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  • SMULAS VINCULANTES: DEBATE SOBRE O INSTITUTO E IMBRICAO

    DO TEMA COM O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

    Dario Fava Corsatto

  • Dario Fava Corsatto

    Mestre em Direito Pblico e Polticas Pblicas pelo UniCeub, professor e autor de Direito Consti-tucional, Auditor Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da Unio e diretor adminis-

    trativo e financeiro do Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo e do TCU (Sindilegis).

    SMULAS VINCULANTES: DEBATE SOBRE O INSTITUTO E IMBRICAO

    DO TEMA COM O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

    BrasliaCentro Universitrio de Braslia

    2013

  • CORSATTO, Dario Fava.

    Smulas Vinculantes: Debate sobre o Instituto e Imbricao do Tema com o Controle de Constitucio-nalidade. Dario Fava Corsatto. Braslia, 2013.

    96 p.

    ISBN 978-85-61990-24-4

    Dissertao de Mestrado (Programa de Mestrado em Direito e Polticas Pblicas) - Centro Universitrio de Braslia, Braslia, 2012.

    1. Polticas pblicas. 2. Direito Constitucional. 3. Smulas vinculantes. 4. Controle de constitucionalidade.

    CDD 340

  • Para a minha famlia e todos aqueles que tambm so a minha famlia. Em especial, para Andressa.

  • 7SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 9

    CAPTULO 1 CONSIDERAES PRELIMINARES ............................................................................... 11

    1.1 A Reforma do Poder Judicirio ....................................................................................111.2 Smulas Tradicionais ou Persuasivas e Smulas Vinculantes ................................. 141.3 O que Significa a Adoo, entre Ns, das Smulas Vinculantes? ..........................161.4 Evoluo do Instituto no Brasil .....................................................................................191.5 O Instituto e seus Similares no Direito Comparado ................................................211.6 Efeito Vinculante e Smulas Vinculantes ..................................................................23

    CAPTULO 2 REGIME JURDICO DAS SMULAS VINCULANTES ................................................. 25

    2.1 Natureza Jurdica .............................................................................................................252.2 Objetivos ...........................................................................................................................262.3 Requisitos ..........................................................................................................................272.4 Tribunal Competente ......................................................................................................282.5 Legitimados ......................................................................................................................292.6 Trmite Processual...........................................................................................................302.7 Deciso .............................................................................................................................312.8 Efeitos ...............................................................................................................................312.9 Destinatrios ...................................................................................................................322.10 Descumprimento ............................................................................................................33

    CAPTULO 3 O DEBATE SOBRE AS SMULAS VINCULANTES ...................................................... 37

    3.1 Tratamento Isonmico aos Jurisdicionados ...............................................................373.2 Maior Segurana Jurdica .............................................................................................403.3 Agilizao, Desafogamento e Barateamento da Justia .............................................413.4 Esmaecimento do Limite entre as Funes Jurisdicional e Legiferante ...............453.5 Empobrecimento da Argumentao Jurdica .............................................................493.6 Ofensa Liberdade de Convico dos Magistrados .................................................503.7 Exarcebamento do Poder Conferido ao Supremo Tribunal Federal ......................523.8 Problemas com a Exegese de uma Nova Smula ......................................................533.9 Ofensa ao Princpio do Duplo Grau de Jurisdio ...................................................57

    CAPTULO 4 A EVOLUO DO COMPORTAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA APROVAO DAS SMULAS VINCULANTES .............................................................. 59

    CAPTULO 5 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL ..................................... 67

    5.1 Regramento Bsico .........................................................................................................675.2 Controle Difuso ..............................................................................................................735.3 Controle Concentrado ...................................................................................................77

  • 8CAPTULO 6 AS SMULAS VINCULANTES E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 88

    6.1 Colocao do Problema ................................................................................................886.2 Anlise da Questo .......................................................................................................88

    CONCLUSES ...............................................................................................................................90

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 93

  • 9INTRODUO

    O Poder Judicirio sofreu importantes alteraes com a edio da Emenda Constitucional 45, de 08/12/2004 (EC 45/04), conhecida como Reforma do Poder Judicirio. Foi criado o Conselho Nacional de Justia, para fiscalizar o cumprimento dos deveres funcionais dos juzes. Procurou-se dificultar a promoo do juiz que, injustificadamente, retenha autos em seu poder, alm de se ter determinado que a distribuio de processos seja imediata. Vrios mecanismos foram criados para incentivar o aperfeioamento da Magistratura. Foi decidido o fim das frias forenses nos Tribunais de segundo grau, de modo a tornar a atividade jurisdicional ininterrupta. Criou-se a possibilidade de se instituir a justia itinerante, a fim de facilitar o acesso ao Poder Judicirio.

    Contudo, uma das maiores inovaes trazidas pela EC 45/2004 diz respeito s smulas vinculantes. Inspirada nos pases que adotam o common law, especialmente os Estados Unidos, no qual as decises preferidas pela Suprema Corte obrigam os demais rgos do Poder Judicirio, a sistemtica de smulas vinculantes apoia-se na teoria dos precedentes ou das decises sedimentadas, derivadas do brocardo mantenha-se a deciso e no se perturbe o que foi decidido (stare decisis et quieta non movere).

    A EC 45/2004 incluiu na Constituio Federal a determinao de que o Supremo Tribunal Federal poder, de ofcio ou por provocao, mediante deciso de 2/3 dos seus membros, aps reiteradas decises sobre matria constitucional, aprovar smula que, a partir de sua publicao na imprensa oficial, ter efeito vinculante em relao aos demais rgos do Poder Judicirio e administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder sua reviso ou cancelamento, na forma estabelecida em lei (art. 103-A, caput).

    A grande questo que se coloca : afinal, a introduo de um instituto to estranho nossa realidade jurdica trouxe benefcios para o exerccio da jurisdio? E, em caso afirmativo, a referida inovao teria preservado os princpios constitucionais emanados do constituinte originrio, especialmente no que se refere ao princpio da separao de Poderes? Nosso objetivo esmiuar essas questes, analisando as principais vantagens e vantagens declinadas pela doutrina referentes adoo do instituto no Brasil, bem como enfrentando a questo referente pretensa inconstitucionalidade da emenda constitucional que inovou a ordem jurdica nacional.

    Muitas foram as vozes contrrias que vieram tona com o surgimento, entre ns, dessa espcie de smulas, crticas essas que ainda subsistem com grande fora. H aqueles que defendem que as smulas vinculantes engessaro o Poder Judicirio, impedindo que os juzes das instncias inferiores e as partes que nelas atuam oxigenem o pensamento jurdico ao impossibilitar que novas teses jurdicas se desenvolvam, atuando como uma espcie de cerceamento da capacidade criadora de todos quantos atuam nessas instncias. A essa crtica, soma-se a sensao de que se atribuiu, ao final de contas, um poder exagerado ao Supremo Tribunal Federal, o que pode resultar em um indesejvel desequilbrio de foras, at mesmo porque no haveria como controlar um eventual abuso de poder por parte desse rgo, o qual acabaria atuando como verdadeiro legislador. H, ainda, a viso de que as smulas vinculantes seriam uma resposta burocrtica e pobre ao fenmeno que ficou conhecido como crise da Justia, que vem a ser a incapacidade de o Poder Judicirio responder dentro de prazo razovel s demandas por uma boa prestao jurisdicional por parte da sociedade.

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    A essas crticas somam-se outras. Muitos entendem que haveria um esmaecimento ainda mais acentuado no j tnue limite entre a funo jurisdicional e a funo legiferante, que, em funo do princpio da separao dos Poderes, deveria ser exercido por rgos distintos. Outros, por sua vez, se mostram irresignados com a ofensa ao princpio do duplo grau de jurisdio que o novo regime acarretaria ao sistema jurdico.

    Os defensores das smulas vinculantes, entre os quais nos filiamos, rebatem cada uma dessas ideias. Nosso propsito com o presente trabalho demonstrar que tal instrumento, se aplicado dentro da previso constitucional, no compromete o bom desenvolvimento da doutrina jurdica e nem municia o Supremo Tribunal Federal com um poder desmedido, at porque, dentro do engenhoso sistema de freios e contrapesos que foi sabiamente preservado na arquitetura das smulas vinculantes, cabe a um outro Poder, o Legislativo, exercer o necessrio controle sobre elas, bastando para isso a simples edio de uma lei em sentido contrrio.

    No queremos com isso dizer que as smulas vinculantes sejam prova de abusos no o so, assim como no isenta de falha qualquer inveno humana; demonstraremos, contudo, que, da mesma forma que outros bons institutos, as smulas vinculantes contm eficaz antdoto contra seu mau uso.

    A adoo entre ns da smula vinculante no apenas preservou o delicado sistema de freios e contrapesos entre os Poderes como, tambm, trouxe grandes vantagens administrao da justia. Por um lado, o instituto tem a capacidade de desafogar o Poder Judicirio de milhares de processos que, no final das contas, teriam o mesmo fim, ainda que sigam caminhos diferentes, dependendo da opo processual escolhida, permitindo que se torne realidade a prtica de uma justia mais clere. Por outro lado, o novo instrumento tem o condo de assegurar maior isonomia do jurisdicionado frente s decises judiciais, tendo em vista a uniformizao da jurisprudncia que pode ser percebida como consequncia da nova concepo.

    O trabalho se escora em minudente anlise do novo instituto. O regime jurdico das smulas vinculantes , dessa forma, estudado detalhadamente, desde sua natureza jurdica, passando pelo trmite processual e seguindo at as consequncias que podem advir de seu descumprimento. Analisamos, tambm, os debates que ocorreram no STF, quando da aprovao de algumas das smulas vinculantes, de modo a captar a evoluo do comportamento daquela Corte no que se refere ao aperfeioamento da sistemtica processual.

    Outra questo abordada a estreita relao que entendemos existir entre as smulas vinculantes e o controle abstrato de constitucionalidade de normas adotado no Brasil. A edio de smulas vinculantes uma forma complementar de exercer o controle de constitucionalidade, robustecendo esse exerccio. No mbito do controle difuso, as smulas vinculantes aproximam os efeitos do controle difuso aos efeitos do controle concentrado, dotando aquele de importantes caractersticas deste. No mbito do controle concentrado, elas permitem que a inconstitucionalidade de diversas leis seja estendida a leis semelhantes, sem necessidade de nova provocao ao STF. Para melhor esmiuar esse ponto, traados, previamente, um breve estudo sobre o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro.

    Em sntese, defendemos, no presente trabalho, duas hipteses: a primeira, no sentido de que a adoo das smulas vinculantes tem o potencial de trazer grandes benefcios para o sistema jurdico brasileiro, superando em larga escala os problemas que possam advir dessa inovao; e a segunda, de que as smulas vinculantes tambm se prestam a complementar o exerccio do controle de constitucionalidade de normas, alargando as possibilidades at ento previstas na Constituio Federal.

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    CAPTULO 1 CONSIDERAES PRELIMINARES

    1.1 A Reforma do Poder Judicirio

    A EC 45/04, conhecida como Reforma do Poder Judicirio, foi concedida para tornar a atividade jurisdicional mais clere, por meio da modernizao da administrao da justia brasileira. Com esse intuito, vrios dispositivos foram modificados, o que resultou em alterao, em larga escala, da Constituio Federal de 1988. Nesta seo, a ttulo de introito ao presente trabalho, e para melhor nos situarmos quanto ao tema de nosso interesse central as smulas vinculantes , pretendemos analisar as principais mudanas promovidas por essa emenda constitucional.

    Foi acrescentado dispositivo Constituio Federal segundo o qual a todos, no mbito judicial e administrativo, so assegurados a razovel durao do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitao (art. 5, LXXVIII). claro que a razovel durao do processo decorrncia natural do princpio da razoabilidade, que, ao lado do princpio da proporcionalidade, norteia a atividade de administrar a justia. Como princpio que , no necessitaria estar positivado, mas assim preferiu o constituinte derivado, como forma de externar sua preocupao com o lento desenrolar dos processos judiciais e administrativos. Gilmar Ferreira Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco exemplificam algumas aplicaes do novo postulado (2007, p.486):

    O direito razovel durao do processo, a despeito de sua complexa implementao, pode ter efeitos imediatos sobre situaes individuais, impondo o relaxamento da priso cautelar que tenha ultrapassado determinado prazo, legitimando a adoo de medidas antecipatrias ou at o reconhecimento da consolidao de uma dada situao com fundamento na segurana jurdica.

    A EC 45/04 trouxe, tambm, uma importante inovao no regramento dos tratados internacionais. Agora, nem todos os tratados, como era regra, passam a figurar em nosso ordenamento jurdico com status de legislao infraconstitucional. Os tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em 2 turnos, por 3/5 dos votos dos respectivos membros, sero equivalentes s emendas constitucionais (art. 5, 3), passando, portanto, a ter igual hierarquia de norma constitucional so os decretos legislativos com fora de emenda constitucional1.

    Mas as inovaes no pararam por a. O STF passou a entender que os tratados internacionais sobre recursos humanos, independentemente do qurum qualificado previsto pela EC 45/04, teriam status supralegal, isto , deteriam hierarquia superior das leis ordinrias e complementares, mas sem fora para derrogar as normas constitucionais com as quais conflitem, pois se encontram abaixo da Constituio Federal (RE 466.343/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 03/12/2008). Passamos a ter, portanto, o que se segue: a) tratados internacionais que tratem sobre direitos humanos: tero status constitucional se forem aprovados, em cada Casa

    1 O primeiro promulgado com tal fora foi o Decreto Legislativo 186/2008, que aprovou o texto da Con-veno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de maro de 2007.

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    do Congresso Nacional, em 2 turnos, por 3/5 dos votos dos respectivos membros; ou status supralegal, abaixo da Constituio, mas acima das leis, nos demais casos; e b) demais tratados internacionais: tero status de lei ordinria.

    Cabe observar que a Constituio de 1988 no adotou a doutrina da recepo automtica das normas de direito internacional, como o fez a Constituio portuguesa, por exemplo. Por essa doutrina, as normas decorrentes dos tratados internacionais so diretamente aplicveis pelos tribunais e outras autoridades encarregadas de aplicar o direito, no dizer de J. J. Gomes Canotilho. Assim explica o consagrado constitucionalista (1997, p. 722):

    No necessitando de qualquer transformao em lei ou outro ato de direito

    interno para poderem ser consideradas incorporadas ao ordenamento interno, as normas de direito internacional comum entram em vigor

    no direito interno ao mesmo tempo que adquirem vigncia na ordem

    internacional.

    No o caso brasileiro, frise-se. A doutrina da recepo automtica das normas de direito internacional conhecida como monista, teoria segundo a qual haveria unidade entre os ordenamentos nacional e internacional. Dessa forma, ao contrair obrigaes no plano internacional, o Estado estaria, na verdade, exercendo normalmente a sua soberania. Contrape-se a esse pensamento a teoria dualista, que entende haver uma ntida separao entre os ordenamentos nacional e internacional, com prevalncia daquele, uma vez que a vontade do Chefe do Estado (expressa em um acordo internacional) no poderia se sobrepor vontade do povo (expressa no ordenamento interno). A teoria da recepo automtica (monista) subdivide-se, ainda, em quatro correntes, quanto ao posicionamento no ordenamento jurdico dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos: a) os tratados situam-se em posio de prevalncia quanto prpria Constituio Federal; b) equiparam-se Constituio; c) encontram-se abaixo da Constituio, mas acima da legislao ordinria; e d) situam-se no mesmo nvel hierrquico da legislao ordinria. Seja como for, ntida a tendncia mundial para a internacionalizao de parte das normas constitucionais, especialmente as referentes aos direitos humanos.

    A emenda constitucional trouxe, tambm, regra segundo a qual o Brasil submete-se jurisdio de Tribunal Penal Internacional a cuja criao tenha manifestado adeso (art. 5, 4). Temos que o Brasil aderiu ao Tribunal Penal Internacional criado por meio do Estatuto de Roma (Decreto 4.388/02), no qual se prev que o referido Tribunal ser uma instituio permanente, com jurisdio sobre as pessoas responsveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, sendo complementar2 s jurisdies penais nacionais. Trata-se de uma mitigao voluntria de nossa soberania em prol da universalizao dos direitos da pessoa humana. Significa que o Pas aceita se submeter ao referido Tribunal, numa excelente demonstrao, perante o Mundo, de que desejamos ver respeitados todos os direitos da pessoa humana. J na promulgao da Constituio de 1988 previa-se que o Brasil deveria propugnar pela formao de um Tribunal internacional dos direitos humanos (ADCT, art. 7). Cabe observar que a submisso do Brasil a esse Tribunal implica que suas sentenas se integraro automaticamente na jurisdio brasileira, sendo dispensvel que haja homologao.

    2 Complementar no sentido de cobrir ausncia de persecuo penal do Estado-membro ou aplicao simulada da mesma, na forma de farsa.

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    Foram vrias as alteraes no dispositivo constitucional que serve de fundamento para o Estatuto da Magistratura (o art. 93), todas no sentido de privilegiar uma melhor formao do juiz, de adotar a produtividade como parmetro para o desenvolvimento na carreira e de conferir maior celeridade ao trmite processual. Vejamos as principais: a) passou-se a exigir, para o ingresso na carreira, que o candidato tenha, no mnimo, 3 anos de atividade jurdica (inc. I), a compreendido o tempo despendido no magistrio superior e em cursos de ps-graduao, segundo alguns critrios (Resoluo CNJ 11/06); b) proibio de se promover o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder alm do prazo legal, no podendo devolv-los ao cartrio sem o devido despacho ou deciso (inc. II); c) passou a constituir etapa obrigatria do processo de vitaliciamento do juiz a participao em curso oficial ou reconhecido por Escola Nacional de Formao e Aperfeioamento de Magistrados (inc. IV); d) ficou decidido que a atividade jurisdicional ser ininterrupta, sendo vedado frias coletivas nos juzos e Tribunais de segundo grau, funcionando, nos dias em que no houver expediente forense normal, juzes em planto permanente3 (inc. XII); e) o nmero de juzes na unidade jurisdicional dever ser proporcional efetiva demanda judicial e respectiva populao (inc. XII); f) os servidores da justia podero receber delegao para a prtica de atos de administrao e atos de mero expediente sem carter decisrio (inc. XIV), desafogando, assim, os juzes dessas tarefas rotineiras; e g) a distribuio de processos ser imediata, em todos os graus de jurisdio (inc. XV), de modo a evitar que os processos fiquem parados e atribuindo aos juzes a responsabilidade da carga pelos mesmos.

    Com a Reforma do Poder Judicirio, algumas competncias foram remanejadas entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justia. Passou a ser competncia do STF julgar, mediante recurso extraordinrio, as causas decididas em nica ou ltima instncia, quando a deciso recorrida julgar vlida lei local contestada em face de lei federal (art. 102, III, d). At ento, tal competncia pertencia ao STJ, em sede de recurso especial. A alterao se justifica: eventual conflito de competncia entre lei federal e lei local (estadual ou municipal) , no fundo, uma questo constitucional, pois a Constituio Federal quem distribui as competncias legislativas entre os entes federados. Por outro lado, passou a ser competncia do STJ processar e julgar originariamente a homologao de sentenas estrangeiras e a concesso de exequatur s cartas rogatrias, competncia anteriormente do STF.

    Uma grande inovao trazida pela Reforma do Poder Judicirio refere-se ao requisito da repercusso geral, necessrio para a admissibilidade de recurso extraordinrio frente ao STF. Agora, no recurso extraordinrio, o recorrente dever demonstrar a repercusso geral das questes constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admisso do recurso, somente podendo recus-lo pela manifestao de 2/3 de seus membros (art. 102, 3). Vale acrescentar que a Lei 11.418/06 introduziu no Cdigo de Processo Civil o disciplinamento referente questo da repercusso geral necessria admissibilidade do recurso extraordinrio, eis que o Supremo Tribunal Federal, em deciso irrecorrvel, no conhecer desse recurso quando a questo constitucional nele versada no oferecer referido requisito (CPC, art. 543-A, caput). Para efeito da repercusso geral, ser considerada a existncia, ou no, de questes relevantes do ponto de vista econmico, poltico, social ou jurdico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa ( 1). O recorrente dever demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciao exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existncia da repercusso geral ( 2), no havendo se falar em demonstrao implcita do requisito.

    3 O STF j decidiu que esse dispositivo auto-aplicvel, no cabendo regulamentao restritiva por parte do CNJ ou de qualquer Tribunal (ADI 3.823/DF, Info STF 451, dez/2006).

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    Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idntica controvrsia, a anlise da repercusso geral ser processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (CPC, art. 543-B, caput). Caber ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvrsia e encaminh-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais at o pronunciamento definitivo da Corte ( 1). Negada a existncia de repercusso geral, os recursos sobrestados considerar-se-o automaticamente no admitidos ( 2). Julgado o mrito do recurso extraordinrio, os recursos sobrestados sero apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformizao ou Turmas Recursais, que podero declar-los prejudicados ou retratar-se ( 3). Mantida a deciso e admitido o recurso, poder o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acrdo contrrio orientao firmada ( 4).

    A EC 45/04 trouxe duas novidades visando aproximar a justia dos jurisdicionados, de modo a atingir aquelas regies mais desassistidas. Em primeiro lugar, definiu que os Tribunais Regionais Federais instalaro a justia itinerante, com a realizao de audincias e demais funes da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdio, servindo-se de equipamentos pblicos e comunitrios (CF, art. 107, 2). Em segundo lugar, disps que os Tribunais Regionais Federais podero funcionar descentralizadamente, constituindo Cmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado justia em todas as fases do processo ( 3). Os Tribunais Regionais do Trabalho e os Tribunais de Justia, a exemplo dos TRFs, tambm podero instalar a justia itinerante (art. 115, 1 e art. 125, 7) e funcionar descentralizadamente (art. 115, 2 e art. 125, 6).

    Outra grande inovao trazida pela EC 45/04 refere-se criao do Conselho Nacional de Justia, com a competncia precpua de exercer o controle da atuao administrativa e financeira do Poder Judicirio e do cumprimento dos deveres funcionais dos juzes (art. 103-B, 4). O STF j firmou o entendimento de que o CNJ rgo prprio do Poder Judicirio (CF, art. 92, I-A), composto, em sua maioria, por membros desse mesmo Poder (CF, art. 103-B), nomeados sem interferncia direta dos outros Poderes, dos quais o Legislativo apenas indica, fora de seus quadros e, assim, sem vestgios de representao orgnica, 2 dos 15 membros, no podendo essa indicao se equiparar a nenhuma forma de intromisso incompatvel com a ideia poltica e o perfil constitucional da separao e independncia dos Poderes (ADIN 3.367-DF, Info STF 383, abr/2005). Trata-se de rgo interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura, ou seja, no constitui rgo externo estrutura do Poder Judicirio, em virtude da vedao constitucional a interferncias externas que possam, de alguma forma, afetar negativamente a independncia da Magistratura (ADI 1578/AL, rel. Min. Crmen Lcia, 04/03/2009).

    A EC 45/04 foi tambm responsvel pelo maior detalhamento das competncias cabveis Justia do Trabalho (art. 114), pela possibilidade de criao de varas especializadas em conflitos fundirios no mbito do Tribunal de Justia (art. 126) e por importantes modificaes no Ministrio Pblico (art. 127).

    1.2 Smulas Tradicionais ou Persuasivas e Smulas Vinculantes

    Entende-se por smula (do latim summula, sumrio, resumo) um enunciado simples e direto normalmente elaborado em uma nica frase que traduz a interpretao dominante adotada por um colegiado qualquer sobre determinado tema, em certa poca. A smula tem a funo, portanto, de traduzir, da forma mais clara possvel, o entendimento que

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    predomina em um Tribunal. Tem tambm a funo de poupar os prprios membros daquele Tribunal de citar todos os precedentes que escoram suas decises, bastando que citem a smula para se fazerem bem entendidos. As smulas, assim, nasceram com o objetivo de tornar mais transparente o pensamento dos Tribunais, conferindo, por via de consequncia, maior segurana jurdica aos jurisdicionados. Pertinente citar conceito de direito sumular adotado em acrdo do STJ (AgRg no Ag 8703/ CE, DJ 02/09/1991):

    O direito sumular traduz o resumo da jurisprudncia sedimentada em

    incontveis e uniformes decises das Cortes superiores do Pas, que visam

    rapidificao de causas no Judicirio.

    Existe um caminho lgico que percorrido entre uma primeira deciso e a transformao de sua ratio decidendi em um entendimento sumulado. Por vezes, uma deciso torna-se to importante, to marcante que passa a funcionar como parmetro para as decises seguintes torna-se um leading case. Noutras vezes, decises convergentes vo emergindo de diversos julgados, havidas em juzos distantes ou pouco conexos uns com os outros. Em ambas as hipteses, surge, ento, o que se denomina como jurisprudncia dominante. Quando esta jurisprudncia assume o monoplio intelectual a ponto de ser entendida como pacfica, consolidada, d azo a que o juzo interessado atribua-lhe o estado especial de entendimento sumulado, ou simplesmente smula. Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci enunciam uma interessante lio sobre a evoluo dos precedentes judiciais em direo sua sumulao (2005, p.304-8):

    Em nosso sistema codicista, a tese jurdica que fundamenta uma deciso

    judicial produz efeito diante do caso sob anlise, mas no deixa de servir

    de exemplo, precedente para decises subseqentes. Se esta tese jurdica

    perfilhada v-se reiterada de modo uniforme e constante (permanncia

    lgica e temporal) em casos semelhantes, identificamos o que intitulamos

    jurisprudncia. Quando esta tese conquista terreno significativamente

    majoritrio em determinado rgo judicial colegiado, soe acontecer a

    edio de smula ou enunciado que positive, desvele pontualmente o

    entendimento sedimentado.

    As smulas podem ser de dois tipos. H as smulas tradicionais, tambm chamadas de persuasivas, e as smulas vinculantes. As smulas tradicionais, aquelas existentes at a promulgao da EC 45/2004, no vinculam, isto , no obrigam quem quer que seja, nem mesmo as instncias inferiores, que tm plena liberdade de afastar sua incidncia no caso concreto. Na verdade, tm efeito meramente persuasivo, da a qualificao pela qual so tambm conhecidas. A smula vinculante, diferentemente, a todos obriga, paralisando qualquer atividade em sentido contrrio, exceto a atividade legiferante, a qual funcionar como uma das possveis formas de controle do novo instituto.

    A no obrigatoriedade de observncia das smulas tradicionais no lhe esvazia a finalidade, assim como a no vinculao aos precedentes jurisprudenciais no afasta a importncia de uma pesquisa ou fundamentao nesse sentido. Quando se pensa em decises que se sobrepem no mesmo sentido, fcil ver que um Tribunal s muito excepcionalmente se afastar da direo que gradativamente se consolidou. por isso que se fala em perfil indiretamente obrigatrio dessa espcie de smula, como o dizem Gilmar Ferreira Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e Paulo Augusto Gonet Branco (2007, p. 915). Pode-se inferir que os casos futuros observaro, via de regra, aquele mesmo raciocnio. Natural, portanto, que as partes e os julgadores se orientem por essa diretriz, aquelas evitando demandas sem

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    chance de prosperar, e os magistrados, por outro lado, adotando a lei do menor esforo em simplesmente indicar a matria sumulada ou evitando que suas decises venham a ser reformadas. As smulas constituem, assim, verdadeiros modelos, que so seguidos espontaneamente pela comunidade jurdica.

    Dessa forma, ainda que no haja vinculao na observncia das smulas tradicionais ou da jurisprudncia no sumulada, tais so importantes instrumentos de norteamento para o trabalho da comunidade jurdica. dizer, apesar de lhes falecer impositividade, revestem-se, na verdade, de grande fora prtica, canalizando o pensamento jurdico em determinado sentido. Dessa forma, podem tambm ser entendidas como instrumento de autodisciplina dos Tribunais que a exteriorizam, que somente se afastam de forma fundamentada e excepcional da orientao fixada. Na verdade, mesmo uma nica deciso judicial pode cumprir esse papel, quando se converte em um leading case, tornando-se um paradigma ou um divisor de guas para as decises de um determinado Tribunal.

    Interessante conhecer alguns detalhes processuais referentes adoo de smulas tradicionais em nossas principais Cortes (das smulas vinculantes cuidaremos de forma detalhada depois). No mbito do Supremo Tribunal Federal, a incluso de tais smulas, bem como sua alterao ou cancelamento, sero deliberados em Plenrio, por maioria absoluta (RISTF, art. 102, 1). Qualquer dos ministros daquela Corte poder propor a reviso da jurisprudncia compendiada na forma de smula, procedendo-se ao sobrestamento do feito, se necessrio (art. 103).

    No mbito do Superior Tribunal de Justia, temos que ser objeto de smula o julgamento tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram a Corte Especial ou cada uma das Sees, em incidente de uniformizao de jurisprudncia; tambm podero ser inscritos na smula os enunciados correspondentes s decises firmadas por unanimidade dos membros componentes da Corte Especial ou da Seo, em um caso, ou por maioria absoluta em pelo menos dois julgamentos concordantes (RISTJ, art. 122, 1). A incluso da matria objeto de julgamento na smula da jurisprudncia do Tribunal ser deliberada pela Corte Especial ou pela Seo, por maioria absoluta dos seus membros ( 2). Se a Seo entender que a matria a ser sumulada comum s Sees, remeter o feito Corte Especial ( 3). Qualquer dos Ministros poder propor, em novos feitos, a reviso da jurisprudncia compendiada na smula, sobrestando-se o julgamento, se necessrio (art. 125, 1).

    1.3 OqueSignificaaAdoo,entreNs,dasSmulasVinculantes?

    A introduo entre ns das smulas vinculantes aproximou o sistema aqui adotado (bem como nos pases de tradio romanstica), conhecido como civil law, ou romano-germnico, fortemente lastreado na legislao positiva, do sistema denominado common law, de matriz anglo-americana, em que os juzes muitas vezes decidem sem apoio de uma lei positivada, baseando-se especialmente nos precedentes que informam o caso concreto.

    Os dois sistemas resolvem as questes jurdicas de modo bastante diverso. No civil law, a soluo dos conflitos se d ao mtodo dedutivo, partindo sempre do geral (as normas) para o particular (o caso concreto). J no sistema americano, o mtodo o indutivo, eis que a soluo pensada apenas para o caso concreto (pragmatismo exacerbado), a partir do qual emana o edifcio jurdico (Andr Ramos Tavares, 2008, p. 383).

  • 17

    Osmar Mendes Paixo Crtes apresenta uma diferenciao entre os dois sistemas que vale a pena ser transcrita (2008, p. 119):

    Em sntese, pode-se afirmar que a regra do direito na Inglaterra tem um

    carter diverso da do sistema romano-germnico. Neste, a regra marcada

    pela generalidade, elaborada em cima de princpios desenvolvidos pela

    doutrina, e objetiva regular as condutas na sociedade. No direito ingls,

    a regra deve ser apta a dar, de forma imediata, a soluo de um litgio.

    Os juzes tm a preocupao de resolver determinado caso concreto e,

    quando vrias decises j foram tomadas em um mesmo sentido, podem

    utiliz-las como precedentes ou at reconhecer um princpio.

    O autor interpreta que a diferenciao entre os dois sistemas (o ingls e o romano-germnico) pode ser atribuda, ainda que parcialmente, existncia de um forte poder real, no caso da Inglaterra, o que levou despreocupao de se produzir leis genricas que pudessem ser utilizadas pelos julgadores (2008, p. 119). dizer, havia sempre a possibilidade da interveno real para decidir as questes que discrepassem dos casos anteriores.

    Allan Farnsworth apresenta uma consiste e bastante citada fundamentao para a credibilidade que o precedente assumiu no sistema anglo-americano (1963, p. 61-8):

    A confiana no precedente se desenvolveu primeiramente no direito ingls

    e foi adotada nos Estados Unidos como parte da tradio no direito ingls.

    Como tradio, no foi transformada em regra escrita e no encontrada

    na Constituio ou nas leis (...). A justificao comumente dada a essa

    doutrina pode ser resumida em quatro palavras: igualdade, previsibilidade,

    economia e respeito. O primeiro argumento que a aplicao da mesma

    regra em casos anlogos sucessivos resulta em igualdade de tratamento

    para todos que se apresentem justia. O segundo que uma sucesso

    consistente de precedentes contribui para tornar previsvel a soluo de

    futuros litgios. O terceiro que o uso de um critrio estabelecido para

    soluo de novos casos poupa tempo e energia. O quarto que a adeso a

    decises anteriores mostra o devido respeito sabedoria e experincia das

    geraes passadas de juzes.

    Uma observao muito importante que Allan Farnsworth faz o alerta de que a doutrina do precedente no exige uma adeso absoluta, irrestrita, ao passado. Ao contrrio, a

    referncia ao passado flexvel, sendo na verdade uma benesse, na medida em que permite, ao juiz

    mais capaz, a possibilidade de aproveitar a sabedoria e a experincia de seus antecessores, bem como

    atentar para os erros e desatinos do passado, rejeitando-os no caso concreto que se apresenta. Na

    aplicao da doutrina do precedente, o juiz no se defronta com apenas um caso concreto, mas com

    vrios: o atual, a decidir, e todos os anteriores, o que contribui para enriquecer sobremaneira sua

    deciso (1963, p. 61-8).

    Inexiste no mundo prtico a aplicao pura de qualquer dos dois sistemas. O que h a predominncia de um sistema sobre o outro, com a utilizao de institutos hbridos. Alis, esse hibridismo vem se acentuando com o tempo, em uma tentativa de atenuar as imperfeies de ambos. Essa aproximao nada mais do que a tentativa de sntese entre uma tese e sua anttese, movimento que vem acompanhando a humanidade desde que ns nos destacamos dos outros seres vivos pela capacidade de raciocinar.

  • 18

    O civil law apresenta como principal inconveniente a tentativa de regular todas as possibilidades do mundo dos fatos em uma norma, como se todas as variveis pudessem ser efetivamente previstas. J o common law apresenta a desvantagem de, frequentemente, inviabilizar uma viso mais ampla das instituies, por excessivo apego ao caso concreto. A adoo pura de qualquer dos sistemas traria ainda a possibilidade palpvel de perpetuao do injusto, quando, por um lado, uma lei flagrantemente injusta ou defasada no puder ser corrigida pela atividade judicial, ou, por outro lado, o apego aos precedentes jurisprudenciais seja de tal monta que leve perpetuao de erros judiciais.

    Mnica Sifuentes aponta que a aproximao entre os dois sistemas operou tambm a aproximao dos paradigmas de juiz existentes no mundo ocidental (2005, p. 75):

    A estrutura que se v, na atualidade, corresponde a essa juno: o juiz

    dos pases de civil law construindo o direito, pela jurisprudncia; os juzes do common law utilizando-se da lei (statute law) para fundamentar a suas decises.

    Nesse ponto, vale destacar a crescente influncia que o statute law (edio de normas pelo Parlamento) vem adquirindo no direito ingls, aproximando-o gradativamente do civil law. O statute law sempre foi considerado um direito meramente complementar, o qual, muito timidamente, supria o sistema ingls da normatizao nas reas em que o common law acusava alguma deficincia. Mrcia Regina Lusa Cadore enumera alguns fatos que representam uma significativa mudana nesse quadro (2007, p. 66):

    No sculo XX, o parlamento editou novas regras em vrios campos do

    direito, em especial no direito privado: no direito de propriedade houve

    modificaes relevantes, no direito de famlia e no direito do trabalho. Por

    ltimo, destaca-se a reforma do processo civil ingls com a edio do Civil Procedure Rules em 1998. A reforma objetivou alcanar um processo mais rpido e menos custoso, mediante medidas que conferiram s Cortes um

    papel mais ativo.

    Ainda mais recentemente, o crescimento do direito legislado no Reino Unido tem tido muito a ver com a sua insero na Comunidade Europia. O direito comunitrio, prioritariamente legislado, vem ampliando progressivamente sua participao nos pases participantes dessa comunidade de naes, de modo que as legislaes internas vm sendo progressivamente derrogadas naquilo que contrariem os interesses comuns.

    O crescimento desse direito legislado, no sistema ingls, no se tem dado, contudo, de forma indolor, assim como a aplicao de institutos tpicos do common law costuma causar, via de regra, alguma perplexidade entre ns. claro que a possibilidade de choque entre uma lei e um precedente aumenta medida em que o statute law vai ganhando fora, e os desafios advindos da mistura de corpos normativos com caractersticas to dspares so fceis de imaginar, podendo destacar-se a possvel perda de integridade e previsibilidade do sistema jurdico, resultando em uma certa insegurana jurdica.

    No Brasil, as smulas vinculantes vm em socorro contra a indesejvel adoo pura do civil law, muito marcada at ento, de forma a agregar a principal vantagem proporcionada pelo common law: a possibilidade de que o Direito se abebere com mais nfase da sabedoria do passado, conjugando racionalidade e experincia, resultando num justo que vai sendo gradual e lentamente descoberto. claro que as smulas vinculantes so um instituto estranho aos nossos costumes jurdicos, e os nossos desafios so a outra

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    face da moeda que os pases europeus que adotam o common law vm enfrentando para se adaptar Comunidade Europia. O instituto dever ainda passar por inmeras adaptaes, abrasileirando-se gradativamente.

    1.4 EvoluodoInstitutonoBrasil

    O Decreto imperial 6.142/1876 pode ser apontado como o embrio das smulas vinculantes no Brasil. Essa norma tratou dos assentos de jurisprudncia, que permitiam ao ento Supremo Tribunal de Justia manifestar-se sobre dvidas (divergncias) na aplicao da lei por parte dos juzes e tribunais inferiores. Essas manifestaes tinham fora de lei, vinculando, portanto, toda a atividade legiferante das instncias inferiores. Os assentos de jurisprudncia tiveram vida curta, j que pouco tempo depois, em 15/11/1889, viria a ser proclamada a Repblica, fato que tornou obsoleta a maior parte do sistema normativo do Imprio.

    A adoo das smulas tradicionais, meramente persuasivas, pode ser tambm considerado um passo em direo s smulas vinculantes. Elas foram institudas por emenda ao Regimento Interno do STF, alterao essa aprovada em 13/12/1963. As smulas tradicionais sempre se apresentaram meramente como indcios de soluo racional e socialmente adequada, como instrumentos de persuaso, no dizer de Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci (2005, p. 305). No vinculam, por outras palavras.

    O nascimento das smulas ditas persuasivas tm muito a ver com a necessidade de racionalizao dos trabalhos judicirios. Vivemos na era da informtica, onde uma pesquisa jurisprudencial em geral leva pouco tempo. Contudo, imagine-se os juzes tendo que decidir acerca de inmeros casos. Decerto, a pesquisa sobre as decises pretritas nas vrias instncias judicirias poderia tomar um excesso de tempo de energia. A esse respeito, vale a pena ler o interessante depoimento do ento Ministro do STF Victor Nunes Leal, tido como o grande idealizador da smula da jurisprudncia predominante daquela Corte (in Glauco Salomo Leite, 2007, p. 50):

    Juiz calouro, com a agravante da falta de memria, tive que tomar, nos

    primeiros anos, numerosas notas, e bem assim sistematiz-las, para pronta

    consulta durante as sesses de julgamento. (...) Por isso, mais de uma vez,

    em conversas particulares, tenho mencionado que a Smula subproduto da minha falta de memria, pois fui eu afinal o relator, no s da respectiva

    emenda regimental, como de seus 370 enunciados.

    Posteriormente, a Emenda Constitucional 7, de 13/04/1977, aposta Constituio de 19694, passou a prever o cabimento de representao do Procurador-Geral da Repblica por inconstitucionalidade ou para interpretao de lei ou ato normativo federal ou estadual, a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (art. 119, I, l ). O que se tinha era uma representao interpretativa, a qual conferia ao Supremo o poder de impor, em processo de natureza abstrata, a interpretao a ser adotada em face de determinado texto normativo, na lio de Roger Stiefelmann Leal, que prossegue (2006, p. 136):

    A vinculao decorrente da representao interpretativa obrigava

    erga omnes, especialmente os demais juzes e tribunais. Suas decises

    assemelhavam-se, dessa forma, s leis interpretativas. Eventual divergncia

    4 Formalmente denominada Emenda Constitucional 1, de 1969, mas, do ponto de vista material, uma verdadeira Constituio, tanto que foi objeto de vrias emendas, em um esquizofrnico processo de emendas a uma emenda.

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    interpretativa deflagrada por outro rgo judicial aps a deciso

    interpretativa do Supremo Tribunal Federal incorria em violao a literal

    disposio de lei, para efeito de ao rescisria (art. 485, V, do CPC), e

    negativa de vigncia de lei, hiptese suficiente para interposio, poca,

    de recurso extraordinrio (art. 119, III, a, da Emenda Constitucional n

    1/69).

    O instituto da representao interpretativa foi mais um passo evolutivo em direo futura adoo das smulas vinculantes, na medida em que impunha uma determinada interpretao aos tribunais inferiores. O passo seguinte foi a expedio da Emenda Constitucional 3/1993, que criou a ao declaratria de constitucionalidade e atribuiu-lhe expressamente esse efeito. Em seguida, o Supremo Tribunal Federal passou a atribu-lo a alguns julgados havidos em sede de ao direta de inconstitucionalidade, de modo a garantir simetria entre a ao que garante a constitucionalidade (ao declaratria de constitucionalidade) e a que nega tal atributo (ao direta de inconstitucionalidade).

    Posteriormente, a Lei 9.868/1999 estendeu esse efeito expressamente ao direta de inconstitucionalidade. O passo seguinte foi a edio da Lei 9.882, de 03/12/1999, dispondo sobre o processo e julgamento da arguio de descumprimento de preceito fundamental, atribuindo tambm a esse instituto o mesmo efeito. Por fim, a prpria EC 45/2004 atribuiu efeito vinculante a ambas as aes, de molde a espancar qualquer dvida que ainda restasse a esse respeito. Aps a publicao da EC 45/2004, a Lei 11.417/2006 veio disciplinar a edio, a reviso e o cancelamento de enunciado de smula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal.

    O prprio carter simplesmente persuasivo das smulas tem evoludo para caractersticas progressivamente vinculativas, pelo menos na esfera processual. Esse papel cada vez menos persuasivo e cada vez mais obrigacional das smulas tradicionais pode ser percebido em algumas modificaes recentes efetuadas na legislao. Vejamos5.

    Passou a ser permitido que o relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justia, decida o pedido ou o recurso que haja perdido seu objeto, bem como negue seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabvel ou, improcedente ou ainda, que contrarie, nas questes predominantemente de direito, Smula do respectivo Tribunal (Lei 8.038/90, art. 38).

    Posteriormente, A Lei 9.528/97 alterou a Lei do Plano de Benefcios da Assistncia Social (Lei 8.213/91) no sentido de permitir que o Ministro da Previdncia e Assistncia Social autorize o INSS a formalizar a desistncia ou abster-se de propor aes e recursos em processos judiciais sempre que a ao versar matria sobre a qual haja declarao de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, smula ou jurisprudncia consolidada do STF ou dos tribunais superiores (art. 131).

    O Cdigo de Processo Civil passou a prever permisso para que o relator do processo, se o acrdo recorrido estiver em confronto com a smula ou jurisprudncia dominante do STJ, conhea de agravo para dar provimento a recurso especial, o mesmo valendo para o recurso extraordinrio quanto ao STF (art. 544, 3, na redao dada pela Lei 9.758/98, e 4, includo pela Lei 8.950/94). Da mesma forma, o relator negar seguimento a recurso manifestamente inadmissvel, improcedente, prejudicado ou em confronto com smula ou com jurisprudncia dominante do respectivo Tribunal, do Supremo Tribunal

    5 Evoluo legislativa apontada por Glauco Salomo Leite (2007, p. 54-6).

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    Federal, ou de Tribunal Superior; por outro lado, se a deciso recorrida estiver em manifesto confronto com smula ou com jurisprudncia dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poder dar provimento ao recurso (art. 557, caput e 1-A, na redao dada pela Lei 9.756/98).

    Posteriormente, a Lei 10.352/2001 modificou referido cdigo para dispor que no se aplica o duplo grau de jurisdio quando a sentena estiver fundada em jurisprudncia do plenrio ou em smula do Supremo Tribunal Federal ou em smula do Tribunal Superior competente (art. 475, 3). A Lei 11.276/2006, por sua vez, introduziu regra segundo a qual o juiz no receber o recurso de apelao quando a sentena estiver em conformidade com smula do Superior Tribunal de Justia ou do Supremo Tribunal Federal (art. 518, 1). Em ambos os casos, temos que todas as smulas tradicionais dos tribunais relacionados se transformam automaticamente em smulas impeditivas de recurso, paralisando a lide ainda na primeira instncia.

    Cabe citar, tambm, alterao no mbito do processo do trabalho, segundo a qual cabe recurso de revista para turma do Tribunal Superior do Trabalho das decises proferidas em grau de recurso ordinrio, em dissdio individual, pelos Tribunais Regionais do Trabalho, quando derem ao mesmo dispositivo de lei federal interpretao diversa da que lhe houver dado outro Tribunal Regional, no seu Pleno ou Turma, ou a Seo de Dissdios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, ou a Smula de Jurisprudncia Uniforme dessa Corte (CLT, art. 896, a, alterado pela Lei 9.756/98).

    Por fim, a EC 45/2004 trouxe a possibilidade de atribuir efeito vinculante a essas smulas, desde que tal efeito seja confirmado por 2/3 dos integrantes do STF e aps a publicao na imprensa oficial (art. 8). Podem tambm continuar a ser editadas, embora seja improvvel que o STF o faa.

    Ante todo o exposto, fcil constatar que as smulas vinculantes no constituram um elemento de inovao radical ou de grande ruptura no sistema jurdico brasileiro. Afinal, no podemos deixar de olvidar que, via de regra, a jurisprudncia dominante do Supremo Tribunal Federal sempre funcionou como um importante paradigma para a ao da administrao pblica e para a resoluo judicial de casos futuros, de modo que j faz parte de nossa cultura jurdica, bem ou mal, atentar para o pensamento de nossa Corte maior.

    1.5 O Instituto e seus Similares no Direito Comparado

    O regime obrigacional das smulas vinculante inspira-se no sistema de common law, especialmente o adotado pelos Estados Unidos, no qual as decises preferidas pela Suprema Corte obrigam os demais rgos do Poder Judicirio (mas no a prpria Suprema Corte, tal como ocorre no Brasil). dizer que a sistemtica de smulas vinculantes apoia-se na teoria dos precedentes vinculantes (binding precedents) ou das decises sedimentadas, derivadas do brocardo mantenha-se a deciso e no se perturbe o que foi decidido (stare decisis et quieta non movere).

    A existncia de similitudes entre a smula vinculante brasileira e o stare decisis norte-americano no afasta o fato de existirem diferenas significativas entre esses institutos. Roger Stiefelmann Leal aponta pelo menos trs dessas diferenas: a) enquanto o efeito vinculante surgiu no mbito do controle de constitucionalidade europeu, tendo por fim garantir mxima fora normativa Constituio, o stare decisis surgiu como resposta escassa

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    produo legislativa dos primrdios do common law, ou seja, como instrumento de estabilizao social substituto da ausncia de normas; b) enquanto o efeito vinculante obriga inclusive as instncias no jurisdicionais, o stare decisis vincula apenas o Poder Judicirio, constituindo, dessa forma, instrumento de coerncia interna desse poder; e c) por fim, enquanto o efeito vinculante tem uma carter impositivo inafastvel, no stare decisis so reconhecidos, excepcionalmente, certos mecanismos de insubordinada superao (overruling), de modo que cabe aos demais rgos do Poder Judicirio, mediante tcnicas decisrias especficas tais como a superao antecipada (antecipatory overruling) ou a superao implcita , desgarrarem-se dos precedentes da Suprema Corte e decidirem casos de maneira diversa (2006, p. 127).

    Nesse ponto, importante esclarecer alguns termos utilizados no direito anglo-saxnico. De incio, vale destacar que ao lado dos binding precedents h os persuasive precedents, que, ao contrrio dos primeiros, no tm carter vinculativo. Pela tcnica do prospective overruling, a nova regra no se aplica ao caso concreto sob anlise ou seja, entende-se que h a necessidade de superao do precedente, mas a inovao do entendimento resguarda o caso em tela. Esse mtodo apresenta um custo: fcil ver que o caso concreto estar sendo julgado por um direito superado, e o litigante perdedor pode sair com a compreensvel sensao de que no lhe foi feito justia. J pela tcnica do antecipatory overruling, a superao do precedente realizada com base em novo entendimento exarado pelas instncias superiores, mas ainda no materializado em uma deciso concreta. Ou seja: a aplicao do mtodo do prospective overruling por parte das instncias mais altas autoriza desde logo a aplicao da tcnica do antecipatory overruling por parte das instncias inferiores, j no caso concreto sob anlise, em uma espcie de delegao de poder de overruling, no dizer de Mrcia Regina Lusa Cadore (2007, p. 77).

    Osmar Mendes Paixo Crtes ressalta a possibilidade de nem sempre os precedentes serem vinculativos (2008, p. 116):

    Isso porque as decises das Cortes Superiores, como a House of Lords e a Corte de Apelao, vinculam as das inferiores, mas estas no

    necessariamente tero suas decises consideradas por aquelas.

    A possibilidade de overruling, ou seja, de desconsiderao do precedente, muito mais aceita nos Estados Unidos que na Inglaterra. Pode-se dizer que o apego ingls aos precedentes o que por vezes acaba atraindo a pecha de vetusto e anacrnico ao direito praticado naquele pas contrasta com a flexibilidade do sistema americano, o qual permite que o precedente seja avaliado e modificado com muito mais tranquilidade6. Quando se trata de Cortes de mesma hierarquia (de nvel estadual, por exemplo), temos que o precedente chega a ter autoridade meramente persuasiva. Em ambos os pases, contudo, a referncia a precedentes continua a ser ponto de partida obrigatrio, passagem tpica do iter decisrio, e os casos de overruling so limitados, se consideramos o nmero de julgamentos Mrcia Regina Lusa Cadore (2007, p. 246).

    Maria Regina Lusa Cadore apresenta uma interessante justificativa para a maior inflexibilidade do sistema ingls (2007, p. 60):

    6 O critrio do stare decisis visto nos EUA como uma concretizao do princpio geral da certeza e previsibilidade do direito e como tal deve ser harmonizado com outros princpios que direcionam o sistema para a justia e coerncia completas, leciona Mrcia Regina Lusa Cadore. E complementa a autora: Por isso, o respeito ao precedente no mais uma operao mecnica, mas o resultado de um fino balanceamento entre exigncias opostas, entre as quais o peso atribudo ao valor certeza varia conforme o ramo do Direito (2007, p. 77).

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    Referida teoria [do precedente judicial] parte do pressuposto de que o

    common law no um direito produzido pelos juzes, vale dizer, um direito jurisprudencial, mas , ao invs disso, um conjunto de costumes jurdicos

    existentes na Inglaterra desde poca imemorivel. Estes costumes so

    regras no escritas conhecidas por cada bom ingls. A tarefa de verbalizar

    precisamente tais regras compete aos juzes apenas na apreciao dos

    casos concretos que lhes so submetidos. Nesse sentido, os juzes so o

    orculo do direito enquanto expressam o mesmo (to find the law), mas no correto afirmar-se que criam o direito (to make the law).

    dizer, o juiz, no sistema ingls, descobre o direito, no o cria. Uma vez trazida a lume a regra de direito, uma vez verbalizada, esta deixa de existir abstratamente, tornando-se palpvel. O juiz que apreciar o caso seguinte pouco mais dever fazer do que simplesmente aplicar o direito. Se ousar discordar do precedente, ou estar incorrendo em erro, podendo ser objeto de censura, ou estar corrigindo seu antecessor, descobrindo o verdadeiro direito, anunciando que a descoberta anterior era falha nesse caso, necessitar esmerar-se em apresentar uma fundamentao muito bem construda.

    Fato que as colnias inglesas na Amrica no importaram in totem o modelo ingls, como seria de se esperar. O que vigorou foi uma combinao de esparsos atos legislativos com costumes locais formados nos primrdios da colonizao. Houve, nos Estados Unidos, uma acentuada releitura do sistema de common law ingls. E no poderia ser diferente, at mesmo em funo do contraste existente entre as duas situaes: na Inglaterra, vicejava uma aristocracia centralizada e etnicamente homognea; nos Estados Unidos, nascia uma democracia descentralizada e multirracial.

    Maria Regina Lusa Cadore aponta, ainda, outras duas importantes diferenas entre as realidades inglesa e americana: a) o processo judicial americano foi construdo em bases mais racionais, em contraste com o direito ingls, que refletia a estratificao da sociedade (aristocracia) e era baseado em costumes imemoriveis (2007, p. 71-2); e b) enquanto na Inglaterra a nomeao dos juzes ocorria somente entre advogados cultos e j consagrados, nos Estados Unidos isso no ocorria, sendo possvel a ascenso de jovens advogados Magistratura, de forma que os debates jurdicos eram mais acirrados e mais influenciveis pela doutrina.

    1.6 Efeito Vinculante e Smulas Vinculantes

    A Constituio Federal prev que funcionar: a) junto ao Superior Tribunal de Justia, o Conselho da Justia Federal (CJF), cabendo-lhe exercer, na forma da lei, a superviso administrativa e oramentria da Justia Federal de primeiro e segundo graus, como rgo central do sistema e com poderes correcionais, cujas decises tero carter vinculante (art. 105, pargrafo nico, II); e b) junto ao Tribunal Superior do Trabalho, o Conselho Superior da Justia do Trabalho (CSJT), cabendo-lhe exercer, na forma da lei, a superviso administrativa, oramentria, financeira e patrimonial da Justia do Trabalho de primeiro e segundo graus, como rgo central do sistema, cujas decises tero efeito vinculante (art. 111-A, 2, II).

    Importante notar que esses rgos expedem meros atos administrativos, no exercendo qualquer funo jurisdicional. Vinculam as instncias de primeiro e segundo graus na medida em que supervisionam a gesto da coisa pblica. Nada tm a ver com a

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    fora obrigacional de assentos de jurisprudncia, fugindo, portanto, ao escopo do presente trabalho.

    Efeito vinculante no se confunde com smula vinculante. Roger Stiefelmann Leal explica bem essa diferenciao (2006, p. 175):

    Seria a smula vinculante resultado da reiterao de decises num

    mesmo sentido, emitida aps diversos pronunciamentos da Corte

    sumulante, sintetizados num enunciado propositivo. Por sua vez, o efeito

    vinculante prescinde, segundo sua formulao original, de decises

    reiteradas, constituindo eficcia derivada do prprio julgado, ainda que

    nico. Ademais, o efeito vinculante no implica qualquer sumarizao

    ou estratificao jurisprudencial. A vinculao decorrente do instituto

    alcana todos os fundamentos determinantes do julgado, sem o perigo

    das imperfeies que, no raro, recaem sobre a simplificao em verbetes

    ou enunciados condensadores da jurisprudncia dominante.

    O efeito vinculante marca caracterstica das smulas vinculantes, mas no exclusividade. Ora, detm efeito vinculante tudo aquilo que tem fora obrigacional. Assim, uma lei tem efeito vinculante; uma deciso judicial, tambm, quanto s partes; e da mesma forma uma deciso de mrito em ao direta de constitucionalidade, desta feita com eficcia erga omnes. Assim, vinculante uma qualificativo que se d smula, querendo-se com isso dizer que ela obriga alguns.

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    CAPTULO 2 REGIME JURDICO DAS SMULAS VINCULANTES

    2.1 Natureza Jurdica

    Que , afinal, a smula vinculante? Jurisprudncia com fora de lei? Norma com roupagem de jurisprudncia? H aqueles que defendem que a smula vinculante tem a mesma natureza jurdica da norma, eis que aquela, assim como esta, projeta-se no mundo jurdico com os atributos de generalidade e abstrao. Outros, contudo, entendem que o papel da smula vinculante seria meramente o de estabilizar uma das interpretaes possveis da norma, no podendo ir alm dela, de modo que no seria possvel admitir smulas contra legem ou extra legem. Nessa linha, Manoel Gonalves Ferreira Filho entende que as smulas vinculantes so verdadeiras leis de interpretao, exercendo o STF, no caso, uma funo paralegislativa (2008, p. 268).

    A elaborao de uma norma envolve uma opo poltica. Significa dizer que seus idealizadores tm amplo campo de discricionariedade. Diferentemente, ao elaborar uma smula, o juzo est adstrito a um quadro limitado de opes vlidas, e obrigado a fundament-las e justific-las de forma convincente. Limitam-se, claro, pela norma em que se fundam. Podem at transbord-la e mesmo contrari-la, baseando-se, por exemplo, em princpios do Direito provocando a ira dos positivistas , mas devem faz-lo fundamentadamente, como j se disse. Enquanto a norma envolve uma opo poltica norteada por alguma tcnica, a deciso judicial justamente o contrrio: trata-se de uma tcnica balanceada por algum colorido poltico note-se que os pesos se invertem. Assim, entendemos que a smula vinculante norma no .

    Se no norma, mera jurisprudncia a smula vinculante certamente tambm no o . Seu carter obrigacional afasta essa possibilidade: ela obriga, isto , impe uma conduta. A jurisprudncia, ao menos em nosso sistema, um mero paradigma, um possvel caminho, do qual possvel se afastar com certa tranquilidade. No universo da jurisprudncia, a administrao pblica pode deixar de aplicar o entendimento dominante, bem como qualquer juiz pode seguir inovando o mundo jurdico com suas teses.

    Assim, sendo menos do que norma, certamente a smula vinculante mais do que jurisprudncia. algo entre esses dois universos: uma jurisprudncia obrigatria, como quer Glauco Salomo Leite, ou uma norma-jurisprudncia a essa ltima designao adere Mrcia Regina Lusa Cadore, expressando-se de forma bastante elegante (2007, p. 248):

    Em que pese se possa reconhecer que a possibilidade conferida ao Supremo

    Tribunal Federal de atribuir efeito vinculante smula implica atribuir-

    lhe parcela de poder normativo, a smula no pode ser equiparada lei.

    Resulta, isso sim, da interpretao dessa. A smula ato jurisdicional, ao

    qual a Lei Maior atribuiu a capacidade de extrapolar as fronteiras da lide:

    mais do que a jurisprudncia e menos do que a lei. Por isso a adequao

    da designao cunhada por Tesheiner: norma-jurisprudncia.

    De nossa parte, entendemos que as smula vinculantes se aproximam muito mais da natureza da jurisprudncia do que da norma. Assim, qualific-las como jurisprudncia obrigatria parece-nos mais adequado e mais prximo da realidade do que denomin-las de norma-jurisprudncia. A atividade interpretativa fica mais ressaltada, parece-nos, em detrimento da funo normativa, que secundria.

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    2.2 Objetivos

    A smula vinculante tem por objetivo a validade, a interpretao e a eficcia de normas determinadas, acerca das quais haja controvrsia atual entre rgos judicirios ou entre esses e a administrao pblica que acarrete grave insegurana jurdica e relevante multiplicao de processos sobre questo idntica (CF, art. 103-A, 1, e Lei 11.417/2006, art. 2, 2).

    Na lio de Uadi Lammgo Bulos, a smula vinculante tem como objetivo permitir ao Supremo Tribunal Federal padronizar a exegese de uma norma jurdica controvertida, evitando insegurana e disparidades de entendimento em questes idnticas (2007, p.1.085). Essa padronizao obtida por meio da construo de enunciados simples e diretos capazes de sintetizar o pensamento da Corte Constitucional. Osmar Mendes Paixo Crtes v trs funes principais para as smulas vinculantes (2008, p. 200):

    A primeira, da mesma forma que as smulas em geral, tornar conhecida

    a jurisprudncia consolidada no mbito do STF, facilitando a sua

    observncia. A segunda, evitar que sejam tomadas decises discrepantes

    da sumulada, por economia, celeridade processual e poltica judiciria. A

    terceira, dar segurana jurdica ao sistema e s relaes sociais.

    A anlise cuidadosa da letra da Constituio nos permite abstrair que a smula vinculante visa clarificar controvrsias no que concerne a trs aspectos: a) quanto validade da norma, vale dizer, com relao constitucionalidade ou legalidade desta; b) quanto sua interpretao, isto , no que se refere ao significado mais pertinente ao sistema jurdico vigente; e c) quanto eficcia da norma, ou seja, no que se refere sua real coercibilidade, inclusive tomando-a em sua dimenso social7.

    A primeira hiptese refere-se validade da norma. Nessa situao, poderemos ter uma situao curiosa. Veja-se, por exemplo, a smula vinculante 2, que prev ser inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consrcios e sorteios, inclusive bingos e loterias. claro que qualquer lei futura em desconformidade com essa smula ser inconstitucional, mas essa inconstitucionalidade no ser declarada de plano, pois a lei, ao nascer, vigora normalmente, tendo plena presuno de validade, pelo menos at que seja fulminada por uma declarao de inconstitucionalidade expressa. Assim, poderemos ter a inusitada situao de uma lei estadual sobre consrcios e sorteios chegar a vigorar, apesar da disposio expressa da smula vinculante, at que seja declarada sua inconstitucionalidade.

    A segunda hiptese refere-se a problemas de interpretao da norma. A smula vinculante 5, por exemplo, dispe que a falta de defesa tcnica por advogado no processo administrativo disciplinar no ofende a Constituio. Trata-se de um caso de clareamento da interpretao. A dvida era a seguinte: a) A CF preceitua que o advogado indispensvel administrao da justia (art. 133); b) o Estatuto dos servidores pblicos (Lei 8.112/1990), ao tratar do processo administrativo disciplinar, no fazia qualquer referncia necessidade de defesa tcnica, mediante advogado regularmente constitudo; c) afinal, qual seria a melhor

    7 Estamos assumindo a perspectiva majoritria daqueles que entendem que validade e eficcia so atributos distintos. Kelsen aborda bem esse ponto: Um dos extremos representado pela tese de que, entre validade como um dever-ser e eficcia como um ser, no existe conexo de espcie alguma, que a validade do Direito completamente indepen-dente da sua eficcia. O outro extremo a tese de que a validade do Direito se identifica com a sua eficcia. A par de rejeitar esses extremos, Kelsen coloca que a eficcia uma condio da validade, mas no esta mesma validade (2006, p. 235).

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    interpretao para a norma infraconstitucional, face ao disposto na Constituio? Como se v, o STF decidiu interpretando pela desnecessidade do advogado nessa espcie processual.

    A terceira hiptese refere-se eficcia da norma, quando houver dvidas a respeito. Qual o incio de sua vigncia, afinal? Onde e a quem se aplica, exatamente? razovel sua exigibilidade, tendo em vista o contexto em que ocorreu? So todas questes que podem ser respondidas por essa dimenso. A smula vinculante 7, v.g., preceitua que a norma constitucional que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano (art. 192, 3, atualmente revogado) tinha sua aplicao condicionada a edio complementar. Tratava-se, portanto, no de uma norma de eficcia plena, mas de norma dotada de eficcia limitada, na consagrada classificao de Jos Afonso da Silva. Eis a um caso em que o STF julgou por bem intervir para esclarecer a exata eficcia de uma norma constitucional, sendo inclusive notrio que a Corte o tenha feito para tratar de dispositivo j revogado certamente para liquidar quaisquer pretenses ainda insepultas.

    2.3 Requisitos

    Conforme j visto, a smula vinculante tem por objetivo a validade, a interpretao e a eficcia de normas determinadas, acerca das quais haja controvrsia atual entre rgos judicirios ou entre esses e a administrao pblica que acarrete grave insegurana jurdica e relevante multiplicao de processos sobre questo idntica (CF, art. 103-A, 1, e Lei 11.417/2006, art. 2, 2). Portanto, temos que somente certas normas podem ser objeto de smula vinculante, precisamente aquelas que gerem as controvrsias mencionadas, mas de novo somente quanto quelas que deem origem a inseguranas jurdicas ou prolixidade processual.

    Note-se que a controvrsia deve ser atual. A atualidade da controvrsia indica apenas que no haveria sentido editar smula vinculante acerca de questo j pacificada, eis que o instrumento serve justamente para encerrar as discusses que estejam ainda sendo objeto de ateno pelos juzes e tribunais do pas.

    Tambm, a controvrsia deve envolver rgos judicirios, necessariamente apenas entre estes ou envolvendo tambm a administrao pblica. Esses rgos podem estar divergindo sobre a constitucionalidade ou no de determinada norma (validade), sobre sua melhor interpretao ou sobre sua real eficcia, eis que dirimir tais questes representa o objetivo das smulas.

    Temos tambm que a controvrsia deve ser significativa, ou seja, deve ser capaz de acarretar grave insegurana jurdica e relevante multiplicao de processos sobre questo idntica. Matrias de reduzida relevncia ou que se refiram a uns poucos casos no devem ser objeto de smula vinculante. Aqui, implicitamente, o constituinte derivado acrescentou o requisito da repercusso geral, previsto explicitamente para o recurso extraordinrio por obra da EC 45/2004. Por esse requisito, no recurso extraordinrio, o recorrente dever demonstrar a repercusso geral das questes constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admisso do recurso, somente podendo recus-lo pela manifestao de 2/3 de seus membros (CF, art. 102, 3). Para efeito da repercusso geral, ser considerada a existncia, ou no, de questes relevantes do ponto de vista econmico, poltico, social ou jurdico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa (CPC, art. 543-A, 1, acrescentado pela Lei 11.418/2006).

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    H ainda outro requisito. As smulas vinculantes s podem vir tona aps reiteradas decises sobre matria constitucional (CF, art. 103-A, caput). Assim, imprescindvel a existncia de tal jurisprudncia. Note-se que a exigncia que a matria seja de mbito constitucional embora se ressalve, com muita razo, que nosso extenso texto da Lei Maior possa praticamente alcanar qualquer campo da atividade humana, como o faz Nagib Slaibi Filho (2005, p. 271) e tenha sido alvo de repetidas decises. A relao com a Constituio Federal deve ser direta e frontal, e no uma simples hiptese de ofensa reflexa ou indireta. E de grande importncia observar que h a necessidade de que haja jurisprudncia pacfica sobre o tema, no mbito do Supremo Tribunal Federal. A questo deve ter sido suficientemente debatida e discutida, no sendo cabvel a edio de smula vinculante baseada em deciso judicial isolada. que a ideia de smula traz em seu bojo a noo de tese firmada, com bem lembram Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci (2005, p.304-8):

    A preexistncia de reiteradas decises, embora no haja um nmero

    determinado que configure a reiterao, prenuncia a necessidade de que

    a questo jurdica j se encontre maturada, debatida, suficientemente

    decantada, sedimentada na Corte. Tambm nos parece bvio que o

    enunciado da smula deva ser o corolrio da evoluo do entendimento

    exarado nas decises anteriores e no mera criao de regra nova que

    solucione eventual divergncia existente.

    Contudo, a pacificao de uma tese, por outro lado, pode exigir um tempo que a sociedade, muitas vezes, no dispe. Nesse sentido, a observao de Gilmar Ferreira Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e Paulo Augusto Gonet Branco (2007, p. 919):

    A smula vinculante somente ser eficaz para reduzir a crise do Supremo

    Tribunal Federal e das instncias ordinrias se puder ser adotada em tempo

    social e politicamente adequado. Em outras palavras, no pode haver

    um espao muito largo entre o surgimento da controvrsia com ampla

    repercusso e a tomada de deciso com efeito vinculante. Do contrrio,

    a smula vinculante perder seu contedo pedaggico-institucional,

    no cumprindo a funo de orientao das instncias ordinrias e da

    Administrao Pblica em geral. Nesse caso, sua eficcia ficar restrita aos

    processos ainda em tramitao.

    Importante acrescentar que, desde que atendidos todos os requisitos analisados, qualquer norma pode ser objeto de smula vinculante, seja ela de direito material ou processual, seja ela editada em qualquer das esferas da Federao Unio, Estados, DF e Municpios , seja ela constitucional, legal ou infralegal, mas desde que impactem diretamente a interpretao da Constituio Federal, eis que, conforme vimos, exige-se que a matria seja de mbito constitucional. Ainda, possvel que a questo envolva to-somente interpretao da Constituio e no de seu eventual contraste com a outras normas infraconstitucionais (Gilmar Ferreira Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e Paulo Augusto Gonet Branco, 2007, p. 916).

    2.4 Tribunal Competente

    A competncia para editar smulas vinculantes ficou restrita ao Supremo Tribunal Federal. A proposta de emenda constitucional originalmente previa que tambm o Superior Tribunal de Justia e os tribunais superiores teriam competncia para edit-las,

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    mas o Congresso Nacional, de forma cautelosa, decidiu que a implantao das smulas vinculantes no mbito do STF j seria, por si s, uma modificao de grande monta no sistema jurdico brasileiro.

    Os representantes dos tribunais superiores, de quando em quando, se manifestam a favor da adoo das smulas vinculantes em seus respectivos mbitos. Recentemente, o Ministro Luiz Fux, Presidente da 1 Seo do STJ, declarou, a favor da adoo das smulas vinculantes no mbito do STJ, o que se segue: Trabalhamos com 12 mil leis. Haja conhecimento enciclopdico para tanta matria-prima. Cada ministro do Tribunal julga cerca de 1.500 processos por ms e, ainda assim, h um passivo de mais de 300 mil processos repetitivos tramitando8.

    2.5 Legitimados

    As propostas referentes s smulas vinculantes vale dizer, quanto sua edio, reviso ou cancelamento podem partir do prprio STF ou de outros rgos de ofcio ou por provocao, como especifica a CF (art. 103-A, caput). Esses outros rgos so os mesmos que podem propor a ao direta de inconstitucionalidade e ainda outros que a legislao infraconstitucional especificar ou vier a faz-lo (art. 103-A, 2).

    A Lei 11.417/2006 definiu que so legitimados para tal propositura (art. 3, caput): o Presidente da Repblica (inc. I); a Mesa do Senado Federal (inc. II); a Mesa da Cmara dos Deputados (inc. III); o Procurador-Geral da Repblica (inc. IV); o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (inc. V); o Defensor Pblico-Geral da Unio (inc. VI); partido poltico com representao no Congresso Nacional (inc. VII); confederao sindical ou entidade de classe de mbito nacional (inc. VIII); a Mesa de Assemblia Legislativa ou da Cmara Legislativa do Distrito Federal (inc. IX); o Governador de Estado ou do Distrito Federal (inc. X); e os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justia de Estados ou do Distrito Federal e Territrios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares (inc. XI). Cotejando com aqueles que podem propor ao direta de inconstitucionalidade (art. 103, caput), fcil ver que a lei acrescentou os seguintes legitimados: o Defensor Pblico-Geral da Unio e os tribunais.

    Recentemente, o Supremo aprovou a primeira smula proposta por um dos legitimados, a Smula vinculante 14. At ento, todas as smulas haviam partido do prprio STF. Assim, o Tribunal, por maioria, acolheu proposta de smula vinculante formulada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, aprovando-a nos seguintes termos: direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, j documentados em procedimento investigatrio realizado por rgo com competncia de polcia judiciria, digam respeito ao exerccio do direito de defesa. A proposta tinha a seguinte redao original: O advogado constitudo pelo investigado, ressalvadas as diligncias em andamento, tem o direito de examinar os autos de inqurito policial, ainda que estes tramitem sob sigilo (PSV 1/DF, rel. Min. Menezes Direito, 02/02/2009). De se notar, portanto, que o STF no se vincula redao apresentada pelo legitimado, podendo fazer as adaptaes que julgar necessrias.

    Questo importante saber se, da mesma forma que ocorre no caso das aes diretas de inconstitucionalidade, tambm alguns dos legitimados para propor smulas

    8 Disponvel em http://www.boletimjuridico.com.br/noticias/materia.asp?conteudo=2276, acesso em 17/04/2009, 12:48.

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    vinculantes sujeitam-se verificao de pertinncia temtica. que o Supremo Tribunal Federal exige relao de pertinncia com o objeto da ao no caso dos seguintes legitimados: a) Mesa de Assemblia Legislativa ou da Cmara Legislativa; b) Governador de Estado ou do Distrito Federal9 (ADI 2.747-DF); e c) confederao sindical ou entidade de classe de mbito nacional (ver ADI 1.873-MG). Uadi Lammgo Bulos (2007, p.1.087) e Jos Marcelo Menezes Vigliar (2005, p. 291) entendem que o requisito adicional da pertinncia temtica tambm se estende a tais legitimados, no que se refere propositura de smulas vinculantes.

    Temos ainda que o Municpio poder propor, incidentalmente ao curso de processo em que seja parte, a edio, a reviso ou o cancelamento de enunciado de smula vinculante, o que no autoriza a suspenso do processo (Lei 11.417/2006, art. 3, 1). A propositura de smula vinculante por parte de Municpio somente possvel no caso concreto, portanto. E no poderia ser diferente. Se fosse dado ao Municpio propor smulas de forma autnoma, teramos que o nmero de legitimados seria alargado a tal ponto que provavelmente inviabilizaria o instituto, em vista da quantidade de smulas que poderiam ser propostas. Permitindo que os Municpios se tornem legitimados apenas quanto aos processos em que atuam junto ao Supremo, criou-se um engenhoso filtro que, a par de no sobrecarregar o STF, eximiu-se de alijar os Municpios desse processo.

    Importante acrescentar que a proposta de edio, reviso ou cancelamento de enunciado de smula vinculante no autoriza a suspenso dos processos em que se discute a mesma questo (Lei 11.417/2006, art. 6). Ou seja, propostas referentes s smulas vinculantes no tem efeito suspensivo sobre processos que tratem da mesma temtica. Nada impede, portanto, que um determinado caso seja julgado contrariamente a entendimento do STF que esteja prestes a ser sumulado. Nesse caso, a irresignao da parte pode ser sanada por meio de recurso extraordinrio.

    2.6 Trmite Processual

    O trmite processual para propostas (edio, reviso ou cancelamento) de smulas vinculantes bastante simples, tendo sido publicada resoluo especfica a respeito (Resoluo 388, de 05/12/2008). Recebendo proposta de edio, reviso ou cancelamento de smula, vinculante ou no, a Secretaria Judiciria dever registr-la e autu-la, publicando edital no stio do Tribunal e no Dirio da Justia Eletrnico, para cincia e manifestao de interessados no prazo de 5 dias, encaminhando a seguir os autos Comisso de Jurisprudncia, para apreciao dos integrantes, no prazo sucessivo de 5 dias, quanto adequao formal da proposta (art. 1). Devolvidos os autos com a manifestao da Comisso de Jurisprudncia, a Secretaria Judiciria encaminhar cpias desta manifestao e da proposta de edio, reviso ou cancelamento de smula aos demais Ministros e ao Procurador-Geral da Repblica, e far os autos conclusos ao Ministro Presidente, que submeter a proposta deliberao do Tribunal Pleno, mediante incluso em pauta (art. 2). A manifestao de eventuais interessados e do Procurador-Geral da Repblica dar-se- em sesso plenria, quando for o caso (art. 3). A proposta de edio, reviso ou cancelamento de smula tramitar sob a forma eletrnica e as informaes correspondentes ficaro disponveis aos interessados no stio do STF (art. 4).

    9 Interessante observar que o Governador de um Estado pode impetrar ADI para impugnar lei ou ato normativo de outro Estado, desde que comprovada a devida relao de pertinncia. Esta poder existir quando o ato de um Estado afetar diretamente o outro no caso, por exemplo, de normatizao de im-posto estadual que prejudique o Estado vizinho.

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    Quando a proposta partir do relator de um determinado processo em tramitao no STF, o procedimento ainda mais simples. Neste caso, o relator pode, em plenrio, simplesmente propor que o assunto pertinente seja sumulado. Foi dessa forma que, na sesso plenria de 30/05/2007, por exemplo, transcorreram os debates e a aprovao das trs primeiras smulas vinculantes do STF (ata publicada no DJ de 14.06.2007), Na verdade, exige-se apenas que o Procurador-Geral da Repblica manifeste-se previamente votao (Lei 11.417/06, art. 2, 2).

    Poder o relator, adicionalmente, admitir, por deciso irrecorrvel, a manifestao de terceiros na questo, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (art. 3, 2) o que significa dizer que desempenharo o papel de meros amicus curiae, que no se confunde com a interveno de terceiros stricto senso.

    J houve caso em que o Tribunal, sentindo a necessidade de estabelecer smula vinculante sobre determinado assunto, preferiu submeter a matria Comisso de Jurisprudncia, antes de adotar a smula (RE 597154 QO/PB, rel. Min. Gilmar Mendes, 19/02/2009).

    2.7 Deciso

    A aprovao da smula vinculante exige o voto de 2/3 dos membros do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 103-A, caput). A reviso e o cancelamento da smula obedecem ao mesmo qurum (Lei 11.417/2006, art. 2, 3). Como so 11 os membros do STF, preciso que haja 8 votos favorveis proposta. Trata-se de uma quase unanimidade, como se v. Nada mais lgico. Se o Tribunal busca dar sociedade segurana jurdica, deve ter posio consolidada sobre o assunto, com a concordncia da maioria dos seus integrantes, pondera Osmar Mendes Paixo Crtes (2008, p. 193). A exigncia de qurum to alto est a demonstrar claramente que a smula somente nascer ou morrer por intermdio de uma convico firme do Tribunal.

    Importa adicionalmente ressaltar, como o faz Mrcia Regina Lusa Cadore, que a frao relativa ao qurum deve ser calculada sobre o nmero de juzes investidos, abstraindo-se eventuais vagas abertas (2007, p. 138).

    2.8 Efeitos

    A smula vinculante ter efeito a partir de sua publicao na imprensa oficial (CF, art. 103-A). Em funo desse dispositivo constitucional, a lei prev que, no prazo de 10 dias aps a sesso que editar, rever ou cancelar enunciado de smula com efeito vinculante, o Supremo Tribunal Federal dever publicar, em seo especial do Dirio da Justia e do Dirio Oficial da Unio, o enunciado respectivo (Lei 11.417/2006, art. 2, 4).

    A lei fala em publicao do enunciado respectivo, ou seja, somente se far publicar o enunciado da smula no caso, a parte dispositiva da deciso. Roger Stiefelmann Leal critica que a publicao se restrinja somente a essa parte. Entende o autor que seria necessrio dar publicidade tambm ratio decidendi que fundamenta a ao (2006, p. 171):

    Pela mesma razo por que se impe a publicao da parte dispositiva dos

    julgados do Supremo Tribunal Federal, acompanhada ou no de suas

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    ementas, seria indispensvel veicular no Dirio Oficial a ntegra dos seus

    fundamentos, a exemplo do que ocorre na prtica constitucional espanhola, com a finalidade de dar pleno conhecimento aos rgos pblicos situados

    em todas as regies do Pas sobre as interpretaes e princpios que esto

    obrigados a observar.

    Assim como ocorre na ao direta de inconstitucionalidade, o STF tem a prerrogativa de modular os efeitos da smula vinculante. A Lei 11.417/2006 determinou que, embora a smula com efeito vinculante tenha, via de regra, eficcia imediata, o Supremo Tribunal Federal, por deciso de 2/3 dos seus membros, poder restringir os efeitos vinculantes ou decidir que s tenha eficcia a partir de outro momento, tendo em vista razes de segurana jurdica ou de excepcional interesse pblico (art. 4).

    O que significa restringir os efeitos vinculantes? A smula pode alcanar apenas os Municpios, exemplifica Mrcia Regina Lusa Cadore (2007, p. 141). E o que seria excepcional interesse pblico? Um bom exemplo novamente apresentado por Mrcia Regina Lusa Cadore (2007, p. 141):

    A aplicao de determinada smula pode estar referida ao pagamento

    de determinado benefcio previdencirio, por exemplo, o que demanda previso oramentria, impossvel de ser estabelecida a qualquer tempo,

    sendo essa uma razo para a modulao temporal da eficcia da smula.

    Ocorre que a lei no trouxe definio para o que sejam razes de segurana jurdica ou fatos de excepcional interesse social. Trata-se, portanto, de conceito subjetivo, que dever ser construdo pelo Supremo Tribunal Federal, conforme as situaes que se lhe apresentem, dentro dos princpios da proporcionalidade e da razoabilidade.

    2.9 Destinatrios

    O efeito vinculante da smula se d em relao aos demais rgos do Poder Judicirio e administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (CF, art. 103-A, caput). Note-se que o efeito vinculativo no atinge o STF (eis que se destina apenas aos demais rgos do Poder Judicirio, na dico constitucional) e nem o Poder Legislativo. Assim, o STF pode simplesmente afastar a aplicao da smula conforme o caso concreto, sem necessidade de propugnar pelo seu cancelamento. Por outro lado, o Poder Legislativo pode editar lei em sentido totalmente contrrio ao da smula vigente, tornando-a sem efeito.

    Roger Stiefelmann Leal entende que o constituinte derivado andou bem em excluir alguns destinatrios do alcance obrigacional da smula vinculante (2006, p. 116):

    A destinao do efeito vinculante a todos os rgos e poderes do

    Estado resultaria no congelamento ou na petrificao da interpretao

    da Constituio. A evoluo e o desenvolvimento da jurisprudncia

    constitucional, sobretudo no sentido de adaptar o texto constitucional s

    novas realidades sociais e polticas, dependem necessariamente da abertura da jurisdio constitucional a vias interpretativas diversas, ou melhor,

    de que seja permitido a ela se afastar motivadamente de fundamentos

    adotados anteriormente, de modo a formar novos convencimentos.

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    H autores que entendem que a afirmao de que inexiste uma autovinculao do STF smula deve ser entendida com reservas no dizer de Gilmar Ferreira Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e Paulo Augusto Gonet Branco (2007, p. 918):

    Talvez seja mais preciso afirmar que o Tribunal estar vinculado ao

    entendimento fixado na smula enquanto consider-lo expresso adequada

    da Constituio e das leis interpretadas. A desvinculao h de ser formal,

    explicitando-se que determinada orientao vinculante no mais deve

    subsistir. Aqui, como em toda mudana de orientao, o rgo julgador

    ficar duplamente onerado pelo dever de argumentar.

    Cabe registrar que a no vinculao do STF Smula Vinculante encontra paralelo na no vinculao da Suprema Corte americana aos seus prprios precedentes. Esse fenmeno tambm pode ser verificado nas cortes americanas das instncias inferiores, que observam com o devido rigor os precedentes da Suprema Corte, mas se sentem vontade para descumprir seus prprios precedentes.

    Se h vinculao no que se refere administrao pblica, mas tal no existe quanto atividade legiferante, cabe a pergunta: ou no possvel ao Presidente da Repblica a edio de medidas provisrias que contrariem a ratio decidendi de uma smula vinculante? Entendemos que sim. A vinculao cinge-se unicamente ao exerccio da funo administrativa, funo tpica do Poder Executivo, e no funo legiferante exercida por esse poder, funo atpica. Do contrrio, o Presidente da Repblica ver-se-ia obrigado a vetar qualquer projeto de lei incompatvel com smula vinculante vigente, o que, na prtica, representaria verdadeira vinculao do Poder Legislativo.

    2.10 Descumprimento

    Da deciso judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de smula vinculante, negar-lhe vigncia