Tese de Doutoramento em Meio Ambiente e Desenvolvimento, Universidade Federal do Paran
Linha de pesquisa: Urbanizao, Cidade e Ambiente Urbano (em andamento)
DA PICHAO AO GRAFFITI: UMA DISCUSSO SOBRE A INSERO SOCIAL E POLTICA
DO ARTISTA DE RUA EM CURITIBA (2004- 2008) cidade, representaes, segregao, conflito, risco e vulnerabilidade
Elisabeth Seraphim Prosser
O conhecimento e a informao sobre a gesto do territrio [, da sociedade] e do meio ambiente urbano aumentam a conscincia da populao, qualificando-a para participar ativamente dos processos decisrios. Polticas e aes de educao e comunicao, criativas e mobilizadoras, devem contribuir para reforar todas as estratgias prioritrias de sustentabilidade urbana. 1
Breves consideraes iniciais
No contexto da modernidade tardia ou ps-modernidade e dentro da realidade
complexa constituda pelo processo de urbanizao, metropolizao e segregao
urbana/social observado em todo o planeta, a arte marginal (?) de rua 2 constitui, de um
lado, um universo especfico de representao e, de outro, denuncia a vulnerabilidade
aos riscos a que toda a sociedade est sujeita, expondo conflitos sociais, polticos,
urbanos e ambientais. Tanto nos seus contedos quanto pela prpria existncia do
1 BEZERRA, Maria do Carmo de Lima FERNANDES, Marlene Allan (Coord. Geral). Cidades sustentveis:subsdios elaborao daAgenda 21 brasileira.Braslia:Ministrio doMeio Ambiente Instituto Brasileiro doMeio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis Consrcio Parceria 21 IBAMISERREDEH, 2000.Disponvelem:.Acessoem:20abr.2005.2 Os termos arte marginal (?) urbana, arte urbana, arte de rua e interveno urbana so recorrentes eintercambiveis na literatura que trata do assunto. Sero usados, no presente projeto, como sinnimos. Isto,apesardediscussesquepossamsuscitarequeseroesclarecidasposteriormente.
movimento em si, revela de maneira contundente a questo da excluso social e poltica a
que o jovem, interventor urbano/ator social, inconformado com a realidade, est
exposto. Ao mesmo tempo, reflete a ausncia ou a ineficcia das polticas pblicas
atuais, que, ao contrrio do que propem a Agenda21 3 e o Estatuto da Cidade, 4 que
defendem a participao de todos os segmentos sociais nos processos decisrios, so
repressoras e, portanto poltica e socialmente excludentes.
Para Lima, 5 a emergncia de movimentos como a arte de rua, isto , o hip hop, 6 com
as suas quatro vertentes, o graffiti, 7 o rap, 8 o DJ 9 e o break, 10 constitui alternativa de
jovens que preferem este tipo de atividade, ligada ao protesto por meio de linguagens da
arte, em detrimento da criminalidade ou de outros tipos de engajamento. Esses
movimentos so
uma manifestao cultural que emergiu de um ambiente urbano com certas caractersticas (aglomerao, excluso, pobreza, degradao ambiental etc.), como uma das formas de o jovem reagir aos estmulos daquele ambiente, uma alternativa disponvel apenas para quem tem uma dose extra de talento e sensibilidade. Aos outros restam a droga, o crime, a religio ou a desejvel incluso social a partir da educao formal.
Ao observar os contedos veiculados pela interveno urbana, pode-se afirmar
que o seu carter denunciatrio em relao s condies sociais e socioambientais faz
3 AGENDA21.Captulo 25: A Infncia e a Juventude noDesenvolvimentoSustentvel. Introduo.Disponvelem:.Acessoem28abr.2005.4BRASIL.EstatutodaCidade:guiapara implementaopelosmunicpioseCidados:Lein.10.257,de10dejulho de 2001 que estabelece diretrizes gerais da poltica urbana. 3. ed. Braslia: Cmara dos Deputados,CoordenaodePublicaes,2005. 5 LIMA,PauloRolando.Comunicaopessoal.Curitiba,2007.6Hiphop:expressoquednomeaomovimento,relacionaseaobalanodosquadrisnadanadobreak.Hip:quadrishop:movimentoparaolado.SeulemaapalavraAtitude!,quedemonstraqueummovimentosocialdeconotaopoltica.Aculturaoufilosofiahiphopabrangeaintervenourbanamedianteaescrita,odesenhoeapintura(graffiti,pichao,stencil,lambelambe),amsica(rap,DJ),adana(break)ealiteratura.Manifestase,pois,nasdiferenteslinguagensartsticas,ocorrenasruaseagediretamentesobreoambienteurbano.Tempor objetivo acordar asociedadeanestesiadapeloconsumismo (depoimentodeartistade ruaannimoaE.Prosser.Curitiba,2005)7Graffiti:degraffo,emitaliano),significaoriginalmentequalqueratodeescrever,inscrever,marcaroudesenharsobrequalquersuperfcie, inclusiveumaparede.Atualmente, fazseumadiferenaentregraffitiepichao(oupicho).Ograffiticonstituiumaelaboraopictricamaiscomplexaecomcunhoesttico,enquantoopichonopassaderabiscoougaratuja.Ambostmafunodemarcaretomarpossedeumterritriourbanopblicoouparticular,mastambmveiculama idiado lugar,dopertencimento,da identidade,almde traduzemalgumamensagemexplcitaouimplcita.8Rap:RhythmandPoetry,ritmoepoesia,constituiamsicafaladadomovimentohiphop.9DJ:osonoplastaresponsvelpelamanipulaoritmadadosLongPlays,fundortmicomusicalsobreoqualsecantaorapesedananasfestasemgeral.10Break:danadohiphop,cujosmovimentossobastantequebradoseangulosos.
deste movimento uma ferramenta de alerta frente aos problemas existentes (e este, de
acordo com a pesquisa realizada at o momento, o seu objetivo maior).
Touraine, Bauman e Maffesoli, entre outros, enxergam a arte de rua e os seus
autores como sujeitos e atores protagonistas de um movimento social de grande
relevncia. De fato, em vrios momentos da histria recente, os jovens foram os
principais agentes de mudana. Basta lembrar o ano de 1968 na Europa e na Amrica
Latina, bem como o movimento Diretas j, no Brasil, para citar apenas alguns.
J Norbert Elias aponta, em sua obra Os estabelecidos e os out-siders, 11 o
enorme abismo existente entre a classe dominante, no caso da presente pesquisa os
proprietrias e o poder constitudo, e os segmentos sociais que esta classe marginaliza,
aqui, o jovem, especialmente o da periferia da cidade, o artista de rua. No imaginrio da
sociedade estabelecida, pichadores e grafiteiros so todos jovens da periferia,
desocupados, sem acesso educao e ao emprego, que no tm o que fazer e, por isso,
gastam seu tempo sujando a cidade e estragando a paisagem. 12 Esta concepo, senso
comum nas classes dominantes, cai logo por terra ao se examinar com mais detalhe quem
so estes atores sociais e o que pretendem com sua ao.
De fato, apresentam-se geralmente em grupos formados na sua maioria por
adolescentes e jovens que, em um mundo de desigualdade social, polarizao da riqueza,
crescente depauperao da natureza, racismo e desencontros culturais, se expressam
pela dimenso iconoclasta e anarquista. mediante a iconoclastia e o anarquismo,
carregados muitas vezes de agressividade, que o artista de rua choca a sociedade
estabelecida, que, por sua vez, se sente invadida e ameaada. Esta tem como reao
imediata o repdio e a necessidade de apagar, limpar, eliminar no s as manifestaes
em si (a pichao, o graffiti, os inmeros papis colados), mas aqueles que as realizam,
colocando-os margem. Ela no se d ao trabalho de ler o que est escrito, ou de
compreender as motivaes que esto na origem desse tipo de interveno urbana. Pode-
se afirmar que este comportamento da maioria da classe dominante generalizante,
preconceituoso, estigmatizador e excludente.
11ELIAS,Norbert.Osestabelecidoseosoutsiders.RiodeJaneiro:Zahar,2000.12 ZARUCK, Niwton. Entrevista a Diogo Marques. In: MARQUES, Diogo (Diretor e Produtor). Urbanographiadigitalizadadebaixaresoluo.Curitiba:AcademiaNacionaldeCinema,2005.Documentrio.
Autores como Maffesoli, Bauman, Elias, Bourdieu, Pignatari, Santaella e Frutiger
entendem que qualquer atitude, gesto ou rabisco tem significados e conotao poltica.
Sob esta perspectiva, a arte urbana constitui a expresso de inconformismos e
inquietaes e a representao de conflitos sociais, polticos e ambientais, e deveria ser
examinada na complexidade dos seus mltiplos significados e nas questes no
imediatamente perceptveis que a sua prtica revela, mas inerentes a ela.
Na presente investigao, ser examinada especificamente a interveno urbana
realizada pelo jovem urbano e que abrange desde a pichao at o graffiti, isto , desde
o vandalismo at a arte social e politicamente comprometida. Pretende-se estudar na sua
complexidade, nas suas contradies e no seu alcance, o papel dos seus autores como
atores sociais sobre Curitiba entre 2004 e 2008, tendo como principais enfoques o
mundo das representaes as relaes de conflito que surgem entre segmentos da
sociedade 13 mediante essa manifestao e a avaliao de aes da sociedade e polticas
pblicas implementadas pela municipalidade para lidar com este movimento. Isso, levando
em conta a situao de vulnerabilidade e risco em que os prprios artistas de rua se
encontram, bem como a vulnerabilidade e os riscos que denunciam tanto pela sua prpria
existncia como movimento, quanto nas marcas que deixam por todo o aglomerado
urbano.
Trata-se de um estudo urbano, cultural e poltico e de um registro do protesto
desses jovens, bem como da sua nsia por participao nos rumos da coletividade. Estes
atores utilizam como instrumento e veculo dos seus inconformismos uma arte
transitria, no comercial, no oficial, que se d fora da academia, do museu e das
galerias: uma arte muitas vezes underground, annima, combatida pela sociedade
estabelecida e, por isso, desafiadora para quem a realiza.
Este estudo aborda, pois, a interveno urbana em Curitiba, como interferncia
tanto do vndalo quanto do jovem artista de rua sobre os espaos privados e pblicos da
cidade, como universo de representao (Lefbvre), como expresso de posse, rebeldia,
denncia, agresso, destruio, como exerccio de jogo (Bourdieu Baudrillard) e como
linguagem de rua, comunicao e arte (Ferrara Pignatari Argan).
13ConformenomenclaturadeNorbertEliasemOsestabelecidoseosoutsiders,deumladoosestabelecidosasclassesdominanteseopoderinstitudoe,deoutro,osmarginalizadosaqui,osjovensartistasderua.
Pretende-se que a discusso aqui realizada contribua para que a sociedade
estabelecida possa melhor conhecer e, assim, compreender esta arte e os seus artistas,
bem como que sirva de subsdio para a elaborao e a implementao de aes e polticas
pblicas inclusivas para o jovem.
Curitiba, fevereiro de 2007
Dranda. Elisabeth Seraphim Prosser
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