedilatildeo de Jakobson revela uma qualidade que
associada ao conjunto de elementos passiacuteveis de depreensatildeo no poema (incluindo-se os
assinalados por seu autor no texto ldquoA filosofia da composiccedilatildeordquo) colabora para a
compreensatildeo de seu ldquofuncionamentordquo como objeto de linguagem e de arte Ainda que
os conceitos referentes ao que seja poesia ao que seja arte ao que seja esteticamente
desejaacutevel ou indesejaacutevel estejam ndash como postulam os desconstrucionistas ndash vinculados
ao repertoacuterio e ao modo de ver do apreciador (veja-se por exemplo o referido texto ldquoA
que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo) identidades e fatores que as compotildeem
sempre teratildeo seu lugar como agentes da produccedilatildeo de cultura Mas voltemos por ora
aos argumentos da desconstruccedilatildeo por meio do trabalho especialmente esclarecedor e
consistente de Rosemary Arrojo
Em outros estudos seus a autora ndash com base em comentaacuterios de George Steiner
sobre um conto de Jorge Luis Borges ldquoPierre Menard o autor do Quixoterdquo (1939) ndash
vale-se dessa obra para o objetivo de elucidar a ideia de inexistecircncia do significado fixo
ou ldquodepositadordquo no texto O personagem (fictiacutecio) dessa obra-prima de Borges o receacutem-
falecido escritor Menard (ldquohomem de letras que viveu na primeira metade do seacuteculo
XX) produzira aleacutem de suas obras ldquovisiacuteveisrdquo uma outra ldquoinvisiacutevelrdquo que seria sua obra
mais significativa Esta seria uma reescritura de capiacutetulos do romance Dom Quixote de
53
Cervantes feita de modo a que Menard sendo ele mesmo conseguisse reproduzir (natildeo
copiar) o mesmo texto repetindo-o na iacutentegra O ldquonarradorrdquo do conto um criacutetico
literaacuterio que comenta as obras do escritor faz um cotejo de um trecho de Cervantes com
o mesmo trecho escrito por Menard
Constitui uma revelaccedilatildeo cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes
Este por exemplo escreveu (Dom Quixote primeira parte nono capiacutetulo)
a verdade cuja matildee eacute a histoacuteria emula do tempo depoacutesito das accedilotildees
testemunha do passado exemplo e aviso do presente advertecircncia do futuro
Redigida no seacuteculo XVII redigida pelo ldquoengenho leigordquo Cervantes essa
enumeraccedilatildeo eacute mero elogio retoacuterico da histoacuteria Menard em compensaccedilatildeo escreve
a verdade cuja matildee eacute a histoacuteria emula do tempo depoacutesito das accedilotildees
testemunha do passado exemplo e aviso do presente advertecircncia do futuro
A histoacuteria matildee da verdade a ideia eacute assombrosa Menard contemporacircneo de
William James natildeo define a histoacuteria como indagaccedilatildeo da realidade mas como sua
origem A verdade histoacuterica para ele natildeo eacute o que aconteceu eacute o que julgamos que
aconteceu As claacuteusulas finais ndash exemplo e aviso do presente advertecircncia do
futuro ndash satildeo descaradamente pragmaacuteticas
Diz Arrojo
Menard tenta recuperar o significado ldquooriginalrdquo de Cervantes mas somente
consegue reproduzir suas palavras O que Menard lecirc e reproduz como sendo o
verdadeiro Quixote (e portanto de acordo com Menard imutaacutevel e evidente) eacute
interpretado pelo narradorcriacutetico como algo diferente Paradoxalmente ao
ldquorepetirrdquo a totalidade do texto de Cervantes Menard ilustra a impossibilidade da
repeticcedilatildeo total exatamente porque as palavras do texto de Cervantes natildeo
conseguem delimitar ou petrificar seu significado ldquooriginalrdquo independentemente
de um contexto ou de uma interpretaccedilatildeo (2003 21-22)55
55 ARROJO R Oficina de Traduccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 2003
54
Considerado por George Steiner ldquoo mais perspicaz o mais condensado
comentaacuterio que algueacutem jaacute ofereceu sobre a atividade de traduccedilatildeordquo56
o conto de Borges
eacute um instrumento da constataccedilatildeo da impermanecircncia do significado e por extensatildeo da
existecircncia de qualquer atributo ldquofiacutesicordquo ldquoconcretordquo ldquomaterialrdquo ao texto Essa ideia
diga-se afina-se com um encaminhamento radical do conceito de signo arbitraacuterio
proposto por Saussure que o define como uma instacircncia psicoloacutegica ldquoimaterialrdquo Sobre
a radicalizaccedilatildeo desconstrutivista do signo saussuriano por seus aspectos de
arbitrariedade e convenccedilatildeo diz Arrojo
Ao levar agraves uacuteltimas consequecircncias a concepccedilatildeo do signo arbitraacuterio econvencional
proposta por Saussure a reflexatildeo desconstrutivista necessariamente revisae
redimensiona as noccedilotildees tradicionais de significado Se o signo eacute resultado de
umaconvenccedilatildeo de um pacto a origem do significado eacute necessariamente remetida
para esse pacto e em uacuteltima anaacutelise para a necessidade de organizaccedilatildeo e de
domiacutenio quedesemboca nesse pacto Se aceitarmos a tese da convencionalidade do
signo ou seja anoccedilatildeo de que todo significado eacute necessariamente construiacutedo e
atribuiacutedo a partir de umtaacutecito acordo comunitaacuterio natildeo poderemos portanto eximir
a leitura e a compreensatildeo ou qualquer outro processo de utilizaccedilatildeo de signos de
uma origem atrelada agrave construccedilatildeoe agrave produccedilatildeo de significados (2003 37)
Mas ldquolevar agraves uacuteltimas consequecircnciasrdquo as ideias de Saussure envolve considerar
como referecircncia absoluta a incorporeidade do significante Afirma o proacuteprio Saussure
Todos os valores convencionais apresentam esse caraacuteter de natildeo se confundir com o
elemento tangiacutevel que lhe serve de suporte Assim natildeo eacute o metal da moeda que lhe
fixa o valor Isso eacute ainda mais verdadeiro no que respeita ao significante
linguiacutestico em sua essecircncia este natildeo eacute de modo algum focircnico eacute incorpoacutereo
constituiacutedo natildeo por sua substacircncia material mas unicamente pelas diferenccedilas que
separam sua imagem acuacutestica de todas as outras
Leiam-se acerca da ecircnfase derridiana quanto agrave imaterialidade do significante as
observaccedilotildees de Cristina Carneiro Rodrigues
56 STEINER G Depois de Babel Trad C A Faraco Curitiba Editora da UFPR 2005 p 96
55
Ao salientar o caraacuteter diferencial e formal do funcionamento dos signos Saussure
mostrou que o som natildeo pode pertencer agrave liacutengua e que o significante natildeo eacute uma
entidade puramente material Na medida em que para Saussure o significado natildeo
eacute puramente focircnico a substacircncia de expressatildeo eacute de alguma maneira considerada
abstrata e natildeo puramente fiacutesica [] caso se levassem as ideias de Saussure agraves
uacuteltimas consequecircncias seria rejeitada qualquer noccedilatildeo de materialidade do
significante e do signo em geral Efetivamente apenas pela materialidade focircnica
natildeo seria possiacutevel identificar um signo repetido como se fosse o mesmo pois cada
repeticcedilatildeo dele natildeo eacute idecircntica Essa concepccedilatildeo deveria se estender ao significado
que tambeacutem seria marcado pela alteridade pela diferenccedila concepccedilatildeo que natildeo
conduziria agrave noccedilatildeo de equivalecircncia [em traduccedilatildeo ndash ou seja agrave ideia de que os
significados de uma liacutengua encontram equivalentes aos de outra e que a traduccedilatildeo
seria um processo de reproduccedilatildeo de sentidos equivalentes agravequeles fornecidos pelo
texto ldquooriginalrdquo]
Eacute importante discutirmos neste ponto a noccedilatildeo de (i)materialidade do
significante ou do signo com alguma tentativa de raciociacutenio que contribua para
ultrapassar o que eu veria como um ldquoconfinamentordquo ao modelo relacional do signo
convencionado O modelo binaacuterio de Saussure enfatiza uma unidade intriacutenseca do
processo psicoloacutegico de transmissatildeo de mensagens que permitiu o modo de
investigaccedilatildeo e compreensatildeo propiciador dos frutos notoacuterios do desenvolvimento da
ciecircncia linguiacutestica no uacuteltimo seacuteculo mas eacute um modelo voltado ao signo verbal
arbitraacuterio ndash ainda que o modelo possa ser frutiacutefero para a anaacutelise de objetos de outra
natureza como por exemplo um poema graacutefico-visual57
ele eacute um modelo fundado no
espaccedilo mental em que opera a comunicaccedilatildeo O fato de isolar a concepccedilatildeo ou a
ldquonaturezardquo do signo em sua relaccedilatildeo entre uma imagem acuacutestica e um conceito natildeo
significa entretanto que deixem de existir o estiacutemulo focircnico em sua dimensatildeo
material assim como o objeto relacionado ao conceito integrante do signo Trata-se
evidentemente de uma constataccedilatildeo oacutebvia mas que pode ter implicaccedilotildees na visatildeo sobre
um poema por exemplo logo voltaremos a isso Mas considere-se outro aspecto oacutebvio
a identidade do proacuteprio som como fenocircmeno fiacutesico participa da definiccedilatildeo do modo
57 Veja-se a anaacutelise desenvolvida por Antocircnio Vicente Pietroforte do poema ldquoCoacutedigordquo de Augusto de
Campos com base na diferenccedila entre a linha e o ciacuterculo mostrando que o poema ilustraria a proacutepria
natureza relacional do coacutedigo) Em Pietroforte Antocircnio Vicente O discurso da poesia concreta ndash uma
abordagem semioacutetica Satildeo Paulo AnnaBlume 2011 p 47-50
56
como eacute percebido para que se forme uma ldquoimagem acuacutesticardquo eacute preciso que a emissatildeo
do som ou dos fonemas permita sua percepccedilatildeo adequada os sons agudos seratildeo assim
percebidos ainda que possam ocasionar diferentes sensaccedilotildees ou mesmo participar da
formaccedilatildeo de diferentes significados pense-se ainda a tiacutetulo digressivo-ilustrativo no
caso particular de uma gravaccedilatildeo de sons por exemplo de muacutesica na qual o tratamento
teacutecnico da sonoridade de um instrumento ou de uma voz pode interferir na percepccedilatildeo
esteacutetica e na emoccedilatildeo que a ela pode associar-se influindo no ldquosentidordquo da composiccedilatildeo
em termos amplos
Se a linguiacutestica saussuriana considera o signo como um processo
exclusivamente mental ndash o que permite estabelecer as identidades apenas pelas
diferenccedilas que estabelecem entre si e portanto relativizar as ldquoverdadesrdquo em cuja
crenccedila se depositaria a tradiccedilatildeo do logocentrismo ndash isto natildeo quer dizer que a
consideraccedilatildeo da realidade fiacutesica material seja necessariamente fixadora de verdades ou
significados ou de atributos que lhe sejam perenes Considere-se o modelo (triaacutedico) da
semioacutetica de Peirce representado anteriormente em um dos veacutertices do triacircngulo estaacute o
objeto em outro oposto o signo e no terceiro o interpretante o interpretante origina
outro signo e assim sucessivamente Num exerciacutecio de livre pensamento comparativo
poderiacuteamos atribuir uma correspondecircncia possiacutevel entre a funccedilatildeo do interpretante (que
realiza a relaccedilatildeo entre signo e objeto) e a concepccedilatildeo da dualidade imagem-acuacutestica ndash
conceito de Saussure que opera no campo mental das relaccedilotildees O modelo de Peirce
destinado a abranger os diferentes tipos de signo por ele identificados ndash e natildeo apenas o
verbal arbitraacuterio que ele denominaria de ldquosiacutembolordquo um ldquolegissignordquo (porque resultante
de lei ou convenccedilatildeo) ndash permite a natildeo-exclusatildeo da dimensatildeo material dos estiacutemulos
envolvidos na produccedilatildeo da linguagem em suas diferentes manifestaccedilotildees
Como jaacute se mencionou Deacutecio Pignatari fala da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem
como sendo marcada pela ldquoprojeccedilatildeo de coacutedigos natildeo-verbais (musicais visuais gestuais
etc) sobre o coacutedigo verbalrdquo Elementos sonoros e visuais se vistos como existentes em
si (ou seja positivamente) embora participantes do signo verbal e existentes nele
apenas em termos relacionais ou pela negatividade poderatildeo tambeacutem compor uma teia
adicional engendradora de um coacutedigo de natureza diversa que se projeta sobre o campo
verbal ou semacircntico (do significado) Quando Saussure buscava anagramas enquanto
ldquofiguras focircnicasrdquo (no dizer de Jakobson) rastreava os elementos isolados do contexto do
proacuteprio signo a que pertenciam destacando-os da relaccedilatildeo interna significante-
57
significado que compotildee a sua noccedilatildeo abstratizante de signo se tomados apenas como
fonemas em sua representaccedilatildeo por letras natildeo seratildeo esses elementos vistos em sua
materialidade ainda que possam originar diferenccedilas em sua audiccedilatildeo ou emissatildeo Nos
exerciacutecios de Jakobson em que relaciona unidades focircnicas para revelar sentidos
adjacentes ou subjacentes ou suprajacentes (como fizera por exemplo na jaacute
mencionada anaacutelise de ldquoThe ravenrdquo entre tantas outras) e em sua proacutepria noccedilatildeo de
projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma natildeo haacute a identificaccedilatildeo de ldquoformasrdquo
ldquoexternasrdquo a cada signo verbal que consistem em elementos integrantes de coacutedigos
sonoros visuais etc
Veja-se esta breve reflexatildeo natildeo como uma proposiccedilatildeo ambiciosamente
resolutoacuteria mas apenas como um exerciacutecio voltado agrave superaccedilatildeo de importantes entraves
de compreensatildeo ou operacionalizaccedilatildeo no trabalho com a linguagem por conflitos
supostamente insuperaacuteveis Em seu constructo teoacuterico sobre traduccedilatildeo poeacutetica Haroldo
de Campos vale-se muitas vezes da ideia de ldquomaterialidade siacutegnicardquo contudo como se
poderaacute ver seu pensamento natildeo se volta ao ldquoresgate de significados estaacuteveisrdquo e
tampouco considera o ldquooriginalrdquo como autoridade dotada de uma intenccedilatildeo a ser
respeitada ou seguida ancilarmente agrave semelhanccedila dele outros poetas e tradutores de
poesia encaram sua tarefa de traduzir de modo bem diverso do que seria o modus
operandi da traduccedilatildeo ldquofiel ao sentido que o autor quis transmitirrdquo etc
Num novo livre pensamento com alguma possiacutevel utilidade reflexiva
admitindo-se que seja na ldquodiferenccedilardquo (conforme preconizou Saussure) que a
significaccedilatildeo se decirc no processo relacional dos signos e ainda que se considere o signo
natildeo ldquoem sua composiccedilatildeo mas em seus contornosrdquo talvez se possa supor que no
ldquoconfrontordquo entre contornos focircnicos estes tambeacutem recuperem na leitura sua
ldquoidentidade materialrdquo ou se faccedilam notar em sua especificidade ldquomaterializandordquo o
corpo que envolvem seria na comparaccedilatildeo que a ldquomaterialidaderdquo tambeacutem se afirmaria
ldquoconsolidando-serdquo pelo ldquoembaterdquo entre contornos58
58 Em outra oportunidade referi-me agrave questatildeo geral da materialidade do signo desta forma um tanto
diversa e mais sinteacutetica ldquoAinda que se considere a postulaccedilatildeo de Saussure de que o lsquosignificante
linguiacutesticorsquo eacute lsquoincorpoacutereo constituiacutedo natildeo por sua substacircncia material mas unicamente pelas diferenccedilas
que separam sua imagem acuacutestica de todas as outras (1972 137-8) [] eacute inegaacutevel a existecircncia da materialidade siacutegnica que permite o estabelecimento das diferenccedilas pelas quais o lsquosignificantersquo se define
Assim ainda que o lsquosignificantersquo natildeo seja lsquouma entidade puramente materialrsquo (Rodrigues 1999 189) (o
grifo eacute meu) tambeacutem o eacute (material) e as diferenccedilas que o delimitam ainda que de teor lsquoabstratorsquo
integram a cadeia de relaccedilotildees entre signos identificadas numa obra de arte verbal relaccedilotildees estas
marcadas exatamente por semelhanccedilas e diferenccedilas (considerando-se a projeccedilatildeo do eixo de similaridade
sobre o de contiguidade caracteriacutestico da lsquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrsquo) []rdquo
58
O poeta tradutor e ensaiacutesta Joseacute Paulo Paes tambeacutem fala em ldquomaterialidaderdquo
Apoacutes discutir a traduccedilatildeo de poesia em sua obra Traduccedilatildeo a ponte necessaacuteria (1990)
considerando-a ldquoo caso-limite da problemaacutetica geral da traduccedilatildeordquo (devido
principalmente para ele por ser a poesia ldquoa forma mais condensada de linguagemrdquo
conceito colhido do poeta e criacutetico norte-americano Ezra Pound) assim se refere agrave
atividade do poeta evocando o ldquoprinciacutepio miacutetico do mundo aquele jardim do Eacuteden a
cujos seres Adatildeo deu o nome inauguralrdquo
Ao perturbar constantemente o primado do sentido loacutegico do discurso por via de
operadores diversivos como a metaacutefora a aliteraccedilatildeo a assonacircncia o jogo
paronomaacutestico etc busca o poeta com isso chamar a atenccedilatildeo do leitor menos para
o significado abstrato dos signos do que para a materialidade deles ndash o seu som a
sua forma ndash que eacute o penhor de serem congeniais das coisas Precisamente porque
aspira ao ideoleto imaginaacuterio [(o ldquoprimeiro ideoletordquo a liacutengua privativa de Adatildeo
teria se transformado por meio de seus descendentes em socioleto uma liacutengua
grupal instaurando-se a partir de entatildeo o ldquoreino da vicariedade ou
intermediaccedilatildeo)] o poeta estaacute sempre redescobrindo o mundo vendo-o como nunca
ningueacutem o tivesse visto antes como se fosse ele o primeiro homem sobre a face da
Terra (1990 47)
A recorrecircncia agrave noccedilatildeo natildeo-saussuriana das palavras como ldquocongeniais das
coisasrdquo (ideia que pode ser vista como manifestaccedilatildeo logocecircntrica) serve para enfatizar o
que seria a busca da poesia pela ldquomaterializaccedilatildeordquo da palavra que ansiaria a ser ldquocoisardquo
no poema A esse respeito leia-se ndash por sua sugestatildeo materializante ndash o seguinte poema
de Joatildeo Cabral de Melo Neto criador de uma ldquopoesia com coisasrdquo (no dizer de Marta
Peixoto59
) feita de ldquopalavras-coisasrdquo contendo uma interessante metaacutefora
(materializadora) da criaccedilatildeo poeacutetica
59 PEIXOTO Marta Poesia com coisas Satildeo Paulo Perspectiva 1983
59
Catar feijatildeo
1
Catar feijatildeo se limita com escrever
joga-se os gratildeos na aacutegua do alguidar
e as palavras na folha de papel
e depois joga-se fora o que boiar
Certo toda palavra boiaraacute no papel
aacutegua congelada por chumbo seu verbo
pois para catar esse feijatildeo soprar nele
e jogar fora o leve e oco palha e eco
2
Ora nesse catar feijatildeo entra um risco
o de que entre os gratildeos pesados entre
um gratildeo qualquer pedra ou indigesto
um gratildeo imastigaacutevel de quebrar dente
Certo natildeo quando ao catar palavras
a pedra daacute agrave frase seu gratildeo mais vivo
obstrui a leitura fluviante flutual
accedilula a atenccedilatildeo isca-a como o risco60
Antes de encerrar este toacutepico preparatoacuterio a nossas abordagens centrais com
alguns comentaacuterios criacuteticos agrave postura radicalmente relativizadora proacutepria do
desconstrucionismo escolho referir-me a um interessante exerciacutecio realizado por
Rosemary Arrojo em que analisa o poema ldquoAacuteporordquo de Carlos Drummond de Andrade
Aleacutem do proveito que o exerciacutecio traz como exemplificaccedilatildeo de possibilidades de anaacutelise
de um poema haacute tambeacutem o aspecto de ainda que convicta da inexistecircncia de qualquer
caracteriacutestica intriacutenseca aos poemas que os distingam como tais a autora recorrer a
procedimento muito semelhante ao empregado em uma anaacutelise estrutural como se veraacute
nesta breve referecircncia Comenta Arrojo ldquolsquoAacutepororsquo [] eacute o texto escolhido pois apesar
de sua brevidade pode nos dar um bom exemplo do que seria ler lsquopoeticamentersquo um
textordquo Ainda que a ecircnfase seja na ldquoleiturardquo na praacutetica natildeo haacute mudanccedila significativa de
procedimento em relaccedilatildeo agravequele adotado nas anaacutelises usualmente desenvolvidas por
60 De A educaccedilatildeo pela pedra (1965)
60
linguistas semioticistas ou criacuteticos de poesia a diferenccedila reside essencialmente no
modo de referir-se ao ato de anaacutelise como ldquoleiturardquo ldquoA leitura de Aacuteporo que proponho
a seguir se assemelha agrave construccedilatildeo de um quebra-cabeccedilardquo (p 47) Independentemente
do referencial teoacuterico e da oacuteptica de abordagem do objeto o que se realizaraacute seraacute um
conjunto de observaccedilotildees elaboradas a partir do que o objeto de anaacutelise ldquopode nos darrdquo
por suas qualidades de possibilidades de identificaccedilatildeo do ldquoquebra-cabeccedilardquo que
pressupotildee a existecircncia de peccedilas identificaacuteveis ainda que associadas a um processo
sempre interpretativo Assim os procedimentos de anaacutelise efetuados por estruturalistas
como Jakobson61
ou entre noacutes por teoacutericos da poesia como Haroldo de Campos e
Deacutecio Pignatari permanecem sendo o meio para reconhecimento de aspectos e
possibilidades da linguagem poeacutetica ainda que a postura desconstrucionista utilize um
discurso enfatizador do aspecto de ldquoconstruccedilatildeordquo da leitura analiacutetica ldquoVamos tentar
construir melhor esse enredo quebra-cabeccedilardquo Mas o que eacute construiacutedo natildeo vem do
nada procede natildeo soacute da dimensatildeo psicoloacutegica (que inclui a percepccedilatildeo) mas tambeacutem de
elementos e relaccedilotildees que podem ser identificados e aos quais podem ser atribuiacutedos
aspectos de organizaccedilatildeo da linguagem do poema ou de interpretaccedilatildeo a partir das
relaccedilotildees estabelecidas Tais elementos podem ser observados pela ldquoleitura poeacuteticardquo do
texto que diga-se sempre foi a leitura desejaacutevel para uma obra que se propotildee como um
poema tenha ela a funccedilatildeo que tiver em determinado contexto soacutecio-cultural Assim
ainda que se opte por coerecircncia teoacuterico-ideoloacutegica pela referecircncia enfaacutetica de que se
trata de ldquoleiturardquo e natildeo de algo inerente ao texto permanece viva a escolha pela anaacutelise
voltada a mostrar o alcance das intrincadas relaccedilotildees entre som e sentido encontraacuteveis
num poema
Previamente agraves observaccedilotildees sobre a anaacutelise de Arrojo leia-se o poema de
Drummond
61 Vejam-se como exemplos entre tantos estudos do linguista os relativos a poemas de Dante Bellay
Shakespeare Blake Yeats Houmllderlin Baudelaire e Poe (jaacute mencionado) enfeixados na antologia
(tambeacutem jaacute referida) Poeacutetica em accedilatildeo (1990)
61
Aacuteporo
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape
Que fazer exausto
em paiacutes bloqueado
enlace de noite
raiz e mineacuterio
Eis que o labirinto
(oh razatildeo misteacuterio)
presto se desata
em verde sozinha
antieuclidiana
uma orquiacutedea forma-se
A respeito do poema Arrojo observa (apoacutes decorrida grande parte de sua longa
anaacutelise)
O jogo da leitura poeacutetica natildeo deve descartar nenhum fragmento que possa ser
empregado na construccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo [] No ldquoAacuteporordquo um destes
elementos eacute o nuacutemero de siacutelabas do uacuteltimo verso ldquouma orquiacutedea forma-serdquo que se
destaca dos demais por ser o uacutenico a contar som seis siacutelabas Portanto exatamente
o verso em que se forma a orquiacutedeaaacuteporo62
eacute tambeacutem ldquoantieuclidianordquo na medida
em que subverte a organizaccedilatildeo do proacuteprio ldquoAacuteporordquo
Sobre a observaccedilatildeo um comentaacuterio a interpretaccedilatildeo ainda que interessante
encerra um erro de leitura evidenciando-se que as caracteriacutesticas do texto exigem
62 A autora usa as combinaccedilotildees ldquoorquiacutedeaaacuteporordquo e ldquoinsetoaacuteporordquo em decorrecircncia dos muacuteltiplos sentidos
do termo ldquoaacuteporordquo (do grego aacuteporos ldquointransponiacutevel sem saiacuteda difiacutecil inelutaacutevelrdquo) que tanto pode
significar ldquosituaccedilatildeo sem saiacutedardquo como ldquoinseto himenoacutepterordquo e ainda (como observa Arrojo com base no
Dicionaacuterio contemporacircneo da liacutengua portuguesa de Caldas Aulete (Lisboa 1948) referir-se a ldquoum tipo
de planta da famiacutelia das orquiacutedeas solitaacuteria geralmente esverdeadardquo
62
atenccedilatildeo cuidado e propriedade na ldquoleitura poeacuteticardquo O verso apontado como
apresentando seis siacutelabas pode perfeitamente ser lido como sendo uma redondilha
menor agrave semelhanccedila dos demais versos do poema
U ma or quiacute dea for ma-se
1 2 3 4 5
Contamos portanto ateacute a uacuteltima tocircnica do verso cinco siacutelabas considerando-se
a esperada elisatildeo entre as vogais aacutetonas de ldquoma orrdquo e a habitual leitura de ldquodeardquo como
ditongo Dada a normalidade da leitura e da contagem dela decorrente natildeo haacute nenhuma
razatildeo para que se veja tal verso como hexassiacutelabo mesmo porque a leitura do conjunto
de heptassiacutelabos sugere (para natildeo dizer ldquodeterminardquo) pela sequecircncia riacutetmica que esse
verso tambeacutem seja lido como tal Haacute muitos casos em que a regularidade meacutetrica
empregada pelo poeta exige mais flexibilidade na leitura para que se mantenha e isso eacute
um procedimento usual em composiccedilatildeo de poesia expedientes de ditongaccedilatildeo de hiatos
e elisotildees por vezes forccediladas satildeo aceitas em funccedilatildeo da percepccedilatildeo do conjunto riacutetmico-
meacutetrico articulado (e observado) no poema Uma evidenciaccedilatildeo assim entendo de que
as anaacutelises envolvem a observaccedilatildeo de aspectos intratextuais ainda que estes sejam
ldquorecriadosrdquo por meio da leitura
Acerca do mesmo verso diz ainda Arrojo
Outro fragmento que se destaca nesse verso eacute o pronome se que encerra o poema
[] o que chama a atenccedilatildeo eacute sua posiccedilatildeo encliacutetica numa situaccedilatildeo em que a
proacuteclise [] seria mais natural [] Visualmente o hiacutefen que separa o ldquoserdquo do
verbo (e do verso) pode enfatizar a sugestatildeo do extravazar O ldquoserdquo poderia
representar a relaccedilatildeo estabelecida entre criador e objeto criado entre o insetoaacuteporo
e a orquiacutedeaaacuteporo Relaccedilatildeo essa que sugere quase um expelir um parto o
momento mesmo em que a orquiacutedea sai da terra
E com uma sequecircncia analiacutetica que apresenta pontos em comum com aquela
realizada por Pignatari em seu ensaio criacutetico ldquoAacuteporordquo (iniciado com o subtiacutetulo ldquoUm
inseto semioacuteticordquo (Contracomunicaccedilatildeo 1973 131) Arrojo prossegue
63
Tal interpretaccedilatildeo pode ser ainda enriquecida pela observaccedilatildeo de que a siacutelaba ldquoserdquo
se encontra tambeacutem no centro do substantivo ldquoinsetordquo o inseto ldquoconteacutemrdquo aquilo
que se transforma em orquiacutedea e que nasce depois de um processo quase doloroso
Se prestarmos atenccedilatildeo aos demais versos do poema podemos observar que a siacutelaba
ldquoserdquo ou variaccedilotildees dela (ieacute sibilante + vogal e) satildeo constantes no poema No
primeiro quarteto o ldquoserdquo de ldquoinsetordquo se repete em ldquosemrdquo nos versos 2 e 4 e surge
a variaccedilatildeo ldquoesrdquo em ldquoescaperdquo No segundo quarteto concentram-se diversas
variaccedilotildees em que o s desaparece e eacute substituiacutedo por outras sibilantes ldquofazerrdquo
ldquoexaustordquo ldquoenlacerdquo ldquoraiz erdquo No primeiro terceto ldquoserdquo volta a ocorrer em sua
forma original aleacutem da variaccedilatildeo ldquoesrdquo ldquopresto se desatardquo Em seguida a siacutelaba ldquoserdquo
volta a se repetir somente no uacuteltimo verso Tais ocorrecircncias poderiam sugerir os
vaacuterios caminhos percorridos pelo insetocriador em sua tentativa de chegar agrave forma
ideal da orquiacutedeaaacuteporo []
Afirmaccedilotildees como ldquosiacutelaba ou variaccedilotildees dela constantes no poemardquo ldquoa siacutelaba
volta a se repetir volta a ocorrerrdquo ou ldquotais ocorrecircncias poderiam sugerirrdquo revelam que
natildeo obstante o esforccedilo para que tudo seja visto como criado pela leitura as referecircncias a
ocorrecircncias no texto integram o processo de anaacutelise e de ldquoproduccedilatildeo de sentidordquo Poder-
se-ia dizer que as referecircncias satildeo inevitaacuteveis porque a linguagem que usamos estaacute
imbuiacuteda do logocentrismo que pressupotildee os existentes independentes fixos etc Mas
creio natildeo leva a nada a permanecircncia ciacuteclica interminaacutevel na sustentaccedilatildeo de
inexistecircncias antes satildeo bastante interessantes do ponto de vista de operacionalidade no
labor e na criacutetica de poesia as decorrecircncias (possivelmente generalizantes) dos
resultados obtidos pelas anaacutelises de poemas assim como a simples apreciaccedilatildeo
propiciada pela ldquoleitura poeacuteticardquo envolvendo a observaccedilatildeo de padrotildees de relaccedilatildeo entre
som e sentido e outros identificaacuteveis como recorrentes em poesia
De todo modo a iniciativa da anaacutelise exemplifica a necessidade ou
inevitabilidade de superar o imobilismo que a total relativizaccedilatildeo das identidades textuais
poderia ocasionar ao natildeo deixar de buscar num poema as possibilidades que o texto
mesmo revela agrave leitura ainda que as noccedilotildees a respeito de poesia ou literatura sejam
mutaacuteveis atraveacutes dos tempos e variaacuteveis atraveacutes dos espaccedilos e contextos culturais
vale o que vemos em nosso meio e com nosso modo de ver a universalidade ou
64
imutabilidade de conceitos natildeo satildeo penso imprescindiacuteveis para que exista um ldquogecircnerordquo
ou um modo de ser da linguagem ainda que mutante
A intenccedilatildeo foi fazer nesta parte do trabalho certo esforccedilo para a discussatildeo
acerca da linguagem poeacutetica visando agrave compreensatildeo de princiacutepios de traduccedilatildeo de
poesia e agrave aplicaccedilatildeo de algumas referecircncias para tanto Entre as muitas teorias sobre a
linguagem e sobre a traduccedilatildeo (na proacutexima etapa deste capiacutetulo seraacute abordado
brevemente o amplo panorama teoacuterico relativo agrave atividade tradutoacuteria) elegeu-se certo
estruturalismo e para estabelecimento de um confronto criacutetico com algumas concepccedilotildees
que dele advecircm e seratildeo utilizadas neste estudo foram apresentados alguns aspectos do
pensamento poacutes-estruturalista desconstrucionista Com o intuito de refletir sobre o
impacto do desconstrucionismo na teoria na praacutetica e na avaliaccedilatildeo da tarefa de traduccedilatildeo
poeacutetica seratildeo apontadas a seguir duas colocaccedilotildees de especial pertinecircncia tendo-se em
conta nossos propoacutesitos gerais
Leia-se primeiro o ldquoAbstractrdquo que acompanha o artigo ldquoDoubts about
deconstruction as a general theory of translationrdquo do teoacuterico da traduccedilatildeo Anthony Pym
apresentado aqui em traduccedilatildeo integrante da publicaccedilatildeo do artigo em inglecircs pela revista
brasileira TradTerm (1995)
A comparaccedilatildeo de quatro versotildees de uma frase de Derrida coloca a questatildeo da
redaccedilatildeo da filosofia desconstrutivista com a teoria da traduccedilatildeo Levantam-se
duacutevidas acerca da pertinecircncia geral da desconstruccedilatildeo da possibilidade de expandir
o alcance de seus insights para aleacutem da anaacutelise do texto-fonte e das razotildees de
uma certa inferiorizaccedilatildeo residual da traduccedilatildeo Sugere-se no espiacuterito de uma
discordacircncia paciacutefica que a teoria da traduccedilatildeo natildeo seraacute seriamente abalada pelo
fato dos textos-fonte constituiacuterem pontos de partida semanticamente instaacuteveis
(1995 11)
Sem que se pretenda alongar demais a referecircncia ao artigo e a seu conteuacutedo eacute
uacutetil que se destaque a frase final desse Resumo ldquoa teoria da traduccedilatildeo natildeo seraacute
seriamente abalada []rdquo e que sejam citados alguns fragmentos do ensaio
65
There is some irony in the way that the critique of origins tends to invest all its
efforts on the level of origins to the detriment of efficient formal or final purposes
[hellip] A critique of origins is inevitably locked into a backward vision to the
detriment of present action or future agreements In its psychoanalytic metaphors
this critique focuses on the imaginary status of initial causes but forgets that the
analysts final cause is to help cure someone Deconstruction might perhaps be able
to say something about how a translator should accept semantic plurality [hellip] or
how a user should assess a translation in terms of this plurality But as soon as the
specific problem of anterior origins becomes the problem of translation
deconstruction reduces translation to a form of source-text analysis In fact it turns
translation into what could only be an inferior form of the kind of readings
undertaken by deconstruction itself [hellip]
The problem with deconstructionist propositions like those based on the obverse
dominance of target-side or final causes is that they are decidedly unhelpful once
agreed to One eventually has to ask So what and then get on with solving
concrete problems [hellip]
In a world where everything is to constructed deconstructionist theory can and
should raise passing doubts on the way to concrete action But translation theory
has a lot of other work to do awaiting the philosopheracutes return from Derridean
islands (1995 15-17)
Em suma o tradutor em seu aacuterduo ofiacutecio teria problemas mais ldquoconcretosrdquo com
que lidar aleacutem das questotildees da pluralidade semacircntica63
ou da instabilidade do
significado que teriam reduzido a traduccedilatildeo a uma forma de anaacutelise do texto-fonte
Sobre a questatildeo da utilidade ou das contribuiccedilotildees da desconstruccedilatildeo e considerando a
argumentaccedilatildeo de Pym Paulo Henriques Britto ndash autor da talvez mais perspicaz criacutetica agrave
visatildeo desconstrucionista no Brasil ndash diz em seu artigo ldquoDesconstruir para quecircrdquo64
[] O grande meacuterito da desconstruccedilatildeo portanto eacute ter levantado discussotildees que nos
tornou a todos ndash independentemente da posiccedilatildeo que adotemos ndash mais conscientes
da diferenccedila entre o que devem ser as metas da atividade tradutoacuteria e o que na
praacutetica se pode exigir de uma traduccedilatildeo real Hoje por exemplo afirmar que uma
63 Sobre esta fundamental postulaccedilatildeo de Derrida ver seu ensaio ldquoDes tours de Babelrdquo em Psycheacute
(19871998) Haacute ediccedilatildeo brasileira em traduccedilatildeo de Junia Barreto DERRIDA J Torres de Babel Belo
Horizonte UFMG 2006 64 In Cadernos de traduccedilatildeo vol 2 Florianoacutepolis UFSC 2001
66
determinada traduccedilatildeo de um determinado texto eacute a uacutenica correta ou a uacutenica
possiacutevel eacute uma demonstraccedilatildeo de absoluta ingenuidade teoacuterica Talvez a melhor
maneira de ver a desconstruccedilatildeo seja encaraacute-la como uma vertente de pensamento
de valor puramente negativo boa para apontar para as limitaccedilotildees de conceitos
correntes poreacutem incapaz de propor alternativas viaacuteveis []
Sem duacutevida a criacutetica desconstrutivista nos leva a relativizar vaacuterios conceitos ndash ou
seja encaraacute-los tais como satildeo como ficccedilotildees e natildeo realidades Poreacutem natildeo podemos
abrir matildeo dessas ficccedilotildees ndash e ldquonatildeo podemosrdquo aqui natildeo tem o sentido deocircntico de
ldquonatildeo devemosrdquo trata-se de uma impossibilidade praacutetica Conceitos como
ldquosignificadordquo ldquooriginalrdquo e ldquoequivalecircnciardquo satildeo pressupostos incontornaacuteveis das
praacuteticas textuais por mais problemaacuteticos que sejam Devemos criticaacute-los estar
sempre atentos para seu caraacuteter construiacutedo mas deles natildeo podemos abrir matildeo O
jogo do logocentrismo eacute em uacuteltima anaacutelise o jogo da linguagem Recusar-se a
jogaacute-lo eacute condenar-se ao silecircncio
Para chegar a essas conclusotildees ndash com as quais mantenho certo grau de
concordacircncia ndash Britto mostrou em seu artigo a divergecircncia entre a criacutetica feita por R
Arrojo (que ele considera ldquotalvez a mais destacada defensora da desconstruccedilatildeo na aacuterea
da teoria da traduccedilatildeo no Brasilrdquo) a pressupostos ldquoestigmatizados como lsquologocecircntricosrsquordquo
e o proacuteprio discurso tradutoloacutegico realizado por ela no artigo ldquoAs questotildees teoacutericas da
traduccedilatildeo e a desconstruccedilatildeo do logocentrismo algumas reflexotildeesrdquo65
Nele Arrojo cita
em portuguecircs vaacuterios trechos de obras de F Nietzche e G Mounin referindo-se a eles
como se fossem os textos dos proacuteprios autores sem mencionar quem realizou as
traduccedilotildees utilizadas Diante disso Brito considera que
[] para Arrojo a traduccedilatildeo de um texto pode ser considerada equivalente ao
original [] o que lhe interessa no momento satildeo os significados as ideias que
Nietzsche e Mounin exprimiram em seus textos e ela considera que esses
significados ou ideias foram transpostos para o portuguecircs nas traduccedilotildees de modo
razoavelmente confiaacutevel Ao tratar traduccedilotildees como originais e atribuiacute-las aos
autores dos originais Arrojo assume plenamente a visatildeo logocecircntrica [] ndash
traduccedilotildees satildeo textos equivalentes a originais
65 In ARROJO R (org) O signo desconstruiacutedo implicaccedilotildees para a traduccedilatildeo a leitura e o ensino
Campinas Pontes 2003 p 71-79
67
Em segundo lugar vemos que Arrojo utiliza expressotildees como ldquoMounin crecircrdquo e
ldquopara Mouninrdquo Ora se Arrojo pode atribuir crenccedilas e opiniotildees a Mounin com
base na sua leitura do texto de Mounin eacute porque a seu ver o texto de Mounin
reflete as intenccedilotildees conscientes de Mounin
[] na sua praacutetica textual Arrojo segue o pressuposto [de que] o significado eacute uma
propriedade estaacutevel do texto que pode ser identificada com a intenccedilatildeo consciente
do autor ao escrevecirc-lo e que independe das circunstacircncias do leitor Por fim
constatamos tambeacutem que para Rosemary Arrojo o significado pode ser
considerado um objeto distinto do estilo do texto em que ele aparece Caso
contraacuterio ela teria citado Nietzsche e outros autores no original []
Vemos portanto que para os fins de um artigo cujo tema eacute a desconstruccedilatildeo do
logocentrismo Arrojo subscreve justamente aqueles aspectos da visatildeo logocecircntrica
que segundo ela devem ser desconstruiacutedos A autora naturalmente poderia
argumentar que se trata de uma aproximaccedilatildeo apenas que na verdade ela sabe que
a traduccedilatildeo de Mounin feita pelo tradutor brasileiro natildeo eacute a mesma coisa que o texto
de Mounin tal como sabe que o texto de Mounin natildeo eacute uma representaccedilatildeo estaacutevel
dos significados e intenccedilotildees conscientes de Mounin mas que para os fins a que se
propotildee no artigo em questatildeo ela pode perfeitamente admitir essas ficccedilotildees ndash a
ficccedilatildeo do original estaacutevel e consciente e a ficccedilatildeo da traduccedilatildeo equivalente Pois esta
hipoteacutetica defesa de Arrojo eacute justamente o ponto a que quero chegar Todas as
criacuteticas ao logocentrismo apontam para fatos inegaacuteveis Tem razatildeo Arrojo quando
chama a atenccedilatildeo para a impossibilidade de traduccedilotildees perfeitamente literais em que
a figura do tradutor eacute de todo invisiacutevel Tambeacutem eacute verdade que natildeo eacute possiacutevel
determinar com exatidatildeo qual o significado uacutenico e preciso de um determinado
texto nem tampouco identificar um tal significado com a intenccedilatildeo consciente do
autor E eacute evidente que eacute ingenuidade acreditar que o significado eacute uma entidade
abstrata que pode ser destacada dos outros elementos do texto como o estilo O
problema poreacutem eacute que para a grande maioria dos fins praacuteticos que envolvem a
utilizaccedilatildeo de textos soacute podemos agir se adotarmos certos pressupostos
aproximaccedilotildees que embora natildeo correspondam agrave realidade dos fatos satildeo
imprescindiacuteveis (2001 42-48)
Mais uma vez a longa citaccedilatildeo se justifica pela acuidade dos argumentos e por
sua total conveniecircncia para o encerramento desta parte de nosso estudo Outros textos
do mesmo autor seratildeo evocados nos proacuteximos toacutepicos ao tratarmos propriamente da
traduccedilatildeo poeacutetica
68
B2 Consideraccedilotildees sobre a impossibilidade da traduccedilatildeo poeacutetica
The death of Irish
The tide gone out for good
Thirty-one words for seaweed
Whiten on the foreshore
Aidan Carl Mathews
A morte do Irlandecircs
A mareacute vazia de vez
Trinta e uma palavras para alga
Empalidecem na praia
(Trad Marcelo Taacutepia66
)
ldquoSegundo Jakobson a estrateacutegia do traduzir impotildee [] um ldquomodus operandirdquo []
distinto a este ldquomodus operandirdquo Jakobson denomina ldquotransposiccedilatildeo criativardquo
(caso em que eu falo de lsquore-criaccedilatildeorsquo ou lsquotranscriaccedilatildeorsquo e
Meschonnic de lsquotraduccedilatildeo-textorsquo) []
Haroldo de Campos67
Jaacute se fez referecircncia neste trabalho agrave hipoacutetese proposta nos anos 1930 pelos
linguistas Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf tese que se tornou durante muito
tempo referecircncia para o relativismo linguiacutestico Segundo a tatildeo conhecida hipoacutetese
Sapir-Whorf as diferentes culturas caracterizam-se por universos mentais muito
distintos natildeo soacute expressos mas tambeacutem determinados pelas diferentes liacutenguas que lhes
satildeo proacuteprias Assim o estudo das estruturas de uma liacutengua pode levar agrave elucidaccedilatildeo das
concepccedilotildees de mundo a que ela se liga Esta proposiccedilatildeo suscitou o entusiasmo de uma
geraccedilatildeo inteira de antropoacutelogos psicoacutelogos e linguistas nas deacutecadas que se seguiram
Do entendimento que ela implica deduz-se a natildeo-correspondecircncia entre os diferentes
idiomas e as consequentes visotildees diacutespares de mundo condenando-se a ideia da traduccedilatildeo
agrave impossibilidade por princiacutepio
66 O poema refere-se ao processo de ldquomorterdquo do idioma irlandecircs que conta com 31 palavras para designar
variedades de alga coerentemente com a cultura da ilha In A forja ndash alguma poesia irlandesa Ed
biliacutengue trad M Taacutepia Satildeo Paulo Olavobraacutes 2003 67 CAMPOS H ldquoDa transcriaccedilatildeo poeacutetica e semioacutetica da operaccedilatildeo tradutorardquo Conferecircncia apresentada
no II Congresso Brasileiro de Semioacutetica Satildeo Paulo 1985
69
Jakobson como jaacute se aludiu esforccedilou-se por introduzir uma visatildeo menos
pessimista expressa em seu referencial ensaio ldquoAspectos linguiacutesticos da traduccedilatildeordquo
Diz ele
A praacutetica e a teoria da traduccedilatildeo abundam em problemas complexos de quando em
quando fazem-se tentativas de cortar o noacute goacuterdio proclamando o dogma da
impossibilidade da traduccedilatildeo ldquoO Sr Todo-Mundo esse loacutegico naturalrdquo tatildeo
vivamente imaginado por B L Whorf teria supostamente de raciocinar da
seguinte maneira ldquoOs fatos satildeo diferentes para pessoas cuja formaccedilatildeo linguiacutestica
lhes fornece uma formulaccedilatildeo diferente para expressar tais fatosrdquo68
Nos primeiros
anos da revoluccedilatildeo russa existiam visionaacuterios fanaacuteticos que advogaram[] uma
revisatildeo radical da linguagem tradicional e em particular a supressatildeo de expressotildees
enganosas como o ldquonascerrdquo ou ldquopocircrrdquo do Sol Entretanto [] eacute faacutecil para noacutes
passar de nossas conversaccedilotildees costumeiras sobre o Sol nascente ou poente agrave
representaccedilatildeo da rotaccedilatildeo da Terra [] porque qualquer signo pode ser traduzido
num outro signo em que ele se nos apresenta mais plenamente desenvolvido e mais
exato []
Toda experiecircncia cognitiva pode ser traduzida e classificada em qualquer liacutengua
existente Onde houver uma deficiecircncia a terminologia poderaacute ser modificada por
empreacutestimos calccedilos neologismos transferecircncias semacircnticas e finalmente por
circunloacutequios [] (1973 66-67)
Sobre a questatildeo da equivalecircncia Jakobson afirma que
[] no niacutevel da traduccedilatildeo interlingual69
natildeo haacute comumente equivalecircncia completa
entre as unidades de coacutedigo ao passo que as mensagens podem servir como
interpretaccedilotildees adequadas das unidades de coacutedigo ou mensagens estrangeiras []
No caso da traduccedilatildeo poeacutetica apoacutes sustentar (conforme citaccedilatildeo jaacute incluiacuteda no
iniacutecio deste estudo) que ldquoem poesia as equaccedilotildees verbais satildeo elevadas agrave categoria de
princiacutepio construtivo do textordquo e de que ldquoo trocadilho ou [] a paronomaacutesia reina na
68 Referecircncia a Benjamin Lee Whorf Language thought and reality Massachusetts Cambridge 1956
p 235 69 O linguista distingue trecircs espeacutecies de traduccedilatildeo intralingual ou reformulaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo dos signos
verbais por meio de outros signos da mesma liacutengua) interlingual ou traduccedilatildeo propriamente dita
(interpretaccedilatildeo dos signos verbais por meio de alguma outra liacutengua) e traduccedilatildeo intersemioacutetica
(interpretaccedilatildeo dos signos verbais por meio de sistemas de signos natildeo-verbais)
70
arte poeacuteticardquo o linguista considera que ldquoquer esta dominaccedilatildeo seja absoluta ou limitada
a poesia por definiccedilatildeo eacute intraduziacutevelrdquo Sendo assim para ele ldquosoacute eacute possiacutevel a
transposiccedilatildeo criativardquo (1973 72)
A expressatildeo ldquotransposiccedilatildeo criativardquo daria origem agrave palavra ldquotranscriaccedilatildeordquo
designadora do conceito de traduccedilatildeo poeacutetica segundo Haroldo de Campos que
examinou a questatildeo da ldquofragilidaderdquo de uma ldquoobra de arte verbalrdquo e propotildee do mesmo
modo o caminho de transcriaacute-lo Veja-se oportunamente a teoria da transcriaccedilatildeo de
Campos em toacutepico a ela dedicado neste estudo
71
B3 Breve panorama teoacuterico e histoacuterico da traduccedilatildeo
George Steiner em seu jaacute ldquoclaacutessicordquo livro sobre traduccedilatildeo After Babel (1973)
diz70
que ldquoA traduccedilatildeo eacute necessaacuteria em razatildeo de os seres humanos falarem diferentes
liacutenguasrdquo (2005 77) A afirmaccedilatildeo aparentemente oacutebvia implica a noccedilatildeo de que sendo
necessaacuteria seraacute realizada independentemente de suas dificuldades ou mesmo de ser
ldquopossiacutevelrdquo ou ldquoimpossiacutevelrdquo Desde a Antiguidade haacute a praacutetica da traduccedilatildeo assim como
a reflexatildeo sobre ela Ao longo da histoacuteria diferentes modos de visatildeo da atividade se
sobrepotildeem se contradizem se complementam sem que haja qualquer perspectiva de
uma teoria uacutenica que venha a se converter em referencial universal para a praacutetica da
traduccedilatildeo Embora cada uma das teorias existentes possa reivindicar a superioridade
sobre as demais o que permanece eacute um conjunto intrincado e muito amplo de
formulaccedilotildees e consequentemente de possibilidades de metodologia para a atividade
tradutoacuteria Enquanto se pode ter a ideia de que sempre a transposiccedilatildeo de um sentido de
um idioma a outro seraacute possiacutevel pela ldquosubstituiccedilatildeo do material textual de uma liacutengua
pelo material textual equivalente em outra liacutenguardquo (J C Catford)71
agrave semelhanccedila de
vagotildees de um trem de carga que rearranjados da forma que for necessaacuteria conduziratildeo
todo o ldquoconteuacutedordquo da mensagem do ponto de partida ao ponto de chegada (Eugene
Nida)72
pode-se concluir pela impossibilidade da traduccedilatildeo (hipoacutetese Humboldt ndash Sapir-
Whorf73
) ou por uma oacuteptica menos ldquopessimistardquo (mesmo incorporando a ideia de
impossibilidade) que ofereceraacute saiacuteda (Jakobson) tambeacutem se pode questionar a ideia de
traduccedilatildeo relativizando o significado como algo absolutamente incorpoacutereo e inacessiacutevel
(Derrida) Com a permanecircncia num conjunto de historicidade complexa de uma
extensa pluralidade de teorias mais antigas e mais novas seraacute sempre necessaacuterio eleger
aquela ou aquelas que melhor se prestem a determinadas perspectivas de realizaccedilatildeo
70 Utilizaremos para as citaccedilotildees de Steiner a ediccedilatildeo brasileira de seu livro Depois de Babel questotildees de
linguagem e traduccedilatildeo (Curitiba UFPR 2005) em traduccedilatildeo de Carlos Alberto Faraco 71 CATFORD J C A linguistic theory of translation Oxford Oxford University Press 1965 Traduccedilatildeo
brasileira Uma teoria linguiacutestica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1980 72 NIDA E Language structure and translation California Stanford University Press 1975 73
Wilhelm von Humboldt argumentou que as diferentes liacutenguas determinam constroem ldquovisotildees de
mundordquo (Weltanschauungen) diversas a ideia foi desenvolvida posteriormente pelos linguistas norte-
americanos Edward Sapir e Benjamin Whorf
72
Steiner considera que a ldquobibliografia sobre teoria praacutetica e histoacuteria da traduccedilatildeo
[] pode ser distribuiacuteda por quatro periacuteodosrdquo (259) embora natildeo haja linhas divisoacuterias
niacutetidas O primeiro por ele delimitado corresponde a um periacuteodo de dezenove seacuteculos
estende-se
[] do famoso preceito de Ciacutecero que recomenda em seu Libellus de optimo
genere oratorum de 46 a C que natildeo se traduza verbum pro verbo (ldquopalavra por
palavrardquo) e de sua reiteraccedilatildeo por Horaacutecio na Ars Poetica aproximadamente 20
anos mais tarde ateacute o enigmaacutetico comentaacuterio de Houmllderlin sobre suas proacuteprias
traduccedilotildees de Soacutefocles (1804)
O autor baseia-se para sua definiccedilatildeo desse imenso intervalo no fato de que
nele ldquoanaacutelises e pronunciamentos seminais brotam diretamente do empreendimento do
tradutorrdquo e destaca no periacuteodo
as observaccedilotildees e polecircmicas de Satildeo Jerocircnimo o magistral Sendbrief vom
Dolmetschen de Lutero (1530) os comentaacuterios de Du Bellay Montaigne e
Chapman os de Jacques Amyot para os leitores de sua traduccedilatildeo de Plutarco [] as
elaboraccedilotildees de Dryden sobre Horaacutecio Quintiliano e Jonson as de Pope sobre
Homero as de Rochefort sobre a Iliacuteada A teoria de Floacuterio [] os pontos de vista
gerais de Cowley [] o De interpretatione recta de Leonardo Bruni [] O tratado
de Huet [] (259-260)
Algumas notaccedilotildees que faccedilo de marcos (entre outros possiacuteveis) nessa histoacuteria
Ciacutecero inicia a histoacuteria da tradutologia distingue entre ut interpres (mero
tradutor) e ut orator (orador escritor) rechaccedilando a traduccedilatildeo literal (pro verbo
uerbum) Nec verbum verbo reddere fidus interpres (ldquonatildeo se preocupe em verter
palavra por palavra como um fiel inteacuterpreterdquo) Mas antes no seacutec VI a C quando a
liacutengua persa dominava o oriente os targumistas (targum traduccedilatildeo interpretaccedilatildeo)
ajudavam o puacuteblico a entender os versos biacuteblicos traduzindo-os oralmente e
comentando-os ndash cite-se o lema de Judaacute bem Ilai ldquoo que traduz literalmente eacute um
falsaacuterio o que acrescenta algo eacute um blasfemordquo No seacuteculo III a C judeus integrados agrave
cultura heleniacutestica do Mediterracircneo centro-oriental ocasionam a necessidade de
73
traduccedilatildeo de textos sagrados para o grego por dificuldade de leitura do hebraico surge o
primeiro caso histoacuterico de traduccedilatildeo bem-sucedida ndash a Biacuteblia na ldquoversatildeo dos setentardquo
ldquo72 anciatildeos traduzem em 72 dias inspirados pela divindaderdquo No final do seacuteculo IV
aparece a Vulgata Satildeo Jerocircnimo procede agrave revisatildeo dos textos biacuteblicos latinos existentes
a partir do grego e realiza a traduccedilatildeo do velho testamento com base no texto hebraico
propotildee que ldquoEadem igitur interpretandi sequenda est regula quam saepe diximus ut
ubi non sit damnum in sensu linguae in quam transferimus εὐφωνία et proprietas
conserveturrdquo74
(ldquoAssim pois deve-se seguir a regra de traduccedilatildeo que jaacute indicamos vaacuterias
vezes quando natildeo redunde em detrimento do sentido haacute que se conservar a eufonia e as
caracteriacutesticas proacuteprias da liacutengua que se traduzrdquo) Na Idade Meacutedia Maimocircnides formula
concepccedilotildees acerca de procedimentos de traduccedilatildeo que ainda correspondem a uma visatildeo
pragmaacutetica de equivalecircncia adotada por tradutores
O tradutor que pretenda verter literalmente cada vocaacutebulo e apegar-se servilmente
agrave ordem das palavras e frases do original depararaacute com muitas dificuldades e o
resultado apresentaraacute reparos e corruptelas O tradutor teraacute de apreender primeiro
todo o alcance da ideia e reproduzir depois seu conteuacutedo com maacutexima clareza em
outro idioma Mas isto natildeo pode ser realizado sem alterar a disposiccedilatildeo sintaacutetica
sem usar de muitos vocaacutebulos onde soacute havia um ou vice-versa e sem acrescentar
ou suprimir palavras de tal maneira que a mateacuteria resulte perfeitamente inteligiacutevel
na liacutengua para a qual se traduz75
Na Idade Moderna durante o Renascimento destaca-se o problema da traduccedilatildeo
de textos sagrados Lutero e Frei Luis de Leoacuten satildeo partidaacuterios da ldquoliteralidaderdquo (ldquose
pudesse ater-me agrave letra o fariardquo ndash Lutero) haacute preocupaccedilatildeo com a ldquonaturalidaderdquo no
idioma de chegada que levaria a acusaccedilotildees de uso de linguagem profana nos textos
biacuteblicos Em 1533 surge a obra De ratione dicendi de Juan Luis Vives que traz
ldquoquestotildees certamente muito sugestivas para a moderna teoria moderna da traduccedilatildeordquo
(Torre 1994 35) o linguista romeno Coseriu o considera ldquoprecursor da teoria moderna
do traduzirrdquo pelo fato de ele propor o problema da traduccedilatildeo como uma atividade
74 Hieronymus Epistolae 4 106 55 75 A partir da versatildeo ao espanhol de Santoyo (Santoyo J C Teoriacutea y criacutetica de La traduccioacuten Antologiacutea
Barcelona Bellaterra 1987) que por sua vez traduziu da versatildeo inglesa de Stitskin (Stitskin L D
Letters of Maimonides New York Yeshiva University Press 1977) Apud Torre E Teoria de La
traduccioacuten literaacuteria Madri Sintesis 1994 p 24
74
diferenciada para cada tipo de texto suas colocaccedilotildees centrais vatildeo ao encontro de
proposiccedilotildees como as de Nida (Theory and Practice of Translation 1969) para ele a
traduccedilatildeo eacute ldquouma transferecircncia de palavras de uma liacutengua a outra conservando-se o
sentidordquo76
Distingue trecircs tipos de traduccedilatildeo
Em algumas versotildees atende-se somente ao sentido (solus spectatur sensus) em
outras somente agrave construccedilatildeo e ao estilo [] como se por exemplo algueacutem
tentasse trasladar a outras liacutenguas os discursos de Demoacutestenes ou de Ciacutecero ou os
poemas de Homero ou de Virgiacutelio respeitando fielmente todas as suas
caracteriacutesticas e nuanccedilas [] Um terceiro tipo de versatildeo eacute aquele em que se tecircm
em conta tanto os conteuacutedos 77
como as palavras (et res et verba) isto eacute quando as
palavras vecircm a adicionar forccedila e graccedila agraves ideias seja isoladamente ou em grupos
ou na totalidade do discurso78
Mencione-se tambeacutem como referecircncia especialmente marcante a proposiccedilatildeo de
Alexander Fraser Tytler (1792) comumente citadas como a manifestaccedilatildeo modelar da
concepccedilatildeo logocecircntrica da traduccedilatildeo79
1 A traduccedilatildeo deve reproduzir em sua totalidade a ideia do texto original
2 O estilo da traduccedilatildeo deve ser o mesmo do original
3 A traduccedilatildeo deve ter toda a fluecircncia e a naturalidade do texto original
E ainda o ldquodecisivo ensaiordquo (Steiner 2005 260) de Friedrich Schleirmacher80
ldquoUeber die verschiedenen Methoden des Uebersetzensrdquo (ldquoSobre os diferentes meacutetodos
de traduccedilatildeordquo conforme traduccedilatildeo brasileira)81
de 1813 Schleiermacher distingue
primeiramente ldquoduas formasrdquo que teriam sido inventadas de ldquotravar conhecimento com
as obras de liacutenguas desconhecidasrdquo ndash a ldquoimitaccedilatildeordquo e a ldquoparaacutefraserdquo
76 Apud TORRE 1994 p35 77 Apud ARROJO R 2003 A partir de The principles of translation (1791) apud Bassnet-McGuire
Susan Translation studies p 63 78 Id ib 79 Vejam-se as referecircncias agraves concepccedilotildees desconstrucionistas neste trabalho Outras observaccedilotildees sobre o assunto seratildeo incluiacutedas adiante 80 O filoacutesofo Shleiermacher (1768-1834) foi um dos criadores do Romantismo alematildeo ao lado dos irmatildeos
August e Friedrich Schlegel do poeta Novalis do autor de obras dramaacuteticas Ludwig Tieck e do tambeacutem
filoacutesofo Schelling todos unidos em torno da revista ldquoAtheanumrdquo em 1797 81 SCHLEIRMACHER F Traduccedilatildeo de Margarete Von Muumlhlen Poll In Claacutessicos da teoria da traduccedilatildeo
vol I ndash Alematildeo-portuguecircs Florianoacutepolis UFSC 2001 p 27
75
A paraacutefrase quer dominar a irracionalidade das liacutenguas mas somente de forma
mecacircnica [] O parafraseador lida com os elementos de ambas as liacutenguas como se
fossem sinais matemaacuteticos que se deixam levar aos mesmos valores por adiccedilatildeo ou
subtraccedilatildeo e nem o espiacuterito da liacutengua traduzida nem o da liacutengua original
conseguem aparecer nesse procedimento [] Em contrapartida a imitaccedilatildeo se
curva ante a irracionalidade das liacutenguas [] natildeo restaria outra coisa com a
diversidade das liacutenguas com a qual tantas outras diversidades estatildeo ligadas a natildeo
ser esboccedilar uma imitaccedilatildeo um todo composto de elementos visivelmente diferentes
dos do original que contudo aproximasse o seu efeito daquele tanto quanto as
diferenccedilas de material ainda lhe permitissem (2005 41-43)
Mas a contribuiccedilatildeo mais importante do pensador alematildeo foi a distinccedilatildeo entre
caminhos a serem seguidos pelo ldquoverdadeiro tradutorrdquo (ldquoaquele que realmente pretende
levar as encontro essas duas pessoas tatildeo separadas seu autor e seu leitor []rdquo) ldquo[] que
caminhos ele [o verdadeiro tradutor] pode tomar A meu ver soacute existem dois Ou o
tradutor deixa o autor em paz e leva o leitor ateacute ele ou deixa o leitor em paz e leva o
autor ateacute elerdquo (2001 43)
Com a obra de Tytler e a de Schleiermacher encerra-se segundo Steiner o
primeiro periacuteodo da histoacuteria bibliograacutefica da traduccedilatildeo caracterizada essencialmente por
uma orientaccedilatildeo empiacuterica de ldquoasserccedilotildees e notaccedilotildees teacutecnicas primaacuteriasrdquo iniciando-se
entatildeo o segundo periacuteodo eminentemente teoacuterico e voltado agrave investigaccedilatildeo
hermenecircutica ldquoA questatildeo da natureza da traduccedilatildeo eacute posicionada no interior das teorias
mais gerais da linguagem e da mente [] A abordagem hermenecircutica [] foi iniciada
por Schleiermacher e adotada por A W Schlegel e Humboldtrdquo Steiner atribui a ldquoesse
intercacircmbiordquo relatos dos mais reveladores sobre traduccedilatildeo como os de Goethe
Schopenhauer Matthew Arnold Paul Valeacutery Ezra Pound Walter Benjamin e Ortega y
Gasset entre outros Sobre Arnold mencione-se que em seu ensaio On translating
Homer (1861) ldquosustenta a tese de que toda boa traduccedilatildeo haveria de produzir no leitor de
liacutengua receptora a mesma impressatildeo que produziu o original em sua eacutepoca em seus
primeiros leitoresrdquo enquanto F W Newman (tambeacutem em 1861) ldquodefendia exatamente
o contraacuterio a traduccedilatildeo deveria seguir fielmente as caracteriacutesticas formais do texto
original e o leitor da traduccedilatildeo haveria de ter sempre a impressatildeo de que se encontrava
76
precisamente diante de uma traduccedilatildeo e natildeo diante do texto originalrdquo (Torre 1994 47)
O ldquoperiacuteodo de teorizaccedilatildeo e definiccedilatildeo poeacutetico-filosoacuteficardquo termina para Steiner com Sous
lrsquonvocation de Saint Jeacuterome (1946) de Valery Larbaud
O terceiro periacuteodo eacute marcado pela aplicaccedilatildeo por estudiosos russos e tchecos ndash
ldquoherdeiros do movimento formalistardquo de teorias linguiacutesticas e estatiacutesticas no estudo da
traduccedilatildeo Quine (1960) e Andrej Fedorov (1953) estatildeo entre os autores representativos
do contexto
Um novo periacuteodo se configura para Steiner a partir das proximidades da deacutecada
de 1970 surge um novo interesse na hermenecircutica da traduccedilatildeo despertado pela
redescoberta do texto ldquoDie Aufgabe decircs Uumlbersetzersrdquo (ldquoA tarefa do tradutorrdquo) de
Walter Benjamin (1923) e pela influecircncia de Heidegger e Hans-George Gadamer a
reflexatildeo sobre teoria e praacutetica da traduccedilatildeo se transforma num ponto de contato entre
diferentes disciplinas Quanto agraves ideias de Walter Benjamin dadas a sua complexidade
e a sua importacircncia para a discussatildeo da atividade tradutoacuteria ndash e em especial para a
teorizaccedilatildeo sobre traduccedilatildeo poeacutetica por Haroldo de Campos ndash elas seratildeo referidas
oportunamente ao tratarmos das reflexotildees do brasileiro
77
B31 Panorama atual das teorias da traduccedilatildeo
Eacute recente ndash de 2011 ndash a publicaccedilatildeo de Teorias contemporaneas de la traduccioacuten
de A Pym82
Para uma raacutepida referecircncia ao panorama teoacuterico geral sobre traduccedilatildeo creio
que essa seja a fonte mais conveniente pela proposta de categorizaccedilatildeo e pela
abrangecircncia que encerra
O autor afirma que estruturou seu estudo ldquoem torno de paradigmas e natildeo de
teorias teoacutericos ou escolas individuaisrdquo Propotildee-se a examinar os paradigmas baseados
em ldquoequivalecircnciardquo ldquofinalidaderdquo ldquodescriccedilatildeordquo ldquoindeterminaccedilatildeordquo e ldquolocalizaccedilatildeordquo os
paradigmas aparecem em parte por ordem cronoloacutegica dos anos 1960 agrave atualidade
Quanto agraves teorias anteriores diz Pym ldquoAs teorias novas substituiacuteram as teorias
precedentes Em absoluto Todos os paradigmas continuam funcionando ateacute certo
ponto en contextos profissionais ou acadecircmicos atuais Todos merecem ser objeto de
um estudo geralrdquo
Sobre as teorias enquadradas no primeiro paradigma diz Pym ao apresentar
suas bases conceituais
En el aacutembito de la linguiacutestica se prestoacute atencioacuten al problema del ldquosentidordquo
Saussure habiacutea establecido una distincioacuten entre el ldquovalorrdquo que tiene una palabra
(con relacioacuten al sistema del lenguaje) y su ldquosignificacioacutenrdquo (que tiene en el uso
concreto) Consideremos el ejemplo famoso del ajedrez el valor del caballo es la
suma de todos los movimientos que puede hacer mientras que la significacioacuten de
un caballo en concreto depende de la posicioacuten que ocupe en el tablero en un
momento dado Por tanto el valor depende del sistema que Saussure denominoacute
langue (lengua) mientras que la significacioacuten depende del uso concreto que
Saussure denominoacute parole (habla) Para algunos teoacutericos como Coseriu podriacutea
trazarse una correspondencia entre esos teacuterminos y la distincioacuten en alemaacuten entre
Sinn (significado estable) y Bedeutung (significado momentaacuteneo significacioacuten) Si
una traduccioacuten no puede reproducir el primero podriacutea tal vez transmitir el
segundo En espantildeol por ejemplo no hay palabra equivalente al vocablo ingleacutes
shallow tal como aparece en la expresioacuten shallow water No obstante su
82 Anthony Pym que eacute professor de Traduccedilatildeo e Estudos Interculturais na Universitat Rovira i Virgili em
Tarragona (Catalunha Espanha) publicou o trabalho em liacutengua espanhola O livro encontra-se
disponiacutevel pela internet em site da referida Universidade
78
significacioacuten se puede transmitir empleando dos palabras poco profundo (cf
Coseriu 1978) Asiacute queda demostrado que aunque las estructuras de ambos
idiomas sean diferentes es posible establecer cierta equivalencia
E cita posteriormente algumas das primeiras definiccedilotildees de ldquoequivalecircnciardquo
La traduccioacuten entre lenguas puede definirse como la sustitucioacuten de los elementos
de un idioma el campo [domain] traductivo por elementos equivalentes de otro
idioma la gama [range] traductiva (A G Oettinger 1960 110)
La traduccioacuten podriacutea definirse de la siguiente manera la sustitucioacuten del material
textual en un idioma por material equivalente en otro idioma (Catford 1965 20)
Traducir consiste en reproducir en la lengua meta el equivalente natural maacutes
proacuteximo al mensaje de la lengua de origen (Nida and Taber 1969 12 cf Nida
1959 33)
[La traduccioacuten] lleva de un texto de origen a un texto de destino que es el
equivalente lo maacutes proacuteximo posible y presupone una comprensioacuten del contenido y
el estilo del original (Wilss 1982 62)
Sobre as teorias agrupadas com base no paradigma da finalidade diz o autor
[] es frecuente encontrar referencias a la Skopostheorie la llamada teoriacutea del
Skopos que es la palabra griega para lo que denominaremos ldquofinalidadrdquo Este
teacutermino forma el nuacutecleo de la ldquoteoriacutea generalrdquo de Reiss y Vermeer gracias sobre
todo a la proposicioacuten siguiente
Una accioacuten viene determinada por su finalidad (o sea es una funcioacuten de su
finalidad) (Reiss y Vermeer 1984 101[])
Esta ldquoregla del Skoposrdquo implica que el acto de traducir considerado como una
accioacuten obedece en uacuteltima instancia a las razones por las cuales alguien ha
encargado la traduccioacuten []
[] tenemos el mismo texto de origen varias posibles traducciones y un factor
dominante el Skopos
O paradigma seguinte o das teorias descritivas nasceria da noccedilatildeo de que ldquoa
equivalecircncia eacute uma caracteriacutestica de todas as traduccedilotildees sem importar sua qualidade
linguiacutestica ou esteacuteticardquo de modo a que o conceito natildeo poderia servir para a formaccedilatildeo
79
prescritiva de tradutores O que se propotildee dentro desse paradigma eacute descrever o que
satildeo na realidade as traduccedilotildees ou como satildeo efetivamente feitas e natildeo apenas
prescrever como elas deveriam ser Por essa razatildeo a mudanccedila da prescriccedilatildeo para a
descriccedilatildeo representou como diz Pym um claro desafio ao paradigma da equivalecircncia
Enquadram-se nesta categoria entre outros constructos teoacutericos o do formalismo russo
e do estruturalismo do Ciacuterculo Liacutenguiacutestico de Praga
Para abordar as teorias referentes ao paradigma do indeterminismo Pym se vale
inicialmente de um comentaacuterio sobre a permanecircncia em certa medida do paradigma da
equivalecircncia em traduccedilatildeo para ele as diferentes versotildees desse paradigma ainda
ldquosubjazem na maior parte do trabalho realizado em tradutologiardquo O autor constata que
a equivalecircncia natildeo morreu ainda que tenha sido questionada De seu ponto de vista haacute
duas ldquorazotildees profundasrdquo para as duacutevidas teoacutericas relativas agrave equivalecircncia e que natildeo
provecircm dos dois paradigmas jaacute mencionados a ldquoinstabilidade da lsquoorigemrsquordquo (ldquoa
investigaccedilatildeo descritiva mostra que as tarefas dos tradutores variam consideravelmente
em funccedilatildeo de seu posicionamento cultural e histoacutericordquo) e o ldquoceticismo epistemoloacutegicordquo
Faz tempo como observa Pym que os filoacutesofos da proacutepria ciecircncia e mais tarde os das
humanidades puseram em duacutevida a ldquocertezardquo proacutepria das diversas formas de
estruturalismo ao assumirem que o estudo cientiacutefico poderia produzir conhecimentos
estaacuteveis num mundo de relaccedilotildees puras ndash ldquoas relaccedilotildees entre coisas natildeo podem ser
separadas das relaccedilotildees entre pessoasrdquo e por isso o estruturalismo deu origem ao poacutes-
estruturalismo e agrave desconstruccedilatildeo nos estudos literaacuterios e culturais Segundo Pym uma
teoria ldquodeterministardquo pressupotildee um tipo de relaccedilatildeo em que um fator X impotildee a natureza
de um fator Y e assim a determina enquanto uma teoria ldquoindeterministardquo admite que a
relaccedilatildeo ldquonatildeo eacute tatildeo direta tatildeo unidirecional tatildeo binaacuteria ou tatildeo faacutecil de observarrdquo (113)
Entre as teorias estudadas sob este paradigma encontra-se evidentemente a
desconstruccedilatildeo
As ideias e praacuteticas reunidas sob o uacuteltimo dos paradigmas identificados por
Pym o da localizaccedilatildeo ldquoprovavelmente natildeo formamrdquo segundo ele ldquouma teoria da
traduccedilatildeo do estrito ponto de vista acadecircmicordquo Nascidas para atender a necessidades de
mercado ndash ldquoa localizaccedilatildeo implica fazer com que um produto seja apropriado linguiacutestica
e culturalmente ao mercado local de destino onde seraacute utilizado e vendidordquo (segundo
uma Associaccedilatildeo norte-americana dedicada agrave aacuterea) ndash ldquonatildeo satildeo mais que um conjunto de
nomes e ideias desenvolvido dentro de alguns setores da induacutestria da linguagemrdquo O
80
autor comenta que ldquose os idiomas e as culturas satildeo tatildeo incertos e instaacuteveis que ningueacutem
pode estar seguro sobre o que eacute a equivalecircncia entatildeo uma soluccedilatildeo poderia ser criar-se
um conjunto de idiomas e culturas artificiais onde a certeza fosse possiacutevelrdquo
Uma vez apresentado ligeiramente este breve panorama pode-se deduzir que a
grande questatildeo remanescente no campo da teoria da traduccedilatildeo e portanto em relaccedilatildeo agraves
possibilidades de comparaccedilatildeo entre traduccedilotildees diz respeito ao conceito de equivalecircncia
sua utilizaccedilatildeo (ou natildeo) como fundamento para a atividade tradutoacuteria e as possiacuteveis
formas de seu emprego caso seja ele considerado Assim seraacute aproveitada esta
constataccedilatildeo para que se apresente uma breve reflexatildeo sobre as possibilidades de um
estudo comparativo de traduccedilotildees a ser aqui realizado
O construto teoacuterico da ldquotranscriaccedilatildeordquo de Haroldo de Campos deve enquadrar-
se ainda que imprecisamente (pelas limitaccedilotildees da categorizaccedilatildeo apresentada presentes
em qualquer categorizaccedilatildeo) entre as teorias descritivas pelo niacutevel geneacuterico de suas
ldquoprescriccedilotildeesrdquo (voltadas apenas ao posicionamento de iniciativa criadora incluindo-se a
ousadia criativa e agrave noccedilatildeo de ldquoconstruccedilatildeo paramoacuterficardquo que permite um amplo campo
de accedilotildees diacutespares conforme a leitura) e pela concepccedilatildeo dessacralizante do ldquooriginalrdquo a
ser recriado diante do qual se prevecirc a atitude rebelionaacuteria
81
B4 Breve discussatildeo sobre a possibilidade metodoloacutegica de comparaccedilatildeo entre
traduccedilotildees
No ensaio ldquoFidelidade em traduccedilatildeo poeacutetica o caso Donnerdquo Paulo Henriques
Britto assim sintetiza de iniacutecio a questatildeo sobre a possibilidade de se compararem
traduccedilotildees tendo em conta a visatildeo desconstrucionista
Na aacuterea de Estudos da Traduccedilatildeo no Brasil tem certa influecircncia o ideaacuterio poacutes-
estruturalista que pode ser encarado como uma versatildeo contemporacircnea do
ceticismo em sua versatildeo mais radical mdash natildeo o ceticismo de Hume mas o de Sexto
Empiacuterico A posiccedilatildeo poacutes-estruturalista pode ser resumida aproximadamente como
se segue os textos natildeo possuem significados estaacuteveis que correspondam a
intenccedilotildees que seus autores tivessem em mente ao escrevecirc-los (se eacute que os autores
tecircm controle total sobre suas intenccedilotildees) soacute temos acesso a nossas proacuteprias leituras
dos textos Assim quando dizemos que uma dada traduccedilatildeo eacute fiel ao original
estamos dizendo apenas que nossa leitura dessa traduccedilatildeo eacute fiel agrave nossa leitura do
original nada podemos afirmar sobre os textos em si Entende-se pois que natildeo
haja consenso absoluto a respeito dos meacuteritos relativos de duas traduccedilotildees de um
dado texto se achamos a traduccedilatildeo de um texto feita por A melhor que a feita por
B isso ocorre apenas porque nossa leitura do original se assemelha mais agrave do
tradutor A do que a de B e nada mais haacute a se dizer (2006 239) 83
Britto parte para uma contribuiccedilatildeo sua agrave comparaccedilatildeo de traduccedilotildees do artigo (jaacute
mencionado neste trabalho) ldquoA que satildeo fieacuteis tradutores e criacuteticos de traduccedilatildeordquo de R
Arrojo sobre uma polecircmica ocorrida entre os criacuteticos e tradutores Nelson Ascher e
Paulo Vizioli relativa a traduccedilotildees da poesia de John Donne realizadas por Augusto de
Campos e por Vizioli Ele cita um trecho do referido artigo
[] a traduccedilatildeo de um poema e a avaliaccedilatildeo dessa traduccedilatildeo natildeo poderatildeo realizar-se
fora de um ponto de vista ou de uma perspectiva ou sem a mediaccedilatildeo de uma
ldquointerpretaccedilatildeordquo Portanto a traduccedilatildeo de um poema ou de qualquer outro texto
inevitavelmente seraacute fiel agrave visatildeo que o tradutor tem desse poema e tambeacutem aos
objetivos de sua traduccedilatildeo [] Tanto Paulo Vizioli quanto Augusto de Campos satildeo
83 Publicado na revista Terceira margem nuacutemero 15 Rio de Janeiro julho-dezembro de 2006 pp 239-
253
82
ldquofieacuteisrdquo agraves suas concepccedilotildees teoacutericas acerca de traduccedilatildeo e acerca da poesia de
Donne e nesse sentido tanto as traduccedilotildees de um como de outro satildeo legiacutetimas e
competentes Inevitavelmente as traduccedilotildees de cada um deles agradaratildeo aos
leitores que consciente ou inconscientemente compartilharem de seus
pressupostos e desagradaratildeo agravequeles que como Ascher jaacute foram seduzidos por
pressupostos diferentes
Apoacutes comentar que ldquonum primeiro momentordquo essa argumentaccedilatildeo (de que natildeo
temos jamais acesso agrave coisa-em-si mas somente agrave nossa percepccedilatildeo dela) parece
inatacaacutevel Britto aponta a existecircncia de um problema esse argumento natildeo se aplicaria
apenas agrave traduccedilatildeo e deveria valer aos outros campos do saber Evoca entatildeo o fato de
os cientistas dedicados agraves questotildees da fiacutesica contemporacircnea (aacuterea de conhecimento na
qual tambeacutem natildeo se teria acesso agrave realidade-em-si) ao natildeo serem unacircnimes em relaccedilatildeo
agrave teoria das cordas (uma das tentativas de teoria unificada) prosseguirem com
experimentos publicaccedilotildees e debates em vez de se contentarem com a constataccedilatildeo de
que as discordacircncias se devam somente aos diferentes pressupostos de cada fiacutesico para
concluir que ldquoo ponto de partida de Arrojo procede mas a conclusatildeo a que ela chega
natildeo se sustentardquo
Eacute verdade que natildeo temos acesso direto ao real e que todas nossas opiniotildees satildeo
qualificadas pelosnossos pressupostos mas essa constataccedilatildeo natildeo leva agrave conclusatildeo
de que todas as traduccedilotildees ou todas as teorias satildeo igualmente ldquolegiacutetimas e
competentesrdquo Pelo contraacuterio eacute precisamente porque natildeo temos esse acesso direto
ao real que eacute necessaacuterio analisar discutir e tentar estabelecer consensos ainda que
parciais ndash pois se o real se oferecesse diretamente como evidecircncia agrave inteligecircncia
humana o que haveria para discutir
Depois de contestar diversos argumentos possiacuteveis a favor da noccedilatildeo
desconstrucionista o autor propotildee um procedimento de anaacutelise comparativa cujas
providecircncias satildeo primeiramente assinalar em negrito no ldquotexto originalrdquo ldquotoda
palavra ou expressatildeo cujo significado pareccedila natildeo ter sido transposto na traduccedilatildeordquo
depois marcar em itaacutelico no ldquooriginalrdquo e nas traduccedilotildees ldquotoda passagem cujo sentido
tenha sido alterado de forma significativardquo e ainda sublinhar nas traduccedilotildees ldquoas
palavras e expressotildees que no plano do sentido parecem natildeo corresponder a nada que
conste no originalrdquo
83
Veja-se como exemplo um pequeno fragmento do poema analisado em ambas
as versotildees ao portuguecircs
Antes da anaacutelise o autor observa que sendo o texto em inglecircs composto em
pares de pentacircmetros jacircmbicos84
as duas traduccedilotildees utilizaram medidas diferentes
Vizioli o dodecassiacutelabo Campos o decassiacutelabo E comenta que embora ldquoa maioria dos
tradutoresrdquo tendesse a considerar o decassiacutelabo como o verso portuguecircs mais proacuteximo
do pentacircmetro jacircmbico poderia ser vantajoso usar o verso de doze siacutelabas pois sendo
as palavras inglesas mais curtas do que as portuguesas haveria menor chance de cortes
visando agrave manutenccedilatildeo do nuacutemero de siacuteladas
Na etapa seguinte Britto exibe um quadro com a quantificaccedilatildeo das marcaccedilotildees
em negrito itaacutelico e sublinhas
84Versos de cinco jambos ou seja cinco peacutes binaacuterios com a tocircnica na segunda siacutelaba
84
Faz ele entatildeo algumas constataccedilotildees
No que diz respeito agraves perdas de significado e agraves alteraccedilotildees de elementos
semacircnticos as duas traduccedilotildees se equivalem com ligeira vantagem para V por
outro lado V apresenta muito mais acreacutescimos do que C Ou seja ao queparece a
adoccedilatildeo de um metro mais longo em V embora permitisse diminuir um pouco as
perdas e alteraccedilotildees semacircnticas teve o efeito contraproducente de obrigar o tradutor
a acrescentar um grande nuacutemero de palavras e expressotildees que natildeo correspondem a
nada que se encontre no original a fim de preencher as doze siacutelabas de cada verso
Examinando a primeira tabela mais detidamente chegamos a uma outra
constataccedilatildeo importante dos 15 acreacutescimos em V nada menos que 11 ocorrem em
posiccedilatildeo final o que parece indicar que as palavras em questatildeo foram acrescentadas
com o duplo objetivo de preencher espaccedilo e tambeacutem forccedilar uma rima Quando
verificamos que em C haacute apenas um acreacutescimo em posiccedilatildeo final somos levados a
concluir que em C muito mais do que em V as rimas se datildeo entre termos que
correspondem semanticamente ao original ao passo que em V em 11 versos
traduziu-se o sentido do original e em seguida acrescentaram-se uma ou mais
palavras ao verso para que houvesse rima Ou seja em V o metro mais longo foi a
soluccedilatildeo encontrada pelo tradutor para compensar sua dificuldade em encontrar
soluccedilotildees que funcionassem ao mesmo tempo no plano do significado e no da rima
Este fato se comprovado por si soacute jaacute constitui um forte argumento em favor da
superioridade de C (245)
Britto passa a examinar ldquoos 11 diacutesticos em cujas traduccedilotildees houve acreacutescimos na
posiccedilatildeo final dos versosrdquo para comprovar a sua hipoacutetese Apoacutes a anaacutelise enumera
verificaccedilotildees a respeito dos aspectos observados nas traduccedilotildees para concluir por fim
que ldquoeacute possiacutevel argumentar que C eacute superior a V quanto ao quesito fidelidade
utilizando argumentos razoavelmente objetivos Dizer que as pessoas que preferem a de
Campos agrave de Vizioli o fazem apenas por compartilharem os pressupostos de Campos e
natildeo os de Vizioli natildeo resolve o problema []rdquo
O esforccedilo de Britto eacute de grande relevacircncia procura um meio de natildeo se
permanecer na relativizaccedilatildeo total em que tudo poderia ser igualmente ldquovaacutelidordquo (e
portanto tendente a despir-se de atrativos para a busca das qualidades proacuteprias de cada
criaccedilatildeo responsaacuteveis pela fruiccedilatildeo e pelo conhecimento que os textos proporcionam)
para distinguir caracteriacutesticas ndash e com elas vantagens ou desvantagens ndash de cada uma
85
das traduccedilotildees concluindo pela ldquosuperioridaderdquo de uma sobre a outra No entanto eacute
nesta parte que continua a residir em meu modo de ver uma duacutevida quais as vantagens
de se constatar por um meacutetodo de anaacutelise ndash entre outros certamente possiacuteveis ndash a
superioridade de um trabalho sobre o outro Pode-se argumentar que a escolha dos
procedimentos jaacute seraacute compatiacutevel com um ponto de vista e coerente com a hipoacutetese
preconcebida Nesse sentido uma reafirmaccedilatildeo do foco descritivo que manteacutem a noccedilatildeo
da relatividade de avaliaccedilotildees permite observar por meio da constataccedilatildeo de diferenccedilas
o modo como realizaccedilotildees distintas operam em suas escolhas natildeo necessariamente se
dando um passo conclusivo sobre a inferioridade ou natildeo de um resultado sobre outro
No caso em questatildeo a superioridade eacute depreendida em relaccedilatildeo ao quesito ldquofidelidaderdquo
sendo esta vinculada ao aspecto semacircntico ou ao ldquoplano do conteuacutedordquo poderia ser
outro o quesito e poderiam ser outras portanto as conclusotildees natildeo se pode esquecer
que a ldquofidelidade ao sentidordquo eacute como outras condiccedilotildees predefinidas discutiacutevel como
referecircncia essencial e se fundamenta inevitavelmente no conceito de equivalecircncia
Embora este pareccedila ser um conceito que tende a resistir aos questionamentos e
relativizaccedilotildees da noccedilatildeo de origem natildeo deveraacute penso ser visto como mais do que um
dos possiacuteveis princiacutepios sobre os quais se poderaacute buscar correspondecircncias para
verificaccedilatildeo de resultados num processo geral de ldquodesvendamentordquo das caracteriacutesticas
que compotildeem os textos como fontes de leitura e de recriaccedilatildeo O que eacute importante
admitir para a viabilizaccedilatildeo de qualquer passo de anaacutelise ou compreensatildeo eacute que o texto
eacute um objeto que pode ser lido e ldquocriadordquo pela leitura de modos diversos mas que
tambeacutem apresenta caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias que vatildeo aleacutem do significado e
sua permanecircncia do mesmo modo que um poema traduzido as teraacute e natildeo
necessariamente as ldquomesmasrdquo do texto do qual partiu uma vez que tambeacutem seja visto
como criaccedilatildeo como um poema autocircnomo A questatildeo eacute que um poema que ldquofuncione
bemrdquo ainda que em determinado contexto poderaacute ser considerado uma boa traduccedilatildeo
mesmo que pouco ldquofielrdquo sob certos aspectos ao texto do qual partiu Lembre-se por
exemplo entre tantas outras referecircncias possiacuteveis a traduccedilatildeo de Fitzgerald do Rubayat
de Omar Khayam tatildeo ldquodiferenterdquo do original persa no aspecto da ldquofidelidaderdquo
semacircntica e que se tornou ele mesmo um claacutessico da poesia universal
Haroldo de Campos fala em ldquovivissecccedilatildeo implacaacutevelrdquo do poema ldquooriginalrdquo
pressupondo sua materialidade necessaacuteria para um exame particular que pode originar
um novo ser uma criaccedilatildeo ldquoparamoacuterficardquo de ldquoestrutura anaacutelogardquo (construiacuteda com base
86
no reconhecimento propiciado por referenciais linguiacutestico-esteacuteticos como a funccedilatildeo
poeacutetica da linguagem ou a iconicidade do signo) nascida ao lado do outro que a
antecedeu Mas a proposta de Campos central neste estudo seraacute vista em outro
capiacutetulo
Voltando ao ensaio de Britto ele eacute tatildeo relevante para a poesia e para a traduccedilatildeo
de poesia como o ensaio de Arrojo que o motivou Ainda que se discorde do autor (que
prevecirc em seu texto as inevitaacuteveis discordacircncias) por exemplo em relaccedilatildeo a sua crenccedila
no valor da equivalecircncia e nos ldquofatosrdquo ndash manifesta na ideia de se cotejarem duas
traduccedilotildees e original ldquolinha a linha siacutelaba a siacutelaba examinando e pesando as diferenccedilas
para se chegar a uma conclusatildeo baseada em fatos [] e expressa em argumentos loacutegicos
(natildeo por exemplo em trocadilhos)rdquo ndash seu empreendimento vai contra a imobilidade e a
resignaccedilatildeo
Atualmente nos estudos da traduccedilatildeo como na aacuterea dos estudos literaacuterios eacute
frequente o argumento de que como natildeo podemos ter acesso direto a um
significado essencial absolutamente estaacutevel devemos adotar um relativismo
absoluto ndash todas as soluccedilotildees satildeo igualmente vaacutelidas e competentes cada uma em
relaccedilatildeo aos seus proacuteprios pressupostos e nada mais haacute a dizer Como natildeo pode
haver uma avaliaccedilatildeo de traduccedilatildeo absolutamente objetiva e universalmente aceita
avaliar traduccedilotildees seria uma atividade ociosa A alternativa que proponho eacute esta
ainda que natildeo haja um consenso absoluto e ainda que cada um de noacutes faccedila seus
julgamentos com base em seus proacuteprios pressupostos eacute possiacutevel utilizar o discurso
racional para fazer avaliaccedilotildees e tecer consideraccedilotildees em torno de traduccedilotildees fazendo
referecircncia a certas propriedades dos textos traduzidos com relaccedilatildeo agraves quais haacute um
certo grau de acordo entre um bom nuacutemero de pessoas envolvidas nas atividade de
traduzir
Se concordamos com a accedilatildeo e com a contraposiccedilatildeo a um relativismo absoluto
(inclusive sobre poesia ou qualquer existecircncia) temos de considerar contudo que
mesmo quando se consideram diferentes soluccedilotildees como igualmente vaacutelidas em
princiacutepio isso natildeo impede necessariamente que se proceda a uma anaacutelise visando agrave
revelaccedilatildeo ao mesmo tempo das diferenccedilas entre os textos e da coerecircncia interna de
cada um e em relaccedilatildeo a seus possiacuteveis pressupostos ndash um modo talvez de concluir
87
sobre sua eficiecircncia intriacutenseca ndash extraindo-se ateacute aspectos comuns num substrato mais
ldquofundamentalrdquo do poeacutetico
A breve discussatildeo realizada neste toacutepico prosseguiraacute no seguinte de modo um
pouco mais aprofundado e amplo valendo-me para tanto de outro artigo de P H
Britto como referecircncia para reflexatildeo
88
B5 Esboccedilo de uma proposta de anaacutelise
Como se veraacute iniciaremos nossos comentaacuterios e anaacutelises de breves fragmentos
da obra homeacuterica apontando primeiramente aspectos fundamentais da poesia eacutepica
grega e caracteriacutesticas gerais das traduccedilotildees dos poemas ao portuguecircs Consideraremos o
plano de conteuacutedo e algumas correspondecircncias principais de sentido para
prosseguirmos tambeacutem com apontamentos de ordem formal assim como de relaccedilotildees
entre conteuacutedo e expressatildeo Nenhuma novidade nesse procedimento que entretanto
adotaraacute modos de descriccedilatildeo e avaliaccedilatildeo natildeo baseados centralmente na quantificaccedilatildeo
esta escolha natildeo representa apenas o natildeo-uso de um recurso possiacutevel mas uma
diferenccedila de concepccedilatildeo e procedimento em relaccedilatildeo a anaacutelises como as propostas por
Paulo H Britto tomadas como referecircncia imediata Pode-se depreender de iniacutecio que o
referencial da estrita equivalecircncia como o meio para se avaliarem traduccedilotildees natildeo se
mostra o mais adequado agrave traduccedilatildeo da poesia homeacuterica que de certo modo serve para
demonstrar as dificuldades e para mim a inadequabilidade de se permanecer no uso da
equivalecircncia pela ldquoliteralidaderdquo seja semacircntica seja formal Trata-se eacute claro de
discutir a proacutepria conceituaccedilatildeo de traduccedilatildeo poeacutetica e do que seja a ldquofidelidaderdquo na accedilatildeo
tradutoacuteria
Um ponto de vista como aquele elaborado por Haroldo de Campos com base
em conceitos que seratildeo apresentados oportunamente permite ver a traduccedilatildeo de um
poema como uma criaccedilatildeo de algo novo com suas proacuteprias ldquoregrasrdquo internas ainda que
resulte propriamente de um processo de recriaccedilatildeo e ainda que seja construiacutedo de modo a
guardar relaccedilotildees de paramorfismo com o texto-fonte As prescriccedilotildees tradutoacuterias de uma
teorizaccedilatildeo como essa natildeo determinam procedimentos sempre idecircnticos ou uniformes
nem soluccedilotildees encaminhadas pelas mesmas diretrizes sendo um processo de criaccedilatildeo
envolveraacute as escolhas do tradutor-criador a cada etapa de seu trabalho iniciando-se com
a eleiccedilatildeo pela leitura do que considera relevante da ldquoestruturardquo do poema a ser ldquore-
produzidordquo85
e prosseguindo com suas opccedilotildees de composiccedilatildeo e modo de
ldquocorrespondecircnciardquo com o texto de que parte Existiraacute potencialmente permitida por uma
abordagem como essa grande flexibilidade no processo de escolhas que levaratildeo a
resultados diferentes abolindo-se uma relaccedilatildeo de ldquoservituderdquo em relaccedilatildeo ao ldquooriginalrdquo ndash
85 Relembre-se neste ponto a explicitaccedilatildeo deste termo pelo poeta e tradutor Guilherme de Almeida em
sua apresentaccedilatildeo ao livro Poetas de Franccedila (1ordf ediccedilatildeo 1936 5ordf ediccedilatildeo ndash Satildeo Paulo Babel 2011) o
autor sugere a palavra ldquolsquore-produzirrsquo quer dizer produzir de novordquo como o que seria traduzir poesia
89
que deixa de ter o peso impliacutecito agrave noccedilatildeo de equivalecircncia completa e com o qual o
poema traduzido deseja ombrear-se podendo ser visto como ldquooriginal do originalrdquo ndash o
poema resultante da traduccedilatildeo seraacute antes construiacutedo a partir de princiacutepios e de processos
considerados anaacutelogos ou correspondentes do que de obrigaccedilotildees de equivalecircncia
palavra a palavra ou efeito a efeito (sonoro ou imageacutetico) Do ponto de vista de uma
recriaccedilatildeo de fato ndash ou transcriaccedilatildeo conforme propotildee H de Campos ndash o poema poderaacute
dar conta da eficiecircncia construtiva e comunicativa (ou anticomunicativa se pensarmos
na exigecircncia pelo poema de uma leitura apropriada para sua apreensatildeo86
) daquele ao
qual se refere de modos diversos seguindo-se por exemplo o conceito de ldquomake it
newrdquo (ldquorenovarrdquo) proposto por Ezra Pound e buscando-se elementos (inclusive
referecircncias) na proacutepria cultura poderatildeo ocorrer alteraccedilotildees semacircnticas significativas
assim como a ldquomodernizaccedilatildeordquo e a ldquocontextualizaccedilatildeordquo do poema (como na traduccedilatildeo de
Augusto de Campos de fragmento do Rubayat na versatildeo de Fitzgerald defendida em
artigo por Haroldo87
) ao passo que ao seguir-se uma ideia de recriaccedilatildeo que possa ser
inserida em contexto histoacuterico correspondente seraacute obtido um texto ldquoanacrocircnicordquo como
na traduccedilatildeo de Guilherme de Almeida do poema ldquoBallade des dames du temps jadisrdquo
de Franccedilois Villon considerada modelar por H de Campos88
No caso da eacutepica grega (e latina) em portuguecircs temos no trabalho de Odorico
Mendes o exemplo niacutetido da conceituaccedilatildeo da traduccedilatildeo como natildeo vinculada agrave
obrigatoriedade de correspondecircncia ldquopalavra a palavrardquo Ao optar pelo uso do verso
camoniano ou seja do decassiacutelabo para recriar poemas originalmente produzidos em
hexacircmetros dactiacutelicos e ao propor-se a realizar uma obra marcada pela concisatildeo (na
qual natildeo haveria lugar para o aumento da quantidade de versos por serem mais breves)
o tradutor baseia-se na ideia de correspondecircncias menos restritas de sentido
dispensando por vezes detalhes inessenciais agrave narrativa e repeticcedilotildees de foacutermulas e
epiacutetetos inadequados para ele a um poema produzido e lido em seu tempo Se
analisada com base num modelo como o proposto por P H Brito em que se
quantificam as palavras e suas estritas correspondecircncias na traduccedilatildeo a fim de se
86 Pelos usos que faz de recursos sonoros riacutetmicos e de repeticcedilatildeo (conforme jaacute se viu neste estudo) ou
seja da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem (projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma) e dos denominados ldquodesvios de linguagemrdquo pelas construccedilotildees semacircntico-sintaacuteticas inabituais e ambiacuteguas e essencialmente
por ser visto como um poema (e portanto gerar expectativa de leitura diversa daquela dedicada a um
texto de raacutepida comunicaccedilatildeo) a poesia suscitaraacute um modo apropriado de leitura 87 ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo (1983) In Cadernos do MAM no 1 R de Janeiro dezembro de 1983 88 ldquoMemoraacutevel e virtuosiacutestica recriaccedilatildeordquo assim se refere Campos agrave versatildeo de G de Almeida em texto de
orelha para o livro ALMEIDA G de VIEIRA T Trecircs trageacutedias gregas S Paulo Perspectiva 1997
90
estabelecer um juiacutezo de valor para a traduccedilatildeo a obra de Odorico estaria previamente
condenada a uma avaliaccedilatildeo de inferioridade em relaccedilatildeo a outras de verso mais longo ou
feitas em prosa embora estas tambeacutem contenham omissotildees89
este resultado seria
inadequado tendo-se em conta as qualidades e a importacircncia histoacuterico-literaacuteria da
traduccedilatildeo (e do pensamento) de Mendes que como veremos prevecirc a utilizaccedilatildeo de
paraacutefrases muitas vezes mais ldquoeconocircmicasrdquo (ou seja com emprego de menor quantidade
de palavras) e portanto sem correspondecircncia ldquoliteralrdquo para compor sentidos similares
aos do texto-fonte Embora talvez se pudesse usar esse criteacuterio por exemplo para
traduccedilotildees como as de Carlos Alberto Nunes (em versos de dezesseis siacutelabas) de Andreacute
Malta (em versos compostos por duas redondilhas) de Donaldo Schuumller (em versos
livres) e a portuguesa de Frederico Lourenccedilo (tambeacutem em versos livres)90
o criteacuterio natildeo
daria conta creio de uma comparaccedilatildeo mais abrangente Mas o que se precisa
considerar fundamentalmente eacute a proacutepria inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo quantitativa de
correspondecircncia seja semacircntica ou formal e a ideia de avaliaccedilatildeo como estabelecimento
de superioridade entre traduccedilotildees ainda que se possam evidenciar suas qualidades
intriacutensecas ndash numa anaacutelise com propoacutesito predominantemente descritivo ndash permitindo-
se assim que se faccedilam juiacutezos de valor baseados na coerecircncia interna do trabalho e em
aspectos determinados (como por exemplo a ldquodensidaderdquo sonora em segmentos
correspondentes) conforme os princiacutepios e os propoacutesitos adotados pela criacutetica
Assim a anaacutelise natildeo se basearaacute em conceitos fundamentados (ao menos
exclusivamente) na noccedilatildeo de equivalecircncia91
como os de correspondecircncia e de perda
(quando natildeo haacute correspondecircncia plena) propostos por Britto no texto que citaremos em
seguida para esclarecimento da referecircncia antes de prosseguirmos com a apresentaccedilatildeo
dos propoacutesitos desta tarefa seratildeo marcadas em negrito passagens que serviratildeo de base
a minhas observaccedilotildees posteriores
A avaliaccedilatildeo de uma traduccedilatildeo de poesia eacute uma tarefa complexa e delicada Temos
consciecircncia de que o texto poeacutetico trabalha com a linguagem em todos os seus
niacuteveis mdash semacircnticos sintaacuteticos foneacuteticos riacutetmicos entre outros Idealmente o
89 Como se veraacute nas anaacutelises no entanto ndash em algum momento quantificador ndash ocorre de o texto de Odorico Mendes apresentar menos omissotildees que as traduccedilotildees feitas em verso mais longo 90 Supondo-se que a opccedilatildeo por versos mais longos inclui alguma noccedilatildeo de ldquoliteralidaderdquo na
correspondecircncia ao sentido 91 Isso natildeo quer dizer que natildeo seraacute usada nas anaacutelises desenvolvidas neste trabalho uma avaliaccedilatildeo de
correspondecircncias e mesmo uma quantificaccedilatildeo de elementos recorrerei sim a dados comparativos e a
quantidades Os dados serviratildeo contudo de um modo proacuteprio relativo agrave anaacutelise e agraves conclusotildees
91
poema deve articular todos esses niacuteveis ou pelo menos vaacuterios deles no sentido de
chegar a um determinado conjunto harmocircnico de efeitos poeacuteticos A tarefa do
tradutor de poesia seraacute pois a de recriar utilizando os recursos da liacutengua-meta os
efeitos de sentido e forma do original mdash ou ao menos uma boa parte deles []
Podemos entender o conceito de ldquocorrespondecircnciardquo em diversos niacuteveis de
exatidatildeo Vejamos um exemplo meacutetrico Digamos que eu queria traduzir para o
portuguecircs um determinado verso inglecircs com uma pauta acentual que podemos
representar como se segue (onde ldquoˇrdquo representa uma siacutelaba aacutetona e ldquo rdquo uma siacutelaba
com acento primaacuterio e ldquo|rdquo eacute o separador de peacutes)
ˇ | ˇ | ˇ | ˇ ˇ |
[] Numa primeira acepccedilatildeo da expressatildeo ldquocorresponderrdquo um verso portuguecircs
correspondente a esse verso inglecircs teria de ser precisamente um decassiacutelabo com
acento na 2a 4
a 5
a 6
a 9
a e 10
a siacutelabas Esta seria a acepccedilatildeo mais ldquoforterdquo da
expressatildeo ldquoo verso A corresponde ao verso Brdquo porque se daria no niacutevel mais
proacuteximo da realidade focircnica do verso Se enfraquecermos um pouco a acepccedilatildeo de
ldquocorresponderrdquo diriacuteamos que qualquer decassiacutelabo de ritmo predominantemente
jacircmbico no portuguecircs corresponde a qualquer decassiacutelabo predominantemente
jacircmbico no inglecircs Saltando para um niacutevel ainda mais alto de generalidade
qualquer decassiacutelabo do portuguecircs corresponderia a qualquer pentacircmetro do inglecircs
Mas podemos ter uma correspondecircncia ainda mais fraca se considerarmos que o
pentacircmetro eacute um metro relativamente longo no inglecircs mdash em oposiccedilatildeo ao triacutemetro
por exemplo mdash e que o decassiacutelabo e o alexandrino no portuguecircs satildeo metros
relativamente longos mdash em comparaccedilatildeo com os hexassiacutelabos e heptassiacutelabos mdash
poderiacuteamos dizer que um alexandrino em portuguecircs corresponde a um pentacircmetro
inglecircs na medida em que ambos satildeo ldquoversos longosrdquo []
Podemos agora entender de modo mais preciso a noccedilatildeo de perda na traduccedilatildeo
poeacutetica quanto mais fraca a acepccedilatildeo de correspondecircncia mdash ou seja quanto
mais alto o niacutevel de generalidade em que ela se daacute mdash maior a perda No exemplo
acima haveraacute mais perda se eu traduzir o verso original por um alexandrino do que
se eu traduzi-lo por um decassiacutelabo qualquer por exemplo
Na avaliaccedilatildeo do grau de perda poreacutem o niacutevel de generalidade natildeo eacute o uacutenico fator
a ser levado em conta No caso de uma traduccedilatildeo de letra de muacutesica a prosoacutedia
musical pede uma correspondecircncia quase exata entre a configuraccedilatildeo acentual do
original e a da traduccedilatildeo []
92
Podemos aplicar o mesmo esquema aos outros elementos da forma e tambeacutem do
conteuacutedo semacircntico do poema
[]
O meacutetodo proposto eacute ainda um esboccedilo em que muitos detalhes ainda precisam ser
elaborados Mas creio que temos aqui um caminho promissor no sentido de chegar
a uma avaliaccedilatildeo menos subjetivista das traduccedilotildees poeacuteticas que trabalhe com dados
mais objetivos e permita quantificar os juiacutezos de valor expressos atraveacutes de
conceitos como ldquocorrespondecircnciardquo e ldquoperdardquo 92
O autor baseia-se na ideia de que eacute possiacutevel a correspondecircncia total entre as
caracteriacutesticas do plano de conteuacutedo e do plano de expressatildeo entre uma traduccedilatildeo e o
texto de que ela parte Embora natildeo se possam levar em conta os argumentos da
intraduzibilidade de poesia superados pela proacutepria praacutetica tambeacutem natildeo se podem
desconsiderar as diferenccedilas de ldquonaturezardquo entre obras elaboradas natildeo soacute em idiomas
como em sistemas distintos sob diversos aspectos para ficarmos com a dimensatildeo
apontada no artigo a do esquema meacutetrico-riacutetmico considere-se que embora possa
parecer que o sistema em peacutes praticado nas liacutenguas anglo-saxocircnicas encontraraacute esquema
exatamente correspondente em portuguecircs essa crenccedila na equivalecircncia absoluta ficaraacute
abalada quando se pensar na ldquoorigemrdquo do sistema greco-latino baseado em siacutelabas
longas e breves e natildeo em siacutelabas tocircnicas e aacutetonas O aproveitamento do antigo sistema
exigiu uma adaptaccedilatildeo decorrente da caracteriacutestica essencialmente diversa entre os
idiomas envolvidos ou seja a inexistecircncia de fonemas longos e breves nas liacutenguas para
as quais o sistema foi adaptado o que era nos peacutes gregos e latinos uma composiccedilatildeo
entre siacutelabas longas e breves passou a ser uma composiccedilatildeo entre siacutelabas tocircnicas e
aacutetonas determinando-se desse modo uma alteraccedilatildeo de identidade93
Se considerarmos
portanto a traduccedilatildeo direta ao portuguecircs de um poema grego depararemos com a
diferenccedila ldquoem primeira instacircnciardquo entre os sistemas quantitativo (quantidade de
duraccedilatildeo das siacutelabas breves ou longas) e qualitativo (siacutelabas acentuadas ou natildeo)94
92 BRITTO PH ldquoPara uma avaliaccedilatildeo mais objetiva das traduccedilotildees de poesiardquo In Krause Gustavo B As
margens da traduccedilatildeo Rio de Janeiro FAPERJCaeteacutesUERJ 2002 93 Como se veraacute mais adiante houve tentativas de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro greco-latino baseadas na
atribuiccedilatildeo de duraccedilatildeo agraves siacutelabas em liacutenguas neolatinas (ou seja buscando-se fazer corresponderem
sistemas semelhantes quantitativos) As referidas tentativas natildeo satildeo referecircncias presentes em nosso atual
contexto lieraacuterio 94 A afirmaccedilatildeo se baseia no aspecto eminentemente praacutetico do uso dos idiomas da leitura de poemas e da
tradiccedilatildeo poeacutetica das liacutenguas ocidentais modernas No entanto eacute possiacutevel relativar a inexistecircncia de siacutelabas
93
diversamente do que ocorre entre os idiomas inglecircs e portuguecircs (uma diferenccedila
diriacuteamos em ldquosegunda instacircnciardquo) pelo fato de os poemas compostos no primeiro jaacute
trazerem embora num sistema meacutetrico diverso do utilizado como referecircncia baacutesica em
liacutengua portuguesa (quantidade de siacutelabas e natildeo distribuiccedilatildeo de tocircnicas ainda que a
quantidade fixa ocasione esquemas ndash comumente irregulares ndash de colocaccedilatildeo dos
acentos) a caracteriacutestica semelhante de natildeo se construiacuterem com base na duraccedilatildeo das
siacutelabas A ilusatildeo de correspondecircncia absoluta mascararaacute as diferenccedilas entre os idiomas e
as culturas poeacuteticas (para natildeo dizer dos contextos culturais gerais a que pertencem) as
aproximaccedilotildees envolveratildeo com caraacuteter mais ou menos acentuado uma diversidade que
sugere aleacutem de tudo o mais (ver as referecircncias aos argumentos da inviabilidade da
traduccedilatildeo) a inexistecircncia de equivalecircncia completa Por conseguinte estabelecer valores
de correspondecircncia (no caso referido de padratildeo meacutetrico-riacutetmico) como criteacuterio de
avaliaccedilatildeo eacute a priori incerto afirmaccedilotildees como ldquo[o verso em pentacircmetro jacircmbico] teria
de ser precisamente [um decassiacutelabo em portuguecircs]rdquo natildeo seriam sob o ponto de vista
apresentado desejaacuteveis
Assim sendo a vinculaccedilatildeo da ideia de ldquoperdardquo e sua quantificaccedilatildeo a diferentes
niacuteveis de correspondecircncia (ldquoquanto mais fraca a acepccedilatildeo de correspondecircncia []
maior a perdardquo) tambeacutem careceraacute de propriedade E natildeo seraacute adequada por outra razatildeo
fundamental agrave qual jaacute se aludiu a noccedilatildeo de ldquoperdardquo vincula-se a uma ideia do texto
traduzido como subordinado ao original e portanto como devendo resultar de uma
obrigatoacuteria equivalecircncia cujos niacuteveis de ausecircncia determinaratildeo o valor da perda De
outro ponto de vista que rompa a relaccedilatildeo ancilar entre original e traduccedilatildeo a relativa
independecircncia de um texto recriado como poema o desobrigaraacute da suposta fidelidade
nos seus diversos planos possiacuteveis Para Haroldo de Campos (com base em postulaccedilotildees
de Walter Benjamin que como se veraacute consideraria a priorizaccedilatildeo da ldquomensagemrdquo
como uma ldquotransmissatildeo inexata de um conteuacutedo inessencialrdquo) o ldquosignificadordquo do texto
de partida seraacute apenas uma ldquobaliza demarcatoacuteriardquo para a configuraccedilatildeo do sentido no
texto traduzido que envolveraacute diferenccedilas em relaccedilatildeo ao anterior decorrentes do
proacuteprio processo de re(ou trans)criaccedilatildeo A anunciada ldquofidelidade agrave formardquo tambeacutem
envolve noccedilotildees relativizadoras das equivalecircncias dissociadas da ideia de
correspondecircncia ldquoliteralrdquo
longas e breves nessas liacutenguas e houve jaacute propostas de composiccedilatildeo quantitativa em idiomas modernos
Leia-se sobre este assunto referecircncias agraves adaptaccedilotildees do hexacircmetro no capiacutetulo IV deste trabalho
94
As anaacutelises que se faratildeo neste estudo embora possam considerar o ldquoconteuacutedo
literalrdquo (sabendo-se claro da inadequaccedilatildeo desse conceito pela mutabilidade do
significado conforme jaacute se abordou extensamente) dos textos-fonte para evidenciar o
que eacute suprimido ou acrescentado nas traduccedilotildees natildeo o utilizaraacute como ponto de partida
para qualquer avaliaccedilatildeo A noccedilatildeo de equivalecircncia embora natildeo desapareccedila seraacute tratada
com a relatividade que o processo tradutoacuterio impotildee vista como equivalecircncia relativa
consistiraacute em aproximaccedilotildees referentes agraves informaccedilotildees mais relevantes para o acircmbito
ldquoconteudiacutesticordquo e na proporcionalidade quanto agrave concentraccedilatildeo de efeitos e relaccedilotildees
entre som e sentido (que envolvem como se viu a ocorrecircncia de repeticcedilotildees de variado
teor)
Seraacute feita uma tentativa de mostrar diferentes possibilidades de anaacutelise com base
em aspectos presentes em cada traduccedilatildeo (e portanto na configuraccedilatildeo que lhe eacute proacutepria)
reservando-se possiacuteveis atribuiccedilotildees de valor a observaccedilotildees referentes a categorias
construiacutedas pela oacuteptica do observador (maior ou menor quantidade de efeitos e mais ou
menos informaccedilotildees por exemplo) lidando-se com a relatividade das correspondecircncias
existentes entre poemas natildeo colocados em posiccedilatildeo hieraacuterquica Sem o estabelecimento
aprioriacutestico de meacutetodo de anaacutelise avanccedilaremos agregando alternativas de referencial
sempre como se disse com a finalidade antes de tudo descritiva por vezes
comparativa dos textos estudados
95
Capiacutetulo II
A Os tradutores cujas obras seratildeo centralmente objeto de estudo
apresentaccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo
A1 Manuel Odorico Mendes (1799-1864)
Em 1854 saiacutea o primeiro poema eacutepico traduzido no paiacutes a Eneida brasileira
por obra do poeta e tradutor maranhense Manuel Odorico Mendes Precedido pelas
traduccedilotildees ao nosso idioma da obra de Virgiacutelio pelos portugueses Leonel da Costa
(seacuteculo XVII) Joatildeo Franco Barreto (seacuteculo XVII) Francisco Joseacute Freire (ldquoCacircndido
Lusitano seacuteculo XVIII) e Barreto Feio Odorico seria no entanto pioneiro na traduccedilatildeo
completa da Iliacuteada de Homero publicada postumamente em 1874 a que se seguiu sua
versatildeo da Odisseia publicada em 1928
Sobre seu pioneirismo diz Silveira Bueno autor do Prefaacutecio da ediccedilatildeo da Iliacuteada
de 1956
Na Ameacuterica do Sul estaacute o Brasil em primeira plana levando nisto a palma ao
proacuteprio Portugal apresentando em liacutedimo vernaacuteculo natildeo soacute a Iliacuteada mas tambeacutem
a Odisseia completadas ambas pela Eneida de Virgilio Ao ilustre maranhense
Manuel Odorico Mendes ficamos a dever esta homenagem esta gratidatildeo porque
da sua pena saiacuteram essas traduccedilotildees que os anos apenas fazem avultar e agigantar
Em 1874 na tipografia ldquoGuttenbergrdquo aparecia [] a obra-prima de Odorico
Mendes Quase contemporaneamente em Portugal o Conselheiro Antocircnio Joseacute
Viale publicava esparsamente alguns episoacutedios da Iliacuteada [] Natildeo eacute soacute
cronologicamente o primeiro mas tambeacutem o primeiro pelo valor literaacuterio de sua
traduccedilatildeo Que natildeo conhecesse os versos de Viale provam negativamente as notas
que apocircs a cada livro traduzido []rdquo95
Abra-se aqui um parecircntese Odorico seraacute de fato pioneiro na traduccedilatildeo da Iliacuteada
se considerarmos (como jaacute se indicou) o poema completo uma vez que surgira em
1811 a traduccedilatildeo do Canto I realizada pelo portuguecircs Joseacute Maria da Costa e Silva Essa
95 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Odorico Mendes Prefaacutecio do Prof Silveira Bueno Satildeo Paulo Atena
Editora 1956 P 10
96
traduccedilatildeo emprega a mesma escolha decassilaacutebica de Odorico ou seja o verso heroacuteico
camoniano (essa caracteriacutestica da obra do brasileiro seraacute estudada aqui
posteriormente) tambeacutem adianta a opccedilatildeo de Odorico pela utilizaccedilatildeo de versotildees latinas
dos nomes dos deuses gregos Leia-se o iniacutecio do uacutenico canto traduzido precedido pela
apresentaccedilatildeo de seu argumento tambeacutem apresentado em versos decassiacutelabos
Iliacuteada de Homero ndash Livro I
Argumento
De Febo o Sacerdote venerando
Vem a filha remir que lhe eacute negada
Recorre ao Deus que as setas disparando
Fere de mortal peste a Grega Armada
Aquiles de Agameacutemnon discordando
Quer mataacute-lo susteacutem Minerva a espada
Teacutetis queixa-se ao Padre nrsquoalta Corte
aos Aquivos impetra estrago e morte
Coacutelera funesta oacute Deusa canta
Do Peacuteleo Aquiles dolorosa aos Gregos
Que ao Inferno baixar de Heroacuteis valentes
Mil Espiacuteritos fez e deu seus corpos
A catildees e aves em pasto assim de Jove
Se cumpriu o Decreto des qu em oacutedio
Inimizara suacutebita contenda
Atrides dHomens Rei e o divo Aquiles96
Embora guarde semelhanccedila com a traduccedilatildeo do brasileiro (conforme se poderaacute
constatar adiante) a versatildeo de Costa e Silva eacute menos afeita agrave siacutentese (nessa sequecircncia
ultrapassa em um verso o nuacutemero de versos gregos traduzidos e em dois o nuacutemero de
versos da versatildeo de Odorico para o mesmo fragmento grego) Haacute no entanto certa
relaccedilatildeo entre as construccedilotildees sintaacuteticas ldquocomplexasrdquo de ambos os tradutores mesmo que
Costa e Silva pareccedila valer-se menos de ldquopreciosismo vocabularrdquo comumente atribuiacutedo
96 HOMERO Iliacuteada de Homero ndash traduzida do grego em verso portuguecircs por Joseacute Maria da Costa e
Silva Lisboa Impressatildeo Reacutegia 1811
97
agrave obra de Odorico embora isso seja discutiacutevel considerando-se os possiacuteveis criteacuterios do
tradutor e o contexto em que seu trabalho foi produzido97
Mas retornando ao prefaacutecio de Silveira Bueno diga-se que embora o
prefaciador enalteccedila o trabalho de Odorico na verdade eacute mais recente o reconhecimento
da importacircncia e da qualidade de sua obra tradutoacuteria principalmente pelo empenho por
sua reavaliaccedilatildeo criacutetica empreendido pelo poeta Haroldo de Campos (1923-2003) a
partir de um ensaio seu de 1962 Hoje muitas vozes se juntam para a celebraccedilatildeo das
traduccedilotildees de Odorico considerado por Campos ldquoo patriarca da traduccedilatildeo criativa no
Brasilrdquo98
Diz o criacutetico sobre Odorico Mendes no referido artigo99
em que propotildee uma
revisatildeo de sua obra
ldquoNo Brasil natildeo nos parece que se possa falar no problema da traduccedilatildeo criativa sem
invocar os manes daquele que entre noacutes foi o primeiro a propor e a praticar com
empenho aquilo que se poderia chamar uma verdadeira teoria da traduccedilatildeo
Referimo-nos ao preacute-romacircntico maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1864)
Muita tinta tem corrido para depreciar o Odorico tradutor para reprovar-lhe o
preciosismo rebarbativo ou o mau gosto de seus compoacutesitos vocabulares
Realmente fazer um negative approach em relaccedilatildeo a suas traduccedilotildees eacute empresa
faacutecil de primeiro impulso e desde Siacutelvio Romero (que as considerava
lsquomonstruosidadesrsquo escritas em lsquoportuguecircs macarrocircnicorsquo)100
quase natildeo se tem feito
97 Conheccedila-se o comentaacuterio que pode ser lido na Wikipedia (site de divulgaccedilatildeo popular) acerca da
traduccedilatildeo de Odorico ldquoDas [traduccedilotildees] brasileiras [da Iliacuteada] a mais antiga eacute a de Odorico Mendes feita
no seacuteculo XIX (1874) que possui a peculiaridade de trocar os nomes dos deuses gregos pelos seus
arqueacutetipos equivalentes latinos Ou seja em vez de Zeus Juacutepiter de Posiacutedon Netuno etc A traduccedilatildeo de
Odorico Mendes toda em decassiacutelabos se notabiliza pela escolha lexical preciosa e a estrutura sintaacutetica amiuacutede incomum de feiccedilatildeo muitas vezes arcaizante e com farto recurso ao neologismordquo 98Haroldo de Campos (1991-92 144) ldquoOdorico com efeito eacute o patriarca da traduccedilatildeo criativa no Brasil
no seu intuito pioneiro de conceber um sistema coerente de procedimentos que lhe permitisse helenizar o
portuguecircs em lugar de neutralizar a diferenccedila do original rasurando-lhe as arestas sintaacuteticas e lexicais em
nossa liacutenguardquo 99 CAMPOS Haroldo de ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo In Metalinguagem ndash ensaios de
teoria e criacutetica literaacuteria 3ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1976 100 Escreveu Siacutelvio Romero no capiacutetulo ldquoPoetas de transiccedilatildeo entre claacutessicos e romacircnticosrdquo de sua Histoacuteria
da Literatura apoacutes incluir o ldquoHino agrave tarderdquo de Odorico e de comentaacute-lo favoravelmente ldquoQuanto agraves
traduccedilotildees de Virgiacutelio e Homero tentadas pelo poeta a maior severidade seria pouca ainda para condenaacute-
las Ali tudo eacute falso contrafeito extravagante impossiacutevel Satildeo verdadeiras monstruosidades [] A traduccedilatildeo deve revelar-se na leitura como trabalho autocircnomo e independente como se fora produto
original e assim primitivamente escrito Eacute o que natildeo se nota nas traduccedilotildees de Odorico Aacutesperas prosaicas
obscuras assaltam o leitor aquelas paacuteginas como flagelos O tradutor atirou-se agrave faina sem emoccedilatildeo sem
entusiasmo e munido de um sistema preconcebido O preconceito era a monomania de natildeo exceder o
nuacutemero de versos feitos por Virgiacutelio e Homero para provar a ideia pueril de ser a liacutengua portuguesa tatildeo
concisa quanto o latim e o grego Para obter este resultado esdruacutexulo e extravagante o maranhense
98
outra coisa Mas difiacutecil seria poreacutem reconhecer que Odorico Mendes admiraacutevel
humanista soube desenvolver um sistema de traduccedilatildeo coerente e consistente onde
os seus viacutecios (numerosos sem duacutevida) satildeo justamente os viacutecios de suas
qualidades quando natildeo de sua eacutepoca Seu projeto de traduccedilatildeo envolvia desde logo
a ideia de siacutentese (reduziu por exemplo os 12106 versos da Odisseia a 9302
segundo taacutebua comparativa que acompanha a ediccedilatildeo) seja para demonstrar que o
portuguecircs era capaz de tanta ou mais concisatildeo do que o grego e o latim seja para
acomodar em decassiacutelabos heroacuteicos brancos os hexacircmetros homeacutericos seja para
evitar as repeticcedilotildees e a monotonia que uma liacutengua declinaacutevel onde se pode jogar
com as terminaccedilotildees diversas dos casos emprestando sonoridades novas agraves mesmas
palavras ofereceria na sua transposiccedilatildeo de plano para um idioma natildeo-flexionado
Sobre este uacuteltimo aspecto diz ele lsquoSe vertecircssemos servilmente as repeticcedilotildees de
Homero deixaria a obra de ser apraziacutevel como a dele a pior das infidelidadesrsquo
Procurou tambeacutem reproduzir as lsquometaacuteforas fixasrsquo os caracteriacutesticos epiacutetetos
homeacutericos inventando compoacutesitos em portuguecircs animado pelo exemplo dos
tradutores italianos de Homero minus Monti e Pindemonte minus e muitas vezes
extremando o paradigma pois entendia a nossa liacutengua lsquoainda mais afeita agraves
palavras compostas e ainda mais ousadarsquo do que o italianordquo (1976 27)
A citaccedilatildeo apresenta ainda que sob a visatildeo particular do criacutetico uma siacutentese de
aspectos relacionados agrave produccedilatildeo tradutoacuteria de Odorico aspectos estes que
mencionados nessas observaccedilotildees seratildeo de novo abordados logo adiante com base em
comentaacuterios do proacuteprio Haroldo de Campos e de outros autores a fim de apresentarmos
um quadro da recepccedilatildeo criacutetica do trabalho do tradutor especialmente relevante em seu
caso pela divergecircncia que tem suscitado ao longo do tempo de julgamentos quanto a
seus resultados
Mas leiamos a seguir na iacutentegra a nota de Odorico ao Canto I de sua Iliacuteada ndash
assinale-se que eacute do conjunto de notas presente em sua obra que se pode depreender o
pensamento do tradutor sobre seu trabalho ndash na qual apresenta claramente a sua visatildeo
torturou frases inventou termos fez transposiccedilotildees baacuterbaras e periacuteodos obscuros jungiu arcaiacutesmos e
neologismos latinizou e grecificou palavras e proposiccedilotildees o diabo Num portuguecircs macarrocircnico abafou
evaporou toda a poesia de Virgiacutelio e Homerordquo ROMERO Siacutelvio Histoacuteria da literatura brasileira Rio de Janeiro Livraria Joseacute Olympio Editora 1949 4ordf ediccedilatildeo tomo terceiro p 35 (Primeira ediccedilatildeo Rio de
Janeiro Garnier 1902 Vol I)
Diga-se que eacute curioso como exatamente a qualidade apontada por criacuteticos posteriores como H de
Campos e A Medina Rodrigues de ser a de Odorico obra marcada pela recriaccedilatildeo e por consequente
autonomia eacute tida como inexistente por Romero teremos oportunidade neste estudo de apreciar a
identidade recriadora de Odorico Mendes
99
acerca do que seria ser ldquofielrdquo a Homero recriar a obra de acordo com os padrotildees de
percepccedilatildeo criacutetica do tradutor renovada em seu tempo e lugar segundo os paracircmetros
entatildeo tidos como desejaacuteveis Odorico manifesta opccedilotildees coerentes com a determinaccedilatildeo
de concisatildeo ideia esta comum ao entendimento moderno de poesia (lembrem-se os
comentaacuterios de Ezra Pound sobre a correspondecircncia anotada em dicionaacuterio alematildeo-
italiano entre a palavra dichten (poesia) e a palavra condensare101
As repeticcedilotildees de Homero se reduzem a duas classes ora por exemplo manda
Juacutepiter um recado que o mensageiro daacute pelos mesmos ou quase pelos mesmos
termos ora juntam-se epiacutetetos que por continuados agraves vezes podem enfastiar
Conservo as primeiras como proacuteprias da singeleza do autor e porque nelas se
assemelha aos antigos da Biacuteblia Quanto agraves segundas procedo assim trato do
verter os epiacutetetos com exatidatildeo e nos lugares mais apropriados isto feito omito as
repeticcedilotildees onde seriam enfadonhas Ainda mais vario a forma de cada epiacuteteto ou
me sirvo de um equivalente em vez de Aquiles velociacutepede digo tambeacutem
impetuoso raacutepido fogoso e assim no demais Note-se que os adjetivos gregos
terminando em casos diversos natildeo tecircm a monotonia dos nossos que soacute variam nos
dois gecircneros e nos dois nuacutemeros mdash Rochefort apoda do pueril o empenho de
variar natildeo sei como quem andava sempre agarrado ao rabicho da cabeleira de
Boileau e de Racine se levantou contra a variedade no estilo que um recomenda e
pratica o outro Se vertecircssemos servilmente as repeticcedilotildees de Homero deixava a
obra de ser apraziacutevel como eacute a dele a pior das infidelidades Com isto natildeo quero
fazer a apologia das paraacutefrases aspiro a ser tradutor (2008 873)
Em sua apresentaccedilatildeo agrave ediccedilatildeo da Iliacuteada organizada por Antocircnio Medina
Rodrigues102
Campos refere-se novamente agrave criacutetica de Silvio Romero (1851-1914)
associando a ela o julgamento posterior de Antonio Candido
Em ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo [] tive a ocasiatildeo haacute exatamente
30 anos de rebater a criacutetica preconceituosa de Siacutelvio Romero [] Esse juiacutezo
depreciativo natildeo obstante o ponto de vista em contraacuterio de filoacutelogos [] como
Joatildeo Ribeiro Silveira Bueno e Martins de Aguiar [] acabou por prevalecer e dar
101 POUND E ABC da literatura Satildeo Paulo Cultrix 1977 p 86 102 HOMERO Odisseia Org Antonio Medina Rodrigues Satildeo Paulo Ars Poetica Ateliecirc 2000
100
o tom [] Importa sim destacar neste contexto que a sentenccedila condenatoacuteria de
Siacutelvio Romero recebeu contemporaneamente o endosso de Antonio Candido
(1918) O autor da Formaccedilatildeo da Literatura Brasileira (1959) carrega ainda mais na
tinta usando expressotildees como ldquobestialoacutegicordquo ldquopreciosismo do pior gostordquo
ldquopedantismo arqueoloacutegicordquo e ldquoaacutepice de tolicerdquo para se referir ao legado tradutoacuterio
do maranhense [] A propoacutesito do conceito ldquomacarrocircnicordquo usado
pejorativamente por Siacutelvio Romero lembrei que ldquoo preconceito contra o
maneirismo natildeo pode ter mais vez para a sensibilidade moderna configurada por
escritores como o Joyce das palavras-montagem e o nosso Guimaratildees Rosa das
inesgotaacuteveis invenccedilotildees vocabularesrdquo [] (2000 11-12)
Mas antes de prosseguirmos com a questatildeo das traduccedilotildees de Odorico e sua
recepccedilatildeo criacutetica tratemos brevemente do proacuteprio escritor e de seu tempo Sobre ele diz
Antonio Medina Rodrigues
[Manuel Odorico Mendes viveu] no periacuteodo que abrange os uacuteltimos momentos do
neoclassicismo e o iniacutecio do romantismo Foi de corpo e alma um humanista um
claacutessico empenhado na traduccedilatildeo dos poemas de Virgiacutelio e Homero Mas foi
tambeacutem homem inclinado agrave singeleza que agrave margem das traduccedilotildees escreveu
poemas um pouco afinados com a sensibilidade romacircntica e que chegaram a ter
alguma repercussatildeo (2000 21)
Silvio Romero enquadra em sua Histoacuteria Odorico na classe dos ldquoPoetas
de transiccedilatildeo entre claacutessicos e romacircnticosrdquo Diz ele
A rotina criacutetica entre noacutes estabeleceu que o romantismo surgiu no Brasil em 1836
com a publicaccedilatildeo dos Suspiros Poeacuteticos de Magalhatildees [] A verdade eacute que antes
de Magalhatildees diversos poetas haviam abraccedilado os princiacutepios da nova escola
especialmente entre os estudantes de Olinda e Satildeo-Paulo desde 1829 Maciel
Monteiro Cacircndido de Arauacutejo Viana Odorico Mendes Moniz Barreto Barros
Falcatildeo [] (1949 tomo terceiro 12)
101
Por ter Odorico perdido sua produccedilatildeo em uma de suas ldquofrequentes viagens do
Maranhatildeo para o Riordquo103
restaram de sua produccedilatildeo poeacutetica (como relata Rodrigues)
apenas
[] o ldquoHino agrave Tarderdquo impresso em 1861 no Parnaso Maranhense depois de ter
aparecido em 1844 na Minerva Brasiliense com sua versatildeo mais precisa no
BreacutesilLitteacuteraire (1863) de Ferdinand Wolf poema de que Siacutelvio Romero dizia
sempre lembrar-se natildeo ldquosem boa e saudosa emoccedilatildeordquo tendo seus versos ldquoum natildeo
sei quecirc de vago e tristerdquo que bem pareciam ser ldquoa essecircncia mesma da poesiardquo ldquoO
sonhordquo (ou ldquoA morterdquo como se acha no Parnaso Maranhense) impresso em vaacuterias
coletacircneas e ldquoO Meu Retirordquo publicado na Minerva Brasiliense mais alguns
poemas de circunstacircncia fecham esse diminuto espoacutelio literaacuterio que Odorico natildeo
quis aumentar Seu interesse estava de fato voltado para a traduccedilatildeo (2000 22)
Incluam-se aqui os versos iniciais do ldquoHino agrave tarderdquo poema em versos
decassiacutelabos como referecircncia agrave criaccedilatildeo poeacutetica do tradutor
Que amaacutevel hora Expiram os favocircnios
Transmonta o Sol o rio se espreguiccedila
E a cinzenta alcatifa desdobrando
Pelas azuis diaacutefanas campinas
Na carroccedila de chumbo assoma a tarde
Salve moccedila tatildeo meiga e sossegada
Salve formosa virgem pudibunda
Que insinuas cos olhos doce afeto
Natildeo criminosa abrasadora chama
Em ti repousa a triste humana prole
Do trabalho do dia nem jaacute lavra
Juiz severo a baacuterbara sentenccedila
Que haacute de a fraqueza conduzir ao tuacutemulo
Lasso o colono mal avista ao longe
A irmatilde da noite coa-lhe nos membros
Plaacutecido aliacutevio mdash posta a dura enxada
Limpa o suor que em bagas vai caindo
103 Citaccedilatildeo (incluiacuteda por A Medina Rodrigues) de Antonio Henriques Leal in Pantheon maranhense
ensaio biograacutefico dos maranhenses ilustres jaacute falecidos Lisboa Imprensa nacional 1873 p36
102
Que ventura A mulher o espera ansiosa
Cos filhinhos em braccedilo e jaacute deslembra
O homem dos campos a diurna lida
Com entranhas de pai ledo abenccediloa
A progecircnie gentil que a olho pula
Natildeo vecircs como o fantasma do silecircncio
Erra e paacutera o buliacutecio dos viventes
Soacute quebra esta mudez o pastor simples
Que trazendo o rebanho dos pastios
Coa suspirosa frauta ameiga os bosques
Feliz que nunca o ruiacutedo dos banquetes
Do estrangeiro escutou nem alta noite
Foi agrave porta bater de alheio alvergue
Acha no humilde colmo os seus penates
Como acha o grande em soberbotildees palaacutecios
[]
No contexto preacute-romacircntico o uso do decassiacutelabo classicizante associa-se como
se pode constatar agrave mencionada ldquosensibilidade romacircnticardquo104
Como se veraacute
detalhadamente depois (ao analisarmos a produccedilatildeo do tradutor) o verso camoniano seraacute
ndash conforme se poderia esperar sabendo-se que esta era em seu tempo a medida de
escolha para a dicccedilatildeo elevada da narrativa heroacuteica ndash o metro escolhido por Odorico (agrave
semelhanccedila de seus antecessores na traduccedilatildeo da Eneida) para suas versotildees das eacutepicas
latina e grega dotadas contudo de aspectos maneiristas (como observou Campos) e
mais ousadia vocabular incluindo-se a formulaccedilatildeo de compostos agrave semelhanccedila dos
termos greco-latinos A opccedilatildeo pelos decassiacutelabos eacute assim comentada por Saacutelvio
Nienkoumltter em seu Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo da Iliacuteada105
por ele anotada ldquoverso a versordquo
104 Confira-se em termos da associaccedilatildeo do classicismo agrave ldquosensibilidade romacircnticardquo o teor um tanto
semelhante (embora menos ldquoclaacutessicordquo pela diversidade temaacutetica e de perceptiacutevel menor competecircncia
esteacutetica) em relaccedilatildeo aos de Odorico dos decassiacutelabos (heroacuteicos estes) de um dos representantes da
ldquoTerceira fase do romantismordquo (segundo Romero ndash id 265-331) Joseacute Bonifacio ldquo[] O desdenhoso
passo o gesto ousado A descuidosa matildeo que a tranccedila alisa Na triacutepode infernal a pitonisardquo (Romero
1949 317) 105 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo Odorico Mendes Prefaacutecio e notas verso a verso Saacutelvio Nienkoumltter
Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da Unicamp 2008
103
[Odorico] Conseguiu com esta escolha imprimir ao verso a velocidade que
Homero imprimiu Sendo a liacutengua portuguesa mais lenta que a grega o verso
decassiacutelabo acaba imprimindo a velocidade que eacute proacutepria do hexacircmetro grego
contudo o decassiacutelabo portuguecircs eacute notadamente mais acelerado (2008 28)
Sobre a adoccedilatildeo do decassiacutelabo pelo tradutor diz Silveira Bueno
Maior efeito teria [Odorico Mendes] alcanccedilado se tivesse tido a coragem de
romper com a praxe do Renascimento e houvesse empregado o alexandrino mais
amplo o uacutenico metro moderno que se aproxima do hexacircmetro dactiacutelico de
Homero Natildeo foi seu o pecado mas da sua eacutepoca (1946 10)106
(A questatildeo dos metros seraacute tratada neste estudo diga-se ao longo das referecircncias aos
procedimentos utilizados pelos diversos tradutores focalizados)
Sobre as caracteriacutesticas da linguagem de Odorico comenta Rodrigues ao refutar
a observaccedilatildeo de Siacutelvio Romero de que ldquoEm literatura e arte o maranhense era um
claacutessico um espiacuterito conservadorrdquo107
Nem poliacutetica nem literariamente Odorico Mendes teria sido conservador e natildeo o
foi sobretudo quando comparamos o trabalho de seus textos tanto com a
textualidade do classicismo em que ele se formara quanto com a do romantismo
que de certa forma ele quis evitar Odorico Mendes levou a liacutengua portuguesa aos
limites que pocircde e explorou vaacuterios tipos de recurso desde o tenso claacutessico ateacute o
oral cotidiano [] E Odorico natildeo fez o que fez para ldquoser modernordquo mas por
necessidade interna de seu trabalho [] (2000 24)
Quanto ainda agrave relaccedilatildeo de Odorico com a eacutepoca em que se insere diz o mesmo
autor
A eacutepoca em que se publica o Virgiacutelio Brasileiro (1854) era francamente romacircntica
sobretudo realccedilada pela vertente popular de Macedo Alencar Gonccedilalves Dias
homens que praticamente constituiacuteram o primeiro ldquogostordquo da era nacional Natildeo
obstante o ideal algo nostaacutelgico e elitizante da epopeia ainda perdurava A
106 O comentaacuterio seraacute referecircncia para H de Campos ao justificar sua proacutepria opccedilatildeo pelo metro
dodecassiacutelabo para a traduccedilatildeo da Iliacuteada 107 ROMERO S Op cit
104
Confederaccedilatildeo dos Tamoios ndash de que O Guarani pode ser considerado uma espeacutecie
de antiacutepoda mais popular e mais feliz ndash eacute de 1856 Os Timbiras [] eacute de 1857[]
Pode-se dizer [] que o experimentalismo da eacutepica na fase romacircntica fazia com
que o antigo vernaacuteculo camoniano desse um salto sobre si proacuteprio na acircnsia de
fazer o gecircnero sobreviver agraves novas modalidades literaacuterias do tempo [] O romance
e boa parte da poesia se vatildeo orientar pela construccedilatildeo de uma personalidade
brasileira []
Odorico era um dos que resistiam Achava que se podia ser original ldquoimitando os
antigosrdquo e explorando as esferas mais tenebrosas da linguagem coisa que por
sinal o nacionalismo abominava Daiacute que ele veraacute o gecircnero eacutepico como uma
estrutura trans-histoacuterica internamente dinamizaacutevel e dinamizaacutevel sobretudo pela
infinita possibilidade criadora das liacutenguas Este racionalismo linguiacutestico []
somado agrave obsessiva concisatildeo ao gosto pelas literaturas eacutepicas e agrave aversatildeo aos
iacutempetos emolientes do nacionalismo literaacuterio acabou fazendo com que Odorico
Mendes compusesse obra homogecircnea e coerente [] (2000 26-27)
Tambeacutem a respeito da linguagem de Odorico sob os aspectos do vocabulaacuterio e
da sintaxe Nienkoumltter atribui-lhe um ldquoamor agrave precisatildeordquo que seria a verdadeira razatildeo
para o uso que faz de ldquovocabulaacuterio raro e contorccedilotildees sintaacuteticasrdquo em vez da ldquoprimeira
impressatildeordquo que se pode ter de que o motivo seja ldquodemonstrar erudiccedilatildeordquo Apesar da
suposiccedilatildeo das intenccedilotildees do autor algo pouco uacutetil ou desejaacutevel (ldquoOdorico natildeo usa por
demonstrarrdquo o propoacutesito de Odorico natildeo erardquo) haacute nesse e nos comentaacuterios que se
seguem afirmaccedilotildees que correspondem ao que se pode constatar por meio da observaccedilatildeo
do texto de Mendes
[] O propoacutesito de Odorico Mendes natildeo era traduzir todas as palavras do original
mas construir periacuteodos que denotassem todo o sentido contido neste original
mantendo deste a forccedila expressiva e riacutetmica Este preceito o leva agrave economia
verbal e agrave frase composta [] As frases invertidas se datildeo pelo mesmo motivo
concatenadas duas frases podem encerrar contexto mais abrangente e produzir um
estilo mais elegante e inteligente (2008 31-32)
O mesmo criacutetico assim se refere de modo geral agraves opccedilotildees tradutoacuterias de
Odorico
105
Odorico Mendes trabalha com o texto de Homero em plena maturidade
especialmente na maturidade poeacutetica e literaacuteria Ao planejar o trabalho o poeta
teve de fazer escolhas preacutevias como o metro o estilo o vocabulaacuterio etc suas
escolhas foram sempre fundadas na tradiccedilatildeo Tradiccedilatildeo da liacutengua que o fez preferir
o verso camoniano que julgava mais apropriado agraves epopeias a nomenclatura dos
deuses de Virgiacutelio jaacute que nossa liacutengua eacute latina o vocabulaacuterio dos grandes claacutessicos
da liacutengua portuguesa etc Produz assim uma espeacutecie de interliacutengua em que nas
palavras de Octaacutevio Camargo ldquopotildee a conversar Homero Virgiacutelio e Camotildeesrdquo
(2008 31-32)
Acerca da criaccedilatildeo de palavras com base na combinaccedilatildeo de termos marcante no
texto do tradutor jaacute assim se referia Silveira Bueno antecipando a valoraccedilatildeo por H de
Campos desse procedimento
Esta eacute outra qualidade de Odorico Mendes preceito que recebeu de Homero a
formaccedilatildeo de termos novos pela adjunccedilatildeo de outros jaacute conhecidos Para dar uma
simples amostra da sua fecunda invenccedilatildeo notamos somente no primeiro livro
todas estas formaccedilotildees segundo os moldes do grande mestre grego infrugiacutefero mar
altipotente Jove celeriacutepede Aquiles [] arciargecircnteo Febo [] dedirroacutesea Aurora
[] (1956 11-12)
Sobre a recepccedilatildeo criacutetica da obra de Odorico citem-se nesta breve apresentaccedilatildeo
geral do tradutor e sua obra comentaacuterios que dela faz em artigo publicado em 2007 e
em resenha criacutetica publicada em 2008 Paulo Seacutergio de Vasconcellos
[] A obra de Odorico Mendes foi alvo frequente de incompreensotildees sobretudo
suas traduccedilotildees de Homero [] Eacute que difiacutecil e desafiador por vezes natildeo eacute lido
com o cuidado e a exigecircncia que merece []
Odorico Mendes foi um desses tradutores que deixaram o discurso da estrita e
suposta fidelidade ao sentido literal por alegaccedilatildeo de que a poesia em seu aspecto
formal eacute mesmo intraduziacutevel [] no tiacutetulo mesmo de sua Eneida se lecirc ldquotraduccedilatildeo
poeacuteticardquo condensando todo um projeto de traduccedilatildeo que jaacute se revela na escolha de
uma focircrma meacutetrica riacutegida o decassiacutelabo heroacuteico []108
108 VASCONCELLOS P S ldquoDuas traduccedilotildees poeacuteticas da Eneida Barreto Feio e Odorico Mendesrdquo In
Martinho dos Santos Marcos (et al) (org) 2ordm Simpoacutesio de Estudos Claacutessicos da USP Satildeo Paulo
Humanitas 2007 pp 9597
106
Independentemente do que entendamos por traduccedilatildeo natildeo haacute como negar que nessa
traduccedilatildeo [da Iliacuteada por Odorico Mendes] extremamente concisa (por vezes talvez
excessivamente concisa) atenta agrave palavra exata (agraves raias da obsessatildeo vejam-se as
notas do tradutor sobre os nomes das diversas peccedilas de uma roda) latinizante ([]
o vocabulaacuterio eacute repleto de latinismos) e ao mesmo tempo helenizante (nos
compostos agrave moda grega []) haacute inuacutemeros versos dignos de figurar em antologia
de literatura pelas qualidades esteacuteticas prodiacutegios de som ritmo e expressividade
[]109
Inclua-se ainda o comentaacuterio relativo agraves traduccedilotildees de Odorico por Joatildeo Acircngelo
Oliva Neto110
como tendo se convertido hoje (apoacutes portanto a reavaliaccedilatildeo de seu
trabalho incitada por Haroldo de Campos) em uma referecircncia quanto a seus
procedimentos para criacutetica de outras traduccedilotildees (evidenciando-se assim a importacircncia
que tal obra adquiriu como paracircmetro de recriaccedilatildeo poeacutetica em nosso tempo no paiacutes)
[] mercecirc da importacircncia que a traduccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes auferiu entre
noacutes apoacutes as reflexotildees de Haroldo de Campos os criteacuterios da teoria tradutoacuteria do
maranhense estatildeo a tornar-se equivocadamente criteacuterio de avaliaccedilatildeo de todas as
traduccedilotildees ateacute mesmo daquelas tributaacuterias das dominantes poeacuteticas anteriores agrave
teoria de Odorico e daquelas cujo criteacuterio deliberadamente natildeo eacute o mesmo de
Odorico e de Haroldo de Campos caso evidente de Leonel da Costa Franco
Barreto Cacircndido Lusitano por ser anteriores e de Carlos Alberto Nunes e
Agostinho da Silva Tomemos a concisatildeo ou siacutentese ingrediente necessaacuterio de
alguns gecircneros antigos como o epigrama grego e o latino jaacute era procedimento
valorizado por certos autores [] ateacute mesmo em outros gecircneros de poesia como a
proacutepria eacutepica e bem sabemos que eacute pedra de toque por exemplo de manifestaccedilotildees
da poesia modernista e da contemporacircnea Era-o tambeacutem na teoria de Odorico
Mendes que por lograr concisatildeo suprimiu a repeticcedilatildeo de discursos proacutepria da
oralidade homeacuterica [] Mas o Homero que hoje lemos escrito em grego eacute
tributaacuterio da tradiccedilatildeo oral em que sobejam aquelas repeticcedilotildees pelo que se deve
109Idem ldquoHomero Iliacuteada Traduccedilatildeo de O Mendes Satildeo Paulo Campinas ateliecirc Editorial Unicamp
2008rdquo (resenha criacutetica) In Nuntius Antiquus nordm 3 Belo Horizonte agosto de 2009 (ISSN 19833636) 110 OLIVA NETO Joatildeo Acircngelo ldquoA Eneida em bom portuguecircs consideraccedilotildees sobre teoria e praacutetica da
traduccedilatildeo poeacuteticardquo In Martinho dos Santos Marcos (et al) (org) 2ordm Simpoacutesio de Estudos Claacutessicos da
USP Satildeo Paulo Humanitas 2007 pp 77-78
107
lembrar que natildeo eacute conciso natildeo eacute sinteacutetico porque natildeo havia este criteacuterio entre os
aedos [] (2007 77-78)
A importante relativizaccedilatildeo (conceituada no artigo acima citado tendo-se em
conta a adoccedilatildeo da obra de Odorico como referecircncia da traduccedilatildeo criativa) dos
procedimentos e resultados de traduccedilotildees com base na existecircncia de pontos de vista
proacuteprios que os norteiam e a consequente proposiccedilatildeo de Oliva Neto de que uma
traduccedilatildeo seja avaliada ldquoa partir de sua proacutepria teoria e eventualmente das doutrinas
retoacuterico-poeacuteticas em que se insere essa teoria em seu tempo evitando-se generalizar
criteacuterios de um dado tradutor para outros em outros temposrdquo (2007 65) constituem-se
em referecircncia particularmente uacutetil a este trabalho
A2 Carlos Alberto Nunes (1897-1990)
Responsaacutevel por traduccedilotildees da Odisseia e da Iliacuteada (publicadas respectivamente
em 1960 e 1962) o meacutedico poeta e tradutor (tambeacutem maranhense) Carlos Alberto
Nunes (que entretanto morou no interior e na capital de Satildeo Paulo a maior parte de sua
vida) eacute dono de vasta obra tradutoacuteria incluindo-se a Eneida de Virgiacutelio vertida do
latim os Diaacutelogos de Platatildeo vertidos (assim como as eacutepicas homeacutericas) do grego o
teatro completo de Shakespeare e peccedilas teatrais de J W Goethe e de Friedrich Hebbel
traduzidas do alematildeo Escreveu tambeacutem diversas obras originais de poesia e drama
entre elas a epopeia (em versos decassiacutelabos) Os brasileidas publicada em 1938 da
qual citamos em seguida os versos iniciais (a fim de que se perceba que embora em
decassiacutelabos o poema se faz com constante uso de enjambement aparentemente sem
compromisso com a siacutentese)
Musa canta-me a reacutegia poranduba
das bandeiras os feitos sublimados
dos heroacuteis que o Brasil plasmar souberam
traveacutes do Pindorama demarcando
nos sertotildees a conquista e as esperanccedilas111
111 NUNES C A Os brasileidas (Epopeia nacional em nove cantos e um epiacutelogo) Satildeo Paulo
Melhoramentos s d
108
Cite-se pela pertinecircncia em se incluir o ponto de vista do autor acerca da poesia
eacutepica agrave qual dedicou grande parte de seu empenho criador e recriador algo de seu
pensamento sobre ldquoo lugar da poesia eacutepica na literatura modernardquo exposto em ensaio
publicado na ediccedilatildeo de Os brasileidas
A epopeia como gecircnero literaacuterio natildeo estaacute morta nem pertence aos museus da
literatura O exemplo do escritor cretense [Nikos Kazantzakis autor de nova
Odisseia] eacute decisivo para demonstrar a possibilidade da criaccedilatildeo em nossos dias de
uma epopeia heroacuteica ao mesmo tempo claacutessica e revolucionaacuteria tendo se revelado
como carecente de base a tentativa dos teoacutericos e doutrinadores de fechar caminhos
para a atividade da imaginaccedilatildeo criadora [] 112
E inclua-se tambeacutem uma apreciaccedilatildeo sua integrante das ldquoNotas de um tradutor
de Homerordquo a respeito da poesia homeacuterica como um meio de se observar sua crenccedila de
que a traduccedilatildeo pode aproximar eacutepocas e culturas diversas pela poesia ldquoinfusa dos
poemas de Homerordquo
Sempre fui de parecer que ateacute para os menos iniciados os poemas de Homero
podem constituir ocasiatildeo de deleite natildeo foi por acaso que esses dois monumentos
inigualaacuteveis atravessaram milecircnios sem perder o frescor dos primeiros tempos []
Atrever-me-ei a dizer que ateacute mesmo as pessoas mais imbuiacutedas de prevenccedilatildeo
contra a literatura claacutessica natildeo poderatildeo deixar de sentir a poesia infusa dos poemas
de Homero se se entregarem agrave leitura honesta dessas criaccedilotildees sem par em pouco
tempo se sentiratildeo empolgadas pela verdade eterna que se irradia daquele mundo de
poesia Onde quer que abramos Homero o sol bate sempre em cheio A sua poesia
natildeo eacute de ontem nem de hoje poreacutem eterna agrave medida que se afasta que se afasta no
tempo liberta-se dos liames da contingecircncia humana para refletir em sua estrutura
liacutempida os traccedilos das criaccedilotildees universais []113
112 NUNES C A ldquoEnsaio sobre a poesia eacutepicardquo In Os brasileidas ndash epopeia nacional Satildeo Paulo
Melhoramentos 1962 p 14 113 Idem ldquoNotas de um tradutor de Homerordquo In Revista da Academia Paulista de Letras Satildeo Paulo s
d p 142
109
Algo importante acerca de suas concepccedilotildees relativas agrave tarefa da traduccedilatildeo pode
ser depreendido do seguinte trecho de suas referidas ldquoNotasrdquo114
[] ateacute mesmo as divergecircncias remanescentes que tanto acirram os acircnimos nos
arraiais da Filologia redundam em vantagem para o tradutor pela variedade daiacute
decorrente que lhe proporciona maior amplitude de movimentos Um exemplo
entre muitos diante do epiacuteteto Argeiphontes em referecircncia a Hermes encontrado
na Odisseia teraacute o tradutor que optar rapidamente entre vaacuterias interpretaccedilotildees
ldquomatador de Argosrdquo ndash numa etimologia forccedilada mas que vem da antiguidade ndash
ldquobrilhanterdquo e vaacuterias outras Se se resolver pela primeira empregaraacute com toda
certeza o neologismo ldquoArgicidardquo o que o obrigaraacute a uma nota para elucidaccedilatildeo de
um mito tardio e de pouca ou de nenhuma significaccedilatildeo no mundo helecircnico na
segunda hipoacutetese falaraacute linguagem simples mas por isso mesmo mais de acordo
com as caracteriacutesticas do estilo homeacuterico o leitor natildeo perceberaacute o obstaacuteculo e
prosseguiraacute empolgado pela beleza dos poemas imortais (p 145)
Como se pode notar Nunes antepotildee-se a formulaccedilotildees que possam dificultar a
leitura fluente da traduccedilatildeo de Homero abolindo o uso de notas (ldquoAo publicar o texto da
traduccedilatildeo portuguesa daqueles poemas deixei-o desacompanhado de notas jaacute por afagar
a esperanccedila de que conseguiria infundir-lhe uma parcela da beleza original []) (pp
141-142) A dicccedilatildeo de sua obra tradutoacuteria aponta portanto para uma pretendida
oposiccedilatildeo ao modo como Odorico realizara seu intento ao optar por ldquouma linguagem
simplesrdquo (opccedilatildeo baseada tambeacutem em sua visatildeo do texto homeacuterico como dotado de
simplicidade) busca favorecer a fruiccedilatildeo da obra pelo leitor a que se dirige Diz ele ldquoem
geral as notas que acompanham as traduccedilotildees valem como trabalho agrave parte que servem
para revelar os fundamentos filoloacutegicos de seus autores Natildeo eacute um trabalho dessa
natureza que me proponho nesse momentordquo (p 144)
Sobre sua versatildeo da obra teatral de Shakespeare e a recepccedilatildeo criacutetica por ela
obtida diz Marcia A P Martins115
114 Outras observaccedilotildees de C A Nunes sobre traduccedilatildeo seratildeo citadas oportunamente durante as primeiras
iniciativas de anaacutelise de fragmentos da obra homeacuterica 115 ldquoA Traduccedilatildeo do drama shakespeariano por poetas brasileirosrdquo In revista Ipotesi v 13 n 1 janjul
Juiz de Fora 2009 pp 27-40
110
[Carlos Alberto Nunes] dedicou-se durante a deacutecada de 1950 a um projeto
grandioso a traduccedilatildeo de todas as comeacutedias trageacutedias e dramas histoacutericos de
Shakespeare para o portuguecircs
[] A recepccedilatildeo criacutetica do trabalho de Nunes pode ser avaliada pelos comentaacuterios
de alguns tradutores e criacuteticos Eugecircnio Gomes elogiou o trabalho de Nunes que
considerou de grande envergadura e de modo geral consciencioso e seguro
ldquocapaz de impor-se como verdadeiro modecirclo do que deveraacute ser uma traduccedilatildeo
brasileira de Shakespearerdquo (GOMES 1961 p 68) []
Para Nelson Ascher tradutor e criacutetico Nunes eacute um tradutor erudito e rigoroso com
sua busca por manter o esquema meacutetrico do original enquanto que na avaliaccedilatildeo da
especialista em estudos shakespearianos Margarida Rauen (1993) as traduccedilotildees de
Nunes satildeo difiacuteceis de ler por causa do seu estilo ornamentado e grandiloquente e
por observarem as normas da linguagem escrita tatildeo diferentes daquelas da
linguagem oral Barbara Heliodora por sua vez criticou-lhe o excesso de
inversotildees que inviabilizam o uso da sua traduccedilatildeo no palco (1997)
Eacute possiacutevel observar que enquanto o comentaacuterio de Ascher deixa transparecer uma
concepccedilatildeo de traduccedilotildees shakespearianas que valoriza a manutenccedilatildeo das
caracteriacutesticas formais observadas no texto de partida as duas apreciaccedilotildees
seguintes evidenciam uma concepccedilatildeo de ldquofidelidaderdquo a Shakespeare que pressupotildee
a preservaccedilatildeo da sua funccedilatildeo teatral para a qual contribuem uma dicccedilatildeo e uma
sintaxe adequadas a um texto que se destina primordialmente agrave fala e natildeo agrave
leitura
Por fim em seu artigo ldquoFigura em minha liacutengua da traduccedilatildeo em verso do verso
dramaacutetico de William Shakespeare um projeto para Ricardo IIIrdquo (2007) o
dramaturgo e tradutor de textos teatrais Marcos Barbosa de Albuquerque considera
Nunes um tradutor brilhante embora ldquobastante particular em sua escolha de
palavras e vasto no emprego de inversotildees e de malabarismos sintaacuteticosrdquo estilo que
tem sido recorrentemente tachado de arcaizante pela criacutetica (2009 35)
Tendo alcanccedilado relativa popularidade suas traduccedilotildees da eacutepica greco-latina
foram publicadas com significativa tiragem em ediccedilotildees de bolso Sobre essas
traduccedilotildees diz Haroldo de Campos
No que respeita agrave traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes embora natildeo se possa
enquadrar na categoria da lsquotranscriaccedilatildeorsquo (termo que eacute liacutecito aplicar sem exagero a
Odorico natildeo obstante os eventuais lsquodesniacuteveisrsquo que possam afetar o resultado
111
esteacutetico de seu projeto tradutoacuterio) estamos diante de uma empreitada incomum
que merece como tal respeito e admiraccedilatildeo Desde logo pelo focirclego do tradutor
que levou a cabo a transposiccedilatildeo integral em versos para o portuguecircs de ambos os
extensos poemas Num outro plano o prosoacutedico pela interessante soluccedilatildeo
(louvada por Maacuterio Faustino se bem me lembro) de buscar num verso de dezesseis
siacutelabas o equivalente em meacutetrica vernaacutecula do hexacircmetro (verso de seis peacutes)
homeacuterico O resultado para o nosso ouvido embora relente um pouco o passo do
verso aproximando-o da prosa ritmada eacute uma boa demonstraccedilatildeo de que natildeo
assistia razatildeo a Mattoso Cacircmara Jr quando impugnava a ac1imataccedilatildeo do verso de
medida longa em portuguecircs considerando-o lsquointeiramente anocircmalorsquo em nossa
liacutengua (Mattoso referia-se agrave adoccedilatildeo de um verso de quinze siacutelabas por Fernando
Pessoa em sua traduccedilatildeo de The Raven de E A Poe) A praacutetica de Carlos Alberto
Nunes sustentando com brio por centenas de versos essa medida contesta
eloquentemente aquela restriccedilatildeo normativa No que se refere agrave linguagem todavia
natildeo eacute um empreendimento voltado para soluccedilotildees novas com a estampa da
modernidade Trata-se antes de uma traduccedilatildeo acadecircmica de pendor
lsquoclassicizantersquo que retroage estilisticamente no tempo116
Um aspecto da obra tradutoacuteria de Nunes ndash jaacute mencionado na referecircncia a
avaliaccedilatildeo de Nelson Ascher relativa a suas traduccedilotildees de Shakespeare ndash eacute a preocupaccedilatildeo
de correspondecircncia riacutetmico-meacutetrica com o original e portanto a importacircncia por ele
atribuiacuteda aos padrotildees formais do texto que se traduz Frequentemente assinalada por
seus criacuteticos a caracteriacutestica de recriaccedilatildeo do aspecto meacutetrico costuma ser contraposta ndash
como o fez Campos ndash ao que seria um conservadorismo da linguagem Para Martins
referindo-se a sua versatildeo da obra shakespeariana suas traduccedilotildees satildeo
conservadoras no que diz respeito tanto agraves poeacuteticas que vinham surgindo no
sistema literaacuterio brasileiro [agrave eacutepoca em que realizou o trabalho quando se
desenvolvia o movimento da vanguarda concretista na poesia] como agrave maneira de
se traduzir Shakespeare como um autor de linguagem elevada que exigiria
rebuscamento sintaacutetico e lexical (2009 35)
116 CAMPOS H ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo Revista USP no 12 dez-jan- fev 1991-1992 pp 143-161
112
Parece-me bastante discutiacutevel a noccedilatildeo de que a opccedilatildeo tradutoacuteria teria de estar
vinculada agraves ldquopoeacuteticas que vinham surgindo []rdquo e tambeacutem de que a ideia da obra de
Shakespeare como dotada de linguagem elevada implique necessariamente
conservadorismo
A importacircncia atribuiacuteda por Nunes no plano formal agrave observacircncia do esquema
meacutetrico em traduccedilatildeo evidencia-se nesta sua referecircncia agrave eacutepica grega
Firmemos portanto mais uma caracteriacutestica do estilo eacutepico a uniformidade do
verso ldquoHomero emerge da corrente da vidardquo diz Staiger ldquoe se conserva imoacutevel
em face do mundo exterior contempla as coisas de um certo ponto de vista por
uma determinada perspectiva Esta eacute condicionada pelo ritmo de seus versos sendo
ela que lhe assegura a identidade o ponto fixo no fluxo permanente das coisasrdquo Eacute
essa condiccedilatildeo que permite ao poeta conservar a serenidade em face dos
acontecimentos relatados Interpretando o hexacircmetro em termos da meacutetrica
portuguesa veremos que se trata de um verso longo de dezesseis siacutelabas
paroxiacutetono com acento predominante na 1ordf 4ordf 7ordf 10ordf 13ordf e 16ordf siacutelabas e discreta
cesura depois do terceiro peacute
Ouve-me Atena tambeacutem nobre filha de Zeus poderoso
Quando o poeta se afasta desse paradigma para introduzir duas pausas no verso
que o dividem em trecircs porccedilotildees quase iguais de regra volta no verso subsequente a
cair no ritmo inicial que eacute o predominante em todo o recitativo
Daacute que possamos cobertos de gloacuteria voltar para as naves
poacutes grande feito acabarmos que haacute de lembrar sempre aos Teucros
Nas traduccedilotildees esse esquema natildeo eacute observado com rigor notando-se ainda a
tendecircncia para variar de ritmo pelo deslocamento das pausas dentro do verso com
o que se evita a monotonia de possiacutevel desagrado para o ouvido moderno Mas
com isso padece o estilo eacutepico em uma de suas caracteriacutesticas essenciais []
(1962 38-39)
Haacute no entanto em relaccedilatildeo agrave opccedilatildeo de Nunes de ldquofidelidaderdquo ao esquema
riacutetmico-meacutetrico do texto-fonte discussotildees acerca da qualidade de seu resultado esteacutetico
113
Sobre o sistema praticado pelo tradutor em suas versotildees da eacutepica virgiliana defende-o
Oliva Neto (que no entanto tambeacutem aponta no aspecto da linguagem o ldquodefeitordquo do
ldquoleacutexico beletristardquo empregado por Nunes)
[] Carlos Alberto Nunes quis reproduzir o hexacircmetro datiacutelico [] A bem dizer
quando se diz ldquo16 siacutelabasrdquo [quantidade que se atribui ao verso usado por Nunes]
estaacute-se de fato a contaacute-las ateacute a uacuteltima siacutelaba tocircnica como se faz na meacutetrica
portuguesa hoje o que revela que se levou em conta a dimensatildeo do verso que eacute
entatildeo muito longo em vez privilegiar-se a ceacutelula datiacutelica que sendo o que
ritmicamente se impotildee era o que o tradutor tinha em mente Na leitura riacutetmica eacute
secundaacuteria a dimensatildeo do verso jaacute que os daacutetilos se sucedem verso apoacutes verso natildeo
tendo tanta importacircncia aqui a quebra deles ou seja onde terminam isto eacute a
dimensatildeo Estaacute-se a criticar a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes natildeo pelos defeitos
intriacutensecos que decerto possui como a meu ver entre outros o leacutexico beletrista
mas porque natildeo fez segundo cada criacutetico ou o que Odorico Mendes ou que
Barreto Feio fizeram o que eacute extriacutenseco [] (2007 82-83)
O esquema meacutetrico adotado por Nunes eacute objeto de comentaacuterio de Medina
Rodrigues que questiona sua pertinecircncia embora em referecircncia geneacuterica a seu
trabalho reforce o juiacutezo aparentemente consensual de ser ele um ldquomeritoso tradutorrdquo
O hexacircmetro de Homero tem seis peacutes com predomiacutenio do daacutectilo como em nossas
proparoxiacutetonas Carlos Alberto Nunes incansaacutevel e meritoso tradutor levou isso a
seacuterio Em suas versotildees da Iliacuteada e da Odisseia procurou ajeitar o portuguecircs em
compassos ternaacuterios para imitar o original []
Certamente o tradutor sabia que os compassos ou peacutes de Homero natildeo privilegiam
siacutelabas tocircnicas e aacutetonas mas longas e breves que aliaacutes natildeo existem em liacutenguas
que falamos Privilegiando a estrutura silaacutebica naquilo que pocircde o tradutor imitou
uma teacutecnica sem levar-lhe em conta o efeito a saber aquela velocidade colorida
que Homero consegue com o hexacircmetro grego e que a traduccedilatildeo de Carlos Alberto
Nunes natildeo consegue com o hexacircmetro portuguecircs por ser este muito pesado lento
Eacute a ilusatildeo aritmeacutetica da semelhanccedila formal que natildeo percebe que teacutecnicas idecircnticas
levam a efeitos distintos
[] enquanto Odorico estava preocupado em traduzir efeitos ou sentidos Carlos
Alberto Nunes se preocupou em traduzir basicamente a forma ou mais
114
precisamente como querem alguns a focircrma os esquemas retoacutericos prosoacutedicos os
epiacutetetos a frase oralizada etc (2000 50-51)
O aspecto particular ndash e tatildeo relevante ndash da tarefa empreendida por Nunes em
manter a dinacircmica fixa de acentuaccedilatildeo dos versos assim como suas peculiaridades
esteacuteticas gerais seratildeo assim como as obras dos demais tradutores analisadas
oportunamente
A3 Haroldo de Campos
Apresenta-se a seguir de modo sucinto a trajetoacuteria do poeta tradutor e ensaiacutesta
Haroldo de Campos ndash que como jaacute se disse seraacute objeto relativamente privilegiado deste
trabalho devido ao alcance e agrave importacircncia de sua obra tradutoacuteria e ensaiacutestica sobre
traduccedilatildeo poeacutetica Para uma certa independecircncia desta apresentaccedilatildeo natildeo seratildeo evitadas
algumas informaccedilotildees sobre aspectos de seu pensamento e de suas fontes presentes
tambeacutem em outros toacutepicos deste estudo
Estabelecer relaccedilotildees nexos transitar entre tempos espaccedilos culturas liacutenguas
formas ligar fundir elementos aparentemente diacutespares distantes realizar o hibridismo
a atitude que permeia estes objetivos parece-me determinante na obra e no pensamento
de Haroldo de Campos
Vejamos brevemente algumas manifestaccedilotildees da focalizaccedilatildeo do entremeio do
espaccedilo em que se podem traccedilar conexotildees entre dois pontos referenciais
Sobre sua obra Galaacutexias diz Haroldo em entrevista concedida a Carlos Rennoacute e
publicada em 23 de outubro de 1984117
A poesia concreta respondeu a uma das vertentes da minha personalidade as
Galaacutexias respondem a outra Que elas tenham podido coexistir eacute algo que me
demonstrou a inexistecircncia de uma oposiccedilatildeo antagocircnica entre barroquismo e
construtivismo [] Natildeo teria sido possiacutevel por outro lado sem a experiecircncia de
rigor e controle do acaso da poesia concreta disciplinar o turbilhatildeo barroquizante
que a escritura galaacutetica desencadeia
117 A referida entrevista foi publicada nessa data no caderno Folha Ilustrada do jornal Folha de SPaulo
115
Coexistecircncia entre ldquoconstrutivismo e barroquismordquo entre a poesia concreta e o
ldquoturbilhatildeo barroquizanterdquo da ldquoescritura galaacuteticardquo a fusatildeo desenvolve-se como
instrumento como caminho para o autor de encontro entre diferentes tendecircncias que
criaraacute um espaccedilo manifesto natildeo soacute na ldquoproesiardquo de Galaacutexias como em sua obra
propriamente poeacutetica (lembre-se por exemplo a poesia de Signacircncia quase ceacuteu ou a de
Finismundo a uacuteltima viagem agraves quais voltaremos mais adiante) A linguagem de
Galaacutexias em seu ldquohibridismo textualrdquo jaacute conteria em si o ldquofusionismordquo do proacuteprio
barroco
[Em um ensaio] referia-me ao Barroco pelo fusionismo que lhe eacute proacuteprio pelo
hibridismo de liacutenguas e culturas que o caracteriza como o momento embrionaacuterio
em nossa Ameacuterica dessa rebeliatildeo contra a normatividade claacutessica dos gecircneros
Tambeacutem a proacutepria ideia de ldquoruptura dos gecircnerosrdquo ou seja fusatildeo de seus limites
estaria na base da escritura da obra
Desde longa data eu vinha me preocupando com o problema da ruptura dos
gecircneros na literatura contemporacircnea da rarefaccedilatildeo dos limites entre poesia e prosa
e tambeacutem entre ficccedilatildeo e ensaio criacutetico entre o exerciacutecio ficcional e o exerciacutecio
metalinguiacutestico da escritura
Teria sido ainda um tracircnsito uma passagem que leva a outro hibridismo a
concepccedilatildeo de que ldquoA escritura galaacutetica foi [] um gesto eacutepico que se resolveu numa
epifacircnicardquo ndash ldquoo narrar deixou-se levar de roldatildeo pela proliferaccedilatildeo de imagens pela
voracidade focircnica pelas fosforescecircncias de uma semacircntica moacutevel que o contaacutegio de
significantes eacute capaz de suscitar e sustar []rdquo
Vista rapidamente a presenccedila de passagem de ligaccedilatildeo ndash que leva agrave fusatildeo ndash em
Galaacutexias prossigamos o itineraacuterio erraacutetico de referecircncias abordando sob a mesma
perspectiva a sua atividade de recriaccedilatildeo e mais exatamente o seu pensamento sobre
traduccedilatildeo poeacutetica
Em seu primeiro ensaio de focirclego sobre o assunto ldquoDa traduccedilatildeo como criaccedilatildeo e
como criacuteticardquo118
Haroldo buscou fundamentar-se em duas referecircncias principais a
118 Op cit
116
noccedilatildeo de ldquosentenccedila absolutardquo de Albrecht Fabri e de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de Max
Bense traccedilando por meio de sua proacutepria concepccedilatildeo de poesia e de traduccedilatildeo uma
conexatildeo entre as duas formulaccedilotildees que serviram a uma forma de ldquounificaccedilatildeordquo expressa
em seu pensamento Mas essa junccedilatildeo seria apenas o iniacutecio de um processo de agregaccedilatildeo
de fundamentos num esforccedilo de leitura que buscaria pontos de convergecircncia em fontes
de diferente teor Nesse mesmo texto de 1962 o autor propotildee valendo-se de noccedilotildees da
cristalografia o conceito de ldquoisomorfismordquo para designar a operaccedilatildeo de traduzir poesia
para ele obteacutem-se pela traduccedilatildeo ldquoem outra liacutengua uma outra informaccedilatildeo esteacutetica
autocircnoma mas ambas [a da liacutengua de partida e a da liacutengua de chegada] estaratildeo ligadas
entre si por uma relaccedilatildeo de isomorfia seratildeo diferentes enquanto linguagem mas como
os corpos isomorfos cristalizar-se-atildeo dentro de um mesmo sistemardquo (1976 24) uma
ldquodialeacutetica do diferente e do mesmordquo (Traduccedilatildeo ideologia e histoacuteria) Em primeiro
lugar haacute a evidente aproximaccedilatildeo de dois campos distintos de conhecimento a quiacutemica
e a poesia em segundo a proacutepria natureza do conceito de isomorfismo cuja ecircnfase eacute na
analogia correspondecircncia de forma que seraacute um exerciacutecio de passagem O termo
ldquoisomoacuterficordquo cederaacute lugar mais tarde a ldquoparamoacuterficordquo no pensamento de Haroldo para
que fosse enfatizada a relaccedilatildeo de paralelismo sugerida pelo prefixo ldquopara-rdquo ldquolsquoao lado
dersquo como em paroacutedia lsquocanto paralelorsquordquo) Observando-se a obra do tradutor natildeo se
encontraratildeo no entanto regras precisas ou absolutas de como se deve construir o corpo
paramoacuterfico ndash as relaccedilotildees de correspondecircncia a serem estabelecidas seratildeo de certa
forma uacutenicas como eacute cada poema e como eacute cada recriaccedilatildeo autocircnomos cada
transposiccedilatildeo uma viagem com seu proacuteprio percurso sua proacutepria paisagem
Seraacute na descoberta do trabalho do linguista russo Roman Jakobson no entanto
que Haroldo teraacute uma dos principais sustentaccedilotildees de seu pensamento sobre poesia e
sobre traduccedilatildeo poeacutetica As proposiccedilotildees desse autor iratildeo ao encontro das ideias que
acompanhavam o grupo concretista paulistano desde sua origem permitindo uma
referecircncia desenvolvida e precisa sobre aspectos natildeo-verbais da linguagem a
materialidade do signo linguiacutestico tal como pode ser vista na linguagem poeacutetica ideia
que encontra respaldo em Jakobson seraacute um ponto essencial na concepccedilatildeo de Haroldo
Centralmente a formulaccedilatildeo do linguista relativa agraves funccedilotildees da linguagem entre as quais
se inclui a funccedilatildeo poeacutetica passaraacute a ser para os poetas construtivistas uma referecircncia
absoluta porque capaz de definir a especificidade da linguagem da poesia Por essa
117
razatildeo Haroldo incluiraacute em longo ensaio de A arte no horizonte do provaacutevel119
uma
abordagem dos conceitos jakobsonianos relacionando-os com o trabalho de outros
autores como o criador da semioacutetica norte-americana Charles Peirce outra das
referecircncias principais dos concretistas e seu disciacutepulo Charles Morris
A ideia central de Jakobson sobre a funccedilatildeo poeacutetica da linguagem poderaacute ser
associada por Haroldo agraves outras fontes jaacute por ele utilizadas como fundamentaccedilatildeo de
seu pensamento eacute perfeitamente compatiacutevel com a noccedilatildeo de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de
Bense ou de ldquosentenccedila absolutardquo de Fabri Se para Bense a informaccedilatildeo esteacutetica de um
poema eacute coincidente com a totalidade de sua realizaccedilatildeo para Jakobson a ldquoequaccedilatildeo
verbalrdquo tambeacutem eacute irredutiacutevel Daiacute sobreviria ndash para ambos os pensadores ndash a
impossibilidade de uma ldquotraduccedilatildeordquo de poesia Se Haroldo jaacute falava em recriaccedilatildeo em
criaccedilatildeo de um corpo anaacutelogo iso- ou paramoacuterfico a proposiccedilatildeo de Jakobson de que
(ao mesmo tempo em que a traduccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel) seraacute possiacutevel a transposiccedilatildeo
criativa integraraacute perfeitamente o constructo em curso de seu pensamento que se
articularaacute progressiva e crescentemente em torno do conceito nominado transcriaccedilatildeo
Mas o ponto mais importante da concepccedilatildeo de Haroldo sobre transcriaccedilatildeo ndash que
se define e se arma no conjunto de seus textos sobre o assunto publicados tambeacutem em
perioacutedicos ao longo de uacuteltimas deacutecadas de sua vida e que recolhidos integraratildeo um
volume a ser publicado ndash eacute no meu modo de ver a explicitaccedilatildeo de que seu caminho
como transcriador parte de criteacuterios originados da observaccedilatildeo de elementos
intratextuais para chegar a um novo texto que por desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo da
histoacuteria traduz a tradiccedilatildeo reinventando-a (1983 60)120
Para tanto o ato de
construccedilatildeo de uma traduccedilatildeo viva seraacute um ato ateacute certo ponto usurpatoacuterio que se rege
pelas necessidades do presente de criaccedilatildeo (ib) Em vez de buscar reconstruir um
mundo passado a visatildeo haroldiana decide pela reinvenccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo inserida em
novo contexto o texto portanto transforma-se na viagem e seu ponto de chegada
acolhe-o de modo a participar de sua reestruturaccedilatildeo para a qual o presente a releitura e
a comunicaccedilatildeo em novo espaccedilo e em novo tempo satildeo determinantes Resultado de
tracircnsito de trans-historicizaccedilatildeo o texto tambeacutem seraacute objeto de viagem para o leitor e
119 ldquoComunicaccedilatildeo na poesia de vanguardardquo op cit (1975)
120 Esta citaccedilatildeo e as duas seguintes provecircm do artigo Traduccedilatildeo ideologia e histoacuteria in Cadernos do
MAM nuacutemero 1 Rio de Janeiro dezembro de 1983
118
seraacute objeto e sujeito de transformaccedilatildeo no dizer de Joatildeo Alexandre Barbosa121
[] a
compreensatildeo [por parte do leitor] estaacute na busca que eacute o iniacutecio de uma viagem [] o
leitor do poema recorta o seu espaccedilo de reflexatildeo e pensa a viagem e Transformando
pela leitura o poema que lecirc o leitor eacute transformado pela leitura
Recriaccedilatildeo reescritura um ponto de vista que abarca um amplo horizonte capaz
de revelar sincronicamente poeacuteticas de diversas eacutepocas espaccedilos e culturas este seria um
modo de se entender a posiccedilatildeo de Haroldo como leitor-criador Sigamos a ecircnfase no
foco extensivo de seu olhar e de seu pensamento amplamente dirigido agrave passagem
evocando (conforme anunciado) duas de suas escrituras palimpseacutesticas Signacircncia
quase ceacuteu e Finismundo a uacuteltima viagem
Sobre o primeiro lembre-se muito brevemente que o texto rastreia
reinscrevendo iacutendices da passagem textual da criaccedilatildeo dantesca num percurso inverso ao
da Divina Comeacutedia iniciando-se no paraiacuteso o livro-poema finda no fundo do inferno
atravessando os acircmbitos e lindes desde o iniacutecio com palavras pendentes desde as
alturas por um fio invisiacutevel que as susteacutem ateacute o derradeiro niacutevel uma queda evidenciada
na Coda em que a visatildeo dos uacuteltimos lecircmures configuram o ecircxito ao reveacutes a
viagem se daacute na amplitude do alcance de cada plano e tambeacutem na dimensatildeo da
profundidade como que colhendo fragmentos desvelados pela releitura Uma
reescrituraindicial-icocircnica pois ao indicar elementos de uma tradiccedilatildeo evocada reinstala
paradigmas ndash qualidade transformada na passagem de um a outro tempo de um a outro
espaccedilo ndash novos estiacutemulos agrave percepccedilatildeo em novo contexto em que se insere a nova
dimensatildeo poeacutetica
Sobre o segundo trata-se de um poema que no dizer de Haroldo envolve o
risco da criaccedilatildeo pensado como um problema de viagem e como um problema de
enfrentamento com o impossiacutevel uma empresa que se por um lado eacute punida com um
naufraacutegio por outro eacute recompensada com os destroccedilos do naufraacutegio que constituem o
proacuteprio poema Um desafio encarado pelo poeta que encontrou em estudo
semioloacutegico do italiano DacuteArco Silvio Avalle o embriatildeo de seu proacuteprio texto no
estudo eacute analisado o canto XXVI do Inferno no qual Dante propotildee a soluccedilatildeo para um
enigma que vinha da tradiccedilatildeo claacutessica o enigma do fim de Ulisses O enigma referido
121 As citaccedilotildees satildeo excertos do ensaio Um cosmonauta do significante navegar eacute preciso que introduz
o livro Signantia quase coelum Signacircncia quase ceacuteu de Haroldo de Campos (Satildeo Paulo Perspectiva
1979)
119
diz respeito a um segmento de verso do canto XI da Odisseia thaacutenatosekshaloacutes que
como diz Haroldo (na esteira de Avalle) pode ser entendidocomo uma morte para
longe do mar salino ou como uma morte que procede do mar salino (ou seja se
Odisseu teria morrido no mar ou longe dele em paz em Iacutetaca) No canto dantesco o
velho Odisseu (Ulisses) teria ousado uma nova aventura a travessia das fronteiras
permitidas do mundo ndash uma atitude provinda da hyacutebris (definida por Haroldo como
essa desmesura orgulhosa com que o ser humano intenta [] confrontar-se com o
impossiacutevel) Se haacute hyacutebris na accedilatildeo de Ulisses esta encontra paralelo no proacuteprio
enfrentamento do desafio do poema pelo poeta de Finismundo a travessia desde a
tradiccedilatildeo ndash a situaccedilatildeo do heroacutei homeacuterico Odisseu focalizada no primeiro tempo do
texto ndash ateacute a contemporaneidade em que o agora renomeado Ulisses (tambeacutem evocador
do anti-heroacutei criado parodicamente por James Joyce um paradigma do homem na
cidade contemporacircnea ou seja um Ulisses da banalidade do mundo como diria
Lukaacutecz abandonado pelos deuses) transforma-se num factotum Transmutaccedilatildeo
confronto passagem viagem ousadia no tracircnsito e na superaccedilatildeo de limites a jornada
de Haroldo em toda a sua obra eacute emblematicamente representada por Finismundo
talvez seu poema maacuteximo nele o poeta chega ao cume de seu processo interespaccedilos
navega destemida e firmemente no mar encarnado avermelhado multitudinoso cor de
vinho (tema de uma passagem de Galaacutexias) com a sensibilidade de quem sorve o
aroma desfruta das notas do paladar e deglute antropofagicamente toda a
humanidade e sua histoacuteria criadora reinventando-a
Terminemos com uma breve menccedilatildeo a uma iniciativa ndash emblemaacutetica ndash do poeta-
criacutetico-transcriador movida pela circunstacircncia em 1991 apoacutes diversos anos de
colaboraccedilatildeo com o livreto (por vezes livro) feito anualmente para o Bloomsday (data
em que se celebra internacionalmente a obra de James Joyce) paulistano Haroldo
propocircs e organizou o volume Ulisses a travessia textual122
que traccedilava por meio de
traduccedilotildees suas e alheias um percurso iniciado com o proacuteprio Odisseu homeacuterico (a
Odisseia aparece representada por fragmento do canto VI em que Nausiacutecaa depara-se
com o heroacutei naacuteufrago nu sujo de marugem salina) e que prosseguia com o tema
odisseico relido e recriado por Jorge Guilleacuten e por Derek Walcott aleacutem de ligar-se
entre outras referecircncias multiliacutengues agrave versatildeo em grego moderno do texto homeacuterico
122 Satildeo Paulo Olavobraacutes ABEI 2001
120
(realizada por Kazantzaacutekis) e agrave paroacutedica reimaginaccedilatildeo do episoacutedio em Ulysses de
Joyce ligava-se ainda ao poema evocador do retorno do heroacutei a sua terra Iacutetaca de
Kavaacutefis O sintagma travessia textual representa bem o mar siacutegnico que eacute objeto do
poeta a assumir em sua autocircnoma materialidade sonora e visual uma realidade
equivalente ndash espelho com vida proacutepria e independente tramado com seus proacuteprios
constituintes geradores de significaccedilatildeo ndash agrave dos elementos da vida e da histoacuteria
transitadas transpostas transcriadas Mar em que se viaja sempre com o olhar largo
extensivo da passagem
Complemente-se a apresentaccedilatildeo da obra de Haroldo de Campos com citaccedilotildees
que a discutem Sobre a Iliacuteada e a traduccedilatildeo do poema realizada por Campos foco de
interesse deste estudo diz Trajano Vieira
[] a linguagem da Iliacuteada eacute elaboradiacutessima ao contraacuterio do que ateacute pouco tempo
atraacutes entendiam alguns comentadores [] Se eacute verdade que a Iliacuteada apresenta
caracteriacutesticas formais que indicam sua natureza oral ndash retomada de expressotildees
fixas ao longo do texto repeticcedilatildeo de cenas tiacutepicas predomiacutenio da sintaxe parataacutetica
ndash isso natildeo implica que no plano esteacutetico sua linguagem seja simples ou despojada
[]
Desconheccedilo outra traduccedilatildeo tatildeo fiel agrave complexidade formal da Iliacuteada quanto esta
[]123
A fim de introduzir jaacute a referecircncia ao metro adotado por Campos em sua
recriaccedilatildeo da Iliacuteada visando ao dado comparativo em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees jaacute referidas e
agraves posteriores discussotildees sobre o tema cite-se o proacuteprio tradutor
De minha parte em lugar do decassiacutelabo de molde camoniano que mais de uma
vez obrigou Odorico a prodiacutegios de compressatildeo semacircntica e contorccedilatildeo sintaacutetica
recorri ao metro dodecassiacutelabo (acentuado na sexta siacutelaba ou mais raramente na
quarta oitava e deacutecima-segunda) Evitei assim o risco do prosaiacutesmo decorrente
123 VIEIRA T ldquoIntroduccedilatildeordquo In CAMPOS H Odisseia de Homero Satildeo Paulo Mandarim 2002 pp 20-
21
121
de um verso mais alongado e sua contrapartida a constriccedilatildeo derivada de um metro
demasiadamente conciso []124
Em nota referente agrave sua opccedilatildeo pelo metro dodecassiacutelabo Campos cita opiniatildeo de
Said Ali e o jaacute mencionado comentaacuterio de Silveira Bueno
M Said Ali estudando o hexacircmetro latino refere que a ldquoideia primitiva de
construir verso de seis peacutes uniformemente dactiacutelicosrdquo teve de ser modificada na
praacutetica jaacute que ldquoo predomiacutenio dos hexacircmetros de 15 e 14 siacutelabas se observa em
qualquer poeta latinordquo (Acentuaccedilatildeo e versificaccedilatildeo latinas Rio de Janeiro
Organizaccedilatildeo Simotildees 1957) Silveira Bueno por sua vez considera o
dodecassiacutelabo (alexandrino) ldquoo uacutenico metro moderno que se aproxima do
hexacircmetro dactiacutelicordquo (prefaacutecio de 1956 da ediccedilatildeo da Iliacuteada traduzida por M
Odorico Mendes)
124 CAMPOS H VIEIRA T ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo In Mecircnis ndash A ira de Aquiles Satildeo Paulo Nova
Alexandria 1994 pp 13-14
122
B Poetas-tradutores teoacutericos da traduccedilatildeo poeacutetica no Brasil
um trabalho precursor de conceitos e praacuteticas atuais
Se temos do seacuteculo XIX a teorizaccedilatildeo de Manuel Odorico Mendes proveniente
das notas a suas traduccedilotildees da eacutepica e indiretamente da proacutepria metodologia tradutoacuteria
por ele empregada no seacuteculo XX alguns poetas se destacam quanto agrave produccedilatildeo de um
pensamento sobre traduccedilatildeo entre eles inegavelmente Haroldo de Campos ocupa
posiccedilatildeo mais elevada como se tem visto e seraacute reiterado adiante seu irmatildeo Augusto de
Campos referecircncia quase unacircnime pela excelecircncia de suas traduccedilotildees natildeo se dedicou
tanto quanto Haroldo a teorizar o que denomina ldquotraduccedilatildeo-arterdquo em conceito
semelhante ao de ldquotranscriaccedilatildeordquo outros seriam dignos de nota mas nos alongariacuteamos
para aleacutem dos destaques centrais Haacute no entanto um trabalho a ser citado e discutido
como pioneiro na proposiccedilatildeo de conceitos que se firmaram posteriormente ndash como o de
ldquorecriaccedilatildeordquo palavra primeiramente usada por ele ndash entre noacutes refiro-me ao poeta
Guilherme de Almeida cujos textos de apresentaccedilatildeo e notas agraves ediccedilotildees de poesia
francesa por ele recriada se mostram precursores de ideias hoje bem conhecidas em sua
eacutepoca bem mais do que hoje ldquoafastar-se da letrardquo para preservar a intenccedilatildeo de recriaccedilatildeo
de relaccedilotildees sonoras ou riacutetmicas havia de ser um ato bem justificado125
Em ensaio de 2011 denominado ldquoGuilherme de Almeida e a traduccedilatildeo como
formardquo126
Aacutelvaro Faleiros (motivado por artigo de Juacutelio Castantildeon Guimaratildees127
)
destaca ldquoo papel central de Guilherme de Almeida na construccedilatildeo da tradiccedilatildeo da traduccedilatildeo como
formardquo (2012 2) em nosso paiacutes tradiccedilatildeo essa que teria sucedido aquela da traduccedilatildeo praticada
conforme o paradigma da aemulatio que seria a ldquoforma predominante de se tratar a traduccedilatildeo de
poemas desde o seacuteculo XVII [] ateacute o iniacutecio do seacuteculo XXrdquo (ib) assim entendidas as
traduccedilotildees ldquomuitas vezes livremente modificadasrdquo eram correntemente incluiacutedas ldquonos livros dos
proacuteprios autores [] pois o que importava era a qualidade e o alcance da emulaccedilatildeordquo (p 3) Este
125 A fim de registrar a ocorrecircncia desse importante capiacutetulo da teoria da traduccedilatildeo poeacutetica em nosso paiacutes
(antecedendo a exposiccedilatildeo da teoria da transcriaccedilatildeo de H de Campos) assinalo a existecircncia de trecircs artigos
meus escritos para acompanharem reediccedilotildees da obra tradutoacuteria de Guilherme que ademais realizou
diretamente do grego uma traduccedilatildeo da Antiacutegone de Soacutefocles considerada modelar por Campos Os
artigos satildeo prefaacutecios e posfaacutecio dos livros Verlaine Paul Trad G de Almeida A voz dos botequins e
outros poemas Satildeo Paulo Hedra 2009 Almeida G de Flores das ldquoFlores do malrdquo de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2010 Almeida G de Poetas de Franccedila Satildeo Paulo 2011 126 FALEIROS A Guilherme de Almeida e a traduccedilatildeo como forma Plaquete Satildeo Paulo Casa
Guilherme de Almeida 2012 127 GUIMARAtildeES J C ldquoPresenccedila de Mallarmeacute no Brasilrdquo In GUIMARAtildeES J C Reescritas e esboccedilos
Rio de Janeiro Topbooks 2010 pp 9-53
123
seria o caso de traduccedilotildees como as de Batista Cepelos (c 1900) e de Alphonsus de Guimaratildees
(realizadas no iniacutecio do seacuteculo XX) de poemas do francecircs Steacutephane Mallarmeacute que teriam ldquouma
funccedilatildeo de imitaccedilatildeo ou de paraacutefraserdquo (p 4) Faleiros desenvolve a ideia apresentada por
Guimaratildees de ser Guilherme de Almeida ldquoum dos primeiros a operar de modo mais completo
uma lsquomudanccedila da noccedilatildeo de traduccedilatildeorsquordquo (ib) reconhecendo na formulaccedilatildeo do poeta ldquoao longo
das deacutecadas de trinta e quarenta do seacuteculo XX parte dos princiacutepios que regem as concepccedilotildees
dominantes do traduzir poemas hoje no Brasilrdquo (ib) Estas seriam marcadas pela ldquotraduccedilatildeo
como formardquo que teria o propoacutesito de ldquoreproduzir no poema de chegada formas homoacutelogas agraves
do poema de partidardquo sendo constantes ldquoa retomada de padrotildees meacutetricos e riacutemicosrdquo e a
ldquopreocupaccedilatildeo com a retoacuterica e a imageacutetica do texto de partidardquo (p 2)
De minha parte destacaria um aspecto importante nas concepccedilotildees sobre
traduccedilatildeo (ou ldquore-produccedilatildeordquo ou ldquotransfusatildeordquo) de Guilherme de Almeida este expressava
que no seu ldquoprocesso de re-criaccedilatildeo natildeo haacute propriamente luta de poeta contra poeta de
um contra outro idioma e sim uma automaacutetica justaposiccedilatildeo passiva conformaccedilatildeo
espeacutecie de entente cordiale de taacutecita e reciacuteproca sujeiccedilatildeordquo128
Ainda que se afirme uma
ldquopassiva conformaccedilatildeordquo esta eacute anulada pela colocaccedilatildeo final se haacute ldquoreciacuteproca sujeiccedilatildeordquo
natildeo haacute sujeiccedilatildeo unilateral ou seja natildeo haacute relaccedilatildeo de subserviecircncia Este entendimento que
prevecirc o diaacutelogo da traduccedilatildeo com o original e portanto a relativa autonomia autoral do poema
recriado estaraacute em conformidade com a mais atual praacutetica tradutoacuteria de poesia e com a proacutepria
conceituaccedilatildeo buscada por este trabalho acerca da traduccedilatildeo poeacutetica e da anaacutelise de poemas
traduzidos como se poderaacute verificar
128 ALMEIDA G de Flores das ldquoflores do malrdquo de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2010 p 97
124
C A teoria da transcriaccedilatildeo de Haroldo de Campos
a traduccedilatildeo como praacutetica isomoacuterfica paramoacuterfica
O poeta Haroldo de Campos eacute um caso raro de fertilidade natildeo soacute na produccedilatildeo de
criaccedilotildees originais e de traduccedilotildees referenciais em liacutengua portuguesa como tambeacutem de
escritos criacuteticos e teoacutericos sobre poesia e sobre traduccedilatildeo Sem duacutevida entre os poetas
que o Brasil jaacute teve eacute o exemplo maacuteximo de pensamento sobre traduccedilatildeo poeacutetica tendo
publicado um grande nuacutemero de textos que se somam num conjunto dos mais densos e
coerentes acerca do assunto Aleacutem dos artigos incluiacutedos em livros haacute outros que
apareceram apenas em perioacutedicos129
Dos escritos teoacutericos de Campos acerca da traduccedilatildeo de poesia emerge
centralmente um conceito que pode orientar a praacutetica do traduzir e assim considero daacute
conta de coadunar visotildees por vezes tomadas como diacutespares ou mesmo antagocircnicas por
quem as confronta O conceito a que me refiro eacute o do isomorfismo ao qual se dedica
esta breve apresentaccedilatildeo
Coerentemente o pensamento de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo130
considera como um de seus princiacutepios fundamentais a definiccedilatildeo da funccedilatildeo poeacutetica da
linguagem de Roman Jakobson ndash funccedilatildeo dominante da ldquoarte verbalrdquo (1973 128) ndash que
implica o ldquotratamento da palavra como objetordquo (Campos H 1976 22) e por
conseguinte o fato de que a palavra deixa de ser um mero mesma (coisificando-se
portanto) e a suas relaccedilotildees com outras palavras criando uma instrumento de
transmissatildeo de um conteuacutedo para chamar a atenccedilatildeo a si ldquoteia de significantesrdquo
caracteriacutestica do fenocircmeno poeacutetico Na linha de pensamento jakobsiana tal teia seria
irreproduziacutevel sendo possiacutevel apenas a ldquotransposiccedilatildeo criativardquo (1973 72) Esta
transposiccedilatildeo se daria necessariamente conforme fica impliacutecito em tal concepccedilatildeo pela
via do ldquoprinciacutepio construtivo do textordquo (p 72) que assim atentaria agrave palavra e a suas
relaccedilotildees com outras do ponto de vista de sua existecircncia como objeto a qual
caracterizaria tais relaccedilotildees por uma dimensatildeo significante ou seja de forma
Outra ideia que fundamenta a concepccedilatildeo de Haroldo sobre traduccedilatildeo eacute a
definiccedilatildeo de ldquoinformaccedilatildeo esteacuteticardquo de Max Bense caracterizada por elementos de
ldquoimprevisibilidaderdquo ldquosurpresardquo ldquoimprobabilidade da ordenaccedilatildeo de siacutembolosrdquo e
129 Tais artigos integraratildeo o volume a ser lanccedilado denominado Transcriaccedilatildeo 130 Seratildeo referidos e reiterados complementariamente de forma sucinta e um tanto diversa nesta parte do
trabalho alguns conceitos antes apresentados
125
marcada pela fragilidade uma vez que eacute ldquoinseparaacutevel de sua realizaccedilatildeordquo coincidente
com sua totalidade Daiacute decorreria igualmente no caso da informaccedilatildeo esteacutetica ldquopelo
menos em princiacutepio sua intraduzibilidaderdquo (1976 22-3) Como diz Haroldo ldquoadmitida
a tese da impossibilidade em princiacutepio da traduccedilatildeo de textos criativos parece-nos que
esta engendra o corolaacuterio da possibilidade tambeacutem em princiacutepio da recriaccedilatildeo desses
textosrdquo (p 24 grifo meu) Assim ldquoNa traduccedilatildeo de um poema o essencial natildeo eacute a
reconstituiccedilatildeo da mensagem [ou seja do ldquosignificadordquo ou do ldquoconteuacutedordquo] mas a
reconstituiccedilatildeo do sistema de signos em que estaacute incorporada esta mensagem a
reconstituiccedilatildeo portanto da informaccedilatildeo esteacutetica e natildeo ldquoda informaccedilatildeo meramente
semacircnticardquo (1975 100) Priorizar o significado a informaccedilatildeo semacircntica seria ndash para
utilizarmos um conceito tomado da quiacutemica ndash realizar uma provaacutevel alotropia
(fenocircmeno pelo qual pode a mesma substacircncia apresentar-se sob variados aspectos e
com propriedades diferentes) convertendo por exemplo um diamante em grafite ou
em carvatildeo Embora de nossa visatildeo dependa o brilho da pedra cristalina algo em sua
estrutura a distingue do carvatildeo ainda que sejam ambos estados alotroacutepicos do
carbono131
Como nos revela a poeta curitibana Helena Kolody (em seu poema
ldquoGestaccedilatildeordquo) ldquoDo longo sono secreto na entranha escura da terra o carbono acorda
diamanterdquo (1985 39)
Observe-se que a visatildeo de uma informaccedilatildeo esteacutetica ndash que coincide com a proacutepria
totalidade do poema implicando que qualquer mudanccedila de seus constituintes
transforma (ou ldquoperturbardquo) tal informaccedilatildeo ndash ou de um ldquoprinciacutepio construtivordquo que
privilegia a referecircncia ao significante natildeo acarreta necessariamente o conceito de que o
texto seja ldquoreceptaacuteculo de significados estaacuteveisrdquo conceito este passiacutevel de ser
depreendido da linguiacutestica estrutural ao qual se opotildee uma oacuteptica desconstrucionista De
meu ponto de vista a recriaccedilatildeo esteacutetica de um original natildeo exclui nem a mutabilidade
do signo (e particularmente de seu significado) nem a participaccedilatildeo da leitura como um
ldquoato de interpretaccedilatildeordquo que delineia os significados postuladas pela referida oacuteptica
Na concepccedilatildeo de Haroldo de Campos a ldquo[hellip] traduccedilatildeo de textos criativos seraacute
sempre recriaccedilatildeo ou criaccedilatildeo paralela autocircnoma poreacutem reciacuteproca [hellip] Numa traduccedilatildeo
dessa natureza natildeo se traduz apenas o significado traduz-se o proacuteprio signo ou seja
sua fisicalidade sua materialidade mesma (propriedades sonoras de imageacutetica visual
131 Valho-me de um recurso metafoacuterico para nova referecircncia agrave questatildeo da ldquomaterialidade siacutegnicardquo
126
enfim tudo aquilo que forma [] a iconicidade do signo esteacutetico [hellip] O significado o
paracircmetro semacircntico seraacute apenas e tatildeo-somente a baliza demarcatoacuteria do lugar da
empresa recriadora Estaacute-se pois no avesso da chamada traduccedilatildeo literalrdquo (1976 24) O
autor em seu artigo ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo refere-se agrave ldquoteoria do traduzirrdquo
de Walter Benjamin ndash outro dos fundamentos essenciais de sua concepccedilatildeo relativa agrave
traduccedilatildeo de poesia e agrave sua proacutepria atividade como tradutor ndash como um pensamento que
ldquoinverte a relaccedilatildeo de servitude que via de regra afeta as concepccedilotildees ingecircnuas da
traduccedilatildeo como tributo de fidelidade (a chamada traduccedilatildeo literal ao sentido ou
simplesmente traduccedilatildeo lsquoservilrsquo) concepccedilotildees segundo as quais a traduccedilatildeo estaacute
ancilarmente encadeada agrave transmissatildeo do conteuacutedo do originalrdquo (1981 179)
Enfatizando tratar-se ldquodo caso de traduccedilatildeo de mensagens esteacuteticas obras de arte
verbalrdquo ou seja afirmando a especificidade desse tipo de obra e consequentemente a
singularidade de uma abordagem tradutoacuteria a ela dirigida Haroldo considera que ldquona
perspectiva benjaminiana da lsquoliacutengua purarsquo o original eacute quem serve de certo modo agrave
traduccedilatildeo no momento em que a desonera da tarefa de transportar o conteuacutedo inessencial
da mensagem [hellip] e permite dedicar-se [hellip] [agrave] lsquofidelidade agrave reproduccedilatildeo da formarsquo que
arruiacutena aquela outra [hellip] estigmatizada por W B como o traccedilo distintivo da maacute
traduccedilatildeo lsquotransmissatildeo inexata de um conteuacutedo inessencialrsquo rdquo Nesse sentido Haroldo
postula que a teoria benjaminiana eacute ldquoorientada pelo lema rebelionaacuteriordquo de uma
ldquotraduccedilatildeo luciferinardquo (p 180)
Podemos ver em tal concepccedilatildeo de recriaccedilatildeo que toma como referecircncia a
materialidade do signo linguiacutestico se natildeo um questionamento expliacutecito aos ditos
ldquosignificados estaacuteveisrdquo uma impliacutecita visatildeo de sua efemeridade ligada agrave secundaacuteria
importacircncia para o poema e consequentemente para a traduccedilatildeo da obra de arte verbal
Natildeo seria absurdo vincular o que Benjamin considera ldquoconteuacutedo inessencialrdquo com uma
qualidade que poderia ser uma das justificativas de sua inessencialidade seu aspecto
instaacutevel ou mutaacutevel Campos entende a traduccedilatildeo do ldquomodo de intencionalidaderdquo (Art
des Meinens) benjaminiano como a traduccedilatildeo da forma ldquouma forma significante
portanto intracoacutedigo semioacuteticordquo (ib) Para ele isso ldquoquer dizer em termos
operacionais de uma pragmaacutetica do traduzir re-correr o percurso configurador da
funccedilatildeo poeacutetica reconhecendo-o no texto de partida e reinscrevendo-o enquanto
dispositivo de engendramento textual na liacutengua do tradutor para chegar ao poema
127
transcriado como re-projeto isomoacuterfico do poema originaacuteriordquo (p 181 grifo meu)
Segundo ele o ldquotradutor de poesia eacute um coreoacutegrafo da danccedila interna das liacutenguas tendo
o sentido [o ldquoconteuacutedordquo][hellip] [apenas] como bastidor semacircntico ou cenaacuterio
pluridesdobraacutevel dessa coreografia moacutevelrdquo (p 181 grifo meu) Fica creio evidente
neste ponto a natildeo-incompatibilidade entre uma visatildeo do ato de traduccedilatildeo como recriaccedilatildeo
esteacutetica e uma oacuteptica ldquopoacutes-estruturalistardquo que preconize a inexistecircncia de significados
estaacuteveis originais Sobre a ldquocoreografia moacutevelrdquo que caracterizaria a traduccedilatildeo de poesia
Haroldo afirma tratar-se de ldquopulsatildeo dionisiacuteaca pois dissolve a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea
do texto original jaacute preacute-formado numa nova festa siacutegnica potildee a cristalografia em
reebuliccedilatildeo de lavardquo (p 181 grifo meu) Natildeo seria cabiacutevel vermos a afirmada
dissolvecircncia da ldquodiamantizaccedilatildeo apoliacutenea do texto originalrdquo ndash portanto uma
transformaccedilatildeo de uma estrutura que para tanto natildeo pode ser uma meta fixa a ser
atingida ndash como uma metaacutefora da inexistecircncia do original como objeto estaacutevel Ideia
compatiacutevel com o que o criador do desconstrucionismo Jacques Derrida enfatiza em
seu ensaio ldquoTorres de Babelrdquo dedicado a ldquoA tarefa do tradutorrdquo de W Benjamin ldquoO
original se daacute modificando-se esse dom natildeo eacute o de um objeto dado ele vive e sobrevive
em mutaccedilatildeo lsquoPois na sobrevida que natildeo mereceria esse nome se ela natildeo fosse mutaccedilatildeo
e renovaccedilatildeo do vivo o original se modifica Mesmo para as palavras modificadas existe
ainda uma poacutes-maturaccedilatildeorsquo [citaccedilatildeo de W B]rdquo (2002 38)
Valendo-se de noccedilotildees da cristalografia (ldquoCiecircncia da mateacuteria cristalizada das leis
que regem sua formaccedilatildeo de sua estrutura de suas propriedades geomeacutetricas fiacutesicas e
quiacutemicasrdquo) Campos propotildee como se mencionou o conceito de ldquoisomorfismordquo para a
designaccedilatildeo da operaccedilatildeo de traduzir poesia Para ele obteacutem-se pela traduccedilatildeo ldquoem outra
liacutengua uma outra informaccedilatildeo esteacutetica autocircnoma mas ambas [a da liacutengua de partida e a
da liacutengua de chegada] estaratildeo ligadas entre si por uma relaccedilatildeo de isomorfia seratildeo
diferentes enquanto linguagem mas como os corpos isomorfos cristalizar-se-atildeo dentro
de um mesmo sistemardquo Segundo o Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa
ldquoisomorfismordquo pode ser definido como ldquofenocircmeno pelo qual duas ou mais substacircncias
de composiccedilatildeo quiacutemica diferente se apresentam com a mesma estrutura cristalinardquo
(2001 1656) conforme a Larousse satildeo isomorfas ldquoduas substacircncias quiacutemicas que
apresentam a mesma estrutura cristalinardquo sendo que tais substacircncias ldquogeralmente
possuem um grande parentesco de constituiccedilatildeo quiacutemica e tecircm a propriedade de poderem
substituir-se mutuamente na formaccedilatildeo de um mesmo cristal chamado lsquosoluccedilatildeo soacutelidarsquo rdquo
128
(p 3252) Substacircncias portanto diversas mas capazes de substituiccedilatildeo muacutetua por
analogia de estrutura
Em uma nota agrave ldquoNota de Haroldo de Campos agrave traduccedilatildeordquo do poema ldquoBlancordquo
de Octavio Paz o tradutor observa que jaacute procurara antes (no ensaio ldquoDa traduccedilatildeo
como criaccedilatildeo e como criacuteticardquo escrito em 1962 e publicado originalmente em 1963)
ldquodefinir a traduccedilatildeo criativa (lsquorecriaccedilatildeorsquo lsquotranscriaccedilatildeorsquo) como uma praacutetica isomoacuterfica
(no sentido da cristalografia envolvendo a dialeacutetica do diferente e do mesmo) uma
praacutetica voltada para a iconicidade do signo para as qualidades materiais desterdquo (1986
89) E prossegue afirmando que mais tarde preferiria ldquousar o termo paramorfismo para
descrever a mesma operaccedilatildeo acentuando no vocaacutebulo (do sufixo grego paraacutendash lsquoao lado
dersquo como em paroacutedia lsquocanto paralelorsquo) o aspecto diferencial dialoacutegico do processo
[]rdquo132
Referindo-se em sua ldquoNotardquo agrave traduccedilatildeo que realizara do poema de Paz
Haroldo frisa que ldquoos lsquodesviosrsquo semacircnticos ou sintaacuteticos no texto em portuguecircs
responderam a precisas opccedilotildees transformadoras de natureza lsquoparamoacuterficarsquo rdquo (p 89)
Como se pode constatar tais observaccedilotildees enfatizam o aspecto da transformaccedilatildeo
do original realizada pela praacutetica da traduccedilatildeo o tradutor vecirc como tarefa sua natildeo o
resgate de significados originais mas sim a recriaccedilatildeo paramoacuterfica em outra liacutengua da
ldquoentretrama das figuras fonossemacircnticasrdquo (p 89) ou seja da teia de ldquosignificantesrdquo
cujas relaccedilotildees internas caracterizariam mais o poema do que seus ldquosignificadosrdquo natildeo
priorizados na abordagem tradutoacuteria Busca-se a criaccedilatildeo em outro idioma de obra
esteticamente anaacuteloga agrave original com todas as possibilidades de transformaccedilatildeo de seus
elementos sejam estes vistos como signos em sua integridade ou de maneira
dicotomicamente parcial como seu ldquoconteuacutedordquo ou seja seu valor semacircntico no caso
de ldquoBlancordquo palavras iguais em ambas as liacutenguas (inclusive em seus aspectos
denotativo e conotativo) podem ser e satildeo mudadas tendo-se em vista criteacuterios de ordem
esteacutetica
Tal empresa luciferina eacute caracteriacutestica do tradutor como recriador ou (como o
denomina Haroldo) do ldquotradutor usurpadorrdquo que ldquopassa por seu turno a ameaccedilar o
original com a ruiacutena da origemrdquo sendo esta para ele ldquoa uacuteltima lsquohybrisrsquo do tradutor
luciferino [a palavra grega hybrisdiga-se refere-se a um orgulho desafiador que podia
132 A nota em questatildeo reproduz o paraacutegrafo inicial do jaacute referido artigo ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo
(1983)
129
provocar a necircmesis ou seja a indignaccedilatildeo dos deuses] transformar por um aacutetimo o
original na traduccedilatildeo de sua traduccedilatildeo Reencenar a origem e a originalidade como
plagiotropia como lsquomovimento infinito da diferenccedilarsquo (Derrida) e a miacutemesis como
produccedilatildeo dessa diferenccedilardquo (1984 7 grifo meu)
A recriaccedilatildeo de um poema natildeo soacute natildeo seria por tais caminhos uma versatildeo fiel do
ldquoconteuacutedordquo do original como tambeacutem natildeo seria fiel nem agrave liacutengua de origem nem agrave
liacutengua de chegada em termos dos limites de uma ou de outra tanto relativamente a seus
ldquosignificadosrdquo como a sua sintaxe Assim ligando-se a uma tradiccedilatildeo do pensamento
romacircntico alematildeo que inclui as ideias de Schleiermacher de Rudolf Pannwitz e do
proacuteprio Benjamin a atividade da traduccedilatildeo poeacutetica poderia envolver a ampliaccedilatildeo dos
limites das liacutenguas como agente transformador de ambas as envolvidas no processo
Para Haroldo de Campos na traduccedilatildeo de poesia ldquocomo que se desmonta e se
remonta a maacutequina da criaccedilatildeo aquela fragiacutelima beleza aparentemente intangiacutevel que
nos oferece o produto acabado numa liacutengua estrangeira E que no entanto se revela
suscetiacutevel de uma vivissecccedilatildeo implacaacutevel que lhe revolve as entranhas para trazecirc-la
novamente agrave luz num corpo linguiacutestico diverso Por isso mesmo a traduccedilatildeo eacute criacuteticardquo
(1976 31)
Referindo-se ao procedimento que considera adequado agrave tarefa de traduccedilatildeo
Campos assim sintetiza suas etapas
Pedagogicamente o procedimento do poeta-tradutor (ou tradutor-poeta) seria o
seguinte descobrir (desocultar) [] o coacutedigo de ldquoformas significantesrdquo [pelo qual]
o poema representa a mensagem [] (qual a equaccedilatildeo de equivalecircncia de
comparaccedilatildeo eou contraste de constituintes levada a efeito pelo poeta para
construir o seu sintagma) em seguida reequacionar os constituintes assim
identificados de acordo com criteacuterios de relevacircncia estabelecidos ldquoin casurdquo e
regidos em princiacutepio por um isoformismo icocircnico que produza o mesmo sob a
espeacutecie da diferenccedila na liacutengua do tradutor (paramorfismo com a ideia de
paralelismo como em paraacutefrase em paroacutedia ou em paragrama seria um termo
mais preciso afastando a sugestatildeo de ldquoigualdaderdquo na transformaccedilatildeo contida no
130
prefixo grego ldquoiso-rdquo) Os mecanismos da ldquofunccedilatildeo poeacuteticardquo instruiriam essa
ldquooperaccedilatildeo metalinguiacutesticardquo por assim dizer de segundo grau133
Numa visatildeo que considere a iconicidade do signo esteacutetico e portanto a
existecircncia de uma dimensatildeo fiacutesica ou material do signo o poema tambeacutem resulta da
ldquoleiturardquo de seu proacuteprio criador A ldquoleiturardquo do autor ndash concomitante a sua criaccedilatildeo ndash e a
leitura criacutetica satildeo (proponho que se considere este horizonte) poacutelos de uma mesma
realidade indissociaacutevel que assume diferentes configuraccedilotildees conforme as
peculiaridades com que se estabelecem
Vale enfatizar que o conceito de isomorfismo envolvido no processo de traduccedilatildeo
de um poema ndash o ldquoredesenhorsquo dele em outra liacutengua ndash inclui a criaccedilatildeo e a leitura tanto
do original (que se recria ao ser desvendado por vivissecccedilatildeo processo que envolve ndash e
aiacute estaacute o plano do horizonte a que me referi ndash natildeo soacute as descobertas de seus elementos
constituintes mas a criaccedilatildeo destes na medida em que somente se reconhece o que se
pode ver e o que se vecirc inclui a determinaccedilatildeo ndash limite seletividade e mesmo projeccedilatildeo ndash
de quem vecirc) como da traduccedilatildeo que por ser tambeacutem criada pode converter-se em
ldquooriginalrdquo transformando a obra anterior em sua ldquotraduccedilatildeordquo e portanto revelando sua
potencialidade de mutaccedilatildeo e seu aspecto de incompletude uma vez que o movimento a
transformaccedilatildeo funcionaraacute como acreacutescimo uma nova dimensatildeo de existecircncia ndash no
processo ambas as criaccedilotildees se transformam pela ldquoleiturardquo reciacuteproca que se fazem
(Abra-se aqui um parecircntese complementar a fim de se fazer referecircncia ao
conhecido conceito relativo agrave abordagem do texto literaacuterio a partir de uma perspectiva
funcionalista representado pela ideia de contraposiccedilatildeo entre o ldquocristalrdquo e a ldquochamardquo134
Em vez de se entender o ldquocristalrdquo tal como se pode fazecirc-lo a partir das afirmaccedilotildees de
Leacutevi-Strauss relativas agrave ceacutelebre anaacutelise que empreendera de ldquoLes chatsrdquo de Baudelaire
em parceria com Jakobson ndash segundo as quais a obra seria ldquoum objeto que uma vez
criado pelo autor possuiacutea a rigidez por assim dizer do cristalrdquo e a anaacutelise consistia em
explicitar ldquosuas propriedadesrdquo (Bellei 1986 188) ndash de que ele seja um ldquoobjeto isolado
do espectadorrdquo ldquocontrolado em sua essecircncia e portanto em todas as suas
133 CAMPOS H de ldquoDa transcriaccedilatildeo poeacutetica e semioacutetica da operaccedilatildeo tradutorardquo In OLIVEIRA Ana
Claacuteudia SANTAELLA Lucia (org) Semioacutetica da literatura Satildeo Paulo Educ 1987 pp 53-74
(Cadernos PUC vol 28) 134 Tal oposiccedilatildeo de teor metafoacuterico entre o cristal e a chama encontra-se em fontes tanto literaacuterias como
teoacuterico-criacuteticas Refiro-me aqui no entanto acerca do uso conceitual de tal metaacutefora agrave obra O cristal em
chamas de Seacutergio Bellei (1986)
131
manifestaccedilotildeesrdquo (ib) (inclusive deduz-se em seu plano de conteuacutedo ou seja em seus
ldquosignificadosrdquo) pode-se entendecirc-lo como estrutura de ldquosignificantesrdquo (ligados a
significados instaacuteveis) de relaccedilotildees sonoras ou imageacuteticas que seratildeo desveladas a partir
da leitura e mesmo modificadas por esta produzindo-se o sentido por meio das relaccedilotildees
estabelecidas entre o observador e o imposto pela leitura o resultado eacute a recriaccedilatildeo do
sentido que combina os aspectos estruturais identificados e os ldquosignificadosrdquo como satildeo
compreendidos Tal ideia seria compatiacutevel com aquela haroldiana de ldquocristalografia em
reebuliccedilatildeo de lavardquo o cristal natildeo eacute fixo e imutaacutevel mas passiacutevel de refluidificaccedilatildeo
(Neste sentido a tiacutetulo de curiosidade mencione-se uma recente experiecircncia cientiacutefica
que teria demonstrado que no interior do cristal em nanoescala materiais magneacuteticos
emitem uma espeacutecie de ldquochama magneacuteticardquo ldquoum processo muito semelhante ao
produzido por uma substacircncia inflamaacutevel pegando fogordquo135
Tal fato nos permitiria uma
nova metaacutefora a da ldquochama no cristalrdquo aludindo-se agrave ideia de que um texto
caracterizado pela informaccedilatildeo esteacutetica comparado a um cristal abrigaria em si mesmo
a chama de sua mutabilidade ou fluididade))
C1 Transcriar eacute fazer de novo ou refazer o novo Um exemplo de transcriaccedilatildeo
Poesia vem do substantivo grego poiacuteesis ligado ao verbo poieacuteo que significa
fazer produzir fabricar criar Assim transcriar um poema eacute fazecirc-lo de novo Mas
tambeacutem seraacute fazer de novo o novo renovar o poema de origem seguindo o lema make
it new proposto pelo poeta e tradutor norte-americano Ezra Pound Ao transcriar um
poema segundo a concepccedilatildeo de Haroldo de Campos seraacute preciso pensar em uma vez
conhecida sua ldquoformardquo fazer um novo poema inserido em novo lugar e novo tempo em
vez de se fazer uma ldquoarqueologiardquo de sua funccedilatildeo social cultural ou histoacuterica136
Assim
ao traduzir um haicai (modelo claacutessico japonecircs de poema breve) de Bashocirc em vez de
ser apenas ldquofielrdquo a seu conteuacutedo ou mesmo a certos aspectos ldquosociaisrdquo da praacutetica dessa
poesia na eacutepoca Haroldo procura recriar em portuguecircs um poema dotado de
visualidade (a escrita ideogracircmica eacute visual por natureza) e capaz de re-produzir a
135Referecircncia a uma experiecircncia realizada por Yoko Suzuki da Universidade City College inspirada no
trabalho de Eugene Chudnovsky (Lehman College) que em conjunto com Dmitry Garanin elaborou
uma teoria segundo a qual as chamas magneacuteticas satildeo possiacuteveis 136 A questatildeo se esclarece por meio de conceituaccedilatildeo de Campos baseada em proposiccedilotildees de Wolfgang
Iser o tema seraacute tratado em texto complementar a este toacutepico anunciado e incluiacutedo adiante
132
concisatildeo do original137
valendo-se por exemplo da criaccedilatildeo de uma palavra nova uma
ldquopalavra-valiserdquo agrave maneira de Lewis Carroll ou James Joyce o verbo saltombar
corresponderia ao verbo tobikomu composto de tobu saltar mais komeru entrar
furu ike ya kawasu tobikomu mizu no oto
o velho tanque
ratilde saltacute
tomba
rumor de aacutegua
Pode-se causar um certo ldquoestranhamentordquo no leitor deste novo tempo e espaccedilo
embora o poema a ele se dirija renovadoramente haacute uma tendecircncia na transcriaccedilatildeo de
ldquolevar o leitor (de uma liacutengua) ao autor (de outra)rdquo privilegiando um dos dois caminhos
identificados pelo pensador romacircntico alematildeo Schleiermacher para a traduccedilatildeo (o outro
seria ldquolevar o autor ao leitorrdquo)
Renomeaccedilatildeo ldquoadacircmicardquo
Para citar apenas mais um exemplo ligado agrave atividade recriadora (ou
ldquotranscriadorardquo como prefere o tradutor) de Haroldo de Campos capaz de ilustrar
(ainda que de forma limitada a um vocaacutebulo) o processo em que ldquose desmonta e se
remonta a maacutequina da criaccedilatildeordquo tomemos um elemento de sua traduccedilatildeo do Berersquoshit o
Gecircnese No iniacutecio do texto aparece a expressatildeo ldquofogoaacuteguardquo correspondente agrave palavra
hebraica shamaacuteyim normalmente traduzida por ldquoceacuteurdquo Comenta a respeito do motivo
de sua opccedilatildeo o tradutor ldquo[hellip] HM [Henri Meschonic] sugere que na palavra hebraica
pode-se entrever um composto de rsquoesh (lsquofogorsquo) e maacuteyim (lsquoaacuteguarsquo) embora ele proacuteprio
natildeo tire partido desse verdadeiro lsquopictogramarsquo etimoloacutegico Dentro da ideia de uma
traduccedilatildeo lsquolaicarsquo pareceu-me que a imagem coacutesmica de um magma de fogo e aacutegua
previne a projeccedilatildeo neste ponto de um lsquoceacuteursquo abstrato jaacute conceptualizado Tanto a
137 No mesmo complemento a este texto o exemplo da transcriaccedilatildeo do haicai ao portuguecircs eacute retomado
como paradigma explicitador de procedimentos tradutoacuterios de Campos
133
componente iacutegnea como a liacutequida pertencem por outro lado agrave imaginaccedilatildeo biacuteblica de
um cosmo supraterrestrerdquo (1993 27)
Ao usar o composto ldquofogoaacuteguardquo Haroldo fornece metaforicamente um
correspondente ldquoconcretordquo (feito de dois elementos) ao ldquoabstratordquo ldquoceacuteurdquo fundamentado
numa hipoacutetese de constituiccedilatildeo etimoloacutegica que natildeo soacute alarga ndash realizando o proposto
pelos teoacutericos do romantismo alematildeo ndash os limites de nossa liacutengua causando-lhe
estranheza ao incorporar um novo constructo vocabular cuja dimensatildeo de materialidade
aponta para um pictograma mas tambeacutem modifica o original pela leitura de seu
elemento de forma a desvesti-lo de sua conceptualizaccedilatildeo prosaica e normalizadora
chamando a atenccedilatildeo para sua proacutepria composiccedilatildeo e portanto para o aspecto de sua
fisicalidade ldquoiconicizanterdquo destituindo-a assim de sua dimensatildeo meramente simboacutelica
(para referir-me ao conceito de ldquosiacutembolordquo de Charles S Peirce)
De forma anaacuteloga em suas traduccedilotildees da eacutepica grega Haroldo de Campos vale-se
frequentemente de compostos inusitados em nossa liacutengua criados agrave semelhanccedila das
composiccedilotildees vocabulares do grego Para que se observe o procedimento ldquoisordquo ou ldquoparardquo
-moacuterfico de Haroldo em relaccedilatildeo agrave eacutepica grega veja-se a parte inicial do item ldquoardquo do
terceiro capiacutetulo deste trabalho
C2 ldquoA tarefa do tradutorrdquo de Walter Benjamin segundo Haroldo de Campos
De difiacutecil consenso interpretativo o ceacutelebre ensaio de Walter Benjamin sobre
traduccedilatildeo mereceu inuacutemeras anaacutelises e interpretaccedilotildees lembrem-se por exemplo o texto
de Paul de Man Sobre A Tarefa do Tradutor de Walter Benjamin138
e o de Jacques
Derrida (Torres de Babel) Haroldo de Campos faz do texto de Benjamin uma leitura
operacionalizadora que extrai dele apesar de suas ambiguidades e contradiccedilotildees e das
diferentes interpretaccedilotildees de sua obra (por vezes atribuiacuteda ao proacuteprio caraacuteter
contraditoacuterio do conceito de origem em ldquoA tarefardquo) liccedilotildees indicadoras de aspectos da
praacutetica da traduccedilatildeo fazendo correlaccedilotildees entre as ideias de Benjamin (qualificadas por
Campos como uma metafiacutesica do traduzir) e as de Roman Jakobson (qualificadas como
uma fiacutesica do traduzir)
138In MAN Paul de A Resistecircncia agrave Teoria Lisboa Ediccedilotildees 70 1979
134
Natildeo caberaacute neste estudo a apresentaccedilatildeo das tatildeo estudadas ideias de Benjamin
(uma vez que natildeo as utilizaremos como referecircncia direta mas apenas como elemento
fundamental das reflexotildees de H de Campos sobre traduccedilatildeo) incluirei apenas um
comentaacuterio de Campos sobre as ideias do autor precedido de algumas anotaccedilotildees suas
datiloscritas e manuscritas sobre ldquoA tarefa do tradutorrdquo trata-se de uma espeacutecie de
ldquofichamentordquo do texto ndash em que se podem identificar conceitos-chaves do filoacutesofo
alematildeo acompanhados de sua denominaccedilatildeo em portuguecircs ndash a servir-lhe de fonte
interpretativa das proposiccedilotildees benjamianas139
Veja-se a seguir portanto uma das
paacuteginas de conjunto de anotaccedilotildees do autor na qual eacute explorada a ideia central em
Benjamin da existecircncia de uma ldquoiacutentima relaccedilatildeo das liacutenguas umas com as outrasrdquo
(ldquoreciprocamente parentesrdquo) uma ldquorelaccedilatildeo ocultardquo que a traduccedilatildeo natildeo alcanccedila
ldquoproduzirrdquo podendo contudo ldquore-presentaacute-lardquo
139 A paacutegina reproduzida integra um conjunto a ser incluiacutedo no mencionado volume Transcriaccedilatildeo a sair
135
Campos assim se refere a sua compreensatildeo das proposiccedilotildees benjaminianas em
seu artigo ldquoA liacutengua pura na teoria de W Benjaminrdquo140
140 O artigo foi publicado em Revista da USP no 33 marccedilo-maio de 1997 pp 161-170
136
Sob a roupagem rabiacutenica midrashista da irocircnica ldquometafiacutesicardquo do traduzir
benjaminiana um poeta-tradutor longamente experimentado em seu ofiacutecio pode
sem dificuldade depreender uma ldquofiacutesicardquo (uma praacutexis) tradutoacuteria efetivamente
materializaacutevel Essa ldquofiacutesicardquo ― como venho sustentando de haacute muito (10) ― eacute
possiacutevel reconhececirc-la in nuce nos concisos teoremas de Roman Jakobson sobre a
ldquoauto-referencialidade da funccedilatildeo poeacuteticardquo e sobre a traduccedilatildeo de poesia como
creative transposition (ldquotransposiccedilatildeo criativardquo) (11) A esses teoremas
fundamentais da poeacutetica linguiacutestica os ldquoteologemasrdquo benjaminianos conferem por
sua vez uma perspectiva de vertigem
Para converter a ldquometafiacutesicardquo benjaminiana e ldquofiacutesicardquo jakobsoniana basta repensar
em termos laicos a ldquoliacutengua purardquo como o ldquolugar semioacuteticordquo ― o espaccedilo operatoacuterio
― da ldquotransposiccedilatildeo criativardquo (Undichtung ldquotranspoetizaccedilatildeordquo para W Benjamin
ldquotranscriaccedilatildeordquo na terminologia que venho propondo) O ldquomodo de significarrdquo (Art
des Meinens) ou de ldquointencionarrdquo (Art der Intentio) passa a corresponder a um
ldquomodo de formarrdquo o plano siacutegnico e sua ldquolibertaccedilatildeordquo ou ldquo remissatildeordquo (Erloesung
no vocabulaacuterio salviacutefico de Benjamin) seraacute agora entendida como a operaccedilatildeo
metalinguiacutestica que aplicada sobre o original ou texto de partida nele desvela o
percurso da ldquofunccedilatildeo poeacuteticardquo Essa funccedilatildeo por sua natureza opera sobre a
ldquomaterialidaderdquo dos signos linguiacutesticos sobre ldquoformas significantesrdquo (fono-
prosoacutedicas e gramaticais) e natildeo primacialmente sobre o ldquoconteuacutedo
comunicacional a ldquomensagem referencialrdquo As ldquoformas significantesrdquo por sua
vez constituem um ldquointracoacutedigo semioacuteticordquo virtual (outro nome para a ldquoliacutengua
purardquo de Benjamin) exportaacutevel de liacutengua a liacutengua ex-traditaacutevel de uma idioma
para outro quando se trata de poesia O tradutor-transcriador como que
ldquodesbabeliza o stratum semioacutetico das liacutenguas interiorizado nos poemas (neles
ldquoexiladordquo ou ldquocativordquo nos termos de Benjamin) promovendo assim a
reconvergecircncia das divergecircncias a harmonizaccedilatildeo do ldquomodo de formarrdquo do poema
de partida com aquele reconfigurado no poema de chegada Essa reconstruccedilatildeo (que
sucede a ldquodesconstruccedilatildeordquo metalinguiacutestica de primeira instacircncia) daacute-se natildeo por
Abbildung (afiguraccedilatildeo imitativa coacutepia) mas por Anbildung (ldquofiguraccedilatildeo juntordquo
ldquoparafiguraccedilatildeo) comportando a transgressatildeo o ldquoestranhamentordquo a irrupccedilatildeo da
diferenccedila do mesmo
137
C3 A recriaccedilatildeo pela estrutura
Em dois artigos seus de grande relevacircncia publicados em perioacutedicos (um deles
mais tarde integrou uma antologia de textos sobre traduccedilatildeo) ldquoTraduccedilatildeo ideologia e
histoacuteriardquo (1993) e ldquoDa traduccedilatildeo agrave transficionalidaderdquo (1989) depois denominado
ldquoTraduccedilatildeo e reconfiguraccedilatildeo o tradutor como transfingidorrdquo Haroldo de Campos vale-
se de conceitos do teoacuterico alematildeo Wolfgang Iser para trazer nova dimensatildeo de
esclarecimento a respeito de suas concepccedilotildees sobre transcriaccedilatildeo Por meio do texto em
que se fundamenta Campos define os contornos de sua orientaccedilatildeo aos procedimentos
tradutoacuterios seu ponto de partida se daraacute segundo um modo de abordagem do texto
baseado em sua estrutura ou seja em sua dimensatildeo estrutural modo este que
corresponde ao primeiro entre outros dois identificados por Iser A este respeito incluo
os apontamentos que se seguem (originalmente integrantes de artigo criacutetico meu a
respeito de haicai ndash modelo de poesia tradicional japonesa ndash e recriaccedilatildeo141
) que contecircm
uma apresentaccedilatildeo sinteacutetica dos pontos centrais da teoria de Iser e sua utilizaccedilatildeo por H
de Campos aleacutem de outras observaccedilotildees referentes a fontes e conceitos A escolha do
haicai como objeto em que se assenta a discussatildeo justifica-se por ser um exemplo breve
e claro de modos de abordagem do texto poeacutetico e da traduccedilatildeo colaborando para uma
interpretaccedilatildeo de alguns conceitos fundadores do pensamento de Campos
[]
A questatildeo central no entanto estaacute em se determinar quais aspectos relacionados a
uma poesia nascida em outra eacutepoca e em outra cultura seratildeo considerados
essenciais por quem a toma como objeto de estudo ou como referecircncia para a
criaccedilatildeo
Podemos ateacute em relaccedilatildeo ao posicionamento diante do haikai ndash e agrave maneira de
traduzi-lo ou criaacute-lo ndash distinguir dois modos fundamentais (da forma como os
vejo) ligados aos diferentes pontos de vista identificados que por sua vez
correspondem a diferentes visotildees de literatura e poesia de modo geral assim como
de traduccedilatildeo literaacuteria e poeacutetica Definamos tais modos de forma talvez demasiado
sucinta e redutora tendo-se em conta a complexidade do tema
141ldquoSuacutebitos de luzrdquo posfaacutecio ao livro Lumes antologia de haicais de Pedro Xisto (Satildeo Paulo Berlendis amp
Vertecchia 2008)
138
O primeiro modo seraacute aquele que prioriza a estrutura do poema e portanto os
ldquofatores intratextuaisrdquo142
(isto eacute fatores internos ao texto) Esta oacuteptica pode ser
representada pela conceituaccedilatildeo de Haroldo de Campos que ao considerar o poema
escrito atentaraacute fundamentalmente para as relaccedilotildees entre som sentido e
visualidade no texto (no caso do haikai como se disse a escrita ideogramaacutetica
seraacute para ele uma referecircncia fundamental) Sua abordagem prevecirc tambeacutem uma
apropriaccedilatildeo dos fatores histoacutericos relativos ao texto original com o objetivo de
construir uma ldquotradiccedilatildeo vivardquo Assim em vez de se concentrar na ldquotentativa de
lsquoreconstruccedilatildeo de um mundo passadorsquo e de lsquorecuperaccedilatildeo de uma experiecircncia
histoacutericarsquordquo143
(tentativa esta coerente com o outro ponto de vista que distinguimos)
o ato de traduzir seraacute regido ldquopelas necessidades do presente da criaccedilatildeordquo o novo
texto ldquopor desconstruccedilatildeo e reconstruccedilatildeo da histoacuteria traduz a tradiccedilatildeo
reinventando-ardquo144
O outro modo privilegia a funccedilatildeo do texto um conceito que permite compreender
a ldquorelaccedilatildeo do texto com seu contextordquo145
e portanto atenta para sua historicidade
para as condiccedilotildees histoacutericas e sociais em que o texto nasceu Este ponto de vista
poderaacute envolver o conceito de ldquofidelidaderdquo agrave funccedilatildeo levando agrave tentativa de
produzir um poema que corresponda agraves relaccedilotildees que estabelecia com seu contexto
original Assim por exemplo seraacute desejaacutevel que um haikai de Bashocirc concebido
para ser ldquopopularrdquo em sua origem seja traduzido ou recriado em nossa liacutengua de
modo que natildeo exiba um vocabulaacuterio pouco usual ou as marcas de uma elaboraccedilatildeo
mais sofisticada Se o poema era produzido oralmente e soacute depois transcrito seraacute
mais adequado priorizar sua dicccedilatildeo oral e natildeo seus atributos visuais decorrentes
da escrita ideogramaacutetica A partir da ideia de ldquoreconstruccedilatildeo de um mundo
passado tambeacutem se poderaacute fazer na interpretaccedilatildeo de um poema a ser traduzido
ldquoo esforccedilo para sentir ou experimentar de novo a emoccedilatildeo do poetardquo (no dizer de
Suzuki146
) numa atitude que parece buscar aleacutem do resgate do papel social do
haikai conforme proposto pela escola japonesa o da intencionalidade do proacuteprio
poeta De acordo com esses pressupostos portanto um haikai criado em nossa
liacutengua (ou traduzido para ela) deveraacute guardar relaccedilatildeo com a visatildeo de mundo da
142ISER W ldquoProblemas da teoria da literatura atual o imaginaacuterio e os conceitos-chaves da eacutepocardquo In
Costa Lima Luiz Teoria da literatura em suas fontes 2ordf ediccedilatildeo Rio de Janeiro Francisco Alves 1983
P 369 143As frases provecircm do jaacute mencionado ldquoTraduccedilatildeo ideologia e histoacuteriardquo (1983) O trecho citado inclui por
sua vez citaccedilotildees de Iser (op cit) 144Id p 59 (Os grifos da citaccedilatildeo satildeo do original) 145ISER op cit p 371 146SUZUKI Teiiti ldquoImpressotildees da viagem agrave China Pequim ndash fevereiro de 1980rdquo In Estudos japoneses
III Satildeo Paulo Centro de Estudos Japoneses ndash USP 1983 p 95
139
cultura de origem corresponder ao ldquoespiacuterito do haikairdquo ser simples composto de
vocabulaacuterio popular (acessiacutevel a ldquocrianccedilas e incultosrdquo147
) e natildeo ser
ldquoostensivamente trabalhadordquo deveraacute apresentar as caracteriacutesticas consideradas
essenciais (segundo Shiki148
) agrave natureza do haikai ldquoexpressatildeo direta objetiva por
meio de imagens claras sem abstraccedilotildees ou sentimentalismordquo
Se este ponto de vista centrado no conceito de funccedilatildeo privilegia a origem a
ldquogecircnese do textordquo aquele visto primeiramente ao considerar a estrutura do texto e
sua inserccedilatildeo em outro tempo e lugar ressalta a ldquovalidade do textordquo (ou seja sua
ldquovidardquo apoacutes as condiccedilotildees histoacutericas em que nasceu) que prevecirc ldquoum modelo de
interaccedilatildeo entre texto e leitorrdquo149
Enfatizar portanto a estrutura do texto e sua
interaccedilatildeo com o leitor permitiraacute um desapego da ideia de reconstruir um mundo
passado (uma vez que este se modifica pelo mundo presente no ato da leitura e da
recriaccedilatildeo) indo ao encontro do conceito ldquomake it newrdquo (tornar novo renovar) do
poeta norte-americano Ezra Pound (1885-1972)
Neste caso um texto ao ser traduzido sofreraacute a interferecircncia do contexto em que eacute
lido sua estrutura seraacute reconfigurada e a partir disso sua funccedilatildeo seraacute novamente
determinada De modo semelhante um poema criado a partir de um modelo
proveniente de outra eacutepoca outro lugar e outra cultura procuraraacute reinventar esse
modelo tal como o autor o vecirc no novo contexto150
Concentrando-se na linguagem e nas ldquonecessidades do presente da criaccedilatildeordquo seraacute
possiacutevel a um criador ou tradutor optar por outros paracircmetros formais que
considere adequados (com base em seus proacuteprios conceitos esteacuteticos) agrave produccedilatildeo
do poema em seu novo contexto No caso de Haroldo de Campos sua opccedilatildeo seraacute
em suas traduccedilotildees a de privilegiar a ldquocontinuidade visualrdquo do haikai adotando
para isso uma ldquodisposiccedilatildeo mais espacial que rompe o esquema usual do
tercetordquo151
tambeacutem natildeo usaraacute o padratildeo meacutetrico original preferindo adotar ldquoum
verso livre extremamente breve como moacutedulo de composiccedilatildeordquo descartaraacute ainda o
uso de rimas []
147FRANCHETTI op cit pp 46-47 148As caracteriacutesticas apontadas por Shiki satildeo mencionadas em Franchetti op cit p 28 149CAMPOS H ldquoDa traduccedilatildeo agrave transficcionalidaderdquo In 34 letras nuacutemero 3 Rio de Janeiro 1989 P 90
Campos cita Iser para quem ldquoo modelo da interaccedilatildeo entre texto e leitor eacute fundamental para o conceito de
comunicaccedilatildeordquo (op cit p 365) (Ver nota seguinte) 150A abordagem de Campos que considera fundamentalmente a estrutura do texto (pois eacute nela que para
ele ldquoatua por excelecircncialdquo a recriaccedilatildeo ndash ou ldquotranscriaccedilatildeordquo como prefere denominar) aponta tambeacutem para
o terceiro daqueles que para Wolfgang Iser satildeo os ldquoconceitos-chaverdquo que ldquoconstituem os conceitos de
orientaccedilatildeo central na anaacutelise da literaturardquo ldquoestrutura funccedilatildeo e comunicaccedilatildeordquo 151CAMPOS H ldquoHaicai homenagem agrave siacutenteserdquo Op cit p 60 Veja-sea traduccedilatildeo que Campos realizou
de um poema de Buson e de outro de Bashocirc (o famoso ldquoum velho tanque []rdquo)
140
C 4 Sobre a transcriaccedilatildeo da Iliacuteada
No livro Menis ndash a ira de Aquiles em que apresenta sua traduccedilatildeo do Canto I
da Iliacuteada Haroldo de Campos faz comentaacuterios sobre seus propoacutesitos tradutoacuterios
ausentes da ediccedilatildeo do poema completo (que conta com introduccedilatildeo no volume I de
Trajano Vieira) Esses comentaacuterios satildeo bastante esclarecedores sobre seus pontos de
vista acerca de traduccedilatildeo da eacutepica grega que complementam as informaccedilotildees jaacute
discutidas neste estudo Assim eacute importante que se incluam aqui trechos de sua
apresentaccedilatildeo ldquoPara transcriar a Iliacuteadardquo citados a seguir Apoacutes dizer de sua opccedilatildeo pelo
dodecassiacutelabo (em trecho jaacute antes citado) Campos afirma ldquo[] Busquei por um lado
preservar a melopeia homeacuterica (que Ezra Pound considerava inexcediacutevel) e por outro
estabelecer uma correspondecircncia verso a verso com o original (ou seja obter em
portuguecircs o mesmo nuacutemero de versos do texto grego)rdquo (1994 14) E prossegue
anunciando o que considerava entatildeo sua tarefa total
Estou empenhado em recriar em nossa liacutengua quanto possiacutevel a forma de
expressatildeo (no plano focircnico e riacutetmico-prosoacutedico) e a forma do conteuacutedo (a
logopeia o desenho sintaacutetico a poesia da gramaacutetica) do Canto I da Iliacuteada
Longe de mim a intenccedilatildeo excessiva para meus propoacutesitos de uma traduccedilatildeo
integral do poema Desejo tatildeo-somente constituir um modelo intensivo um
paradigma atual e atuante de transcriaccedilatildeo homeacuterica
Como sabemos Campos foi aleacutem do inicialmente pretendido traduzindo toda a
Iliacuteada e teria conforme se sabe de sua intenccedilatildeo posterior traduzido toda a Odisseia se
isso lhe tivesse sido possiacutevel (desse poema deixou-nos apenas fragmentos dos quais
tomaremos alguns para anaacutelise) Seu trabalho como revela dialoga com o de Mendes
Por um lado retomo o legado ateacute certo ponto arcaizado de Odorico com cujas
soluccedilotildees meu texto frequentemente dialoga por outro com o escopo de dar uma
nova vitalidade ao verso traduzido mobilizo todos os recursos do arsenal da
moderna poeacutetica nesse sentido (desde logo haacute a considerar em mateacuteria de
retomada eacutepica o exemplo de dicccedilatildeo dos Cantos de Ezra Pound []) Estou
persuadido pelo caminho ateacute aqui percorrido de que do transcriador da rapsoacutedia
homeacuterica se requer no plano da fatura poeacutetica uma atenccedilatildeo microloacutegica agrave
elaboraccedilatildeo poeacutetica de cada verso (paronomaacutesias aliteraccedilotildees ecos onomatopeias)
141
aliada a uma precisa teacutecnica de cortes remessas e encadeamentos fraacutesicos (o
tradutor no caso deveraacute comportar-se corno um coreoacutegrafo ou diagramador
sintaacutetico)
Aparece em seguida como proposta tradutoacuteria a ideia de ldquovivificaccedilatildeordquo do verso
traduzido que como se sabe associa-se ao conceito make it new de Pound e agrave
abordagem do texto de modo a considerar sua validade sua inserccedilatildeo em outro contexto
(acircmbito da comunicaccedilatildeo na conceituaccedilatildeo de Iser)
Recuperaccedilotildees etimoloacutegicas (por exemplo a que levei a efeito no verso 47
traduzindo nyktigrave eoikoacutes por iacutecone da noite em lugar de semelhante agrave noite
Odorico agrave noite semelha C A Nunes) podem estrategicamente aplicadas
vivificar o verso em portuguecircs Assim tambeacutem no caso dos epiacutetetos (liccedilatildeo
premonitoacuteria de Odorico que natildeo se deve descartar neste ponto mas aperfeiccediloar
criteriosamente) este efeito vitalizador pode ser obtido atraveacutes da cunhagem de
compostos isomorfos em relaccedilatildeo a essas virtuais ldquometaacuteforas fixasrdquo que brasonam
os heroacuteis gregos e seus deuses
O tradutor lanccedilaraacute matildeo muitas vezes da criaccedilatildeo de compostos embora de modo
diverso do de Odorico por fazer-se com frequecircncia pela simples justaposiccedilatildeo ldquopeacutes-
velozesrdquo (para Odorico ldquovelociacutepederdquo) ldquodoma-corceacuteisrdquo ldquobom-pugilistardquo etc Valoriza-
se como era de se esperar o trocadilho
Por vezes toda uma precisa carga retoacuterica pode estar encapsulada num simples
trocadilho que mobiliza som e sentido e que portanto ao inveacutes de rasura
desatenta demanda reconfiguraccedilatildeo no texto traduzido veja-se o v 231
demoboacuteros basileuacutes epeigrave outidanorsin anaacutesseis
Odorico traduz
Cobardes reges vorador do povo
recuperando o demoboacuteros com a foacutermula paronomaacutestica vorador do povo
C A Nunes menos feliz mais discursivo escreve
142
Devorador do teu povo Natildeo fosse imprestaacutevel Atrida toda esta gente
O tradutor fornece em seguida a sua versatildeo moldada pela ldquolei da
compensaccedilatildeordquo
[] procurei reconstituir sonora e semanticamente com o maacuteximo de economia o
jogo de palavras que nas traduccedilotildees consultadas [incluindo-se a de Robert
Fitzgerald e a de Robert Fagles] passou em branco
Devora-Povo Rei dos Dacircnaos Rei de nada
Observe-se que no texto portuguecircs o trocadilho expandiu-se em paronomaacutesia (dos
DAcircNAos de NADA) enquanto em grego outiDANoicircsin repercute sonoramente
no verbo ANAacutesseis (anaacutessein reinar sobre regendo um dativo no caso) Lei da
compensaccedilatildeo regra de ouro da traduccedilatildeo criativa
Como se vecirc Haroldo de Campos eacute um desses casos um tanto raros de poeta e
tradutor que se ocupou de conceituar e descrever procedimentos e expedientes seus
gerando uma ampla sustentaccedilatildeo para a leitura das traduccedilotildees que empreendeu Sobre a
compensaccedilatildeo diga-se que ocorrem com frequecircncia em suas traduccedilotildees o que seria
denominado por Joseacute Paulo Paes de ldquosobrecompensaccedilatildeordquo ndash uma soluccedilatildeo que
acrescenta recursos de linguagem poeacutetica norteado pela conceituaccedilatildeo de funccedilatildeo poeacutetica
da linguagem e de ldquoiconizaccedilatildeordquo do signo verbal Campos tende agrave concentraccedilatildeo de
efeitos que pode ultrapassar o que se depreende do original
Na convergecircncia de teoria e praacutetica revela-se uma amplitude de conduta que
permite a diversidade de resultados ditados pela identidade uacutenica de cada
empreendimento recriador natildeo haacute preceitos estritos a serem seguidos como ldquoreceitardquo
mas uma recomendaccedilatildeo fundamentada de hyacutebris criadora de ousadia na transposiccedilatildeo
criativa
A hyacutebris do tradutor ndash preceito indispensaacutevel desse ponto de vista para a
traduccedilatildeo desvinculada da tradiccedilatildeo de subserviecircncia ao original ndash jaacute encontra expressatildeo
na proacutepria apresentaccedilatildeo da Iliacuteada os volumes trazem como autor Haroldo de Campos
143
reservando-se ao tiacutetulo a forma Iliacuteada de Homero Trata-se da assunccedilatildeo pelo tradutor
do status de autor de criador de obra autocircnoma embora paramoacuterfica152
152 Esse modo de apresentaccedilatildeo decorrente de um conceito sobre a proacutepria tarefa do tradutor encontra ndash
mencione-se ndash antecedecircncia no paiacutes em livros de poesia traduzidos por Guilherme de Almeida Poetas
de Franccedila (1936) Paralelamente a Paul Verlaine (1944) (cujo tiacutetulo permite entrever o conceito de
ldquocanto paralelordquo) e Flores das ldquoFlores do malrdquo de Charles Baudelaire (1944) todos tendo como autor o
poeta paulista
144
Capiacutetulo III
A Vozes para Homero
A simple instance is the preservation of an object not only through the
meanings of the words which deal with it but also through their sound
as when Pope in his translation of a passage of the Iliad describing chariots rackering down a hillside
tries to put Homeracutes description into English words that shall not only correspond in meaning to the
meaning of Homeracutes words but shall also repeat in a different metrical structure and in the sound-system
of English the market onomatopoeia of the original
First march the heavy Mules securely slow
Orsquoer Hills orsquoer Dales orsquoer Crags orsquoer Rocks they go (XXIII 138-9)
Winifred Nowottny153
Este capiacutetulo teraacute por objetivo a anaacutelise de diferentes versotildees em portuguecircs de
fragmentos do Canto I e do Canto IX da Iliacuteada de Homero Do Canto I seratildeo extraiacutedos
apenas dois versos (33-34) considerando-se inicialmente trecircs traduccedilotildees (a de Odorico
Mendes Carlos Alberto Nunes e Haroldo de Campos) agraves quais se agrega depois uma
quarta (de Andreacute Malta154
) do Canto IX seratildeo tomados os versos 177 a 198
considerando-se as versotildees dos quatro tradutores referidos
Para tanto o ponto de partida seraacute a abordagem de caracteriacutesticas gerais da
poesia eacutepica grega observando-se depois aspectos dos mencionados fragmentos seratildeo
apresentados como referenciais teoacutericos sobre traduccedilatildeo poeacutetica alguns conceitos
centrais relativos ao tema e os pontos de vista dos tradutores escolhidos considerando-
se seus fundamentos e propoacutesitos as soluccedilotildees encontradas nas diferentes traduccedilotildees
seratildeo estudadas essencialmente agrave luz de suas proacuteprias diretrizes e o cotejamento destas
serviraacute a alguma anaacutelise comparativa dos diversos resultados
153 NOWOTTNY Winifred The language poets use London The Athlone Press 1972 p 3 154 Andreacute Malta Campos eacute professor de liacutengua e literatura grega na FFLCH da USP estudioso e tradutor
da obra homeacuterica
145
A1 Sobre a poesia eacutepica grega a questatildeo da oralidade
A poesia homeacuterica eacute entendida hoje como resultante de um processo oral de
composiccedilatildeo ligado agrave tradiccedilatildeo de uma cultura marcada pela oralidade Segundo
Havelock155
[] presume-se que o tipo de composiccedilatildeo oral no qual os gregos se comprazeram
e pode-se dizer que aperfeiccediloaram deve ter sido uma histoacuteria milenar recuando ao
fundo da experiecircncia de todas as sociedades preacute-letradas mas civilizadas e suas
regras fundamentais deitam raiacutezes nessa histoacuteria O estranho poder dos claacutessicos
gregos arcaicos deve-se em primeiro lugar natildeo agrave inspiraccedilatildeo mas ao que eles tecircm
de comum com a teacutecnica e com o propoacutesito desse modo preacute-histoacuterico de
composiccedilatildeordquo (1996 14)
Desde a famosa tese de Milman Parry e seus trabalhos posteriores156
ndash que
procuram estudar o estilo da obra homeacuterica identificando de modo ldquopraacuteticordquo os
elementos que o caracterizam ndash a ldquofoacutermulardquo eacute definitivamente vista como um
componente fundamental do meacutetodo oral de composiccedilatildeo podendo-se conceituaacute-la como
uma expressatildeo usada de forma regular sob as mesmas condiccedilotildees meacutetricas a fim de
expressar uma ideia essencial Como demonstra Parry seguindo a esteira de Duumlntzer
(1872) as foacutermulas apresentam um aspecto funcional no caso dos epiacutetetos sempre que
no poema se vincular um atributo a determinado heroacutei em determinada extensatildeo do
hexacircmetro dactiacutelico (padratildeo meacutetrico da eacutepica grega)157
seraacute usada a mesma expressatildeo
formular Como seu emprego eacute funcionalmente ligado agraves necessidades e agraves
peculiaridades da composiccedilatildeo oral a foacutermula integraraacute o aspecto ornamental do poema
sem que precise ter significado especiacutefico em certa passagem assim seratildeo relevantes
antes suas caracteriacutesticas esteacuteticas do que semacircnticas
155 HAVELOCK Eric Prefaacutecio a Platatildeo Campinas Papirus 1996 156 Referecircncia ao texto ldquoLacuteacuteEpithegravete traditionelle dans Homerrdquo publicado originalmente em 1928 e os
demais estudos do autor recolhidos (numa versatildeo em liacutengua inglesa) por Adam Parry no volume The
making of homeric verse ndash collected papers of Milman Parry Oxford 1971 157 O hexacircmetro dactiacutelico (verso formado por cinco peacutes daacutectilos e um cataleacuteptico ou seja falto de uma siacutelaba) eacute o padratildeo utilizado na eacutepica grega pode ser representado basicamente com a silaba breve
simbolizada pela braacutequia (U) e a siacutelaba longa pelo maacutecron (ndash) da seguinte forma ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU
ndash UU ndashU Mencione-se que duas siacutelabas breves podem ser substituiacutedas por uma longa em todos os peacutes
com exceccedilatildeo do quinto (a substituiccedilatildeo neste peacute ocorre muito raramente este fato eacute relevante para a
proposta que faremos em capiacutetulo posterior de possiacutevel padratildeo meacutetrico para a traduccedilatildeo da eacutepica) a
uacuteltima siacutelaba do verso breve tambeacutem pode ser uma longa integrando assim um daacutectilo
146
Ainda que como sustenta Havelock o essencial para Homero fosse ldquosem
sombra de duacutevidardquo a narrativa (A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia 1996 79) e
(conforme esse autor empenhou-se em demonstrar) sua poesia tivesse tambeacutem um
niacutetido papel ldquoenciclopeacutedicordquo ndash fazendo parte dela elementos didaacuteticos e informativos ao
cidadatildeo que incluiacuteam padrotildees de comportamento ndash tecircm sido objeto constante de
estudos apoacutes as descobertas de Parry ldquoo modo como aquela poesia foi feitardquo passando
ldquoa interessar menosrdquo ldquoo que aquela poesia nos contardquo (Oliveira 2006 xi) Ainda que se
possa criticar este ponto de vista ndash por implicar a menor consideraccedilatildeo do ldquoconteuacutedordquo
narrativo dos poemas ndash eacute evidente que as observaccedilotildees e constataccedilotildees de ordem formal
(que diga-se podem ir aleacutem da identificaccedilatildeo dos ldquomecanismos de oralidaderdquo) lanccedilam
luz sobre a natureza dessa poeacutetica bem como explicitam uma forma de utilizaccedilatildeo de
elementos esteacuteticos que por sua vez poderaacute servir de referecircncia a possiacuteveis
comparaccedilotildees com paracircmetros proacuteprios da ldquocultura letradardquo e particularmente da
cultura ocidental moderna (com seus conceitos acerca de poesia)
Segundo Peabody citado por Havelock o estilo oral especiacutefico de composiccedilatildeo eacute
ldquodetectaacutevel atraveacutes de criteacuterios que definem cinco tipos de lsquoredundacircnciarsquo ou
lsquoregularidadersquo na linguagem Vecircm a ser eles padrotildees fonecircmicos como rima ou
assonacircncia padrotildees formulares constatados em lsquofeixes morfecircmicosrsquo recorrentes
padrotildees perioacutedicos ou sintaacuteticos padrotildees temaacuteticos [] e lsquoindicador de cantorsquordquo (1996
150) Peabody examina a estrutura do hexacircmetro (como se refere Havelock) em termos
de coacutelon (ldquocombinaccedilatildeo de peacutes [] formando uma unidaderdquo158
) e de foacutermula Sobre esta
diz Havelock159
As foacutermulas (tornadas familiares [] pela obra de Milman Parry) satildeo examinadas
do ponto de vista da configuraccedilatildeo desses membros meacutetricos como constituiacutedas por
cola [plural de coacutelon] simples ou agregados de cola Os mais longos usualmente
formam hemistiacutequios [] Esses vaacuterios componentes do verso permite ao cantador
entoaacute-los apoiado no fato de que expressotildees e ritmos da fala ordinaacuteria [] se
refletem na sua composiccedilatildeo (1996 152)
158 MOISEacuteS Massaud Dicionaacuterio de termos literaacuterios Satildeo Paulo Cultrix 1978 159 HAVELOCK Eric A A revoluccedilatildeo da escrita na Greacutecia e suas consequecircncias culturais Satildeo Paulo
Unesp Rio de Janeiro Paz e Terra 1996
147
Para Havelock Peabody ldquose ateacutem com firmeza agraves realidades fonecircmicas
subjacentes ao processo de composiccedilatildeo genuinamente oralrdquo
Ele ouve o cantador que compotildee cola articulados em foacutermulas articula foacutermulas
em aglomerados temaacuteticos encerrando-os em hexacircmetros a aos hexacircmetros em
estacircncias a seguir o comando das formas foneacuteticas das palavras por uma espeacutecie
de automatismo psicoloacutegico (p 161)
Havelock observa que ldquoeacute nisso e natildeo na formaccedilatildeo ou busca de lsquoideiasrsquo como
enfatiza corretamente Peabody [para este a histoacuteria contada na epopeia eacute um traccedilo
secundaacuterio] que reside o segredo da composiccedilatildeo oralrdquo (p 161)
(Sendo assim a importacircncia da ldquoforma foneacutetica das palavrasrdquo e do esquema
riacutetmico-meacutetrico seraacute considerada neste estudo posteriormente em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees
escolhidas para discussatildeo)
Referindo-se agrave pesquisa de Parry e de Albert Lord com os cantadores
iugoslavos160
Havelock afirma que
A teoria da oralidade aplicada a Homero com analogias derivadas da poesia oral
balcacircnica estimulou o haacutebito de considerar a praacutetica oral e a letrada como
mutuamente exclusivas A escrita presume-se toma de assalto o espiacuterito da
composiccedilatildeo oral e corrompe-o de maneira que a originalidade dele daacute lugar agrave
repeticcedilatildeo mecacircnica (p 17)
Discordando desta visatildeo o autor considera que ldquoa Iliacuteada e a Odisseia satildeo
construccedilotildees complexas as quais refletem o comeccedilo de uma parceria entre o oral e o
escrito parceria que se mostrou fecundardquo (ib) E esclarece que ldquoo espiacuterito integral da
literatura e da filosofiardquo por ele considerados mostra-se como uma ldquotensatildeo dinacircmicardquo
entre o oral e o letrado sendo tal ldquoo processo que nele a linguagem tratada de forma
acuacutestica segundo princiacutepios de ressonacircncia (eco) entra em competiccedilatildeo com a
linguagem tratada segundo princiacutepios arquitetocircnicosrdquo (procedimento que teria se
firmado depois de Platatildeo) (ib)
160 PARRY ldquoGreek and southslavic heroic songrdquo in op cit e Lord The Singer of TalesCambridge
Harvard University Press 1960
148
(Estas consideraccedilotildees tambeacutem poderatildeo servir de referecircncia agrave anaacutelise que se
pretende desenvolver aqui das diferentes versotildees de fragmentos da Iliacuteada eacute este
tambeacutem o caso das citaccedilotildees seguintes)
Acerca da modernidade e da maneira como esta concebe a poesia e referindo-se
agrave questatildeo da narrativa o mesmo autor afirma que
[] eacute caracteriacutestico de toda a tendecircncia da criacutetica moderna que o componente do
relato seja ignorado e o componente do artifiacutecio seja exagerado Nossa concepccedilatildeo
de poesia natildeo tem lugar para o ato oral de relatar e portanto natildeo leva em conta as
complexidades da tarefa de Homero A criaccedilatildeo artiacutestica no sentido que damos ao
termo eacute algo muito mais simples do que a declamaccedilatildeo eacutepica e implica o
afastamento do artista com relaccedilatildeo agrave accedilatildeo poliacutetica e social (Prefaacutecio 1996 108)
(Havelock refere-se no final do trecho diga-se ao papel social das informaccedilotildees
ldquoenciclopeacutedicasrdquo que a poesia eacutepica encerra) Em que pese a possibilidade de
divergecircncia acerca das colocaccedilotildees quanto ao niacutevel de complexidade da criaccedilatildeo oral e da
natildeo-oral eacute interessante registrar-se a diferenccedila entre ambos os modos em termos de
concepccedilatildeo e procedimento vinculada agrave sua proacutepria funccedilatildeo na comunidade em que se
insere
Em relaccedilatildeo agrave diferenccedila entre as culturas oral e letrada afirma Havelock que
numa obra escrita busca-se um miacutenimo de repeticcedilatildeo enquanto ldquoo registro oral requer
exatamente o processo opostordquo sendo que
os inteacuterpretes letrados que natildeo treinaram sua imaginaccedilatildeo para entender a psicologia
da conservaccedilatildeo oral iratildeo [] dividir recortar e amputar as repeticcedilotildees e variantes de
um texto de Homero ou de Hesiacuteodo para conformar o texto a procedimentos
letrados nos quais as exigecircncias da memoacuteria viva natildeo mais satildeo importantes (pp
109-110)
Como diz ainda Havelock ldquono campo circunscrito pela repeticcedilatildeo poderia haver
variaccedilatildeordquo161
e ldquoo tiacutepico pode ser reafirmado dentro de um acircmbito bastante extenso de
161 Eacute oportuno mencionar que por meio das gravaccedilotildees realizadas por Lord com cantores iugoslavos
constatou-se que estes variavam seu canto ainda que dissessem mantecirc-lo sempre igual
149
foacutermulas verbaisrdquo para ele o ldquohaacutebito de lsquovariaccedilatildeo do mesmorsquo eacute fundamental agrave poesia
de Homerordquo (p 110) Tal haacutebito integra o procedimento do poeta descrito nesta
passagem
A teacutecnica oral de composiccedilatildeo em verso pode ser vista como a que se constroacutei
mediante os seguintes recursos haacute um padratildeo puramente riacutetmico que permite que
versos sucessivos de poesia de extensatildeo temporal padronizada sejam compostos de
partes meacutetricas intercambiaacuteveis em segundo um enorme suprimento de
combinaccedilotildees de vocaacutebulos ou foacutermulas de extensatildeo e sintaxe variaacuteveis compostas
ritmicamente para que se ajustem a partes do verso meacutetrico mas que por sua vez
sejam tambeacutem compostas de partes meacutetricas intercambiaacuteveis dispostas de modo a
que tanto pela combinaccedilatildeo de diferentes foacutermulas quanto pela combinaccedilatildeo de
partes de diferentes foacutermulas o poeta possa alterar sua sintaxe sem alterar seu
ritmo Seu talento artiacutestico como um todo consiste desse modo numa distribuiccedilatildeo
infinita de variaacuteveis nas quais todavia a variaccedilatildeo eacute mantida dentro de limites
estritos e as possibilidades verbais embora extensas satildeo em uacuteltima anaacutelise
finitas (ib)
Considere-se ainda que para Havelock a teacutecnica formular teria nascido como
um artifiacutecio de memorizaccedilatildeo e de registro natildeo devendo ser considerada como um
simples auxiacutelio agrave improvisaccedilatildeo poeacutetica elemento este secundaacuterio ldquoassim como a
invenccedilatildeo pessoal do menestrel eacute secundaacuteria para a cultura e costumes populares que ele
relata e conservardquo (p 111) Natildeo eacute pertinente de seu ponto de vista a comparaccedilatildeo com
cantores de comunidades como as da Iugoslaacutevia e da Ruacutessia nas quais a teacutecnica oral
natildeo eacute mais essencial agrave cultura e o cantor ldquotorna-se primordialmente um homem de
espetaacuteculos e similarmente suas foacutermulas estatildeo destinadas agrave improvisaccedilatildeo faacutecil e natildeo agrave
conservaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo magisterialrdquo (p 112) Desse ponto de vista o mesmo se
poderia dizer em relaccedilatildeo aos cantadores nordestinos do Brasil que se valem de padrotildees
riacutetmicos e de ldquofoacutermulasrdquo memorizadas em seus improvisos e ldquodesafiosrdquo executados em
apresentaccedilotildees populares
As colocaccedilotildees referidas apontam para diferenccedilas fundamentais existentes entre a
poesia oral tradicional e a poesia tal como a entendemos hoje com propoacutesitos esteacuteticos
No entanto eacute preciso ter em conta que ainda que a funccedilatildeo do aedo e de sua poesia
150
fossem prioritariamente ldquomagisterial e enciclopeacutedicardquo seu modo de concepccedilatildeo
composiccedilatildeo e execuccedilatildeo envolviam padrotildees esteacuteticos nitidamente definidos o que a
aproxima essencialmente por esta via da poesia conforme nossa cultura letrada a
entende O ritmo ndash um componente de ordem esteacutetica ndash eacute apontado da antiguidade agrave
contemporaneidade como um elemento essencial e caracteriacutestico da poesia
prevalecente na composiccedilatildeo poeacutetica desde suas origens ateacute o presente o que pelo
ldquoplano da expressatildeordquo assemelha toda e qualquer poesia independentemente da situaccedilatildeo
histoacuterico-cultural e dos conceitos compartilhados pelos indiviacuteduos inseridos no mesmo
contexto quanto ao que seja poesia e qual seja sua funccedilatildeo na comunidade Sobre o
ritmo lembremos a visatildeo de Aristoacuteteles na Poeacutetica162
Por serem naturais em noacutes a tendecircncia para a imitaccedilatildeo a melodia e o ritmo ndash que
os metros satildeo parte dos ritmos eacute fato evidente ndash primitivamente os mais bem
dotados para eles progredindo a pouco e pouco fizeram nascer de suas
improvisaccedilotildees a poesia (1990 22)
Contemporaneamente Segismundo Spina163
afirma
O homem por natureza natildeo eacute somente um animal poliacutetico como diz Aristoacuteteles
[] eacute tambeacutem e sobretudo um animal riacutetmico [] Dentre todos os caracteres
geneacuteticos das artes foneacuteticas e da coreografia estaacute em primeira linha o ritmo []
O conto a narraccedilatildeo miacutetica primitiva foi foi-se desvencilhando gradativamente do
elemento riacutetmico tatildeo dominante na literatura primitiva Mas permaneceu na poesia
ateacute os nossos tempos A Poesia deve agrave Muacutesica em seu periacuteodo ancilar as suas leis
constitutivas (2002 127)
Considerando-se novamente uma concepccedilatildeo provinda da linguiacutestica estrutural a
de ldquofunccedilatildeo poeacutetica da linguagemrdquo tal como definida por Roman Jakobson poderemos
estender o que se observou em relaccedilatildeo ao ritmo para todos os aspectos natildeo-verbais que
integrem a estrutura linguiacutestica do poema (Revejam-se ndash agora relacionadas agrave poesia
oral ndash as proposiccedilotildees de Jakobson jaacute abordadas neste trabalho)
162 ARISTOacuteTELES HORAacuteCIO LONGINO A poeacutetica claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 2002
163 SPINA S Na madrugada das formas poeacuteticas Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 2002
151
Jakobson procura descrever o que lhe parece caracterizar a poesia
independentemente de circunscriccedilotildees temporais situacionais ou culturais e note-se o
que ele aponta parece adequar-se tatildeo bem agrave poesia oral da antiguidade quanto agrave poesia
como a concebemos e praticamos hoje Isto exatamente porque ele reconhece elementos
constitutivos que independem da funccedilatildeo da arte na comunidade e da intencionalidade
de seu ldquoconteuacutedordquo Enfatiza ele sim a ldquorelaccedilatildeo entre som e sentidordquo o que se manteacutem
mesmo no caso das foacutermulas cuja funccedilatildeo no metro muitas vezes parece atribuir-lhes ndash
como demonstrou Parry ndash apenas funccedilatildeo formal associada ao esvaziamento de
significado na concepccedilatildeo jakobsoniana a tensatildeo entre som e sentido eacute o que promove o
alcance do poema como um todo significante (pleno de significado pois as duas ldquofacesrdquo
do signo satildeo indissociaacuteveis) Sobre isto diz Maacuterio Laranjeira ldquo[] as palavras os sons
as formas e a sua organizaccedilatildeo enquanto tais assumem a dianteira na expressatildeo poeacutetica
trocando o seu estatuto subalterno de veiacuteculo do sentido mero suporte ndash liacutengua natildeo-
poeacutetica ndash pelo de princiacutepio ativo gerador de sentidos nunca suspeitados porque
desvinculados do mundo exterior como referente diretordquo (2003 52)
As repeticcedilotildees e as correspondecircncias de posiccedilotildees (caso das foacutermulas) das
palavras acentos pausas etc como afirma Jakobson satildeo avaliadas em termos de
equivalecircncia participando portanto da criaccedilatildeo de sentido a projeccedilatildeo paradigmaacutetica
pode-se dizer amplia o sentido denotativo gerando a ambiguidade que muitos
consideram tambeacutem proacutepria da poesia Para Michael Riffaterre citado por Laranjeira
ldquoa poesia exprime os conceitos de maneira obliacutequa Em suma um poema diz-nos uma
coisa e significa outrardquo (2003 48)
Tendo-se em conta que como se disse os sons e o modo como as formas se
organizam geram sentidos ldquodesvinculados do mundo exterior como referente diretordquo
pode-se pensar nas foacutermulas homeacutericas (dada sua funcionalidade sonora e formal) como
produtoras de sentido apontado ao acircmbito interno do poema (ou seja da linguagem)164
desvinculado do referente o que as torna ldquodescompromissadasrdquo com a ldquoverdaderdquo
(considerada em relaccedilatildeo ao referente) (Esta abordagem diga-se redimensiona a
questatildeo da funccedilatildeo apenas de ldquoembelezamentordquo165
que uma visatildeo simplificadora atribui
164 ldquoNa funccedilatildeo poeacutetica [da linguagem] a mensagem se volta sobre si mesma para o seu aspecto sensiacutevel
para a sua configuraccedilatildeordquo (Campos 1975 41) 165 Referecircncia a uma das maneiras pelas quais os alexandrinos explicavam o uso das
adjetivaccedilotildees formulares Note-se que tambeacutem Parry (e antes dele Duumlntzer) ao atribuir aos epiacutetetos um
esvaziamento de sentido consideram o significado apenas em termos do referente de certa forma
desvinculando a funcionalidade sonora e riacutetmica da geraccedilatildeo de sentido
152
agraves foacutermulas para explicar o fato de que seu sentido muitas vezes parece natildeo se ajustar
ao contexto especiacutefico em que eacute empregado)
Uma vez abordadas certas caracteriacutesticas baacutesicas da composiccedilatildeo oral e uma vez
observado que estas embora possam ser peculiares mantecircm um canal amplo de contato
com o que se concebe genericamente como poesia eacute possiacutevel antever que a eacutepica
permitiraacute tambeacutem uma ampla faixa de leituras e interpretaccedilotildees possiacuteveis em
conformidade com ideias particulares que se possam ter sobre poesia e sobre poesia
grega arcaica bem como sobre a forma adequada de traduzi-la a diversidade existente
entre as diferentes versotildees seraacute teoricamente justificaacutevel e neste sentido os resultados
poderatildeo ser considerados em princiacutepio (ainda que isto seja discutiacutevel) igualmente
ldquovaacutelidosrdquo166
Entre tais leituras portanto a consideraccedilatildeo dos procedimentos proacuteprios de
composiccedilatildeo oral como fundamento do meacutetodo de traduccedilatildeo da poesia arcaica seraacute no
plano teoacuterico apenas uma das opccedilotildees possiacuteveis Mas deixemos para mais adiante a
questatildeo da diversidade e dos fundamentos que norteiam cada uma das versotildees aqui
focalizadas
A2 Iliacuteada fragmentos
Sinopse do poema
Antes de apresentarmos os fragmentos escolhidos para discussatildeo inserindo-os
no contexto do canto e tecendo um breve comentaacuterio sobre seus elementos e
caracteriacutesticas eacute conveniente incluir-se uma sinopse do argumento da Iliacuteada (composta
de XXIV cantos) A accedilatildeo se passa em torno de 1200 aC na planiacutecie de Troacuteia na Aacutesia
Menor transcorre entre o final do nono e o iniacutecio do deacutecimo ano da Guerra de Troacuteia
Agamecircmnon liacuteder do exeacutercito grego toma a escrava de Aquiles Briseida desonrando-
o o heroacutei entatildeo afasta-se dos combates Apoacutes uma seacuteria derrota (no Canto VIII)
Agamecircmnon admite seu erro e envia mensageiros a Aquiles oferecendo-lhe por
166 Acerca da diversidade de caracteriacutesticas das diferentes traduccedilotildees lembre-se o jaacute discutido conceito desconstrucionista hoje indispensaacutevel relativamente agrave atividade tradutoacuteria de que cada tradutor chega a
resultados proacuteprios a partir de suas convicccedilotildees de ordem esteacutetica e de seu ponto de vista sobre o que seja
a tarefa do tradutor (embora isto no meu modo de ver natildeo impeccedila discussotildees comparativas no plano
esteacutetico de realizaccedilatildeo ainda que relativizadas) Revejam-se os comentaacuterios de Rosemary Arrojo e sob
outra perspectiva os de Joatildeo Angelo Oliva Neto
153
intermeacutedio deles muitos bens como reparaccedilatildeo por seu ato a fim de convencer o heroacutei a
retornar ao campo de batalha Aquiles natildeo atende ao pedido mas cede mais tarde agrave
suacuteplica de seu mais proacuteximo e querido amigo Paacutetroclo que desejava lutar no lugar de
Aquiles com as armas do heroacutei para livrar o acampamento grego da proximidade
ameaccediladora dos troianos Paacutetroclo eacute morto em combate pelo filho do rei Priacuteamo Heitor
que se apodera das armas de Aquiles Este tomado pela ideia de vingar a morte de
Paacutetroclo retorna agrave luta (com novas armas feitas pelo deus Hefesto a pedido da matildee do
heroacutei Teacutetis) matando Heitor e ultrajando seu cadaacutever Por intervenccedilatildeo dos deuses
Aquiles concede a Priacuteamo mediante pagamento de resgate que este leve o cadaacutever de
seu filho de volta a Troacuteia para seus funerais
Em linhas muito gerais eacute este o assunto da Iliacuteada
Canto I
Embora nos proponhamos a analisar neste toacutepico apenas dois versos do Canto
I faccedilamos antes um resumo de seu argumento
Crises sacerdote de Apolo suplica a Agamecircmnon que lhe devolva a filha
Criseida mas este o afronta e se nega a devolvecirc-la Apolo em resposta agrave invocaccedilatildeo de
Crises envia como castigo uma peste que se apodera do exeacutercito grego matando muitos
dos seus integrantes O adivinho Calcas revela em assembleia convocada por Aquiles
que a devoluccedilatildeo de Criseida eacute o uacutenico remeacutedio para o mal Agamecircmnon a devolve mas
toma Briseida cativa de Aquiles Aquiles revoltado abandona a luta a conselho de sua
matildee Teacutetis que lhe promete vinganccedila Teacutetis pede a Zeus vantagem aos troianos e o deus
promete atender a seu pedido ateacute Aquiles obter reparaccedilatildeo Hera esposa de Zeus
ameaccedila-o Hefesto filho de Teacutetis e Zeus restabelece a harmonia entre os deuses
Os dois versos escolhidos do iniacutecio do canto referem-se ao momento em o
sacerdote Crises manifesta temor apoacutes a fala ultrajante de Agamecircmnon e se vai pela
praia antes de orar a Apolo
Iliacuteada I vv 33-34
154
(Hos ephatacute edeisen dacuteho geacuteron kai epeiacuteteto myacutethoi
be dacuteakeacuteon paraacute thina polyphloiacutesboio thalaacutesses)
Traduccedilatildeo 1 Manuel Odorico Mendes (1799 ndash 1864)
Taciturno o anciatildeo treme e obedece
Busca as do mar fluctissonantes praias
(2003 27)167
Traduccedilatildeo 2 Carlos Alberto Nunes
Isso disse ele medroso o anciatildeo se curvou agraves ameaccedilas
e taciturno se foi pela praia do mar ressoante
(Sd 48)
Traduccedilatildeo 3 Haroldo de Campos
Findou a fala e o anciatildeo retrocedeu medroso
mudo ao longo do mar de poliacutessonas praias
(2002 33)
A3 Anaacutelise comparativa das traduccedilotildees uma primeira abordagem
Passemos entatildeo a uma anaacutelise um tanto detida das diferentes traduccedilotildees de tal
fragmento que embora restringindo-se a dois versos pode nos dar subsiacutedios para
consideraccedilotildees que por sua vez tambeacutem se aplicaratildeo agrave anaacutelise do fragmento do Canto
IX a ser estudado posteriormente Teratildeo lugar nesta anaacutelise inicial e nas posteriores
referecircncias teoacutericas acerca de cada um dos tradutores de modo a se construir
paulatinamente um conjunto significativo de informaccedilotildees acerca das diretrizes e dos
procedimentos que lhes satildeo proacuteprios
167Obs a numeraccedilatildeo dos versos de O Mendes natildeo corresponde agrave dos versos em grego
155
Observe-se relativamente agraves diversas traduccedilotildees que a proacutepria imposiccedilatildeo de
regularidade meacutetrica ndash um dos elementos que integram o conjunto de caracteriacutesticas de
teor esteacutetico do poema original considerado por todos os tradutores independentemente
de sua oacuteptica diferenciada a respeito do traduzir ndash seraacute evidentemente um fator
determinante para que nenhum dos textos em portuguecircs se oriente de modo imperativo
pela ldquoliteralidaderdquo168
(jaacute dificultada no caso em princiacutepio pela grande distacircncia
existente no plano morfossintaacutetico entre as liacutenguas envolvidas) Cada um desses
tradutores agrave sua maneira procura recriar os versos em conformidade com o padratildeo
formal adotado cuja regularidade busca corresponder agrave uniformidade meacutetrica do
original isto jaacute representa uma opccedilatildeo comum por natildeo priorizar radicalmente uma
suposta ldquofidelidade de sentidordquo centrada na ideia de uma ldquoliteralidade semacircnticardquo
embora esta ideia se revele em niacuteveis diversos de intencionalidade entre esses
tradutores
No caso de Carlos Alberto Nunes a escolha por versos de dezesseis siacutelabas
tenderia a favorecer de certa forma devido agrave sua extensatildeo se natildeo a ldquotraduccedilatildeo literalrdquo
possibilidades de correspondecircncia maior de sentido que poderia ser buscada por meio
de soluccedilotildees como a ldquotransposiccedilatildeordquo169
e a ldquomodulaccedilatildeordquo170
Observe-se ainda em relaccedilatildeo
a esse tradutor que a extensatildeo do verso natildeo se origina de um criteacuterio voltado ao aspecto
semacircntico mas sim obedece a uma transferecircncia matemaacutetica do hexacircmetro dactiacutelico
para o sistema silaacutebico-tocircnico de nossa liacutengua resultando portanto em seis segmentos
sendo cinco formados por uma siacutelaba tocircnica seguida de duas aacutetonas (correspondendo agraves
siacutelabas longas e breves do peacute grego) e um uacuteltimo por uma tocircnica seguida de uma aacutetona
(agrave semelhanccedila do uacuteltimo peacute do hexacircmetro) Podemos representar da seguinte maneira o
modelo meacutetrico adotado por Nunes utilizando-se os siacutembolos relativos a siacutelabas longas
e breves para representar as tocircnicas e aacutetonas
168 Entende-se aqui o termo ldquoliteralidaderdquo como relativo agrave ldquotraduccedilatildeo palavra-por-palavrardquo 169 A transposiccedilatildeo conforme a entende Francis Aubert acontece ldquo[] sempre que ocorrerem rearranjos
morfossintaacuteticosrdquo que podem envolver o desdobramento de uma palavra em duas ou a condensaccedilatildeo de
duas palavras numa soacute alteraccedilotildees na ordem das palavras (inversotildees e deslocamentos) A transposiccedilatildeo eacute
um dos desdobramentos da literalidade que segundo esse autor ldquomanifesta-se como um conjunto de
soluccedilotildees tradutoacuterias [] em que a passagem do texto original para o traduzido faz-se [] de forma direta valendo-se de soluccedilotildees configuradoras de uma certa sinoniacutemia interlinguiacutestica e interculturalrdquo AUBERT
Francis Henrik ldquoEm busca das refraccedilotildees na literatura brasileira traduzida ndash revendo a ferramenta de
anaacuteliserdquo In Literatura e sociedade no 9 Satildeo Paulo USP 2006 170 ldquoRegistra-se como modulaccedilatildeo a soluccedilatildeo tradutoacuteria que resulta em uma alteraccedilatildeo perceptiacutevel na
estrutura semacircntica de superfiacutecie embora retenha fundamentalmente o mesmo efeito geral de sentido
denotativo no contexto em questatildeordquo (AUBERT 2006)
156
ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU ndashUU ndashU
Sobre o hexacircmetro dactiacutelico e sobre sua opccedilatildeo meacutetrica ao traduzir a eacutepica
homeacuterica diz o proacuteprio Carlos A Nunes ldquo[] [a] medida exclusiva da epopeia grega o
hexacircmetro [] iria impor-se depois na literatura latina e em parte nas modernas
como o verso mais adequado para esse gecircnero de poesia (1962 38)rdquo Conforme o autor
explicita (revejam-se as citaccedilotildees do autor incluiacutedas na paacutegina 112 deste estudo) para ele
a caracteriacutestica riacutetmico-meacutetrica da eacutepica grega lhe eacute essencial e como tal deve ser
tomada como referecircncia para a traduccedilatildeo dos poemas gregos No entanto note-se que a
transposiccedilatildeo do hexacircmetro operada por Nunes pode corresponder ao metro grego em
medida mas natildeo poderaacute equivaler a este plenamente devido agrave proacutepria diferenccedila
fundamental entre as siacutelabas longas e breves por um lado e tocircnicas e aacutetonas por outro
A ldquomonotoniardquo a que o tradutor se refere como proacutepria do hexacircmetro aplica-se antes ao
verso correspondente em nossa liacutengua uma vez que as possibilidades de combinaccedilatildeo
entre as siacutelabas longas e breves satildeo muacuteltiplas no verso grego (devido agrave usual
substituiccedilatildeo de duas breves por uma longa) o que incluiacutea a diversidade no padratildeo fixo
aleacutem disso a proacutepria melopeia caracteriacutestica do verso grego (decorrente das elevaccedilotildees e
descensos determinados pela acentuaccedilatildeo) estabelecia uma dinacircmica que natildeo encontra
equivalecircncia no verso em portuguecircs
Observe-se a escansatildeo dos versos tomados para referecircncia marcando-se a
divisatildeo das siacutelabas com barra ( ) e as siacutelabas tocircnicas com sublinhas ( _ )
Is so dis se e le me dro so o an ci atildeo se cur vou agraves a mea ccedilas
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
e ta ci tur no se foi pe la prai a do mar res so nan te
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
Diz Nunes que ldquouma traduccedilatildeo deve apresentar-se como criaccedilatildeo nova quando
natildeo for apreciada como obra original eacute porque falhou na finalidade de nacionalizar o
157
modelordquo (s d 143) Tal afirmaccedilatildeo aproxima sua oacuteptica em relaccedilatildeo ao traduzir daquela
que concebe a traduccedilatildeo como recriaccedilatildeo (a ser apresentada quando abordar-se aqui a
traduccedilatildeo de Haroldo de Campos) e ao mesmo tempo define-a como uma visatildeo que
encara o trabalho tradutoacuterio como associado agrave ideia de ldquonacionalizaccedilatildeordquo o que
suponho equivaleria a dizer que se busca inserir uma obra estrangeira na cultura local
de modo a fazer com que pareccedila escrita na liacutengua de chegada (neste aspecto como
veremos distingue-se da visatildeo de H de Campos acerca de recriaccedilatildeo poeacutetica) Eacute nesse
sentido pode-se entender que Nunes fala de ldquoobra originalrdquo embora este conceito
tambeacutem possa estender-se a uma ideia que desobriga o texto traduzido de ldquofidelidaderdquo
semacircntica absoluta em relaccedilatildeo ao original e isto se confirma pela prioridade que ele
estabelece ao padratildeo meacutetrico que como se disse impotildee inevitaacuteveis distanciamentos da
ldquoliteralidaderdquo
O verso longo de Nunes se por um lado facilita o arranjo semacircntico para dar
conta de todos os elementos envolvidos pela narrativa por outro tende a aproximaacute-lo da
prosa No entanto natildeo impede a ocorrecircncia de momentos de densidade sonora que
aleacutem do mais podem contrapor-se agrave monotonia que se costuma atribuir a suas
traduccedilotildees eacute o caso do verso ldquoe taciturno se foi pela praia do mar ressoanterdquo cujas
aliteraccedilotildees em p e em t atribuem-lhe uma concentraccedilatildeo sonora desejaacutevel ao verso
(considerando-se a do original) ainda que ldquomar ressoanterdquo enfraqueccedila a sonoridade da
expressatildeo formular
Na traduccedilatildeo do preacute-romacircntico maranhense Manuel Odorico Mendes o emprego
de versos decassiacutelabos (considerado desde o classicismo ndash eacute o modelo usado por
Camotildees em Os lusiacuteadas uma espeacutecie de ldquoreescriturardquo da Eneida de Virgiacutelio tambeacutem
composta em hexacircmetros dactiacutelicos ndash um correspondente do verso heroacuteico capaz da
mesma dicccedilatildeo elevada) obriga a uma busca de siacutentese (e eacute como veremos tambeacutem
adotado por esta procura) que em princiacutepio pode levar a ldquoomissotildeesrdquo171
e que
ocasionou uma significativa diminuiccedilatildeo do nuacutemero de versos dos poemas eacutepicos por ele
traduzidos (no caso da Iliacuteada o nuacutemero de versos do original 804 desceu para 652) eacute
por isso a traduccedilatildeo que tende agrave menor ldquoliteralidaderdquo (correspondecircncia ldquopalavra-a-
palavrardquo ndash embora como se poderaacute ver nos fragmentos analisados costume manter toda
171 ldquoOcorre omissatildeo sempre que um dado segmento textual do texto fonte e a informaccedilatildeo nele contida natildeo
podem ser recuperados no texto metardquo (AUBERT 2006)
158
a ldquoinformaccedilatildeo essencialrdquo ndash e sendo marcada por uma niacutetida procura de recriaccedilatildeo
esteacutetica conforme os padrotildees vigentes em sua eacutepoca isto natildeo impediu ndash como observa
de um ponto de vista criacutetico Haroldo de Campos ndash que obtivesse soluccedilotildees poeticamente
referenciais (como eacute o caso da sequecircncia ldquofluctissonantes praiasrdquo presente nos versos
aqui abordados) e no conjunto conserve hoje o atrativo de um texto com qualidade
esteacutetica inegaacutevel sobrevivente na modernidade
Mostra-se a seguir a escansatildeo dos versos de Odorico apresentados um heroacuteico
(com tocircnica principal na sexta siacutelaba) e outro saacutefico (com tocircnicas principais da quarta e
oitava siacutelabas) que ilustram a variabilidade do decassiacutelabo por ele utilizado ao modo
camoniano
O primeiro deles permite trecircs formas de escansatildeo conforme se opte ou natildeo
pelas diferentes elisotildees172
possiacuteveis
(Primeira possibilidade)
Ta ci tur no o an ci atildeo tre me e o be de ce
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
(Segunda possibilidade com sineacuterese ndash passagem de hiato a ditongo ndash em
ldquociatildeordquo natildeo se elidindo o e e o o de ldquoobedecerdquo)
Ta ci tur no o an ciatildeo tre me e o be de ce
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
(Terceira possibilidade natildeo se elidindo o o e o an (de ldquoanciatildeordquo)
Ta ci tur no o an ciatildeo tre me e o be de ce
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
O outro verso pode ser assim escandido
172 Elisatildeo ldquomodificaccedilatildeo foneacutetica decorrente do desaparecimento da vogal final aacutetona diante da inicial
vocaacutelica da palavra seguinterdquo Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa 2001
159
Bus ca as do mar fluc tis so nan tes prai as
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Sobre Odorico diz tambeacutem Campos
Muita tinta tem corrido para depreciar o Odorico tradutor para reprovar-lhe o
preciosismo rebarbativo ou o mau gosto de seus compoacutesitos vocabulares173
[]
Odorico [] soube desenvolver um sistema de traduccedilatildeo coerente e consistente
onde os seus viacutecios (numerosos sem duacutevida) satildeo justamente os viacutecios de suas
qualidades quando natildeo de sua eacutepoca Seu projeto de traduccedilatildeo envolvia desde logo
a ideia de siacutentese [] seja para demonstrar que o portuguecircs era capaz de tanta ou
mais concisatildeo do que o grego e o latim seja para acomodar em decassiacutelabos
heroacuteicos brancos os hexacircmetros homeacutericos seja para evitar as repeticcedilotildees e a
monotonia que uma liacutengua declinaacutevel onde se pode jogar com as terminaccedilotildees
diversas dos casos emprestando sonoridades novas agraves mesmas palavras ofereceria
na sua transposiccedilatildeo de plano para um idioma natildeo-flexionado (1976 27)
O proacuteprio Odorico Mendes (citado por Campos) diz que ldquoSe vertecircssemos
servilmente as repeticcedilotildees de Homero deixaria a obra de ser apraziacutevel como a dele a
pior das infidelidadesrdquo (ib) Como se pode notar o que outro tradutor poderia
considerar como caracteriacutestica essencial da obra homeacuterica a ser preservada numa
traduccedilatildeo eacute vista por Odorico ndash e por Haroldo de Campos que mostra compartilhar da
mesma visatildeo quanto a este aspecto ndash como indesejada devido agrave natureza diversa das
liacutenguas envolvidas de novo o aspecto da diversidade incorporada ao padratildeo repetitivo
natildeo encontra correspondente em nossa liacutengua e esta constataccedilatildeo orienta Odorico (e
tambeacutem ainda que com diferenciaccedilatildeo Campos) no sentido de recriar a eacutepica de modo a
173 Campos refere-se agrave criacutetica negativa em relaccedilatildeo a Odorico que prevaleceu desde Silvio Romero Este
diz em sua Histoacuteria da literatura brasileira ldquoQuanto agraves traduccedilotildees de Virgiacutelio e Homero tentadas pelo
poeta a maior severidade seria pouca ainda para condenaacute-las Ali tudo eacute falso contrafeito extravagante
impossiacutevel Satildeo verdadeiras monstruosidadesrdquo (1949 35) O criacutetico qualifica de ldquoaacutesperas prosaicas
obscurasrdquo as traduccedilotildees do maranhense e chama de ldquopuerilrdquo sua ideia de ldquoprovar ser a liacutengua portuguesa
tatildeo concisa quanto o latim e o gregordquo aponta ainda outros defeitos da iniciativa do tradutor ldquoinventou
termosrdquo ldquolatinizou e grecificou termos o diabordquo ldquonum portuguecircs macarrocircnico abafou evaporou toda a poesia de Virgiacutelio e Homerordquo Deve-se ressaltar que diversos dos defeitos apontados por Romero seriam
mais tarde considerados como suas principais virtudes por H de Campos coerentemente a pressupostos
seus como a concepccedilatildeo na natureza sinteacutetica da poesia provinda de Ezra Pound ou a ideia de ampliar os
limites da liacutengua de chegada por meio de criaccedilotildees lexicais realizadas a partir de elementos da liacutengua do
original Apoacutes a ldquorecuperaccedilatildeordquo criacutetica de Odorico a que se empenhou H de Campos sua obra tradutoacuteria
tem sido objeto de muitos estudos e referecircncias inclusive no acircmbito acadecircmico
160
natildeo envolver o que seria uma monotonia inexistente no original (para ele uma
ldquoinfidelidaderdquo) Neste sentido sua visatildeo ndash e a de Campos ndash opotildeem-se agravequela de Carlos
A Nunes quanto ao simples transporte de um padratildeo no caso o meacutetrico
Quanto agrave traduccedilatildeo de H de Campos os versos dodecassiacutelabos se natildeo permitem
um ldquoespaccedilo de manobrardquo tatildeo amplo como o possibilitado pela medida adotada por
Nunes (para o exerciacutecio de soluccedilotildees dadas pela transposiccedilatildeo e pela modulaccedilatildeo)
tampouco determinam uma restriccedilatildeo tatildeo grande quanto aquela imposta pelos
decassiacutelabos (mencione-se contudo que Campos lanccedilaraacute matildeo muitas vezes ndash agrave
semelhanccedila de O Mendes ndash de um procedimento sinteacutetico de criaccedilatildeo de neologismos
formando palavras correspondentes a compoacutesitos gregos) Espera-se portanto um
menor nuacutemero de omissotildees em seus versos que embora privilegiem o aspecto esteacutetico
ndash decorrentes que satildeo de uma concepccedilatildeo transcriadora ndash tambeacutem procuraratildeo
corresponder agraves ldquorelaccedilotildees entre som e sentidordquo caracteriacutesticas da funccedilatildeo poeacutetica da
linguagem na concepccedilatildeo jakobsoniana a qual natildeo seraacute perdida de vista pelo tradutor
ainda que este natildeo busque a ldquoliteralidaderdquo da equivalecircncia
Ficam assim os versos de Campos escandidos
Fin dou a fa la e o an ciatildeo re tro ce deu me dro so
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
mu do ao lon go do mar de po liacutes so nas prai as
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Em seus versos (no caso ambos alexandrinos pela cesura na sexta siacutelaba)
Campos adota procedimentos regulares de elisatildeo e sineacuterese (caso de anciatildeo) que
permitem (principalmente a uacuteltima) um certo ganho quantitativo relativo ao nuacutemero de
siacutelabas (ou seja com a providecircncia das sinalefas174
amplia-se um pouco o espaccedilo dos
versos) Seraacute possiacutevel conferir os procedimentos em exemplos futuros
Acerca da visatildeo de Haroldo de Campos sobre traduccedilatildeo poeacutetica considere-se a
apresentaccedilatildeo de seu pensamento no segundo capiacutetulo deste trabalho
174 Sinalefa ldquofenocircmeno de transformaccedilatildeo de duas siacutelabas em uma por elisatildeo crase ou sineacutereserdquo
(Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa 2001)
161
Voltemos a considerar as caracteriacutesticas das traduccedilotildees apresentadas a partir de
uma ldquotraduccedilatildeo literalrdquo (ldquopalavra-por-palavrardquo) dos citados versos gregos que pode ser a
seguinte
Quanto ao primeiro verso observamos que o primeiro segmento hos
eacutephatrsquo(assim ndash ou dessa maneira ndash dizia) um elemento formular muitas vezes repetido
ao longo dos poemas homeacutericos ndash natildeo encontra correspondecircncia literal em nenhuma das
trecircs traduccedilotildees consideradas pode-se apontar a versatildeo de Nunes (ldquoIsso disse elerdquo) como
a menos distante da literalidade por se referir ao que foi expresso antes (ldquoissordquo) e
conservar o verbo ldquodizerrdquo provavelmente a substituiccedilatildeo de ldquoassimrdquo (adveacuterbio) por
ldquoissordquo (pronome) tenha decorrido da necessidade de se iniciar o verso sempre com uma
siacutelaba tocircnica e de fato essa eacute a forma empregada pelo tradutor como correspondente a
tal foacutermula No caso de Odorico o segmento eacute omitido e no de Campos transforma-se
em ldquofindou a falardquo soluccedilatildeo que sugere a intenccedilatildeo antes de se criar um efeito aliterante
do que corresponder agrave foacutermula sob um ponto de vista da literalidade de sentido ndash e que eacute
coerente com a perspectiva da recriaccedilatildeo que visa as relaccedilotildees esteacuteticas internas aos
versos na liacutengua de chegada podendo corresponder isomorficamente agrave densidade de
relaccedilotildees do original sem no entanto a obrigatoriedade do cumprimento de regras fixas
advindas deste (como as foacutermulas em seu aspecto fixo e repetitivo) uma vez que o
ldquocorpo isomoacuterficordquo tambeacutem se estruturaraacute a partir de caracteriacutesticas que lhe satildeo
intriacutensecas Em relaccedilatildeo ao restante do verso embora tambeacutem natildeo se encontre
correspondecircncia literal em nenhuma das traduccedilotildees novamente eacute a de Nunes (ldquomedroso
o anciatildeo se curvou agraves ameaccedilasrdquo) que conserva mais correspondecircncias de posiccedilotildees
relativas de seus elementos ldquoanciatildeordquo que no original aparece logo apoacutes o verbo ali
aparece apoacutes o adjetivo relativo a esse verbo ldquoagraves ameaccedilasrdquo aparece correspondendo a
(myacutethoi) (palavra discurso ordem) que estando no caso dativo envolve a
atribuiccedilatildeo representada em portuguecircs por ldquoagraverdquo e ldquose curvourdquo corresponde a
(epeyacutetheto) (imperfeito do indicativo voz meacutedia do verbo peitoacute persuadir
162
significando que o anciatildeo deixou-se persuadir pela ordem ou seja cedeu a ela usamos
ldquocedeurdquo na traduccedilatildeo referida como ldquoliteralrdquo o que pode ser considerado sinocircnimo)
Odorico inclui nesse verso um elemento que se encontra no verso seguinte
(recorrendo portanto a uma transposiccedilatildeo de palavra de um verso a outro) ldquotaciturnordquo
(relativo a (akeacuteon) calado mudo) e substitui metonimicamente o verbo
ldquotemeurdquo por ldquotremerdquo fazendo corresponder ldquoobedecerdquo ao sentido relativo a
(peitoacute) e omitindo seu complemento a ordem () (myacutethoi) H de Campos
utiliza como verbo do segmento ldquoretrocedeurdquo sugerindo com ele ao mesmo tempo a
desistecircncia o voltar atraacutes do anciatildeo (que alude portanto a seu cedimento) e o andar de
volta pela praia adota tambeacutem em lugar do verbo ldquotemerrdquo a mesma palavra
ldquomedrosordquo (usada por Nunes) encadeando-a com outro adjetivo que inicia o verso
seguinte ldquomudordquo o que permite natildeo soacute a associaccedilatildeo imediata de qualificativos
(concentrando e reforccedilando a imagem do estado do anciatildeo) como traccedilar uma sequecircncia
aliterante que envolveraacute tambeacutem a palavra ldquomarrdquo mais agrave frente
Sobre o segundo verso pode-se observar que a traduccedilatildeo de Carlos A Nunes
tambeacutem eacute a que mais se aproxima da literalidade apenas recorrendo agrave mudanccedila de
ordem (transposiccedilatildeo) ldquofoi-serdquo corresponde a aoristo do verbo (andar
caminhar ir-se) ldquotaciturnordquo refere-se a ldquordquo (mudo calado taciturno) ldquopela praia
do mar ressoanterdquo pode-se considerar que corresponde integralmente a
(paraacute thina polyphloiacutesboio thalaacutesses) tendo-
se optado por uma palavra corrente na liacutengua (ressoante) em lugar de um possiacutevel
neologismo correspondente a invertendo-se a ordem do adjetivo e do
substantivo A traduccedilatildeo de Odorico Mendes emprega ldquobuscardquo para referir-se a (o
que permite dizer que se manteacutem no campo semacircntico de correspondecircncias) e altera a
sintaxe do segmento seguinte atribuindo o adjetivo ldquofluctissonanterdquo (de inegaacutevel
qualidade esteacutetica tendo-se em conta o composto grego) agraves praias e natildeo ao mar como
ocorre no grego (no original e ambos no genitivo estatildeo
associados) a sequecircncia ldquoas do mar fluctissonantes praiasrdquo em vez da mais esperada
em portuguecircs (as praias fluctissonantes do mar) provavelmente se tenha definido pela
questatildeo do metro bem como por outras razotildees de ordem riacutetmico-esteacutetica Haroldo de
Campos recorre agrave mesma alteraccedilatildeo sintaacutetica realizada por Odorico atribuindo o adjetivo
(ldquopoliacutessonasrdquo) a ldquopraiasrdquo e natildeo a ldquomarrdquo o que sugere mais uma vez o seu desapego (e
tambeacutem de Odorico) em relaccedilatildeo agrave literalidade eacute evidente neste caso como jaacute se
163
apontou antes a opccedilatildeo pela escolha de palavras e sequecircncias que atendam ao propoacutesito
central de (re)criaccedilatildeo de um verso que ofereccedila paramorficamente uma densidade
sonora compatiacutevel com a melopeia grega (isso natildeo impede obviamente que natildeo ocorra
por vezes o uso de elementos de correspondecircncia direta como eacute o caso de ldquoao longo derdquo
em relaccedilatildeo a que ao mesmo tempo se conforma perfeitamente ao encadeamento
de sons nasais ocasionando o efeito particularmente bem-sucedido de sua associaccedilatildeo
com ldquopoliacutessonasrdquo (on ndash on) Devido aos objetivos do tradutor e agrave sua competecircncia
poeacutetica obteacutem-se um verso plenamente realizado em termos esteacuteticos que permitiraacute a
visatildeo de sua superioridade (relativa agraves demais versotildees apresentadas) quando a avaliaccedilatildeo
for pelo criteacuterio (ou pela percepccedilatildeo) da ldquorelaccedilatildeo entre som e sentidordquo e da proacutepria
construccedilatildeo sonora que encerra
Em relaccedilatildeo agrave natureza oral da composiccedilatildeo homeacuterica a traduccedilatildeo que mais se
afina com seus elementos formulares eacute a de Nunes pois como se viu a soluccedilatildeo por ele
empregada inclui neste fragmento a repeticcedilatildeo da foacutermula na mesma posiccedilatildeo eacute o caso
de ldquoIsso disse elerdquo no iniacutecio dos versos O tradutor contudo variaraacute a posiccedilatildeo de
foacutermulas ndash caso de como se veraacute no fragmento do Canto
IX ndash visando a adequaccedilatildeo aos paracircmetros de seu proacuteprio verso Os demais tradutores
conforme esperado natildeo consideram a necessidade de manter repeticcedilotildees formulares
proacuteprias da eacutepica (independentemente de sua visatildeo acerca da natureza ndash oral ou escrita ndash
da composiccedilatildeo) voltados que satildeo antes (como jaacute se disse) agraves qualidades intriacutensecas de
seus proacuteprios versos
Tratando-se da assunccedilatildeo de paracircmetros da proacutepria eacutepica e da consideraccedilatildeo de
sua oralidade eacute interessante acrescentar-se ao conjunto de traduccedilotildees ateacute agora estudadas
a publicada mais recentemente por Andreacute Malta (que se dedicou a traduzir os cantos I
IX XVI e XXIV da Iliacuteada)
Traduccedilatildeo 4 Andreacute Malta
Assim disse e o anciatildeo teve medo e obedeceu
Partiu mudo pela praia do murmurejante mar
(2006 310)
164
Note-se primeiramente nesta traduccedilatildeo o padratildeo meacutetrico adotado segundo o
tradutor o metro proposto
corresponde no Brasil junto com o decassiacutelabo de Odorico Mendes o hexacircmetro
de Carlos Alberto Nunes o verso livre de Jaa Torrano e o dodecassiacutelabo de
Haroldo de Campos a mais uma tentativa de encontrar em nossa liacutengua um
equivalente para o hexacircmetro grego tatildeo estranho agraves nossas medidas de poesia
escrita Trata-se de uma linha elaacutestica e maleaacutevel de 14 a 17 siacutelabas em cuja base
estatildeo duas redondilhas maiores metrificadas com matildeo leve muitas vezes
imprecisa sem a cesura de praxe A validade do recurso a esse metro baacutesico de
sete siacutelabas ndash sem tradiccedilatildeo heroacuteica entre noacutes ndash reside no fato de ser largamente
verificado na poesia popular e oral e dessa forma se aparentar de algum modo agrave
eacutepica grega ndash aleacutem de servir ao nosso propoacutesito de buscar o simples e andar nos
arredores da prosa (2006 6)
O ponto de vista do tradutor considera como se pode ver as diversas propostas
tradutoacuterias como diferentes tentativas de equivalecircncia ao hexacircmetro grego por ser esta
sua oacuteptica relaciona traduccedilotildees como as de Odorico e de Campos a uma
intencionalidade estranha ao propoacutesito que lhes eacute inerente (como vimos estes tradutores
natildeo propotildeem propriamente equivalecircncia meacutetrica mas sim a recriaccedilatildeo no metro que
sob seu proacuteprio ponto de vista permite a realizaccedilatildeo esteacutetica mais satisfatoacuteria do poema
eacutepico dentro dos paracircmetros da poesia em sua proacutepria liacutengua ao mesmo tempo que
anaacuteloga ao original sob um certo ponto de vista esteacutetico) (Eacute a perspectiva desta
relatividade ndash jaacute referida neste estudo ndash que se mostra indispensaacutevel quando se aborda a
produccedilatildeo de um tradutor jaacute que coexistem diferentes visotildees acerca do que deve ser
considerado e priorizado em traduccedilatildeo poeacutetica e no caso na traduccedilatildeo da poesia eacutepica
arcaica em particular)
A realizaccedilatildeo de Malta utiliza como base um metro popular em nossa liacutengua a
redondilha maior por ser este caracteriacutestico das produccedilotildees orais em portuguecircs
revelando assim que considera essencial para a traduccedilatildeo da obra homeacuterica a
equivalecircncia agrave sua natureza oral adota portanto como princiacutepio ndash agrave semelhanccedila de
Carlos Alberto Nunes ndash um valor de referecircncia externo agrave proacutepria necessidade do verso
eacutepico em liacutengua portuguesa se pensada intrinsecamente agrave sua elaboraccedilatildeo Usa no
entanto por necessidade ligada agrave dimensatildeo semacircntica do longo verso grego um duplo
165
da redondilha aproximando-se em extensatildeo do verso nunesiano mas eacute soacute neste
aspecto que se pode assemelhar seu trabalho ao de Nunes uma vez que a maleabilidade
do verso (referida pelo tradutor) ocasionada pela variaccedilatildeo meacutetrica decorrente da
existecircncia ou natildeo de elisatildeo entre um verso e outro traz um dinamismo que praticamente
inexiste na recriaccedilatildeo de Nunes (restringe-se nesta apenas agrave alternacircncia das cesuras)
Note-se ainda que coerentemente agrave busca de equivalecircncia aos padrotildees da
epopeia grega a traduccedilatildeo de Malta eacute a uacutenica a trazer ldquoliteralmenterdquo a foacutermula ldquoAssim
disserdquo que eacute sempre repetida ndash assim como outras expressotildees formulares ndash da mesma
forma nos versos em que aparece
Sobre os versos pode-se constatar devido agrave sua coloquialidade a coerecircncia
entre o resultado e o propoacutesito do ldquosimplesrdquo e de ldquoandar nos arredores da prosardquo
ldquoAssim disse e o anciatildeo teve medo e obedeceurdquo a natildeo ser pela inversatildeo do iniacutecio
aproxima-se de uma frase prosaica e mesmo oral pela repeticcedilatildeo sequencial dos verbos
e conjunccedilotildees o outro verso embora tambeacutem encerre uma inversatildeo mais marcante que
a anterior (as inversotildees parecem coexistir com o aspecto prosaico em funccedilatildeo de
imposiccedilatildeo meacutetrica) natildeo chega a perder o tom coloquial ditado por seu iniacutecio
apresentando uma sequecircncia aliterante que pode indicar a preocupaccedilatildeo do tradutor
tambeacutem com este aspecto ldquopartiu ndash praiardquo e ldquomudo ndash murmurejante ndash marrdquo tal
encadeamento ainda que se possa questionar sua adequaccedilatildeo no plano da relaccedilatildeo entre
som e sentido ao teor do verso (pela cadeia mu ndash mu ndash mu) constroacutei uma frase dotada
de densidade sonora
Canto IX
Siacutentese do argumento
Os gregos obrigados no Canto VIII a recuar a suas fortificaccedilotildees pelos troianos
estatildeo com o acircnimo dilacerado Setecentos homens posicionam-se entre a muralha e o
fosso para proteger o exeacutercito Nestor propotildee que se tente amainar a ira de Aquiles
com o objetivo de trazecirc-lo de volta agrave luta Agamecircmnon concorda dispondo-se a
devolver Briseida ao heroacutei aleacutem de lhe dar muitas e valiosas daacutedivas como reparaccedilatildeo
Nestor designa Fecircnix Aacutejax e Odisseu para irem ateacute Aquiles e realizarem a suacuteplica Os
visitantes encontram Aquiles e Paacutetroclo com a lira nas matildeos Aquiles canta Bem
166
recebidos pelo heroacutei Odisseu Fecircnix e Aacutejax discursam sempre seguidos de resposta de
Aquiles que natildeo aceita a retrataccedilatildeo recusando-se a lutar contra Heitor Odisseu e Aacutejax
retornam agrave tenda de Agamecircmnon e comunicam que Aquiles natildeo soacute natildeo lutaraacute como
ameaccedila voltar a Ftia sua terra natal Diomedes diz que natildeo deveriam ter suplicado a
Aquiles pois isto o tornou ainda mais insolente e incita os chefes agrave luta no dia seguinte
Veja-se a seguir o fragmento escolhido no original e nas quatro traduccedilotildees
(inclui-se agora entre elas a de Andreacute Malta)
IX 162-198
167
Traduccedilatildeo 1 Manuel Odorico Mendes (1799 ndash 1864)
(A numeraccedilatildeo dos versos de O Mendes natildeo corresponde agrave dos versos em grego)
130 Inda o Gereacutenio Soberano egreacutegio
Dons natildeo despiciendos lhe destinas
Legados sus ao pavilhatildeo de Aquiles
Aqui mesmo os nomeio e natildeo recusem
135 Feacutenix guie de Juacutepiter privado
O magno Ajax o sapiente Ulisses
E arautos Hoacutedio e Euribates com eles
Aacuteguas agraves matildeos freio agraves liacutenguas deprequemos
De noacutes se comisere o deus supremo
140 O aviltre aceitam linfa arautos vertem
E de urnas coroadas vertem servos
Dos auspicantes pelos copos vinho
Fartos de libaccedilotildees iam saindo
168
Nestor a cada um lanccedilando os olhos
145 E ao Laeacuterticles mais no empenho os firma
De abrandar o magnacircnimo Pelides
Pelas do mar fluctissonantes praias
Ao padre Enosigeu vatildeo suplicando
Que as entranhas do Eaacutecida comova
150 Jaacute no arraial dos Mirmidotildees o encontram
A recrear-se na artefacta lira
Que travessa une argecircntea insigne presa
Dos raros muros dEtion faccedilanhas
De valentes cantava e soacute Patroclo
155 Taacutecito agrave espera estaacute que finde o canto
Chegam-se agrave testa Ulisses e o Pelejo
Em peacute na sestra a lira estupefato
Com seu fido consoacutecio as destras cerra
Que urge a que vindes Bem que irado amigos
160 Exulto ao ver os Dacircnaos que mais prezo
(2003 216-217)
Traduccedilatildeo 2 Carlos Alberto Nunes (1897 ndash 1990)
Disse-lhe tudo o Gerecircnio Nestor condutor de cavalos
Filho glorioso de Atreu Agameacutemnone rei poderoso
o que ofereces a Aquiles de fato natildeo eacute despiciendo
Ora sem perda de tempo emissaacuterios a jeito escolhamos
para os enviar com recados agrave tenda de Aquiles Peleio
Deixa que eu proacuteprio os nomeie ningueacutem objeccedilotildees anteponha
A direccedilatildeo tome o heroacutei predileto dos deuses Fenice
o grande Ajaz depois venha e Odisseu o divino guerreiro
Sigam tambeacutem como arautos Odio e o impecaacutevel Euriacutebates
As matildeos lavemos observe-se em tudo completo silecircncio
quando imploramos a Zeus que haacute de ter de noacutes todos piedaderdquo
Foi o discurso do velho Nestor agradaacutevel a todos
Fazem vir aacutegua e os arautos por cima das matildeos a despejam
Teacute pelas bordas escravos as taccedilas encheram de vinho
distribuindo por todos os copos as sacras primiacutecias
169
Logo que todos haviam comido e bebido agrave vontade
os emissaacuterios deixaram a tenda do Atrida Agameacutemnone
Observaccedilotildees a ecircles todos o velho Nestor faz ainda
acompanhadas de olhar expressivo a Odisseu com mais ecircnfase
socircbre a maneira melhor de suadir o divino Pelida
Ambos entatildeo pela praia do mar ressoante se foram
preces alccedilando a Posido que os muros da terra sacode
para que focircsse possiacutevel dobrar o Pelida altanado
Quando chegaram agraves tendas e naves dos fortes Mirmiacutedones
aiacute enlevado o encontraram tangendo uma lira sonora
de cavalete de prata tocircda ela de bela feitura
que ecircle do espoacutelio do burgo de Eeciatildeo para si separara
O coraccedilatildeo deleitava faccedilanhas de heroacuteis decantando
Em frente decircle sogravemente calado encontrava-se Paacutetroclo
Pacientemente a esperar que o Pelida concluiacutesse o seu canto
Ambos entatildeo avanccedilaram servia Odisseu como guia
Param defronte do heroacutei Espantado de vecirc-los Aquiles
sem que o instrumento soltasse a cadeira de um salto abandona
O mesmo Paacutetroclo fecircz ao notar a presenccedila de estranhos
A ambos Aquiles veloz cumprimenta dizendo o seguinte
Salve Bem grave eacute sem duacutevida a causa de aqui terdes vindo
Ainda que muito agastado sois ambos os que eu mais distingo
(S d 208)
Traduccedilatildeo 3 Haroldo de Campos
Neacutestor entatildeo ginete exiacutemio redarguiu
Glorioso Atreide rei-dos-homens Agamecircmnon
natildeo despreziacuteveis dons ofereces a Aquiles
Mas raacutepido emissaacuterios de escol para a tenda 165
do filho de Peleu se dirijam Avante
Aqueles para os quais acene me obedeccedilam
Fecircnix seja o primeiro em comando cariacutessimo
a Zeus Entatildeo o grande Aacutejax Odisseu divo
e os arautos Odio e Euriacutebates os dois 170
Que se lavem as matildeos em silecircncio augurai
170
Roguemos a Zeus Pai piedade para os Gregos
Falou Palavras gratas aos ouvintes todos
Os arautos de pronto versam aacutegua agraves matildeos
e os mais jovens coroaram de vinho as crateras 175
ateacute as bordas e a todos encheram as copas
Feitas as libaccedilotildees aos deuses todos bebem
de coraccedilatildeo agrave larga e da tenda do Atreide
Agamecircmnon se vatildeo Neacutestor Gerenio exiacutemio
ginete faz apelos de olhar a eles todos 180
sobretudo a Odisseu encarece persuada
Aquiles o Peleide imaacuteculo Entatildeo eles
pelas praias do mar polissonoras marcham
muitas preces erguendo ao deus circum-terrestre
a Posecircidon Tremor-de-terra que movesse 185
o coraccedilatildeo de Aquiles Junto agraves naus e tendas
dos Mirmidotildees o encontram Tangia uma lira
mdash cordas presas em trave de prata mdash artefato
dedaacuteleo que o enlevava do espoacutelio de Eeciatildeo
e a cujos sons cantava gestas de heroacuteis Paacutetroclo 190
soacute silencioso senta-lhe defronte e espera
que ele termine o canto Odisseu guiando os nuacutenciacuteos
chegam agrave frente dele e param O Peleide
sustendo a lira salta abismado do soacutelio
onde sentava Paacutetroclo ao vecirc-los levanta-se 195
Aquiles peacutes-velozes daacute-lhes as boas-vindas
Salve Eis aqui guerreiros amigos Algum
motivo urgente grave eacute que vos traz a mim
Ainda que irado sois-me entre os Gregos cariacutessimos
(2002 339)
Traduccedilatildeo 4 Andreacute Malta
E respondeu-lhe em seguida Nestor velho cavaleiro
Atrida assinaladiacutessimo senhor de homens Agamecircnon
daacutedivas natildeo indevidas daacutes ao soberano Aquiles
Mas vamos seletos homens incitemos que depressa 165
171
se dirijam agrave cabana dele do Pelida Aquiles
anda aqueles em quem eu puser os olhos acatem
que primeiramente Fecircnix querido a Zeus vaacute na frente
e entatildeo em seguida Max grande e o divino Odisseu
dentre os arautos que Odio e Euriacutebato os acompanhem 170
Trazei aacutegua para as matildeos e solicitai silecircncio
para que oremos a Zeus Cronida a ver se tem pena
Disse assim e proferiu fala grata a todos eles
Os arautos de imediato vertem aacutegua sobre as matildeos
os jovens enchem entatildeo as crateras de bebida 175
e as distribuem a todos mdash libando antes com os caacutelices
Apoacutes libar e beber quanto o acircnimo queria
se apressaram da cabana dele do Atrida Agamecircnon
E a eles muito ordenou Nestor velho cavaleiro
(olhando pra cada uni) sobretudo a Odisseu 180
que tentassem convencer ao ilibado Pelida
E partiram pela praia do murmurejante mar
ambos clamando muitiacutessimo ao Terra-tem Treme-terra
por convencer facilmente o grande acircnimo do Eaacutecida
E chegaram logo agraves naus e agraves cabanas dos mirmiacutedones 185
o encontraram deliciando o acircnimo com lira liacutempida
bela trabalhada (em cima tinha presilha de prata)
que apanhara dos despojos destruiacuteda a polis de Eeacutecion
Com ela se deliciava cantando as gloacuterias dos homens
Sozinho com ele Paacutetroclo sentava em frente em silecircncio 190
aguardando quando o Eaacutecida terminasse de cantar
Os dois avanccedilam mdash agrave frente vai o divino Odisseu mdash
e param diante dele atocircnito Aquiles se ergue
a lira ainda nas matildeos deixando o assento em que estava
Paacutetroclo do mesmo modo ao ver os heroacuteis levanta-se 195
E saudando os dois lhes disse o peacutes-raacutepidos Aquiles
Salve Entrai sim como amigos (sim eacute grande a precisatildeo)
voacutes que a mim sois mdash mesmo irado mdash os mais caros dos acaiosrdquo
(2006 334)
172
Comentaacuterios sobre o fragmento
Passemos ao largo de algumas questotildees importantes relativas ao episoacutedio para
nos atermos agravequelas ligadas a esse breve fragmento (e particularmente como as vecircem
alguns dos tradutores escolhidos) antes de procedermos agrave anaacutelise das traduccedilotildees
Um aspecto do fragmento a se ressaltar jaacute muito discutido por estudiosos da
obra homeacuterica eacute a questatildeo do uso repetido de verbos na forma dual (proacutepria para a
dupla) a partir do verso 182 uma vez que foram trecircs os enviados agrave tenda de Aquiles
(Fecircnix Aacutejax e Odisseu) Sobre este tema (compartilhando em sua explicaccedilatildeo da visatildeo
de Denys Page manifestada no apecircndice agrave sua obra History and the homeric Iliad
1959) diz Carlos Alberto Nunes
O que importa eacute chegarmos ao verso 182 no ponto em que se diz que como os
componentes da embaixada se puseram a caminho depois de ouvidas as uacuteltimas
recomendaccedilotildees de Nestor ldquoAmbosrdquo entatildeo pela praia do mar ressoante se foram
Como se eram trecircs os embaixadores Dez linhas adiante encontramos novamente
o dual quando os emissaacuterios chegam agrave tenda de Aquiles e tambeacutem na saudaccedilatildeo
com que este os recebe num misto de surpresa e alegria ainda que muito agastado
ldquosois ambosrdquo os que eu mais distingo
Os partidaacuterios da unidade a todo custo dos poemas de Homero recorrem a
subterfuacutegios para explicar a irregularidade mas o fato eacute que o Canto IX da Iliacuteada
tal como nos foi transmitido deixa perceber as suturas por que passou o episoacutedio
da embaixada ao ser incorporado na trama do poema [] No primitivo traccedilado os
embaixadores eram apenas dois Ajaz e Odisseu [] Aleacutem do mais as falas dos
dois primeiros se diferenciam estilisticamente da de Fenice []
Mas natildeo eacute tudo dizer-se que o canto da embaixada sofreu retoques todo ele soacute mui
tardiamente foi incorporado agrave Iliacuteada
Ao abordar esta questatildeo Andreacute Malta considerando outras hipoacuteteses relativas a
ela175
observa que ldquoFecircnix natildeo segue com eles [Aacutejax e Odisseu] pois fora na frente o
que explica a repetida conjugaccedilatildeo dos verbos no dual a partir desse pontordquo
esclarecendo que ldquodevemos [] simplesmente entender que no texto (v 168
hegesaacutestho) estaacute indicado que Fecircnix foi na frente (e natildeo agrave frente) e natildeo avisou Aquiles
175O referido autor menciona a ediccedilatildeo de Jasper Griffin do Canto IX ndash Homer Iliad IX Oxford 1995 e a
obra de Pierre Chantraine Grammaire homeacuterique Paris 19481953
173
da vinda dos companheirosrdquo (2006 295) Para o autor assim a duacutevida se resolve
mediante a atribuiccedilatildeo do significado de ldquoir na frenterdquo equivalente a ldquoir antesrdquoagrave forma
verbal (hegesaacutestho) (imperativo aoristo voz meacutedia do verbo
egeacuteomai)) sentido considerado em sua traduccedilatildeo Escapa ao foco de interesse
deste estudo a discussatildeo acerca de tal hipoacutetese sendo-nos pertinente apenas consideraacute-
la como uma interpretaccedilatildeo determinante176
no caso de um aspecto da soluccedilatildeo
tradutoacuteria comparando-a com aquelas dadas pelos demais tradutores relativamente a
esta questatildeo (o que seraacute feito adiante)
Outro aspecto a ser apontado eacute o uso da mesma expressatildeo formular encontrada
no verso 34 do Canto I (paragrave thicircna
polyphloiacutesboio thalaacutesses) tal emprego possibilitaraacute tambeacutem a observaccedilatildeo comparativa
do procedimento adotado pelos tradutores em relaccedilatildeo agraves foacutermulas homeacutericas
Encontra-se neste fragmento a significativa passagem de Aquiles cantando ao
som de sua lira177
cena cuja descriccedilatildeo permitiraacute especialmente observar
procedimentos dos tradutores escolhidos Mas eacute a diversidade relativa aos dois versos
finais do fragmento que nos traraacute uma possibilidade clara de anaacutelise das soluccedilotildees
tradutoacuterias agrave luz da interpretaccedilatildeo em termos semacircnticos norteadora de cada uma dessas
soluccedilotildees inserida na oacuteptica ldquogeralrdquo de cada tradutor Sobre esses versos comenta Malta
acerca do uso da palavra (khreoacute) ldquoprecisatildeordquo (na afirmaccedilatildeo (eacute
ti mala khreoacute) traduzida por ele como ldquosim eacute grande a precisatildeordquo) que tal substantivo
176 Diga-se apenas que a possibilidade de tal interpretaccedilatildeo pode se dar a partir da definiccedilatildeo do verbo
encontrada em Lidell amp Scott ldquoto go before lead the wayrdquo ainda que ldquobeforerdquo tambeacutem possa
ter o sentido de ldquoagrave frente na dianteirardquo ou ldquona vanguardardquo encerra o significado de ldquoantesrdquo (Houaiss
1982) ldquolead awayrdquo (ldquolevar (conduzindo)rdquo id) eacute o outro sentido possivelmente atribuiacutedo agrave mesma
expressatildeo tomado por Page e outros 177 Dada sua relevacircncia inclua-se um comentaacuterio acerca de seus possiacuteveis sentidos a partir das
observaccedilotildees de Malta (2006) Este autor parte da colocaccedilatildeo de Bryan Hainsworth ndash segundo a qual a
motivaccedilatildeo para o canto de Aquiles seria ldquorealizar pela palavrardquo o que natildeo podia ldquorealizar em atosrdquo uma
vez que desonrado havia se afastado da luta ndash para estender a motivaccedilatildeo a um apego do heroacutei ao
ldquomecanismo de ordenaccedilatildeo e significaccedilatildeo do mundo que satildeo as palavras das Musas mecanismo
oportunamente reclamado diante de sua posiccedilatildeo de heroacutei desonradordquo tal canto consistiria num ldquocanto
pronunciado por um heroacutei que busca exatamente na glorificaccedilatildeo de feitos humanos uma sustentaccedilatildeo para
sirdquo reafirmando assim o proacuteprio ldquovalor do canto da Iliacuteada por que apontaria para o fato de que na iminecircncia da des-significaccedilatildeo eacute o canto divino que traz orientaccedilotildees (claras ou obscuras) para a vida
humanardquo Para Malta (cuja obra aqui referida tem por tema central a (aacutete) ndash definida por ele como
ldquoperdiccedilatildeordquo ndash na Iliacuteada) esse ato de Aquiles encerra um paradoxo ldquo[] a entoaccedilatildeo de um eacutepico por parte
de Aquiles aleacutem de se identificar com a afirmaccedilatildeo de seu eacutepico e de seu significado identifica-se
tambeacutem contrariamente com a negaccedilatildeo de seu eacutepico ou com a afirmaccedilatildeo de sua falta (para ele Aquiles)
de sentido por lhe surgir como grande farsa e soacute pode lhe surgir de tal modo porque o heroacutei no
momento passa a ser incapaz de perceber o alcance de seus atosrdquo (2006 150-153)
174
ldquonos remete a seu emprego pelo mesmo Aquiles no Canto I quando entatildeo afirmou aos
arautos de Agamecircnon que um dia haveria ldquoprecisatildeordquo (v 341) de que ele afastasse a
ruiacutena ultrajante dos acaios A precisatildeo de agora seria portanto a precisatildeo jaacute prevista
pelo Pelida atraacutesrdquo a presenccedila dos heroacuteis que lhe foram enviados permitiria a ele
ldquoafirmar com indisfarccedilaacutevel satisfaccedilatildeo que era chegado o momento de os acaios
reconhecerem seu valorrdquo Segundo Malta o mesmo verso no entanto tambeacutem pode
referir-se agrave ldquoprecisatildeo que o proacuteprio Aquiles tinha dos amigosrdquo ldquotanto os acaios
precisam vir a ele e lhe suplicar porque dele precisam quanto ele precisa que os acaios
a ele venham e lhe supliquem porque a suacuteplica eacute uma oportunidade de reconhecimento
do seu valorrdquo (2006 143-155) (Cabe relembrar aqui que a poesia considerada
genericamente do ponto de vista da linguagem e independentemente das
especificidades de determinada poeacutetica tem na ambiguidade uma de suas
caracteriacutesticas por este acircngulo a soluccedilatildeo da duacutevida sobre a quem se refere a palavra
ldquoprecisatildeordquo natildeo soacute natildeo eacute obrigatoacuteria como eacute indesejada pela possibilidade de ampliaccedilatildeo
de sentido que a ambiguidade proporciona (como se vecirc pela citaccedilatildeo acima))
Feitas tais consideraccedilotildees realizemos a seguir uma breve anaacutelise das traduccedilotildees
do fragmento localizada em alguns de seus pontos e caracteriacutesticas
De maneira geral a traduccedilatildeo menos voltada agrave literalidade eacute a de Manuel Odorico
Mendes No caso deste trecho seu compromisso com a siacutentese eacute particularmente
visiacutevel e se torna mesmo um caso notaacutevel de realizaccedilatildeo nesse plano usando de
transposiccedilotildees e modulaccedilotildees (notadamente inversotildees caracteriacutestica de sua dicccedilatildeo) e
evidentemente de omissotildees ndash sem contudo suprimir o que parece ldquoessencialrdquo ao
sentido e nem mesmo o detalhe em prata da lira ndash obteacutem uma descriccedilatildeo breve
dinacircmica e concentrada para a cena de Aquiles tocando seu instrumento ldquo[] o
encontram A recrear-se na artefacta lira que travessa une argecircntea insigne presa
Dos raros muros drsquoEtion faccedilanhas De valentes cantava e soacute Paacutetroclo Taacutecito agrave espera
estaacute que finde o cantordquo Note-se na passagem a alta concentraccedilatildeo tambeacutem sonora
urdida principalmente de aliteraccedilotildees que aceleram o ritmo dos versos agrave densidade do
sentido soma-se a densidade focircnica compondo uma relaccedilatildeo peculiar entre ambos que
introduz um clima contraditoriamente vibrante e tenso a uma situaccedilatildeo anunciada como
deleitosa mas ao mesmo tempo coerente com a intensidade de um canto feito de fatos
heroacuteicos a tensatildeo pode tambeacutem prenunciar a chegada abrupta dos mensageiros numa
sequecircncia igualmente admiraacutevel pela concisatildeo ldquoChegam-se agrave testa Ulisses e o Peleio
175
Em peacute na sestra a lira estupefacto com seu fido consoacutecio as destras cerra ldquoQue
urge a que vindes Bem que irado amigos Exulto ao ver os Dacircnaos que mais prezordquo
As aliteraccedilotildees (principalmente em t p e c aleacutem da trilha de fricativas) associadas agraves
assonacircncias e panonomaacutesias (como entre testa e sestra) perpassam tambeacutem esses
versos engendrando nesse niacutevel a continuidade das cenas e conservando sua tensatildeo
esta de certo modo culmina com o cerramento da matildeo direita (inexistente no original
um acreacutescimo portanto) e este por sua vez liga-se agrave ira pelo heroacutei referida subjacente
agrave alegria que manifesta pela chegada dos amigos natildeo me parece absurda a leitura de
que pela associaccedilatildeo som-sentido esta traduccedilatildeo arma (independentemente da
intencionalidade de seu autor) um quadro de conflito adequado ao momento paradoxal
vivido por Aquiles e agrave ldquocegueirardquo (ou ldquoperdiccedilatildeordquo) ndash (aacutete) ndash em relaccedilatildeo agraves
consequecircncias de seus atos (Sobre o original ainda que natildeo se possa afirmar que haja
neste trecho uma especial concentraccedilatildeo de aliteraccedilotildees elas estatildeo presentes de forma
clara e ateacute onde me eacute dado perceber a tensatildeo sonora estaacute presente na passagem ainda
que de forma inerentemente menos compacta que a dos decassiacutelabos de Odorico)
Tensatildeo sonora semelhante se pode perceber nos versos de Haroldo de Campos
densos envolvendo tambeacutem sequecircncias aliterantes que aceleram seu ritmo como em
ldquo[] Tangia uma lira ndash cordas presas em trave de prata ndash artefactordquo ou ldquosustendo a lira
salta abismado do soacutelio onde sentavardquo A siacutentese eacute igualmente caracteriacutestica desta
versatildeo coerentemente aos pressupostos que a orientam Quanto a este aspecto as
demais traduccedilotildees tambeacutem de modo coerente aos pressupostos de seu meacutetodo satildeo mais
analiacuteticas tendendo agrave literalidade Embora a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes possa
ser como jaacute se viu em relaccedilatildeo ao fragmento do Canto I considerada proacutexima da
literalidade eacute na traduccedilatildeo de Andreacute Malta que esta mais se realiza como no
versokalecirc daidaleacutee epigrave drsquoargyrion
zygoacuten een) traduzido como ldquobela trabalhada (em cima tinha presilha de prata)rdquo em que
apenas com o recurso da transposiccedilatildeo e do acreacutescimo de uma pontuaccedilatildeo conservam-se
todas as palavras do original (ainda que com alguma modulaccedilatildeo)
Como jaacute se disse a medida dos versos usados por Malta e por Nunes tende a
favorecer a literalidade mas o primeiro parece ater-se mais a este propoacutesito associado agrave
priorizaccedilatildeo do sentido baseando-se para tanto principalmente em sua leitura
interpretativa do original fundamentada por sua vez em questotildees apontadas por
especialistas na obra homeacuterica este ponto de vista (que inclui a preocupaccedilatildeo com a
176
natureza oral da eacutepica e seu aspecto ldquopopularrdquo) eacute determinante de seu meacutetodo e do
consequente resultado distinguindo-a claramente das demais quanto ao modo de
abordagem de duacutevidas em relaccedilatildeo ao significado do original e suas ambiguidades
Vejamos este aspecto ao tratar de pontos levantados anteriormente sobre o fragmento
No caso das foacutermulas evidencia-se mais uma vez a preocupaccedilatildeo de Malta em
mantecirc-las inalteradas a cada ocorrecircncia o que natildeo sucede sempre nas demais traduccedilotildees
Campos conserva a forma de epiacutetetos (no caso ldquoAquiles peacutes-velozesrdquo ndash
correspondente a (poacutedas okys Akhilleuacutes) como estaacute no verso
196 constante do fragmento aparece por exemplo no verso 48 do Canto XVI pode
surgir no entanto em posiccedilotildees diversas e mesmo independentemente de figurar no
original como no caso do verso 166 do mesmo canto) mas natildeo de outras expressotildees
formulares como se pode constatar na foacutermula relativa ao mar se nos versos do Canto I
aparecia para (paragrave thicircna polyphloiacutesboio
thalaacutesses) ao longo do mar de poliacutessonas praias no verso 183 do Canto XIX aparece
ldquopelas praias do mar polissonorasrdquo (mesmo que se considere como foacutermula apenas a
expressatildeo (polyphloiacutesboio thalaacutesses) haacute portanto
mudanccedila) Opccedilotildees como esta que evidenciam a natildeo-obrigatoriedade da perspectiva
deste tradutor de correspondecircncia com o aspecto imutaacutevel da foacutermula tambeacutem podem
indicar o compartilhamento da visatildeo de Odorico Mendes de ldquoevitar as repeticcedilotildees e a
monotoniardquo (agrave qual estaria mais sujeita uma liacutengua natildeo-flexionaacutevel) A mesma foacutermula
tambeacutem eacute modificada por Odorico neste fragmento conservando-se no entanto em sua
principal parte em vez de ldquoBusca as do mar fluctissonantes praiasrdquo presente no Canto
I encontra-se agora ldquopelas do mar fluctissonantes praiasrdquo (fica mantida assim a
sonoridade apontada anteriormente acrescida de uma aliteraccedilatildeo entre ldquopelasrdquo e
ldquopraiasrdquo) na versatildeo de Nunes a foacutermula ldquopela praia do mar ressoanterdquo se conserva
variando apenas sua colocaccedilatildeo na frase (a mesma expressatildeo eacute usada por ele contudo
para a construccedilatildeo (regmini thalaacutesses) no verso 67 do Canto XVI o
que revela o desapego agrave repeticcedilatildeo exata do sintagma original indicando um criteacuterio de
escolha e coerecircncia interno agrave traduccedilatildeo) Quanto ao epiacuteteto atribuiacutedo a Aquiles ele
sequer aparece na traduccedilatildeo de Odorico em Nunes surge a forma ldquoAquiles velozrdquo no
verso 196 do Canto IX enquanto no verso 48 do Canto XVI estaacute ldquoAquiles de peacutes muito
raacutepidosrdquo evidenciando a flexibilidade com que satildeo trabalhados os epiacutetetos pelo
177
tradutor No caso de Malta coerentemente a suas diretrizes conserva-se a forma e a
posiccedilatildeo da foacutermula ldquoo peacutes-raacutepidos Aquilesrdquo nos versos em que ela acontece nos
fragmentos que traduziu
A respeito do uso da forma dual nos versos gregos vinculado aos embaixadores
de Agamecircmnon a soluccedilatildeo apontada por Malta (relativa ao entendimento de
(hegesaacutestho) como ldquona frenterdquo) eacute exclusiva de sua traduccedilatildeo que conteacutem a
sequecircncia ldquoque primeiramente Fecircnix querido a Zeus vaacute na frenterdquo ldquoE partiram []
ambos clamando []rdquo ldquoOs dois avanccedilam ndash agrave frente vai o divino Odisseu ndashldquo ldquoE
saudando os dois lhes disse o peacutes-raacutepidos Aquilesrdquo Nunes manteacutem a contradiccedilatildeo gerada
pela compreensatildeo da referida palavra como ldquoagrave frenterdquo ldquona dianteirardquo ldquono comandordquo
utilizando ldquoambosrdquo para corresponder ao dual quando este surge ldquoA direccedilatildeo tome o
heroacutei predileto dos deuses Fenicerdquo ldquoAmbos entatildeo pela praia [] ldquoAmbos entatildeo
avanccedilaram servia Odisseu como guiardquo A ambos Aquiles veloz cumprimentardquo
Odorico passa ao largo do conflito desconsiderando a existecircncia do dual ldquoFecircnix guie
de Juacutepiter privadordquo ldquovatildeo suplicandordquo Chegam-se agrave testa Ulisses [] ldquoE o peleio []
com seu fido consoacuteciordquo Campos agrave semelhanccedila de Odorico elimina a contradiccedilatildeo ao
natildeo levar em conta a forma dual ldquo[] Entatildeo eles pelas praias do mar []rdquo []
Odisseu guiando os nuacutencios chegam agrave frente dele e paramrdquo Aquiles peacutes-velozes daacute-
lhes as boas vindasrdquo
Eacute de se supor no caso da soluccedilatildeo adotada por Nunes que sua intenccedilatildeo eacute manter
o que para ele representa uma evidecircncia da agregaccedilatildeo posterior de elementos a um texto
mais antigo no caso daquelas adotadas por Odorico e Campos a questatildeo pode-se
tambeacutem supor passa a ser secundaacuteria diante de seus objetivos mais voltados agrave recriaccedilatildeo
de um poema de modo a considerar sua dimensatildeo estrutural proacutepria ainda que como
afirma Campos ndash e talvez por isto mesmo ndash sua configuraccedilatildeo se defina
paramorficamente em relaccedilatildeo ao original (este aspecto seraacute tratado ainda de modo
mais detido adiante)
Quanto agrave questatildeo relativa ao emprego da palavra (khreoacute) (ldquonecessidade
falta desejo saudaderdquo ndash Isidro Pereira) no verso 197 apenas Malta manteacutem utilizando
o vocaacutebulo ldquoprecisatildeordquo a ambiguidade por ele apontada em relaccedilatildeo ao sujeito da
necessidade ldquo[] (sim eacute grande a precisatildeo)rdquo Odorico emprega a noccedilatildeo de necessidade
encerrando-a na forma de pergunta soluccedilatildeo que lhe permite uma construccedilatildeo sinteacutetica
ldquoQue urge A que vindes []rdquo tal soluccedilatildeo claramente opta pela atribuiccedilatildeo da urgecircncia
178
aos visitantes e natildeo a ele proacuteprio Eacute num sentido tambeacutem ligado a ldquourgirrdquo ldquourgecircnciardquo
(ldquosituaccedilatildeo criacutetica ou muito grave que tem prioridade sobre outrasrdquo ndash Dicionaacuterio
Houaiss 2001) que Nunes constroacutei seu verso ldquo[] Bem grave eacute sem duacutevida a causa
de aqui terdes vindordquo a soluccedilatildeo de Campos aproxima-se semanticamente das de Nunes
e Odorico ldquoAlgum motivo urgente grave eacute que voz traz a mimrdquo
Feita esta raacutepida anaacutelise comparativa das traduccedilotildees do fragmento do Canto IX
voltemos a questotildees fundamentais acerca de sua diversidade O que as distingue
essencialmente eacute a opccedilatildeo por considerar ndash ou natildeo ndash suas caracteriacutesticas ditadas pela
cultura e pela liacutengua gregas como absolutas no sentido da referecircncia formal agrave
composiccedilatildeo Tais caracteriacutesticas ligadas agrave natureza oral da poesia eacutepica satildeo ndash ou natildeo ndash
tomadas como padratildeo composicional pelos tradutores (independentemente inclusive da
convicccedilatildeo acerca de tal oralidade) Inseridos na cultura letrada que deteacutem conceitos
proacuteprios acerca de arte literatura e poesia o tradutor pode guiar-se por conceitos que
lhe satildeo externos ndash no caso advindos da cultura oral ndash ou orientar-se pelos padrotildees de
sua proacutepria cultura acerca da composiccedilatildeo poeacutetica recriando dentro destes padrotildees o que
seria anaacutelogo ao original provindo de cultura diversa naquilo que ele considera
essencial a este do ponto de vista esteacutetico
Se como vimos a partir de Havelock a praacutetica oral e a letrada natildeo satildeo
mutuamente exclusivas e os poemas homeacutericos satildeo ldquoconstruccedilotildees complexasrdquo que
ldquorefletem o comeccedilo de uma parceria entre o oral e o escritordquo a tensatildeo entre estes dois
ldquopoacutelos opostosrdquo permitiraacute do ponto de vista da leitura (entendida em seu sentido amplo)
do original e de sua traduccedilatildeo ou uma diretriz a partir de suas caracteriacutesticas que satildeo
proacuteprias do mundo oral ou outra na qual a consideraccedilatildeo dos elementos do poema se daacute
a partir da cultura letrada e de sua visatildeo acerca do fenocircmeno poeacutetico que inclui como
vimos aquilo de comum que haacute ndash do ponto de vista da linguagem ndash entre as
composiccedilotildees de eacutepocas tatildeo distantes como a antiguidade e a nossa Evidentemente
ambas as diretrizes encontram-se no plano de intersecccedilatildeo entre a oralidade e a escrita
(entre os aludidos ldquopoacutelosrdquo) o que as distinguiria basicamente seria a adoccedilatildeo de um ou
outro referente para a definiccedilatildeo das regras orientadoras de sua recriaccedilatildeo o que envolve
inevitavelmente a funccedilatildeo da poesia numa ou noutra cultura (oral ou letrada)
Neste sentido traduccedilotildees como as de Carlos Alberto Nunes (principalmente pela
transposiccedilatildeo direta do metro grego) e Andreacute Malta (pela adoccedilatildeo de metro considerado
179
anaacutelogo ao original por suas caracteriacutesticas ligadas agrave oralidade) adviriam de um ponto
de vista que parte de padrotildees caracteriacutesticos da poesia na cultura arcaica ligados agrave sua
funccedilatildeo em sua cultura (jaacute que independentemente das convicccedilotildees de Nunes acerca da
natureza oral ou natildeo autoral ou natildeo da eacutepica grega ele incorporou um padratildeo fiacutesico
caracteriacutestico da poesia homeacuterica178
) Contudo mesmo que orientados por uma oacuteptica
que se pode considerar intriacutenseca aos padrotildees da composiccedilatildeo oral eacute inevitaacutevel que a
visatildeo da cultura em que se insere o tradutor e a maneira como concebe o fenocircmeno
poeacutetico bem como sua concepccedilatildeo acerca das criaccedilotildees de outras eacutepocas propiciada pelo
uso de instrumentos de anaacutelise e interpretaccedilatildeo de que dispotildee exerccedilam papel decisivo na
atividade tradutoacuteria no caso de Malta as hipoacuteteses voltadas ao esclarecimento de
contradiccedilotildees e ambiguidades do original grego satildeo ainda que investigativas fruto da
cultura contemporacircnea e do modo com esta pode ldquorefazerrdquo a loacutegica e a coerecircncia de
sentido onde elas natildeo se datildeo sem que se construa uma tentativa de explicaacute-las embora
tenha o objetivo de resgate de significados estes seratildeo sempre tambeacutem resultantes da
leitura que poderaacute envolver formulaccedilotildees hipoteacuteticas produtoras de sentido (uma vez
que o campo da incerteza e mesmo da mutabilidade do significado eacute intransponiacutevel)
Na teorizaccedilatildeo de Haroldo de Campos ndash que considera o poema e a traduccedilatildeo
deste como ligados ldquoentre si por uma relaccedilatildeo de isomorfiardquo sendo ldquodiferentes enquanto
linguagemrdquo (a obra traduzida eacute uma ldquooutra informaccedilatildeo esteacutetica autocircnomardquo) mas que
ldquocomo os corpos isomorfosrdquo cristalizam-se ldquodentro do mesmo sistemardquo ndash o original
natildeo eacute tomado como estrutura fixa o ato de traduzir eacute visto como uma ldquopulsatildeo
dionisiacuteaca pois dissolve a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do texto original jaacute preacute-formado
numa nova festa siacutegnica potildee a cristalografia em reebuliccedilatildeo de lavardquo Como jaacute se disse
antes a dissolvecircncia de tal ldquodiamantizaccedilatildeordquo implica transformaccedilatildeo estrutural o sentido
do isomorfismo (ou do paramorfismo) envolve a noccedilatildeo de substacircncias diferentes e a
analogia de estrutura se daacute natildeo por paracircmetros fixos impostos externamente ao que se
recria mas ndash conforme entendo ndash pela reconstruccedilatildeo estrutural que se sustente como
178 C A Nunes dizia-se em relaccedilatildeo aos estudos da eacutepica grega filiado agrave corrente analiacutetica (para quem
nas palavras do tradutor ldquoeacute apenas aparente a unidade dos dois poemas [Iliacuteada e Odisseia] que se
formaram pela uniatildeo mal ajeitada de composiccedilotildees menoresrdquo (sd 10) Alertava no entanto que suas
conclusotildees pareceriam paradoxais uma vez que defendia ldquoa unidade de concepccedilatildeo da Iliacuteada e a pluralidade da Odisseiardquo atribuindo-lhes autoria diversa Para ele ldquoa Iliacuteada e a Odisseia representam a
fase uacuteltima do movimento eacutepico na Greacutecia firmando-se os dois poemas em copioso material preacute-
existente isto eacute em poemas de proporccedilotildees menores em sagas lendas mitos de origem variada que iam
sendo incorporados a conjuntos cada vez mais complexos Mas no caso da Iliacuteada um grande poeta ndash que
poderaacute ser o tatildeo discutido Homero histoacuterico ndash conseguiu uma siacutentese admiraacutevel com esse material
heterogecircneo a que imprimiu o cunho de seu grande gecircniordquo (id 11)
180
corpo autocircnomo paralelo e ao mesmo tempo anaacutelogo em suas relaccedilotildees constituintes
consideradas essenciais aquelas decorrentes da iconicidade do signo ou seja a teia de
relaccedilotildees sonoras e imageacuteticas que formam o conjunto cuja funcionalidade decorreraacute de
uma nova criaccedilatildeo de um novo cristal que ldquobrilherdquo (ou para usar outra analogia de
ldquoorganismordquo que funcione) independentemente no contexto em que surge (ou
ldquonascerdquo) Na oacuteptica de Campos portanto ndash que leva em conta tambeacutem o conceito
poundiano make it new (tornar novo) ndash o corpo isomoacuterfico teraacute um metro e outras
caracteriacutesticas proacuteprias da cultura em que a traduccedilatildeo se insere dentro das quais se recria
o conjunto de relaccedilotildees essenciais que tornam o conjunto uma informaccedilatildeo esteacutetica Isto
natildeo impede no entanto como jaacute se viu que se busque alargar os limites da proacutepria
liacutengua com criaccedilotildees vocabulares ou sintaacuteticas baseadas na liacutengua do original mas eacute
dentro da funcionalidade da obra na proacutepria cultura que se buscaraacute estender seus
paracircmetros Assim no caso particular do verso hexacircmetro dada a natureza diversa das
substacircncias sua consideraccedilatildeo como referecircncia fixa e sua simples transposiccedilatildeo
implicariam a perda de algo isto sim tido como essencial para o tradutor a dinacircmica
associada agrave siacutentese que do ponto de vista de Campos natildeo eacute estranha ao original a
concisatildeo nesta forma de pensar se daacute pela concentraccedilatildeo de efeitos pela densidade
poeacutetica pela relaccedilatildeo cerrada entre seus elementos (natildeo eacute difiacutecil perceber numa simples
leitura quatildeo densa eacute a relaccedilatildeo sonora presente nos versos gregos) Se em nossa liacutengua o
verso excessivamente longo pode levar agrave perda da musicalidade e agrave aproximaccedilatildeo com a
prosa outros valores se elevaratildeo para a recriaccedilatildeo paramoacuterfica em vez da medida
original por exemplo a escolha baacutesica de um metro fixo sendo este metro adequado
aos padrotildees de sensibilidade do contexto da traduccedilatildeo ainda que este possa ser
ldquoalargadordquo em seus lindes
No caso de Odorico Mendes como vimos eacute niacutetida sua opccedilatildeo por guiar-se pelos
valores esteacuteticos de sua eacutepoca e de sua cultura tomando entatildeo o verso ldquoheroacuteicordquo como
padratildeo o que lhe permitiu levar a cabo seu objetivo de siacutentese radical para ele
tambeacutem a narrativa natildeo eacute priorizada em relaccedilatildeo agrave urdidura poeacutetica marcada pela
extrema densidade de efeitos
Para concluir este exerciacutecio reflexivo reafirme-se que nas diferentes traduccedilotildees
prevalece sobre a (por vezes buscada) ldquofidelidaderdquo ao original uma ldquofidelidaderdquo agraves
convicccedilotildees do tradutor a respeito da obra que traduz da proacutepria poesia e do que vem a
181
ser uma traduccedilatildeo Neste sentido recorde-se tambeacutem ainda que se possam distinguir ndash
sempre a partir de um ponto de vista criacutetico que tambeacutem relativiza seus julgamentos ndash
realizaccedilotildees mais plenas no plano esteacutetico todas as traduccedilotildees aqui consideradas satildeo
resultados vaacutelidos e proacuteprios de abordagens competentes embora diversas da eacutepica
grega Todas envolvem noccedilotildees de equivalecircncia mas compatiacuteveis com seus pontos de
vista a anaacutelise descritiva permanece por isso mais adequada como procedimento para
comparaccedilatildeo e estabelecimento de semelhanccedilas e diferenccedilas
A4 Caminhando em possibilidades de anaacutelise
Seratildeo abordados a seguir outros versos isolados e fragmentos de cantos da
Iliacuteada e da Odisseia Buscaremos introduzir alguns elementos agraves anaacutelises de modo a
caminhar no esboccedilo de possibilidades de desvendamento dos processos empregados
pelos diversos tradutores Incluiremos a traduccedilatildeo ldquopalavra-a-palavrardquo do grego como
iacutendice de sentido
Considerem-se os seguintes versos em grego dotados de particular sonoridade
ἔκλαγξανδ᾽ ἄρ᾽ὀϊστοὶἐπ᾽ ὤμων χωομένοιο (Iliacuteada I 46)
Ressoaram as flechas do ombro do furioso
δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο (Iliacuteada I 49)
terriacutevel ruiacutedo surgiu do prateado arco
Fazemos mais uma vez acompanhar os versos do que seria uma ldquotraduccedilatildeo
literalrdquo (palavra-a-palavra) do grego tais palavras podem ser vistas como iacutendices da
construccedilatildeo das frases naquele idioma dando conta das informaccedilotildees delas apreensiacuteveis
ou seja do ldquosignificadordquo ou do ldquosentidordquo179
no entanto ao se ouvirem esses versos180
certamente algo do sentido pareceraacute perdido pela escolha das palavras
179 Se se quiser utilizar o referencial semioacutetico estariacuteamos no plano do siacutembolo da terceiridade (da qual
emergiram hipoiacutecones no processo de iconizaccedilatildeo do siacutembolo que buscaremos identificar tambeacutem nos
demais fragmentos estudados) 180 As observaccedilotildees feitas neste trabalho sobre a sonoridade dos versos e palavras em grego baseiam-se
na pronuacutencia mais habitual empregada nos cursos de formaccedilatildeo em liacutengua e literatura grega antiga
182
independentemente de sua ordem em portuguecircs Seguem-se novamente os versos
acompanhados de sua transliteraccedilatildeo
ἔκλαγξανδ᾽ ἄρ᾽ὀϊστοὶἐπ᾽ ὤμων χωομένοιο
eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemon khoomeacutenoio
δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο
deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco
Marquemos as repeticcedilotildees aliterativas (consoantes ou grupos consonantais
similares)
eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemonkhoomeacutenoio
deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco
Associadas agraves evidentes assonacircncias (repeticcedilotildees de vogais) as aliteraccedilotildees e
tambeacutem as semelhanccedilas de algumas palavras entre si colaboram para que se perceba
um efeito dos ruiacutedos referidos no plano do conteuacutedo segundo diferentes pontos de vista
teoacutericos diriacuteamos que a projeccedilatildeo paradigmaacutetica se realiza (funccedilatildeo poeacutetica) as palavras
parecem motivar-se os siacutembolos181
convertem-se em iacutecones (ou a rigor hipoiacutecones182
)
Nestes uacuteltimos termos advindos da semioacutetica de Peirce poderiacuteamos nos referir
a aspectos de primeiridade que emergeriam do contexto de terceiridade os sons que
ecoam reverberam nos versos aproximam-se por relaccedilotildees de contiguidade focircnica
formando-se uma tessitura sonora que sugere um caraacuteter qualitativo imageacutetico183
a
contiacutenua emissatildeo de flechas por Apolo em movimento Falariacuteamos inicialmente em
181 Observe-se que neste contexto adota-se o conceito de ldquosiacutembolordquo (e portanto de ldquosimboacutelicordquo)
proveniente da semioacutetica de Peirce diverso daquele empregado na semioacutetica oriunda da linguiacutestica isto eacute de Greimas e colaboradores (jaacute mencionado em capiacutetulo anterior em que se tratou de ldquorelaccedilotildees semi-
simboacutelicasrdquo) 182 Ver breve referecircncia agrave classificaccedilatildeo de signos por Peirce no primeiro capiacutetulo deste estudo 183 Seraacute utilizada como referecircncia para um possiacutevel exerciacutecio de anaacutelise a classificaccedilatildeo de trecircs tipos de
hipoiacutecones conforme apresentada por Santaella em Teoria geral dos signos (2000 119-120) a imagem
propriamente dita o diagrama e a metaacutefora
183
Aspectos de primeiridade ndash
Hipoiconicidade imageacutetica (contiacutenuo de sons sugerindo a accedilatildeo de Apolo)
1 Aliteraccedilatildeo
eacuteklangxan drsquoaacuter oiumlstoigrave eprsquo oacutemon khoomeacutenoio
deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco
(todas as palavras portanto relacionam-se pela hipo-iconicidade)
2 Assonacircncia
eacuteklangxan drsquoaacuteroiumlstoigrave errsquo oacutemon khoomeacutenoio
deinegrave degrave klangegrave geacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco
(todas as palavras se ligam tambeacutem pelas assonacircncias claro estaacute que as aliteraccedilotildees e
assonacircncias se ligam interpenetrando-se ndash a ldquoseparaccedilatildeordquo eacute feita apenas para
evidenciaccedilatildeo)
3 Paronomaacutesia (repeticcedilatildeo de conjuntos de sons semelhantes)
oacutemon khoomeacutenoio
deinegrave degrave klangegravegeacutenetrsquo argureacuteoio bioicirco
4 Onomatopeia a sequecircncia de consoantes oclusivas (k d t g b) em ambos os
versos ocasionam o efeito de som forte imitativo de golpes batidas accedilotildees que
percutem
Quanto a aspectos de secundidade ndash hipoiconicidade anagramaacutetica (ver nota
177) ndash pode-se entrever um ldquodiagramardquo das posiccedilotildees das ldquofontes sonorasrdquo envolvidas na
accedilatildeo por meio das palavras posicionadas em cada linha na primeira na qual haacute
referecircncia ao ressoar das flechas as palavras se alongam proacuteprias da posiccedilatildeo relativa a
essa fonte de ressonacircncia na segunda em que a referecircncia se faz ao estridente arco haacute
palavras mais breves secas raacutepidas contundentes a indicarem a posiccedilatildeo relativa ao
arco como emissor do som Uma leitura possiacutevel demonstrando-se as possibilidades de
184
reconhecimento de inter-relaccedilotildees produtoras de sentido ainda que este se crie (ou se
recrie) pela observaccedilatildeo
Sobre os aspectos da terceiridade (para completarmos nossa leitura com base
nessa referecircncia) dada a brevidade do fragmento temos a identificar a construccedilatildeo da
relaccedilatildeo entre o estado de fuacuteria do deus o ato de emissatildeo de flechas e seu ressoar
ecoando a proacutepria fuacuteria assim como a estridecircncia ou retumbacircncia do arco que a
representam em maacutexima intensidade Neste plano o sentido pelo niacutevel simboacutelico
estabelecem-se na ldquomente interpretanterdquo (para usar terminologia da semioacutetica) as
relaccedilotildees de analogia entre a fuacuteria e os ruiacutedos contruiacuteda num crescendo de intensidade
Voltando agrave dimensatildeo da primeiridade note-se que a sonoridade desses versos
portanto participa da composiccedilatildeo do ldquosignificadordquo Resultam da percepccedilatildeo das
qualidades focircnicas que por diferenccedila e semelhanccedila chamam nossa atenccedilatildeo para sua
ldquomaterialidaderdquo a leitura atenta poderaacute ldquodesvelaacute-losrdquo agrave primeira audiccedilatildeo A ldquotraduccedilatildeo
literalrdquo portanto ainda que do ponto de vista da ldquoequivalecircncia semacircnticardquo esteja a
contento deixa muito a desejar como recriaccedilatildeo dos versos uma vez que o sentido pleno
se faz exatamente da associaccedilatildeo entre o som e o chamado ldquosentidordquo ou seja o
ldquosignificadordquo Em que medida se deveria priorizar a equivalecircncia (ou correspondecircncia
palavra a palavra) no caso de versos cujo alcance de sentido ultrapassa a prerrogativa da
literalidade
Vejamos as soluccedilotildees obtidas pelos tradutores que temos focalizado
Odorico Mendes
Tinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frota (45 = 46)
Terriacutevel o arco argecircnteo estala e zune (47 = 49)
Carlos Alberto Nunes
A cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechas (46)
[nos ombros largos ]
185
Do arco de prata comeccedila a irradiar-se um clangor pavoroso (49)
Haroldo de Campos
Agrave espaacutedua do iracundo retiniam flechas (46)
Horriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteo (49)
Comecemos por Odorico
Tratando-se da informaccedilatildeo semacircntica ndash ldquoRessoaram as flechas ao ombro do
furiosordquo ndash o verso ldquotinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frotardquo omite o significado de
ldquofuriosordquo (ldquoiradordquo ldquocoleacutericordquo etc) no mais corresponde ao sentido com o acreacutescimo
de conteuacutedo relativo aos versos seguintes Contudo natildeo se trata neste caso
propriamente de omissatildeo (relembre-se o conceito ldquoocorre omissatildeo sempre que um dado
segmento textual do texto fonte e a informaccedilatildeo nele contida natildeo podem ser recuperados
no texto metardquo ndash Aubert 2006) ocorre sim falta de repeticcedilatildeo do adjetivo epiacuteteto de
Apolo o verso 44 (βῆ δὲ κατ᾽ Οὐλύμποιο καρήνων χωόμενος κῆρ) eacute traduzido por
Odorico para ldquoDo veacutertice do ceacuteu baixa iracundordquo A palavra ldquoiracundordquo corresponde no
caso a χωόμενος (khooacutemenos encolerizado) particiacutepio presente (voz meacutedia) do verbo
χωoμaι (khoomai ldquoestar irritado enfadar-serdquo ndash Isidro Pereira) que apareceraacute
novamente (com a variaccedilatildeo no modo que permite no grego a repeticcedilatildeo associada agrave
mudanccedila) no verso 46 (χωoμενοιo khoomenoio ndash optativo aoristo voz meacutedia) Odorico
procura evitar a repeticcedilatildeo como jaacute se viu conforme o procedimento que adotou
vinculado agrave ideia de concisatildeo e de natildeo tornar a obra pouco ldquoapraziacutevelrdquo A informaccedilatildeo
portanto fora dada dentro do conjunto dos versos proacuteximos Quanto ao aspecto da
sonoridade o verso nada deixa a desejar pela alta concentraccedilatildeo de efeitos aliterantes e
assonantes
tinem-lhe ao ombro as frechas Ante a frota
186
A escolha do verbo ldquotinirrdquo (palavra que parece motivada) permite associar o som
agudo das vogais agrave consoante oclusiva estabelecendo uma perfeita relaccedilatildeo som-sentido
que inclui as demais aliteraccedilotildees e semelhanccedilas uma sequecircncia de cinco consoantes
grupos consonantais que podem ser associados com o ruiacutedo das flechas lanccediladas por
Apolo concentraccedilatildeo correspondente agrave das consoantes oclusivas no verso grego
Especialmente concentrado de efeito portanto uma vez que o verso decassiacutelabo
(heroacuteico no caso de ambos os versos) eacute bem menor que o hexacircmetro pode-se pensar
em proporcionalidade quantitativa pois as ocorrecircncias tendem a se aglutinar mais no
menor verso em si mais concentrado Claro que os versos em sequecircncia com uso de
enjambement tecircm seus limites relativizados mas num caso como o de Odorico (como
se viu e veraacute com outros exemplos) o niacutevel de reuniatildeo de efeitos costuma ser alto A
ideia de proporccedilatildeo associada agrave simples observaccedilatildeo (percepccedilatildeo) do efeito produzido
num verso envolve a flexibilidade da ldquoequivalecircnciardquo como categoria natildeo-absoluta mas
apenas referecircncia do comportamento do texto recriado sob determinado aspecto O
verso 45 de Odorico (correspondente ao 46 em Homero jaacute que o procedimento do
tradutor envolve a diminuiccedilatildeo do nuacutemero de palavras e de versos em relaccedilatildeo ao texto
grego) apresenta ocorrecircncia anaacuteloga de primeiridade ou seja de hipoiconicidade
imageacutetica
Sobre o outro verso em questatildeo ldquoTerriacutevel o arco argecircnteo estala e zunerdquo eacute
evidente a cadeia de consoantes oclusivas assim como de constritivas (fricativas e
vibrantes) entre outras associaccedilotildees possiacuteveis (como a seguida repeticcedilatildeo de ldquoarrdquo aleacutem
de efeitos mais sutis como a inversatildeo entre ldquoecircnrdquo e ldquonecircrdquo) A presenccedila da iconicidade eacute
flagrante sem que a mediccedilatildeo seja necessaacuteria para o convencimento pelo efeito Dentro
de seus propoacutesitos e procedimentos estes versos isolados satildeo um indicador da fatura
(ainda que possa ser um momento especialmente dotado de eficiecircncia) de Odorico
poderiam ser exemplos de uso da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem de relaccedilatildeo som-sentido
hibridismo iacutecone-siacutembolo etc
Prossigamos com Carlos Alberto Nunes
Por vezes como eacute de se esperar ndash e nesse sentido veremos uma breve
amostragem natildeo calcada em criteacuterios estatiacutesticos mas apenas em busca de alguns
paradigmas ou padrotildees que componham o modo composicional do tradutor ndash Nunes
187
parece ter de preencher o verso longo com palavras adicionais a fim de manter a
paridade de versos com o texto grego Certas adjetivaccedilotildees que poderiam consistir numa
uacutenica palavra desdobram-se outras natildeo presentes no poema homeacuterico atrelam-se agrave
sequecircncia A escolha pela manutenccedilatildeo do ritmo uniforme em esquema ternaacuterio
descendente impotildee necessidades de distribuiccedilatildeo agrave qual a palavra deve adequar-se o que
amplia o nuacutemero de exigecircncias para a escolha semacircntica e vocabular Assim os versos
ldquoA cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo e ldquoDo arco de prata comeccedila
a irradiar-se um clangor pavorosordquo assumem um caraacuteter mais descritivo pela variedade
de palavras usada coerentemente com a colocaccedilatildeo das tocircnicas na 1ordf 4ordf 7ordf 10ordf 13ordf e
16ordf siacutelabas sendo niacutetida a superioridade da configuraccedilatildeo do segundo verso em relaccedilatildeo
ao primeiro a comeccedilar pela tocircnica naturalmente posta na primeira siacutelaba Do arco de
prata comeccedila a irradiar-se um clangor pavoroso Certamente a concisatildeo natildeo eacute uma das
precondiccedilotildees de Nunes a favor desta opccedilatildeo pode-se dizer que o verso grego natildeo tem
igualmente o propoacutesito de siacutentese e que a concisatildeo eacute uma procura proacutepria de uma
eacutepoca de um contexto e de um autor No entanto como se poderaacute observar e concluir a
partir de poucos exemplos de trechos e muito melhor com a leitura geral das obras os
versos gregos apresentam uma certa ldquocondensaccedilatildeordquo de efeitos que os torna densos
ainda que natildeo necessariamente sucintos por suas funccedilotildees narrativa e descritiva No
plano do conteuacutedo ldquoA cada passo que daacute cheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo deixa de
de fora ou melhor para depois a informaccedilatildeo ldquonos ombrosrdquo (levada ao verso seguinte ndash
a omissatildeo tambeacutem no caso deste verso eacute relativa de modo diferente pois natildeo visa a
evitar a repeticcedilatildeo) que passaraacute a contar com o adjetivo ldquolargosrdquo inexistente no verso
grego Haacute um detalhe de sentido a observar ldquoomonrdquo correspondente a ldquoombrosrdquo estaacute
no genitivo-ablativo (com ideia de origem) e portanto indicando que deles partem o
retinir da flechas ldquonos ombrosrdquo (soluccedilatildeo que seria coerente com a forma do caso
dativo-locativo) traz uma ambiguidade (a ideia de os ombros receberem as flechas) que
no entanto se resolve pela compreensatildeo do relato ldquoA cada passo querdquo eacute uma expressatildeo
para indicar movimento ldquodesdobradardquo em forma de peacutes daacutectilos acentuando-se o ldquoArdquo
(A ca da pas so que) O verso traz a informaccedilatildeo de ldquoiradordquo por meio da sequecircncia
tambeacutem natildeo sinteacutetica ldquocheio de irardquo assim como da informaccedilatildeo relativa ao ruiacutedo das
flechas Sob o aspecto da sonoridade o verso soa de outro modo reservando o uso de
siacutelabas iniciadas por consoantes oclusivas na associaccedilatildeo com o movimento aacutegil brusco
de Apolo que pode ser entrevisto pela sequecircncia aliterante ndash A cada passo que daacute ndash
188
enquanto emprega as fricativas quando a informaccedilatildeo semacircntica refere-se ao som das
fechas que passam a soar como um zumbido os objetos a produzirem sons ao passar
pelo ar ldquocheio de ira ressoam-lhe as flechasrdquo Uma possiacutevel sensaccedilatildeo de frouxidatildeo do
verso deve advir do efeito mais tecircnue menos contundente em relaccedilatildeo ao texto grego e a
uma soluccedilatildeo como a de Odorico Mendes Os versos no entanto ainda que tambeacutem
possam parecer desequilibrados nos agrupamentos de iacutecones sonoros e incertos no
sentido respondem a exigecircncias baacutesicas que podemos atribuir a Nunes da informaccedilatildeo
relevante agrave narrativa e ao padratildeo riacutetmico-meacutetrico
Vejamos em seguida a versatildeo de Haroldo de Campos
Entre os tradutores estudados Campos eacute o uacutenico cuja trajetoacuteria reflexiva
vincula-se agraves teorizaccedilotildees acerca dos signos da linguagem poeacutetica e da traduccedilatildeo de
poesia Assim seus pressupostos expliacutecitos permitem antever a valorizaccedilatildeo das relaccedilotildees
som-sentido ou da ldquoiconicidade do signordquo184
Haacute criacuteticas como uma recentemente
manifesta em livro185
que atribuem equivocadamente ao poeta e tradutor a convicccedilatildeo
de que para a traduccedilatildeo ser criativa eacute necessaacuterio e desejaacutevel que o ldquoconteuacutedordquo seja
desconsiderado ou modificado valorizando-se as traduccedilotildees que assim procedem A
criacutetica pueril revela desconhecimento do trabalho teoacuterico e tradutoacuterio de Haroldo que se
dedicou a demonstrar a inadequaccedilatildeo em traduccedilatildeo poeacutetica de se conferir a primazia a
uma suposta ldquofidelidade ao sentidordquo como jaacute se abordou neste estudo sem entretanto ndash
e evidentemente ndash deixaacute-lo de lado Vejamos as caracteriacutesticas destas soluccedilotildees do
tradutor considerando seu arcabouccedilo teoacuterico e convicccedilotildees sobre a praacutetica do traduzir
ldquoAgrave espaacutedua do iracundo retiniam flechasrdquo incorpora todas as informaccedilotildees do
verso grego (do ombro de Apolo irado ressoaram as flechas) e neste caso apenas elas
(embora Haroldo se valha frequentemente de enjambement) O uso do verbo no
passado embora no imperfeito guarda relaccedilatildeo com o uso homeacuterico que natildeo adota
verbos no presente como o fez neste caso Odorico Mendes chama a atenccedilatildeo a escolha
de verbo derivado daquele que Odorico empregou (tinir retinir) indicando a referecircncia
agrave traduccedilatildeo anterior considerada ldquotranscriadorardquo por Campos Tambeacutem se pode notar o
184ldquoA traduccedilatildeo criativa [] uma praacutetica voltada para a iconicidade do signordquo CAMPOS H ldquoTraduccedilatildeo
ideologia e histoacuteriardquo (1984) 185ABRAMO C W O Corvo ndash Gecircnese Referecircncias e Traduccedilotildees do Poema de Edgar Allan Poe Satildeo
Paulo Hedra 2011
189
uso da preposiccedilatildeo ldquoagraverdquo ligada a ldquoespaacuteduardquo soluccedilatildeo conveniente para dar a entender que
as flechas partiam do ombro apoliacuteneo recurso de que se valera tambeacutem Mendes (ldquoao
ombrordquo) O dodecassiacutelabo parece acomodar perfeitamente os elementos que dando
conta plena do sentido satildeo palavras que podem atender ao referencial do paramorfismo
relativo agrave dimensatildeo icocircnica do verso note-se a sucessatildeo de cinco oclusivas
Agrave espaacutedua do iracundo retiniam flechas
A reiteraccedilatildeo atende em quase todo o verso agrave necessidade de presenccedila
onomatopaica com niacutetida presenccedila icocircnica as ocorrecircncias se dividem em dois grupos
se considerarmos a cesura na sexta siacutelaba trecircs antes desta e duas apoacutes sendo que
ademais a vogal aberta em ldquoflechasrdquo reverbera a vogal aberta em ldquoespaacuteduardquo
finalizando o verso com a ecircnfase desejada que sugere a ampliaccedilatildeo da accedilatildeo de Apolo A
escolha de ldquoespaacuteduardquo em vez de ombros chama a atenccedilatildeo embora o relativo
preciosismo vocabular natildeo seja estranho agrave assumida tendecircncia ldquobarroquizanterdquo da obra
do poeta e tradutor a opccedilatildeo pelo vocaacutebulo claramente sugere a preocupaccedilatildeo com as
ocorrecircncias aliterantes e assonantes aleacutem do mais o fonema a atribui forccedila agrave
ldquoexplosatildeordquo do p na segunda siacutelaba do verso promovendo a intensidade do iniacutecio da
accedilatildeo
Por sua vez o verso ldquoHorriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteordquo tambeacutem
encerra toda a informaccedilatildeo comunicada pelo verso homeacuterico (o ruiacutedo ou estrondo ou
estreacutepito que nasceu ou brotou ou surgiu do arco prateado) A escolha de ldquoclangorrdquo
enfatiza no plano semacircntico a natureza metaacutelica estridente do som envolvido na accedilatildeo
ao mesmo tempo em que o ldquosignificanterdquo traz a dimensatildeo grave ressoante das vogais
fechadas associadas agraves consoantes explosivas (ou oclusivas) O verso constitui um
verdadeiro modelo dificilmente superaacutevel de relaccedilatildeo som-sentido ou para
relembrarmos o referencial jakobsoniano de projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o sintagma
observem-se as notaccedilotildees (feitas com diferentes marcas) de correspondecircncias internas agrave
linha que procuram assinalar as reiteraccedilotildees de vogais consoantes fricativas e
explosivas e dos segmentos paronomaacutesticos
Horriacutessono clangor irrompe do arco argecircnteo
190
Novamente o uso de vocabulaacuterio ldquopreciosordquo sugestivo do veio barroco do
escritor serve para trazer elevaccedilatildeo ao verso adequada ao contexto eacutepico
Verifiquemos ainda com objetivo de complementaccedilatildeo a traduccedilatildeo de Andreacute
Malta Campos aqui incluiacuteda pelo interesse de sua especificidade meacutetrica e pela
preocupaccedilatildeo (jaacute referida) do tradutor em manter na recriaccedilatildeo as ocorrecircncias dos
epiacutetetos empregando para eles as mesmas palavras a cada apariccedilatildeo
[E jaacute dos cimos do Olimpo baixou encolerizado (44)]
estrepitaram as setas no ombro do encolerizado (46)
[deus]
(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado) (49)
Um elemento a se destacar nesta versatildeo eacute o uso do epiacuteteto ldquoencolerizadordquo
correspondente nesse verso agrave palavra grega χωoμενοιo (khoomenoio) Conforme jaacute foi
mencionado ocorre no verso 46 do poema homeacuterico a repeticcedilatildeo da palavra integrante do verso
44 χωόμενος (khooacutemenos) mas como se pode ver com mudanccedila de sua terminaccedilatildeo Fiel a
sua proposta de conservar em sua traduccedilatildeo a mesma palavra relativa agravequela que define um
epiacuteteto no texto grego o tradutor usa o mesmo adjetivo (forma do particiacutepio do verbo em
portuguecircs) nos dois versos em questatildeo como se pode ver nas citaccedilotildees O verso de Malta feito
de duas redondilhas maiores (conforme se comentou antes) apresenta uma cesura niacutetida apoacutes o
primeiro segmento que mais concentra o efeito sonoro referente ao clangor ou seja o aspecto
icocircnico do verso
estrepitaram as setas no ombro do encolerizado
A escolha da palavra ldquoestrepitaramrdquo permite por si soacute a recriaccedilatildeo de efeito
anaacutelogo ao do texto grego a seguinte repeticcedilatildeo de t (pela providecircncia da opccedilatildeo por
ldquosetasrdquo) e a ocorrecircncia de br que ecoa tr completam a sonoridade no entanto esta
perde forccedila com o uso do adjetivo resultando em desequiliacutebrio esteacutetico perceptiacutevel da
audiccedilatildeo atenta do verso O mesmo natildeo acontece com o verso 49
(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado)
191
Como se pode ver o efeito do ruiacutedo distribui-se por todo o verso atribuindo
forccedila maior ao conjunto e maior equiliacutebrio que resulta em melhor resultado esteacutetico O
uso de ldquoterriacutevelrdquo cuja vogal tocircnica marca a cesura dos hemistiacutequios permite o efeito de
ecircnfase e agudeza sugerido pelo fonema i O tradutor adotou a soluccedilatildeo dos parecircnteses
ao que parece pela questatildeo sintaacutetica de independecircncia do verso de modo a evitar o
ponto final no proacuteprio verso e no anterior no grego os versos 48 e 49 terminam em
ldquoponto em cimardquo equivalente aos dois pontos em portuguecircs
ἕζετ᾽ ἔπειτ᾽ ἀπάνευθε νεῶν μετὰ δ᾽ ἰὸν ἕηκε
δεινὴ δὲκλαγγὴ γένετ᾽ ἀργυρέοιο βιοῖο (Iliacuteada I 49)
Os dois pontos envolvem o prenuacutencio a soluccedilatildeo de Malta manteacutem a
ldquoautonomiardquo do verso 49 e ao mesmo tempo a expectativa ligada ao conjunto de dois
versos (48 e 49)
E entatildeo pondo-se bem longe das naus lanccedilou uma flecha
(um estreacutepito terriacutevel brotou do arco prateado)
Esse procedimento ilustra a caracteriacutestica de apego agrave literalidade manifesta na
traduccedilatildeo de Malta coerentemente aos seus pressupostos de equivalecircncia (inclusive
quanto agrave versificaccedilatildeo) ao verso grego Como eacute faacutecil verificar os versos do tradutor
atendem ao criteacuterio de correspondecircncia de sentido com o original
Observemos em seguida os primeiros sete versos tambeacutem do Canto I da Iliacuteada
Mas antes eacute oportuno fazer-se uma observaccedilatildeo importante sobre o processo de anaacutelise
que estaacute em andamento
Natildeo eacute minha pretensatildeo exatamente propor um modelo de anaacutelise em meu
modo de ver anaacutelise tambeacutem eacute criaccedilatildeo ou re-criaccedilatildeo ainda que baseada em aspectos
intratextuais pois eacute um modo de leitura e esta sempre seraacute tambeacutem re-criadora O
objetivo pretendido aqui eacute tatildeo-somente indicar possibilidades (perseguidas de modo
um tanto erraacutetico sem a formulaccedilatildeo de procedimentos-padratildeo ou metodologia fixa) de
leitura analiacutetica que colaborem para o re-conhecimento de caracteriacutesticas do texto
192
poeacutetico original ou traduzido na dimensatildeo interna a uma estrutura tal como
identificada e na dimensatildeo comparativa entre estruturas de textos diversos
Iliacuteada I 1-7
ΜῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος
A ira (duradoura) canta Deusa do Pelida Aquiles
οὐλομένην ἣ μυρί ᾽Ἀχαιοῖς ἄλγε᾽ ἔθηκε
funesta que dez mil (miriacuteade) aos aqueus dores fez
πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν
muitas valentes almas no Hades lanccedilou precocemente
ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν
de heroacuteis e a eles mesmos presa produziu para os catildees
οἰωνοῖσί τε πᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή
e para as aves todas de Zeus cumpria-se a decisatildeo
ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε
desde que primeiro apartaram-se em discoacuterdia
Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς
O Atrida chefe de homens e o divino Aquiles
E agora as traduccedilotildees de Odorico Mendes Carlos Alberto Nunes e Haroldo de
Campos
Odorico Mendes (I 1-6)
Canta-me oacute deusa do Peleio Aquiles
A ira tenaz que lutuosa aos Gregos
Verdes no Orco lanccedilou mil fortes almas
Corpos de heroacuteis a catildees e abutres pasto
193
Lei foi de Jove em rixa ao discordarem
O de homens chefe e o Mirmidon divino (6)
Carlos Alberto Nunes
Canta-me a coacutelera ndash oacute deusa ndash funesta de Aquiles Pelida
causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
e de baixarem para o Hades as almas de heroacuteis numerosos
e esclarecidos ficando eles proacuteprios aos catildees atirados
e como pasto das aves Cumpriu-se de Zeus o desiacutegnio
desde o princiacutepio em que os dois em discoacuterdia ficaram cindidos
o de Atreu filho senhor dos guerreiros e Aquiles divino (7)
Haroldo de Campos
A ira Deusa celebra do Peleio Aquiles
o irado desvario que aos Aqueus tantas penas
trouxe e incontaacuteveis almas arrojou no Hades
de valentes de heroacuteis espoacutelio para os catildees
pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus
desde que por primeiro a discoacuterdia apartou
o Atreide chefe de homens e o divino Aquiles (7)
Pensemos primeiramente na traduccedilatildeo de Odorico apenas para conferecircncia
faccedilamos a escansatildeo dos versos do fragmento assinalando-se suas siacutelabas tocircnicas
Can ta- me oacute deu sa do Pe lei o A qui les
A i ra te naz que lu tu o sa aos Gre gos
Ver des no Or co lan ccedilou mil for tes al mas
Cor pos de He roacuteis a catildees e a bu tres pas to
Lei foi de Jo ve em ri xa ao dis cor da rem
O de ho mens che fe e o Mir mi don di vi no
194
Os versos se dividem entre aqueles com tocircnicas predominantes na quarta e
oitava siacutelabas (saacuteficos) e aqueles com tocircnica predominante na sexta siacutelaba (heroacuteico)
contudo dois deles (quarto e quinto) permitem a leitura com acentos nas posiccedilotildees pares
o que ocasiona certa indefiniccedilatildeo em seu esquema meacutetrico-riacutetmico que favorece certa
aceleraccedilatildeo e ritmo mais marcado pelos reiterados acentos que ocasionam sequecircncias
binaacuterias (jacircmbicas) nos segundos hemistiacutequios caso este tambeacutem do terceiro verso
Note-se tambeacutem a sequecircncia ternaacuteria decrescente (dactiacutelica) no iniacutecio de todos os versos
do fragmento com exceccedilatildeo do terceiro com ceacutelula binaacuteria descendente (trocaico)
todos tecircm em comum portanto o acento na primeira siacutelaba (o uacuteltimo permite a leitura
do acento em ldquoordquo) Quanto agraves sinalefas elas se datildeo de maneira usual com elisotildees entre
vogais aacutetonas ou entre aacutetona e tocircnica ou semitocircnica (caso de ldquoA irardquo seria possiacutevel a
leitura sem a elisatildeo mas isso ocasionaria um esquema atiacutepico ndash acentuado na quinta
siacutelaba ndash do decassiacutelabo claacutessico usado por Odorico nas variantes de saacutefico e heroacuteico)
Tratemos agora do acircmbito semacircntico do trecho O iniacutecio da Iliacuteada eacute jaacute
revelador da concisatildeo do tradutor da eficiecircncia com que procura re-produzir o
ldquosentidordquo depreendido do texto grego186
exercitando uma espeacutecie de paraacutefrase187
poeacutetica com grande acuidade na escolha das palavras e com um engendramento
sintaacutetico que resulta em tom ao mesmo tempo elevado e contundente pela densidade Eacute
mesmo impressionante verificar-se que em apenas seis versos sem basear-se na noccedilatildeo
estrita de equivalecircncia pela ldquoliteralidaderdquo Odorico alcance sugerir todo o sentido
essencial188
do que o texto grego comunica Fazendo-se outra paraacutefrase desta vez
apenas referencial ou seja no acircmbito da funccedilatildeo cognitiva da linguagem seraacute possiacutevel
evidenciar o que da informaccedilatildeo ldquooriginalrdquo se pode obter pelos versos concisos de
186 Relembrem-se as palavras de Nienkoumltter antes citadas 187Paraacutefrase ldquointerpretaccedilatildeo ou traduccedilatildeo em que o autor procura seguir mais o sentido do texto que a sua
letra metaacutefraserdquo (Houaiss) A palavra se origina do grego composta de (paraacute)ndash ao lado junto a
cerca de e (phraacutesis) ndash linguagem discurso frase Eacute nesse sentido natildeo vinculado a um
referencial teoacuterico especiacutefico que o termo eacute aqui empregado Mencione-se a diferenccedila em relaccedilatildeo ao
conceito de Newmark para quem a paraacutefrase escaparia a qualquer viacutenculo com o texto na liacutengua de
partida consistindo em ldquouma ampliaccedilatildeo ou re-escritura livre do significado de um periacuteodordquo (1981 apud
Barbosa 1990 54) 188 Sobre esse aspecto do ldquosentido essencialrdquo desapegado da literalidade cabe mencionar guardadas as devidas diferenccedilas de contexto e proposta a primeira etapa do modelo operacional proposto por Nida que
prevecirc trecircs etapas no processo tradutoacuterio ldquoreduccedilatildeo do texto original a seus nuacutecleos mais simples e
semanticamente evidentes transferecircncia do significado da liacutengua original para a liacutengua da traduccedilatildeo em
um niacutevel estruturalmente simples geraccedilatildeo de uma expressatildeo etiliacutestica e semanticamente equivalente na
liacutengua da traduccedilatildeordquo Para Nida ldquoo tradutor realmente competente traduz lsquounidades de significadorsquordquo em
vez de reproduzir ldquounidades estruturaisrdquo (1964 apud Barbosa 1990 33)
195
Mendes A paraacutefrase seraacute uma providecircncia de auxiacutelio agrave anaacutelise seu uso me parece um
modo de se verificar a presenccedila do sentido geral ou seja das informaccedilotildees ldquoessenciaisrdquo
na traduccedilatildeo cuja proposta natildeo eacute a ldquofidelidaderdquo em termos de equivalecircncia ldquopela letrardquo
isto eacute pela ldquoliteralidaderdquo (palavra-a-palavra) mas sim (como jaacute foi apontado) por um
processo de ldquoconstruccedilatildeo paralelardquo do conjunto de informaccedilotildees depreendido do texto-
fonte que se vale do uso de sinoniacutemia afim com o objetivo manifesto de siacutentese ou
concisatildeo e com o objetivo (dedutiacutevel pela observaccedilatildeo dos versos) de ldquodensidade
sonorardquo Diremos entatildeo parafraseando as notaccedilotildees ldquoliteraisrdquo (essas palavras consistem
apenas em algumas primeiras escolhas comuns usuais nos dicionaacuterios entre outras
possibilidades) que eacute feito o pedido agrave Deusa de que ela cante a ira funesta de Aquiles
Pelida (filho de Peleu) que dez mil dores trouxe aos aqueus (gregos) e que lanccedilou
prematuramente ao Hades muitas almas valentes de heroacuteis e as presas aos catildees e agraves
aves cumprindo-se a lei de Zeus desde que em discoacuterdia se separaram o chefe dos
homens o Atrida e o divino Aquiles
Segue-se nova paraacutefrase desta vez da traduccedilatildeo de Mendes o primeiro verso
saacutefico expressa perfeitamente a mensagem conativa agrave Deusa introduzindo o nome do
heroacutei para em seguida atribuir-lhe a ira tenaz (persistente) lutuosa aos gregos e informar
que ela lanccedilou verdes (jovens) no Orco (o reino dos mortos o Hades) mil almas fortes
corpos que satildeo pasto a catildees e abutres anuncia entatildeo que a Lei (cumprida) foi de Jove
(Juacutepiter versatildeo latina de Zeus) e aponta que estatildeo em rixa por terem discordado o chefe
dos homens e o Mirmidon (epocircnimo do heroacutei Aquiles)
Jaacute se pode perceber que o sentido geral estaacute mantido as informaccedilotildees relevantes
estatildeo todas presentes Ao menos o que podemos apreender hoje dos significados do
texto grego lido sob nosso ponto de vista189
Montemos contudo ndash para evidenciar as
relaccedilotildees entre um conjunto de informaccedilotildees e outro ndash uma relaccedilatildeo de correspondecircncias
entre as palavras ou grupo de palavras postos como traduccedilotildees ldquoliteraisrdquo junto aos
versos gregos (apenas uma escolha ldquoimediatardquo frise-se) e as palavras que a eles
correspondem usadas por Odorico
189 A observaccedilatildeo procura explicitar um ponto de vista sobre a problemaacutetica jaacute discutida Ainda que o
significado seja mutaacutevel como jaacute se comentou largamente o processo histoacuterico envolve a ldquofixaccedilatildeordquo de
significados de referecircncia que permitem o acesso sob a oacuteptica proacutepria de quem lecirc e do contexto ao qual
pertence
196
Notemos alguns pontos na primeira linha da ldquotabelardquo aparece de um lado a
palavra ldquoirardquo correspondente a (meacutenis) esta palavra pode ser traduzida
simplesmente por ldquofuacuteriardquo ldquoirardquo ldquocoacutelerardquo etc (no Greek-English lexicon de Liddell and
Scott190
μῆνις [] mdash ldquowrathrdquo) Em Odorico vemos ldquoira tenazrdquo Diga-se no entanto
que o significado eacute previsto no Dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidro Pereira191
ldquoira
190 LIDDELL amp SCOTT Greek-English lexicon Londres Clarendon Press ndash Oxford s d (O dicionaacuterio
passaraacute a ser referido neste estudo como Liddell amp Scott) 191 PEREIRA ISIDRO S J Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego Porto Livraria Apostolado
da Imprensa 1984 (Ao longo do texto o Dicionaacuterio seraacute referido pela forma usual que toma o nome do
autor Isidro Pereira)
197
duradoira ressentimentordquo192
entre os significados de ldquotenazrdquo no Dicionaacuterio Houaiss
constam ldquodifiacutecil de acabarrdquo e ldquopersistenterdquo um caso em que o tradutor se vale de duas
palavras para abranger com ecircnfase o sentido de persistecircncia resistecircncia da ira do
heroacutei
Na segunda linha haacute ldquolutuosardquo correspondendo a ldquofunestardquo por οὐλομένην
(oulomeacutenen) acusativo feminino singular de οὐλoacuteμν no Liddell amp Scott
ldquodestructive banefulrdquo (segundo o Houaiss193
ldquodestrutivo mortiacutefero pernicioso
nocivordquo) no Isidro Pereira e no Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquopernicioso funestordquo
ldquoLutuosordquo segundo o Houaiss194
eacute o ldquoque evoca ou simboliza a ideia de morte
fuacutenebre luacutegubrerdquo a palavra eacute um dos sinocircnimos relacionados no Dicionaacuterio para
ldquofunestordquo (ldquoque causa a morte fatal mortalrdquo) Natildeo passa despercebida entretanto a
semelhanccedila parcial da palavra oulomeacutenen com lutuoso um possiacutevel iacutendice da razatildeo da
escolha do tradutor Aleacutem disso a escolha explicita o luto pela morte dos gregos
motivo das ldquodez mil doresrdquo (uma quantidade a sugerir o nuacutemero ldquosimboacutelicordquo
indefinido de ldquomuitasrdquo) que a ira provocou nos aqueus (ldquodez milrdquo mortes portanto)
passagem transformada ou concentrada por Odorico diretamente na afirmaccedilatildeo de ldquomil
fortes almasrdquo lanccediladas ao ldquoOrcordquo (ldquoo infernordquo segundo o Houaiss) ldquoVerdes no Orco
lanccedilourdquo ademais daacute conta da informaccedilatildeo correspondente a προΐαψεν (proiapsen)
verdes eacute soluccedilatildeo relativa a pro indicativo da precocidade prematuridade do
lanccedilamento ao Hades dos heroacuteis (mortos jovens portanto) O tradutor inclui a palavra
ldquocorposrdquo que associada a ldquopastordquo cumpre o sentido de que os heroacuteis almas atiradas ao
Hades tornaram-se presas dos catildees e aves embora em grego aluda-se a ldquotodas as avesrdquo
a opccedilatildeo por ldquoabutresrdquo permanece com o ganho de uma imagem intensa no mesmo
acircmbito semacircntico
Quanto agrave sonoridade observemos inicialmente correspondecircncias focircnicas nos
versos gregos transliterados
μῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος
mecircnin aacuteeide Theagrave Peleiaacutedeo Aquileos
192 A mesma definiccedilatildeo (ldquoira duradoura ressentimentordquo) eacute encontrada no recente Dicionaacuterio grego-
portuguecircs (Satildeo Paulo Ateliecirc vol 3 2008) Ambas as definiccedilotildees reportam ao Bailly ndash Dictionaire Grec-
Franccedilais ldquoμήνις [] colegravere durable ressentimentrdquo (Bailly Anatole Dictionaire Grec-Franccedilais Paris
Hachette 2005 (1ordf ediccedilatildeo 1895) 193 HOUAISS A (editor) Dicionaacuterio inglecircs-portuguecircs Rio de Janeiro Record 1982 194Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001
198
οὐλομένην ἣμυρί ᾽Ἀχαιοῖςἄλγε᾽ ἔθηκε
oulomeacutenen emyriacute Akhaioicircsalge eacutetheke
πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν
pollagraves drsquoiacutephthiacutemou psikhaacutes Aidi proiapsen
ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώριατε ῦχεκύνεσσιν
eroacuteon autougraves degrave eloriacuteate ucirckhekyacutenessin
οἰωνο ῖσίτεπᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή
oiono icircsiacutetepacircsi Diograves drsquoeteleiacuteeto Bouleacute
ἐξοὗδὴ τὰ πρῶ ταδιαστή την ἐρίσαντε
eacuteksoudegrave ta procirc tadiasteacute tem epiacutesante
Ἀτρεΐδης τε ἄναξἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς
Atreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutes
Seguem-se os versos com as unidades de correspondecircncia assinaladas com
diferentes notaccedilotildees de destaque
μῆνινἄειδεθεὰΠηληϊάδεωἈχιλῆος
mecircnin aacuteeide Theagrave Peleiaacutedeo Akhileos
οὐλομένην ἣμυρί ᾽Ἀχαιοῖςἄλγε᾽ ἔθηκε
oulomeacutenen emyriacute Akhaioicircsalge eacutetheke
πολλὰς δ᾽ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν
pollagraves drsquoiacutephthiacutemou psikhaacutes Aidi proiapsen
ἡρώων αὐτοὺς δὲ ἑλώριατε ῦχεκύνεσσιν
eroacuteon autougraves degrave eloriacuteate ucirckhekyacutenessin
οἰωνο ῖσίτεπᾶσι Διὸς δ᾽ἐτελείετο βουλή
oiono icircsiacutetepacircsi Diograves drsquoeteleiacuteeto Bouleacute
199
ἐξοὗδὴ τὰπρῶ ταδιαστή την ἐρίσαντε
eacuteksoudegrave tagraveprocirc tadiasteacute ten epiacutesante
Ἀτρεΐδης τε ἄναξἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς
Atreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutes
As marcaccedilotildees ainda que limitadas e um tanto imprecisas podem indicar a
intrincada teia de correspondecircncias sonoras do texto grego Haacute como se pode ver
muitos aspectos de iconicidade que se sobressaem do signo verbal simboacutelico Para
efeito ilustrativo isolemos algumas das unidades demarcadas por exemplo a de
consoantes oclusivas sonoras surdas e aspiradas195
(satildeo incluiacutedas tambeacutem consoantes
duplas por envolverem dois sons consonacircnticos consecutivos o primeiro deles
oclusivo)
de Th P d kh
kh ge th k
p drsquo th os kh d pr ps
t t khek
t p D t t B
ks d t pr t d t t p t
tr d t ks dr k d kh
195 Haacute divergecircncias no acircmbito das hipoacuteteses acerca dos fonemas do grego antigo Para efeito praacutetico de
referecircncia adota-se aqui uma categorizaccedilatildeo usualmente aceita nos atuais cursos de liacutengua e literatura
grega antigas que pode ser assim representada (relativa agraves consoantes) (ver paacutegina seguinte)
Fonte Ribeiro Juacutenior W A Didascalia Portal Graecia Antiqua Satildeo Carlos Disponiacutevel em
wwwgreciantigaorg
200
Ira discoacuterdia morte os fonemas oclusivos sugerem uma batida belicosa uma imagem
de tensatildeo e conflito (primeiridade) Vejamos sob este aspecto restrito o que podemos
perceber do texto de Mendes mas antes assinalando tambeacutem algumas das diferentes
relaccedilotildees de semelhanccedila focircnica que se urdem no texto
Canta-me oacute deusa do Peleio Aquiles
A ira tenaz que lutuosa aos Gregos
Verdes no Orco lanccedilou mil fortes almas
Corpos de heroacuteis a catildees e abutres pasto
Lei foi de Jove em rixa ao discordarem
O de homens chefe e o Mirmidon divino (6)
Repeticcedilotildees de consoantes oclusivas de constritivas fricativas ocorrecircncias de
primeiridade a sugerirem tensatildeo embate divergecircncia paronomaacuterias como ldquoirardquo e
ldquorixardquo ldquopeleiordquo e ldquoleirdquo a sugerirem tambeacutem oposiccedilatildeo De secundidade podemos
notar posiccedilotildees de palavras que indicariam correspondecircncias com a situaccedilatildeo a que o
texto se refere ldquoverdesrdquo no iniacutecio do verso em correspondecircncia exata com a palavra
ldquocorposrdquo inicial do verso seguinte a indicar a presenccedila prematura dos corpos lanccedilados
ao Hades como almas (palavra que ocupa posiccedilatildeo de final de verso oposta a ldquoverdesrdquo)
a palavra ldquorixardquo no meio do verso podendo indicar a intervenccedilatildeo de Zeus a pedido de
Teacutetis na guerra que assim teria se posto em meio agrave disputa de Agamemnon e Aquiles
posicionados de um lado e outro no verso seguinte (ldquorixardquo tem penso referecircncia
ambiacutegua no verso tanto pode referir-se agravequela entre os guerreiros como agrave participaccedilatildeo
do deus)
No texto grego chama a atenccedilatildeo a posiccedilatildeo intermediaacuteria de ldquoDiogravesrdquo no quinto
verso (para dizer de uma possiacutevel atribuiccedilatildeo de secundidade) centro do poder e
interventor nos destinos dos guerreiros e da guerra
Mas o deus que se intrometera antes e ocasionara a situaccedilatildeo que levaria agrave
discoacuterdia entre o ldquochefe de homensrdquo e o pelida fora Apolo filho de Zeus e Latona Seraacute
feito adiante algum comentaacuterio tambeacutem acerca dos dois versos seguintes aos
propostos para anaacutelise que se referem a Phebo
201
Prossigamos observando a traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes conferindo o
esquema riacutetmico por ele adotado por meio da marcaccedilatildeo das tocircnicas do verso
Can ta- me a coacute le ra ndash oacute deu sa ndash funes ta de Aqui les Pe li da
cau sa que foi de os A qui vos so fre rem tra ba lhos sem
[ con ta
e de bai xa rem pa ra o Ha des as al mas de he roacuteis nu me ro
[sos
e es cla re ci dos fi can do e les proacute prios aos catildees a ti ra dos
e co mo pas to das a ves Cum priu-se de Zeus o de siacuteg nio
des de o prin ciacute pio em que os dois em dis coacuter dia fi ca ram
[cin di dos
o de A treu fi lho se nhor dos guer rei ros e A qui les di vi no
O primeiro verso eacute modelar por diversas razotildees Primeiro pela perfeita
prosoacutedia com coincidecircncia entre as posiccedilotildees das tocircnicas exigidas pelo esquema
hexameacutetrico (ternaacuterio descendente) e as siacutelabas tocircnicas das palavras Embora esta seja
uma condiccedilatildeo baacutesica que se repetiraacute em todos os versos em muitos deles na traduccedilatildeo
de Nunes a primeira siacutelaba meacutetrica tocircnica prevista pelo modelo do verso corresponde a
siacutelabas gramaticais aacutetonas caso dos versos 3 4 5 e 7 aqui apresentados iniciados pelos
conectivos ldquoerdquo ou pelo artigo ldquoordquo Este expediente no entanto eacute frequente em
adaptaccedilotildees do antigo sistema quantitativo para o sistema qualitativo a proacutepria
sequecircncia de versos marcados pelas tocircnicas poeacuteticas impotildee a leitura de modo a tornar
tocircnica a primeira siacutelaba de cada verso ainda que a ela natildeo corresponda uma tocircnica
gramatical veremos isso adiante quando tratarmos mais detidamente da questatildeo da
adaptaccedilatildeo do sistema quantitativo ao qualitativo e do hexacircmetro portuguecircs no toacutepico
relativo ao estudo para proposiccedilatildeo de um formato riacutetmico para a traduccedilatildeo da eacutepica
A que pese a apontada monotonia dos versos hexacircmetros de Nunes agrave
semelhanccedila dos versos baseados em peacutes nas liacutenguas anglo-saxocircnicas196
eacute como jaacute se
196 Diz Wolfgang Kayser sobre o assunto ldquoA analogia fez parecer possiacutevel a reproduccedilatildeo do verso antigo
nas liacutenguas germacircnicas as longas substituiacuteram-se pelas tocircnicas as breves pelas aacutetonas [] Na verdade o
encontro com a meacutetrica antiga foi de fatiacutedico significado para a meacutetrica germacircnica [] [Ele] levou agrave
restriccedilatildeo [] [da] liberdade [antes existente na meacutetrica germacircnica] e [] agrave construccedilatildeo com peacutes iguaisrdquo
202
disse notaacutevel a sua difiacutecil empreitada e a competecircncia com que a realizou Talvez este
seja o aspecto mais importante a se assinalar em sua recriaccedilatildeo da eacutepica por ser um
criteacuterio fundamental de correspondecircncia ao verso antigo que o distingue dos demais
tradutores estudados neste trabalho Sua noccedilatildeo de manter a organizaccedilatildeo do verso em peacutes
anaacutelogos aos do texto grego eacute fator determinante das caracteriacutesticas dos resultados por
ele obtidos
Sobre isso observe-se preliminarmente que de fato a medida em siacutelabas natildeo
deve ser vista como a referecircncia primeira em seus versos conforme observou J A
Oliva Neto (em trecho jaacute citado) em vez dela o fundamento de sua versificaccedilatildeo eacute a
ldquoceacutelula dactiacutelicardquo jaacute que estas se sucedem ininterruptamente pouco importando o ponto
em que cada verso termina ndash quanto a esse aspecto haacute a considerar tambeacutem os
enjambements frequentes na eacutepica que pela via semacircntico-sintaacutetica relativizam a
delimitaccedilatildeo dos versos Embora assim seja o alongamento decorrente da obrigatoacuteria
sequecircncia de seis daacutectilos em cada linha leva a um procedimento analiacutetico (termo
entendido aqui como oposto a ldquosinteacuteticordquo197
) na busca de correspondecircncia com o
original que envolve a inclusatildeo de acreacutescimos de significados em relaccedilatildeo a esse
Faccedilamos uma relaccedilatildeo de correspondecircncias entre os elementos da ldquotraduccedilatildeo
literalrdquo adotada como referecircncia e os elementos que a eles correspondem na versatildeo de
C A Nunes
KAYSER W Anaacutelise e interpretaccedilatildeo da obra literaacuteria Coimbra Armeacutenio Amado Editor Satildeo Paulo
Livraria Martins Fontes 1976 p 84 Este tema seraacute novamente abordado em outro toacutepico deste estudo 197 Conforme jaacute foi referido neste estudo e assinalou tambeacutem Oliva Neto a eacutepica grega de teor
narrativo natildeo se faz com base no valor da siacutentese natildeo sendo o procedimento de Nunes portanto avesso
aos poemas que traduz
203
_________________________________________________________________________
Embora natildeo tenhamos o propoacutesito geral de quantificaccedilatildeo mas sim de
identificaccedilatildeo de caracteriacutesticas e de sua significaccedilatildeo para o resultado o uso que temos
feito das relaccedilotildees de correspondecircncia baseiam-se no procedimento de ldquotabelasrdquo agrave
semelhanccedila do que eacute proposto por P H Britto Natildeo se considera de interesse no
entanto propriamente enumerar todas as ocorrecircncias de aspectos identificados com
determinado referencial teoacuterico visando a um julgamento O reconhecimento de
aspectos qualitativos de procedimento pode contudo dar-nos alguma identificaccedilatildeo de
melhor realizaccedilatildeo tendo em vista como base de referecircncia a proposta de traduccedilatildeo e
sua coerecircncia interna
As traduccedilotildees ateacute agora vistas apresentam ndash para lembrarmos conceitos da
linguiacutestica contrastiva ndash transposiccedilatildeo e modulaccedilatildeo (ver notas 125 126 e 128) com
diversas ocorrecircncias Um caminho a seguir seria enumeraacute-las em cada uma das
204
traduccedilotildees mas essa perspectiva natildeo me parece promissora natildeo levaria a constataccedilotildees
frutiacuteferas para o criteacuterio de avaliaccedilatildeo adotado a ocorrecircncia generalizada no entanto
ainda que em poucos exemplos atesta a importante obviedade (nem sempre
reconhecida) de que a traduccedilatildeo poeacutetica envolve a transformaccedilatildeo independentemente
dos procedimentos e criteacuterios de traduccedilatildeo adotados Aleacutem dos paracircmetros ldquoformaisrdquo que
determinam adequaccedilotildees e das soluccedilotildees semacircnticas e esteacuteticas definidas pela oacuteptica do
tradutor haacute a se considerar a proacutepria distacircncia entre as liacutenguas que ocasiona a
necessidade de abundantes ocorrecircncias como essas (duas palavras em vez de uma e
vice-versa inversotildees e deslocamentos ndash transposiccedilatildeo aparentes alteraccedilotildees na estrutura
semacircntica mas com o mesmo ldquoefeito geral de sentido denotativordquo ndash modulaccedilatildeo) Como
foi antes apontado o verso mais longo permite maior ldquoespaccedilo de manobrardquo ao uso
desses recursos visando agrave realizaccedilatildeo de seus objetivos de traduccedilatildeo seja no plano de
expressatildeo ou de conteuacutedo
A identificaccedilatildeo de omissotildees por sua vez ndash importante por dizer respeito agrave
presenccedila ou ausecircncia de informaccedilatildeo potencialmente relevante agrave narrativa ndash pode indicar
que estas tambeacutem ocorrem de modo independente da extensatildeo dos versos observemos
sua existecircncia nos hexacircmetros de Nunes Chama a atenccedilatildeo de imediato a ausecircncia da
informaccedilatildeo relativa a (pro) (de προΐαψεν proiapsen) ou seja da prematuridade do
lanccedilamento dos heroacuteis ao Hades ou da juventude desses heroacuteis (no verso de Nunes haacute
apenas a afirmaccedilatildeo ldquoe de baixarem ao Hadesrdquo) Haacute outro evento a se destacar a
informaccedilatildeo relativa a ἰφθίμους (iphthiacutemous) foi substituiacuteda por uma informaccedilatildeo diversa
ndash o sentido denotativo foi modificado portanto O adjetivo ἰφθμος (iphthimos) (que no
verso aparece no acusativo plural) eacute assim definido pelo Liddell amp Scott ldquostout strong
stal wartrdquo (palavras agraves quais se atribuem no Houaiss os significados de forte resoluto
corajoso decidido etc) assim eacute pelo Isidro Pereira ldquoforte robusto generoso
valenterdquo e pelo Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquovigoroso forte robusto valente
corajoso valorosordquo O sentido predominante de ldquovalenterdquo tratando-se de jovens heroacuteis
natildeo pode ser apreendido dos versos de Nunes em seu lugar aparece a palavra
ldquoesclarecidordquo que para o Houaiss significa ldquodotado de saber de conhecimentos que
possui nobreza ilustrerdquo Embora se possa aproximar o conceito de ldquopossuidor de
nobrezardquo agrave valentia do heroacutei o sentido denotativo imediato da palavra eacute bem diverso
daquele do adjetivo grego Estes dois eventos demonstram que embora com maior
ldquoespaccedilo de manobrardquo estes versos de Nunes trazem omissatildeo relativamente importante
205
(tendo-se em conta o conceito grego de heroacutei) e uma substituiccedilatildeo que tambeacutem o eacute (pela
mesma razatildeo)
Se haacute a possibilidade de se identificar uma omissatildeo nos versos de Odorico
Mendes (relativa a ldquodesde que primeirordquo [apartaram-se em discoacuterdia]) natildeo se pode
atribuir a ela a mesma importacircncia pelo teor quase redundante da informaccedilatildeo
Vejamos agora o que se pode observar de funccedilatildeo poeacutetica da linguagem ou de
iconicidade perceptiacutevel nos versos
Canta-me a coacutelera ndash oacute deusa ndash funesta de Aquiles Pelida
causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
e de baixarem para o Hades as almas de heroacuteis numerosos
e esclarecidos ficando eles proacuteprios aos catildees atirados
e como pasto das aves Cumpriu-se de Zeus o desiacutegnio
desde o princiacutepio em que os dois em discoacuterdia ficaram cindidos
o de Atreu filho senhor dos guerreiros e Aquiles divino (7)
Qual dentre os deuses eternos foi causa de que eles brigassem
Na linha de leitura que percorremos com a traduccedilatildeo anteriormente vista
destacamos inicialmente as consoantes que vislumbramos como potenciais participantes
das relaccedilotildees entre som e sentido Marcamos tambeacutem com as sublinhas as tocircnicas do
hexacircmetro
Embora este natildeo seja o foco do procedimento adotado recorramos a alguma
quantificaccedilatildeo a fim de buscar possiacuteveis explicaccedilotildees para um dado de percepccedilatildeo de que
falaremos pouco adiante As repeticcedilotildees prosseguem em todos os versos somando 52
ocorrecircncias de oclusivas no total com presenccedila predominante do d (20 ocorrecircncias)
seguida da do k (15 ocorrecircncias) da do p (7 ocorrecircncias) etc A versatildeo de Odorico
por sua vez apresenta o total de 28 ocorrecircncias de oclusivas sendo 9 de d 6 de k 6
de t 3 de p etc Considerando-se a proporcionalidade de ocorrecircncias com o nuacutemero
de siacutelabas poeacuteticas de cada um dos conjuntos de versos observados (no caso de Odorico
6 versos com 10 siacutelabas cada = 60 siacutelabas no caso de Nunes 7 versos com 16 siacutelabas
cada) chegamos ao resultado de que para os versos de Nunes terem a mesma proporccedilatildeo
de ocorrecircncia de fricativas que a dos versos de Odorico deveratildeo contar com 522
siacutelabas Como vimos os versos de Nunes contam com 52 siacutelabas ou seja uma
206
ocorrecircncia de oclusivas proporcional agravequela apresentada pelos versos de Odorico
Tambeacutem os fonemas predominantes satildeo na ordem decrescente d e k com a
diferenccedila de que o t aparece na mesma quantidade do k
Havendo a mesma proporccedilatildeo de ocorrecircncia dessas consoantes entre ambas as
traduccedilotildees seraacute considerada pelo criteacuterio da quantidade a mesma possibilidade de efeito
aliterativo ligado agrave ideia de embate conforme a nossa atribuiccedilatildeo interpretativa No
entanto o efeito parece menos niacutetido natildeo obstante a subjetividade da percepccedilatildeo a
distribuiccedilatildeo das oclusivas parece tornaacute-las menos marcantes e assim a citada relaccedilatildeo
som-sentido parece mais remota como perspectiva de leitura Algumas hipoacuteteses podem
ser consideradas mencionamos trecircs a maior quantidade de palavras natildeo possibilita
efeito anaacutelogo ao daquele ocasionado por uma quantidade menor delas ainda que na
mesma proporccedilatildeo a presenccedila marcante dos acentos uniformemente distribuiacutedos faz
recair a atenccedilatildeo auditiva agraves proacuteprias tocircnicas e a fonemas outros em que as tocircnicas
recaem a narrativa mais extensa favorece conforme a suposiccedilatildeo jaacute mencionada a
aproximaccedilatildeo dos versos longos agrave prosa deslocando a atenccedilatildeo agrave narrativa em si e
dificultando a apreensatildeo de efeitos sonoros Estamos num terreno em que a tentativa de
objetividade para avaliaccedilatildeo de resultados pouco pode colaborar ao menos ateacute onde
posso entrever suas possibilidades a afericcedilatildeo de qualidades esteacuteticas escapa agrave
mensuraccedilatildeo inevitavelmente recaindo em constataccedilotildees de ordem subjetiva
compartilhadas ou natildeo por outros leitores
De todo modo alguns efeitos satildeo ressaltados pela leitura atenta a paronomaacutesia
em ldquode Zeus o desiacutegniordquo quase anagramaacutetica a sucessatildeo dos d na sequencia ldquoos dois
em discoacuterdia ficaram cindidosrdquo em que as posiccedilotildees do fonema parecem indicar a
proacutepria separaccedilatildeo convertendo-se suas ocorrecircncias em iacutendices da posiccedilatildeo dos
discordantes Efeitos poeacuteticos que resistem ao fluxo narrativo e agrave aparente diluiccedilatildeo das
reiteraccedilotildees focircnicas
Passemos a examinar a traduccedilatildeo de Haroldo de Campos com a relaccedilatildeo de
correspondecircncias entre as palavras usadas por Campos e as da ldquotraduccedilatildeo literalrdquo que
temos adotado como referecircncia
207
__________________________________________________________________________
De imediato sobressai no plano do conteuacutedo a variante relativa ao significado
de imperativo presente do verbo ndash(aeido ado) ao qual eacute
atribuiacutedo em primeiro lugar o sentido denotativo de ldquocantarrdquo ndash no entanto o Liddell amp
Scott registra aleacutem de ldquosingrdquo o significado de ldquochantrdquo que segundo o Houaiss pode
significar ldquocelebrar em versos ou cantordquo o Isidro Pereira por sua vez traz os
significados ldquocantar celebrar elogiarrdquo e o Dicionaacuterio grego-portuguecircs ldquocantar
celebrar cantar repetindo cantar refratildeo [etc]rdquo A opccedilatildeo de Campos eacute por ldquocelebrarrdquo
que permite ndash seratildeo feitas aqui diga-se observaccedilotildees de relaccedilotildees formais que podem
hipoteticamente ser determinantes nas escolhas do tradutor ndash dois tipos de ocorrecircncia
que seriam de interesse para o resultado de recriaccedilatildeo o primeiro a adequaccedilatildeo da
palavra ao esquema meacutetrico dodecassilaacutebico com a tocircnica da palavra ldquocelebrardquo
localizando-se na sexta siacutelaba do verso ou seja na posiccedilatildeo intermediaacuteria usual de pausa
(ou cesura) no dodecassiacutelabo segundo a repeticcedilatildeo de le (celebra do Peleio Aquiles)
208
em variantes aberta e fechadas Tambeacutem se nota a variaccedilatildeo dos significados comumente
atribuiacutedos a (oulomenen ndash conforme jaacute dito ldquoperdido arruinado
pernicioso funestordquo ndash Isidro Pereira) o tradutor prefere ldquoo irado desvariordquo
aparentemente ldquoafastando-se da letrardquo Entretanto eacute preciso considerar que o Liddell amp
Scott traz como referecircncia preliminar a seguinte indicaccedilatildeo para
(oulomenos) ldquoused as a term of abuserdquo (ldquousado como um termo de
abusordquo) o que sugere o ldquodesvariordquo na soluccedilatildeo de Campos (O adjetivo deriva-se do
verbo (ollumi ldquoto destroy make an end ofrdquo)) Uma hipoacutetese para a opccedilatildeo do
tradutor eacute a de que a palavra (oulomenen)manteacutem uma relaccedilatildeo
paronomaacutestica com (menin) lembrando que e
correspondem ambos a e em portuguecircs Ao utilizar ldquoo irado desvariordquo Campos inclui
a palavra ldquoirardquo por meio do adjetivo e a faz reverberar no substantivo numa disposiccedilatildeo
anagramaacutetica (desvario) criando uma dupla paronomaacutesia que pode associar-se na
leitura ao sentido de insistente persistente Um ganho portanto de iconizaccedilatildeo do
siacutembolo (na classificaccedilatildeo de Peirce um ldquolegissigno icocircnico remaacuteticordquo assim como
outros exemplos aqui dados) que permite a perspectiva de uma relaccedilatildeo som-sentido
Deve-se considerar ademais que a soluccedilatildeo adotada se adeacutequa agraves exigecircncias do padratildeo
meacutetrico com a tocircnica da palavra ldquodesvariordquo na posiccedilatildeo da cesura
Chama a atenccedilatildeo tambeacutem a ausecircncia (omissatildeo) do sentido de ldquojovemrdquo tal
como na traduccedilatildeo de Nunes A despreocupaccedilatildeo de manter presente esse significado
talvez se deva em ambos os casos agrave relativa obviedade da informaccedilatildeo pelas
caracteriacutesticas da cultura grega no caso de Odorico no entanto essa informaccedilatildeo eacute
mantida e portanto escolhida para permanecer Se poreacutem haacute tal omissatildeo na versatildeo de
Campos natildeo haacute aquela de Mendes ldquodesde que por primeiro a discoacuterdia []rdquo manteacutem a
ideia de ldquoprimeirordquo de anterioridade do desentendimento que o uacuteltimo desprezou O
verso seguinte por sua vez eacute traduccedilatildeo ldquoliteralrdquo do verso grego ldquoO Atreide chefe de
homens e o divino Aquilesrdquo por ldquoAtreides te aacutenaksaacutendron kai diacuteos Akhilleuacutesrdquo
Algumas preacutevias suposiccedilotildees satildeo portanto relativizadas neste breve conjunto de
versos todas as traduccedilotildees apresentam omissatildeo a versatildeo de Odorico natildeo apresenta mais
omissotildees que as demais Campos acomoda diante dessa possibilidade uma
correspondecircncia palavra-a-palavra em seu dodecassiacutelabo mantendo aleacutem do mais
proximidade sonora com o original (como na opccedilatildeo por ldquoatreiderdquo) As ideias de
concisatildeo e concentraccedilatildeo de efeitos em Odorico e em Campos correspondem ao que
209
ocorre neste trecho em Nunes os ldquoefeitosrdquo tecircm presenccedila anaacuteloga agraves versotildees dos demais
(embora natildeo se associem agrave siacutentese e possivelmente por isso natildeo parecem causar a
mesma impressatildeo de concentraccedilatildeo) Mas para se afirmar isso devemos conferir a
ocorrecircncia das consoantes (oclusivas) tomadas como referecircncia potencial da poeticidade
pela repeticcedilatildeo
A ira Deusa celebra do Peleio Aquiles
o irado desvario que aos Aqueus tantas penas
trouxe e incontaacuteveis almas arrojou no Hades
de valentes de heroacuteis espoacutelio para os catildees
pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus
desde que por primeiro a discoacuterdia apartou
o Atreide chefe de homens e o divino Aquiles
De novo quantificando para estabelecer referecircncias as opccedilotildees do tradutor
parecem coerentes com o referencial por ele expliacutecito da funccedilatildeo poeacutetica da linguagem
a frequecircncia das oclusivas eacute ligeiramente maior que a das demais versotildees (39
ocorrecircncias 15 a mais que as outras) como nos outros casos sua ocorrecircncia permite
engendramento de relaccedilotildees paradigmaacuteticas que compotildeem na leitura associaccedilotildees entre
som e sentido A destacar tambeacutem entre outros caminhos de identificaccedilatildeo
semelhanccedilas como a entre ldquopastordquo e ldquorapacesrdquo (que restringe o sentido como ldquoabutresrdquo
em Odorico) e toda a sequecircncia sonora desse verso
pasto de aves rapaces fez-se a lei de Zeus
E ainda a observar ldquoa irardquo ldquopeleiordquo e ldquopastordquo satildeo escolhas tambeacutem de
Odorico possiacutevel ldquocitaccedilatildeordquo do trabalho considerado referencial pelo tradutor
Faccedila-se a seguir a escansatildeo dos dodecassiacutelabos marcando-se as tocircnicas e a
pausa na sexta siacutelaba e registrando-se as tocircnicas e semitocircnicas de modo a evidenciar as
variaccedilotildees no esquema riacutetmico dos versos
A i ra Deu sa ce le bra do Pe lei o A qui les
210
o i ra do des va rio que aos A queus tan tas pe nas
trou xe e in con taacute veis al mas ar ro jou no Ha des
de va len tes de he roacuteis es poacute lio pa ra os catildees
pas to de a ves ra pa ces fez- se a lei de Zeus
des de que por pri mei ro a dis coacuter dia a par tou
o A trei de che fe de ho mens e o di vi no A qui les
Com o mesmo iniacutecio de Odorico o verso tambeacutem faz elisatildeo em ldquoA irardquo
encontro entre uma vogal aacutetona e uma tocircnica esse tipo de elisatildeo seraacute um recurso
comum em Campos assim como em Odorico um modo (jaacute referido) de ldquoganharrdquo
elementos por meio de sinalefa Eacute (como jaacute se mencionou) frequente na Iliacuteada de
Campos o uso de sineacuterese (ldquopassagem de um hiato no interior da palavra a ditongordquo ndash
Houaiss) como em ldquoDes pre zo es sa tua coacute le ra ca ni na As simrdquo (VIII
484) e de sineacutereses associadas a elisotildees como em ldquoNatildeo me im por ta tua coacute le
ra ain da que te lan cesrdquo (VIII 478) A esse respeito vejam-se como referecircncia
ilustrativa duas paacuteginas manuscritas por Haroldo de Campos contendo a escansatildeo de
versos do Canto XXIV da Iliacuteada198
198 Estas paacuteginas integraratildeo tambeacutem o mencionado livro Transcriaccedilatildeo em preparo
211
212
Os manuscritos permitem constatar que poeta de longa experiecircncia Haroldo de
Campos natildeo desprezou a escansatildeo anotada de versos talvez um registro de seus
criteacuterios de metrificaccedilatildeo como se pode ver a cesura na sexta siacutelaba eacute um deles Fica
evidente tambeacutem a flexibilidade no uso dos diferentes modos de sinalefa como se tem
213
observado vejam-se por exemplo os versos (nos quais anoto tocircnicas e semitocircnicas
evidenciando-se mais uma vez a variaccedilatildeo riacutetmica)
e a Heacutector um mortal [] (XXIV 58)199
que eacute ho ra de res ga tar seu fi lho ao cam po a queu (XXIV 146)
e troi a nas seios fun dos sem te mor e sem
Nesses versos destacam-se a elisatildeo em ldquoe a Heacutectorrdquo e em ldquoque eacute ho (ra)rdquo e a
sineacuterese em ldquoseiosrdquo exemplos da referida flexibilidade incorporada aos criteacuterios do
tradutor200
Sobre o dodecassiacutelabo de Campos diga-se que natildeo corresponde ao padratildeo do
alexandrino claacutessico tatildeo utilizado pelos poetas parnasianos embora o tradutor tenha
optado por manter preferencialmente a pausa na sexta siacutelaba201
(um dos criteacuterios
relativos ao referido alexandrino natildeo seguido pela escola romacircntica que reagia ldquocontra
o rigorismo antigo deslocando muitas vezes a cesura central para outro ponto e fazendo
largo emprego do cavalgamentordquo202
) Campos coerentemente agrave composiccedilatildeo eacutepica (que
envolve a narrativa) emprega com frequecircncia o cavalgamento sem contudo abdicar da
cesura claacutessica Sobre os demais criteacuterios que definiriam o padratildeo claacutessico leia-se a
seguinte citaccedilatildeo do parnasiano Olavo Bilac sobre o verso ldquode doze siacutelabas ou
alexandrinordquo
Este verso compotildee-se geralmente de dois versos de seis siacutelabas poreacutem eacute
indispensaacutevel observar que dois simples versos de seis siacutelabas sem sempre fazem
um alexandrino perfeito [] A lei orgacircnica do alexandrino pode ser expressa em
dois artigos 1o quando a uacuteltima palavra do primeiro verso de seis siacutelabas eacute grave a
199 O verso que consta no manuscrito foi posteriormente modificado pelo tradutor aparece assim na
ediccedilatildeo da Iliacuteada de Homero ldquoe a Heacutector Mortal em peito de mulher mamourdquo Op cit vol II p 443 200
Faccedila-se tambeacutem uma observaccedilatildeo de outro teor o tradutor indica a repeticcedilatildeo para o verso 186 do
verso 157 do mesmo canto tais versos satildeo tambeacutem iguais no texto grego 201 Relembre-se a seguinte afirmaccedilatildeo do tradutor ldquo[] recorri ao metro dodecassiacutelabo (acentuado na
sexta siacutelaba ou mais raramente na quarta oitava e deacutecima-segunda)rdquo (1994 13) 202 ALI Said Versificaccedilatildeo portuguesa Satildeo Paulo Edusp 2006 p 108
214
primeira palavra do segundo deve comeccedilar por uma vogal ou por um h 2o a uacuteltima
palavra do primeiro verso nunca pode ser esdruacutexula (1910 68)
Bilac segue preceitos definidos por A F de Castilho em seu jaacute citado Tratado
de metrificaccedilatildeo sobre tais regras leia-se o que dizem Adriano L Drummond e J
Ameacuterico Miranda
Na concepccedilatildeo de Antocircnio Feliciano de Castilho soacute eacute alexandrino o verso que
conta doze siacutelabas de ponta a ponta ateacute a uacuteltima tocircnica O poeta portuguecircs
considerava ainda pelo padratildeo agudo de contagem que propunha verso de doze
siacutelabas apenas aquele que se compusesse de dois versos de seis siacutelabas Entretanto
havia restriccedilotildees a essa foacutermula o primeiro hemistiacutequio deveria ser agudo no caso
de ser grave o primeiro hemistiacutequio deveria terminar por vogal e o segundo
iniciar-se por vogal ou por ldquohrdquo de modo que a siacutelaba final do primeiro hemistiacutequio
se absorvesse por sinalefa na primeira siacutelaba do segundo Preenchidas essas
exigecircncias conforme os moldes da prescriccedilatildeo castilhiana a medida do verso
resulta invariavelmente em doze siacutelabas Denomina-se esse verso de doze siacutelabas
de alexandrino francecircs203
Afirma sobre o alexandrino e em defesa de seu uso o proacuteprio Castilho
Ao verso de doze siacutelabas chamam alexandrino e tambeacutem francecircs [] entre os
franceses eacute ele o heroacuteico como o de dez siacutelabas o tem sido em Portugal Castela e
Itaacutelia como entre os Latinos e os Gregos o fora o hexacircmetro [] Surda e
antimusical a sua lingua mas necessitando em poesia de uma medida que por sua
extensatildeo abrangesse maior suma de ideacuteas somaram dois versos de pausas assaz
constantes para a conseguirem se o verso heroacuteico se partisse como o nosso em
porccedilotildees deseguais deixaria de ser reconheciacutevel sem passar a ser prosa deixaria de
ser verso
Natildeo seraacute faacutecil atinar com a razatildeo porque um verso mais espaccediloso que todos os
outros por consequecircncia mais capaz de pensamento e com uma particcedilatildeo simeacutetrica
203 O trecho integra o artigo ldquoO alexandrino portuguecircsrdquo de Adriano Lima Drummond e Joseacute Ameacuterico
Miranda in O eixo e a roda Revista de Literatura Brasileira vol 14 ndash Dossiecirc Literatura Brasileira do
final do seacuteculo XIX Belo Horizonte UFMG 2007 pp 15-28
215
o que para o espiacuterito de quem os faz e para o agrado de quem os lecirc eacute ainda uma
vantagem tem sido ateacute hoje tatildeo escassamente cultivado em nossa liacutengua204
Acerca do tema diz ainda Castilho
Depois que noacutes por inteiramente convictos do preacutestimo e das excelecircncias dos
alexandrinos nos entregamos desenganada e abertamente ao seu granjeio e
sucessivo aperfeiccediloamento em portuguecircs muitos dos nossos mais bem nascidos
poetas o tomaram tambeacutem a si e o tecircm jaacute na verdade subido a grande apuro sendo
jaacute hoje faacutecil prever que dentro em pouco este metro que tanto se aconchega agrave
elegacircncia da frase e do estilo haacute de pleitear ousadamente preferecircncias ao nosso
velho heroacuteico apesar da prescriccedilatildeo da sua posse ateacute o deixar afinal natildeo dizemos
destruiacutedo nem o desejamos mas quando menos suplantado205
Como se pode verificar nos versos de Haroldo de Campos aqui citados uma das
regras relativas ao alexandrino (o primeiro dos ldquoartigosrdquo mencionados por Bilac) nem
sempre eacute seguida ou seja natildeo haacute neles a preocupaccedilatildeo de que a siacutelaba seguinte a uma
palavra paroxiacutetona no final do primeiro hemistiacutequio ser sucedida por uma vogal ou h ldquoe
troi a nas seios fun dos sem te mor e semrdquo ou ldquoA i ra Deu sa ce
le bra do Pe lei o A qui lesrdquo
Como se apontou os versos de Campos transitam por diferentes esquemas
permitidos pelo dodecassiacutelabo Sobre os esquemas baacutesicos do alexandrino afirma Said
Ali que ldquoo movimento riacutetmico ateacute a uacuteltima tocircnica obedece em qualquer dos
hemistiacutequios a um destes quatro esquemasrdquo
Forma-se o alexandrino quer pela repeticcedilatildeo de um destes tipos quer pela
combinaccedilatildeo de dois diferentes206
204 CASTILHO A F op cit 1874 p 50 205 Id p 52 206 ALI Said op cit p 108
216
Rogeacuterio Chociay identifica as seguintes ldquopossibilidades acentuais do
alexandrino claacutessicordquo ldquoconsiderando-se a contiguidade dos hemistiacutequiosrdquo207
1-3-6-8-12 2-4-6-8-12 3-6-8-12
1-3-6-9-12 2-4-6-9-12 3-6-9-12
1-3-6-10-12 2-4-6-10-12 3-6-10-12
1-3-6-8-10-12 2-4-6-8-10-12 3-6-8-10-12
1-4-6-8-12 2-6-8-12 4-6-8-12
1-4-6-9-12 2-6-9-12 4-6-9-12
1-4-6-10-12 2-6-10-12 4-6-10-12
1-4-6-8-10-12 2-6-8-10-12 4-6-8-10-12
Como pudemos constatar nos poucos exemplos considerando-se tocircnicas e
semitocircnicas ocorrem em Campos esquemas como 1-4-6-8-10-12 1-3-6-8-10-12 etc
Algo a comentar complementariamente o verso seguinte aos vistos ou seja o
oitavo da Iliacuteada
Satildeo as seguintes as soluccedilotildees dos diferentes tradutores
Odorico Mendes
Nume haacute que os malquistasse O que o Supremo
[]
Carlos Alberto Nunes
Qual dentre os deuses eternos foi causa de que eles brigassem
Haroldo de Campos
Que Deus posto entre ambos provocou a rixa
207 CHOCIAY Rogeacuterio Teoria do verso Rio de Janeiro Satildeo Paulo McGraw-Hill 1974 p 128
217
A registrar a extrema concisatildeo de Odorico com a comunicaccedilatildeo do sentido geral
do verso grego no primeiro segmento do decassiacutelabo heroacuteico ou seja ateacute a sexta siacutelaba
tocircnica a coerecircncia de Nunes com seu propoacutesito narrativo afim com a extensatildeo e a
explicitaccedilatildeo e especialmente a providecircncia de Campos em valer-se da disposiccedilatildeo dos
elementos do verso de maneira a criar a indicialidade da posiccedilatildeo da sequecircncia de
palavras referentes agrave divindade entre viacutergulas e entre dois extremos do verso de modo
anaacutelogo ao que seria a posiccedilatildeo no espaccedilo extriacutenseco ao poema ldquoposto entre ambosrdquo
passa a funcionar tambeacutem como um hipoiacutecone da divindade
Tomaremos como objeto de estudo agora fragmentos da Odisseia Antes no
entanto de abordarmos os poucos versos escolhidos apresentemos sucintamente o
argumento do poema
A Odisseia composta de 24 cantos eacute dedicada ao retorno de Odisseu a sua terra
Iacutetaca apoacutes sua participaccedilatildeo na guerra de Troacuteia Durante dez anos (apoacutes ter estado
tambeacutem por uma deacutecada na guerra) o heroacutei astucioso afrontou perigos na terra e no
mar antes de poder chegar a seu reino O poema compotildee-se de trecircs partes
1 A ldquoTelemaquiardquo (cantos I-IV) Telecircmaco parte agrave procura do pai diante
da situaccedilatildeo em que se encontra sua matildee Peneacutelope devido agrave ausecircncia de seu pai
pretendentes a sua matildeo usurpam o palaacutecio real
2 A ldquovolta de Odisseurdquo (cantos V-VIII) recolhido apoacutes um naufraacutegio pelo
rei dos feaacutecios Alciacutenoo ele relata suas peregrinaccedilotildees (cantos IX-XIII) que o levaram
ateacute os Lotoacutefagos os Ciclopes a feiticeira Circe o Hades o mar das Sereias e por fim a
ninfa Calipso
3 A ldquovinganccedila de Odisseurdquo (cantos XIV-XXIV) de volta a Iacutetaca o heroacutei se
disfarccedila de mendigo e chega ao palaacutecio invadido pelos pretendentes agrave matildeo de sua
esposa ela poreacutem declara que soacute se casaraacute com aquele que conseguir manejar o arco
de Odisseu ele entatildeo se revela e massacra os pretendentes auxiliado por Telecircmaco
Tambeacutem eacute apresentada a seguir uma adaptaccedilatildeo do resumo claacutessico do Canto I
a partir da ediccedilatildeo da Odisseia de Victor Berard (Les Belles Lettres)208
208 A mesma observaccedilatildeo se aplica a outras sinopses de cantos incluiacutedas neste trabalho
218
Canto I
Assembleia dos Deuses Conselhos de Atena a Telecircmaco Festim dos
Pretendentes
A Assembleia dos Deuses reuacutene-se e decide pelo o envio de Odisseu a Iacutetacaa
partirda ilha de Calipso Atena vai para Iacutetaca onde se apresenta a Telecircmaco
fazendo-se semelhante a Mentes rei dos Taacutefios Haacute uma conversa em que Atena
aconselha Telecircmaco a procurar por seu pai primeiramente em Pilo cidade de
Nestor depois em Esparta cidade de Menelau Ao partir ela daacute sinais de que eacute a
deusa Atena Acontece nesse iacutenterim a Festa dos Pretendentes
Segue-se o texto grego dos primeiros cinco versos do canto acompanhado de uma
ldquotraduccedilatildeo literalrdquo agrave semelhanccedila das apresentadas anteriormente
Odisseia I 1-5
ἄνδραμοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ
homem cantai-me Musa multiacutevioastuto que muitiacutessimas vezes
πλάγχθη ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν
vagou porque de Troia sagrado baluarte destruiu
πολλῶν δ᾽ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω
de muitos homens viu cidades e soube pensamento
πολλὰ δ᾽ὅ γ᾽ἐν πόντῳ πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν
e muitas ele no mar sofreu dores seu no acircnimo
(e no mar muitas dores sofreu ele em seu acircnimo)
ἀρνύμενος ἥν τεψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων
tentando salvar sua vida e retorno de companheiros
219
Leiamos as recriaccedilotildees dos diferentes tradutores
Odorico Mendes
Canta oacute Musa o varatildeo que astucioso
Rasa Iacutelion santa errou de clima em clima
Viu de muitas naccedilotildees costumes vaacuterios
Mil transes padeceu no equoacutereo ponto
Por segurar a vida e aos seus a volta
[]
Carlos Alberto Nunes
Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito
peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia
muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes
como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros da alma
para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta
Haroldo de Campos
Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta
do que perambulou por muitas partes desde
que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo
de povos e de poacutelis viu e desvendou
padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago
para salvar-se e garantir a volta dos seus209
Verifiquemos uma relaccedilatildeo de correspondecircncias entre os elementos da ldquotraduccedilatildeo
literalrdquo e os da traduccedilatildeo de Odorico Mendes com o referencial do acircmbito semacircntico
209 Fragmentos de cantos da Odisseia traduzidos por Haroldo de Campos foram reunidos no livro Campos H de Odisseia de Homero ndash Fragmentos Organizaccedilatildeo Ivan de Campos e Marcelo Taacutepia
Apresentaccedilatildeo Trajano Vieira Satildeo Paulo Olavobraacutes 2006 Na ediccedilatildeo consta relativamente ao fragmento
do Canto I (versos 1-37) a seguinte nota dos organizadores ldquoProvavelmente Haroldo de Campos natildeo
considerasse esta uma versatildeo definitiva de sua traduccedilatildeo da abertura da Odisseia a julgar pelos
manuscritos que deixou em que os versos iniciais do poema homeacuterico recebem outras formulaccedilotildees Feito
o registro consideramos mesmo assim interessante a publicaccedilatildeo do texto nesta oportunidaderdquo (p 9)
220
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Valendo-se basicamente do recurso da modulaccedilatildeo como se pode ver ndash e natildeo eacute
penso necessaacuterio explicitar detalhes do procedimento ndash o texto de Odorico daacute conta do
plano do conteuacutedo entendido como a comunicaccedilatildeo ldquoessencialrdquo do sentido depreendido
dos versos gregos Com suas habituais paraacutefrases atua de modo a recriar a mensagem
coerentemente a suas convicccedilotildees esteacuteticas e agravequelas que orientam sua escolha
vocabular inseridas em sua eacutepoca e em seu contexto esteacutetico-literaacuterio permanecendo
no campo semacircntico do original Diversos elementos podem ser destacados como a
opccedilatildeo por ldquotranserdquo para designar as ldquodores em seu acircnimordquo para a palavra escolhida o
Houaiss traz inicialmente os significados de ldquoestado de afliccedilatildeo anguacutestiardquo ou a
utilizaccedilatildeo de ldquocostumesrdquo para fazer corresponder a lugares (cidades) e a pensamentos
simultaneamente ou ldquorasa Iacutelion santardquo referindo-se agrave destruiccedilatildeo (rasa ldquoarrasardquo ndash
Houaiss) do sagrado baluarte (fortaleza praccedila forte) de Troacuteia (Iacutelion ldquoantigo nome de
Troacuteia []rdquo ndash Isidro Pereira) Siacutentese radical em parte ditada pelo metro adotado
associada agrave procura de manutenccedilatildeo do que se pode considerar o conjunto ldquofundamentalrdquo
de informaccedilotildees propiciadas pelos versos Nestes cinco primeiros versos Odorico
manteacutem a correspondecircncia quase verso a verso e portanto a mesma quantidade de
221
linhas diminuiraacute contudo um verso jaacute no conjunto dos dez primeiros versos do texto
grego fazendo corresponder a sua nona linha agrave deacutecima de Homero A fim apenas de
propiciar esta verificaccedilatildeo incluirei a seguir os versos de nuacutemeros 6 a 10 no original
(acompanhados da ldquotraduccedilatildeo literalrdquo) e os que a ele correspondem de Odorico de
nuacutemeros 6 a 9 evidenciando o processo de siacutentese que decorria do posicionamento do
tradutor e que como jaacute se mencionou o torna ndash embora circunscrito a periacuteodo que vai
do iniacutecio a pouco aleacutem de meados do seacuteculo XIX ndash identificaacutevel com as postulaccedilotildees
modernas da condensaccedilatildeo como uma das propriedades da linguagem poeacutetica
ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ
mas nem assim companheiros resgatou desejando emboraainda que
αὐτῶν γὰρ σφετέρῃσιν ἀτασθαλίῃσιν ὄλοντο
deles mesmos (pois) proacutepria por loucuraestultiacutecia pereceram
(pois pereceram por sua proacutepria loucura)
νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο
neacutescios que vacas de Hiperiocircnio Sol (Heacutelio)
ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ
devoravam e ele lhes arrebatou do retorno dia
(e ele lhes arrebatou o dia do retorno)
τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν (10)
disso de alguma parte Deusa filha de Zeus diz tambeacutem a noacutes
Baldo afatilde Pereceram tendo insanos
Ao claro Hiperiocircnio os bois comido
Que natildeo quis para a paacutetria alumiaacute-los
Tudo oacute prole Dial me aponta e lembra (9)
222
ldquoProle dialrdquo comente-se alude agrave Deusa agrave Musa descendente de Zeus provindo
a palavra ldquodialrdquo do vocaacutebulo (Di) ldquoZeusrdquo em grego
Vejamos em semelhante estabelecimento de correspondecircncias a traduccedilatildeo de
Carlos Alberto Nunes
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Como se pode constatar a simples leitura comparativa a recriaccedilatildeo de Nunes
pode ser encarada como uma possiacutevel traduccedilatildeo ldquoliteralrdquo do texto grego natildeo omitindo
na passagem qualquer de seus elementos As soluccedilotildees vocabulares se datildeo de modo
coerente a seus procedimentos mais afeitos agrave anaacutelise ao resultado explicitador do que agrave
siacutentese adequando-se agraves necessidades ditada pelo esquema riacutetmico-meacutetrico do
hexacircmetro Natildeo se observa neste fragmento tambeacutem qualquer acreacutescimo
223
Apresente-se por fim a relaccedilatildeo de correspondecircncias estabelecidas pela traduccedilatildeo
de Haroldo de Campos
______________________________________________________________________
Conforme se pode verificar o texto de Campos permanece como os demais no
campo de sentido do texto grego empregando o recurso da modulaccedilatildeo nota-se a
transformaccedilatildeo da referecircncia homeacuterica agrave destruiccedilatildeo do ldquosagrado baluarterdquo ou sagrada
fortaleza de Troacuteia em saque a ldquoTroacuteia urbe sagradardquo coerente agrave visatildeo do tradutor como
sendo o plano semacircntico uma ldquobaliza demarcatoacuteriardquo para a tarefa da traduccedilatildeo neste
caso inclui-se um sentido explicitador do teor da destruiccedilatildeo referida nos versos de
Homero Os dodecassiacutelabos da recriaccedilatildeo natildeo trazem nesta passagem omissotildees ou
acreacutescimos A destacar a recriaccedilatildeo (por modo usual nos procedimentos do tradutor agrave
semelhanccedila daqueles praticados por Odorico Mendes) do epiacuteteto de Odisseu que
consiste em palavra criada a partir do termo grego utilizando-se para tanto neste caso
o mesmo antepositivo ldquopolirdquo ldquopoliengenhosordquo por ldquopolyacutetroponrdquo
Diga-se que curiosamente a traduccedilatildeo de Campos relativa aos cinco primeiros
versos do texto homeacuterico vale-se de seis versos para abranger o campo de sentido
224
daqueles como se pode ver no conjunto antes apresentado Contudo no conjunto dos
dez primeiros versos do Canto I a ldquotranscriaccedilatildeordquo realizada faraacute manter-se a
correspondecircncia numeacuterica conforme mostra a leitura de seus versos de nuacutemeros 7 a 10
incluiacutedos a seguir
Aos companheiros natildeo logrou poupaacute-los mesmo
querendo Por si proacuteprios perderam-se Loucos
predando os bois do Sol do retorno privaram-se
Comeccedila de onde queiras Deusa a nos contar (10)
Note-se que o deacutecimo verso corresponde de modo quase ldquoliteralrdquo ao verso grego
de mesmo nuacutemero (ldquodisso de alguma parte Deusa filha de Zeus diz tambeacutem a noacutesrdquo)
eliminando-se apenas a informaccedilatildeo (com valor de epiacuteteto) referente agrave Musa (ldquofilha de
Zeusrdquo)
Antes de prosseguirmos a anaacutelise com observaccedilotildees de ordem formal relativas a
repeticcedilotildees identificaacuteveis no fragmento vejamos ndash para que natildeo seja excluiacuteda esta
referecircncia ndash os versos de nuacutemeros 6 a 10 na traduccedilatildeo de Carlos A Nunes
Os companheiros poreacutem natildeo salvou muito embora o tentasse
pois pereceram por culpa das proacuteprias accedilotildees insensatas
Loucos que as vacas sagradas do Sol hiperiocircnio comeram
Ele por isso do dia feliz os privou do retorno
Deusa nascida de Zeus de algum ponto nos conta o que queiras
Manteacutem-se na sequecircncia conforme eacute possiacutevel verificar a relaccedilatildeo praticamente
literal com o texto grego o deacutecimo inclui a informaccedilatildeo referente agrave Deusa embora
transformada Haacute a informaccedilatildeo cabiacutevel por deduccedilatildeo a partir do verso homeacuterico relativa
agrave vontada da Musa (agrave semelhanccedila do que escreveu Haroldo de Campos) permanecendo
portanto no campo semacircntico do original
Continuemos com breves comentaacuterios acerca do plano esteacutetico dos versos Para
tanto segue-se inicialmente o conjunto de versos gregos acompanhados de sua
transliteraccedilatildeo
225
ἄνδραμοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ
aacutendramoi eacutennepe mousa polyacutetropon hos mala pollagrave
πλάγχθη ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν
plaacutenkhthe epei Troiacutees ierograven ptoliacuteethron eacutenersen
πολλῶν δ᾽ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω
pollocircn drsquoanthropon iacuteden aacutestea kai noacuteon eacutegno
πολλὰ δ᾽ὅ γ᾽ἐν πόντῳ πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν
pollagrave drsquooacute grsquoem poacutentoi paacutethen aacutelgea on katagrave thumoacuten
ἀρνύμενος ἥν τεψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων
arnuacutemenos em tepsykhegraven kai noacuteston etaiacuteron
Localizaremos nossa anaacutelise num acircmbito decorrente de uma hipoacutetese de leitura
sustentada pela observaccedilatildeo de repeticcedilotildees focircnicas nos cinco primeiros versos homeacutericos
(por vezes aproximadas por semelhanccedila agrave maneira do que jaacute se fez neste estudo)
Destaquem-se com grifos as ocorrecircncias (entre outras de possiacutevel identificaccedilatildeo) que
tomaremos por base para a discussatildeo
aacutendramoi eacutennepe mousa polyacutetropon hos mala pollagrave
plaacutenkhthe epei Troiacutees ierograven ptoliacuteethron eacutenersen
pollocircn drsquoanthropon iacuteden aacutestea kai noacuteon eacutegno
pollagrave drsquooacute grsquoem poacutentoi paacutethen aacutelgea on katagrave thumoacuten
arnuacutemenos em tepsykhegraven kai noacuteston etaiacuteron
A hipoacutetese de leitura fundamentada na projeccedilatildeo paradigmaacutetica sobre o
sintagma eacute de que se constroacutei no texto uma teia de correspondecircncias entre elementos
contidos no epiacuteteto do heroacutei tecendo-se sua erracircncia por entre os versos As
manifestaccedilotildees de primeiridade efeitos sugestivos de marcaccedilatildeo riacutetmico-sonora
permitem a composiccedilatildeo da figura da erracircncia que em niacutevel de secundidade pode
226
corresponder a lugares pelos quais Odisseu teria peregrinado no anuacutencio de sua
muacuteltipla aventura
Relendo-se as traduccedilotildees em questatildeo agrave luz desta hipoacutetese conclui-se que a
ldquotranscriaccedilatildeordquo de Haroldo de Campos permite a observaccedilatildeo de teia comparaacutevel de
elementos icocircnicos assim como da indicialidade das posiccedilotildees do heroacutei errante
Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta
do que perambulou por muitas partes desde
que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo
de povos e de poacutelis viu e desvendou
padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago
para salvar-se e garantir a volta dos seus
Se aleacutem das ocorrecircncias (aproximativas) no plano focircnico destacarmos as
ocorrecircncias de notaccedilatildeo ou seja pela semelhanccedila graacutefica ampliaremos a teia de
correspondecircncias
Do homem poliengenhoso Musa daacute-me conta
do que perambulou por muitas partes desde
que saqueou Troacuteia urbe sagrada Profusatildeo
de povos e de poacutelis viu e desvendou
padeceu profusatildeo de penas sobre o peacutelago
para salvar-se e garantir a volta dos seus
227
Isoladas assim ficam as ocorrecircncias nas duas versotildees de destaque
Tomaremos como objeto de anaacutelise por fim um fragmento do Canto XI da
Odisseia Vejamos preambularmente uma sinopse do canto
Canto XI
Consulta aos mortos
[Apoacutes a morte de Elpenor (que cai do terraccedilo na casa de Circe) relatada no final
do Canto X] Odisseu conta como a conselho de Circe desce ao Hades a fim de
consultar o adivinho tebano Tireacutesias Encontra primeiro a alma de Elpenor que
reclama a proacutepria sepultura ouve depois de Tireacutesias o modo de salvar a si
mesmo e a seus companheiros Conversa com diversos heroacuteis e heroiacutenas com a
matildee que lhe daacute notiacutecias de Iacutetaca e com alguns da guerra de Troacuteia aleacutem de alguns
criminosos
228
Seguem-se os primeiros oito versos do canto em grego acompanhados de sua
ldquotraduccedilatildeo literalrdquo ao portuguecircs
Odisseia XI 1-8
lsquoαὐτὰρ ἐπεί ῥ᾽ ἐπὶ νῆα κατήλθομεν ἠδὲ θάλασσαν
Depois quando ateacute o navio descemos e o mar
νῆα μὲν ἂρ πάμπρωτον ἐρύσσαμεν εἰς ἅλα δῖαν
o navio primeiro puxamos ao mar divino
ἐν δ᾽ἱστὸν τιθέμεσθα καὶ ἱστία νηὶ μελαίνῃ
no mastro pusemos e velas navio negro
ἐν δὲ τὰ μῆλα λαβόντες ἐβήσαμεν ἂν δὲ καὶ αὐτοὶ
dentro as ovelhas tendo pegado fomos e noacutes mesmos
βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες
fomos (subimos) aflitos abundantes laacutegrimas vertendo
ἡμῖν δ᾽αὖ κατόπισθε νεὸς κυανοπρῴροιο
nosso agrave popa de navio de escura proa
ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον
favoraacutevel vento envia a inflar velas bom companheiro
Κίρκη εὐπλόκαμος δεινὴ θεὸς αὐδήεσσα
Circe de belas tranccedilas terriacutevel Deusa de voz harmoniosa (canora)
229
Leiam-se consecutivamente as traduccedilotildees do fragmento ao portuguecircs por
Odorico Nunes e Campos
Odorico Mendes
Deitado ao mar divino o fresco lenho
Dentro as hoacutestias o mastro e o pano armados
Em tristiacutessimas laacutegrimas partimos
Bom soacutecio enfuna e sopra o vento em popa
Que invoca a deusa de anelado Crino (8)
Carlos Alberto Nunes
Quando chegamos agrave beira do mar e ao navio ligeiro
antes de tudo arrastando-o o metemos nas ondas divinas
mastro depois levantamos e velas no negro navio
e ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimos
a derramar quentes laacutegrimas entre suspiros magoados
Por traacutes de nosso navio de proa anegrada mandou-nos
Circe de tranccedilas bem-feitas canora e terriacutevel deidade
Vento propiacutecio que as velas enfuna excelente companha (8)
Haroldo de Campos
Foi assim que baixamos para a nau mirando
o mar antes poreacutem lanccedilamos o navio
ao sacro sal aquoso o mastro e as velas todas
fazendo arborescer no barco escuro entatildeo
embarcamos carneiros e ovelhas Subimos
a bordo coraccedilotildees-cortados todo-laacutegrimas
Um vento enfuna-velas favoraacutevel oacutetimo
230
soacutecio a deusa de belas-tranccedilas poderosa
claravoz Circe envia-nos impulso agrave nau
de proa azul-cianuro Apoacutes os faticosos (10)
[]
Observemos a relaccedilatildeo de correspondecircncias entre a recriaccedilatildeo de Odorico e a
ldquotraduccedilatildeo literalrdquo do grego
O texto de Odorico relativo agrave sequecircncia inicial do Canto XI eacute um exemplo
niacutetido de sua orientaccedilatildeo para a siacutentese as informaccedilotildees contidas nos oito primeiros
versos gregos satildeo trabalhadas pelo tradutor em apenas cinco O modo de composiccedilatildeo
evidencia pela radicalidade o teor paroacutedico da recriaccedilatildeo o objetivo parece mesmo ser
o de comunicar a informaccedilatildeo ldquoessencialrdquo agrave narrativa com a maior economia possiacutevel de
elementos Ao adotar por exemplo o particiacutepio para referir-se a uma accedilatildeo jaacute executada
ndash ldquodeitado o fresco lenhordquo ndash o tradutor vale-se de um recurso para dispensar a accedilatildeo
inicial descrita no poema homeacuterico meio para colocar o navio ao mar de modo
anaacutelogo utiliza a sequecircncia ldquodentro as hoacutestiasrdquo para comunicar que as ovelhas ou reses
231
(ldquohoacutestiardquo tem o significado de ldquoviacutetima expiatoacuteriardquo) foram levadas a bordo (incluindo
assim a denotaccedilatildeo da finalidade de uso das reses) Omitem-se a referecircncia agrave cor escura
do barco a qualificaccedilatildeo de ldquofavoraacutevelrdquo ao vento (informaccedilatildeo que se pode considerar
impliacutecita na seguinte ou seja de que o vento ldquoenfuna e soprardquo) o nome de Circe (que
apareceraacute no 17ordm verso) e parte de seus epiacutetetos (terriacutevel canora) Embora seja sempre
relativa a secundarizaccedilatildeo da importacircncia de sentidos atribuiacuteveis ao texto pode-se
considerar que tais informaccedilotildees natildeo sejam indispensaacuteveis ao plano de conteuacutedo do
poema Sobre a fatura poeacutetica a evidente e notaacutevel autonomia do conjunto com sua
coerecircncia condensante assentada sobre os decassiacutelabos e sua forte sonoridade como
seraacute referido adiante
Vejamos as correspondecircncias relativas agrave traduccedilatildeo de C A Nunes
Marcado por algum acreacutescimo associado agrave modulaccedilatildeo o texto de Nunes inclui
possiacuteveis composiccedilotildees semacircnticas de elementos decorrentes do sentido depreendido do
texto grego como ldquoentre suspiros magoadosrdquo referecircncia contiacutegua a ldquoaflitosrdquo A mesma
232
soluccedilatildeo diga-se encontra-se em sua traduccedilatildeo do final do Canto X no qual haacute verso
quase idecircntico no poema grego alterando-se apenas o verbo de sentido anaacutelogo
(baiacuteno210
no Canto XI eicircmi no canto X) do verso 572 desse canto mencione-se
tambeacutem Nunes colheraacute uma informaccedilatildeo que seraacute incluiacuteda na traduccedilatildeo do iniacutecio do
canto XI (vejam-se em seguida o referido trecho homeacuterico com a ldquotraduccedilatildeo literalrdquo de
apenas dois versos em questatildeo)
A traduccedilatildeo de Nunes para os versos 570 e 572 eacute ldquoa derramar quentes laacutegrimas
entre suspiros magoadosrdquo e ldquotinha amarrado um carneiro e tambeacutem uma ovelha bem
negrardquo (2001 188) O tradutor segue a repeticcedilatildeo do verso em grego repetindo
igualmente o seu e utiliza a informaccedilatildeo das duas reses na composiccedilatildeo do verso 4 do
Canto XI ldquoe ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimosrdquo ndash a inclusatildeo da
palavra ldquoambasrdquo ndash que natildeo se apoacuteia no proacuteprio verso traduzido pois este traz em grego
o artigo e o substantivo no plural) permitiu aleacutem da referecircncia ao canto anterior211
a
perfeita acomodaccedilatildeo do hexacircmetro
Coerentemente a um projeto mais afeito agrave anaacutelise que agrave siacutentese a traduccedilatildeo natildeo
traz omissotildees
Segue-se o quadro de correspondecircncias referentes agrave traduccedilatildeo de H de Campos
210O Dicionaacuterio grego-portuguecircs (Satildeo Paulo Ateliecirc 2006-2010 5 volumes) traz para (baiacuteno) os
sentidos de ldquodar um passo andar colocar o peacute colocar-se ir descer subir colocar os peacutes para
avanccedilar ir embora partir morrer passar etcrdquo E para (eicircmi) ldquoir [] ir a dirigir-se a ir por
percorrer seguir o caminho percorrer etcrdquo 211 O tradutor supotildee serem as reses deixadas presas por Circe as uacutenicas a serem embarcadas cria-se uma
coerecircncia natildeo necessariamente presente no poema homeacuterico
233
______________________________________________________________________
Tambeacutem de maneira coerente com sua concepccedilatildeo de ldquocanto paralelordquo H de
Campos compotildee versos que envolvem o sentido geral ou ldquoessencialrdquo (para a narrativa)
do texto grego sem que se mostre pretensatildeo de correspondecircncia semacircntica direta Nesta
sequecircncia o ldquoconteuacutedordquo dos oito primeiros versos homeacutericos eacute trabalhado em dez
versos pelo tradutor natildeo havendo portanto correspondecircncia verso a verso ao longo do
fragmento do Canto XI traduzido por Campos no entanto ndash que vai ateacute o verso 137 ndash a
sequecircncia ajusta-se de modo a reinstalar a correspondecircncia
O primeiro verso introduz de outro modo a narraccedilatildeo com eficiecircncia anaacuteloga (em
vez de ldquodepois quandordquo usa-se ldquofoi assim querdquo) acresce-se a palavra ldquoaquosordquo a
ldquosacro marrdquo (als em grego ndash que aparece na forma do acusativo ala ndash designa o mar
assim como ldquoonda salgadardquo212
) um modo de distinguir da primeira referecircncia a mar
(thaacutelassa) cria-se uma imagem sugestiva ldquofazendo arborescer no barco escurordquo (a
212Dicionaacuterio grego-portuguecircs (2006-2010)
234
expressatildeo aleacutem do mais como veremos logo adiante teria funccedilatildeo sonora) O uso de
ldquocarneiros e ovelhasrdquo desmembra o sentido de ldquoovelhasrdquo ou ldquoresesrdquo em informaccedilatildeo
que diferentemente de C A Nunes natildeo supotildee os dois animais presenteados por Circe
como os uacutenicos a embarcarem ou natildeo considera o final do canto anterior ou natildeo se
baseia em suposta coerecircncia do texto grego o ldquofuncionamentordquo do conjunto de versos
sua elaboraccedilatildeo esteacutetica com base nas repeticcedilotildees focircnicas parece nortear as escolhas
como se prevecirc pela proposiccedilatildeo da ldquofidelidade agrave formardquo conceito integrante da teoria da
transcriaccedilatildeo A assinalar quanto agrave coerecircncia de procedimentos internos agrave traduccedilatildeo dos
fragmentos da Odisseia e de toda a Iliacuteada a criaccedilatildeo de adjetivos compostos por
simples justaposiccedilatildeo ldquocoraccedilotildees-cortadosrdquo ldquotodo-laacutegrimasrdquo ldquoazul-cianurordquo ldquoenfuna-
velasrdquo ldquobelas-tranccedilasrdquo ldquoclaravozrdquo
Antes de observarmos certos aspectos formais das traduccedilotildees vejamos algo dos
versos gregos Para tanto segue-se o fragmento acompanhado de sua transliteraccedilatildeo
lsquoαὐτὰρ ἐπεί ῥ᾽ ἐπὶ νῆα κατήλθομεν ἠδὲ θάλασσαν
Autagraver epeiacute rrsquo epigrave necirca katheacutelthomen edegrave thaacutelassan
νῆα μὲν ἂρ πάμπρωτον ἐρύσσαμεν εἰς ἅλα δῖαν
necirca megraven ar pamproton eryacutesamen eis aacutela diacutean
ἐν δ᾽ἱστὸν τιθέμεσθα καὶ ἱστία νηὶ μελαίνῃ
em drsquo istograven titheacutemestha kaigrave istiacutea neigrave melaiacutene
ἐν δὲ τὰ μῆλα λαβόντες ἐβήσαμεν ἂν δὲ καὶ αὐτοὶ
em degrave ta mela laboacutentes ebeacutesamen an degrave kaigrave autoi
βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες
baiacutenomen akhnyacutemenoi thalerograven katagrave daacutekry kheacuteontes
ἡμῖν δ᾽αὖ κατόπισθε νεὸς κυανοπρῴροιο
hemin drsquoaucirc katoacutepisthe neograves kyanoproacuteroio
235
ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον
iacutekmenon ourov iacuteei plesiacutestion esthlon etairon
Κίρκη εὐπλόκαμος δεινὴ θεὸς αὐδήεσσα
Kiacuterke euploacutekamos deinegrave theograves audeacuteessa
Dada a alta concentraccedilatildeo de repeticcedilotildees (de fonemas de siacutelabas de palavras) o
fragmento apresenta particular densidade sonora no contexto sempre denso da eacutepica de
Homero Pode-se falar pelas sequecircncias aliterantes e reincidecircncias proacuteximas numa
aceleraccedilatildeo tensiva dos versos tensatildeo ligada ao momento aflitivo aceleraccedilatildeo ligada ao
movimento agrave accedilatildeo que se executa A leitura pode incluir a percepccedilatildeo de obstaacuteculos
reiterantes associados agrave marcaccedilatildeo dos passos da movimentaccedilatildeo Tatildeo abundante de
efeitos eacute o conjunto que me parece dispensaacutevel seu difiacutecil destaque Mas podemos
indicar como um verso de quase-cimo tensivo aquele referente agrave subida dos homens
aflitos tristes a bordo observe-se sua escansatildeo (evidenciando portanto o esquema do
hexacircmetro dactiacutelico213
)
(baiacutenomen akhnyacutemenoi thalerograven katagrave daacutekry kheacuteontes)
βαίνομεν ἀχνύμενοι θαλερὸν κατὰ δάκρυ χέοντες (5)
_ U U _ U U _ U U _ U U _ U U _ U
(Subimos aflitos abundantes laacutegrimas vertendo)
A alternacircncia padratildeo de longas e breves neste caso parece associar-se
perfeitamente agrave reincidecircncia dos sons e no plano semacircntico ao movimento referido no
verso mantendo-se a marcha a velocidade constante no conjunto de vogais
particularmente o repetido tal como se apresenta na sequecircncia pode colaborar na
sugestatildeo do aspecto sombrio depressivo da cena
O verso 7 no entanto apresenta outra configuraccedilatildeo ao dizer do vento favoraacutevel
213 Como jaacute se disse o hexacircmetro eacute composto por seis peacutes daacutectiacutelicos _UU (uma siacutelaba longa e duas
breves podendo as breves ser substituiacutedas por uma longa resultando num peacute espondaico)
236
(iacutekmenon ourov iacuteei plesiacutestion esthlon etairon)
ἴκμενον οὖρον ἵει πλησίστιον ἐσθλὸν ἑταῖρον
_ U U _ U U_ _ _ UU _ U U _ U
(favoraacutevel vento envia a inflar velas bom companheiro)
Apesar de aparecerem as aliteraccedilotildees de oclusivas agrave semelhanccedila do anterior
surge a repeticcedilatildeo do fonema s que ameniza a sonoridade da frase e potencialmente
sugere iconicamente a passagem do vento o ritmo desacelera estende-se pela
sucessatildeo de siacutelabas longas entre o terceiro e o quarto peacutes transformando-se tambeacutem
num iacutecone de mudanccedila aliada agrave suavizaccedilatildeo variaccedilatildeo de tom de ritmo associada agrave
alteraccedilatildeo de perspectiva no relato
Abordemos sinteticamente a dimensatildeo formal das traduccedilotildees apresentadas
Em Odorico satildeo perceptiacuteveis relaccedilotildees entre som e sentido observemos como se
apresentam nos versos relacionados aos dois versos homeacutericos receacutem-destacados
Em tristiacutessimas laacutegrimas partimos
Bom soacutecio enfuna e sopra o vento em popa
O movimento do verso heroacuteico com tocircnica na terceira e sexta siacutelabas instaura
um ritmo ternaacuterio ascendente inicial a ser complementado pela ceacutelula quaternaacuteria
subsequente214
compondo uma sequecircncia adequada ao que se diz com a posiccedilatildeo das
tocircnicas a reforccedilar o significado de cada palavra
Em tris tiacutes si mas laacute gri mas par ti mos
214Pela tendecircncia paroxiacutetona e dos padrotildees riacutetmicos de nossa liacutengua ndash binaacuterio e ternaacuterio ndash um verso
acentuado na terceira sexta e deacutecima siacutelabas como eacute o caso pode) encaminha-se agrave subdivisatildeo binaacuteria agrave
maneira do martelo agalopado forccedilando-se uma tocircnica
237
As repeticcedilotildees das consoantes oclusivas e particularmente dos encontros
consonantais tr e gr marcam o passo e a dificuldade compatiacutevel com a situaccedilatildeo
aflitiva O verso seguinte (diferentemente do grego em que o ritmo parece desacelerar)
tambeacutem heroacuteico traz o padratildeo mais veloz do pentacircmetro jacircmbico ou seja composto de
uma sucessatildeo de cinco unidades binaacuterias ascendentes como que a reiterar o impulso do
vento
Bom soacute cio en fu na e so pra o ven to em po pa
A tecitura sonora reforccedila a accedilatildeo associando agrave sequecircncia a sucessatildeo aliterante de
fricativas tambeacutem a sugerir como primeiridades (hipoiacutecones sonoros) o efeito da
passagem do vento que amaina o ldquoclimardquo funesto movimento constante reiterativo da
accedilatildeo e sopro uma conjunccedilatildeo entre ritmo sonoridade e sentido que traz unidade ao
verso e consistecircncia ao conjunto
A traduccedilatildeo de C A Nunes por sua vez se natildeo pode valer-se de variaccedilotildees do
ritmo pelo padratildeo fixo utilizado pode dar a ilusatildeo de mudanccedila como no verso
e ambas as reses pusemos a bordo em seguida subimos
Embora em padratildeo ternaacuterio descendente (dactiacutelico) o verso ndash pela cesura na
deacutecima siacutelaba coincidente com a final da oraccedilatildeo ou seja com a pausa sintaacutetica
marcada pelo ponto-e-viacutergula ndash parece inverter o sentido para o padratildeo ascendente ao
mesmo tempo em que eacute dito ldquoem seguida subimosrdquo accedilatildeo que ganha paulatinidade com
a repeticcedilatildeo uniforme Um momento feliz no processo composicional de Nunes que
mostra uma certa (ainda que diminuta) relatividade na fixidez do padratildeo Vejam-se
ainda os versos
a derramar quentes laacutegrimas entre suspiros magoados
[] mandou-nos
Circe de tranccedilas bem-feitas canora e terriacutevel deidade
Vento propiacutecio que as velas enfuna excelente companha
238
No primeiro ainda que se possa ter a sensaccedilatildeo de ldquolassidatildeordquo do verso como
frequentemente ocorre nos versos analiacuteticos e alongados do tradutor ndash a impressatildeo de
arrastar-se extensivamente com perda de forccedila e diluiccedilatildeo de efeitos ndash as repeticcedilotildees
colaboram para uma unidade em que se entrevecircem relaccedilotildees som-sentido a reiteraccedilatildeo do
fonema m da siacutelaba ldquomardquo repetida sugere murmuacuterio lamento os s sucessivos
reverberam a ideia de suspiro na palavra ldquomagoadosrdquo insinua-se a figura sonora da
ldquoaacuteguardquo (fazendo lembrar a proposiccedilatildeo de Jakobson quanto agrave sugestatildeo de proximidade
semacircntica a partir da semelhanccedila sonora) que por sua vez liga-se conceitualmente a
ldquolaacutegrimasrdquo O verso seguinte eacute feliz na distribuiccedilatildeo das tocircnicas entre vogais diferentes
que se sucedem (ẽ i eacute u ẽ atilde) marcando-se a repeticcedilatildeo do ẽ na palavra
referente a ldquoventordquo e traccedilando-se assim uma relaccedilatildeo sonora entre o iniacutecio e o fim do
verso No uacuteltimo podem-se reconhecer as aliteraccedilotildees nas fricativas v s e f que
como os demais casos convertem-se em iacutecones sugestivos do sopro do vento
Examinemos sob os aspectos da informaccedilatildeo esteacutetica alguns elementos da
traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Procurarei isolar alguns efeitos marcantes dos versos
O primeiro verso traz a tocircnica da palavra ldquobaixamosrdquo na sexta siacutelaba do
dodecassiacutelabo ou seja da cesura acentuando-se com o componente riacutetmico a accedilatildeo
principal enunciada Desde o iniacutecio pode-se perceber o criteacuterio de engendramento de
repeticcedilotildees de correspondecircncias internas ao texto entre o primeiro e o segundo a
paronomaacutesia mirando ndash mar em seguida outras semelhanccedilas entre palavras ou
segmentos sacro ndash sal arbo ndash barco ndash barca ndash bor car ndash cor ndash cor etc Pode-se assim
supor a tentativa de re-produccedilatildeo de uma densidade sonora anaacuteloga aos versos gregos A
sequecircncia ldquofazendo arborescer no barco escurordquo encontra proximidade na
concentraccedilatildeo com certas sucessotildees no texto homeacuterico provaacutevel razatildeo da escolha que
embora distante ldquoda letrardquo sugere fonicamente um reiniacutecio um tempo feacutertil a iniciar-se
a crescer no momento ateacute entatildeo sombrio definido pelo ldquobarco escurordquo ligado pelo
som a ldquoarborescerrdquo Nos versos
Um vento enfuna-velas favoraacutevel oacutetimo
soacutecio a deusa de belas-tranccedilas poderosa
claravoz Circe envia-nos impulso agrave nau
239
de proa azul-cianuro [Apoacutes os faticosos] (10)
eacute apreensiacutevel de imediato a sucessatildeo de fricativas (de novo iacutecones do vento) que
participam da ressonacircncia vocal de Circe (poderosa claravoz) e do efeito escurecedor
da expressatildeo ldquoazul-cianurordquo com sua duplicaccedilatildeo de u Mais uma vez eacute dedutiacutevel em
Campos a priorizaccedilatildeo da teia sonora como meio de composiccedilatildeo do sentido geral do
conjunto de versos
240
Capiacutetulo IV
A Proposiccedilatildeo de referecircncia riacutetmico-meacutetrica associada a meacutetodo tradutoacuterio
o hexacircmetro em portuguecircs
O propoacutesito central deste capiacutetulo seraacute apresentar uma proposta de possiacutevel
opccedilatildeo riacutetmico-meacutetrica a se adotar em uma recriaccedilatildeo da eacutepica homeacuterica e por extensatildeo
da eacutepica greco-latina
Baseia-se primeiramente na ideia oacutebvia de que sempre os versos em portuguecircs
apresentaratildeo medidas sejam regulares ou natildeo assim como conteratildeo siacutelabas tocircnicas
quer haja ou natildeo algum propoacutesito em sua existecircncia e no modo pelo qual satildeo
distribuiacutedas nos versos Natildeo penso na necessidade de correspondecircncia exata com o
hexacircmetro dactiacutelico porque creio natildeo se justificar ndash pelo fato de que a traduccedilatildeo seraacute
sempre recriaccedilatildeo com outros elementos e em outro contexto ndash a predefiniccedilatildeo da
equivalecircncia ldquoabsolutardquo (seja no plano de conteuacutedo ou no caso no plano de expressatildeo)
em relaccedilatildeo aos poemas traduzidos A autonomia do texto recriado ainda que relativa
envolveraacute inevitavelmente suas proacuteprias regras internas que natildeo seratildeo as mesmas do
original ainda que se tenha tal propoacutesito
Satildeo diversas as possibilidades como se pocircde constatar neste trabalho de
adaptaccedilatildeo meacutetrica e prosoacutedica da eacutepica ao portuguecircs variando da transposiccedilatildeo
adaptativa de C A Nunes ao decassiacutelabo de O Mendes A escolha do dodecassiacutelabo
por H de Campos eacute muito bem sucedida do ponto de vista formal por manter-se dentro
do paracircmetro da poesia tradicional de liacutengua portuguesa (sem portanto aproximar-se de
uma extensatildeo que sugere ilimitaccedilatildeo como a da prosa) e por apresentar variaccedilatildeo
prosoacutedica associada agrave quase fixa presenccedila da cesura emulando de certa forma a
regularidade e a mutabilidade do verso grego Eacute bastante eficiente tambeacutem a soluccedilatildeo
de A Malta Campos tambeacutem por associar ainda mais nitidamente a regularidade e a
mutabilidade aleacutem de fazer corresponder ao verso grego subunidades de metro popular
em portuguecircs estabelecendo a relaccedilatildeo em niacutevel tambeacutem extratextual com a funccedilatildeo do
poema eacutepico se considerada sua contextualizaccedilatildeo de origem Uma possibilidade a ser
testada eacute a do verso hendecassiacutelabo por sua dinacircmica normalmente formada por uma
ceacutelula binaacuteria seguida de trecircs ternaacuterias de perfil dinacircmico e marcado ao mesmo tempo
a pesar contra essa medida a restriccedilatildeo de seu tamanho (com uma siacutelaba apenas a mais
241
do que o metro escolhido por Mendes uma das razotildees para sua praacutetica de contorccedilotildees
sintaacuteticas) e portanto de ldquoespaccedilo de manobrardquo do tradutor a menos que se aumente a
quantidade de versos
Por necessidade de escolha entre outras possiacuteveis parece-me interessante e
adequada a opccedilatildeo que exporei adiante Ela seraacute baseada antes no elemento mais
caracterizador do ritmo as tocircnicas do que na medida do verso Isto para valorizar-se
exatamente o aspecto riacutetmico e tambeacutem meloacutedico do verso (compartilhando desse
modo da ldquoessencialidaderdquo do verso grego) uma vez que pelo teor narrativo a medida
tende a dissociar-se das unidades de sentido que se completam amiuacutede nos versos em
sequecircncia
Embora o verso grego fundamente-se na distribuiccedilatildeo de siacutelabas longas e breves
e tenhamos em portuguecircs de considerar a tonicidade das siacutelabas podem-se entender
com certa liberdade os procedimentos como anaacutelogos215
Mesmo porque ainda que os
criteacuterios sejam de natureza diversa (uma quantitativa216
outra qualitativa) haacute
possibilidade de entrever-se a duraccedilatildeo diferenciada entre as siacutelabas tocircnicas e aacutetonas
como queriam Olavo Bilac e Guimaratildees Passos em seu Tratado de versificaccedilatildeo (1910)
que chegam a utilizar a terminologia ldquolongardquo e ldquobreverdquo para se referirem agraves siacutelabas do
verso em portuguecircs Diz o texto
O acento predominante ou a pausa numa palavra eacute aquela siacutelaba em que parecemos
insistir assinalando-a []
O som mais ou menos aberto da vogal natildeo influi sobre o acento a demora eacute na
pronunciaccedilatildeo o que o caracteriza []
A siacutelaba longa eacute que daacute agrave palavra o nome de aguda grave ou exdruacutexula []
Bilac e Passos assim como outros teoacutericos da versificaccedilatildeo encontram apoio na
liccedilatildeo de Antoacutenio Feliciano de Castilho (1800-1875) que em seu Tratado de
Metrificaccedilatildeo (1851) reconhecia siacutelabas longas e breves nas palavras
215Verdade eacute que os versos greco-latinos tambeacutem encerram acentos como eacute inevitaacutevel essa natildeo era
entretanto ndash conforme se considera ndash a base para a composiccedilatildeo riacutetmica 216 Ou seja relativa agrave duraccedilatildeo das siacutelabas (a longa dura duas vezes a breve) Os diferentes arranjos entre
os dois tipos de siacutelabas compunham alguns tipos baacutesicos de peacutes usados na poesia greco-latina Os
principais (aqui anotados a partir dos siacutembolos da braquia U relativo agrave siacutelaba breve e o maacutecron _
relativo agrave siacutelaba longa) satildeo o jambo ou iambo (U_) o troquseu (_U) o espondeu (_ _) o daacutectilo (_UU)
o anapesto (UU_) e o peocircnio (_UUU UUU_)
242
Acento predominante ou pausa num vocaacutebulo se chama aquela siacutelaba em que
parecemos insistir ou deter-nos mais v g em louvo a primeira em louvado a
segunda [etc]
Toda a palavra tem necessariamente uma pausa nem mais nem menos []
Levantamos tem a terceira siacutelaba longa seguindo-se-lhe por consequecircncia uma soacute
breve se juntando-lhe o complemento mdash nos mdash disserdes levantamo-nos sentireis
depois daquela siacutelaba longa natildeo jaacute uma soacute breve mas duas breves []217
Reforccedilam a ideia de duraccedilatildeo das siacutelabas os modos de abordagem do verso com
base na notaccedilatildeo musical conforme proposta de Geoffrey N Leech218
de M Cavalcanti
Proenccedila219
(que por sua vez menciona Spinelli e Echarri) e de Paulo Henriques Britto
em comum a esses autores a indicaccedilatildeo por meio de siacutembolos musicais convencionais
da ldquoduraccedilatildeo relativa das siacutelabas e [d]as pausas e [d]as separaccedilotildees entre compassosrdquo220
Veja-se como exemplo uma notaccedilatildeo apresentada por Leech (1969 108)
E tambeacutem a notaccedilatildeo por Cavalcanti Proenccedila de versos do ldquoHino ao sonordquo de
Castro Alves
217CASTILHO A F de Op cit pp 14-15
218 Leech G A linguistic guide to English Poetry London Longman 1969 219 Proenccedila M Cavalcanti Ritmo e poesia Rio de Janeiro Organizaccedilatildeo Simotildees 1955 220 BRITTO P H ldquoO conceito do contraponto meacutetrico em versificaccedilatildeordquo p 6
243
Antes de prosseguirmos com uma sugestatildeo de uso meacutetrico para a eacutepica ndash que
ademais seraacute mais uma alternativa entre as existentes ndash vejamos referecircncias agraves diversas
possibilidades de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro em liacutenguas modernas Jaacute mencionamos a
adaptaccedilatildeo realizada nas liacutenguas anglo-saxocircnicas (inglecircs e alematildeo) que fazem
corresponder as siacutelabas tocircnicas do verso agraves siacutelabas longas das composiccedilotildees gregas e
latinas e as aacutetonas agraves siacutelabas breves221
Seguem-se alguns exemplos colhidos de
Kayser (1976)222
relativos (na ordem) a jambos troqueus daacutectilos e anapestos
221 O mesmo sistema foi usado como vimos por C A Nunes mas haacute antecedentes do procedimento nas
liacutenguas latinas como veremos adiante 222 Op cit pp 84-85
244
Sobre a conversatildeo do metro a liacutenguas neolatinas ndash que devo abordar para
fundamentaccedilatildeo do que seraacute proposto por fim ndash recorrerei a um esclarecedor artigo
publicado na revista espanhola Estudios clasicos (1971)223
de autoria de Francisco
Pejenaute que traz um panorama dos modos com que se adapta ou se adaptou o
hexacircmetro ao espanhol terei como uma das principais fontes tambeacutem comentaacuterio de
Castilho sobre o hexacircmetro portuguecircs
Pejenaute categoriza modos de adaptaccedilatildeo do metro identificando quatro
sistemas diversos de adaptaccedilatildeo do hexacircmetro
a) adaptacioacuten ldquoa la grecolatinardquo la de aquellos que despueacutes de admitir que la
cantidad puede ser tambieacuten en espantildeol elemento esencial em el verso y constitutivo
de ritmo y tras formular las leyes por las que se rige la cantidad en espantildeol han
intentado demostrar praacutecticamente su teoriacutea con alguacuten ejemplo b) sistema que
nosotros denominamos de yuxtaposicioacuten y que parte del deseo de imitar los
acentos del verso latino leiacutedo a la espantildeola [] los adaptadores por yuxtaposicioacuten
se han dado cuenta de que los acentos del hexaacutemetro latino [] formaban las maacutes
de las veces esquemas acentuales que divididos en dos hemistiquios teniacutean
parangoacuten acentual con determinados versos castellanos [] su sistema ha
desembocado finalmente em yuxtaponer dos versos castellanos dotando al segundo
de claacuteusula acentual hexameacutetrica c) sistema denominado legere por
L Alonso Schokel y ldquoriacutetmico-acentual intensivordquo por Huidobro [] simple
imitacioacuten de los acentos del verso claacutesico de modo que en el hexaacutemetro [] no
aparecen fijos maacutes que los dos uacuteltimos acentos mientras que los otros (dos tres o
cuatro) se distribuyen en el resto del verso caprichosamente [] d) sistema ldquopor
223 PEJENAUOTE F ldquoLa adaptacioacuten de los metros clasicos em castellanordquo In Estudios clasicos no 63
Madri 1971
245
ictusrdquo que Huidobro denomina ldquopor arsis y tesisrdquo y Schoumlkel scandere y que
intenta reconstruir el ritmo del hexacircmetro claacutesico tratando de reproducir [] los
ictus o tiempos marcados Aquiacute habraacute que hacer tres divisiones hexaacutemetro
dactiacutelico puro hexaacutemetro anacruacutestico y hexaacutemetro con sustituciones
A classificaccedilatildeo revela o quadro complexo de possibilidades adaptativas do
hexacircmetro conforme os referenciais que se adotam para a definiccedilatildeo do procedimento
fundamental relativo agrave composiccedilatildeo do ritmo do poema Mais uma vez instala-se a
multiplicidade de sistemas decorrentes de uma pluralidade de visotildees que buscam
coerecircncia do produto com seus propoacutesitos Nenhum dos sistemas como se sabe e se
veraacute poderaacute almejar a equivalecircncia ou a correspondecircncia completa entre os metros pela
ldquonaturezardquo diversa dos sistemas associados agraves diferentes liacutenguas por esta via de
constataccedilatildeo pode-se concluir da necessidade de soluccedilatildeo intriacutenseca agrave traduccedilatildeo que
busque diferentes niacuteveis de analogia com os esquemas proacuteprios dos modelos traduzidos
e natildeo o paradigma da correspondecircncia ldquofielrdquo a tais modelos Voltando agraves categorias
distinguidas por Pejenaute segue alguma explicitaccedilatildeo e alguma exemplificaccedilatildeo
(necessaacuteria para o que discutiremos)
a) Adaptacioacuten a la greco-latina
[] no hay maacutes ejemplo claro queel hexaacutemetro cuantitativo de D Sinibaldo de
Mas [] [Eacutel] defiende no soacutelo que existenlargas y breves en castellano sino que
esa cantidad [] es o puede ser [] um elemento constitutivo de ritmo []
Siguieacutendo [reglas de la cantidad en castellano] nos ofrece ldquohexaacutemetrosrdquo
cuantitativos como los siguientes
A tentativa eacute portanto de fazer valer a diferenccedila de duraccedilatildeo entre siacutelabas do
espanhol o comentaacuterio do ensaiacutesta aponta o que natildeo eacute difiacutecil antever ndash a natildeo-
246
funcionalidade do sistema diante de um padratildeo instalado de leitura com base em
tocircnicas
Si alguacuten ritmo tienen versos de este tipo proviene delos acentos que al final
aparecen seguacuten la foacutermula de laclaacuteusula hexameacutetrica []
Aqui uma questatildeo fundamental a assinalar a permanecircncia da ldquoclaacuteusulardquo224
seraacute
comum aos diversos sistemas o padratildeo de constacircncia ndash definido pela distribuiccedilatildeo de
tocircnicas proacutepria do sistema qualitativo portanto ndash conviveraacute em geral com variaccedilotildees
diversas de esquema acentual (mesmo que o criteacuterio natildeo seja o acento) No caso receacutem-
visto eacute apontado o papel determinante das siacutelabas tocircnicas (e natildeo das ldquolongasrdquo e
ldquobrevesrdquo) para a configuraccedilatildeo do ritmo Seguem-se informaccedilotildees referentes agrave categoria
seguinte
b) Adaptacioacuten por yuxtaposicioacuten
Para [Juan Gualberto Gonzaacutelez] en el exaacutemetro latino se encierran [] todas
nuestras combinaciones meacutetricas [] Toda su teoriacutea de la adaptacioacuten de los metros
claacutesicos tiene sus raiacuteces en este principio [] todo hexaacutemetro latino puede
descomponerse en alguacuten verso castellano maacutes algo (praacutecticamente en dos versos
castellanos) []
Los hexaacutemetros latinos leiacutedos a la espantildeola resultan ser una yuxtaposicioacuten de dos
versos ya conocidos del castellano []
Para adaptar en castellano el hexaacutemetro latino no hay maacutes que yuxtaponer dos
versos castellanos []
Incluem-se em seguida como exemplo versos do tradutor mencionado (nos quais
assinalo as siacutelabas tocircnicas finais para evidenciar a presenccedila do ldquomoacutedulo hexameacutetricordquo)
El pastor Coridoacuten al bello Alexis amaba
delicias de su duentildeo mas esperar no teniacutea
En la espesura solo de unas altiacutesimas hayas
andaba de continuo dando a los montes y selvas
224 A sequecircncia _UU _U no final do verso (um peacute daacutectilo e outro interrompido) como jaacute se viu eacute
caracteriacutestica do metro utilizado nos poemas eacutepicos o denominado ldquohexacircmetro dactiacutelico cataleacutecticordquo (ou
seja ao qual suprimiu-se uma siacutelaba em seu final) Chamarei de ldquomoacutedulo hexameacutetricordquo a sequecircncia (a
que Pejenaute chama ldquoclaacuteusula hexameacutetricardquo)
247
Sobre o terceiro e o quarto tipos de adaptaccedilatildeo diz o autor
c) Adaptacioacuten por el sistema ldquolegererdquo
[] se trata de [mediante este sistema] reproducir acuacutesticamente la sensacioacuten que
producen en nosotros los hexaacutemetros latinos leiacutedos a la espantildeola un ritmo
indefinido vago impreciso en la mayor parte del verso que se canaliza y encauza
al llegar al final mediante la dipodia dactiacutelico-espondaica claacuteusula del hexaacutemetro
claacutesico donde la mayor parte de las veces el acento veniacutea a caer en tiempo
marcado
d) Adaptacioacuten por el sistema ldquoscandererdquo
Intenta reproducir mediante el acento los ictus o tiempos marcados del hexaacutemetro
claacutesico [] Tenemos [las variantes] []
1Hexaacutemetro dacti l i co puro que seriacutea [] la imitacioacuten mediante el acento
del hexaacutemetro ldquoholodaacutectilordquo esto es un verso de 17 siacutelabas225
con acento riacutetmico
en las siacutelabas 1ordf 4ordf 7ordf10ordf 13ordf y 16ordf o lo que es lo mismo una serie formada por
cinco grupos prosoacutedicos ternarios seguidos de uno binario todos ellos acentuados
en la primera siacutelaba
Como se pode notar o verso utilizado por Carlos Alberto Nunes em portuguecircs
corresponde a este modelo a equiparaccedilatildeo exata do sistema qualitativo com o
quantitativo tambeacutem a ele corresponde o sistema usado na tradicional metrificaccedilatildeo
inglesa e alematilde Segue-se um exemplo de verso da Iliacuteada em espanhol de Pedro-Luis
Heller
Esta pues fue hacia eacutel y la criada seguia sus pasos
sobre su seno llevando al caacutendido tierno infante
hijo querido de Heacutector igual a un astro hermoso
al que su padre llamaba Escamandrio en cambio los otros
laquoRey-de-ciudadraquo porque soacutelo aqueacutel amparaba a Troya
225 Observe-se que o sistema meacutetrico espanhol adota o padratildeo do verso grave (paroxiacutetono) para contagem
isto eacute considera uma siacutelaba aleacutem da uacuteltima tocircnica para estabelecer o nuacutemero de siacutelabas do verso (o
sistema que era praticado no portuguecircs antes da proposiccedilatildeo por Castilho do padratildeo do verso agudo ndash
oxiacutetono ndash prevecirc a natildeo contagem da uacuteltima siacutelada de uma palavra esdruacutexula no fim do verso e o acreacutescimo
de uma no caso de o verso terminar com palavra oxiacutetona) Assim as 17 siacutelabas mencionadas equivalem a
16 siacutelabas na contagem praticada em liacutengua portuguesa
248
2 Hexaacutemet ro dactiacute l i co anacruacutestico Aquiacute los grupos prosoacutedicos ternarios no
son cinco sino cuatro seguidos tambieacuten por uno binario todos igualmente com
acento en la primera siacutelaba y al frente de dichos grupos abriendo verso una o dos
siacutelabas en anacrusis226
que forman una especie de pie volado imprescindible para
totalizar los seis pies de los que necesariamente se compone esteverso
El adaptador maacutes consciente y maacutes convincente decuantos han seguido este
sistema es sin lugar a dudas D Joseacute Manuel Paboacuten y Suaacuterez de Urbina
A respeito da traduccedilatildeo de Paboacuten diz o apresentador de ediccedilatildeo de cantos da
Odisseia227
En vez de largas y breves una siacutelaba toacutenica seguida de dos aacutetonas en vez
de seis pies solamente cinco evitando asiacute la monoacutetona divisioacuten en
hemistiquios de tres pies [] Este ritmo resulta es cierto producto de uma
caprichosa convencioacuten pero es la maacutes perfecta imitacioacuten del hexacircmetro que
puede darse en nuestra lengua iquestQue a la larga resulta monoacutetono
Naturalmente Pero iquestno ocurre lo mismo con todos los metros y ritmos
[] los ensayos previos admitiacutean lo que el autor llama una anacrusis al
principio es decir los inicios de versos podiacutean ofrecer bien una o bien dos
siacutelabas aacutetonas [] e nesta versioacuten que ahora ofrecemos [] ha sido
eliminado este tipo de versos con una sola aacutetona para que no surja un
encabalgamiento con el cual la recitacioacuten se hariacutea maacutes monoacutetona y confusa
al empalmar unos versos con otros Se trata en general [] de pequentildeos
recursos para compensar la inevitable tendencia a la monotoniacutea que corre el
riesgo de producir la rigidez del sistema frentea la libertad del original con
sus daacutectilos y espondeos
O tradutor utiliza portanto a anacruse para instalar um componente de
variabilidade ao verso Conheccedilam-se algumas linhas de sua Odisseia marco as
anacruses e os hexacircmetros dos primeiros versos
226Anacruse ldquosiacutelaba (ou siacutelabas) inicial de um verso anteposta agrave aacutersis que natildeo eacute levada em conta para
que se tenha convencionalmente o mesmo nuacutemero de peacutes dos demais versosrdquo ndash Houaiss 227HOMERO Cuatro cantos de la ldquoOdiseardquo (IX XIII XIV XXII) Trad de Joseacute Manuel Paboacuten Com
introd de M F G Suplementos de Estudios Claacutesicos no 7 Madri 1969
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Canto IX
Contestando a su vez dijo Ulises el rico en ingenios
Prez y honor de tus hombres Alciacutenoo sentildeor poderoso
halaguumlentildeo es sin duda escuchar a un cantor como eacuteste
semejante en su voz a los dioses Yo pienso de cierto
que el extremo de toda ventura se da soacutelo cuando
la alegriacutea se extiende en las gentes y estaacuten los que comen
Veja-se o tipo seguinte
3 Hexaacutemet ro dactiacute l i co con susti tuciones Al igual que en el hexaacutemetro
claacutesico los grupos silaacutebicos no van fijos maacutes que en 5ordf y en 6ordf posicioacuten
pudieacutendose dar alternancia de ternarios y binarios en loscuatro primeros pies De
cuantos sistemas se han seguido eacuteste nos parece el maacutes acertado y el que mejor se
amolda al modelo claacutesico El nuacutemero de siacutelabas oscila entre 13 y 17 los acentos
van formando grupos riacutetmicos de tres o de dos siacutelabas y terminan con la claacuteusula
hexameacutetrica
Como exemplo versos do colombiano Joseacute Eusebio Caro nos quais assinalo as
tocircnicas
Ceacutefiro rdpido laacutenzate Raacutepido empuacutejame y vivo
Maacutes redondas mis velas pon del proscrito a los lados
haz que tus silbos susurren dulces y dulces suspiren
[]
Na liacutengua portuguesa diversos tradutores praticaram a adaptaccedilatildeo do hexacircmetro
greco-latino Tem-se notiacutecia do ldquohexacircmetro portuguecircsrdquo por meio do escritor Antoacutenio
Feliciano de Castilho (1800-1875) no seu jaacute mencionado Tratado de metrificaccedilatildeo
portuguesa (1851) Nessa e em trecircs ediccedilotildees seguintes do livro assim expressa Castilho
sua opiniatildeo acerca do tema