UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
LUCIA CAVALIERI
A COMUNIDADE CAIÇARA NO PROCESSO DA
RECLASSIFICAÇÃO DA RESERVA
ECOLÓGICA DA JUATINGA
Dissertação apresentada ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo – como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Geografia Humana.
Orientador: Prof. Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira
São Paulo2003
RESUMO
A Reserva Ecológica da Juatinga é uma Unidade de Conservação localizada no
município de Paraty, estado do Rio de Janeiro. Abriga, além de uma grande
diversidade biológica e de paisagem, especialmente ecossistemas florestais e
litorâneos, uma comunidade caiçara com mais de 300 famílias vivendo
tradicionalmente. Essa comunidade vivenciou, da década de 50 até a década de
80, uma forte especulação imobiliária e a chegada de grileiros. A partir da década
de 90, somados aos problemas fundiários surgiram conflitos ambientais devido à
criação de uma Unidade de Conservação de natureza non edificandi. Atualmente,
além dos desdobramentos da chegada dos grileiros, dos turistas e da Unidade de
Conservação (há um Plano de Gestão em elaboração), os moradores enfrentam
mais um desafio: continuar na sua terra por meio da reclassificação da Unidade,
prevista em lei federal de 2000.
Palavras-chave: SNUC; plano de gestão ambiental; comunidade caiçara;
questão fundiária; participação.
CAVALIERI, L. A comunidade caiçara no processo de reclassificação da Reserva Ecológica da Juatinga. São Paulo, 2003. 193p. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de Geografia – Universidade de São Paulo.
ABSTRACT
The Juatinga´s Ecological Reserve is a Conservation Unit located in the city of
Paraty, in Rio de Janeiro state. It holds, along with great biological and landscape
diversity, particulary in the rainforest and coastal ecosystems, a caiçara people
community of more than 300 families keeping they traditional lifestyle. This
community has seen from the 50´s to the 80´s strong land speculations and the
arrival of squatters (grileiros). From the 90´s on, added to the fundiary problems,
there are also environmental conflicts due to the creation of a Conservation Unit of
non edificandi nature. At present, besides the unfoldings of the arrival of squatters,
tourists and the Conservation Unit, local dwellers are faced with one more
challenge: to remain in their land by means of the reclassification of the Unit as
foreseen by federal law in the year of 2000.
Keywords: SNUC; environmental management planning; caiçara community;
fundiary issues; participative management
CAVALIERI, L. The caiçara community in the process of reclassification of Juatinga´s Ecological Reserve. São Paulo, 2003. 193p. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Geografia – Universidade de São Paulo.
Dedico este trabalho ao Seu Maneco e família e, a todos os moradores da Praia Grande da Cajaíba
Agradeço,
a todas as instituições que viabilizaram esta pesquisa:
Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, CNPq,
IEF/RJ, IBAMA de Paraty, SOS Mata Atlântica e um agradecimento
especial à Verde Cidadania que nasceu lutando e conquistando
sonho. Um agradecimento especial também ao Agrária (laboratório
de Geografia da USP).
aos amigos. Tarefa prazerosa e comprida... deixo aqui a minha
gratidão e amor: aos de viagens, aos da faculdade (que não são
poucos e são muito amados), aos que estão longe em novas
moradas e viagens, aos próximos. Às mulheres queridas: fortes,
doces, azedas, irreverentes, companheiras. Aos catrumanos, aos
mais velhos e às crianças, aos agregados.
à mamãe, à Márcia, ao Bil, ao Zil, aos sobrinhos com o amor
incondicional e de toda a boa família Este caminho só pôde ser
percorrido até aqui graças ao amor profundo, confiança e alegria
encontrados nesse ninho. Foram eles que sempre estiveram por
perto, cuidando, fazendo carinho e dividindo todos os sentimentos
da vida. Um agradecimento eterno.
ao Ari, orientador, quem ajudou o amadurecimento para a vida e
não se cansou de trazer novas questões. O carinho dele foi
inestimável, em todos os momentos e, a sua confiança sempre
aumentou a responsabilidade e o prazer de trabalhar com o
campesinato.
e, por fim, com todo amor e paz , agradecer ao Zé: namorado e
companheiro para compartilhar toda a vida.
Siglas
ALERJ Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
APA Área de Proteção Ambiental
CDB Convenção sobre Diversidade Biológica
DCN Diretoria da Conservação da Natureza do IEF
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
IEF Instituto Estadual de Florestas
ITERJ Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro
ITESP Instituto de Terras do Estado de São Paulo
MMA Ministério do Meio Ambiente
MP Ministério Público
OIT Organização Internacional do Trabalho
ONGs Organizações não – governamentais
ONU Organização das Nações Unidas
RDS Reserva de Desenvolvimento Sustentável
REJ Reserva Ecológica da Juatinga
RESEX Reservas Extrativistas
SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservação
TGI Trabalho de Graduação Individual
TRF Tribunal Regional Federal
TSF Tribunal Superior Federal
UC Unidade de Conservação
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
1. COMEÇO
Parati trago em mim
esse raro prazer
de estar por aqui e viver
sendo irmão dos teus filhos eu sou
mais uma pedra de tuas ruas
mais um brilho de lua das tuas marés
(...)
É mar de maré cheia
de amores por ti
não quero te contar como lenda
morta entre nossos ancestrais
eu quero te pintar muito mais pro meu filho
e meu neto quando vier
(trecho da música “Parati”, cd “Encanto Caiçara” de Luís Perequê)
Um mar de azul infinito, uma mata que de tão verde chega a pulsar
com seus milhares de tons ao longo do dia, ao longo das escarpas, há muito
tempo. Na Reserva Ecológica da Juatinga (município de Paraty/RJ), há ainda
outra alegria sem fim: caiçaras que ali vivem há muitas gerações. Vivem na
terra, praia e sertão. Estendem seu território para o mar, para a mata, para a
cidade. Fazem conhecer aos que ali chegam que a terra é de caiçaras.
Desde 1993 compartilho amizades, sorrisos, sustos e descobertas nesse
lugar. São Manecos, Bidicas, Baícas, Lorenças, Cidas, Silvanas, Dedés,
Altamiros, Carecas, Lindalvas, Alecir... que tornam–no mais belo porque
preenchem de sentido o cotidiano, experienciam a natureza, constróem uma
ética para lidar com seu meio natural, povoam todo o lugar - que já é
encantador - de símbolos, interditos, mistérios, simplicidade, histórias. Vida.
Viajando como turista comecei a me aventurar pelo sertão e assim
conhecer famílias inteiras, moradias de taipa, casas de farinha, roças e
crianças encabuladas com a minha chegada. O turismo era uma novidade e os
moradores, envergonhados, chamavam-nos1 de barraqueiros, viageiros2, com
nossas mochilas grandes, pesadas e com tanta coisa dentro. A partir de desse
momento foram várias viagens, muitos feriados, muitas trocas. Em algumas
das comunidades da Reserva Ecológica da Juatinga, Praia Grande da Cajaíba,
Martim de Sá e Saco das Anchovas, comecei a querer bem aos moradores.
Teci parte de minha vida com eles. Foram muitos dias de histórias, de pesca,
de roça, de cozinha, de farinha... Era (ainda é!) muito prazeroso passar dez,
vinte dias com eles, vivenciando o cotidiano.
Uma questão particular porém começou a me afligir. A história da terra
ou melhor, da propriedade da terra. Quantas vezes, admirando o mar, na
soleira de uma porta, saboreando um café de cana, procurando alargar o
horizonte e enxergar tão longe quanto eles, senti, na Praia Grande da Cajaíba,
um receio conforme alguma embarcação virava a Ponta da Cajaíba:
A mulher vem aí. Ouvi dizer que tá pra chegar.3
1 Fiz essa primeira viagem em 1993 acompanhada de alguns amigos. 2 Em itálico, o modo de dizer dos moradores.
Percebi que para poucos, essa possível chegada da ‘mulher’ era sinal de
alguma fartura: sacos de balas, dinheiro para remédio... No entanto, para toda
a comunidade, era a chegada também da lei, pois ela era a dona que os
privava de suas roças tornando-os dependentes de favores. Sua palavra era
absoluta, protegida por caseiros e outros empregados. A possibilidade dessa
chegada foi e continua sendo motivo para pânico. Pânico esse que os
moradores convivem diariamente, na medida em que temem a possibilidade
dos proprietários virem da cidade e, acompanhados por policiais, destruam
casas ou desfilem por entre os quintais - sem cercas, como todo quintal caiçara
- ou pelas terras de uso comum, causando receios ou, ainda, portanto qualquer
novidade que possa ameaçar a comunidade.
Em 1998, cinco anos após a primeira viagem à Juatinga4, surgiu a
possibilidade de uma Iniciação à Pesquisa junto ao professor Dr. Ariovaldo
Umbelino de Oliveira, no Departamento de Geografia da Universidade de São
Paulo. Escolhi pesquisar a realidade fundiária de algumas comunidades da
Reserva. As comunidades escolhidas foram as já mencionadas: Martim de Sá
e Praia Grande da Cajaíba. Dessa pesquisa, surgiu o Trabalho de Graduação
Individual (TGI) intitulado: “Os caiçaras da Juatinga: cultura, conflitos e sonhos”
defendido no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, em
abril de 1999.
O mestrado é a continuidade quase natural desse envolvimento, a busca
pelo maior entendimento de algumas questões antigas, que já vão se tornando
feridas crônicas, como a fundiária, e questões novas, como o Plano de Gestão
Ambiental da Reserva.
1.1 Metodologia
3 Nem sempre citarei o nome do morador para protegê-lo pois várias das situações descritas são ainda muito presentes.4 Tratarei em alguns momentos a Reserva Ecológica da Juatinga apenas por Reserva ou por Juatinga.
Foram poucas as restrições que tive na aproximação do grupo como
pesquisadora pois já tinha ouvido histórias íntimas das mulheres, como os
partos na roça; os casamentos que sempre me fizeram sorrir e criaram uma
cumplicidade; havia forneado5, lavado roupa na cachoeira, catado pitu. Havia
descoberto com as crianças vários lugares bonitos e ninhos de bichos. Dos
homens, já tinha escutado vários casos sobre a pesca, sobre os antigos, sobre
caça, sobre o malassombro. Assim, foi com naturalidade que me apresentei
como pesquisadora e, a partir de então, houve a necessidade de uma
caderneta de campo, gravador, fotos mais documentais, além de perguntas
mais sistemáticas. Mesmo com o conhecimento anterior, passaram-se alguns
dias para fazer uso do gravador, que ainda é intimidador para muitos
moradores.
O grupo aqui referido não é para mim um objeto de estudo. Não poderia.
Tenho com os moradores uma relação amorosa, de carinho, de cumplicidade,
que não significa a ausência de rigor ou objetividade mas sim, como aludido
por Brandão (1990), um compromisso pleno de vontade e intenção política.
Pude acompanhar vários encontros para discutir o Plano de Gestão da
Reserva6, idas ao cartório, reuniões na igreja, reuniões promovidas por ONGs,
além de buscas no Fórum por advogados e por justiça.
A análise de todo o material foi feita por meio das anotações e das
gravações realizadas durante as reuniões, nas quais procurava deixar claro
aos moradores aquilo que estava sendo discutido, além de dar voz a eles e
oferecer minha contribuição de geógrafa.
Poucas vezes nesses momentos consegui só observar. A intenção de
esclarecer surgia naturalmente. De acordo com Brandão (1990:11), a pesquisa
participante pode promover a leitura da realidade pelos entrevistados e
instaurar uma relação diversa entre os pesquisados e o pesquisador:
(...) Conhecer a sua própria realidade. Participar da produção deste
conhecimento e tomar posse dele. Aprender a escrever a sua história de
classe. Aprender a rescrever a História através da sua história. Ter no agente
5 Torrar a farinha de mandioca.6 Dois “Planos” foram realizados durante o período do mestrado: o da Gestão da Reserva e o Plano Diretor do município. Diferenciarei-os no capítulo XVIII.
que pesquisa uma espécie de gente que serve. Uma gente aliada, armada dos
conhecimentos científicos que foram sempre negados ao povo, àqueles para
quem a pesquisa participante – onde afinal pesquisadores-e-pesquisados são
sujeitos de um mesmo trabalho comum, ainda que com situações e tarefas
diferentes – pretende ser um instrumento a mais de reconquista popular.
Pesquisar é uma forma de estar no mundo e poder contribuir para sua
transformação, rumando para uma sociedade com justiça social e
sustentabilidade.
Acredito que a perspectiva libertadora, tão vivenciada por Paulo Freire,
por Brandão, se anuncia quando as experiências cotidianas de vida, trabalho,
história e sonho tornam-se fonte de conhecimento consciente e de ação.
Segundo Paulo Freire (in: Brandão,1990:35):
(...) Dizer que a participação direta, a ingerência dos grupos populares no
processo da pesquisa, altera a “pureza” dos resultados implica da defesa da
redução daqueles grupos a puros objetos da ação pesquisadora de que, em
conseqüência, os únicos sujeitos são os pesquisadores profissionais. Na
perspectiva libertadora em que me situo, pelo contrário, a pesquisa, como ato
de conhecimento, tem como sujeitos cognoscentes, de um lado, os
pesquisadores profissionais; de outro, os grupos populares e, como objeto a
ser desvelado, a realidade concreta.
(...) Deste modo, fazendo pesquisa, educo e me educando com os grupos
populares. Voltando à área para pôr em prática os resultados da pesquisa não
estou somente educando ou sendo educado: estou pesquisando outra vez. No
sentido aqui descrito pesquisar e educar se identificam em um permanente e
dinâmico movimento.
A pesquisa-participante traz muita alegria (e alguma dor). É sonho que
se compartilha e que se realiza, é simplicidade e verdade dos olhares e das
demonstrações de afeto. É uma troca de saberes.
1.1.1 Sobre as entrevistas
A transcrição das entrevistas trouxe importantes questões
metodológicas. Optei em não registrar as diferenças sintáticas e fonéticas.
Penso que as comunidades de tradição oral, pouco letradas na expressão
escrita, não gostariam de ser reconhecidas por falas que, para nós,
conhecedores dos meandros da língua escrita, poderiam ser julgadas como
“erradas”. Considerando que os “s” e os “r” finais não são mesmo pronunciados
por todos e que as “e” e “i” também são indiferentemente pronunciadas no
coloquial oral, tais letras foram corrigidas na transcrição.
Gostaria que os leitores desse trabalho se apercebessem das principais
questões trazidas sobre os caiçaras e não se ativessem às desigualdades, e
sim, à diversidade cultural. Assim, foram mantidas algumas expressões do
léxico particular da região: há pérolas no modo de dizer, quer pelo arcaísmo,
quer pela beleza regional, que aqui aparecem tentando aproximar o leitor do
contexto da conversa, sem grandes desvios das idéias, do modo de pensar e
da ética do ambiente que as comunidades tradicionais possuem.
1.2 Objetivos e motivações
Após 1998, algumas mudanças ocorreram na Reserva, sendo talvez a
mais importante um convênio assinado pelo IBAMA - administrador da APA
Cairuçu, que abrange a Reserva Ecológica7; a Prefeitura de Paraty; o Instituto
Estadual de Florestas do Rio de Janeiro (IEF-RJ) - órgão responsável pela
administração da Reserva - e a ONG SOS Mata Atlântica. A finalidade deste
convênio era elaborar, em dois anos, um
Plano de Gestão Emergencial da APA e da Reserva, visando prioritariamente
zonear a área levando em conta os objetivos de cada Unidade de Conservação
e os preceitos do desenvolvimento sustentável. 8
Esse é um dos Planos que surgiu e que poderia transformar
radicalmente a realidade da Reserva, por se tratar de um instrumento de
planejamento ambiental. Segundo Moraes (1994:24/25):
7 No capítulo 4, a história dessas duas Unidades de Conservação será apresentada.8 Extraído da cópia do Plano elaborado pela SOS Mata Atlântica.
É impossível fazer planejamento ambiental sem uma articulação intersetorial no
nível de governo inicialmente, não se pode pensar o manejo de uma
determinada área sem levar em conta os planos e programas setoriais
incidentes sobre ela. O choque nos usos projetados obstaculiza e/ou dificulta a
implantação de cada um dos programas, e, por isso, a compatibilização de
ações que envolvam propósitos locacionais deve ser buscada a qualquer custo.
(...) Um adequado planejamento ambiental mexe com muitos interesses, sendo
estruturalmente um potencializador de conflitos.
A chegada do Plano de Gestão foi entendida por mim, em 1998, como
um instrumento capaz de promover a participação dos moradores nas questões
relativas à conservação do meio ambiente e à gestão do território caiçara,
transformado em Unidade de Conservação (UC) pelo Poder Público.
Durante a elaboração do Plano de Gestão pela SOS Mata Atlântica e
seus parceiros governamentais, o Congresso Nacional votou uma lei federal no
intuito de dar um corpo jurídico mais orgânico às Unidades de Conservação no
Brasil. Essa lei, aprovada em 2000, é conhecida como Sistema Nacional de
Unidades de Conservação ou simplesmente SNUC9. Uma nova problemática
se apresentou: a Reserva Ecológica da Juatinga precisaria ser reclassificada
por não constar no SNUC. Teve início então um debate envolvendo muitos
sujeitos com percepções e interesses diferentes e por muitas vezes
antagônicos. A Reserva Ecológica virou palco das mais acirradas discussões
ambientalistas10 contando com a presença de proprietários – alguns
reconhecidos como grileiros pelo Ministério Público -, ONGs, Poder Público -
representado por diversas secretarias -, comunidade local, sociedade civil
interessada na exploração turística e Universidades.
Portanto, enquanto o Plano de Gestão continuava sendo elaborado para
a Reserva, já havia a discussão sobre a reclassificação da mesma. Os
parceiros envolvidos na construção do Plano não poderiam ficar moucos, pois
corriam o risco de trabalhar em algo que poderia tornar-se completamente
obsoleto, uma vez que os objetivos da nova Unidade de Conservação ditam
9 Lei nº 9985/2000.10 Sob as vestes de uma discussão ambiental, há em jogo a questão fundiária. Nos capítulos 4 e 7, essa tensão será abordada.
como será o planejamento ambiental. O Plano, como já explicitado, é um
instrumento desse planejamento.
Dessa forma, surgiu um importante objetivo: analisar o SNUC e
compreender como cada ator envolvido na Reserva se articula. Nesse sentido,
esta pesquisa pretende contribuir para o devir das mais de 350 famílias da
Reserva sugerindo uma nova categoria para essa Unidade de Conservação,
pois o processo de reclassificação ainda não terminou.
Durante a elaboração e após a leitura do Plano de Gestão Ambiental,
interessei-me também em entender como este trata a cultura caiçara e como
sua descrição é realizada. No trabalho de graduação individual11, discuti
algumas questões como diversidade cultural, questão fundiária e os impactos
da criação da Reserva Ecológica da Juatinga na vida de várias famílias.
Retomo assim momentos do TGI para comparar a etnografia da cultura caiçara
local com a descrição feita pelo Plano de Gestão.
Um dos objetivos dessa pesquisa é estudar o processo de participação
das comunidades da Reserva na elaboração desse Plano. Para alcançar esse
propósito observei e intervi, como já mencionado, quando da opção pela
pesquisa participante, de várias reuniões por dois anos e meio.
São três, portanto, os grandes objetivos deste trabalho: contribuir para o
processo de reclassificação da Reserva Ecológica da Juatinga, realizar uma
breve etnografia sobre a cultura caiçara local e analisar a participação dos
moradores na elaboração do Plano de Gestão. Tais questões podem alterar
significativamente o modo de vida das comunidades caiçaras da Reserva
Ecológica da Juatinga. Ele pode, por exemplo, ser abruptamente transformado
por processos de reintegração de posse; por um zoneamento ou diagnóstico
das comunidades que não contemplem a continuidade do modo de vida
tradicional. A mudança de categoria da Reserva prevista pelo SNUC pode
expulsá-los de seu território ou inibir suas atividades.
Assim, os objetivos desta dissertação se justificam pois acredito que
essas questões possam ser alumiadas pela geografia, entendida como uma
prática social referida ao espaço, entendida como um verbo: re-presentação da
ação de sujeitos sociais12.
11 TGI, defendido em 1999.12 Gonçalves (1996: 9).
A escolha desses objetivos também converge com os ideais mais
íntimos da pesquisa-participante realizada e com discussões que extrapolam a
escala local: entender e poder colaborar com a problemática sócio – ambiental,
além do acesso à terra a quem tradicionalmente a detém através da posse nas
Unidades de Conservação.
1.3 Sobre os capítulos
Para apresentar as questões enunciadas nos objetivos, os capítulos
foram organizados de forma a tecer, como num tear, o corpo do trabalho. Em
cada novo capítulo novos fios - de cores, de texturas, mais ou menos
amarrados - são introduzidos.
No capítulo 2, Paraty: da paróquia à chegada dos “paulistas” apresento
um pouco da história de Paraty desde a formação da paróquia e sua
religiosidade - sempre presente nesta cidade, com destino de caminho - até o
início da década de 60 com seus marcos de desenvolvimento e violência.
Praia Grande da Cajaíba e Martim de Sá é o nome do terceiro capítulo
que conta a chegada dos paulistas nestas duas localidades e as estratégias
utilizadas, ainda presentes, para a retirada dos moradores tradicionais de suas
posses. Há também a história de um processo de reintegração de posse e
seus meandros, tanto no Fórum, como na compreensão do réu.
O quarto capítulo discorre sobre a chegada das Unidades de
Conservação na região e a imposição do direito positivo regulador na forma da
criação de leis para as áreas protegidas. Mas, serão as Unidades de
Conservação somente reguladoras e externas à vontade da comunidade?
Uma breve etnografia sobre o modo de vida caiçara das duas
comunidades estudadas é apresentada no capítulo 5: são relatos do tempo
dos antigos e a forma de viver em cada pedaço do território caiçara. Nesse
capítulo os moradores têm nome pois sua cultura pode ser apresentada,
diferentemente do capítulo 3 em que tiveram, por opção da pesquisa, seus
nomes omitidos ou trocados para protegê-los de represálias. No final deste
capítulo um pensamento de Calvino, na voz de dois personagens, abre uma
seção de fotos.
O capítulo 6, Camponeses e populações tradicionais, discute as teorias
que caracterizam estes dois sujeitos. Propositalmente localiza-se logo após a
etnografia para que as relações sejam estabelecidas pelo leitor. Não
exemplifico cada prática dos moradores para justificar a opção pelo termo
camponês: seria muito óbvio. A reflexão realizada adquire um cunho político
sobretudo porque as leis ambientais e uma vasta literatura tratarão esta cultura
como populações tradicionais.
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação legisla acerca das
áreas protegidas e da permanência ou não dos moradores. Como a Reserva
Ecológica da Juatinga deve ser reavaliada, no capítulo 7 apresento uma
análise comparativa entre quatro categorias e busco compreender o interesse
de cada sujeito político neste processo.
O Plano de Gestão Ambiental, motivo do início do mestrado, não foi
aprovado até outubro de 2003. Previsto para ser realizado em dois anos
atingiu a marca dos cinco anos e ainda não há um versão disponível já
aprovada por todos os órgãos parceiros. A primeira e a terceira versão foram
lidas numa cópia de um dos parceiros. O Plano poderá sofrer grandes
alterações nestes últimos meses, novos profissionais podem ter sido
contratados para fundamentá-lo melhor para a aprovação. Para não restringir a
análise ao texto, no capítulo 8 optei em relatar o início do Plano, reproduzir
seus objetivos e premissas e discorrer sobre a participação dos moradores na
elaboração.
No capítulo final teço as últimas considerações e sugiro uma categoria
de Unidade de Conservação para a Reserva Ecológica da Juatinga à luz das
reflexões elaboradas sobre a questão fundiária, da cultura caiçara das
comunidades estudadas e da análise das possibilidades do SNUC.
Para finalizar este Começo cito Gutierréz e Prado (1999:30) numa
referência à Leonardo Boff quando este, quase singelamente, diz que
resignificar o mundo implica adotar novos
(...) modos de ser, de sentir, de pensar, de valorizar, de agir, de rezar que
trazem consigo necessariamente novos sonhos e novos comportamentos
assumidos por um número cada vez maior de pessoas e de comunidades.
A resignificação pede mudanças na nossa forma de estar no mundo.
Nesse sentido é preciso que se transforme a cultura, a política, a economia, as
relações com os outros seres vivos, a produção e o acesso aos
conhecimentos.
Em Tempo de Transcendência – ser humano como um projeto infinito
(2000:22/26), Boff reflete:
Ao falar do tempo de transcendência é necessário começar a definir o tempo.
Quero definir como o grande poeta argentino Martin Fierro o entende. Ele diz
que o tempo é a “tardança daquilo que está por vir”. Acho genial essa
formulação, pois mostra o processo de realização do tempo (tardança), vindo
do futuro em direção do presente.
Creio que a transcendência é, talvez, o desafio mais secreto e escondido do
ser humano. Protestamos continuamente. Recusamo-nos a aceitar a realidade
na qual estamos mergulhados porque somos mais, e nos sentimos maiores do
que tudo que nos cerca.
(...) com seu pensamento, ele [ser humano] habita as estrelas, rompe todos os
espaços. Por isso, nós, seres humanos temos uma existência condenada -
condenada a abrir caminhos sempre novos e sempre surpreendentes.
Compartilho com Paulo Freire (op. cit.) que somos, pesquisados-e-
pesquisador, sujeitos de um mesmo trabalho comum, com particularidades e
tarefas próprias.
Espero que possamos, todos que se interessarem, dialogar através das
questões colocadas e assim abrirmos novos caminhos.
2. PARATY: DA PARÓQUIA À
CHEGADA DOS PAULISTAS
Cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva. Nossos
deslocamentos alteram esse ponto de vista:
Pertencer a novos grupos nos faz evocar
lembranças significativas para este presente
e sob a luz explicativa que convém à ação
atual. O que nos parece unidade é múltiplo.
Para localizar uma lembrança não basta um
fio de Ariadne; é preciso desenrolar fios de
meadas diversas, pois ela é um ponto de
encontro de vários caminhos, é um ponto
complexo de convergência dos muitos planos
do nosso passado.
(Ecléa Bosi)
Neste breve capítulo procuro, com grossas pinceladas, mostrar um
pouco da cidade de Paraty, palco da história que será deslindada nos
capítulos subsequentes, tendo como foco a criação das Unidades de
Conservação, a questão fundiária e a cultura caiçara. Obviamente outros
olhares poderiam ser fixados em aspectos como patrimônio histórico, festas
religiosas, riqueza paisagística, cultura popular, turismo etc. mas, para alcançar
os objetivos propostos neste trabalho reflexivo, o recorte é necessário.
Marina de Mello e Souza escreveu um livro intitulado “Paraty – a cidade
e as festas” que traça um panorama da cidade. É nele que essa primeira parte
da história se baseará:
Apesar da história também não ser um retrato do que aconteceu, mas uma
narrativa a partir de elementos selecionados pelo historiador que não dão conta
da totalidade em si, ela é constituída dentro de uma certa linearidade, segundo
uma lógica conceitual, enquadrando-se dentro de uma cronologia. A narrativa
histórica é unidimensional e o passado é multiforme, muito mais complexo do
que qualquer história linear e seqüencial. (1994:203)
Na baía da Ilha Grande, Paraty – nome de um peixe abundante na
região – sempre representou um porto seguro e um caminho para o sertão
após a chegada dos portugueses. A cidade estava na rota do comércio entre o
Rio de Janeiro e as vilas vicentinas sendo o trecho Rio de Janeiro/Paraty
realizado por mar. A travessia da serra Paraty/planalto era feita sobre os
caminhos trilhados pelos índios guaianá, que foram extintos.
A primeira povoação situou-se no Morro do Forte - ponto mais alto de
Paraty, de onde se avista toda a cidade, daí a construção do forte. A Paróquia
da Vila Velha, assim conhecida a hoje Paraty, estava submetida à
administração da Câmara da Ilha Grande. Através de uma carta régia de 1667,
a Paróquia ascende à Vila, Vila Nossa Senhora dos Remédios.
Foi com a descoberta do ouro, na virada do século XVII, em Minas
Gerais, que o destino de ser passagem consolida-se até ser construído o
“caminho novo”. Este foi aberto na Serra dos Órgãos para evitar a pilhagem
dos quintos do ouro pelos corsários que rondavam Paraty. Para se chegar no
planalto pelo “caminho velho” (Paraty) eram necessários 43 dias e, já pelo
“caminho novo” (Serra dos Órgãos), a viagem era feita inicialmente em 17 e
depois em 12 dias.
Paraty abastecia as Minas Gerais de víveres transportados pelos
escravos. Nas primeiras décadas do século XVIII, um só capitão chegou a
possuir 300 deles para o transporte de carga até Guaratinguetá. Além de
garantir os mantimentos, abastecer de escravos, abrigar o porto em que
chegavam os africanos rumo a Minas, Paraty produzia um produto de
excelência: a aguardente, trocada por escravos em Angola.
No século XVII, Paraty revelava uma importante forma de organização,
anterior à jurídica e à política: a religiosa. A igreja Matriz já existia em 1682
somente com a capela-mor e com cobertura de palha provisória. Nos primeiros
20 anos do século seguinte, os seus sete altares foram terminados.
As várias Irmandades organizavam boa parte da vida religiosa da Vila,
eram os principais veículos do catolicismo popular. Eram muitas: Santíssimo
Sacramento, Nossa Senhora dos Remédios, Nosso Senhor dos Passos, São
Roque, Santa Rita, São Miguel das Almas, São Benedito e Confraria da Nossa
Senhora do Terço. Segundo Souza (1994:43):
Quase todas as Irmandades tinham seus imóveis e era raro o habitante que
não estivesse filiado a alguma ou algumas delas.
O casario colonial tão admirado nos dias de hoje foi forjado a duras leis.
Em 1831, o Registro das Posturas da Câmara Municipal da Vila de Nossa
Senhora dos Remédios regulamentou a conservação e construção das casas
dentro dos limites da Vila. As regras eram rígidas estabeleciam o alinhamento
das fachadas, as medidas de portas e janelas, proibiam as construções em
madeira, ordenavam a troca da palha por telhas com punição de altas multas
aos infratores, ditavam a forma do calçamento e da limpeza.
O século XIX foi também cheio de proibições culturais. Acabaram as
festas religiosas organizadas pelas Irmandades – todo mês havia festa para
santo; os espetáculos públicos como as cavalhadas estavam proibidos e outros
poderiam ocorrer, desde que não ofendessem a moral, mediante pagamento
de uma licença e uma gratificação de 2000 réis por dia e noite. Os festeiros
tinham que ter licença da Câmara. O que se alegava por tais restrições era que
dentro do perímetro urbano a “civilidade” deveria ser assegurada.
Ao ler essas determinações legais pesquisadas por Souza e todas as
punições decorrentes do seu não cumprimento, foi inevitável compará-las com
as restrições atuais sofridas pelos moradores das áreas que representam a
riqueza da nossa sociedade – áreas que primam pela natureza e pela
biodiversidade. Parece-me que estamos sempre diante da construção de um
patrimônio para as gerações futuras e para isso se estabelecem restrições
rigorosas aos moradores, primeiramente em nome da “civilidade” e, hoje, em
nome da natureza selvagem.
Em 1844, a Vila Nossa Senhora dos Remédios foi elevada à categoria
de cidade e após 11 anos foi inaugurada a ferrovia ligando a cidade do Rio de
Janeiro ao Vale do Paraíba, no auge da produção do café. Não exercendo mais
a função de passagem, várias cidades como a recém Paraty, Ubatuba e
Mangaratiba entraram num período de estagnação. Souza revela o Censo da
cidade: em 1892, havia 12488 habitantes; em 1940, 9673 habitantes e em
1955, 10445 habitantes.
Do final do século passado até a década de 60, a cidade pouco se alterou em
sua materialidade, assim como a maneira de viver e de pensar das pessoas,
mantendo-se muito parecida com o que era há 200 anos. (SOUZA, 1994:83)
Até a década de 30, as lanchas e paquetes atracavam no cais dia sim,
dia não, passando posteriormente a atracar a cada oito dias. A autora descreve
a animação dos moradores nas ruas nos dias de chegada dos barcos - única
ligação da cidade com o resto do Estado fluminense. Nesse período as
carregadeiras de água servida perderam seus empregos com a chegada da
água encanada e além das festas organizadas pelas Irmandades -
responsáveis por parte da sociabilidade - e da espera pelos barcos no cais que
escasseavam, segundo a autora, a vida seguia um rumo sem surpresas.
2.1 As marcas da década de 60
A década de 60 porta a marca de dois traumas para Paraty: o fim das
Irmandades por ordem do bispo da Diocese de Volta Redonda e a chegada dos
“paulistas”.
Ao que parece, pelo relato de Souza, as festas religiosas, que marcavam
os ciclos cotidianos da vida na cidade e no seu sertão, estavam chegando ao
fim. Creio que hoje, em menor número, com significados novos - parte delas
virou atração turística - e não mais com a dimensão que as Irmandades
imprimiam, as festas continuam ocorrendo e sendo um evento importante na
vida dos paratienses.
Vivendo um ano na cidade, pude notar tanto a preocupação em se
ganhar dinheiro, que mobiliza muitos moradores nas temporadas curtas e
longas, assim como o verdadeiro envolvimento religioso13.
A mesma dona de pousada, que tanto se esmera para receber bem seus
hóspedes, na hora da procissão porta um estandarte, segue cega atrás do
santo pelas ruas e se emociona às lágrimas. Quando volta para sua
casa/pousada, lembra não somente dos momentos mais bonitos da festa e
planeja a próxima, como também continua preocupada com o bem-estar dos
turistas.
A cidade aprendeu os encantos da vida mundana, que traz o ganha pão,
e não perdeu sua relação com o sagrado. Foram vários moradores que vi,
durante o ano, em seus trabalhos cotidianos, normalmente relacionados ao
comércio (o vendedor da padaria, a dona da papelaria, a lojista do centro e
tantos funcionários públicos) que nas épocas que antecediam às festas
religiosas, como a de Nossa Senhora do Rosário ou a de São Benedito, menos
conhecidas pelos turistas, vendiam doces caseiros para angariar fundos para
que as mesmas fossem bonitas. Dessa forma, percebe-se a existência do
pertencimento ao sagrado que continua envolvendo os moradores.
A festa realiza-se sob a batuta do festeiro, cuja eleição ocorre
anualmente. Vencê-la proporciona grande orgulho e gera trabalho durante todo
ano: leilões, bingos, rifas, doces... É importante salientar que o sucesso da
festa é atribuído ao festeiro. Nos dias sem turistas é que ocorrem na praça da
Igreja Matriz – Nossa Senhora dos Remédios - bingos cujos prêmios foram
arrecadados pelo festeiro, como porcos e galinhas da roça. Cada devoto
contribui com o que puder, mas o santo ajuda a todos, pois os pedidos são 13 As linhas seguintes são um breve relato de quem morou na cidade e pode perceber no cotidiano, mesmo não sendo esse o foco da pesquisa, a relação ainda presente com o sagrado. Mesmo após a proibição das Irmandades que regiam a vida, a comunidade manteve sua religiosidade.
atendidos, a fé se reforça, os turistas assistem satisfeitos e, normalmente,
propagandeiam a cidade colonial, sua hospitalidade, as festas e as belezas
naturais.
As duas modalidades de viver a festa religiosa - o trabalho com o
turismo (entrando em contato com o dinheiro profano) e a participação na
procissão e nas novenas - indicam a coexistência do sagrado e do profano sem
que essas modalidades convertam-se em uma dicotomia.
A festa religiosa não deixou de ser uma “hierofania” como entendida por
Eliade (2001:17):
A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo
hierofania . Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar:
exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo
de sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde as
mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de
hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da mais elementar
hierofania – por exemplo a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra
ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é para um cristão, a encarnação de
Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do
mesmo ato misterioso: a manifestação de algo ‘de ordem diferente’ – de uma realidade
que não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte integrante do nosso
mundo ‘natural’, profano.
2.2 A chegada dos paulistas
Se é possível percebemos a permanência religiosa após a década de
6014, o mesmo não podemos afirmar em relação às posses de terra depois da
chegada dos paulistas. Segundo Dalmo de Abreu Dallari:
A gente caiçara, que por séculos teve o mar como via de acesso quase única,
encontrando nisso um fator de proteção, não conseguiu resistir aos ‘piratas’
vindos da terra.
A simulação de um milagre econômico que foi uma das muitas imoralidades
impostas ao Brasil pelos governos militares, foi pretexto para grandes
investimentos públicos e para que pseudos-revolucionários se valessem de
informações confidenciais e do poder arbitrário para ganhar dinheiro na esteira
desses investimentos. A estrada Rio-Santos, embora prevista antes desse
período, entrou de cambulhada nesse processo desenvolvimentista.
Foi o começo do genocídio (morte física) acompanhado do etnocídio (morte
cultural) dos caiçaras e de agrupamentos de índios guarani existentes na
região. (In: SIQUEIRA,1984: prefácio)
A estrada não alcançou todas as localidades de Paraty15 mas seus
reflexos, conhecidos nessa porção do litoral, como a vinda dos grileiros e dos
turistas, chegaram e lançaram as comunidades num universo distinto daquele
vivido pelas gerações anteriores. Os moradores que detinham a posse da terra
conheceram, na década de 60, os processos de reintegração de posse, as
ações demarcatórias e as fraudes de cartório para consolidar a propriedade da
terra. Tais processos foram movidos, e continuam sendo, pelos recém-
chegados proprietários, muitos deles paulistas.
A partir dessa década, várias famílias, moradoras das áreas conhecidas
como roça16, saíram de sua terra de origem e de trabalho.
14 Não é objetivo tratar especificamente das festas. Provavelmente há na memória de quem as estudou, viveu ou assistiu, antes da década de 60, certa melancolia e uma leitura diferente da mostrada neste trabalho.15 Ver mapa no final deste capítulo.16 Interessante pensar nas categorias utilizadas na cidade: morador da roça são todos aqueles que não estão próximos do centro urbano. Dentre eles há os do sertão, zona mais próxima da serra e os da costeira, imensa faixa litorânea do município. Todos são moradores da roça e se identificam assim no momento de se diferenciar dos citadinos.
Algumas venderam ou trocaram a posse por uma casa no bairro mais
simples de Paraty - talvez encantadas com a nova vida que a cidade começava a
experimentar com a chegada do turismo. Muitas foram forçadas a vender a posse
devido aos expedientes violentos utilizados pelos proprietários recém-chegados
como, por exemplo, a criação de búfalos, que amedrontava a comunidade, sujava
as nascentes, pisoteava as roças.
2.3 Praia do Sono
Priscila Siqueira, no livro Genocídio dos Caiçaras, faz uma revisão dos
conflitos de terra no litoral de São Paulo e sul fluminense. Sobre Paraty, a autora
detém-se no conflito da praia do Sono17 que ora reproduzo longamente:
Lentamente, como uma enorme centopéia pelas ruas, a manifestação dos
posseiros invade Paraty. Estes caiçaras da praia do Sono protestam contra
a expulsão de Manoel Quirino de Araújo e sua família das terras onde os
pais de seus pais haviam nascido. Manoel Quirino homem respeitado por
todos os moradores da praia do Sono, um dos líderes da igreja evangélica
Brasil para Cristo, permitiu que seu filho mais velho, José Quirino de Araújo
– casado – construísse uma casinha em seu terreno. E isso o industrial
Gibrail Nubile Tannus não poderia admitir.
Acompanhado por oito policiais armados eles expulsaram as famílias de
Manoel e de seu filho, já que Manoel não poderia voltar para casa, por
decisão judicial.
Os antigos caiçaras das diversas comunidades de Paraty são unânimes em
afirmar que o Sono era o lugar mais animado e onde aconteciam as
melhores festas da região: “Era a praia com mais vida em todas essa costa.
Vinha gente de todo canto festejar junto com a gente”. No Sono já chegaram
a morar mais de 200 famílias, que plantavam, construíam e criavam, pois
esta é uma terra de muita fartura”. Moacir dos Santos, caiçara nascido e
criado nesta bela praia ao sul de Paraty, afirma estar convencido de que “no
Sono nunca houve dono, pois somos de uma geração de muito longe, que
sempre viveu em terras do Estado”. Os moradores do Sono chegavam a
produzir dois mil cachos de banana por mês, além da farinha de mandioca,
17 Esse conflito será relembrado no capítulo 3.
do peixe salgado, dos ovos de galinha, feijão e milho, que eram
transportados numa viagem de mais de quatro horas a remo até o centro de
Paraty.
A paz dos moradores do Sono, “todos eles criados dentro do Evangelho”,
acabou em 1950, quando Gibrail comprou títulos das terras da Fazenda
Santa Maria, vizinha a esta praia. Logo no começo, Gibrail tentou estender
seus domínios além dos limites da fazenda, e a pressão e intimidação sobre
os caiçaras se intensificou. Segundo o industrial, a praia do Sono, Ponta
Negra, Antigo Grande e Antigo Pequeno fazem parte de sua propriedade. “O
homem comprou uma fazenda pegou quatro praias”, afirma Manoel Quirino.
Para que os posseiros do Sono deixassem suas terras, Gibrail chegou a
oferecer em troca uma área de 400 metros quadrados num lugar chamado
Mãe d’água. Segundo Maria Coralda, esposa de Manoel Quirino, “é um
lugar que não dá para viver, bate pouco sol e existe muito mosquito”.
Atualmente moram no Sono 36 famílias, num total de mais de 200 pessoas
que se comprimem em 23 casas, já que os capangas do Gibrail não
permitem nenhuma construção na área. Os caiçaras estão proibidos de
fazer melhorias em suas propriedades, proibição que se estende às duas
igrejas evangélicas existentes na praia, Assembléia de Deus e Brasil para
Cristo. As duas igrejas, construções simples de terra batida que necessitam
de constante recuperação – como de resto todas as casas do Sono – estão
com as vigas quebradas, as paredes rachadas e ameaçando a ruir. Numa
dessas igrejas vive Manoel Quirino com as famílias de seus filhos.
O terror praticado por Gibrail é constante. Ele chegou a ter no Sono uma
numerosa criação de búfalos, que comia toda a plantação dos caiçaras, até
mesmo o sapé que servia de cobertura para as suas moradias; “os búfalos
entravam na escola, punham medo nas crianças que não queriam ir pra
aula, e deixavam elas cheias de bernes. (SIQUEIRA, 1984: 45 a 48)
Na praia do Sono há um vislumbre de desfecho contra a violência praticada
por Gibrail, pois uma ação discriminatória foi aberta, há mais de 15 anos, pelo
Ministério Público. Enquanto a ação que se encontra neste momento no Supremo
Tribunal Federal não é concluída, nenhum processo de reintegração de posse pode
ser movido e os que já existem estão suspensos18. As mulheres do Sono, assim
18 Em comunicação oral, a Profa. Dra. Margarida Maria Moura informou que leu parte do processo da praia do Sono quando este ainda estava no Tribunal Regional Federal. No laudo antropológico há uma referência à Hans Staden que teria dado uma dormidinha na praia do Sono e descrito os
29
que a ação discriminatória contra Gibrail foi aberta pelo Ministério Público,
surraram-no na praia com urtigas, segundo elas, e ele não mais voltou ao local. A
ação e os caseiros continuam presentes mas mesmo as herdeiras do espólio de
Gibrail, não pisam ali. No capítulo 4, há o relato de um morador do Sono sobre a
relação entre a ação discriminatória e a criação da Reserva Ecológica da Juatinga.
2.3.1 A praia do Sono hoje
Minha aproximação com o Sono deu-se por alguns motivos:
os proprietários são os mesmos da Praia Grande da Cajaíba;
viabilizei duas visitas do Instituto de Terras do estado do Rio de Janeiro -
ITERJ - à praia para que conhecessem a realidade dos moradores hoje;
acompanhei uma reunião do Instituto Estadual de Florestas – IEF- em
que a comunidade mostrou sua força de mobilização;
apresentei uma cópia do Sistema Nacional das Unidades de
Conservação – SNUC - e iniciei as discussões sobre reclassificação com
as lideranças;
preparei um pequeno diagnóstico para a Secretaria da Educação sobre
a educação na vila (eu trabalhava na secretaria com educação indígena
e esse documento me foi encomendado pelo próprio prefeito - à época,
Dedé – que conhecia meu envolvimento com as comunidades da
Juatinga).
De posse desse material, mesmo não tendo feito um trabalho de campo
mais sistemático com toda a comunidade19, arrisco-me a colocar nas próximas
páginas os principais problemas elencados pelos próprios moradores durante as
reuniões acompanhadas, e também a relatar o problema da educação.
Do relatório por mim elaborado e enviado ao ITERJ20 segue o trecho:
moradores dali. No livro Duas viagens ao Brasil há num croqui a referência à Cairuçu.19Durante vários desses momentos, ainda não havia ingressado no mestrado, apenas morava e trabalhava na cidade.20 Para que o ITERJ atendesse às comunidades da Juatinga era necessário pressionar politicamente uma vez que o órgão trabalhava com um planejamento anual de ações e tinha uma equipe pequena para atender questões novas. Até mesmo minha residência na época, emprestei para que os técnicos do ITERJ pudessem ficar na cidade e realizar as reuniões quando não recebiam as diárias do órgão. Todos foram sempre muito solícitos.
30
Dia 16 de fevereiro do ano de 2000, uma das comunidades atingidas pela
Reserva Ecológica da Juatinga foi visitada pelo ITERJ ( representado por
Sônia Beltrão, Elizabete Andrade) e pela Procuradoria (Betânia).
Numa reunião, os moradores puderam aclarar os principais problemas que
enfrentam:
1) O constrangimento para entrar no condomínio Laranjeiras 21 , um dos
condomínios mais ricos do país e cais tradicional de cinco comunidades
costeiras. Os moradores são obrigados a portar crachá de identificação e só
podem acessar o cais com a presença do grupo de segurança do condomínio
(GAP), que os leva de carro apenas quando, por rádio, se certificam de que o
barco que os levará já se encontra ancorado. Portanto, o acesso marítimo é
rigorosamente controlado, já o acesso por terra implica numa caminhada de
uma a cinco horas conforme a localização da comunidade;
2) A regularização fundiária prevista no decreto que institui a Reserva ainda
não foi realizada o que gera um dos maiores problemas para determinadas
comunidades além de um sentimento de vergonha para todos que se acercam
desse fato. Da década de 50 até meados de 80, grileiros e outras pessoas de
fora coagiram os moradores a vender a posse. Alguns desses grileiros, como
no caso do Sono, falsificaram o livro de registro de imóveis e usaram
expedientes violentos para expulsar os posseiros como: abusar do fato de
quase todos serem iletrados, trocar terras por comida e/ou pinga, colocar
búfalos soltos na praia, os quais deterioraram a roça dos moradores assim
como trouxeram bernes, sujaram a cachoeira, onde os moradores se
abasteciam de água, afugentaram as crianças e, em casos extremos, levaram
“polícia”, segundo o depoimento de vários moradores, para colocar casas no
chão.
Na Praia do Sono, essa realidade, já está desvendada pelo ITERJ que realizou
na década de 80, a discriminatória e juntou aos autos do processo a denúncia
da falsificação no cartório. Hoje não se sabe exatamente qual o andamento do
processo nem seu número contra GIBRAIL NUBILE TANNUS.
3) Se em décadas passadas os caiçaras resistiram aos grileiros, nesta década
de 90 sentem-se ameaçados pelas confusas e arbitrárias leis ambientais. A lei
que institui a Reserva, como dizem os moradores “dentro das nossa terras”,
não é clara. Em um dos seus artigos declara que é uma área “não edificandi”,
num outro, que a cultura caiçara tem de ser preservada. A cada novo governo
21 Grifos meus.31
os moradores são pressionados de maneira diferente pois nunca sabem como
pensam os responsáveis pelo Instituto Estadual de Floresta – IEF. Serão
preservacionistas, isto é, defendem que não se pode derrubar uma árvore e
sendo o homem é um destruidor da natureza, deve ser mantido fora das
poucas “ilhas verdes” que sobraram? Ou serão conservacionistas e procurarão
junto às comunidades parcerias e soluções para se atingir uma sociedade
sustentável, em que as comunidades, ali residentes, possam continuar a
exercer no cotidiano a cultura caiçara mais autêntica do município e quiçá do
Estado do Rio de Janeiro, em harmonia com o ambiente inteiro?
A atual administração tem enviado comunicados às comunidades proibindo-as
de viver tradicionalmente, pois não podem portar armas brancas (toda pessoa
que trabalha na roça utiliza facão, enxada e etc.), não podem ter animal de
estimação, construir cercas (todas feitas de bambu para se protegerem dos
animais e não dos homens, pois entre eles não há notícia de disputa pela
terra, cada um conhece seus limites), caçar (única fonte protéica durante o
inverno), tirar uma árvore da mata para fazer canoa (que dura em média 20
anos).
Os moradores vivem ameaçados pelos funcionários do IEF, na medida em que
antes era o GIBRAIL quem fotografa, levava a polícia e destruía casas, hoje, é
a atual política do IEF, antes permite que se fotografe as casas sem explicar
os motivos.
Há um convênio assinado entre o IEF e o ITERJ mas, segundo os profissionais
que tiveram no Sono, deverá ser revisto urgentemente para que seja possível
desapropriar os de fora e legalizar os títulos de propriedade ou posse dos
moradores tradicionais (lei 2393/93).
A necessidade da regularização fundiária é legítima e imprescindível pois
vários moradores têm sido ameaçados e violentados conforme relatado o caso
de uma moradora da Praia Grande da Cajaíba que teve sua casa destruída no
mês de fevereiro de 2000.
4) Outra discussão que inflama a comunidade e que não encontrou ainda um
consenso é a reabertura da estrada. Muitos se recusam a debater qualquer
assunto, mesmo o fundiário, se a estrada do Sono não estiver na pauta das
discussões. O acesso para praia é difícil, nesse sentido, o desenvolvimento só
virá com a facilidade de acesso que a estrada possibilitará. No entanto, para
outros será o fim do Sono.
32
Em 2000 a comunidade do Sono contava com 48 famílias, segundo o
diagnóstico da Secretaria de Educação. Todas as casas que tinham crianças
em idade escolar foram visitadas, as que não tinham foram somente contadas.
A família Gibrail logrou deixar apenas 32 famílias no auge do conflito e
antes da abertura da ação discriminatória. Naquele ano, muitos jovens já
haviam constituído família e construído outras casas, não era mais a família
que proibia mas sim a legislação ambiental incidente, cuja determinação é de
que a área será de natureza non edificandi.
O turismo, que chega nas altas temporadas no Sono, traz consigo mais
de 500 barracas e a comunidade começa a se organizar para recebê-lo não
deixando por exemplo, ninguém acampar em área não autorizada. Essa
organização ainda carece de muito trabalho, pois a sujeira que fica, a
contaminação da água e a interrupção da paz dos moradores mais velhos
ainda são problemas não solucionados. Até 2000 não havia nenhum estudo
sobre a capacidade de suporte do lugar para receber turistas e nem um plano
para controlar a entrada das mais de 3000 pessoas que chegam no verão.
Em meados daquele ano, o ex-presidente da Associação dos Moradores
vendeu sua posse desencadeando uma especulação imobiliária. Não havia no
Sono casas de gente de fora, apenas a de Gibrail, cuidada por uma família local.
Quanto ao aspecto educacional, sabe-se que este representa um problema
seríssimo que se estende para toda a Reserva. A partir da comunidade do Sono é
possível, após uma trilha de uma hora e um percurso de ônibus por 40 minutos,
chegar na cidade para procurar estudo, mas não há ninguém que realize esse
caminho diariamente, nem mesmo adultos em busca de emprego. O mais distante
que as pessoas chegam é Laranjeiras, onde trabalham como caseiros, babás,
jardineiros, barqueiros e etc.
O ensino municipal é, em todas as escolas rurais, multisseriado e termina na
4ª série. O diagnóstico de 2000 revela dados como:
cinco crianças com mais e 12 anos estavam cursando novamente a 4ª
série por não quererem parar de estudar;
dez estavam estudando fora, em Paraty ou em Ubatuba. São os pais
destes estudantes que se submetem aos trabalhos em Laranjeiras ou
abriram bares na praia para financiar os estudos dos filhos. Mesmo
assim, é necessário esperar que eles façam 15 anos para poderem ficar
33
longe dos pais que sofrem com as saudades e com as preocupações
que a vida na cidade traz);
fora da escola e com idade escolar estavam cinco crianças
(possivelmente por não gostarem da professora e/ou não serem
incentivados pelos pais);
e o dado mais alarmante: quarenta jovens (entre 11 e 23 anos) estavam
morando no Sono sem estudar, pararam na 4ª série, ou mesmo antes, e
não têm como financiar os estudos na cidade.
A perspectiva de continuidade de estudos para esses jovens começou a ser
discutida após o diagnóstico. As soluções foram desde um ônibus escolar, ensino à
distância, um supletivo feito em módulos até uma casa comunitária para a abrigá-
los na cidade mas, até hoje, nenhuma solução foi encontrada.
Se nos preocupa a educação dos jovens e das crianças, para os adultos a
situação não é mais reconfortante. Segue uma tabela sobre a escolaridade dos
pais:
Analfabeto 1ª Série
2ª Série
3ª Série
4ª Série
+ 5ª Série
15 3 6 6 23 2
A comunidade do Sono apresenta índices muito bons se comparada com o
restante das comunidades da Juatinga que apresentam uma realidade mais dura
em relação à educação na medida em que muitas sequer possuem escola.
Quanto à questão fundiária, os moradores do Sono não enfrentam mais a
violência cotidiana dos proprietários. A família Gibrail tornou-se ré e precisa
apresentar sua inocência, ou seja, provar que sua documentação percorreu todos
os caminhos legais e foi adquirida de forma legítima.
No próximo capítulo será abordada a questão fundiária em relação às
comunidades de Praia Grande da Cajaíba e de Martim de Sá.
34
3. PRAIA GRANDE DA CAJAÍBA
E MARTIM DE SÁ
Sou planta da terra,
nascida do ventre da mãe mas
criada na terra.
Pedra que muito rola
não cria limbo.
Eu vou ficar aqui,
só me tiram depois de morta.
(Baíca da Praia Grande da Cajaíba)
35
No TGI, Trabalho de Graduação Individual de 1999, defendido no
36
Departamento de Geografia, conforme mencionado, foi realizada uma pequena
etnografia da luta pela terra na Reserva da Juatinga. De acordo com Marcelo Justo:
‘Etnografia’ é tomada em seu significado literal de descrição de um povo e seu
“modo de vida” específico em relação ao meio onde vive. Porém neste caso
restringe-se seu enfoque ao “conflito pela terra” sem a pretensão de abarcar as
múltiplas dimensões da vida do grupo como organização familiar, a divisão do
trabalho, os costumes, a produção de bens, a religião etc.
( JUSTO, 2002:26)
Neste capítulo retoma-se alguns depoimentos do TGI para relatar o que
aconteceu após a chegada dos paulistas na década de 60 - ou um pouco antes
- e as ações derivadas dessa chegada. Portanto, o capítulo compreende as
últimas décadas com foco na questão fundiária.
3.1 Praia Grande da Cajaíba
Esta parte, que visa apresentar Praia Grande da Cajaíba e o conflito
fundiário, é iniciada pelas observações feitas em 1998 e pelos depoimentos de
moradores, trazidos em itálico.
A Praia Grande da Cajaíba, na década de 50, abrigou uma vila de grande
importância regional, com mais de 200 habitantes. A comunidade vivia
basicamente da agricultura: banana, café e mandioca. Os atuais moradores
recordam essa época como sendo de fartura e de festas – são vários os relatos
da abundância de peixes, da produção de farinha, dos forrós, das novenas e da
chegada da bandeira do Divino. (CAVALIERI:TGI, capítulo 4)
Dona Silvana, uma das moradoras mais alegres da Praia Grande, conta
sobre a “épa da fartura”:
Meu pai conta de uma rede... dois mil, três mil tainha, tiravam a
barrigada de ovos, seca pra tomar com café é uma beleza, tinha fartura,
e o resto dos peixe eles enterravam. As tainha vinham pulando, inté
bonito. Era uma coisa demais, ninguém dava conta de vender em
Paraty. Era épa de fartura.
A produção era escoada para Angra dos Reis e Paraty. Os barcos de
pesca ancoravam na praia de “mar manso” para comprar farinha de mandioca
e aviamentos (cestas, balaios, tipitis, esteiras...). Isso acontecia antes da pesca
se tornar a atividade principal, o que ocorreu com a chegada do “cerco”, trazido
por um japonês chamado Oda22.
Na década de 50, Gibrail Nubile Tannus chegou à Praia Grande da
Cajaíba, mesma época em que chegou à praia do Sono. A história das duas
praias guarda muitos pontos comuns, sobretudo em relação às violências
cometidas.
Muitos moradores da Praia Grande não tinham (e continuam não tendo)
os títulos da terra. Viviam costumeiramente no lugar que havia sido dado por
seus pais ou avós. Essa era a história das terras conhecida por todos, história
que se inscreve no direito costumeiro. Segue entrevista23 com um casal
morador da Praia Grande:
L: Então era lá... o teu avô é o João Araújo?
X: É.
L: Como chama a tua avó?
X: A mulher do vovô?
L: É.
X: Marta, Martilde.
L: Foi a Martilde que deu este lugar pra vocês?
X: Não, a minha bisavó.
Y: A bisavó dela.
X: A mãe do meu avô, entendeu?
L: Que é a Purcera?
X: É a Purcera.
L: Ela cedeu esta terra pra vocês morarem?
X: Pra morar. Então aí nesta época o Gibrail não tava nemmm...
22 Essa história será relatada no capítulo V.23 Os nomes dos entrevistados da Praia Grande serão preservados quando estivermos tratando de conflito pois este ainda não terminou.
181
Y: Nem tinha aqui, não tava...
X: Não passava nem pela cabeça dele de tá por aqui, entendeu?
L: Mas nesta época também não se assinava nada, não se fazia nada... Quer
dizer, ela deu pra você morar mas...
X: Não, não...só falado.
D: De boca é, de boca.
X: Mas, meu avô, tudo eles, confirmam, eles sabem que é dela, que ela que foi
que botou o Dedé aqui, o avô dele que morava ali também foi...
D: O Ambrósio...
X: O Ambrósio...
D: Meu avô morreu com 82 anos.
X: Morava do outro lado. Aqui não tem esta pedra grande, aqui na beira da
cachoeira assim? Ali atrás dos bambu, era casa do avô dele.
L: Que também não existe mais... também foi botada abaixo?
X: Foi botada no chão, então, o Gibrail botou no chão.
Y: A casa caiu.
X: O Gibrail botou no chão, não foi a casa que caiu, o Jorge que veio aí e
mandou botar no chão.
L: Muitas casas foram pro chão aqui?
X: Muitas, do pessoá mais antigo tudo, botou tudo no chão. Igual, onde agora é
casa do... a casa que agora o Isaía tá morando, botada no chão era da Artina;
lá no canto onde a Maria mora, acho que tinha umas oito casas, cinco ou oito
casas...
Segundo Zezinho, morador da Praia Grande:
Esta nesga de terra é da Belinha, casada com o Benedito onde tá construída a
barraca verde. Pega do pé de baixo, pega o barranco, passa na toca grande,
atravessa a cachoeira e volta pro pé de araçá.
As terras, antes da chegada de Gibrail, como podemos ler na fala dos moradores,
eram marcadas por limites naturais e todos sabiam a distribuição no espaço das
posses.
182
Mircea Eliade (2001: introdução) traz a idéia de que a cosmogonia do grupo
comporta a fundação dos lugares que passam a revelar “algo de sagrado” - a
hierofania.
Os pontos que marcam as posses são até hoje respeitados. Os moradores da
Praia Grande não tiram uma árvore ou pedra que fundam “o lugar”, que marcam a
posse, cujas origens perdem-se no tempo. Os paulistas podem dessacralizar
afinal, para eles, o espaço é geométrico.
Durante todo o período de tempo em que o trabalho de campo foi realizado houve
poucos conflitos por terra no interior da comunidade, entre os moradores. Os
poucos existentes referiam-se a questões de herança e inserem-se na lógica
camponesa. Para que o grupo garanta sua reprodução social, inventa códigos que
comporão o costume do lugar, para que a terra não seja excessivamente
repartida.
3.1.1 Dos contratos de comodato
Os expedientes violentos para a expulsão dos moradores variaram ao longo
do tempo e adquiriram requintes legais como, por exemplo, os contratos de
comodato.
Os contratos de comodato firmados nas últimas décadas são até hoje,
uma grande ameaça à permanência dos moradores, pois com processos de
reintegração de posse, os proprietários logram tirar as famílias de suas terras.
Esses contratos materializam legalmente a violência.
A grande maioria da comunidade adulta é ainda hoje iletrada e fiel ao
seu código costumeiro de acreditar na palavra do outro. Muitas famílias
caiçaras assinaram (colocaram a digital, segundo eles: ‘firmamos’) papéis em
branco entendendo que ‘firmavam’ uma declaração de que eram moradores
do lugar. Essa assinatura deu origem aos contratos de comodato em que as
famílias caiçaras posseiras passaram a ser comodatárias, sem nenhum direito
a reivindicar a posse. ‘Firmaram’ reconhecendo o proprietário das terras e que
estavam ali de favor, até o dia em que o proprietário pedisse de volta a terra,
reconheciam também que as benfeitorias não seriam indenizadas. Sairiam,
sem receber nada, a qualquer momento. Muitos só tiveram acesso ao
conteúdo do que ‘firmaram’ há poucos anos através da notificação judicial,
183
que precede as ações de reintegração de posse, informando o prazo para a
saída.
Na Reserva da Juatinga, o contrato de comodato transformou, por meio de
uma assinatura, os posseiros caiçaras em comodatários ou, como chamados por
Fausto Pires de Campos (in: Siqueira,1984:48), em inquilinos da terra.
Alguns contratos previam a troca de terrenos. Assim, Gibrail deveria doar
outra sorte de terras ou pagar em qualquer espécie, o que não ocorreu na maioria
dos casos.
Chica da Praia Grande conta:
O Gibrail dizia: vende porque eu compro leite pra sustentar as criança. Meu
sogro, que é meu tio, também vendeu e não vi uma lata de leite. As crianças
ficaram niquilada, um com dez mês, outro com um ano e meio. Morreram.
Falou que dava mais dinheiro e nunca deu nada. Titio vendeu e fomos pra
Angra, lá tinha medo dos fugidos, aí o titio foi buscar a gente e moramo na
Praia Vermelha. O Gibrail comprou o pedaço de um e vai pegando mais na
frente.
(...) Ele já pombou aqui comigo. Eu queria criar mais galinha pra comer, queria
plantar, o Jorge24 não deixava, trouxe polícia, tirou retrato e tudo, dizia que
queria botar pra baixo, jogar a casa embaixo. (...) Eu acho que a casa tá
assinada, ele veio buscar e disse pra assinar pro Manuel e pro Bidico.
(...) Outras vez ele vinha com a cachorra, estrovava com o pessoal e ia
embora. O Gibrail nunca deu nadinha de nada pra gente, o que ele fez foi
roubar terra dos outros, isto sim, com a camaradagem dele, pagou o sítio e
enganou tudus.
Vários são os relatos dos moradores que se descobriram, na Praia Grande,
comodatários e sofrem processos de reintegração de posse.
Entrevista com um casal:
L: Já que tá gravando aqui, me conta como é que foi esta história da tua
assinatura, que você assinou.
Y: Então, a história da minha assinatura foi assim: eu fui em Paraty, aí ele foi e
eu tava de frente ali com ... ali no finzinho, aquele restaurante que ele tem ali,
aí ele foi e me chamou; Vem cá, vem cá, cê mora na Praia Grande? Ele sabia
24 Jorge era o funcionário mais conhecido e temido. 184
que eu morava na Praia Grande e falei: Moro sim; Cê quer assinar..., assina
aqui, assina aqui o negócio, aqui, provando que cê mora lá na Praia Grande;
Eu não sabia de nada, né? Aí eu não sabia assinar, não sabia de nada, aí
fichei o papel e deixei lá, com ele. Aí quando vi ele já tinha botado testemunha,
botado tudo, na minha presença não foi nada disso. Como é que pode, né?
L: Hum, hum...
Y: Pois ele sabia que eu morava aqui, que eu era nascido e criado aqui.
L: E depois só de trinta anos que a X foi descobrir esta história?
X: Descobri. Então foi quando a véia foi vender é que precisou, esta negócio de
assinatura.
L: Mas você só assinou este papel ou você assinou vários papéis?
Y: Não, não.
X: Não, não. Este que é o contrato que aí quando eu fui pegar a cópia dos
outro documento, que aí ele falou, aí a moça leu que no contrato de comodato
tá que ele não podia casar, não podia constituir família no lugar, não podia
prantar...
Y: Mas ele não explicou nada disso que era contrato não.
X: Nos documento tava isso, ele marcou, não falou coisa, pediu a assinatura.
L: No documento ele disse que era pra você só assinar, botar a firma...pra
provar que era morador daqui...
Y: Pra provar que era morador do lugar, ora cê vê...
X: Daí esse era o contrato de comodato, daí que eu descobri que todo mundo
tem este contrato. Aí que eu cheguei aqui e falei pro pessoal, falei pra eles; Eu
não que eu não assinei dicumento nenhum; Assinou rapaz, que tá lá, eu peguei
cópia dos documento, a Jô leu pra mim, tá lá direitinho, teu nome.
Os contratos não se limitaram a transformá-los em “inquilinos” mas também
esperam reger espaços íntimos da vida.
Na Praia Grande da Cajaíba, uma ação discriminatória contra a família
Gibrail, como a que existe no Sono, ainda não foi aberta e seus sucessores
herdaram a propriedade e os expedientes violentos. Agora é o genro e o neto do
proprietário que amedrontam no cotidiano os moradores, inventando novas formas
de pressioná-los para vender suas posses.
A simples aparição deles na praia já causa medo. É com freqüência que
caminham fazendo um levantamento da propriedade, fotografando as roças e as
casas dos que resistem, mandando recados, propondo acordos, beneficiando
alguns com favores.
185
Já recebi dezenas de telefonemas nesses anos dos moradores
assustados:
Lussa os homem tão aqui com a polícia fotografando tudo, marcando tudo. O
que a gente faz?
A manutenção do medo, aliada às tentativas de compra das posses, é a
pior violência cometida pela família proprietária. Gibrail já faleceu, mas seus
herdeiros apresentam-se piores para os moradores.
A ‘mulher’ que eles temiam em 1993 era a viúva de Gibrail e pairava na
comunidade como um fantasma. Hoje, após 10 anos, é o Fernando, a Bete e o
Cristiano, respectivamente, genro, filha e neto de Gibrail que atemorizam.
O caseiro, que permaneceu por mais de cinco anos, notoriamente
portava arma e expulsava os campistas que ali chegavam nas temporadas,
montando guarda e abordando todos os barcos que vinham da cidade trazendo
turistas. Tinha também um celular, ou seja comunicava-se diária e diretamente
com os proprietários. Segundo um morador:
Ele tem no corpo a marca de tiros, era um bandido na cidade.
Vários moradores conseguem falar sobre esta violência sofrida e como
reagem a ela. Vale notar, na próxima entrevista, o que é chamado aqui de violência
cotidiana. A fala é de Clarissa, uma moradora que tem uma deficiência física e é
destemida:
O Cristiano [neto do Gibrail] e o Boni [caseiro] estiveram aqui e disseram que
eu não podia desmatar. Eu disse pra eles: você quer conhecer mais da roça
que a gente que é daqui? Isso aqui nunca foi mata, é uma capoeira que a
gente deixou. Se nóis num plantar, num come. Se você tem dinheiro em fartura
vai ajudar os pobres da cidade.
(...) Agora já são umas três vezes que nós vamo em Paraty e eles ficam
cercando a gente. Eles têm espia no cais e o Boni liga quando sai barco daqui.
O tal do Serginho [na época era também monitor do IEF e agenciava a saída
186
dos moradores para os proprietários25] fica falando: aqui tem uma casa boa
para vocês morar. O Cristiano dá uma casa para você e um barco pro Zé
[marido dela]. Eu digo: sou pobre mas fico na minha mesmo. Agora o Marcelo
[filho da sua prima, também moradora] construiu um casa e o Serginho fez ele
desmanchar.
(...) Agora a gente quer abrir caminho e o homem do IEF e o Cristiano não
deixam que vai cortar pau. É só cajuiu e outras mole, mole. E presta isso?
(...) Pro meu pai eles truxeram polícia pra ele não reformar a casa dele que
está vazando água dentro. Meu pai falou: eu não sou aposentado, tô doente e
preciso trabalhar, não ganho nada, por que não posso fazer área de camping
pra abrigar os turistas? O Serginho disse: ele [o Cristiano] paga um salário pro
senhor não acampar ninguém aqui. Meu pai falou: não quero, eu quero com
meu suor.
A política dos favores e do medo mantém-se arcaica – reproduz o atraso, a
espera e a submissão - e hoje encontra formas modernas para se manifestar. A
última foi colocar, no ponto mais adequado da Praia Grande da Cajaíba para a
ancoragem de barcos, uma criação de mariscos como alternativa de renda.
Foram meses de negociação, alguns moradores pleitearam o emprego e
desentenderam-se. Outros, compreenderam que essa poderia ser uma forma de
sujeição, e recusaram. O mar, pedaço do território caiçara que compõe as terras de
uso comum, passou a ser apropriado privadamente e a relação de assalariamento
informal se instalou; a comunidade se dividiu; a ancoragem para os barcos de fora
e do lugar não tem mais espaço amplo.
Além do cotidiano incerto, e por isso também violento, os expedientes
legais de expulsão continuam ocorrendo. Atualmente, a família Gibrail tem três
processos de reintegração de posse contra moradores mais questionadores da
Praia Grande.
Quando perguntado sobre o sonho de vida, um morador mais idoso, Seu
Lisiário, disse:
25 Essa prática promíscua foi denunciada ao IEF que rompeu o contrato com esse monitor, no entanto, mais uma vez a imagem do Estado ficou maculada afinal, por um tempo, meio ambiente e proprietário se apresentavam na figura da mesma pessoa. Não se podia fazer roça ora porque o proprietário não permitia ora porque o “meio ambiente “ não permitia ou, pior, os dois aliados não permitiam.
187
Somo nascido e criado com os filhos tudo enraizado. Meu sonho é morrer aqui
mesmo, com os filhos tudo por perto.
3.2 Martim de Sá
Em Martim de Sá, outra localidade da Juatinga, há uma família que
também está submetida à lógica da violência26.
Manoel dos Remédios, conhecido hoje como Seu Maneco, e sua família
são os únicos moradores da Praia de Martim de Sá há gerações.
Referindo-se ao seu nome e a sua terra, Seu Maneco afirma:
(...) no tempo dos antigos, me tratavam por Manoel do Roque, meu pai
era o Roque Caçador. Conhecia todas essas mata do nosso lugar, de
Martim de Sá até Cairuçu, até Ponta Negra, que ele andava por tudo.
Seu Maneco e sua família foram os primeiros moradores que conheci, ainda
não como pesquisadora, em 1993. Após o início efetivo do trabalho27 ele me
contou a história da terra, do “seu lugar”, várias vezes. Reproduzirei aqui dois
desses momentos e posteriormente tratarei da ação possessória.
3.2.1 Manuel do Roque: autor
Numa noite em que não havia turistas na praia, após o jantar – feijão da
roça, farinha deles e peixe pescado naquela tarde – começamos a conversar.
O gravador nessa noite não funcionou... mazelas da pesquisa. Na manhã
seguinte escrevi toda a história que me foi contada. Durante a tarde fui lendo-a
para ele e sua esposa, D. Lourença, e fazendo as correções, acrescentando os
detalhes que me escaparam da memória. Retomo aqui, também do primeiro
capítulo, a idéia de pesquisa-participante (BRANDÃO, 1990:11):
26 No final do capítulo há um mapa elaborado por dois membros da Verde Cidadania, uma proposta de zoneamento, que estarei utilizando somente para localizar as duas comunidades estudadas.27 No primeiro capítulo há o relato de como foi a aproximação e de como se iniciou a pesquisa.
188
(...) Aprender a escrever a sua história de classe. Aprender a rescrever a
História através da sua história. Ter no agente que pesquisa uma espécie de
gente que serve. Uma gente aliada, armada dos conhecimentos científicos que
foram sempre negados ao povo, àqueles para quem a pesquisa participante –
onde afinal pesquisadores-e-pesquisados são sujeitos de um mesmo trabalho
comum, ainda que com situações e tarefas diferentes – pretende ser um
instrumento a mais de reconquista popular. (grifo meu)
A história do “seu lugar” será trazida a seguir em itálico. Foi escrita por
mim, até porque Seu Maneco não o poderia fazer devido ao iletramento, mas
considera-se Seu Maneco e D. Lourença de Martim de Sá co-autores.
O Pacheco chegou turistando e perguntou quem era o dono. O pai do seu
Maneco, seu Roque Caçador, disse que era de uma viúva do Rio de Janeiro.
Após mais ou menos duas semanas voltou o Pacheco, dizendo que havia
comprado as terras e pediu para que seu Roque mostrasse os rumos [os
limites] da Fazenda. Seu Roque mostrou: do Morro do Valo com divisa no Rio
Bullé (meio da Sumaca) até a vertente do Diogo.
Pacheco diz ao seu Roque que ele poderia ficar na terra tranqüilo e trouxe um
pessoal de fora, de Minas, de Nova Iguaçu para trabalhar. Ele enganava o
pessoal dizendo que era uma fazenda bem bonita, perto da cidade, que era só
atravessar um rio que era cheio de peixe. Os camaradas chegavam em Paraty
de noite e pegavam o barco, o mais barato já tratado pelo Pacheco, e eram
trazidos para Martim de Sá. Eles chegavam putos da vida, se tivessem pistola
atiravam no Pacheco.
Em Martim de Sá, a fazenda começou a se desenvolver vendendo carvão e
madeira para Paraty e Mangaratiba. Eles desmatavam tudo. Eram de 15 a 25
homens que ganhavam o suficiente para pagar a cachaça e o ranchinho
[comida e outras necessidades básicas] no armazém [hoje, casa do seu
Maneco).
Seu Roque trabalhou por mais ou menos 20 anos tomando conta da fazenda.
Antes da chegada dos Pachecos, Seu Roque e sua família plantavam banana
189
na vargem, faziam farinha para vender no Pouso - vila bem povoada na época -
e criavam porcos e galinhas que também vendiam.
Seu Maneco foi nascido nos Antigos, porque não havia parteira no local,, veio
mamando ainda para Martim de Sá assim que D. Capitulina, sua mãe, saiu do
resguardo. Casou-se e trouxe a mulher, D. Lorença, para morar lá e tiveram os
seis primeiros filhos [Camuzinho, Pedro, Paulinho, já morto picado por cobra,
Marco, Cida e Teresa]28.
O trabalho na fazenda era difícil. Os camaradas trabalhavam o dia inteiro
furando pedra, se fosse dura eram três palmos, três palmos e meio, se fosse
tábua mole era quatro palmos e meio, derrubavam mato, faziam carvão e
serravam madeira. O Pacheco não se ausentava mais de uma semana,
contava quanto cada um tinha trabalhado e pagava por quinzena, acertava a
conta, descontava a comida e a cachaça do armazém. Os barracos para morar,
os camaradas que faziam.
“De primeiro” havia um feitor que andava armado e era muito sisudo, vigiava,
era o administrador. Depois, seu Maneco passou a tomar conta do serviço.
Todos os camaradas se davam bem com ele por conta da sua seriedade e
educação.
A comida era preparada por D. Capitulina, esposa de seu Roque. Quando o
Pacheco estava na fazenda, ele mesmo colocava a comida numa lata de
banha da coco, marmita de levar na roça. As porções eram bem tabeladas
[controladas]. Seu Roque e a família sentiam pena de tão pouca comida.
Quando Pacheco estava ausente, D. Capitulina enchia as marmitas oferecendo
farinha e peixe. Estes eram ofertados de coração por seu Roque, que fazia a
farinha e pegava peixe na praia e não era pago por isso pelo Pacheco. Fazia
mesmo por costume e por pena do pessoal. Seu Maneco trabalhava das sete
às 16 horas no serviço da madeira e depois abria o armazém e trabalhava até
as 23 horas vendendo comida e cachaça para os trabalhadores e moradores
do Pouso e do Cairuçu. Os trabalhadores gastavam todo o salário no armazém.
Desde garotinho seu Maneco trabalhava, não tinha escola, desde que começou
a andar já ia buscar água, carregar lenha. Segundo ele: “um bom pai coloca no
serviço cedo e não deixa à rola” [solto].
28 A roça é um território feminino. D. Lourença em dias de compartilhar, me contou como nasceram seus filhos na roça por onde andávamos.
190
A pressão para seu Roque sair aumentou, ele ficou “imprensado” [sem
condições de dar continuidade ao modo de vida]. O Pacheco exigiu a meia, “na
entrada eles não fizeram isto”. Seu Roque se aborreceu e seu Maneco com
pena acompanhou “o coroa” para o Cairuçu. A fazenda ficou abandonada.
Antes de morrer, Pacheco procurou no Saco das Anchovas e pediu pro seu
Roque e seu Maneco voltarem para Martim já que eles que eram os moradores
quando ele comprou e eles não aceitaram. Por todo o tempo continuaram
cuidando dos pés de fruta que estavam ali plantados.
Passou muito tempo no Cairuçu até que Seu Maneco, ouvindo a insistência da
D. Lorença, que pedia para a família voltar para Martim - ali eles tinham casa,
eles tinham tido os primeiros filhos, tinham roça – cedeu. Seu Maneco e a
família voltaram então com o casal derradeiro, Paulo e Bia.
Nesse tempo o Clóvis [um dos filhos do Pacheco que havia falecido] foi em
Martim três vezes quando seu Maneco já tinha limpado tudo, por duas vezes
conversou que não tinha como pagar o salário mas que ele podia morar o
tempo da vida que quisesse, por ele estava bem colocado. “Ele queria fazer
com nós o mesmo que o pai deles havia feito com meu pai”.
Seu Maneco reformou a casa, fez mais um quarto, banheiro, um puxado,
cozinha, casa de farinha, chão, as telhas foram lavadas uma por uma, comprou
telha nova para o quarto, construiu banheiro, abriu o caminho pro mar que
estava fechado. Plantou mandioca na vargem, abacaxi, banana, abacate
laranja, construiu a pinguela, plantou batata doce e inhame.
E assim estavam vivendo com o trabalho da roça e da pesca até que os filhos
do Pacheco reapareceram (1998), agradeceram Seu Maneco por ter cuidado
da fazenda e solicitaram que ele e a família saíssem de Martim de Sá.
3.2.2 Entremeios com Seu Maneco
Quando os filhos do Pacheco quiseram voltar em 1998, realizamos, (a
ECO_TV de Paraty e eu) em julho do mesmo ano uma matéria sobre a história
de Martim de Sá contada pelo Seu Maneco, bem como aspectos típicos da
191
cultura caiçara. Retirei o trecho em que Seu Maneco fala sobre a terra e como
gostaria que seu lugar ficasse. O restante da fita de vídeo transcrita aparecerá
no capítulo sobre cultura caiçara.
_ A vida aqui está boa?
_ Nós vivemos a vida assim, tranqüilo mesmo. Tudus que vem aqui gosta muito
da área. Tranqüilo que estava, mas agora... pelos povo que vem eu não tenho
queixa nenhuma. Todos me tratam bem, me arrespeitam bem. Tratam eu como
pai deles. Saem dizendo que tem dois pais, um lá e outro cá, que sou eu. Mas
agora entraram29, aí eles disseram que a terra é deles porque compraram tal,
por esta, por aquela, é deles....
_ O senhor já viu documentos?
_ Nunca vejo na minha mão, nunca eles amostraram documento da terra. Só
dizem desde a épa do pai deles.
(...)
_ E agora, Seu Maneco, o que eles propuseram para o senhor quando eles
chegaram nos últimos tempos?
_ Ah, eles querem fazer assim: querem tirar eu e botar onde eles querem.
Dizem que a área toda é deles. Querem me levar, botar lá pras Anchovas, pro
Saco das Anchovas, ficar lá, morando. Eles querem colocar nós no lugar dado
por eles - que eles não têm nada disso -, então nós moramos onde nós
queremos, que é área nossa, nós nascemos aqui, meus filho todos nascidos
aqui. Mas então eles querem colocar a gente lá pra um dia eles ter pé: ‘Não,
aqui fui eu que te coloquei e você já sai daqui e já vai pro outro lado’. Decerto
eles querem fazer isto.
_ E o que eles querem fazer aqui na praia. O senhor sabe?
_ Pelo que tá correndo notícia aí, eles disseram: fazer carreira de casa, fazer
restaurantizinho, pousada, quarto...
_ Pra alugar pra turista?
_ Pra alugar pra turista, é isto que eles querem fazer.
_ O que o senhor acha desta idéia?
_ Ah, não consinto. Não dá. Fazer como muito lugar por aí, né?
_ O que aconteceria com este lugar?
29 Seu Maneco refere-se aos Pachecos, família proprietária das terras onde ele vive. Essa história foi relata no capítulo 3.
192
_ Acabava, né? Acabava com esta beleza que está aí: tranqüilo, tudus que
vem aí deixam sua barraca na sua posição, quando volta tá certinho,
ninguém mexe, nem os de fora mesmo, um não mexe no que é dos outros,
tudo arrespeita. Eu quero preservar isto assim, que tudus que vem acham
tranqüilo e tudus diz que a mesma coisa: ‘Seu Maneco, é o lugar mais
tranqüilo que nós achamos por aqui, que conhecemos, que nós somos
turistas, é Martim de Sá, passando o coqueiro muda o nosso expediente.
Sabemos que nós vamos descansar, ter o nosso prazer e nosso lazer numa
coisa que lá não tem mais. É só aqui em Martim de Sá. Que nós
conhecemos até Santa Catarina, por aí tudo, interior de Minas...
3.2.3 Da ação possessória
Em 1998, a família Pacheco entrou com uma ação possessória contra
Seu Maneco no Fórum de Paraty. Num primeiro momento, foi uma notificação
judicial e após um ano e um dia foi a reintegração de posse, processo nº
4782/99. Seu Maneco ainda não tinha advogado no momento da notificação e
o prazo para a contranotificação foi perdido.
Foi uma grande epopéia a conquista dos advogados que ora o
defendem gratuitamente. Logo no início da ação, Seu Maneco procurou,
através de um conhecido, um advogado particular que pediu em troca da
defesa, após conhecer o lugar do Seu Maneco, um cantinho para construir uma
pequena casa para passar as férias com sua família. Com custo, Seu Maneco
foi conhecer a defensoria pública30 e foi convencido a optar por ela. Como a
cidade de Paraty é uma comarca única, todos os processos da vara cível e da
criminal chegam ao Ministério Público.
O defensor não trabalha todos os dias da semana, por isso formam-se
filas enormes para o atendimento, as quais, naquela época, eram repletas de
mulheres pedindo pensão para as crianças, requerendo proteção contra
violência, famílias com filhos presos na delegacia ou em Bangu, casos de
drogas e prostituição, mulheres grávidas de prisioneiros que queriam formalizar
o casamento, enfim, uma gama interminável de tragédias. A gíria corrente nos
30 Nesse ano morava em Paraty e acompanhei Seu Maneco em todas as idas à defensoria.193
corredores do Fórum era “abalou Bangu” pronunciada quando alguém contava,
na espera, um caso surpreendente, normalmente de foro íntimo.
Seu Maneco pegava o barco do Pouso para a cidade ou ia com os filhos
até Laranjeiras e de lá pegava ônibus para a cidade para ser atendido. As
diligências burocráticas do processo imprimem um ritmo nada natural, além de
um grande custo material e emocional. Mesmo mantendo a calma devido à
certeza de que a terra é sua, Seu Maneco um dia desabafou:
Meu pai nasceu, viveu, adoeceu e faleceu no Martim de Sá, o umbigo dos
meus filhos estão enterrados. Tenho roça, rede, canoa sendo tirada, casa de
farinha. Por que eles estão fazendo isso a gente?
É um pouco vergonhoso adentrar no Fórum, que se localiza muito perto do
cais, pois todos que chegam e saem ficam sabendo o que está ocorrendo na pequena
cidade. Os conflitos que se inserem na lógica camponesa não precisam do Fórum
para serem resolvidos. As poucas vezes em que tentava consolá-lo, acabava sendo
consolada:
Eles não sabem o que estão fazendo. Estão muito errados, precisam é do
nosso amor. Quando eles chegarem em Martim de Sá vou continuar recebendo
eles como sempre, com um café e farinha nova.
De camponês, caiçara, morador tradicional, um homem que fora
educado a não pedir nada - seu pai nem aposentadoria queria do Estado - foi
reduzido a réu. Réu numa ação de reintegração de posse, movida pelo Espólio
de Antônio Rocha Pacheco, na Comarca de Paraty-RJ.
O atendimento na defensoria foi sempre satisfatório porém com
encontros curtos. Antes de ocorrer a primeira audiência, três defensores
passaram pela cidade e tomaram conhecimento da ação. Essa rotatividade
provocava enorme insegurança, pois, muitas vezes, num caso desses em que
a defesa deve ser criteriosa, o tempo escasso do defensor não permitia um
debruçar-se maior sobre a questão. Mesmo assim duas defensoras, aceitando
sugestão, procuraram o Núcleo de Terras do ITERJ que assessora os
defensores e que já conhecia o processo.
194
Devido ao seu carisma e sinceridade, Seu Maneco trouxe para a sua
defesa um grupo de advogados que chegaram em Martim de Sá e tomaram
conhecimento da história. Esse grupou formou uma ONG, a Verde Cidadania,
que tem acompanhado várias ações da Reserva e discutido problemas como a
reclassificação, educação, construções ilegais e etc. Seu Maneco é atendido
gratuitamente pois os advogados juntaram aos autos do processo uma certidão
em que declararam que não cobrarão nada. Todos querem apenas a
permanência de Seu Maneco em Martim de Sá.
A reintegração de posse contra Seu Maneco alega esbulho da posse
com liminar de despejo, ou seja, se a liminar fosse deferida Seu Maneco e a
família continuariam respondendo ao processo mas não morando no “seu
lugar”. Segundo o código civil, o juiz poderia deferir sem ouvir o réu. A juíza,
porém, foi cautelosa e solicitou a justificação de posse.
Leonardo Campos, um dos advogados da Verde Cidadania que
acompanha o processo, esclarece:
A reintegração de posse é uma ação em que o autor visa ter de volta a posse
de um bem por ser a sua posse mais justa do que a do possuidor atual. No
caso do Seu Maneco, o autor baseia a justeza da sua posse no fato de ser o
dono da terra e tê-la emprestado ao réu através de um contrato de comodato
celebrado verbalmente.
Nossa tese é de que não houve tal contrato. Que quando o S. Maneco voltou a
habitar o local (pois sua família já vivia ali antes da compra pelo autor),
encontrou-o abandonado e viveu mansa e pacificamente por tempo suficiente
para ter direito ao usucapião (mais de cinco anos).
Em 10 de outubro deste ano [2001], ocorreu a audiência de justificação
prévia em que o autor deveria provar que o réu vivia ilegalmente há menos de
um ano e um dia no local, para que assim fosse deferida a liminar de
reintegração de posse, ou seja, a saída do réu desde já. O autor notificou Seu
Maneco para por fim ao contrato de comodato em 1998 e ingressou com a
ação no mesmo ano, ou seja, menos de 1 ano e 1 dia vivendo ilegalmente, o
que daria direito à liminar.
195
A juíza indeferiu a liminar aplicando um artigo do Código de Processo
Civil que veda a prova exclusivamente testemunhal para contratos cujo valor
exceda a 10 salários mínimos (no caso, o comodato verbal alegado pelo autor).
A primeira audiência – de justificação da posse - foi adiada várias vezes
e, quando aconteceu, foi realizada de portas fechadas, mesmo sendo cível.
Havia em todas as audiências um burburinho na cidade. Propositalmente
levávamos31 jornal, televisão, gente da comunidade, a família de Seu Maneco –
a mãe que mora com ele e tem mais de 90 anos, filhos e netos. Tentava-se dar
a dimensão política que as reintegrações de posse merecem ter no Brasil.
Politizar a luta pela da terra antes de legalizá-la. Foi com surpresa que
constatei que a limiar havia sido indeferida devido a um artigo do Código Civil,
que nunca imaginei existir, sobre provas exclusivamente testemunhais para
contratos com valor superior a dez salários mínimos.
Diferente dos contratos de comodato forjados à revelia dos moradores
do Sono e da Praia Grande da Cajaíba, em Martim de Sá se alega o comodato
verbal. Dessa forma, o empréstimo teria sido feito verbalmente: o detentor da
posse, através de uma conversa, tornar-se-ia, como já mencionado, inquilino
da terra. Quantas ações dessa natureza poderiam ser abertas? Se o
argumento é que numa conversa se celebra, segundo o autor da ação, um
comodato verbal, não haveria mais posseiros. Teríamos no campo somente
proprietários e comodatários verbais. Qual a legitimidade de uma ação com
esse caráter? Qual seu perigo?
É evidente a necessidade de politizar a luta e, concomitantemente, os
meandros da lei devem ser deslindados pois são eles que ainda regem a nossa
sociedade. Caso contrário, presos ao “espelho”, teremos nos tornado
“estátuas” como entendido por Boaventura32?
Os Pachecos33 agravaram a decisão com um recurso na segunda
instância, no Tribunal Regional Federal (TRF). Os desembargadores, numa
31 Nesse momento me juntei à Verde Cidadania pra planejar a defesa.32 A citação na íntegra e a apresentação do direito como espelho da nossa sociedade estão no fim do capítulo 4.33 Todos se referem à eles no plural, pois são vários irmãos que se revezam na defesa da propriedade.
196
sessão aberta, sem a presença do réu e do autor, apoiaram a deliberação da
juíza da comarca de Paraty.
O processo contra Seu Manoel dos Remédios entrou então, após todos
os agravos possíveis e a manutenção do deferimento da juíza em relação à
liminar de despejo, numa segunda fase.
Novamente, de acordo com o Dr. Leonardo Campos:
Travaram-se então várias batalhas judiciais no processo n°
1999.041.000015-334, tanto em primeira e segunda instância, bem como junto
aos Tribunais Superiores, tendo sido confirmada em todos os graus de
jurisdição, a decisão monocrática de manter liminarmente Seu Maneco na
posse da terra enquanto não há uma decisão final.
3.2.4 Caderneta de campo
A última audiência de Seu Maneco ocorreu em 22/01/2002, esta pode
ser considerada como uma audiência de conciliação. Seguem agora as
anotações da caderneta de campo com as observações do dia, além da
transcrição de conversas dos momentos que sucederam a entrada na
audiência - nosso encontro com Seu Maneco e família - e a saída da audiência.
As falas transcritas a partir da fita gravada estão entre aspas.
AUDIÊNCIA DE SEU MANECO
AUDIÊNCIA DE SEU MANECO
Transcrição da fita f 01 e caderneta de campo
34 Através desse número se acessa o processo pela internet.197
Um pouco antes da última audiência do processo de Seu Maneco, havia a
chance de que a família Pacheco oferecesse alguma possibilidade de acordo.
Sempre no início das audiências, o juiz pergunta sobre isso, e se a resposta é
negativa, ele dá continuidade ao ritual. Antes da audiência – toda a família dele
estava presente – nos reunimos para conversar: os advogados, Seu Maneco e
D. Capitulina.
Quando indagado sobre a possibilidade de um acordo, Seu Maneco responde:
_Se eles fizessem um acordo assim, me arrespeitando, eu lá... Não eles sendo
dono de tudo e deixando eu morar e dizendo: eu autorizei...
_ Qual pedaço de terra que o senhor acha justo?
_ Eu na minha área..._
_ Quais seriam os pontos?
Ele responde que 100 m de frente para o mar até 300/400 de fundo estava
bom. Destes 100 de frente, seriam 50m para cada lado do rancho de pesca
que fica na praia.
Flávia explica que não é possível negociar uma área que não está contemplada
no processo, uma área diferente daquela que os Pachecos reivindicam na ação
possessória. Seu Maneco retruca:
_Se eles entram num acordo de eu mandar na minha área para receber vocês
sem dever nada a eles, sem eles me aborrecer, nem eu aborrecer eles, tudo
bem.
Seu Maneco explica que não queria que eles passassem pelo caminho que liga
sua casa à praia. Os advogados esclarecem que a praia não pode ser de
ninguém, é terra de marinha e que o caminho que Seu Maneco abriu tornou-se
o caminho tradicional há dez anos e que, portanto, tornou-se uma servidão, ele
não pode proibir a passagem. Os Pachecos não pediram o aforamento à
Marinha, como fez o Gibrail na Praia Grande.
Quando, novamente falando dos limites de sua posse, Seu Maneco lembra da
primeira visita que o Instituto de Terras fez a sua casa e como o advogado [na
verdade, um agrônomo que fez as medições] deu como sua posse toda a área
que ele ocupava, inclusive a roça.
198
_O advogado que disse que onde eu tenho roça é área minha, aí amostrei pra
ele tudo.
O advogado sugere que se os Pachecos tiverem alguma proposta, Seu
Maneco peça um prazo para analisar.
Quando acaba a audiência, saio com Seu Maneco e pergunto:
-Seu Maneco, o que o senhor entendeu de tudo o que aconteceu hoje aqui?
_ Parece que é mais dificuldade, mais negócio, né? Todas as folhas, tem que
estudar mais para ver, estudar mais, só pode ser isso, né? Tanto de uma parte
como de outra.
_Como o senhor se sentiu?
_ Minha filha, eu não tô com medo de nada (...) eu me sinto bem. Não tenho
medo de nada, se perda ou ganho. Eu oro Deus, se tá na mão dele, deixa rolar.
Isso daí é por conta da justiça da terra, né? que fica enrolando nós, deixando
você sair de São Paulo, deixando a sua casa, vim aqui e nada feito.
Explico um pouco para Seu Maneco o que eu entendi da audiência – parece
que eles falam outra língua. Explico que foi solicitada uma perícia da área em
questão e que então os advogados dele sugeriram meu nome como assistente
da perícia.
Seu Maneco novamente:
_Sabe o que eu apanhei? Apanhei que nem a justiça não quer acusar eles e
nem me acusar.
Fora do Fórum havia alguns amigos pacientemente sentados nos bancos da
praça que se localizada bem em frente e de onde também se vê parcialmente o
movimento do cais. Normalmente, as pessoas que vêm da roça passam por ali
para ter acesso à avenida que leva aos bairros mais freqüentados por eles,
como a Ilha das Cobras e a Mangueira.
Com os amigos lá fora, Seu Maneco desabafou:
_ A justiça está empurrando com a barriga.
Da caderneta de campo, escrita no início da audiência, reproduzo:
199
Um homem que sempre mirou o horizonte e tem uma andar seguro no seu
lugar, sempre olhando para frente, para o infinito, com um sorriso largo, hoje
está sentado numa sala fechada, sem nada entender, olhando para baixo,
parece desacorçoado.
Há no anexo Documentos um laudo pericial elaborado após essa
audiência em que fui, inesperadamente, denominada “assistente da perícia”. As
duas partes, réu e autor, juntaram ao processo os quesitos para a perícia35.
A ação possessória contra Seu Maneco já tem cinco anos e está longe de
ser concluída, além da indefinição, o réu também está exposto à todos os percalços
do mundo jurídico: deve arrumar testemunhas, reunir-se com freqüência com os
advogados da Verde Cidadania, receber a cada tanto a visita dos Pachecos e as
propostas de acordo. Entretanto, pode-se afirmar que tem sorte por usufruir de
acompanhamento jurídico gratuito, realizado por amigos.
Já na ação discriminatória do Sono, como mencionado no capítulo anterior,
o réu é a família Gibrail, de modo que os moradores estão preservados: tão
preservados que, na verdade, nenhum acompanha o processo. Assim, o maior
conflito está estabelecido entre o Ministério Público e a família paulista.
Na Praia Grande da Cajaíba, uma das famílias que tinha a reintegração de
posse não agüentou e, após tantos anos de resistência valente, vendeu a posse,
encerrando a ação com um acordo. Atualmente, moram numa pequena casa no
bairro mais pobre da cidade. Outras duas famílias aguardam o desenrolar de seus
processos e ainda não têm advogados constituídos.
As demais famílias da Praia Grande ainda não são réus, nem autoras de
processos, nem estão protegidas por uma ação discriminatória, continuando reféns
da violência cotidiana. Depois de que uma das famílias mais resistentes sucumbiu,
a comunidade desestruturou-se e muitos pensam em vender sua posse para assim
alcançar alguma paz, mesmo que longe de seu lugar. Serão os novos “cascudos”
da cidade.“ Cascudo” é o nome que se dá ao “faz-tudo”, que, em tempos remotos,
poderia levar inclusive “cascudos” se não trabalhasse direito.
35 Como o réu tem a gratuidade da justiça, há a problemática de se nomear alguém da confiança do Ministério Público para a realização da perícia, esse serviço normalmente é pago. O laudo anexado está “na gaveta”, é um apoio para a perícia, quando ela acontecer, quando o juiz decidir se o Estado pagará os custos da elaboração do laudo.
200
4. APA DO CAIRUÇU E
RESERVA ECOLÓGICA DA
JUATINGA
E onde é esse tal de Centro-Oeste?
Mas se eles desbasta lá pra plantar soja e colocar gado
e a mata deles está se acabando toda,
por que é que a justiça da nação vem incomodar nós
aqui que, se caça uma caçazinha por necessidade?
Hoje é tudo comprado por justiça aí...
Eu não sou comprado por nada,
sou comprado pela Providência Divina.
Divina é uma palavra muito bonita, né?
Divina é a Providência que é do Espírito Santo.
Quando o bode era dotô
e o cachorro adevogado
o mundo andava direito e tudo bem agovernado
a justiça muito reta, ninguém andava enganado.
(Seu Maneco da Praia Grande)
201
Na segunda metade do século XIX, impulsionados por um forte
desenvolvimento urbano-industrial, os Estados Unidos criaram um modelo de
preservação do meio ambiente. O Parque de Yellowstone é apontado como
sendo a primeira área protegida no ocidente pós revolução industrial criada
com
(...) objetivo de preservar a beleza cênica e natural e atender às demandas
educacionais e recreacionais das populações urbanas. (ADAMS, 2000:17)
Diegues em O mito moderno da natureza intocada traça o histórico da
criação das áreas protegidas no mundo:
A criação de parques e reservas tem sido um dos principais elementos de
estratégia para a conservação da natureza, em particular nos países do
Terceiro Mundo. (2000:13)
A partir da década de 60, as áreas protegidas começaram a objetivar
também a proteção da biodiversidade, sendo prioritária a proteção das
espécies animais, vegetais e de microorganismos.
Iniciou-se então uma profunda discussão sobre a relação
sociedade/natureza. Autores como Vianna (1996), Diegues (2000), Gonçalves
(1996), Arruda (2001) e Boff (2000) nos dão um panorama das várias
concepções de ecologia que surgiram e criaram paradigmas de preservação e
conservação em vários lugares do mundo.
No Brasil, não diferente de outros países, criamos áreas protegidas que
passaram a ser chamadas de Unidades de Conservação (UCs), segundo um
modelo inicial importado que implica na expulsão dos moradores do seu
interior. Nessa concepção de conservação, o homem é visto como o grande
destruidor de ecossistemas naturais. Assim, a natureza deve ser isolada de nós
mas, contraditoriamente, para nós protegida - quer seja para fins turísticos e de
pesquisa, quer seja para a manutenção de um banco genético para guardar o
ouro verde. Segundo Diegues (2000:13):
202
O objetivo geral dessas área naturais protegidas é preservar espaços com
atributos ecológicos importantes. Algumas delas, como parques, são
estabelecidas para que sua riqueza natural e estética seja apreciada pelos
visitantes, não se permitindo, ao mesmo tempo, a moradia de pessoas em seu
interior.
A concepção dessas áreas protegidas provém do século passado, tendo sido
criadas primeiramente nos Estados Unidos, a fim de proteger a vida selvagem
(wilderness) ameaçada, segundo seus criadores, pela civilização urbano-
industrial, destruidora da natureza. A idéia subjacente e´ que, mesmo que a
biosfera fosse totalmente transformada, domesticada pelo homem, poderiam
existir pedaços do mundo natural em seu estado primitivo, anterior à
intervenção humana. (2000:13)
Grün, no primeiro capítulo do livro Ética e Educação Ambiental, a
conexão necessária, aponta que após o teste da primeira bomba H entramos
na idade ecológica e, dessa forma, a “crise ecológica” é predominantemente
uma crise da sociedade ocidental e agora o momento é de um “grande medo
planetário”.
Poucas correntes ecológicas de hoje herdaram a preocupação e o
comprometimento surgidos na década de 60 com a paz mundial, o
desarmamento, a luta contra as usinas nucleares e, principalmente, a crítica ao
modelo de produção e consumo que, este sim, degrada não só a natureza.
Gonçalves (1996:11):
A década de 1960 assistira, portanto, ao crescimento de movimentos que não
criticam exclusivamente o modo de produção, mas, fundamentalmente, o modo
de vida. E o cotidiano emerge aí como categoria central nesse questionamento.
É claro que cotidiano e História não se excluem; todavia, há um deslocamento
de ênfase: enquanto o movimento operário em sua vertente marxista
dominante ( social-democrata e leninista) insistia na “missão histórica do
proletariado” que, uma vez vitorioso sobre a burguesia capitalista, resolveria
então todos os problemas cotidianos, os movimentos que emergem na década
de 1960 partem da situação concreta de vida dos jovens, das mulheres, das
“minorias” étnicas etc. para exigir a mudança dessas condições. É como se
203
observássemos um deslocamento do plano temporal ( História, futuro) para o
espacial ( o quadro de vida, o aqui e o agora).
No livro, Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, Boff (2000) faz a
revisão dessas correntes no primeiro capítulo e apresenta suas críticas:
a) Ecotecnologia: acredita que as mesmas técnicas que produziram a
destruição podem ser orientadas a preservar o meio ambiente. Não
questiona a causa da destruição;
b) Ecopolítica: visa desenvolver estratégias para o desenvolvimento
sustentado, não questiona os paradigmas do desenvolvimento. Pode
optar pela deterioração do meio em favor do desenvolvimento;
c) Ecologia Humana e Ecologia Social: crêem na comunidade cósmica,
na organização que as sociedades sempre realizaram para garantir a
produção e a reprodução da vida. Não criam nenhum modelo
alternativo ao vigente;
d) Ecologia Mental: reconhece a natureza que existe dentro de nós, se
a terra está doente é porque nós estamos doentes. Não gera
necessariamente uma nova aliança com o planeta;
e) Ética Ecológica: prega a responsabilidade pelo planeta. Segundo
Boff, essa nova ética pode ser antropocêntrica e utilitarista, pode
degenerar-se num novo legalismo ou moralismo;
f) Ecologia Radical ou Profunda: procura descer às raízes do problema
e aponta a crise atual como a crise da civilização hegemônica.
4.1 Áreas de Proteção Ambiental segundo o SNUC
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC-, lei 9985 de
18/07/2000, dispõe sobre o significado de termos utilizados no ambientalismo e
conceitua as várias categorias de Unidades de Conservação. Estas estão
divididas em dois grupos com características específicas: Unidades de
Proteção Integral e Unidades de Uso Sustentável, sendo que as Áreas de
Proteção Ambiental - APA - encontram-se no segundo grupo.
204
O objetivo geral das Unidades de Conservação de Uso Sustentável
está explicitado no Cap. III, art. 7º, segundo parágrafo, segundo inciso:
§ 2o O objetivo básico das Unidades de Uso Sustentável é compatibilizar a
conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos
naturais.
O Objetivo específico da APA é, segundo o SNUC, art.15:
A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo
grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou
culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar
das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade
biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do
uso dos recursos naturais.
§ 1o A Área de Proteção Ambiental é constituída por terras públicas ou
privadas.
§ 2o Respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e
restrições para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma
Área de Proteção Ambiental.
§ 3o As condições para a realização de pesquisa científica e visitação pública
nas áreas sob domínio público serão estabelecidas pelo órgão gestor da
unidade.
§ 4o Nas áreas sob propriedade privada, cabe ao proprietário estabelecer as
condições para pesquisa e visitação pelo público, observadas as exigências e
restrições legais.
§ 5o A Área de Proteção Ambiental disporá de um Conselho presidido pelo
órgão responsável por sua administração e constituído por representantes dos
órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e da população residente,
conforme se dispuser no regulamento desta Lei.
205
Essa Unidade de Conservação visa a sustentabilidade, permitindo
moradia e diversas atividades, desde que pouco impactantes, que podem
ocorrer com licenciamento.
O Conselho Gestor deste tipo de UC é deliberativo, formado por vários
membros da sociedade civil e tem por objetivo deliberar as ações efetivadas na
área. Nesta UC há um mosaico de terras públicas e privadas, a diversidade
cultural é reconhecida, o processo de ocupação é disciplinado e,
fundamentalmente, objetiva compatibilizar o uso dos recursos naturais pela
população com a conservação da natureza.
4.2 APA do Cairuçu
A mata atlântica é um ecossistema que, por guardar um dos maiores
índices de biodiversidade do mundo e ter nos seus recônditos uma população
que viveu nos interstícios dos grandes ciclos econômicos (portanto, não
incorporou todas as benesses da sociedade industrial dominante), tornou-se
um lugar privilegiado para a criação das Unidades de Conservação.
A Área de Proteção Ambiental do Cairuçu, localizada em Paraty/RJ, foi
criada em 27 de setembro de 1983, através do decreto presidencial n.º
89242/83. Ela compreende uma parte continental com área de 33.800 ha, do
rio Mateus Nunes até a divisa com São Paulo, e uma parte insular com 63
ilhas, desde a Ilha do Algodão, em Mambucaba, até a ilha da Trindade,
fazendo ali limite com o Parque Nacional da Bocaina. É uma UC federal,
administrada pelo IBAMA.
Em 1986, Jorge Xavier da Silva, geógrafo da UFRJ, responsável pelo
“Projeto FINEP Unidades de Manejo Ambiental no Estado do Rio de Janeiro”,
realizou uma “Análise Ambiental da APA de Cairuçu”36. Um pequeno histórico
justificando a criação da APA do Cairuçu encontra-se citado nessa Análise
(p.43):
36 Cópia mimeo cedida na sede do IBAMA em Paraty. 206
Visando a proteger a única porção representativa e ainda em bom estado de
conservação da Mata Atlântica na Região Sudeste, a SEMA criou esta APA
que levou o nome de Cairuçu, denominação indígena do muriqui, presente
ainda hoje na região e que quer dizer: cai = o mico; ruçu = grande. Esta
unidade de conservação visa a racionalizar a ocupação do solo, bem como
integrar o homem ao meio ambiente, mantendo assim um equilíbrio que se
refletirá em sua qualidade de vida.
O principal objetivo da APA do Cairuçu, segundo o mesmo documento,
é:
(...) assegurar a proteção na natureza, paisagens de grande belezas cênicas,
espécies de fauna e flora raras e ameaçadas de extinção, sistemas hídricos e
as comunidades caiçaras integradas nesse ecossistema.
A APA do Cairuçu tem sede própria em Paraty com somente três
funcionários, um carro e nenhum barco. Trata-se de uma Unidade que tem seu
entorno protegido por outras Unidades de Conservação como o Parque
Estadual da Serra do Mar e o Parque Nacional da Bocaina.
O chefe da APA tem autonomia para certas resoluções e como ali o
conflito fundiário é pequeno, restam questões ambientais como, por exemplo, o
lixão de Paraty estar a céu aberto, as marinas sem controle da água de lastro,
a gestão das bacias hidrográficas e de algumas poucas comunidades rurais
localizadas no sertão, entre elas o Campinho da Independência - primeiro
quilombo do estado do Rio de Janeiro - e as duas terras indígenas do
município de Paraty: Paraty- Mirim e Araponga, ambas guarani.
Num dos capítulos da referida Análise Ambiental intitulado “Unidades de
Manejo da Área de Proteção Ambiental”, há a sugestão de uma divisão da APA
em três unidades distintas: a continental, de ocupação humana mais antiga,
cruzada pela Rio-Santos, perto de Paraty; a insular, são mais de 80 ilhas; e a
chamada (p.68):
(...) Península do Cairuçu, tratando-se de uma quase ilha muito pouco utilizada
pelo homem até hoje, com áreas florestadas de grande extensão.
207
Esse diagnóstico e destaque para a península foi de suma importância pois,
após uma década, foi criada local uma outra Unidade de Conservação, a
Reserva Ecológica da Juatinga – foco deste trabalho37.
4.3 Reserva Ecológica da Juatinga
A criação da Reserva Ecológica da Juatinga está envolta por uma série
de histórias diferentes. Lembremos que até a época de sua criação, em 1992,
através do Decreto 1798138, ela fazia parte da APA do Cairuçu, constituída em
1983. No estudo realizado por Xavier da Silva, mencionado anteriormente, a
parte denominada Península do Cairuçu, e que corresponde ao atual território
da Reserva, já era assinalada como área rica em certos atributos naturais e por
isso já havia a sugestão de medidas políticas ambientais mais restritivas que as
da APA.
Em termos bem realistas, é esta península que ainda conserva as
características ambientais dignas de preservação.
Medidas preservacionistas estritas, observadas com rigor, permitirão a
preservação desta área altamente significativa em termos de patrimônio
ambiental. Especificamente, são sugeridas, respeitando, em alguns casos,
normas de manejo já enunciadas, as seguintes medidas de monitoria e
preservação:
a) criação de um corpo permanente de fiscais do meio ambiente, composto por
voluntários, ou mesmo assalariados, a ser periodicamente (3 em 3 meses, por
exemplo) solicitado a emitir relatórios de ocorrências nesta área de estrita
preservação;
b) desestímulo à agricultura, como um todo, e a criação de gado, mantidas, no
máximo, as áreas atualmente com aqueles usos da terra;
37 O mapa com as Unidades de Conservação encontra-se no final do capítulo.38 O Decreto encontra-se no anexo “Leis”.
208
c) completa proibição de implantação de condomínios de veraneio ou de outras
iniciativas turísticas de grande poder de alteração ambiental39;
Num outro documento40, produzido pelo Serviço Público Federal, várias
áreas da atual Reserva, foram apontadas como regiões para a criação de uma
Estação Ecológica. Como essa era somente uma recomendação, o documento,
na sua proposta de zoneamento, dividiu o território ocupado pela Reserva em
“área de preservação total” (também chamada de “zona de preservação da
vida silvestre”) e “área de preservação parcial”. Isso corresponderia, no
primeiro grupo, às áreas acima da cota de 100 m, ao manguezal do fundo do
Saco do Mamanguá e à Praia dos Antigos “por estar em estado primitivo, com
transição direta entre a mata e a orla marítima” e, no segundo grupo, Sono,
Martim de Sá, Pouso, Praia Grande da Cajaíba e várias porções do Saco do
Mamanguá.
O último grupo e em algumas áreas do primeiro, os moradores não são
citados explicitamente, mas parece que não há o desconhecimento da
presença secular deles. A única área que até hoje permanece sem ocupação
humana é Praia dos Antigos, segundo os moradores, devido à escassez de
água doce. Num passado nem tão remoto, menos de 50 anos atrás, havia
famílias morando ali.
4.3.1 A história escrita da criação da Reserva
Neste item continua-se rastreando o que está escrito sobre a criação da
Reserva. A delimitação da área da Reserva da Juatinga presente no Decreto
está assim descrita:
39 Há ainda duas outras recomendações: uma sobre religião e turismo e suas conseqüências ambientais e outra relativa a uma recomendação de um esquema de análise periódica, com imagens teledetectadas.40 Esse documento, sem título, também é uma cópia mimeo, reproduzida no escritório do Ibama em Paraty.
209
(...) delimitada de um lado, pelo Saco do Mamanguá, de outro e pela frente,
pelo mar aberto e, pelos fundos, por uma linha reta imaginária que, partindo do
ponto conhecido como Cachoeira do Cocal (no lado do canto bravo da Praia do
Sono), alcança o local conhecido como Porto do Sono (ao fundo com o Saco
do Mamanguá), ficando, destarte, resguardada a faixa de Marinha.
A justificativa para a criação da Reserva, segundo um documento de
24/02/92, encaminhado ao governador Brizola pelo então presidente do IEF/RJ,
apresenta, além da necessidade de preservar a mata atlântica, a preocupação
com a cultura caiçara:
A criação da Reserva Ecológica da Juatinga, autorizada pela lei 1859, de 01 de
outubro de 1991, se justifica não apenas por garantir a preservação de
significativo manto remanescente de floresta ombrófila densa (mata atlântica),
que reveste a maior parte desta unidade peninsular, como também livre da
descaracterização os mangues do Saco do Mamanguá, a vegetação dos
afloramentos e costões rochosos, bem como aspectos tradicionais da cultura
caiçara, representada por diversos núcleos de pescadores que habitam a faixa
litorânea do extremo sul do Estado do Rio de Janeiro.
Devido a seu peculiar posicionamento geográfico e as dificuldades de acesso
impostas por sucessivas cadeias de montanhas, que se estendem até o mar,
esta península apresenta, em quase toda a sua totalidade, seus ecossistemas
em primitivas condições, uma vez que nenhum tipo de sistema viário
convencional (rodovias ou estradas vicinais) foi implantado na região. Este
isolamento por terra, faz com que seja reforçado o vínculo secular entre as
comunidades caiçaras e o mar, e põe a península no rol das regiões do Estado
que apresentam as menores taxas de ocupação. (grifos meus)
Esse documento, porém, não foi incorporado ao decreto, apenas
subsidiou a decisão governamental de decretar a Reserva como unidade
estadual, sobrepondo-se à área federal da APA e com legislação mais rígida.
Nele foram ressaltadas as funções do IEF, principalmente no que tange aos
estímulos às ações de Educação Ambiental, à valorização dos costumes das
populações locais e à “notável importância turística da região”.
210
No decreto de criação da Reserva de 1992, não há tão explicitamente a
presença e a participação das comunidades. Entre a justificativa para a criação da
Reserva encaminhada à Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro -
ALERJ - e o decreto que de fato a institui, a valorização da cultura caiçara foi
abandonada. O que tem valor legal é o instrumento jurídico votado pela ALERJ,
nesse caso, o decreto.
No decreto n.º 17981/92 há um pequeno texto introdutório que
contextualiza a criação da Reserva. Ele omite a presença dos moradores e
considera impostergável:
(...) preservar o ecossistema local, composto de costões rochosos,
remanescentes florestais da mata Atlântica, restinga e mangues que, em
conjunto com o mar, ao fundo, forma cenário de notável beleza, apresentando
peculiaridades não encontradas em outras regiões do Estado.
Em 1992, portanto, concretiza-se o surgimento de mais uma Unidade de
Conservação criada por decreto e com pouca ênfase à proteção do modo de
vida tradicional.
A Reserva é estadual, administrada pelo IEF/RJ e como a legislação que
a protege é mais rigorosa que a da APA, na qual está incluída, são as normas
seguidas pelo governo estadual que prevalecem e, com isso, o IBAMA pouco
pode interferir.
Encontra-se na Reserva uma precariedade administrativa maior que a
da APA na medida em que são dois funcionários, nenhum carro, nenhum
barco, nenhuma sede41. Uma sala de poucos metros quadrados é alugada no
centro histórico de Paraty, no prédio do Detran. Por volta do ano 2000, alguns
funcionários públicos foram deslocados para trabalhar no escritório da Reserva
como fiscais. Ainda que isso represente um avanço, toda e qualquer decisão
deve ser encaminhada para a sede no Rio de Janeiro, mais especificamente
para o diretor de Conservação da Natureza do IEF.
41 Dados de 2002. 211
A superposição de UCs (APA do Cairuçu e Reserva Ecológica da
Juatinga) como entidades reguladoras num mesmo espaço geográfico acarreta
conflitos entre as instâncias de poder, que, no limite, podem deixar esse
espaço sem uma verdadeira gestão.
Para os moradores da Juatinga, a principal dificuldade encontra-se na
compreensão dos meandros para se ter acesso ao Poder Público. É necessário
conhecer bem quais as atribuições de cada órgão para que todas as
denúncias, pedidos e esclarecimentos possam ser encaminhados
corretamente.
Segundo um morador da Praia Grande:
A papelada já desceu pro Rio e agora vai custar a voltar. Aqui na cidade
ninguém manda em nada, já cansei de procurar o João do IMBAMA42. Ele fala
que vem aqui por essa e por aquela mas nunca vem. Quando vem é para
querer multar nós.
O presidente do IEF - gestão governo Garotinho - quando foi à Reserva,
na época da assinatura do convênio para a elaboração do Plano de Gestão em
1999, fez a viagem sem se identificar para fazer um diagnóstico. Não houve
reuniões com a sua presença nas comunidades em quatro anos. Quem o
conheceu, esteve na capital do Estado, sede do IEF, ou participou nas reuniões
em Paraty.
Já o diretor de Conservação da Natureza do IEF, na época da pesquisa
de campo43, foi mais conhecido e polêmico. Quando acompanhou o deputado
Carlos Minc – autor da lei estadual 2393/9344- e um representante de um jornal
carioca, na Praia do Sono, levou consigo uma série de fiscais identificados com
o famoso colete preto: “fiscalização”. Os moradores não compareceram à
reunião pois protegiam suas casas. Quando o IEF e o deputado foram
alertados para o fato, este solicitou que a fiscalização tirasse os coletes e
42O IEF é comumente confundido com o IBAMA, o que demonstra que a hierarquia entre os poderes não é compreendida.43 O trabalho de campo foi realizado entre 1999 e 2002.44 Essa lei encontra-se no anexo “Leis”. É de âmbito estadual e dispõe sobre a permanência dos moradores tradicionais nas Unidades de Conservação.
212
assim, timidamente e aos poucos, os caiçaras foram chegando e ao longo da
reunião conseguiram colocar todas as suas reivindicações.
Esses fatos ilustram como os moradores percebem e representam o
órgão responsável pela gestão do território e também podem dar algumas
pistas para uma reflexão sobre a estratégia utilizada para se criar as políticas
ambientais para a região da Reserva. Políticas estritas de regulação.
4.3.2 Uma das histórias contadas sobre a Criação da
Reserva
O relato de alguns moradores sobre a criação da Reserva traz em seu
interior um dos problemas primordiais: o conflito fundiário.
Entendo, como Meihy (1996: 10) que:
Atualmente, a história oral já é parte integrante do debate sobre a função do
conhecimento histórico e atua em uma linha que questiona a tradição
historiográfica centrada em documentos oficiais. Sem dúvida, a história oral
hoje é parte inerente dos debates sobre tendências da história contemporânea.
A história contada a seguir não é compartilhada, sequer conhecida, por
todos os moradores da Reserva. O impacto da chegada da Reserva os atingiu
inesperadamente através da criminalização de práticas cotidianas
tradicionais, conforme Diegues e Nogara tratam na obra Nosso lugar virou
Parque.
Segue a reprodução da fala de um morador para representar o que
alguns deles, sobretudo os que viveram a história da criação desde início,
contam.
Numa reunião no Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro
(ITERJ), em 1999, quando estavam presentes as ONGs SOS Mata Atlântica e
Verde Cidadania, um deputado estadual, além de representantes do IEF e do
Agrária (laboratório de Geografia Agrária da USP45) ouvimos de José Carlos de
45 Participei da reunião como representante do laboratório.213
Abreu Jesus46 a “verdadeira” história da Criação da Reserva, depois
confirmada e complementada por alguns dos moradores mais antigos da Praia
do Sono, como Seu Josias. Essa história ainda não está escrita, mora na
memória dos que a fizeram e que a mantém viva. Ela tem uma origem na Praia
do Sono, de ocupação secular, e anuncia o conflito fundiário na região.
Gibrail Nubile Tannus, apontado pelo Ministério Público na década de 80
como grileiro numa ação discriminatória ainda sem solução, depois de colocar
os búfalos para amedrontar os moradores e assim comprar mais facilmente as
posses - o título ele já havia adquirido - entrou no Fórum de Paraty com uma
série de reintegrações de posses e várias famílias começaram a ser expulsas
legalmente, segundo José Carlos.
Contou Seu Josias do Sono que um padre da Comissão Pastoral da
terra – CPT - , um procurador do estado e moradores da praia do Sono
conseguiram a transferência do juiz do Fórum de Paraty. Uma vez eliminado o
problema da “compra do juiz”47, tomaram algumas decisões tanto de cunho
judiciário quanto ambiental para que, nessa luta pela terra os moradores
pudessem continuar em suas posses.
Na esfera do judiciário, foi aberta a primeira ação discriminatória do
estado do Rio de Janeiro. Assim, o Estado passa a investigar a legalidade e a
questionar a legitimidade dos títulos da família Gibrail, buscando a história das
terras desde as sesmarias. A partir do início da ação, nenhuma reintegração de
posse poderia ser julgada até que o título do proprietário fosse sentenciado
verdadeiro ou falso segundo os estudos da cadeia dominial. A ação já dura
quase 15 anos, tem inúmeros volumes. Serviu bem à intenção de bloquear as
reintegrações de posse porém, como ainda não findou, não há a certeza de
quem ficará na terra, o que gera certa especulação imobiliária. Na dúvida e
diante de todos os boatos, alguns vendem sua posse e compram um casebre
em Paraty.
Na esfera ambiental, procurando cercear as ações da família, impedir a
especulação imobiliária turística e a chegada de novos condomínios, como o
de Laranjeiras, subiram ao morro do Sono (Seu Josias, mais alguns 46 Ele se apresentou apenas como um amigo dos caiçaras e como uma das pessoas que escreveu a justificativa encaminhada para a ALERJ para a criação da Reserva. Era conhecido pela advogada do ITERJ e pelo deputado presentes na reunião.47 Reproduzimos esse momento através do texto de Priscila Siqueira no capítulo 2.
214
moradores, o padre e o procurador) e resolveram criar uma Unidade de
Conservação mais restritiva que a APA, uma Unidade de natureza non
edificandi .
Em junho de 2000, Seu Josias em Paraty afirmou:
A ecologia da reserva foi criada para abater o conflito do Sono, hoje o problema
não está mais só fundiário, agora os próprios moradores estão vendendo. A
comunidade é contra uma gente que tá vindo vender.
Lindalva, na época presidente da Associação dos Moradores,
complementou:
O povo está com medo da especulação imobiliária, são muitos jovens, onde
eles vão construir suas casas no futuro? A quem podemos recorrer para que a
nossa terra não seja especulada?
A escolha pela categoria Reserva Ecológica, segundo os entrevistados,
foi feita pois:
Ecologia é natureza mais homem. (Seu Josias)
A história contada revela que na mata atlântica houve a possibilidade, no
início da década de 90, de que uma legislação ambiental pudesse ser utilizada
para a realização da justiça social que aqui envolve a questão fundiária e a
proteção de um modo de vida. Parecia um novo projeto, nascido num país do
sul, rico em biodiversidade e sociodiversidade: a descoberta de uma forma
para conciliar conflito fundiário e conservação do meio ambiente. Na Amazônia,
já assistíamos a criação das Reservas Extrativistas. Carlos Walter Gonçalves
(in:SORRENTINO, 2001:154) analisa como os seringueiros, sobretudo Chico
Mendes, souberam:
(...) captar esse fluxo desterritorializado que é o ambientalismo e, por meio
dele, reterritorializar-se como seringueiro.
215
O que não era previsível naquele momento, no estado do Rio de
Janeiro, era o fato dos órgãos ambientais não conhecerem justiça social,
tampouco sua dimensão fundiária. Os técnicos ambientais hoje entendem que
estão diante da natureza selvagem (wilderness norte americana) e a discussão
sobre a relação sociedade/natureza encontra nessa nova Unidade de
Conservação, um palco para aparecer.
Os técnicos incumbidos de zelar pelas Unidades de Conservação,
concebidas como lugar de preservação, podem ser de uma das correntes
ecológicas que entendem ser o homem o agente destruidor. Relembremos a
história do uso dos coletes em que se distinguia a fiscalização e a função de
regulação que o IEF assume. Certamente, eles podem se apoiar no artigo que
determina ser a Reserva de natureza non edificandi como justificativa legal
para ações preservacionistas.
Sai o jagunço a serviço do grileiro, da concentração das terras e da
reprodução do capital e entra a fiscalização ambiental criminalizando as ações
cotidianas. Os jagunços não questionavam o modo de vida tradicional48 e sim a
posse, a autonomia dos moradores em relação ao uso da terra, a possibilidade
de acesso à educação formal (na Praia Grande da Cajaíba, por exemplo, a
escola só chegou em 1999), enfim, queriam a manutenção de seu curral. Como
entendido por Martins (1999:35):
Os mecanismos tradicionais do favor político sempre foram considerados
legítimos na sociedade brasileira. Em muitas regiões do Brasil essa
contabilidade de débitos e créditos de honra ainda tem um peso muito maior do
que se crê.
Os proprietários de terras na Juatinga aspiravam ao continuísmo da
cultura do favor e do débito político e lançaram mão, por meio dos chamados
caseiros, de expedientes violentos que não pertenciam à lógica camponesa
dos caiçaras. Um mesmo evento como a tirada de um pau da mata para fazer
canoa ou uma roça, é permitida a alguns e negada a outros sem,
aparentemente, nenhuma lógica que possa ser apreendida pelos moradores.
48 No capítulo 5 o modo de vida tradicional caiçara será apresentado.216
Parece que há só a intenção deliberada de tornar a comunidade dependente e
desunida, em busca desses favores.
A Unidade de Conservação mais restritiva, território destinado à
preservação pela lógica dominante, questiona o modo de vida tradicional das
famílias caiçaras da península da Juatinga. O uso comum da mata e das
capoeiras passou a ser criminalizado, comprometendo assim a reprodução
social do grupo e a representação que os caiçaras passam a fazer do Estado:
O que é o Estado? Na épa do meu pai nem aposentadoria ele dava e meu pai
não queria porque tinha orgulho. Não queria que ninguém sustentasse ele.
(Seu Maneco de Martim de Sá)
Olha, esse Estado parece um polvo. Uma mão dele quer abraçar e a outra
afogar nós. Difícil é saber que mão chega primeiro e é mais forte... Eu não
acredito em nada. Pode vim com o que for. (morador da Praia Grande)
4.4 Da história oral ao direito positivo
Resgatar a história oral da criação da Reserva Ecológica da Juatinga
traz a dimensão política vivida pelos moradores à época além de encontrar o
sentido social da experiência passada naquele contexto histórico. Meihy
(1996:10):
Como pressuposto, a história oral implica uma percepção do passado como
algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. A
presença do passado no presente imediato das pessoas é a razão de ser da
história oral. Nesta medida, a história oral não só oferece uma mudança para o
conceito de história, mas, mais do isto, garante sentido social à vida de
depoentes e leitores que passam a entender a seqüência histórica e a
sentirem-se parte do contexto em que vivem. (...)
Além do mais, a história oral é uma alternativa à história oficial, consagrada por
expressar interpretações feitas, quase sempre, com o auxílio exclusivo da
documentação escrita e cartorial.
217
Há uma lógica para a criação da Reserva revelada pela história oral, a
qual foi solapada e ninguém mais conhece a dimensão da luta pela terra e a
compreensão de ecologia surgidas no início da década de 90 em Paraty. Até
mesmo o texto enviado para a ALERJ, justificando a necessidade da criação
da Reserva, foi suprimido; tornando a lei, parcialmente cumprida pelo IEF
(devido à sua pouca infra-estrutura) um castigo para os moradores.
A luta pela terra chegou à cidade, chegou à Assembléia do Rio de
Janeiro e trilhou um rumo novo: a aliança entre conflito fundiário e
conservação da natureza. O direito de se reproduzir plenamente como um
grupo social parecia assegurado no território caiçara, alvo até hoje dos
conflitos fundiários. Somente parecia.
Margarida Maria Moura, no prefácio de Os deserdados da Terra, cunha
um conceito que pode ser utilizado também na compreensão do contexto da
criação da Reserva e das suas implicações nos dias de hoje:
Neste livro alguns mitos são desfeitos. As artimanhas judiciais, os ardis dos
processos, a malícia dos advogados, a cobiça dos patrões, a forma justa da
injustiça estão presentes. A mitificação do trabalho assalariado, feita por
partidos, grupos, instituições que têm se proposto a defender os trabalhadores
contra a injustiça acabou transformando o que era, na base e na prática, uma
luta pela terra numa luta pelos direitos trabalhistas. E liberando a terra, sem
grandes ônus, para o latifúndio e a oligarquia. É quando o direito fica torto.
(1986: Prefácio, grifo meu)
Para a Juatinga, o que era na base e na prática (segundo a história oral)
uma luta pela terra tornou-se a maior armadilha para os moradores caiçaras:
uma dura legislação ambiental. Não seria mesmo de se prever. Os
proprietários paulistas cerceados no direito de construir, repassam para os
moradores essa ordem e levam fiscais, abrem processos contra os moradores
quando esses tiram uma canoa da mata, constróem uma casa ou um
banheiro. O próprio Gibrail acabou ganhando na cidade, mesmo após sua
morte, a fama de grande ecologista porque impedia o desmatamento.
218
O Direito ficou torto. Os moradores continuam réus de ações
possessórias e agora também réus de um ambientalismo tacanho. Os
proprietários, ainda não indenizados, continuam a exercer a tirania. Os atlas
comportam mais uma Unidade de Conservação. Mais uma área verde
destinada à preservação surgiu na Mata Atlântica, ecossistema belíssimo e
com a maior biodiversidade do mundo.
Boaventura de Sousa Santos apresenta uma interessante leitura sobre
os sistemas de regulação e emancipação das sociedades modernas e a crise
de civilização:
A ciência, o direito, a educação, a informação, a religião e a tradição estão
entre os mais importantes espelhos das sociedades contemporâneas. O que
eles refletem é o que as sociedades são. Por detrás ou para além deles não há
nada. (2001:48)
O espelho pode adquirir vida própria, conforme o uso e a opção política
e,
(...) em vez de a sociedade se ver refletida no espelho, é o espelho a pretender
que a sociedade o reflita. De objeto do olhar, passa a ser, ele próprio, o olhar.
Quando isso acontece, a sociedade entra numa crise que podemos designar
como crise da consciência especular: de um lado, o olhar da sociedade à beira
do terror de não ver refletida nenhuma imagem que reconheça como sua; do
outro lado, o olhar monumental, tão fixo quanto opaco, do espelho tornado
estátua que parece atrair o olhar da sociedade, não para que este veja, mas
para que seja vigiado.
Entre os muitos espelhos das sociedades modernas, dois deles, pela
importância que adquiriram, parecem ter passado de espelhos a estátuas: a
ciência e o direito. O processo histórico em que tal ocorreu é o resultado da
combinação entre dois processos históricos distintos: o paradigma da
modernidade ocidental e o capitalismo. (2001:48)
É provável que o direito positivo, como espelho da nossa sociedade,
neste caso, tenha virado estátua e os moradores não reconheçam mais a
219
origem da Reserva que se sobrepõe ao seu território caiçara, ou no seu
“lugar”, utilizando a expressão deles.
O conflito se politizou com a retirada do juiz, a abertura da ação
discriminatória e a criação de mecanismos (a Reserva, para Seu Josias e
para o ITERJ) para cercear outras ações violentas de gente de fora.
Entretanto, ao ser legalizado sem dar importância às comunidades e ser
posteriormente interpretado pelos órgãos públicos ambientais, não só trouxe
mais complicadores para as comunidades, como pode ser que tenha
esvaziado de sentido político a questão ambiental e a luta pela terra nessa
porção de Paraty.
220
5. MODO DE VIDA, MODO DA NATUREZA
Lavrador, pescador e caçador
é o caiçara.
As três coisas ele entende
tudo direitinho.
(Seu Maneco de Martim de Sá)
221
Caminhos. Religiosidade. Lugar do esquecimento. Lugar do comércio
de gentes, de ouro e de aguardente. Chegada de paulistas. Violência. Chegada
de leis. Mas quem são os homens e as mulheres que moram na Reserva
Ecológica da Juatinga? O que sabem? O que fazem? Como assimilam todas
as transformações trazidas com o tempo? Quem são esses caiçaras?
Como um tear que tece aos poucos uma trama delicada, este capítulo
foca alguns momentos do cotidiano, os tantos sentidos da vida de duas
comunidades inseridas na Reserva Ecológica da Juatinga: Praia Grande da
Cajaíba e Martim de Sá.
Os moradores têm seus nomes revelados neste capítulo, serão
protegidos somente quando a prática cultural da comunidade esbarrar numa
nova lei ambiental.
5.1 O tempo dos antigos no presente
És um senhor tão bonito, quanto a cara de meu filhoTempo tempo tempo tempo, vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo(...) por seres tão inventivo e pareceres contínuo
tempo tempo tempo tempo, és um dos deuses mais lindosTempo tempo tempo tempo
(Caetano Veloso, Oração ao Tempo)
A Praia Grande da Cajaíba abrigou, até a década de 50, uma vila de
grande importância regional. A comunidade com mais de 200 habitantes vivia
basicamente do plantio da banana, café e mandioca. Os atuais moradores
recordam essa época como sendo de fartura e de festas – são várias as
histórias sobre a abundância de peixes, a produção de farinha, os forrós, as
novenas e a chegada da bandeira do Divino. D. Silvana, parteira local até o
início da década de 90, relata:
222
Meu pai conta de uma rede... dois mil, três mil tainha, tiravam a barrigada de
ovos delas. Seca pra tomar com café é uma beleza. Tinha fartura. O resto dos
peixe eles enterravam. As tainha vinham pulando, inté bonito... Era uma coisa
demais, ninguém dava conta de vender em Paraty. Era épa de fartura.
Os barcos de pesca de toda a baía de Angra dos Reis ancoravam na
praia de mar manso para comprar a produção de farinha de mandioca e os
aviamentos (cestas, balaios, tipitis49, esteiras...) os quais constituíam a base da
economia da Praia Grande antes da pesca tornar-se a atividade principal.
Filhinho, enquanto tecia um tipiti, contou:
De primeira as cestas eram coloridas: o verde era extraído das folhas de coco;
o roxo, de uma flor paraguaia; o amarelo, do açafrão - dá um dentinhozinho
igual do gengibre - e o azul e o vermelho vinham da anilina.
Hoje, a cor natural prevalece nos cestos pois os búfalos, introduzidos pela
família Gibrail, comeram aquelas plantas e que nunca mais foram cultivadas, de modo
que nunca mais as cestas foram coloridas.
Filhinho: Foi plantado e os búfalos acabaram com tudo. Não existe mais.
D. Silvana: Ninguém podia com os búfalos, tinha uma senhora lá do Rio que
fez um abaixo-assinado e mandou para o governo e o governo mandou o
Gibrail tirar, eles foram pro Sono. Lá ele cercou, aqui ele botou solto.
Bidica: Os búfalos saíram daqui há 15 anos. Ele arretirou os gado, eles
destruíram tudo. O pessoal passou uma crise danada com este gado. Quando
eles morriam ficavam arrodeados de urubu.
Dedé: Não marquei quanto tempo eles ficaram aqui.
49 Cesta tecida para fazer a farinha de mandioca, base da alimentação local.223
Muitos dos moradores mais velhos recordam também o trabalho com a
banana em Ubatuba e em Santos. Os relatos de hoje trazem a notícia dos que
iam por terra (caminhando) até as cidades produtoras para trabalhar como
agricultores.
Lúcia: Antes do pessoal começar a trabalhar com a pesca, trabalhava mais
com a roça?
Dedé: Era tudo lavoura de primeira em Santos. Eu me alembro ainda que,
quando em Santos (isto do meu avô, não me alembro não mais), mas eu me
alembro do pessoal que trabalhava ainda, né? Aí tinha serviço de sítio de
banana, o maior lugar de banana era Santos.
Bidica: É, muita gente aqui trabalhava...
D: Então, igual meu avô; meu avô, esse pessoal aí de Araújo, o avô dela.
Então esse pessoal marchava daqui por terra, daqui por terra(!) pra Santos...
L: Barbaridade...
D: Quando não era isso, passava esta estrada aqui que era um picadão, que
era Cunha pra sair em São Paulo, pega o trem pra descer em Santos...
L: Quanto tempo dava de caminhada?
D: Ah, deve de dá muitos dias, né? Já pensou...? Aí depois saiu um naviozinho,
tipo de um rebocador, aí já pegava o pessoal aqui de Paraty e viajava pelo mar,
depois saiu o primeiro avião, pegou o pessoal aqui...
L: Pra trabalhar na fazenda de banana...
D: É, na fazenda de banana. Aí tem o pessoal, o avião tinha, chegava, de
canoinha assim, chegava em Paraty tinha que dar o sinal, eu era pequenininho
ainda, eu era garotinho, mas me alembro de quando chegou o avião ainda lá.
B: O Dedé já é bem velho...
(risadas)
D: Então, o que eu sei, eu me alembro, que eu me alembro eu não me
esqueço. É ruim de esquecer... o que eu sei, eu não me esqueço dos meus
passado tudo, o que eu sei...
224
Olha, eu fui pra Santos por terra / Antes eu fosse na canoa / O vento era
nordeste / Que viagem tão boa!
(Seu Maneco, da Praia Grande)
Mircea Eliade, na obra O sagrado e o profano, discute a relação do
tempo sagrado e do tempo profano. A idéia principal baseia-se na afirmação de
que para os homens religiosos o tempo não se mostra contínuo, ele é vivido e
percebido de forma particular e organiza a vida.
O homem religioso é entendido nesta dissertação como aquele que se
relaciona com o mundo através dos mitos, dos ensinamentos orais transmitidos
pelas gerações passadas, da observação e interação com a natureza e com
seus ciclos.
Tal como o Espaço, o Tempo também não é para o homem religioso, nem
homogêneo nem contínuo. Há, por um lado, os intervalos de Tempo sagrado, o
tempo das festas (na sua grande maioria, festas periódicas); por outro lado, há
o Tempo profano, a duração temporal ordinária na qual se inscrevem os atos
privados de significado religioso. Entre essas duas espécies de tempo, existe, é
claro, uma solução de continuidade, mas por meio dos ritos o homem religioso
pode ’passar’, sem perigo, da duração temporal ordinária para o tempo
sagrado.
Surpreende-nos em primeiro lugar uma diferença essencial entre essas duas
qualidades de Tempo: o tempo sagrado é por sua própria natureza reversível,
no sentido em que é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial
tornado presente. Toda festa religiosa, todo Tempo litúrgico, representa a
reatualização de um evento sagrado que teve lugar num passado mítico, ’nos
primórdios’.
(..) O tempo sagrado é indefinidamente recuperável, indefinidamente repetível.
De certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que o Tempo sagrado não ‘flui’, que
não constitui uma ’duração’ irreversível. É um tempo ontológico por excelência,
‘parmediano’: mantém-se sempre igual a si mesmo, não muda nem se esgota.
(..) O homem religioso vive assim em duas espécies de Tempo, das quais a
mais importante, o Tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal de
um Tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico
225
que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. Esse
comportamento em relação ao Tempo basta para distinguir o homem religioso
do homem não religioso. O primeiro recusa-se a viver unicamente no que, em
termos modernos, chamamos de ‘presente histórico’, esforça-se por voltar a
unir-se a um Tempo sagrado que, de certo ponto de vista, pode ser equiparado
à ’Eternidade’. (ELIADE, 2001:63/64)
Seu Maneco, da Praia Grande, é o morador que mais recorda os tempos
distantes, tempos da escravidão:
Minha avó era negra da África. Nessa cachoeira que tá hoje aí foi enterrado
muito ouro da escravidão. Ela falou que estava trabalhando e passou o feitor e
dois escravos levando uma carga de ouro para lá. O feitor falou para ela: não
olha pra não morrer. Ela ficou assim de costas rezando na língua dela. Eles
passaram e enterraram o ouro. Quando voltaram da cachoeira o feitor matou
os dois escravos pra eles não contar onde esconderam.
(...)
Se plantava muito café aqui, tinha cana também.
Este morador é procurado pelos jovens que, sentados na soleira da
porta, se divertem com as histórias e, mesmo com certa incredulidade, sabem
repeti-las quando inquiridos. Tais histórias revelam o tempo sagrado de Eliade
que se mostra descontínuo e eterno, pois contam a história do mundo e da
Praia Grande da Cajaíba.
Seu Maneco, certa vez, falando do tempo, lembrou que existe o tempo
dos antigos, o tempo da colheita, o tempo da pesca, o tempo da lula, o tempo
do camarão, o tempo da chegada do Gibrail, o tempo de nascimento de um
menino, o tempo das temporadas (chegada dos turistas), o tempo em que os
homens sabiam falar com os bichos (depois, segundo ele, desaprendemos), o
tempo claro (da lua cheia), as horas de Deus (as horas do dia), as horas dos
homens (horas do relógio, quando estamos no horário de verão). É
interessante notar que ele não sabia que estávamos no ano 2001. Esse passar
226
dos anos talvez seja o tempo ordinário de Eliade (op. cit.). Quando procurei
responder à sua esposa, que havia perguntado o ano, ele repetiu a atitude da
avó de se proteger virando de costas para mim e acendeu um cigarro de palha.
Ao término da breve explicação, tornou a me olhar:
Pra que tanto tempo?
Não é só o tempo que é sagrado, descontínuo e eternamente revivido,
há também espaços sagrados, fortes e significativos. Sobre a cachoeira do
local, conhecida como cachoeira grande, conta-se que o chamado buraco da
serpente surgiu em tempos remotos. Duas serpentes escamosas ficavam
enroladas e aninhavam-se na cachoeira, até que um padre foi chamado para
benzê-las. Quando o padre alcançou-as, através de um caminho no meio do
mato, ouviu-se um estrondo, as duas desceram a cachoeira e o mar se abriu
para elas passarem50. O rumo delas foi o Sueste.
Seu Maneco não se conforma com a história contada por sua esposa.
Para ele, a cachoeira corre para o mar por obra da Divina Providência e o
buraco da serpente trata-se de um buraco cavado pelos escravos, do tempo da
sua avó, que ali socavam café.
O Sueste é um lugar mítico para os moradores. É desse rumo que vem o
vento que engrossa o mar no inverno e faz com que os pescadores não
possam sair para pescar. Quando foi perguntado ao Seu Maneco o que era o
Sueste, a sua resposta foi:
O Sueste é um lugar onde não mora nenhum tipo de ser vivente, é lá que se
escondem todas as maldades do mundo. Ninguém sabe onde fica, fica no fim
do mundo. Ninguém nunca foi lá não. No Sueste não tem país nenhum, não
tem nada, é muito longe. Se tem, não é coisa de gente, de ser vivente.
50 História contada por D. Silvana.227
Quanto à praia de Martim de Sá, é um outro Seu Maneco51 que conta
como era a vida no tempo dos antigos.
– Em toda área, o senhor é o único morador daqui?
– É, em toda área do Martim de Sá. Lá no Cairuçu é tudo da família, meus filho
mora na Anchova, tudo da família.
– O seu avô é daqui, seu pai, o senhor, seus filhos...
– Todos, meu avô morreu com 95 anos, alcancei ele morando em Martim de
Sá. Quando me entendi por gente, ele estava morando ali do lado da minha
casa (...). Naquela época era incomodado pelo serviço dele mesmo (risadas),
que mais nada ele era incomodado. Num vinha ninguém, não chegava
ninguém, o velho se quisesse ver alguém tinha que ir pro Pouso, Ponta Negra,
Sono.
– O que vocês compravam, Seu Maneco; o que o avô de vocês comprava?
– Ele, mala pena, comprava o sabão, a querosene e o sal, que o resto ele
colhia da roça e o vestuário que de primeira custava a estragar, né? E o
vestuário, duas mudas de roupa, já tinha roupa de demais. Hoje a pessoa com
dez, 12 diz que não têm roupa [risadas]. Naquele tempo duas mudas de roupa,
uma limpa e outra no corpo, já tinha roupa.
Nas duas comunidades o tempo dos antigos ainda permanece: na roça,
na pesca, na caça, nas histórias, na ética ao lidar com o ambiente, com a
família, com a terra...
Hoje os moradores dessas localidades não compram apenas o sal, o
querosene e roupas, já necessitam de produtos específicos da cidade. A
própria UC estimula, por exemplo, o uso do gás de cozinha substituindo a
lenha.
O turismo também é responsável por inovações no modo de pensar e
introduz o consumo de produtos industrializados. Há porém que se atentar para
algumas continuidades: os meninos podem até estar com tênis, mas levam
poucos amigos ao mítico buraco da serpente e escondem o calçado no mato,
pois pulam melhor as pedras da cachoeira sem ele. Sabem reproduzir a
51 Há um Maneco na Praia Grande e outro em Martim de Sá.228
história das serpentes mas, audaciosos, mergulham no buraco. Na volta,
contam para seus pais, enquanto abrem um pacote de biscoitos, onde tem ingá
para comer e onde viram um rastro de cotia; então, preparam-se todos, ainda
naquela noite ou na manhã seguinte, para comerem ingá ou fazerem as
armadilhas para as caças do mato.
O problema maior que as duas comunidades enfrentam atualmente,
conforme referido, são os processos de reintegração de posse e os supostos
contratos de comodato que todos terão assinado. A perda da terra, herdada
dos antigos, é a maior ameaça que os tempos modernos trouxeram. O
conhecimento tradicional dessas comunidades se reproduz enquanto prática
social quando se assenta no território conquistado e transmitido pelas gerações
anteriores. Essa é a condição para a sua existência.
5.2 O mar
Beira do marLugar comum
Começo do caminharPra beira de outro lugar
À beira do marTodo mar é um
Começo do caminharPra dentro do fundo azul
(João Donato e Gilberto Gil)
Para compreendermos a pesca, umas das principais atividades
econômicas e um dos aspectos de identidade caiçara mais valorizados por
eles, temos que voltar algumas décadas atrás. Os japoneses chegaram nas
décadas de 40/50. São muitas as histórias de caiçaras que trabalharam
durante esse período na Ilha Grande, nas fábricas de salgar sardinha. Além
dessa indústria, o grupo mencionado trouxe também um tipo de pesca que hoje
é tradicional na região: a pesca de cerco, feita com redes.
229
Lúcia: Teu avô não trabalhava com a pesca então?
Dedé: O meu avô... esse meu avô não, trabalhava mais era em sítio, banana.
L: E teu pai?
D: O meu pai era pescador.
Bidica: O pai da mãe que trabalhava no sítio de banana; por parte de pai,
trabalhava mais aqui na lavoura.
L: E a pesca começou quando aqui?
D: Ah, a pesca já começou há muito tempo, né?
B: É, o pessoal tinha arrastão aqui de praia.
L: Como era arrastão de praia?
B: Largava, deixava o cabo na praia e largava, e aí puxava os dois cabo na
praia. É assim que começava a pesca aqui.
D: Ô, os peixe aqui, meu avô Estevão, se chamava Estevão, ele morava lá na
praia onde é o terreno (...) de Vicente Celestrino, era onde ele morava, lá que
era o terreno do pai dele, mas dava lance de pescada bicuda naquele tempo.
Duas, três canoadas, mas era peixe assim, peixe de cinco quilos, né? Dava
lance que aquilo, a rede vinha lá fora, o pessoal já via o peixe escuro, na praia
e botava...
L: Isto como é que chama, Bidica? Arrastão...
B: Arrastão de praia.
L: Arrastão de praia.
B: Arrastão de camarão vão dois barcos, né?
D: Então isso não existia, traineira bem dizer, não existia arrastão de camarão,
não existia cerco, foi depois...
B: Depois que o japonês, o pai da Marlene...
D: O Oda.
B: É o Oda.
D: Se meteu aí no Pouso, aí que faz cerco, aí foi pra Juatinga, aí foi embora.
B: Aí que foi fazendo cerco, todo mundo começou a fazer cerco...
L: Mas o pessoal vendia este peixe?
D: Ah, vendia tudo em Paraty, às vezes vinha barco lá de turista, meu avô
vendia.
L: E como é que fazia com o gelo?
B: O gelo não existia, era difícil...
D: Às vezes o barco trazia, o pessoal que pegava peixe trazia gelo mas aqui
pra praia não tinha não.
230
(...)
L: Então não podia pescar todo dia?
D: Não, não, não, não, não podia...
B: Tinha que ir no dia que o barco vinha, que marcava de vim, que aí o pessoal
botava rede...
D: Botavam rede pra eles...
L: E vinha peixe fácil?
B: Ah, vixê, de primeira tinha muito peixe, agora que não existe mais.
D: Quer ver só: se por acaso chegasse um barco agora, igual naquela época,
chegasse um barco agora, essa hora, e o cara fosse largar a rede hoje mesmo
já ia chapado [cheio]. De tanto peixe que tinha.
A pesca de cerco é praticada na enseada do Pouso ao Sono52. Os
homens saem quatro vezes por dia para visitar o cerco. O peixe é mantido em
isopor e a cada dois ou três dias é vendido na cidade. Quando o cerco não está
arriado no mar, os moradores estão costurando a rede estendida na areia da
praia perto dos ranchos de pesca ou de alguma árvore como um chapéu de sol
- provedor de sombra generosa. Isso ocorre nos meses quentes, meses de
verão em que o mar esta liso. As crianças ficam por perto ouvindo histórias,
brincando nas canoas que ficam puxadas na areia, se banham com
autorização da mãe – que é quem sabe cuidar delas.
Para a visita ao cerco são necessárias duas pessoas e uma canoa.
Todas as fases do trabalho podem ser realizadas pela família: quando os filhos
são pequenos, a mulher ajuda no cerco; quando chegam aos 7 anos, os
meninos começam a trabalhar no cerco com o pai e as meninas cuidam da
casa, espaço amplo que compreende o quintal, o cuidado com as ervas, com
as flores e com a criação.
A rede é tecida na varanda das casas, tanto por mulheres como por
homens, não há distinção de gênero neste trabalho porém, é mais freqüente
encontrar homens tecendo em casa ou remendando na praia. Estes, durante
52 Consultar o mapa do capítulo 3. A Praia Grande localiza-se na enseada do Pouso; Martim de Sá, na do Cairuçu.
231
os meses quentes, trabalham de acordo com a mansidão do mar, não havendo
dias de descanso.
Em meados da década de 90, a fartura de peixes no mar já não era tão
grande, como a que foi relatada pelos mais velhos. Tal escassez tem
preocupado ano a ano os caiçaras, uma vez que é no verão que a família
consegue o dinheiro para a comida, vestimenta, remédios, passagens de barco
(para os que não têm condução própria) necessários no inverno.
A canoa é o trabalho mais custoso a ser realizado:
- Seu Maneco53, algum dia o senhor já tirou alguma coisa da natureza que foi
desperdício?
– Não, nunca. Porque tirei a canoa pro meu uso, meus filhos tiraram pro uso
deles; quando acaba aquela, a gente é obrigado a tirar outra, não tem dinheiro
pra comprar, e agora de uns tempo pra cá tiramos umas 3,4. Tudo de árvore
morta, que se fosse uma coisa que fosse fácil, tirar as árvores mortas que
morrem no meio do mato, a gente ficava rico, de tanta canoa que tirava pra
vender. Mas a gente não dá conta, não dá, só tira mesmo quando precisa, que
tá com necessidade daquilo. Aí vai, pega no machado, que não é brincadeira.
– Quanto tempo, seu Maneco, pra fazer uma canoa?
– Olha, não tem tempo, porque se fosse à máquina, você numa semana tirava
ou menos de uma semana. Mas como é no machado, a gente trabalha uma,
duas semanas, cansa os braços, arria. Passa mais duas semana em casa, se
tratando e volta lá, martela, até tirar de lá. Na acabação você tem que trabalhar
com uma mão só numa enxozinha pequena, aquela madeira dura. Se
aborrece, hein? Se aborrece de trabalhar, mas precisa, tem que acabar e botar
na pesca pra trabalhar. É nosso ganha-pão aí pra poder pegar o peixe e viajar
pra Paraty porque se for alugar uma condução pra vir buscar o peixe....
– O senhor construiu a sua canoa...
– Foi, eu tirei e fiz e os meu filhos aprenderam comigo e agora cada um já faz
pra si.
– Cada filho seu tem uma canoa?
– Tem uma canoa, não são todos não. As meninas não têm nada na vida por
enquanto [risadas]. Mas os garotos... tem um solteiro que ainda não tem. Agora
os outros já têm, que é mais velho, né? Tirou a canoa, acabou, botaram
motorzinho, estão trabalhando.53 Seu Maneco de Martim de Sá.
232
– E o barco, como é que o senhor conseguiu um barco pra pescar?
– Ah, foi com muita luta. O meu motor é o mais pequeno que tem aí na área e a
canoa é a mais pequena que eu construí.
–E a puxada como é?
– Lá em casa vem os filhos mesmo que são muitos! É perigoso puxar da mata.
Carece ter alguém vigiando, ordenando pra ninguém se machucar e pra não
perder o trabalho.
– Depois, quando chega aqui, faz aquela comida pra todo mundo e aí ficamos
mais mês trabalhando com a enxó para dar o acabamento e depois aprumar,
pintar... se fosse fácil, nós ficava rico. Queria que a florestal viesse ver.
Quando a canoa ainda está na mata, os homens ficam em silêncio,
absortos nos barulhos da mata, aprendendo seus segredos. Longe de casa,
ficam sozinhos por horas na clareira aberta. Segundo eles, a clareira gera
biodiversidade no meio na mata porque o sol proporciona mais espaço para as
árvores que estavam querendo crescer mas estavam sufocadas pelas grandes.
A feitura da canoa, trabalho que leva ao mar, enriqueceria assim a mata. Tal
trabalho é realizado durante o inverno, quando as caças estão gordas e é
impossível sair para pescar pois o mar está grosso. Algumas vezes o homem
volta da mata com a proteína dos próximos dias, que se transforma em carne
seca para o feijão.
A festa da puxada da canoa da mata para a praia é organizada pelas
mulheres que matam um porco no dia anterior (ou, no mesmo dia, matam
galinhas) para oferecer a todos que trabalharam. Muitas vezes alguma
comadre, mulher de algum dos homens convidados para a puxada, vai ajudar a
esposa ou a mãe daquele que está fazendo a canoa. É festa também para
quem fica preparando e conversando. Quando os homens chegam cansados
da puxada se banham e vão para comilança rir e lembrar dos momentos mais
tensos da puxada.
Na praia, pra acabação, são também semanas de trabalho. Todos os
moradores vizinhos se reúnem para conversar. As crianças brincam imitando
os pais, fazendo pequenas canoas de caixeta ou de outra madeira mole as
mulheres também ajudam na atividade, mas o arremate final é dos homens. O
233
nome da canoa é pensado desde o momento em que o pau é encontrado na
mata.
Achei bonito Floresta, uma coisa que veio da mata e não do mar. Ela é tão
pequena que a Teresa começou a chamá-la de Florestinha. (Seu Maneco de
Martim)
Em Martim de Sá e Saco das Anchovas prepondera o trabalho com as
canoas e com o cerco. A pesca de cerco na Praia Grande é realizada em
parceria com os parentes da própria praia ou da praia vizinha.
Há ainda outros dois tipos de pesca praticadas na Praia Grande: a pesca
embarcada e o arrastão. A primeira leva os homens para longe de suas casas,
realizando-se na costa mais próxima entre Angra dos Reis e Ubatuba. Saem
por uma semana, dez dias. Não é previsível quanto tempo ficarão no mar, pois
enquanto há peixe o mestre do barco permanece pescando e descarregando
em Paraty. O descanso vem quando o barco fica atracado alguns dias na
cidade para fazer um novo rancho, isto é compras de comida para os
pescadores, e para acertar as contas. Durante este tempo, aqueles que
conseguem barco para a Praia Grande voltam para suas casas e depois são
apanhados pelo barco, dali a poucos dias, para retornarem à pesca.
Nos últimos anos, a Capitania tem exigido registro para os pescadores.
Para essa pesca, especificamente, eles são contratados por um mestre que
não é necessariamente o dono do barco. O pagamento é feito de acordo com a
pesca, sendo que metade da venda fica para o patrão e a outra metade será
divida entre os gastos e os pescadores, os camaradas. Os maiores gastos são
o combustível, a água, o gelo e o rancho. Normalmente um pescador é
nomeado cozinheiro do grupo.
Chibico e Roberto da Praia Grande relatam algumas das dificuldades da
pesca embarcada:
Chibico: Vida doída, desde os 12 anos que trabalho na pesca. Nós trabalhamos
na camaradagem. Não sei ler nem escrever. Um mês no arrastão de camarão
234
dá 400, 800 quilos. Não se dorme direito, a cada quatro horas um fica no
arrasto. Se der seis milhão, o barco fica com três milhão e os outro três a gente
divide.
Roberto: Não saí pra trabalhar embarcado, (com caderneta), dá pra tirar de
menor e depois tira, de maior. Pra tirar a caderneta precisa de muito
documento. Eu relaxei muito. O dono do barco prefere embarcado. Quem tá
embarcado, se cair doente e ficar em casa, ganha. Embarcado, o sujeito
trabalha sossegado. Desembarcado, se a capitania pegar, dá uma multa e o
dono do barco tem que pagar.
A pesca embarcada é a que menos autonomia traz ao grupo. Ela pode
ser eventual, à rola (solta) como eles dizem. E se ela fracassar, pouco será o
dinheiro levado para casa.
O arrastão descrito pela Bidica e pelo Dedé, realizado no tempo dos
antigos, não é predatório; consiste em uma grande rede que é colocada no mar
a partir da praia quando os moradores avistam peixes. No início da década de
90 ainda era possível presenciar esse tipo de pesca, que mobiliza muitas
pessoas e o fruto é dividido na hora. Atualmente tem sido cada vez mais difícil
observá-la, devido à escassez perto da costa.
Os mais velhos contam de pesca embarcada de 6 meses, que alcançou
Santa Catarina, Espírito Santo. É um orgulho para os mais velhos ter
conhecido esses lugares nessa pesca mais longa. Quase todos, depois de
casados, não saíram mais nesses grandes barcos. Hoje os grandes barcos não
contratam pequenos pescadores pois a produção também se modernizou e,
com auxílio de instrumentos, a pesca é realizada por poucos profissionais que
aprendem a ler os instrumentos mais que a natureza.
Um outro tipo de pesca realizada na baía de Paraty é predatória:
consiste no famigerado arrastão, proibido por várias leis em Paraty. São dois
barcos que singram o mar paralelamente com uma rede arrastando o fundo do
mar e puxando peixes de toda “marca” (tamanho). Nas épocas livres do defeso
(proteção de algumas espécies de peixe ou de crustáceos como camarão)
essa pesca é bastante freqüente na baía de Paraty mesmo sendo proibida. Ela
235
emprega muita gente no município e contribui para boa parte do pescado que
chega na cidade e abastece todas as pousadas, restaurantes e mercados fora
de Paraty.
Ainda há a pesca da lula, do camarão, a tarrafa...
O mar é um território de uso comum dos caiçaras. Ninguém é dono.
Para a pesca de cerco há um zoneamento estabelecido no seio da própria
comunidade: cada família tem seu ponto de cerco, mesmo quando o cerco não
está no mar, este espaço está garantido. São poucas as notícias de cercos
levados por barcos de caiçaras uma vez que, mesmo morando distante, em
outras praias, eles reconhecem os espaços do cerco, seja pelo costume, seja
por um olhar aguçado. Enxergam de longe quando tem cerco na água. Têm
sido comum porém os acidentes com barcos de fora que desconhecem tais
espaços e navegam em alta velocidade. Estes acidentes fizeram com que os
cercos estejam agora protegidos por pedaços de isopor e de plástico para
garantir maior sinalização. Uma rede de cerco nova foi avaliada em R$2.000,00
pela comunidade do Saco das Anchovas - quase todos, filhos e parentes do
Seu Maneco de Martim de Sá.
O mar guarda além da variedade de peixes, fonte de vida, o
horizonte .Os caiçaras que moram beira-mar estão sempre olhando-o,
desvendando-o.
A praia é o local de encontro dos vários moradores que descem do
sertão para pescar, ver parentes; apreciar o final de tarde; prosear ou ainda
realizar as trocas: aqueles que se dedicam mais à agricultura vão em busca do
peixe e oferecem produtos da roça. A reciprocidade da economia moral realiza-
se muito na praia.
5.3 A mata
236
Eu fui a percura de um pauNa mata de beira mar.
Levei um ano e seis meses pra esse pau encontrar,pra esse pau encontrar tive um trabalho insano
depois gastei mais de um ano pra esse pau derrubar.Esse pau quando nasceu foi sem jeito de corcunda
Idade dele compete de D. Pedro e de D. Pedro não há de deixar de ser a marca do mundo (...)
(Seu Maneco da Praia Grande)
A região conhecida como Costa Verde abrange o litoral sul fluminense,
incluindo a Península da Juatinga, e possui as áreas com a mata atlântica mais
bem preservada de todo o estado.
Os moradores crêem que a biodiversidade pode ser fruto da ação
humana na natureza. Eles lembram do tempo em que a mata não era inteira
como na época do plantio de cana e café e, passados os anos do
esquecimento da primeira metade do século XX, é que ela tornou a crescer.
Há muitos significados atribuídos à mata. Normalmente as mulheres
conhecem as beiradas da mata de onde extraem ervas, cipós, flores, frutas
para consumo familiar e uso medicinal, o que denota um sentido estético,
funcional e de cura particularmente feminino. Já os homens conhecem seu
interior e ao serem perguntados do que mais sentem falta quando estão no mar
pescando, respondem com freqüência: a mulher, a casa e a mata.
Depois de passar semanas no mar me faz falta a mata, os barulhos dela. A
gente cansa do mar, do peixe, o corpo pede aquele descansozinho da mata,
comer uma caça. Mesmo quando os meninos e a mulher aqui tão muito
barulhentos, eu pego minha espingardazinha e vou pra mata, ficar sozinho,
apreciar.
(Altamiro, da Praia Grande da Cajaíba)
À mata se vai sozinho pois a nossa catinga (cheiro) já é suficiente para
espantar a bicharada e mais de uma pessoa caminhando inviabiliza a
237
contemplação, a caça, o silêncio. Segundo os moradores, até os pássaros
param de cantar para observar a gente.
Os macacos, como animais mais parecidos com o ser humano, ganham
uma personalidade antropomórfica. A comunidade conta várias histórias com
esses bichos, Seu Maneco de Martim - lembremos, filho do Roque Caçador -,
conta que parou de caçar macaco no dia em que uma fêmea, ao perceber
que ia morrer na mira da espingarda, gritou e mostrou-lhe o filhote que trazia
nas costas. Há ainda os que fecham os olhos com as mãos para não ver a
morte chegar. Quem já presenciou cenas como estas não caça mais tais
bichos e ensina para os filhos os modos deles. A tartaruga é outro animal que,
conta-se, chora quando vê a faca aproximando-se e ganha por isso a
liberdade do mar.
_ O senhor falou que tem algumas caças que chegam bem perto da sua casa e
o senhor não caça...
_ Ah, não. Agora que espantou, que entraram a turma aí ,né? Gente estranha
do lugar, corta madeira daqui, corta dali, espantou... Mas quando eu estou
sozinho parece que já estão acostumadas com o cheiro da pessoa. Vem perto
da minha casa, a cotia come jamelão...
_ Por que o senhor não caça?
_ Ah, não. É da gente, bem dizer. Não precisa, a gente gosta de vê-la. Eu
gosto muito de ver animais silvestres perto de casa, tanto os pássaros
cantando como as caças.
A regulação da caça é feita pela observação dos ciclos da natureza e
por interditos míticos. No verão as fêmeas estão prenhes assim, não se vai à
mata caçar; o mar, por sua vez, está manso portanto, é hora de ir à pesca.
No inverno as caças estão gordas, as fêmeas já pariram e, no entanto, não é
possível pescar. Os caçadores mais afoitos são punidos por visões da mãe da
mata ou do caipora que os amedronta a ponto de muitos não voltarem mais
para a mata. Eles aparecem quando a caça é maior que a necessidade
alimentar da família. Podem fazer o camarada se perder e nunca mais voltar.
238
Ir à mata também implica a construção de um conhecimento sobre o
modo de vida dos bichos: como fazem as tocas? Quando se reproduzem?
Andam em bando ou não? Quais os barulhos que fazem?
Seu Maneco da Praia Grande conta:
Agora o macaco chega no pau e bate assim (...)Se a fruita tá com bicho por
dentro, ele não come. Vai, pega aquela fruta boa, ele não come fruta que tá
com bicho, ele escuita primeiro. Sê tá com bicho ele não come (...) Ele chega,
bate e escuita com o ouvido, se tá roncando bicho dentro, ele sabe que aquela
fruita não tá boa. Não come nada que é podre, é igual a onça, né? A onça não
come nada podre, só come carne fresca. Se ela pega uma caça hoje, ela come
um pedaço aqui, aí ela enterra, se amanhã ela vier, tá com mau cheiro, ela não
come mais, ela vai pegar outra lá.
A onça vinha andando pelo caminho e aí tava um senhor lá longe, né? Quando
o senhor viu a onça lá, ele não tinha arma pra matar ela, aí se deitou-se e se
sujou-se todo. Sujou-se todo. Ela foi, chegou, cheirou e disse assim: este não
tá bom, aí se mandou. Foi a sorte do homem! Ela foi cheirou ele, ele tava com
catinga, ela saiu e não comeu. A hora que ela saiu, correu, se mandou-se o
homem. Ela só come carne limpa, fresca. Não come nada com catinga. Nada.
Onça é um bicho muito limpo, é igual gato. Cê não vê o gato?
D. Silvana:(...) quando ela correr atrás de você, pra pegar você, você manda
um peido e ela corre com a catinga... (risadas)
Os bichos da mata não atacam, com a exceção da cobra que não
consegue fugir. A avó do Seu Maneco54 cantava:
Mamãe vem a onça aí,
menino deixa a onça vim,
eu não devo nada a ela,
nem ela me deve a mim.
A mata também é o lugar de tantos paus (árvores) que já foram testados
e conhecidos pelos mais velhos. Há alguns que se tornaram sagrados como
um jequitibá rosa que, para Seu Maneco de Martim:
54 Seu Maneco da Praia Grande além de contador de história esmera-se nos versos de cordel.239
Lúcia: Nada como o senhor chegar e encontrar uma árvore...
Seu Maneco: É, enorme, enorme... A árvore mais grossa daqui da redondeza
desde o meu avô até meus filhos, nós conhecemos. É um jequitibá, dá um
metro e meio de boca se for tirar uma canoa.
L: É ? Onde ele está, Seo Maneco?
M: Fica lá dentro daquela mata, lá perto da Toca da Varge. Às vezes caçando
passo lá perto, vou lá ficar olhando pra árvore. É uma coisa muito linda. A
gente sabe que aquilo tem, tem muita raça de anos.
L: E aquela vocês não cortam?
M: Ah, não, não. Aquela fica. Não tiramos porque é a mais grossa, é a mais
grossa da área por aqui. Não tem nem lá pra Ponta Negra, Sono... ninguém
encontrou. Meu avô caçava naquela épa dele, daqui pra Ponta Negra, pro
Sono, tudo ele andava aí. Ele era, como se diz, era mais índio do que gente,
sabe? Então é a árvore que ele encontrou e mostrou pro meu pai, meu pai
mostrou pra mim e eu já mostrei pros meus garotos. É a mais linda, a mais
grossa. É uma peça de árvore muito linda.
Há tantas outras árvores que são conhecidas. Andando na mata de
Martim de Sá, Seu Maneco começou a elencar:
Aqui tem cedro, timbuíba, guarapubu, ingá – estas são as mais leves e
enxutas. Mais novas da floresta é o jacatirão, o chorão, tigicuia, tem uns que
tratam ela por leluia, o tarumã, a picuíba, pati amargoso, pindoba, amendoeira.
Já a aroeira pertence mais a praia. Tem raça de pau nesse mato!Perto da casa
tem o araça, o jambo, o figuinho, o jambolão, guarda-sol, cobi, casaca preta,
patiero, xixa, coco indaiá, ingá de flecha. Com fruta tem: goiaba, laranja, café,
jaca, palmito, jabuticaba, cacau, abacate, manga, coco da Bahia...
Os moradores de Martim de Sá, Saco das Anchovas e Cairuçu das
Pedras, hoje convertidos ao Evangelho, resignificaram lugares que já
anunciavam vocação ao sagrado. Antes da década de 90 iam para a Pedra do
Miranda, após caminhada de cerca de duas horas (no passo deles), admirar a
paisagem. Hoje, é neste ponto mais alto que ocorrem as rezas mais
importantes de agradecimento. Eles caminham pela mata, chegam ao topo, se
240
vestem com roupas adequadas para o culto e comungam muito perto de Deus,
num dos pontos mais altos da região e com uma paisagem natural bastante
generosa.
A mata, ao que parece, é o pedaço do território caiçara que guarda mais
mistério. É um lugar que eternamente será desvendado e como diz Seu
Maneco de Martim, se fosse fácil derrubar uma árvore a gente ficava rico.
A mata também não tem dono, é comum a todos e muitas vezes na
demarcação das posses seja para fins jurídicos ou ambientais - como o
zoneamento das UCs - ela é esquecida pelos planejadores ou advogados
como parte integrante do território que assume usos e têm significados
variados: da escolha e utilização de uma erva ou uma árvore, ao lugar sagrado
da meditação, da reza e do silêncio.
5.4 A terra
Sou filha da terraCriada no ventre da mãe,
mas sou filha da terra
(Baíca da Praia Grande da Cajaíba)
Todas as famílias, tanto as da Praia Grande quanto as do Saco das
Anchovas, têm roça de mandioca. A farinha é um alimento que está presente
em todas as refeições, do café da manhã ao jantar. Ela é insubstituível.
Cada família tem sua roça de mandioca e, se a mata é um lugar em que
os homens freqüentam como seu território, a roça revela o lugar do trabalho
feminino, de cuidado diário, que garante o sustento básico da família e que
demanda um tempo de cultivo e de preparo repetido anualmente.
O preparo da farinha demora de seis meses a um ano, tempo mínimo e
médio, respectivamente, que a mandioca fica na terra arenosa. Após colocar
fogo na área que vai ser plantada, com o cuidado de um aceiro, os moradores
carpem e plantam a rama. Nesta primeira fase há a presença masculina
241
sobretudo para fazer a limpa da roça e plantar a rama. Nas capoeiras novas
não é necessário colocar fogo.
Enquanto a rama está plantada, as mulheres quase diariamente vão à
roça para carpir, arrancar os matos que aparecem. Contam em casa ao
marido como está a roça, se algum bicho está aparecendo como formigas ou
uma cotia. Os homens preparam o veneno, se necessário, e armam o
mundéu – armadilha para as caças.
Um dia antes de fazerem a farinha, homens e mulheres arrancam a
rama da roça e em balaios levam-na para o terreiro, ralam-na para tirar a
casca e lavam-na; vão, então, para a casa de farinha, onde a mandioca é
cevada: enquanto o filho mais velho ou algum homem está na roda, as
mulheres cevam, (ralam a mandioca) e a massa vai para o cocho que está no chão.
Após esta fase, a massa fica cerca de 12 horas no tipiti55 – não pode ficar mais
tempo pois corre o risco de azedar. Os tipitis ficam embaixo de várias pedras pesadas
e, através das tramas do cesto, o caldo, venenoso, escorre para o cocho. Mais pedras
vão sendo colocadas geralmente pelos homens, o que requer grande arte pois um tipiti
fica sobre o outro de modo bem reto para não quebrar.
Na madrugada, quando está mais fresco, a família volta para a casa de farinha,
acende o fogo, com lenha trazida pelas crianças (que também ajudaram anteriormente
a ralar), assim, o forno de bronze, assentado num fogão de barro, esquenta. A massa é
virada, (tirada do tipiti), e o caldo que estava no cocho é jogado no terreiro, longe da
criação, para evitar envenenamento. Ela é então coada, passada numa peneira,
também tecida por eles, e começa a ser forneada.
Uma ou duas pessoas sentam-se junto ao fogão e principiam com os rodos a
fornear, num movimento contínuo (um oito horizontal). As crianças são responsáveis
pelo fogo, cuja temperatura é ditada por quem está forneando. Quando a farinha está
seca, é colocada nas bordas do fogão e uma nova massa que acabou de ser coada é
colocada no forno. Ao final desse processo, a farinha volta para o centro do forno de
cobre para torrar.
A melhor farinha, para a maioria, é aquela que está bem torrada (cuja coloração
amarelada perdeu-se e passa a ser branca) , além de bem fininha.
55 O Tipiti é usado somente nesta fase do fabrico da farinha.242
Para dois tipitis e meio de massa, foram gastas seis horas na casa de
farinha contando com a participação de todos, inclusive, dos que ficaram em
casa cuidando da comida e das crianças mais novas. Uma família de seis
pessoas consumirá essa farinha em 15 ou 20 dias. O processo voltará a ser
realizado após esse tempo de modo que uma nova mandioca, que passou
cerca de um ano na terra sendo cuidada, vai ser arrancada....
O lugar privilegiado para esta atividade preparatória da farinha de
mandioca é a casa de farinha, construída por todos próxima à roça ou no
terreiro .
Walquíria Garrote, em seu trabalho56 sobre os quintais agroflorestais dos
caiçaras do Saco do Mamanguá, braço de mar integrante da Reserva da
Juatinga, descreveu o quanto tais espaços são femininos e cuidados. Os
moradores chamam o quintal normalmente de terreiro. No entanto, aqueles
que foram convertidos ao protestantismo preferem o termo quintal, pois
terreiro é coisa de macumba.
As mulheres levam mudas de flores para o local, cuidam das ervas, da
criação de galinhas, varrem-no. É ali também que se lavam roupas, louças e
se tratam (limpam) os peixes; tudo isso no tanque, muitas vezes de cimento,
feito no chão. Além disso, seca-se a carne de caça. Segundo Brandão57, o
terreiro ou quintal é o lugar entre-fogos feminino: entre o fogão
(tradicionalmente baixo, dentro da cozinha) e o sol.
É no terreiro que também ocorre a transformação da cana-de-açúcar em
melado.
Altamiro, morador da Praia Grande, construiu um engenho de
aproximadamente um metro e meio de altura para moer cana e fazer melado.
Após o plantio e o corte, toda a família carrega em feixes a cana até o
engenho, as crianças pequenas levam-na para o tanque para lavar e bater, com o
cabo da faca, para tirar os nós. A cana vai ser passada (ou coxeada) no engenho,
onde trabalham três ou quatro pessoas: dois rodando, enchendo as mãos de calos e
fazendo muita força; um pegando as canas batidas e colocando-as no engenho e um
outro recolhendo a garapa e armazenando-a nas latas. O trabalho é dividido e assim,
os meninos de 15 anos apanham a lenha e cortam a cana; os caçulas batem a cana,
a filha cuida da garapa, Altamiro e Maria (moradora conhecida por realizar, por falta
56 Qualificação defendida em 2002 na ESALQ.57 Argüição durante a mencionada qualificação.
243
de opção, trabalhos de homens) ficam no engenho, Jandira, esposa de Altamiro,
prepara o melado que é muito melindroso.
Só as mulheres mais velhas sabem dar o ponto no melado para ficar puxa-
puxa. É aconselhável que ninguém perturbe nesta hora fundamental. O processo se
dá com o melado permanecendo horas no fogo, nas latas; em determinado
momento, sai do fogo e, mais tarde, sozinhas, as mulheres mais velhas vão dar o
ponto. Foram dois dias de trabalho intenso e 20 garrafas de um litro de melado no
final. Após essa atividade, as mulheres se arrumaram e foram vender nas praias
vizinhas por dois reais cada garrafa, caminhando o dia inteiro. Com isso, totalizam-se
três dias de trabalho, fora o tempo de plantio e cuidado com a cana58.
Não se deve descartar que a atividade tradicional é dotada de toda uma
simbologia, como os segredos das velhas para o ponto do melado, a participação de
todos, o fazer o engenho com técnicas herdadas dos mais antigos, o passar todo o
conhecimento para os filhos, o sair vendendo e percorrer as casas das praias
vizinhas e voltar com histórias... Mas, ao mesmo tempo, há a tentação e necessidade
de se adaptar a novas formas de conseguir o mínimo dinheiro para comprar comida
e outros produtos, inclusive um motor para canoa e, assim, poder ganhar mais com a
pesca.
Desde meados dos anos 90 o terreiro tem se convertido, durante as
temporadas, em áreas de camping59. Por não ser tradicional, a nova atividade
inspira o temor de que as comunidades caiçaras não mais exerçam sua
práticas costumeiras. Como não considerar que para a produção do melado
despendeu-se mais tempo e ganhou-se menos dinheiro se comparada à venda
de cocos ou pratos feitos? Nem todo melado foi vendido no entanto, todos os
cocos e qualquer comida que se faça encontram bocas e bolsos para consumi-
los.
Não ocorre somente a mudança de função do terreiro, pois os ranchos
de pesca na praia também são transformados em barzinhos. Os nomes
camping e bar são atribuídos pelos turistas, mas os moradores continuam
chamando tais locais de terreiro e de rancho.
58 A produção de melado descrita foi acompanhada em 1998.59 Vale ressaltar que o turismo chegou às praias da Reserva e em cada comunidade em tempos diferentes, de modo que cada uma lidou com isto de forma distinta. O foco deste trabalho é mais cuidadoso para as comunidades até então referidas.
244
É mais evidente perceber a alteração e a descaracterização ocorridas
com a chegada do turismo, contudo, notar as permanências que se revelam
requer uma análise atenta. Uma delas , por exemplo, o modo de vida
tradicional camponês que pode ser notado no trabalho familiar que ainda
ocorre, nas comunidades estudadas, com a coordenação feminina.
Se todos participam da elaboração da farinha e do melado, é verdade
também que encontram-se igualmente envolvidos na nova atividade e que o
trabalho de cada um é construído em consonância com o do outro. No rancho
tornado bar, a mulher está na cozinha coordenando os filhos que se distribuem
no atendimento às mesas, no fechamento de contas, na manutenção da água e
da louça limpa, na cozinha propriamente dita. Os pequenos estão brincando
por perto, como na produção de farinha e do melado, mas, disponíveis e
atentos para o seu quinhão de trabalho. Os pequenos na Praia Grande vendem
os pastéis feitos pelas mães (de palmito ou pitu, tirados da natureza de forma
tradicional), vendem peças de madeira e cestaria feitas por eles ou por alguém
da casa, saem de canoas ( feitas também no modo tradicional) para vender
camarão ou lagostas para os barcos mais abastados que ficam apoitados
distantes da praia. Os meninos um pouco mais velhos alugam as canoas ou
fazem fretes com o barco, que agora se presta ora para o turismo e ora para a
pesca, levando os turistas para passear no rio e no mar, além de se
oferecerem como guias.
Talvez a maior fratura trazida pelo turismo não tenha sido tanto a
transformação da cultura mas sim a relação com a terra que adquire um
significado novo, o qual não está presente no repertório deles, uma vez que ela
possui valor de mercado de acordo com a localização mais ou menos atraente
para o turismo.
Nas atividades tradicionais, há reciprocidade no compartilhar das
riquezas oferecidas pelos territórios de uso comum: o peixe está no mar para
quem quiser pescá-lo; a roça é feita por todos, em seus lugares tradicionais
passados de geração em geração. Já o turismo chega prioritariamente nos
lugares mais bonitos e estrategicamente localizados. Cria-se a diferenciação no
interior da comunidade e as terras, que antes não haviam sido motivo para
245
litígio, passam a sê-lo. O modo para lidar com essa diferenciação e divisão dos
melhores lugares (na beira da praia ou da cachoeira, áreas mais sombreadas
ou mais distantes do controle direto dos proprietários na Praia Grande) não
está amadurecido e a competitividade se instala rompendo os laços de
reciprocidade e ferindo o parentesco tão caro a todos. A reciprocidade,
territórios de uso comum, a terra com valor de uso são características do
campesinato que se abalam neste primeiro momento do turismo.
A terra abriga outro elemento importante da cultura caiçara: a casa. Na
Juatinga elas são feitas de pau-a-pique e cobertas com palha, substituída
muitas vezes por telhas de amianto ou de barro. A escolha da madeira é feita
pelos homens que vão buscá-la na mata, o jacatirão costuma ser utilizado com
freqüência.
Escolhida a madeira, cortada no tamanho necessário, os homens abrem
uma cava, isto é, preparam o terreno onde a casa será levantada. Este
trabalho com as madeiras é realizado pelos homens que também colocam e
amarram os paus com o auxílio de algum parente. Com a estrutura montada,
procura-se um barranco com terra boa para ser cortado e levado para perto da
nova casa que será embarreada.
Esta fase admite melhor a participação das mulheres. Há grande
cumplicidade quando uma pessoa fica do lado de dentro da casa e outra do
lado de fora, pois juntas cobrem cada pedaço quadrado jogando o barro e
tirando o excesso com as mãos. Também este processo pode ser feito em
mutirão, que termina em festa, como a puxada da canoa.
Geralmente, um casal ao construir sua própria casa já passou por um
período na casa dos pais do homem, pois a mulher, fugida de casa para casar,
não pode voltar durante algum tempo para a casa dos pais que, traídos pela
fuga, se mostram ainda ressentidos. A nova esposa submete-se às regras da
casa dos sogros, com a expectativa de que o tempo será breve. Para a casa
nova, leva o enxoval, alguns utensílios domésticos, que fora preparado pela
mãe.
Quando o casal é evangélico as regras mudam pois, a fuga e o rapto
não são reconhecidos por Deus. Por não agüentar a espera preconizada pela
246
igreja ou não ter dinheiro para os rituais da boda, o casal foge e depois passa
por um período de punição, que consiste em muitas rezas e no afastamento
dos rituais da igreja.
O lugar para a construção da casa é doado pelos pais de um dos
cônjuges. Depois que a Juatinga foi decretada Reserva Ecológica, a
construção de novas casas ainda não foi normatizada. Há multas para
algumas, ordem de demolição para outras, desconhecimento para poucas60,
proibições a priori. É importante lembrar, como já tratado no capítulo 4, que a
Reserva é de natureza non edificandi. A reprodução do grupo assim como a
questão da herança inserida no direito costumeiro são aspectos ainda não
colocados para a discussão no contexto das UCs.
5.5 Ética do meio ambiente
Brandão, no livro O afeto da terra, busca como mote:,
(...) aprender como uma cultura patrimonial de agentes diretos sobre o mundo
natural estabelece uma lógica da natureza (como a natureza “natural” e a
natureza socializada são pensadas por ela, sistemicamente) e uma ética do
ambiente (através de que valores, princípios e sensibilidades, códigos de
trocas entre seres humanos-e-sociais e seres humanos-e-naturais, mas
passíveis de serem socializados, incorporados vivencial ou simbolicamente à
vida social, aos imaginários e aos códigos sociais da cultura, são
diferentemente estabelecidos). (1999:17)
Demonstrando aspectos tratados neste capítulo como o tempo, a
relação íntima com os lugares que fundam o território e a cultura caiçara, além
da possibilidade da perda da terra, segue uma longa entrevista com Seu
Maneco de Martim de Sá. Os recortes podem contribuir para a compreensão
da chamada ética do ambiente, vivida por muitas famílias caiçaras na Juatinga.
-_ O que o senhor acha do turismo?
60 Poucas são as que passam desapercebidas, pois os proprietários não só avisam o IEF como também levam-no para consolidar a proibição já determinada.
247
- _ Olha, do jeito que está vindo, que o povo vem e que estão me
reconhecendo e me respeitando, eu acho uma boa. Quando vem uns amigos
assim, eu sinto mais libertado, são amigos sinceros, honestos. Tem algum no
meio que a gente não vai com a cara, mas a gente já conhece e então também
não dá preço, se vê que não é gente como a gente, (então eles têm passagem
de graça) incoerente. Aqueles que a gente sabe que é gente como a gente, dá
o maior apoio.
- _ E esse tipo de turismo com casinha, o que o senhor acha disso?
- _ Eu não acho uma boa porque os turistas vem com a sua barraca e vão
embora e é pouco tempo. Esses não querem fazer só uma coisa de aparecer,
né?
- _ Como o senhor acha que vai viver se houver este tipo de turismo com
casas, pousadas, restaurantes aqui?
- _ Ah, eu tenho de dá um jeito. São duas coisas que eles têm que dar um
jeito: me comprar ou vender minha benfeitoria pra outro e sair de perto
porque... não vai dar não. Não dá que está se vendo. Vai entrar bebida e
vão beber e uma pessoa só, cheia de álcool, já acaba com o resto todo. É
uma coisa apavorada, que nem na Trindade, vai pra lá, uma tristeza, tem
gente que correu de lá, correu gente no ano passado pra cá que não podia
ficar com a sua família, acampado que até a barraca e tudo quiseram
carregar.
- _ Seu Maneco, o senhor conhece lá a praia de Isgaeta? O que o senhor acha
daqueles chalés que eles fizeram lá?
- _ Ah, fica feio, né? Uma coisa que a gente olha na natureza, não pode ter
uma coisa daquela num lugar daquele. Na cidade tudo bem, ali pode fazer tudo
porque já é uma coisa que pede.
- _ Estragou tudo?
-_ Estraga, agora chega aqui num lugar desses, ou aqui, em Isgaeta, em
qualquer lugar desses aí que tá só o caiçarazinho e monta um negócio aí,
fazer.... Tira fora do modo da natureza, tira muito fora do controle.
- _ O senhor se sente incomodado?
- É, incomodado.
- O senhor acha que vive no modo da natureza?
-_ Ah, eu acho, eu acompanho sempre pela natureza, pelos modos, pelas
coisas, ando pela mata, pelas cachoeiras, pelas costeiras. Só notando às
vezes o modo que Deus fez, Deus criou e deixou para nós.
248
- O que o senhor viu de bonito nisso, que coisas o senhor já descobriu que
acha boas?
- De bonito, eu acho a natureza. Essa não tem! Pode me apresentar o que for
que o homem fizer de bonito e apresentar pra mim e me perguntar, eu digo:
dou valor à natureza. Essa é a mais bonita pra mim...
(...)
- Seu Maneco, e qual é o seu maior sonho, para sua vida e para este lugar?
- Meu maior sonho é de ver esta natureza do jeito que meu avô e meu pai
deixaram, perfeita do jeito que está, esse é o maior sonho meu pra apresentar
pros amigos que vem de fora. Aqueles que conhecem, que dão valor à
natureza que Deus fez, criou. Ele olha e diz, muitos já me disseram: ‘Seu
Maneco, neste lugar ainda se vê um pedacinho da natureza que Deus deixou’.
E é verdade. Agora, se acaba, onde é que vai se ver, né? Não se vê mais.
Então eu tenho muito amor pela natureza, pelas coisas de Deus. Estou com 57
anos e eu noto um pouco das coisas de Deus, é umas coisas muito lindas pra
quem sabe viver a sua vida. É bacana.
- Seu Maneco, para fechar nossa entrevista, o que o senhor quer que aconteça
diante desta situação que está hoje, desta briga por terras no Fórum, o que o
senhor acha?
- Olha, eu queria que acontecesse: que as autoridades tivessem mais, fossem
mais enérgicas que não deixassem mesmo. Que brigassem mesmo pra
aqueles pedacinhos de natureza que ainda está reservado, né? É o que eu
queria que o governo... os caiçaras, que ajudasse os caiçaras. Que os
caiçaras, pelo jeito que eu vejo, eles não destroem não, não destroem as
florestas, eles só limpam o lugar da rocinha deles, plantar um pouco, que é
tudo na mão e ali eles sobrevivem, criam seus filhos e aí a pesca ajuda um
pouco. Então, quer dizer, vive daquilo ali e sempre a floresta perto.
- Quem destrói, Seu Maneco?
- Ói, quem destrói, é assim: uma pessoa que vem de fora, né? Chega aí: ‘quero
fazer isto, quero fazer aquilo’ e vai derrubar mato...
- Como o senhor acha que deveria ficar esta praia, Seu Maneco?
- Do jeito que tá. De mato até a beirada dela, só a praia limpa pela natureza e
tudo a floresta perto. É lindo. Tanto os pássaros, como os bichos do mato que
vem. Bate o inverno, então aqui no manguezal, aqui por baixo dá fruto. Já os
passarinhos já sabem – a natureza é tão forte que já sabe. Eles vão pra lá,
(que na mata, lá em cima, não tem) e vão pra aquela área perto ali, vão se
249
alimentar aqueles dois, três meses... já acabou ali, lá em cima já tem, aí eles
vão pra lá. Então, quer dizer, a gente que mora na área, nascido e criado neste
lugar nota isso tudo.
250
6. CAMPONESES E
POPULAÇÕES TRADICIONAIS
Voltar seria melhor?
Adiar o casamento?
Eram doze na canoa,
na canoa que indecisa
não sabia se voltava,
se parava, se seguia.
Doze remos furam a água,
negras nuvens, ventania,
onda forte e sufocante,
doze vozes não se ouviam.
Eram doze na canoa,
na canoa que virou.
A noiva ficou com o noivo
e tudo o mar carregou.
(José Kleber, paratiense, poeta, ator, defensor
público - tristemente assassinado num
Carnaval da década de 80)
Trecho do poema A canoa dos doze
do livro Praia do Sono
251
6.1 Camponês e campesinidade
Há várias correntes de pensamento para interpretar o mosaico das
características sociais e econômicas presentes no campo. Uma interpreta a
existência do camponês, inserida no capitalismo, como um “resíduo em vias de
extinção”61, uma vez que se transformaria em pequeno capitalista rico ou, a
outra face da mesma moeda, proletário.
Outra corrente entende que a presença do campesinato demonstra
evidências de relações feudais de produção, a penetração das relações
capitalistas no campo levaria a formação da propriedade camponesa ou
capitalista.
Esta pesquisa insere-se na corrente de pensamento que entende, tanto
o campesinato, como o latifundiário na lógica do desenvolvimento capitalista –
diferentemente das correntes anteriores - uma vez que esta lógica pressupõe a
produção camponesa como forma de produção e reprodução ampliada do
capital, por isso, é tomada como contraditória e, por princípio, desigual. Alguns
autores, como Ariovaldo Umbelino de Oliveira, José de Souza Martins e
Margarida Maria Moura contribuem para a reflexão da lógica interna do
campesinato no seio do capitalismo.
Moura descreve o camponês do seguinte modo:
Podemos descrever o camponês de diferentes maneiras. Uma delas é defini-lo
como cultivador de pequenas extensões de terra, às quais controla diretamente
com sua família.(...) Tal controle pode advir do costume ou da propriedade
privada garantida pelo código civil.
Outra forma de definir o camponês, também encontrada nos livros de
ciências sociais, é a de conceituá-lo como cultivador que trabalha a
terra, opondo-o àquele que dirige o empreendimento rural. (...) Assim o
camponês é um produtor que se define por oposição ao não-produtor,
61 OLIVEIRA,1990:8.252
não importando se planta na terra ou se pesca no mar, conceituação
esta defendida por antropólogos.
(...) Ora, o conceito de camponês tem um peso que transcende a
materialidade econômica da troca de mercadorias e sugere
imediatamente características da sua organização social, tais como o
trabalho familiar, os costumes de herança, a tradição religiosa e as
formas de comportamento político. Se por um lado essas características
são recortadas dialeticamente por outras provindas da classe dominante
ou, mais difusamente, do conjunto da sociedade, essa conceituação
permite penetrar abertamente no espaço das superestruturas, da cultura,
do modo de vida. (1988:12/13/69)
É da antropologia que pode-se também adotar o conceito de
campesinidade cunhado por Klaas Woortmann:
Prefiro então não falar de camponeses, mas de uma campesinidade,
entendida como uma qualidade presente em maior ou menor grau em
distintos grupos específicos.
(...)Todo colono, sitiante, posseiro, etc. de carne e osso é ao mesmo
tempo, construtor da história e construído por ela e, portanto, um ser em
contínua transformação. Se a história é produtora de ambigüidades,
cada pessoa é igualmente ambígua, na medida em que a história
individual encerra a história geral da sociedade. Abstratamente, cada
indivíduo ou grupo localiza-se num ponto variável ao longo da linha que
une os dois pólos do contínuo. (1990:13/16)
Por contínuo o autor entende o movimento realizado pelo campesinato,
ao longo do tempo e do espaço, de um pólo de máxima ao de mínima
campesinidade.
Alguns elementos constitutivos da campesinidade seriam, de acordo
com Woortmann62 :
62 Trechos extraídos e adaptados das páginas: 12,19,23, 38, 57, 52, 53 respectivamente.253
A terra não como objeto de trabalho, mas como expressão de uma
moralidade; não em sua exterioridade como fator de produção, mas como algo
pensado e representado no contexto de valorações éticas;
O trânsito entre a ordem econômica para realizar, como fim, a ordem moral;
A presença de categorias comuns às sociedades camponesas em geral,
como a terra, a família e o trabalho. Nas culturas camponesas, não se pensa a
terra sem pensar a família e o trabalho, assim como não se pensa este último
sem pensar as duas primeiras;
A troca entre os homens é a continuidade da troca com a natureza, pois é a
troca de alimentos (que resultam da troca com a terra) e de trabalho (que
constrói a terra e produz os alimentos). O espaço camponês é, portanto, um
espaço moral;
É, todavia, a noção de reciprocidade, mais do que a noção de troca, que
permite entender a campesinidade em sua dimensão mais geral. Isto porque a
reciprocidade não significa, necessariamente, a circulação, a troca, mesmo que
a tenha como paradigma. Reciprocidade não implica, necessariamente, a
circulação de objetos concretos;
O trabalho é, ainda, aquilo que transforma a terra de Deus em patrimônio
da família. Família, trabalho e terra, nessa ordem social, constituem um
ordenamento moral do mundo onde a terra, mais que coisa, é patrimônio, isto
é, pessoa moral;
(...) honra, reciprocidade e hierarquia também não se pensam
separadamente; são conceitos teóricos que se interpenetram na constituição
da ordem moral que chamo de campesinidade.
A etnografia trazida no capítulo anterior sobre a cultura caiçara na Praia
Grande da Cajaíba e Martim de Sá é iluminada pelas contribuições acerca do
campesinato ou da campesinidade, pois estamos diante de famílias
camponesas na Reserva Ecológica da Juatinga.
254
Observando o modo de vida dos moradores, pode-se refletir sobre a
organização da família para o trabalho quando do fabrico do melado e da
farinha e nas horas de turismo – momentos do contínuo, segundo Woortmann,
mais próximo do máximo e do mínimo da campesinidade respectivamente. De
uma economia moral vinculada aos produtos da terra, se aproximam de uma
economia capitalista para retornar à economia moral na volta da pesca,
(melhorada com novo barco e motor), para a reciprocidade realizada na praia.
Analisando sob o prisma trazido por Moura, encontramos a família controlando
e produzindo na sua parcela de terra.
O acesso legítimo à terra, lido nas falas dos moradores, se dá através do
parentesco, geralmente um parente próximo cede um pedaço de sua posse,
para a nova família se instalar. Este processo ocorre ao longo das últimas
gerações na Juatinga. A natureza também é o lugar das trocas, assim como a
terra, e da manifestação do divino. A espiritualidade relacionada com a
natureza é constante no modo de vida camponês dos caiçaras. Quando não
falam sobre o Divino, é necessário observar a prática pois o discurso pode ser
maquiado pelas novas idéias do Evangelho; a prática, porém, insere-se no
costume.
O espaço moral dos caiçaras apresenta-se na relação estabelecida da
comunidade com os seus vários lugares: terreiro, roça, mata, mar. Estes
lugares ganham significado através das histórias contadas pelos mais velhos,
do trabalho realizado em família e das trocas que possibilitam a reciprocidade
entre os parentes.
Brandão , em seu estudo sobre os caipiras da Serra da Mantiqueira,
relaciona o trabalho na terra com o amor. Em Caçutaba, perto de São Luiz do
Paraitinga, Zé Tonhá, um entrevistado seu, disse (1999:63) :
(...) é que eu sou muito amoroso com a terra, eu tenho um grande afeto por ela.
Seu Maneco de Martim de Sá por diversas vezes transmite este amor e
respeito que advêm da observação, do cuidado e da relação de troca que se
estabelece entre ele e a terra – estendida à natureza – e ensina esses valores
éticos e amorosos aos seus filhos e netos. Como exemplo pode ser relembrada
255
a história com o jequitibá mais grosso apresentado pelo avô, a caça que é
cevada e sua admiração com o modo da natureza e o modo como Deus fez as
coisas.
6.2 Populações tradicionais
No contexto das Unidades de Conservação, mais presente que o
conceito de camponeses, está o de populações tradicionais. Marcus
Colchester63, no capítulo Resgatando a natureza: comunidades tradicionais e
áreas protegidas, remonta o histórico do termo e seus significados para
determinadas instituições supranacionais.
Segundo o autor, não há uma definição única aceita acerca de quem
são as comunidades tradicionais ou nativas. Em um sentido literal, este termo
herdou significados do indigenous peoples e implica uma longa resistência
numa determinada área. Ainda segundo Colchester (in DIEGUES, 2000:230), o
Banco Mundial aponta traços de identidade e fragilidade econômica nestas
populações:
O Banco Mundial define como tradicionais os grupos sociais cuja identidade
social e cultural é distinta da sociedade dominante que os torna vulneráveis por
serem desfavorecidos pelos processos de desenvolvimento” (Banco Mundial,
1970).
Arruda e Diegues, na obra Saberes Tradicionais e Biodiversidade no
Brasil, publicação do Ministério do Meio Ambiente e da USP, procuraram
deslindar a confusão que o termo tradicional causa:
No Brasil, há certo consenso sobre o uso do termo ‘populações indígenas’
significando ‘etnia’, ou seja, povos que guardam continuidade histórica e
cultural desde antes da conquista européia da América. No estabelecimento de
áreas indígenas no país, é reconhecido o direito histórico desses povos a seus
63 Diretor do Programa Povos da Floresta do World Rainforest Movement, Inglaterra. Capítulo do livro Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos, coord. Diegues, A. C. (Hucitec:2000).
256
territórios e, desse modo, sua identidade é definida de forma mais clara que
aquela das comunidades tradicionais não-indígenas. Por outro lado, o
reconhecimento dessa identidade coexiste com intenso debate a respeito do
significado dos termos ‘populações nativas’, ‘tribais’, ‘indígenas’ e ‘tradicionais’,
aplicáveis mundialmente; a confusão não é apenas de conceitos mas até de
expressões em diversas línguas. Assim, o termo inglês indigenous, usado em
muitos documentos oficiais (União Internacional para a Conservação da
Natureza – UICN, Banco Mundial), não quer dizer necessariamente ‘indígenas’,
no sentido étnico e tribal. O conceito utilizado de início pelo Banco (Bank’s
tribal peoples policy statement, 1982) para povos nativos – tribal peoples – foi
baseado, em particular, nas condições de vida dos povos indígenas
amazônicos da América Latina e não se aplica a outras regiões do mundo.
Nova definição surgiu com a Diretiva Operacional 4.20, de 1991, também do
Banco Mundial, com características mais amplas, substituindo o termo ‘povos
tribais’ por povos nativos (indigenous). (2001:23)
As populações tradicionais se caracterizariam, segundo esses dois
autores (2001:26):
pela dependência da relação de simbiose entre a natureza, os ciclos e os
recursos naturais renováveis com os quais se constrói um modo de vida;
pelo conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, que se
reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais.
Esse conhecimento é transferido por oralidade de geração em geração;
pela noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz
econômica e socialmente;
pela moradia e ocupação do território por várias gerações. Ainda que
alguns membros individuais possam ter-se deslocado para os centros urbanos
e voltado para a terra de seus antepassados;
pela importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de
mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implicaria uma
relação com o mercado;
pela reduzida acumulação de capital;
pela importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às
relações de parentesco ou compadrio para o exercício das atividades
econômicas, sociais e culturais;
257
pela importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, pesca
e atividades extrativistas;
pela tecnologia utilizada, que é relativamente simples, de impacto limitado
sobre o meio ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho,
sobressaindo o artesanal, cujo produtor e sua família dominam todo o processo
até o produto final;
pelo fraco poder político, que em geral reside nos grupos de poder dos
centros urbanos; e
pela auto-identificação ou identificação por outros de pertencer a uma
cultura distinta.
Estariam no grupo das populações tradicionais não-indígenas, segundo
os dois autores mencionados, os açorianos, babaçueiros, caboclos/ribeirinhos
amazônicos, caiçaras, caipiras/sitiantes, campeiros (pastoreio), jangadeiros,
pantaneiros, pescadores artesanais, praieiros, quilombolas,
sertanejos/vaqueiros, varjeiros (ribeirinhos não-amazônicos).
Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida, também antropólogos,
preferem definir o que é população tradicional por extensão ou seja, ao invés
de enumerarem suas características, enumeram seus membros ou candidatos
a membros e alertam que o termo população tradicional é propositalmente
abrangente, sem que isto implique em confusão conceitual. Essa proposição –
que não é a priori antagônica à de Diegues e Arruda - leva em conta que
categorias são criadas e que sujeitos sociais podem ganhar direitos e afirmar
identidade ao se apropriarem delas, haja vista que os termos ‘índio’, ‘tribal’,
‘nativo’, ‘negro’ entre outros, foram criados nas metrópoles. Essa abordagem
denota um viés político que moverá as populações tidas como tradicionais,
quando se apropriarem do termo (independentemente de apresentarem todas
ou algumas das características elencadas), na defesa de seus direitos,
preconizados inclusive internacionalmente.
Não deixa de ser notável o fato de que com muito freqüência os povos que
começaram habitando essas categorias pela força tenham sido capazes de
apossar-se delas, convertendo termos carregados de preconceito em
bandeiras mobilizadoras. Nesse caso a deportação para um território e
258
conceitual estrangeiro terminou resultando na ocupação e defesa desse
território. (CUNHA & ALMEIDA, 2001:184)
Os autores avançam na discussão das populações tradicionais no
interior das Unidades de Conservação trazendo perguntas - já respondidas
ética e/ou cientificamente por tantas correntes preservacionistas, pela OIT,
ONU, agências nacionais e internacionais preocupadas com o desenvolvimento
e com a sustentabilidade nas áreas protegidas:
As populações tradicionais são conservacionistas? Não necessariamente. As
populações tradicionais conservaram as florestas tropicais e outras paisagens?
Sim. Essas populações irão continuar conservando esses habitats? Isso
depende do pacto. Queremos que as populações tradicionais continuem a
conservar os ambientes que ocupam? Sem dúvida. (CUNHA &
ALMEIDA,199964)
Para ambos, se as populações tradicionais são conservacionistas
naturais, traduzidas por conservacionistas culturais pelos antropólogos; se
encarnam o ‘mito do ecologicamente bom selvagem’ ou não; se são
conservacionistas por ideologia ou na prática – por exemplo, com os interditos
para evitar o desperdício –; se serão incorporadas ou não pelo mercado etc.,
são aspectos a serem superados diante da possibilidade desse pacto.
O mercado é já velho conhecido das comunidades camponesas; os
contatos com os de fora, que poderiam interferir na tradicionalidade, acontecem
não somente com garimpeiros e traficantes, no caso da Amazônia, mas
também com instituições governamentais e não-governamentais.
O problema no fundo não é se as populações tradicionais estão atravessando
mudanças culturais rápidas, ou se estão envolvidas no mercado. Trata-se de
64 A citação de 1999 refere-se a um artigo denominado “Populações Tradicionais e Conservação”, que serviu de subsídio para o GT Povos Indígenas e Populações Tradicionais na “Avaliação e Identificação de ações prioritárias para a conservação, utilização sustentável e repartição dos benefícios da Biodiversidade da Amazônia Brasileira” do Programa Nacional da Diversidade Biológica, realizado em Macapá em setembro de 1999. É uma cópia mimeo.
259
saber se elas se qualificam como parceiros para o desenvolvimento de áreas e
conservação. (CUNHA & ALMEIDA,1999)
Para Cunha e Almeida resta saber se tais comunidades aceitarão ser os
produtores de um novo produto, de quarta geração, que se diferencia pelo seu
valor de existência, como a biodiversidade, paisagens naturais preservadas e
por sua suposta característica de ecologicamente sadio e socialmente justo. A
contrapartida dada pela sociedade seria a aprovação da permanência desses
grupos nas Unidades de Conservação. Este seria o pacto65.
Segundo eles, isso criaria uma solução para os extremos do
dogmatismo na esfera ambiental: conservacionismo autoritário versus
populismo socioambientalista, ambos inviáveis. O Estado seria responsável
pelo pagamento às comunidades, no sentido contrário das forças do mercado,
pelos serviços prestados de conservação.
As populações tradicionais seriam aquelas que se comprometeriam com
os preceitos do uso sustentável de recursos naturais e estariam dispostas a
serem o que se espera delas:
O que se supõe das populações tradicionais é um passado não predatório de
uso de recursos naturais; o que se espera delas é que levem um modo de vida
coerente com a conservação da diversidade biológica. Mas pode o passado
garantir o futuro? O passado assegura que a coisa é possível, o futuro é
garantido pelo pacto. Esse pacto é materializado em leis e dispositivos a ela
associados, como concessões de uso e planos de uso. ( id.)
Há um aspecto trazido por Cunha e Almeida que diverge sobremaneira
tanto de Diegues e Arruda, quanto da concepção defendida aqui de
campesinato e campesinidade, trata-se da idéia de desessencializar a relação
que as comunidades tradicionais têm com a terra e com a natureza na
realização do pacto, como delineado por eles. As populações tradicionais
65 A discussão sobre o pacto será retomada no capítulo 7, referente à reclassificação da Reserva da Juatinga.
260
seriam portanto aquelas que, talvez, renunciariam a caraterísticas tão
intrínsecas do campesinato como a relação e inserção no mercado dominante
na nossa sociedade e seu retorno à economia moral; os conhecimentos
tradicionais; a relevância da oralidade do grupo; a importância do mundo
simbólico; as relações de compadrio; a reciprocidade com os da comunidade e
com a natureza.
O retorno que se espera de povos tradicionais seria a reprodução de ambientes
naturais e de sua biodiversidade. Trata-se de bens nos quais não há etiquetas
de preço, mas pelos quais há demandas. Reconhecer que as populações
tradicionais têm a capacidade para oferecer esse produto é a conseqüência
natural de desessencializar a sua relação para com o ambiente. Há também
outras razões para remunerar as populações tradicionais, quer através do
mercado, quer através do Estado, pelos serviços que prestam. (CUNHA &
ALMEIDA, 1999) (grifo meu)
Eles defendem a permanência das populações tradicionais ou
neotradicionais pois:
Há a questão da justiça. Essas populações vivem nesses territórios, e possuem
direitos à terra e a seus recursos.
Há o fato de que, com a participação das populações tradicionais na
conservação de recursos, haverá muito mais áreas preservadas. No caso
brasileiro, ao lado da conservação realizada nas unidades de conservação de
uso indireto, as áreas ocupadas por grupos indígenas e por populações
tradicionais ampliam consideravelmente as áreas conservadas.
Economicamente, é mais viável e também politicamente mais prudente
reconhecer populações tradicionais como guardiões de ambientes, em lugar de
pagar por fiscais de floresta.
Finalmente, populações tradicionais têm interesses na conservação, e têm se
manifestado em muitos casos em favor de estratégias de conservação. Isso
porque a conservação de recursos naturais é diretamente importante para sua
261
sobrevivência, e indiretamente importante como base de sua legitimidade face
à nação. ( id. p. )
6.3 As leis e as populações tradicionais
No plano internacional há convenções e outros dispositivos legais que
preconizam a proteção tanto da diversidade biológica como da
sociodiversidade e do conhecimento das populações tradicionais – ainda que o
debate sobre populações tradicionais continue.
Neste subcapítulo serão citadas as convenções da OIT, a Convenção
sobre Diversidade Biológica - CDB -, o Plano de ação de Durban e o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação - SNUC - por tratarem dos direitos das
populações tradicionais que fundamentarão a proposta da reclassificação da
Reserva Ecológica da Juatinga, discutida no capítulo 7.
Mencionadas por Colchester, em seu referido artigo, há as convenções
107 e 169 da OIT que tratam dos povos tradicionais dando ênfase à noção de
resistência na área anterior à chegada de colonizadores ou ao estabelecimento
de fronteiras. Uma característica importante dos documentos promulgados pela
OIT é o princípio da autodeterminação, como critério fundamental para a
aplicação das convenções.
O que a maioria dos povos nativos (indigenous) demanda é o direito à
autodeterminação de acordo com a Convenção Internacional de Direitos Civis e
Políticos. A última Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, desenvolvida
pela Comissão dos Direitos Humanos da ONU, reconhece aos povos nativos
(indigenous) tais direitos. A lei internacional, especialmente as convenções da
OIT 107 e 169, claramente aceita o direito dos povos nativos ao uso e
propriedade, coletiva ou individual, de suas terras tradicionais. A lei estabelece
o princípio de que o título de propriedade nativa se fundamenta na posse
imemorial e não depende de nenhum ato ou documento (Bennet,1978). A
convenção da OIT também estabelece firmemente que os povos nativos não
262
podem ser transferidos de suas terras, com exceção dos casos de segurança
nacional, desenvolvimento econômico ou para a própria saúde.
A convenção 169 nota a necessidade de respeitar e salvaguardar os costumes
e instituições dos povos nativos e obriga os Estados a consultar esses povos
por meio de suas próprias instituições. A legislação internacional em relação
aos povos nativos é única em muitos aspectos, sendo talvez o mais importante
reconhecimento de seus direitos coletivos.” (COLCHESTER, in: DIEGUES,
2000:230)
O Brasil é signatário da CDB desde a Eco–92, ratificou seu compromisso
em 1994 através do decreto nº 2 do Senado Federal e, em 1998, através do
decreto presidencial nº 2519, passou a entrar em vigor.
As principais contribuições que esta Convenção apresenta, encontram-
se no artigo 8 (j), Conservação in situ e no artigo 10 (c), Utilização Sustentável
de Componentes da Diversidade Biológica:
Cada Parte Contratante deve, na medida do possível e conforme o caso:
Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o
conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações
indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à
utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla
aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse
conhecimento, inovações, práticas; e encorajar a repartição eqüitativa dos
benefícios. (8j)
Proteger e encorajar a utilização costumeira de recursos biológicos de acordo
com práticas culturais tradicionais compatíveis com as exigências de
conservação ou utilização sustentável. (10c)
Já o Plano de ação de Durban, de 2003, apresenta vários Resultados,
Metas e ações, entre eles destaca-se:
Resultado 5:
Los derechos de los pueblos indígenas, pueblos móbiles y comunidades
locales se verán reconocidos y garantizados en relación com los recursos
naturales y la conservación de la diversidad biológica.
263
Meta clave número 8: todas las áreas protegidas existentes y futuras serán
manejadas y establecidas en plena confomidad com los derechos de los
pueblos indígenas, pueblos móbiles y comunidades locales.
Meta clave 9: los pueblos indígenas y las comunidades locales estarán
representados en la gestión de las áreas protegidas por representantes electos,
de forma proporcional a sus derechos e intereses.
Meta clave 10: se estabecerán e aplicarán, para 2010, mecanismos
participativos para la restituición de las tierras y territórios tradicionales de
pueblos indígenas que fueron incorporados en áreas protegidas sin su
consentimiento libre y conocimiento de causa.
Estes três instrumentos, reconhecidos internacionalmente, pregam o uso
da terra de forma tradicional, a preservação do conhecimento e do modo de
vida fundado no costume - desde que em consonância com a conservação da
diversidade biológica -, reconhecem que a propriedade para esses grupos se
fundamenta na posse imemorial e que, além de não deverem ser deslocados
de suas terras, terão direitos à conservação e à diversidade biológica
garantidos, bem como terão participação na gestão das áreas protegidas.
O SNUC, conforme mencionado, é a lei nacional que dispõe sobre as
Unidades de Conservação. No seu Capítulo I, intitulado Das Disposições
Preliminares, dezenove termos são explicados, entre eles: diversidade
biológica, conservação da natureza, plano de manejo, extrativismo e
conservação in situ.
Somente um termo foi vetado, cujo texto original e a explicação do veto
são transcritos a seguir:
Inciso XV do art. 2º
XV - população tradicional: grupos humanos culturalmente diferenciados,
vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema,
historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do
meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma
sustentável.
Razões do veto
264
O conteúdo da disposição é tão abrangente que nela, com pouco esforço de
imaginação, caberia toda a população do Brasil.
De fato, determinados grupos humanos, apenas por habitarem
continuadamente em um mesmo ecossistema, não podem ser definidos como
população tradicional, para os fins do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza. O conceito de ecossistema não se presta para
delimitar espaços para a concessão de benefícios, assim como o número de
gerações não deve ser considerado para definir se a população é tradicional
ou não, haja vista não trazer consigo, necessariamente, a noção de tempo de
permanência em determinado local, caso contrário, o conceito de populações
tradicionais se ampliaria de tal forma que alcançaria, praticamente, toda a
população rural de baixa renda, impossibilitando a proteção especial que se
pretende dar às populações verdadeiramente tradicionais.
Sugerimos, por essa razão, o veto ao art. 2o, inciso XV, por contrariar o
interesse público."
O SNUC traz em seu bojo uma grande contradição: a definição de
populações tradicionais foi vetada porém, o termo é utilizado inúmeras vezes
afinal a sua presença já é notória e reconhecida nos documentos
internacionais.
Paulo Affonso Leme Machado, autor da obra Direito Ambiental
Brasileiro, busca o sentido da expressão nos artigos do SNUC.
A lei não definiu o que são ’populações tradicionais’. Pode-se extrair do art.17,
§2º, uma orientação para uma definição. A população tradicional é a população
que exista numa área antes da criação da unidade de conservação. Uma das
acepções aceitas para o termo ’tradição’, é daquilo (bem, idéias etc.) que se
transmite de uma geração para outra. Assim, a população tradicional seria
aquela que estaria na área, desde pelo menos seus pais. A tradição exigiria a
prova dos ascendentes ligados à área ou ali presentes. Conceitua-se, também,
população tradicional como ’aquela que opta por adotar ou concertar uma série
de práticas que são pouco invasivas, que são pouco destruidoras, ou que faz
opção por um certo tipo de uso de recursos'”66. Caso contrário, pessoas 66 Na nota de rodapé o autor, após as aspas, traz a referência de sua citação: Manuela Carneiro da Cunha, ‘Iluminismo tropical’, entrevista a Cláudio Ângelo, Folha de São Paulo 14.7.2002, Caderno
265
recentemente chegadas de fora, ou forasteiros, isto é, populações adventícias
estariam apresentando-se falsamente como populações tradicionais. Se a farsa
fosse aceita, fomentar-se-ia a ’indústria das indenizações’. (2003:778/779)
Na interpretação de Machado, o SNUC, com seu posicionamento sobre
as populações tradicionais, busca valorizar tanto o ser humano quanto a
natureza não admitindo que nenhum dos dois seja menosprezado. O autor leva
em conta para essa afirmação o artigo 42 do SNUC em que os direitos das
populações tradicionais que vivem em áreas de uso indireto, que não admite
moradores, são assegurados. As bases deste artigo 42 serão discutidas no
próximo capítulo quando será tratada a categoria parque.
Dessa forma, podemos encontrar nas determinações internacionais
diretrizes para o tratamento das comunidades ou populações tradicionais; nos
trabalhos de antropólogos, um debate sobre a sua definição mas, na lei brasileira,
ainda não temos uma determinação explícita. O termo apresenta polissemia ainda
não contornada, o que enriquece o debate. Para fins legais, porém, essa
problemática ainda é um entrave à proteção dessas comunidades. Na ausência
de um conceito mais consensual, os órgãos que legislam sobre as unidades de
conservação encontram brechas para não reconhecê-los como sujeitos de
direitos.
A Diretoria do IEF-RJ, por exemplo, no governo Garotinho, chegou a
afirmar que os caiçaras não existem mais pois se tornaram evangélicos e
trabalham com o turismo. Diante de um Estado patrimonialista, arraigado ao
centralismo e ambientalmente próximo do dogma, como colocado por Cunha e
Almeida, conservacionista autoritário, a ausência de uma legislação brasileira que
dê mais contorno à expressão atrasa a aplicação das Convenções Internacionais.
Além do princípio da autodeterminação, a OIT reconhece a problemática fundiária
dessas populações afirmando, conforme já transcrito, que (...) o título de
propriedade nativa se fundamenta na posse imemorial e não depende de nenhum
ato ou documento (op. cit).
Esta pesquisa reconhece a campesinidade dos caiçaras da Juatinga;
entende-os como camponeses na concepção de Oliveira, Moura, Brandão e
Mais!, pp.8-10.266
Martins; aproxima-se da concepção de populações tradicionais de Arruda e
Diegues e, compartilha com as Convenções Internacionais a preocupação com a
proteção dos direitos e do reconhecimento de um saber próprio das comunidades
que vivem nos ecossistemas ricos em diversidade biológica, com um modo de
vida não muito impactante.
Há um diálogo possível com as concepções de Manuela Carneiro Cunha
e Mauro Almeida porém partindo de uma outra premissa: o reconhecimento de
diferentes matrizes de racionalidade para a formação do pacto.
Segundo Carlos Walter Porto Gonçalves:
É com essas outras matrizes de racionalidade, indígeno-cabocla, que hoje
haveremos de dialogar se quisermos que nosso planeta continue habitável
posto que contribuem com suas culturas para a produção de serviços
ambientais- água, biodiversidade, seqüestro de carbono, sem o que nenhuma
civilização é possível, mesmo aquela científica e tecnicamente mais avançada
e com a qual e contra a qual haveremos de dialogar. (in: SORRENTINO, coord.
2001:138)
Ainda de acordo com Carlos Walter, somos nós que confundimos o
saber com o saber falar. As populações tradicionais manifestam o seu saber no
fazer. O diálogo entre as diferente matrizes de racionalidade é um passo para o
reconhecimento da diferença na igualdade e somente assim acredito que tal
pacto possa ser formulado.
267
7. A RECLASSIFICAÇÃO DA
RESERVA ECOLÓGICA DA
JUATINGA
Não tenho saber para
esta justiça.
Não cabe no meu
entendimento.
(Luiz da Praia Grande)
268
As comunidades caiçaras da Reserva Ecológica da Juatinga
enfrentam, desde 2000, mais um desafio/lei colocado pelo Estado: o SNUC,
que tramitou por anos como projeto de lei na Câmara Legislativa até ser
aprovado em julho do referido ano. É composto por 7 capítulos com 60 artigos
que regulamentam em âmbito federal as Unidades de Conservação.
O debate, sempre presente entre as várias correntes do movimento
ambientalista, encontrou palco na arena política para acontecer durante os
anos de trâmite. Vários artigos apontados como de vanguarda acabaram
vetados como aqueles que tratavam das comunidades tradicionais e os que
dispunham sobre a permanência de moradores em parques. Algumas
categorias de UCs existentes também no Projeto de Lei foram suprimidas
como a Reserva Cultural-Ecológica. Para muitos, estas foram as grandes
derrotas da corrente chamada ecologia social ou ecologia dos movimentos
sociais67.
Uma lei federal para regulamentar a política nacional das Unidades de
Conservação visa dar organicidade às diretrizes e padronizar as categorias
para um melhor gerenciamento. Vale lembrar que cada vez que categorias
sociais são criadas, os novos sujeitos sociais podem incorporar discursos e
encontrar espaço para lutar pelos seus direitos, como explicitado por Cunha e
Almeida. Como no Brasil mais de 80% das UCs têm moradores no seu interior,
podemos estar presenciando a criação de uma nova categoria social: as
populações tradicionais das UCs. Segundo Marques68, seriam os refugiados
ambientais. Tal termo deve-se ao fato das políticas ambientais brasileiras
refletirem o cenário mundial e um de seus principais paradigmas: as áreas
naturais sem moradores - romântica separação sociedade/natureza em que
esta última destinar-se-á ao fruir da vida moderna, por breves lapsos de tempo:
67 Ver ARRUDA e DIEGUES (org.). Saberes Tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: MMA; São Paulo: USP, 2001.68 Prof. Dr. Geraldo Marques no curso Etnoconservação da Natureza, realizado em maio de 2003 em Iguape/SP.
269
tempo do turismo, da pesquisa, da educação e o tempo dos citadinos sem,
porém, os hábitos urbanos e suas mazelas.
A lei SNUC é um espelho, como entendido por Boaventura (op.cit) que
reflete dois processos históricos: o paradigma da moderna sociedade ocidental
e o capitalismo. Sociedade esta que alcançou limites inimagináveis de bem-
estar aliado a uma das maiores desigualdades de que se tem notícia. A criação
das Unidades de Conservação não é uma contradição dentro da lógica
capitalista, é uma parcela do território destinada ao lazer das sociedades
urbanas e a apropriação da ciência moderna, ela também tem um valor de
troca estipulado pelo mercado e que, como tratado por Cunha e Almeida (op.
cit.), produz os valores de existência imprescindíveis para toda a sociedade
tornado-se assim, necessária a sua separação para a preservação.
O dualismo mais crasso na forma de viver essa modernidade, na sua
vertente ambiental, também está presente nos dois grandes grupos de UCs
presentes no SNUC: o grupo das Unidades de Proteção Integral e o grupo das
Unidades de Uso Sustentável.
Art.7º
§ 1o O objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é preservar a
natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais,
com exceção dos casos previstos nesta Lei.
§ 2o O objetivo básico das Unidades de Uso Sustentável é compatibilizar a
conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos
naturais.
No primeiro grupo encontram-se cinco categorias de UCs: estação
ecológica, reserva biológica, parque nacional, monumento natural e refúgio
da vida silvestre. Neste grupo, a presença de moradores é regida pelo art. 42
do SNUC regulamentado pelo art. 35 do decreto 4340/02.
Fazem parte do grupo de Uso Sustentável as categorias: área de
proteção ambiental (APA), área de relevante interesse ecológico (ARIE),
floresta nacional (FLONA), reserva extrativista (RESEX), reserva de fauna,
reserva de desenvolvimento sustentável (RDS) e reserva particular do
patrimônio natural.
270
Há certas categorias de UCs, sobretudo as de âmbito estadual, que não
foram contempladas no SNUC. Para se criar um só corpo jurídico o art. 55
determina que:
As unidades de conservação e áreas protegidas criadas com base nas
legislações anteriores e que não pertençam às categorias previstas nesta Lei
serão reavaliadas, no todo ou em parte, no prazo de até dois anos, com o
objetivo de definir sua destinação com base na categoria e função para as
quais foram criadas, conforme o disposto no regulamento desta Lei.
Regulamentando este artigo, o Decreto 4340/02 dispõe:
Capítulo X
Da reavaliação de Unidade de Conservação de Categoria não prevista no
Sistema
Art. 40. A reavaliação de unidade de conservação prevista no art. 55 da Lei no
9.985, de 2000, será feita mediante ato normativo do mesmo nível hierárquico
que a criou.
Parágrafo único. O ato normativo de reavaliação será proposto pelo órgão
executor.
A categoria Reserva Ecológica não foi contemplada no SNUC inserindo-
se assim no grupo das UCs a serem reavaliadas para serem reclassificadas
daí a afirmação inicial do capítulo de que mais um desafio/lei está posto para
as comunidades da Reserva Ecológica da Juatinga.
A discussão sobre a reclassificação recoloca na pauta do debate
importantes questões sobre as Unidades de Conservação, como:
a) a questão fundiária;
b) as indenizações que nunca ocorreram;
c) a participação dos moradores na gestão de seus territórios;
d) o modelo de relação com natureza a ser adotado;
e) a valorização ou não do saber tradicional e a busca pelo consenso,
através do diálogo;
271
f) a centralização do poder.
As leis e os decretos que serão aqui abordados encontram-se, na íntegra,
no Anexo “Leis”. São basicamente seis, sendo os quatro primeiros de âmbito
estadual:
Lei 1859/91 - Autoriza o Poder Executivo a Criar a Reserva
Ecológica da Juatinga;
Decreto 17981/02 - Cria a Reserva Ecológica da Juatinga, no
município de Paraty, e dá outras providências;
Lei 2393/95 - Dispõe sobre a permanência de populações nativas
residentes em Unidades de Conservação do Estado do Rio de Janeiro;
Lei 3443/00 - Regulamenta o artigo 27 das disposições transitórias
e os artigos 261 e 271 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro,
estabelece a criação dos Conselhos Gestores para as Unidades de
Conservação Estaduais, e dá outras providências;
Lei 9985/00 (SNUC) - Sistema Nacional das Unidades de
Conservação;
Decreto 4340/02 - Regulamenta artigos da lei nº 9985/ de julho de
2000 que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
natureza – SNUC, e dá outras providências.
7.1 As categorias discutidas
As principais categorias discutidas69 até o momento são: parque,
reserva de desenvolvimento sustentável, APA e reserva extrativista. Para uma
melhor compreensão dos interesses colocados pelos diversos atores
recomenda-se atenção durante a leitura70 aos objetivos de cada categoria; à
propriedade da terra (para o encaminhamento da questão fundiária, se as
terras serão de domínio público, privado ou será um mosaico); ao grupo na
qual está inserida (se de uso sustentável ou proteção integral, para a
69 Ainda neste capítulo será relatado quem são os principais atores envolvidos na discussão e o porquê destas quatro categorias.70 As leis estarão no Anexo "Leis", para consulta. Destacarei somente as partes que julguei necessárias para caracterizá-las.
272
compreensão das escolas de pensamento no movimento ecológico); a gestão
do território via conselho gestor (centralização ou não do poder). A análise das
categorias é fundamental para o entendimento dos diversos interesses
envolvidos na reclassificação da Reserva Ecológica da Juatinga.
7.1.1 Parque
O SNUC define Parque como:
Art. 11. O Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação de
ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica,
possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de
atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato
com a natureza e de turismo ecológico.
§ 1o O Parque Nacional é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas
particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas, de acordo com o
que dispõe a lei.
§ 2o A visitação pública está sujeita às normas e restrições estabelecidas no
Plano de Manejo da unidade, às normas estabelecidas pelo órgão responsável
por sua administração, e àquelas previstas em regulamento.
§ 3o A pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável
pela administração da unidade e está sujeita às condições e restrições por
este estabelecidas, bem como àquelas previstas em regulamento.
§ 4o As unidades dessa categoria, quando criadas pelo Estado ou Município,
serão denominadas, respectivamente, Parque Estadual e Parque Natural
Municipal.
As desapropriações - e a demora delas -, estão regulamentadas no
famigerado art.42:
As populações tradicionais residentes em unidades de conservação nas quais
sua permanência não seja permitida serão indenizadas ou compensadas pelas
273
benfeitorias existentes e devidamente realocadas pelo Poder Público, em local
e condições acordados entre as partes.
§ 1o O Poder Público, por meio do órgão competente, priorizará o
reassentamento das populações tradicionais a serem realocadas.
§ 2o Até que seja possível efetuar o reassentamento de que trata este artigo,
serão estabelecidas normas e ações específicas destinadas a compatibilizar a
presença das populações tradicionais residentes com os objetivos da unidade,
sem prejuízo dos modos de vida, das fontes de subsistência e dos locais de
moradia destas populações, assegurando-se a sua participação na elaboração
das referidas normas e ações.
§ 3o Na hipótese prevista no § 2o, as normas regulando o prazo de
permanência e suas condições serão estabelecidas em regulamento.
O art. 39 do Decreto 4340/02, regulamentação do art.42 do SNUC,
preconiza:
Art. 39. Enquanto não forem reassentadas, as condições de permanência das
populações tradicionais em Unidade de Conservação de Proteção Integral
serão reguladas por termo de compromisso, negociado entre o órgão executor
e as populações, ouvido o conselho da unidade de conservação.
§ 1o O termo de compromisso deve indicar as áreas ocupadas, as limitações
necessárias para assegurar a conservação da natureza e os deveres do órgão
executor referentes ao processo indenizatório, assegurados o acesso das
populações às suas fontes de subsistência e a conservação dos seus modos
de vida.
§ 2o O termo de compromisso será assinado pelo órgão executor e pelo
representante de cada família, assistido, quando couber, pela comunidade
rural ou associação legalmente constituída.
§ 3o O termo de compromisso será assinado no prazo máximo de um ano após
a criação da unidade de conservação e, no caso de unidade já criada, no
prazo máximo de dois anos contado da publicação deste Decreto.
§ 4o O prazo e as condições para o reassentamento das populações
tradicionais estarão definidos no termo de compromisso.
274
O parque objetiva a preservação dos ecossistemas para a realização de
atividades de pesquisa, educação ambiental e turismo ecológico. As terras
serão de domínio público ou seja, os proprietários das propriedades privadas
em seu interior deverão ser indenizados. É a única categoria discutida que
encontra-se no grupo de proteção integral, admite somente uso indireto (como
as atividades citadas em seus objetivos) e tolera a presença dos moradores
por meio de um mecanismo legal intitulado termo de compromisso segundo o
qual a comunidade deverá ser envolvida em projetos de conservação e terá
seus meios de subsistência garantidos até o momento do reassentamento. A
participação das comunidades na gestão territorial dar-se-á através Conselho
Consultivo enquanto não forem reassentadas.
Para a Juatinga, seria como afirmar aos moradores que é interessante
contar com a ineficiência e inoperância do Estado pois, enquanto não houver -
por vários motivos distintos como lobby, descaso, orçamento - o
reassentamento, eles continuarão no seu lugar submetidos forçosamente a um
termo de compromisso. O conflito fundiário seria resolvido uma vez que as
propriedades privadas seriam desapropriadas. Porém, é já sabido que os
custos para a implantação de uma dessas unidade são altíssimos pois
indenizações desse tipo no Brasil pouco ocorreram de fato, e não há indícios
de que ocorrerão. O oneroso modelo importado de natureza sem sociedade
prevaleceria, a Reserva seria mais um parque de papel e as 360 famílias que
moram hoje na região mudariam-se para as periferias de Paraty. O modelo
parque tem se mostrado inadequado à realidade de vários países do Sul, que
apresentam grande diversidade biológica aliada à diversidade social.
Os que defendem esta proposta, mas não vislumbram a separação
sociedade/natureza, levam em conta a imediata resolução do conflito fundiário
na Juatinga e que o reassentamento nunca ocorrerá devido à falta de um lugar
que abrigue todas as famílias, nas condições estabelecidas pelo SNUC, e à
falta de estrutura no aparelho do Estado.
Há outras leituras possíveis, e necessárias, feitas por pesquisadores e
pela comunidade que precisam lidar com a realidade parque. Em São Paulo,
275
no Parque Estadual da Ilha do Cardoso - PEIC -71, as lideranças conseguiram
criar um Conselho Gestor para garantir seus direitos previstos no parágrafo 2º
do art.42. Eles devem acreditar que o Estado nunca realizará as
desapropriações e realocações. Quanto mais sedimentarem ali seus direitos e
provarem a possibilidade da convivência sociedade/natureza para a sociedade
civil moderna e para os ambientalistas preservacionistas (há concepções que
demoram às vezes uma geração para mudar), mais dificilmente as
comunidades serão removidas da área.
7.1.2 APA
71 Há uma tese de doutorado defendida no DG por Carmem Lúcia Rodrigues intitulada
Limites do consenso: territórios polissêmicos na Mata Atlântica e a gestão ambiental participativa em que a autora relata a mobilização das comunidades no PEIC e o projeto
de uma gestão mais democrática.
276
A categoria APA já foi comentada no capítulo 4, quando a APA do
Cairuçu foi tratada, e a transcrição do SNUC encontra-se presente no item
4.1.1. Para efeito de comparação, destacam-se aqui somente alguns aspectos:
a APA objetiva a proteção da diversidade biológica, disciplina o processo de
ocupação e assegura a sustentabilidade dos recursos naturais em áreas com
ocupação humana dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais
especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das
populações humanas. A APA é constituída por terras públicas ou privadas, não
está previsto nenhum processo de indenização ou reassentamento. Insere-se
no grupo das categorias de uso sustentável e sua gestão far-se-á através de
um Conselho Deliberativo em que a sociedade civil terá paridade com os
órgãos do Estado.
Os maiores defensores da categoria APA para a Juatinga não
encontram no conflito fundiário da Reserva um problema crônico, acreditam
que a luta pela terra não deva ser politizada, deva ser tratada no Fórum,
percorrendo os meandros que as ações de reintegração posse, demarcatórias
ou de uso capião têm: as mais de 100 famílias caiçaras, sob o jugo de
proprietários, devem contratar seus advogados, ou uma ação cível pública
deve ser aberta para a solução dos conflitos fundiários. Argumentam ainda que
esta categoria é a mais democrática e que a presença humana não é sequer
questionada, novos modelos de sustentabilidade poderiam ocorrer.
7.1.3 Reserva de Desenvolvimento Sustentável
Sobre Reserva de Desenvolvimento Sustentável, o SNUC dispõe:
Art. 20. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que
abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas
sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de
gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um
papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade
biológica.
277
§ 1o A Reserva de Desenvolvimento Sustentável tem como objetivo básico
preservar a natureza e, ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios
necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da qualidade de vida
e exploração dos recursos naturais das populações tradicionais, bem como
valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do
ambiente, desenvolvido por estas populações.
§ 2o A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é de domínio público, sendo
que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser, quando
necessário, desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.
§ 3o O uso das áreas ocupadas pelas populações tradicionais será regulado de
acordo com o disposto no art. 23 desta Lei e em regulamentação específica.
§ 4o A Reserva de Desenvolvimento Sustentável será gerida por um Conselho
Deliberativo, presidido pelo órgão responsável por sua administração e
constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da
sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área, conforme se
dispuser em regulamento e no ato de criação da unidade.
§ 5o As atividades desenvolvidas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável
obedecerão às seguintes condições:
I - é permitida e incentivada a visitação pública, desde que compatível com os
interesses locais e de acordo com o disposto no Plano de Manejo da área;
II - é permitida e incentivada a pesquisa científica voltada à conservação da
natureza, à melhor relação das populações residentes com seu meio e à
educação ambiental, sujeitando-se à prévia autorização do órgão responsável
pela administração da unidade, às condições e restrições por este estabelecidas
e às normas previstas em regulamento;
III - deve ser sempre considerado o equilíbrio dinâmico entre o tamanho da
população e a conservação; e
IV - é admitida a exploração de componentes dos ecossistemas naturais em
regime de manejo sustentável e a substituição da cobertura vegetal por
espécies cultiváveis, desde que sujeitas ao zoneamento, às limitações legais e
ao Plano de Manejo da área.
§ 6o O Plano de Manejo da Reserva de Desenvolvimento Sustentável definirá
as zonas de proteção integral, de uso sustentável e de amortecimento e
corredores ecológicos, e será aprovado pelo Conselho Deliberativo da
unidade.
278
A RDS é uma categoria de UC que surgiu na Amazônia brasileira
reconhecendo a sustentabilidade praticada ao longo das gerações pelas
populações tradicionais bem como a importância da sua permanência para a
proteção da natureza e manutenção da diversidade biológica. Seus objetivos
contemplam o reconhecimento da sociodiversidade presente no campo
brasileiro, a preservação e melhoria tanto do modo de vida como da
exploração dos recursos naturais, da forma como praticada pelas populações
tradicionais através do manejo tradicional.
Terras de domínio público e particulares poderão formar um mosaico
nesta categoria. A problemática do mosaico fundiário concentra-se na grande
brecha que esse artigo apresenta: (...) sendo que as áreas particulares
incluídas em seus limites devem ser, quando necessário, desapropriadas. No
Decreto 4340/02 que regulamenta vários artigos do SNUC não há menção a
este quando necessário. Alguns defensores desta categoria, conhecedores da
realidade fundiária da Juatinga, alegam que esse quando necessário poderá
ser aplicado nos casos de conflito via uma ação cível pública pois não
aparecem conflitos entre os proprietários e os moradores em todas as áreas
da Juatinga portanto nem todos deveriam ser punidos por serem proprietários.
Para a regulação das atividades dos proprietários argumentam que há
sempre a possibilidade das ações de uso de solo serem regradas pelo Plano
de Manejo e assim os proprietários continuarem sem muitas opções de
construções.
Pertencente ao grupo das Unidades de Uso Sustentável, esta categoria
prevê um Conselho Deliberativo. A sociedade civil participa, ao menos em
tese, das decisões e é de sua competência aprovar ou não o Plano de Manejo,
que toda UC deve ter, bem como seu zoneamento.
A brecha legislativa em relação à propriedade da terra pode impulsionar
uma série de processos e especulações, e os lugares que mais sofrem as
ações de reintegrações de posse continuariam submetidos aos proprietários.
Todas essas formulações são especulações, pois dependeriam de articulações
políticas e da leitura dos advogados, desde o Ministério Público - MP - até os
contratados especialistas em legislação ambiental. Tendo em vista os
encaminhamentos dos processos de reintegração de posse relatados e as
279
justificativas do MP para deferir ou não as liminares de despejo talvez seja
prudente não esperar a regulamentação deste dispositivo colocado na forma
condicional.
Esta categoria é ideal para lugares em que a questão fundiária não é tão
complexa quanto na Juatinga (ou no restante de boa parte do território
brasileiro). Há uma preocupação com o bem-estar e com a preservação dos
conhecimentos e do manejo tradicional sem deificar os moradores ou congelar
a cultura, parece que a possibilidade do diálogo entre as diferentes matrizes de
racionalidade (Gonçalves, op.cit) está colocada.
7.1.4 Reserva Extrativista
O artigo 18 do SNUC dispõe sobre reserva extrativista – RESEX:
A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas
tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e,
complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de
pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a
cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos
naturais da unidade.
§ 1o A Reserva Extrativista é de domínio público, com uso concedido às
populações extrativistas tradicionais conforme o disposto no art. 23 desta Lei e
em regulamentação específica, sendo que as áreas particulares incluídas em
seus limites devem ser desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.
§ 2o A Reserva Extrativista será gerida por um Conselho Deliberativo, presidido
pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes
de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações
tradicionais residentes na área, conforme se dispuser em regulamento e no ato
de criação da unidade.
§ 3o A visitação pública é permitida, desde que compatível com os interesses
locais e de acordo com o disposto no Plano de Manejo da área.
§ 4o A pesquisa científica é permitida e incentivada, sujeitando-se à prévia
autorização do órgão responsável pela administração da unidade, às
280
condições e restrições por este estabelecidas e às normas previstas em
regulamento.
§ 5o O Plano de Manejo da unidade será aprovado pelo seu Conselho
Deliberativo.
§ 6o São proibidas a exploração de recursos minerais e a caça amadorística ou
profissional.
§ 7o A exploração comercial de recursos madeireiros só será admitida em
bases sustentáveis e em situações especiais e complementares às demais
atividades desenvolvidas na Reserva Extrativista, conforme o disposto em
regulamento e no Plano de Manejo da unidade.
O modo de vida calcado no extrativismo, complementado pela
agricultura, é a base de vida das populações tradicionais residentes neste tipo
de categoria cujos principais objetivos são: proteger os meios de vida e de
cultura e assegurar os usos sustentáveis dos recursos naturais. Pertence ao
grupo de unidades de conservação de uso sustentável, assim como a RDS e a
APA. As populações tradicionais participarão do Conselho Deliberativo num
exercício de cidadania e participação juntamente com outros membros da
sociedade civil como Universidade, ONGs e representantes do Poder Público.
O Conselho tem como prerrogativa deliberar sobre o Plano de Manejo, o que
pode significar que a sua participação na formulação do mesmo é essencial,
pois de outra forma não legitimará propostas externas, vindas quer seja do
terceiro setor, quer seja do Poder Público.
A grande diferença entre as RESEX e a RDS encontra-se na relação
com a terra: enquanto na RDS um mosaico de terras é possível, na RESEX a
terra será de domínio público. Os moradores receberão a concessão do direito
real de uso estabelecida pelo art. 23 do SNUC:
A posse e o uso das áreas ocupadas pelas populações tradicionais nas
Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável serão
regulados por contrato, conforme se dispuser no regulamento desta Lei.
§ 1o As populações de que trata este artigo obrigam-se a participar da
preservação, recuperação, defesa e manutenção da unidade de conservação.
§ 2o O uso dos recursos naturais pelas populações de que trata este artigo
obedecerá às seguintes normas:281
I - proibição do uso de espécies localmente ameaçadas de extinção ou de
práticas que danifiquem os seus habitats;
II - proibição de práticas ou atividades que impeçam a regeneração natural dos
ecossistemas;
III - demais normas estabelecidas na legislação, no Plano de Manejo da
unidade de conservação e no contrato de concessão de direito real de uso.
7.2 A concessão do direito real de uso
A concessão do direito real de uso é o instrumento jurídico que
estabelece a permanência de populações em terras de domínio público, que
nunca podem ser usucapidas, tanto em áreas urbanas como rurais. O SNUC
escolheu este instrumento para fixar as populações tradicionais em suas
terras, quando estas se tornarem de domínio público, nas RDS e nas RESEX.
Há leis estaduais no Rio de Janeiro que preconizam este mesmo
instrumento para regulamentar a moradia das comunidades de pescadores e
das populações nativas moradoras das Unidades de Conservação como as
leis 3192/99 e 2393/95. A primeira dispõe sobre o direito dos pescadores,
assegurado pelo § 3º do art.257 da constituição do Estado do Rio de Janeiro,
às terras que ocupam:
Art. 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a reconhecer o direito real de uso
sobre a propriedade aos pescadores artesanais que estejam ocupando suas
terras, bem como a emitir-lhes os títulos respectivos e assumir, junto ao órgãos
federais competentes, a regularização da ocupação, sem ônus para os
pescadores.
Parágrafo Único - Define-se como pescador artesanal, para efeito desta Lei,
aquele que tiver a pesca como atividade principal para sua subsistência,
podendo possuir embarcação de no máximo 8 (oito) metros de comprimento.
Art. 2º - Quando a propriedade se localizar em unidade de conservação ou
área de preservação, o direito de uso e moradia previsto no artigo anterior será
efetuado de acordo com planos de utilização previamente estabelecidos e
aprovados pelos órgãos competentes.
282
Parágrafo Único - É garantido aos pescadores artesanais o acesso exclusivo
aos recursos naturais, e à participação direta nos planos e decisões que afetem
de alguma forma o seu modo de vida.
(...)
Art.4
§ 1º - O direito real de uso será concedido a título gratuito.
§ 2º - O contrato de concessão incluirá o Plano de Utilização, a ser elaborado
em conjunto com os pescadores e com a aprovação do órgão competente, e
conterá cláusula de rescisão quando o beneficiário provocar danos irreversíveis
ao meio ambiente, pesca predatória, ou a transferência da concessão
intervivos concedida apenas a parentes diretos.
Art. 5º - Caberá ao órgão competente do Poder Executivo supervisionar as
áreas dos pescadores, e acompanhar o cumprimento das condições
estipuladas no contrato de que trata o artigo anterior, através de comissão
paritária, com representantes dos pescadores, entidades não-governamentais
locais e prefeituras.
A lei 2393/95, conhecida na região como lei do Minc, por ter sido
proposta pelo deputado estadual Carlos Minc, dispõe sobre a permanência de
populações nativas em Unidades de Conservação do Estado do Rio de
Janeiro, também regula a permanência dos moradores através da concessão
real de uso:
Art. 1º - Fica o Poder Executivo, através de seus órgãos competentes,
autorizado a assegurar às populações nativas residentes há mais de 50
(cinqüenta) anos em unidades de conservação do Estado do Rio de Janeiro, o
direito real de uso das áreas ocupadas, desde que dependam, para sua
subsistência, direta e prioritariamente dos ecossistemas locais, preservados,
os atributos essenciais de tais ecossistemas e cumpridas as exigências
previstas na presente Lei.
§ 1º - A concessão do direito real de uso às áreas ocupadas, prevista no caput
desse artigo, será inegociável por prazo indeterminado, podendo ser
transferível apenas aos descendentes diretos somente se os mesmos também
dependerem direta e prioritariamente destas mesmas áreas, vedadas a
locação ou sublocação a outros interessados.
283
§ 2º - Como contrapartida deste direito, as populações beneficiadas por esta
Lei ficam obrigadas a participar da preservação, recuperação, defesa e
manutenção das unidades de conservação.
§ 3º - Em nenhuma hipótese poderá ser concedido o direito real de uso de
terra em áreas que sejam consideradas, por Lei, como Reservas Biológicas.
Nesta lei nota-se uma estratégia para suplantar o rico debate acerca
das populações tradicionais, adotando-se a idéia de populações nativas. Para
a regulamentação e aplicabilidade da 2393/95 seria interessante repensar
alguns pontos: subsistência, direta e prioritariamente dos ecossistemas locais;
a concessão do direito familiar ou individual; a contrapartida ser a obrigação da
preservação; a opção pelo termo populações nativas; o tempo de 50 anos.
O Instituto Estadual de Terras de São Paulo - ITESP- disponibiliza em
seu site72:
A concessão de uso especial para fins de moradia, consoante anota Regis
Fernandes de Oliveira, ‘é a única forma de garantir a posse e a permanência
daqueles que estariam em condições de adquirir a propriedade desses bens,
caso não fossem públicos’ (cf. "Comentários ao Estatuto da Cidade", Ed.
Revista dos Tribunais, 2002, pág. 63).
(...)
A concessão nada mais é do que contrato e, Maria Sylvia Zanella Di Pietro diz
que se trata de ‘contrato administrativo pelo qual a Administração faculta ao
particular a utilização privativa de bem público, para que a exerça conforme a
sua destinação’ (citação feita por Régis Fernandes de Oliveira, op. cit., págs.
64/65). O que era faculdade, porém, passa a ser direito do possuidor e a
Administração não pode recusar o contrato.
O que é possível concluir até o momento, com as fontes consultadas, é
que este dispositivo legal, tanto quanto o conceito de populações tradicionais,
encontra um fecundo espaço para debate. O que parece consenso:
a) o título será intransferível;
72 Trecho capturado em outubro de 2003, A função registral e a atuação do Judiciário - Breves considerações sobre a desapropriação judicial e a concessão real de uso de Kioitsi Chicuta.
284
b) os moradores deverão participar dos projetos de preservação das
UCs;
c) os planos de manejo legislarão sobre o uso do solo. De acordo com
as leis estaduais os moradores participarão da elaboração dos
planos;
d) na lei estadual que dispõe sobre os direitos dos pescadores está
prevista a cláusula de rescisão, preocupação apontada por Chicuta
no artigo divulgado pelo ITESP.
7.3 Sujeitos envolvidos e seus interesses
A reavaliação e a reclassificação da Reserva é uma necessidade e os
atores com interesse na região se mobilizaram na defesa de seus interesses.
Esse debate envolve a comunidade caiçara, os proprietários, ONGs,
Universidades, o poder público representado pela Prefeitura de Paraty e pelo
Instituto Estadual de Florestas e a sociedade paratiense que trabalha com
turismo e pesca.
As primeiras conversas acerca deste tema ocorreram ainda em 2000
com representantes de Associações de Moradores: Careca da Ponta Negra,
Lindalva do Sono e Alecir do Saco do Mamanguá. Ainda havia um tempo
grande para se concretizar a reclassificação, dois anos a contar de julho de
2000 mas, politicamente não era ainda o momento para que a discussão
inflamasse todos os fóruns.
Dois planos ocorreram entre 1999 e 2003: o plano de manejo e o plano
diretor da cidade. Em algumas reuniões dos Planos este tema foi discutido. As
decisões e as dinâmicas de cada reunião serão o foco da pesquisa no capítulo
8. Muitas reuniões foram gravadas, outras somente assistidas e registradas no
caderno de campo, e as análises a seguir se pautam na fala e nos
posicionamentos dos sujeitos sociais envolvidos,.
Em abril de 2001 foi realizada a “Oficina de Planejamento Participativo”
na Igreja Santa Rita em Paraty, promovida pela SOS Mata Atlântica. O grupo
que se encarregou dos problemas da Reserva optou, diante da dinâmica da
reunião, em discutir a reclassificação. Basicamente o grupo era composto 285
pelos moradores da Juatinga e por alguns membros de Universidades e
ONGs.73 Nesta reunião o grupo optou pela categoria Reserva de
Desenvolvimento Sustentável, levando em conta ser do grupo de uso
sustentável, ter conselho deliberativo, ter um mosaico de terras e, a forma
como os moradores são apresentados no texto do SNUC. Esta resolução
tomada pelo grupo foi incorporada numa versão do Plano de Manejo. Esta
reunião contou também com a presença do administrador da Reserva da
Juatinga, João Bee.
Em julho de 2001 o assunto voltou a ser discutido numa plenária maior:
a aprovação do texto para o Plano Diretor Municipal. Foram mais de seis
reuniões sendo que boa parte delas concentradas naquele mês, ocorrendo
uma vez por semana. Nesses encontros compareceram todos os interessados,
e as reuniões foram coordenadas pelo chefe de gabinete da Prefeitura,
Gleyson.
O IEF representado pelo Diretor de Conservação da Natureza -DCN -
esteve presente somente nas primeiras reuniões. Pretendiam uma formalidade
nos convites entendendo que a questão era muito séria para ser discutida sem
um agendamento organizado. A presença do administrador da reserva,
funcionário do IEF, não garantia o convite e aviso para as novas reuniões. A
posição do IEF durante as poucas reuniões foi de escuta sem defender, ou
trazer formalmente uma proposta de categoria. A que era a mais plausível para
eles à época, era Parque Estadual.
Em entrevista na sede do IEF no Rio de Janeiro, o diretor do DCN havia
se mostrado favorável à reclassificação da Reserva para a categoria parque,
mas ainda não sabia solucionar os problemas advindos desta escolha. Uma
das hipóteses era desafetar (possibilidade existente no SNUC) as
comunidades menos numerosas e, nas localidades mais numerosas
estabelecer uma quota altimétrica para o início do parque, acima da ocupação
caiçara. As comunidades com menos moradores seriam removidas, algumas
famílias se tornariam guarda-parques, e a quota seria o nível do mar. As
73 Em todas as reuniões sobre a reclassificação eu intervi. Quando eu me referir à “Universidades” basicamente estarei me remetendo à USP, representada pelo Laboratório de Geografia Agrária, pelo NUPAUB (Paulo Nogara), LASTROP (ESALQ, Walquíria Garrote) e UFRJ ( Laura Sinay).
286
comunidades mais numerosas desafetadas continuariam inseridas na APA
Cairuçu.
Essa concepção denota a visão preservacionista do órgão que
pretendia se ausentar da árdua tarefa de administrar sociedade e natureza. As
comunidades com conflitos fundiários estariam numa APA ou seja, com terras
particulares grassariam os processos de reintegração e a especulação
imobiliária uma vez que na APA é permitida a propriedade privada. As praias
num futuro próximo poderiam ter o destino de tantas outras comunidades:
grandes condomínios de turistas e/ou turismo desordenado. Ao IEF caberia,
neste modelo, somente a gestão das áreas de floresta. Para as comunidades
que restassem no interior da unidade, o termo de compromisso previsto no
art.23 do SNUC regularia a presença até o definitivo reassentamento e a
comunidade participaria somente do Conselho Consultivo. O IEF concentraria
todo o poder decisório do novo Parque.
Ainda nessa entrevista o diretor, quando indagado pela sua ausência no
curso promovido pela ESALQ de manejo de caixeta aos moradores do Saco
do Mamanguá, respondeu que não poderia sequer responder aos convites,
pois estaria indo contra as leis de preservação da mata atlântica e,
(...)o manguezal do Fundo do Saco do Mamanguá é minha última área
de mangue.
A res pública torna-se, numa afirmação desta, apropriada por órgãos do
Estado que fazem a gestão privada do patrimônio, entendido neste trabalho
como da humanidade e existente até hoje devido ao manejo tradicional, que
pode ser apreendido e discutido por todos e incorporar, se necessário, alguma
prática transformadora.
O IEF nesses anos entendia que a categoria parque seria a adequada
para que a mata atlântica fosse adequadamente preservada e fiscalizada. Há
orientações nesse sentido em vários órgãos internacionais de financiamento
de preservação da natureza que oferecem recursos econômicos para a
construção das instalações necessárias ao bom gerenciamento de um parque.
287
As ONGs presentes, e as surgidas no cenário naquele momento, não se
articularam na defesa de uma categoria. Há as que procuram uma co-gestão
da Unidade (possibilidade também trazida pelo SNUC e já regulamentada pelo
decreto 4340/02) e acreditam que as categorias de proteção integral são mais
interessantes pois as atividades a serem geridas seriam somente as de
pesquisa, turismo ecológico e educação ambiental. Há ONGs que enxergam
na categoria parque a solução dos problemas fundiários e acreditam na
inoperância do Estado, portanto na impossibilidade de um reassentamento. Há
ONGs que defendem a categoria RDS ou RESEX.
Os proprietários querem a categoria APA obviamente por esta prever a
propriedade privada da terra e comportar a possibilidade de vários
empreendimentos: para a Juatinga, os relacionados ao turismo são os
preferidos devido ao seu grande potencial.
Os moradores continuaram na sua defesa por uma RDS pelos motivos
já apontados e buscaram um esclarecimento sobre as áreas particulares que
serão desapropriadas quando necessário.
A prefeitura de Paraty transpareceu, através do discurso do atual
Prefeito, um explícito interesse por uma unidade de uso sustentável,
preferencialmente uma APA, pois as atividades de turismo poderiam ser
incrementadas. O discurso do Prefeito sempre ressaltou as potencialidades do
município para receber turistas mais ricos que os atuais
(...) miojeiros e jacaqueiros não deixam um real com os moradores e só
deixam problemas para mim como lixo e doenças. Todo o ônus de uma
Unidade de Conservação de proteção integral recai no município que não pode
explorar as riquezas naturais e culturais e só deve gastar dinheiro com saúde e
educação com os moradores das unidades de conservação. De onde vamos
tirar dinheiro sem nem mesmo ganhar com o turismo ou cobrar impostos? (Zé
Cláudio, prefeito de Paraty, em julho de 2002)
Naquele mês de julho uma conveniente aliança se estabeleceu:
proprietários, caiçaras, universidades e ONGs se uniram para rechaçar o
parque sem moradores, estavam juntos até que o IEF deixou de freqüentar as
reuniões. Neste momento o tácito pacto se rompeu e outros foram traçados
288
isolando os proprietários na defesa da APA. Houve momentos decisivos para
as comunidades que mapearam um pouco74 os interesses de todos os sujeitos.
Um deles foi quando Fernando Notari, genro do Gibrail e herdeiro da
Fazenda Praia Grande da Cajaíba, defendeu a APA como a unidade que
poderia proporcionar um maior desenvolvimento, criar empregos e ainda
afirmou que quem gostava de pobres eram os intelectuais. Foi aplaudido por
muitos. Quando uma moradora da Praia Grande foi perguntar que tipos de
empregos ele, como proprietário, até hoje havia proporcionado, chamou-o pelo
nome e ele imediatamente corrigiu-a
Fernando não, Dr. Fernando.
A resposta da moradora foi súbita e arrancou risos e aplausos:
Que eu saiba você nunca curou dor de barriga minha... Doutor é médico, você
só provocou é dor de cabeça na gente, como seu sogro.
Este momento se tornou histórico para a comunidade da Praia Grande,
acirrou a raiva deste proprietário e, mais algumas reintegrações de posse,
inclusive contra essa moradora, foram aditadas. Durante as reuniões era claro
que o pacto entre proprietários e moradores se realizara contra a expulsão de
ambos mas, os interesses são bem distintos. Os moradores de forma mais ou
menos explícita recebem o apoio tanto das Universidades como das ONGs e
de vários paratienses conhecedores da historia do seu lugar.
Outro prelúdio de autonomia deu-se quando Alecir, Careca e Lindalva,
presidentes de associações de moradores, no meio de uma reunião, pediram
mais tempo para pensar e convocaram uma reunião de esclarecimento com
seus aliados mapeados ao longo do processo. Algumas ONGs e as
Universidades foram chamados para uma reunião num fim de semana, e a
escola estadual cedeu uma sala para o encontro. Os pesquisadores vinculados
à USP preparam um informe75 com os termos mais utilizados e um grande
74 Afirmo que pouco para alguns mas significativo para os que estavam presentes.
75 Uma cópia desse informe é apresentada no anexo “Documentos”.289
quadro comparando as quatro unidades discutidas foi elaborado na reunião.
Nesse dia, novamente, os moradores optaram por uma RDS. O quando
necessário em relação à desapropriação das terras privadas desta categoria é
a solução para as comunidades sem conflitos fundiários e que se articulam
com os proprietários na busca de projetos de sustentabilidade ou recebem
doações como a reforma da escola, um curso noturno para os adultos, a
instalação de banheiros e de filtros. Seria uma traição a desapropriação de
quem promove empregos e estabelece uma relação de amizade. No entanto,
para as comunidades com conflito fundiário, cerca de um terço das famílias da
Juatinga, o quando necessário é motivo para apreensão.
A posição das Universidades também oscilou entre as categorias
parque, RDS e RESEX. Similarmente às ONGs, há quem acredite que o
Estado nunca vai desapropriar os proprietários e remover as populações
tradicionais de um parque. Por decreto a questão fundiária estaria resolvida.
Há quem opte por RDS entendendo que somente o conflito fundiário não pode
ditar a reclassificação. Há mecanismos legais para que a questão fundiária
seja resolvida, a questão agrária e a questão ambiental não deveriam estar tão
entrelaçadas. Há também posicionamentos a favor de RESEX, ela pode ser
considerada, como foi na Amazônia, como a reforma agrária dos povos da
floresta e que diante da violência e dos processos de reintegração de posse
seria a melhor solução por se tratar de uma unidade de domínio público com
Conselho Deliberativo.
O documento oficial, chamado de manifesto, ao término das reuniões
sobre o Plano Diretor, foi incorporado a este Plano e enviado a todos os
órgãos interessados na reclassificação: IEF, ITERJ, ALERJ, SEMA. Segue o
texto:
PREFEITURA MUNICIPAL DE PARATY
GABINETE DO PREFEITO
Após a realização de cerca de 10 reuniões em função da reclassificação ,
planejamento e gestão da Reserva Ecológica da Juatinga, com a presença de
representantes do poder executivo municipal, legislativo municipal e estadual,
comunidades locais e tradicionais, órgãos estaduais e federais como ITERJ,
290
IEF, IBAMA, Ongs como SOS Mata Atlântica, Verde Cidadania, IPHAC,
representantes de núcleos científicos de universidades como NUPAUB/USP,
LASTROP/ESALQ, AGROLAB/USP, conforme registrado em atas, se formou
uma comissão denominada PRÓ-JUATINGA, para discutir o plano de Gestão
da REJ e o Plano Diretor de Paraty no que diz respeito ao território ocupado
pele REJ, e ficou acordado que:
A Unidade de Conservação deverá ser reclassificada para uma
CATEGORIA DE USO SUSTENTÁVEL, respeitando seus objetivos de:
Desenvolvimento sustentável das comunidades caiçaras ali residentes de
acordo com o seu modo d vida tradicional.
A conservação da Biodiversidade e integridade de seus ecossistemas com
especial atenção para as espécies endêmicas e ameaçadas de extinção
O Estado deverá emitir a CONCESSÃO REAL DE USO para os moradores
caiçaras que se enquadrarem na Lei Estadual n.º 2393/95.
Os legítimos titulares ou herdeiros de escrituras de domínio existentes na área
terão seus objetivos da Unidade em acordo com a Lei e Zoneamento da
Unidade de Conservação.
O conselho de gestão da unidade dever ser oficializado, com urgência, para
aprovar o zoneamento e formado, aperfeiçoando se necessário, a configuração
sugerida na reunião promovida pela Prefeitura no dia 20 de julho, na Câmara
dos Vereadores, com a presença de cerca de 60 pessoas.
Neste documento oficial prevaleceu o consenso entre os presentes de
se criar na Juatinga uma categoria do grupo das unidades de uso sustentável.
Esperava-se a regulamentação da RDS.
No anexo “Documentos” encontram-se as transcrições e anotações
sobre a formação de uma ‘Comissão Pró-Juatinga’, formada em julho de 2001,
que nunca mais se encontrou. Todas as reuniões que ocorreram para os
Planos; com a presença de todos os atores com interesse na região e com seu
caráter de 'reunião pública' conferem legitimidade à esta Comissão.
A Comissão Pró-Juatinga, como acordado em 20/07/02 na Prefeitura de
Paraty, tem seguinte formação:
291
1) Associações de Moradores:
Ponta Negra
Juatinga
Sono
Praia Grande da Cajaíba
Pouso
Mamanguá
Cairuçu
Calhaus
Ipanema
2) Proprietários
Fernando Notari [genro do falecido Gibrail]
Lincon Pacheco [proprietário de Martim de Sá e parte do Pouso]
Miriam
Sérgio [único caiçara que se apresentou com títulos de terras, do Pouso]
Lenir Tannus [viúva do Gibrail]
3) Instituições Governamentais
IEF
ITERJ
SEMA
IPHAN
IBAMA
Câmara Municipal de Paraty
4) ONGs
SOS Mata Atlântica
IPHAC
Verde Cidadania
Associação Cairuçu
5) Universidades
Nupaub (USP)
Esalq – Lastrop (USP)
292
Surge um novo grupo pois a comunidade perguntou onde eu estaria. Eu disse
que não queria votar, que estava feliz com meu lugar de assessorar a
comunidade quando fosse necessário. Eles sugeriram então a inclusão de um
novo grupo:
6) Convidados
Lúcia
ALERJ
OAB
IAB ( Instituto dos Arquitetos do Brasil). [participou de duas reuniões um
arquiteto que estava pensando nas obras dentro da reserva e resolveu se
incluir]
Patrícia [uma advogada que também participou de duas reuniões]
Como a lista de convidados tinha crescido eu sugeri que este novo grupo não
tivesse direito a voto. O que foi aceito pela maioria dos presentes.
Não houve mais debate com o nível de participação política como o
destas reuniões do Plano Diretor, a nova gestão do IEF não convocou
nenhuma reunião pública até o presente momento, novembro de 2003. O
quando necessário, da RDS continua sem uma regulamentação.
293
8. O PLANO DE GESTÃO
AMBIENTAL DA APA DE
CAIRUÇU E RESERVA
ECOLÓGICA DA JUATINGA
Eu não sabia que as letras voavam...
(morador da Ponta Negra)
294
Em 1998 foi firmado um convênio entre a ONG SOS Mata Atlântica, o
IEF/RJ, o IBAMA e a Prefeitura de Paraty para a elaboração do Plano de
Gestão Ambiental da Reserva Ecológica da Juatinga e da APA de Cairuçu.
Para informar a sociedade civil do convênio firmado, na forma de um
Termo de Compromisso, houve na Casa da Cultura de Paraty um evento em
que estavam presentes o presidente do IEF; o prefeito de Paraty; o IBAMA,
representado pelo chefe da APA do Cairuçu; a cúpula da SOS, entidade
proponente, e representantes do Condomínio Laranjeiras – entidade
financiadora. As partes do convênio discursaram, os presentes assistiram a
formalização do Termo e, num primeiro exercício de participação, puderam
sugerir temas de discussão. Vários papéis foram colocados na parede e a
coordenadora do Plano foi pedindo sugestões para a platéia de temas a serem
discutidos. Surgiram os temas: regularização fundiária, turismo, saúde,
educação, projetos de desenvolvimento sustentável. A platéia foi convidada a
se levantar e quem quis colocou se nome no cartaz correspondente ao seu
interesse.
A idéia para as inscrições era que os grupos recém constituídos
participassem de reuniões específicas do tema escolhido para que, após
meses de encontros, pudessem apresentar os encaminhamentos para o
restante da comunidade. Os papéis com os integrantes do grupo foram
enrolados e assim iniciava-se o processo de participação. A explicação dada
acerca da metodologia do trabalho foi que esses grupos de trabalho se
reuniriam por meses e numa Oficina de Manejo Participativo, com duração de
3 a 5 dias, todos apresentariam seus resultados para a discussão num coletivo
maior.
A metodologia de trabalho foi mudada sem aviso, os grupos nunca se
encontraram e, portanto, não levaram nenhuma proposta para a Oficina que
ocorreu em abril de 2001.
Um dos objetivos desta pesquisa é deslindar o conceito de participação
ocorrido na elaboração do Plano de Gestão76. A análise de alguns aspectos do
76 Para diferenciar o Plano de Gestão da APA e da Reserva Ecológica do Plano Diretor de Paraty, o primeiro chamar-se-á somente Plano de Gestão, e o segundo Plano Diretor.
295
Plano, como a abordagem dada à cultura caiçara e à educação, era outro
objetivo da pesquisa, que se tornou obsoleto pois o Plano de Gestão não foi
aprovado até o momento (outubro de 2003). O IBAMA, que por ser o
gerenciador da APA de Cairuçu é o principal parceiro do Plano, recusou nas
instâncias local, regional e federal a última versão recebida. A SOS Mata
Atlântica terá até janeiro de 2004 para reformulá-lo.
As considerações já elaboradas sobre o processo de participação ainda
podem ser legítimas pois as reflexões realizadas desde a assinatura do
convênio em 1998, até a leitura da Terceira Versão para a apreciação dos
parceiros, de 2003, por se basearem no processo e não no produto podem
ainda elucidar as concepções sobre a participação das populações tradicionais
na elaboração dos Planos de Gestão ou de Manejo.
A SOS Mata Atlântica apresentou o Plano de Gestão dividido em alguns
volumes: dois de Caracterização Ambiental e um chamado de Caracterização
Regional e Sócio Econômica. Este último volume foi analisado, as partes
transcritas foram dele retiradas. Para uma compreensão de como foi tecida a
participação faz-se necessária também uma breve análise de quem formulou o
volume Caracterização Regional e Sócio Econômica estudado e quem foi
responsável pelo financiamento.
8.1 Condomínio Laranjeiras
A principal fonte de recursos para a elaboração do Plano veio do
condomínio Laranjeiras. Este condomínio localiza-se dentro da APA e perfaz o
limite sul da Reserva. É um dos condomínios construídos na década de 70
mais ricos do Brasil.
Há um grande problema na relação do Condomínio com as
comunidades da Reserva: quando este foi construído toda uma porção
litorânea foi comprada dos moradores da hoje conhecida Vila Oratório, que
migrou para o sertão. Uma das praias adquiridas era o abrigo natural dos
barcos, que estavam próximos da Ponta da Juatinga durante as intempéries,
comuns nesta região77 e também era o cais natural das comunidades do Sono,
77 Foi nessa região que sumiu, durante uma tempestade, o helicóptero com Ulisses Guimarães.296
Ponta Negra, Cairuçu das Pedras, Saco das Anchovas e Martim de Sá. É
pelas praias compradas pelo Condomínio que se realiza o acesso marítimo
mais rápido e seguro para as comunidades citadas que localizam-se quase
todas ao sul da Ponta da Juatinga – conhecida como uma das mais perigosas
do Brasil, de difícil travessia.
O acesso à estas comunidades por terra não pressupõe a entrada no
condomínio: há uma passagem pela Vila Oratório percorrida após uma
identificação nas primeiras porteiras do Condomínio, ainda na estrada.
Por mar, com a chegada do condomínio, o acesso foi controlado. A
servidão foi privadamente apropriada e hoje os moradores precisam ter crachá
de identificação e o barco precisa estar fichado78 no condomínio para
transitarem por ali a fim de embarcarem em suas canoas, pequenos barcos a
motor ou traineiras.
Dez anos atrás, os turistas ainda podiam utilizar-se da servidão quando
desembarcavam vindos das comunidades. Eram acompanhados por guardas
que, de longe, mas bem visíveis, iam se comunicando com rádios e
conduziam–nos para fora do condomínio, que é cercado e bem vigiado, para a
Vila Oratório onde poderiam pegar ônibus para a cidade ou pegar o carro, caso
o tivessem deixado no quintal de algum morador da Vila.
Hoje em dia, quem não é condômino, empregado ou morador da
Reserva, estes últimos identificados com crachá, só tem permissão de
atravessar o condomínio para acessar o cais após a comunicação entre os
guardas do sistema de defesa. Uma perua kombi dirigida por funcionários da
empresa terceirizada de segurança o conduz para embarque imediato no cais
quando recebe a notícia de que o barco esperado está atracado. O
desembarque é mais cruel: acompanhados ou não de moradores, as pessoas
de fora - nesta categoria encontram-se turistas, pesquisadores, funcionários do
IEF, do ITERJ, da Prefeitura...- ficam retidas no condomínio, perto do campo
de pouso dos helicópteros, esperando a perua realizar o trajeto de 5 minutos
da portaria do condomínio, localizado na Vila Oratório, ao cais. É proibido
78 Notemos o termo fichado, como usado por vários moradores. É a mesmo que utilizam todos aqueles que tiveram contratos de comodato assinados. Como não dominam a escrita, não podem assinar, portanto ficham.
297
fotografar ou realizar o caminho da antiga servidão a pé - de pé, como dizem
os moradores.
Quando os moradores são mais articulados, como os presidentes das
Associações de Moradores, membros mais velhos ou os mais novos
impertinentes, a passagem se dá com certa tranqüilidade mas é sempre um
desafio para eles. Quando os moradores são mais respeitadores da lei –
vejamos as discussões do campesinato legalista – ficam esperando por mais
de 30 minutos a kombi, podendo perder compromissos na cidade ou se atrasar
horas por perder o ônibus que passa com hora marcada na Vila.
Esta coação só é parcialmente tolerada por eles porque o condomínio
disponibiliza um posto de atendimento médico e uma ambulância que os leva
prontamente à cidade ou ao melhor hospital da região, na Praia Brava,
município de Angra. Portanto, ao assumir uma função do Estado, o
Condomínio recebe a gratidão, e a lógica do favor, portanto do atraso, se
instala e os moradores não se incomodam tanto com os crachás, com os
agendamentos.
Até mesmo carros oficiais, como o do Instituto de Terras do estado do
Rio de Janeiro (ITERJ), já foram ali barrados e tiveram que aguardar, do lado
de fora, a confirmação da chegada de uma embarcação vinda do Sono para
atravessarem o Condomínio, com a dita perua, e embarcar no cais.
Os moradores do Sono, que está há cerca de 40 minutos, por terra, do
Condomínio, trabalham como caseiros, barqueiros, faxineiros, jardineiros,
babás e precisam portar crachá mesmo que não tenham sequer carteira de
identidade.
Há também cenas curiosas, quase de enfrentamento, como por
exemplo, a kombi quebrar e um cordão de moradores pobres e de turistas
mochileiros79 atravessarem o Condomínio em pleno feriado passando perto
das casas cheias de visitas importantes compenetradas em seus esportes na
beira dos lagos floridos, enfeitados de ninfeáceas, ou na beira do campo de
golfe.
79 Não há pousada dentro da reserva. Alguns moradores alugam suas casas para turistas na temporada. Até hoje, fazendo trabalho de campo, como pesquisadora, amiga ou turista, atravesso o condomínio de mochila, assim como todos.
298
Em 1999, ano da assinatura do Convênio para a elaboração do Plano,
havia uma discussão intensa entre os moradores e a administração do
condomínio. Este havia estipulado que durante os finais de semana, quando
os condôminos estão ali e as regras são fielmente seguidas, não haveria
desembarque de peixes. Os moradores escoam a produção para Paraty,
conservam os peixes em isopor, não há energia elétrica e freezer. As
proibições mais descabidas, como esta, tornaram-se mais brandas com o
anúncio da parceria para o Plano. Muitos moradores ainda se queixam da
dificuldade em embarcar e desembarcar e das regras que estão sempre sendo
reformuladas.
O Condomínio financiou parte da elaboração do Plano, nos seus mais
de 500 mil reais anunciados logo no início, e o tempo previsto para a entrega
era de 2 anos.
Alguns moradores, citadinos paratienses, pesquisadores, pessoas de
outras ONGs, questionaram qual seria o verdadeiro interesse de Laranjeiras.
Em todas as reuniões era necessário que a ONG proponente, a SOS Mata
Atlântica, esclarecesse:
A elaboração do Plano é onerosa; o poder público está falido - sendo assim, as
ONGs precisam captar recursos nas empresas, ou onde há dinheiro -; o
Condomínio apresenta disponibilidade financeira e o Plano é importante
porque pode regular o uso do solo e irá ser realizado com a participação de
todos. (Explicação dada pela coordenadora do Plano)
Especulava-se que era uma forma econômica de realizar o Plano. Cada
condômino, que quis participar, doava uma soma pequena por mês, para que
a tranqüilidade fosse mantida, as belezas desmedidas da região perdurassem,
para que houvesse um desenvolvimento sustentável. Uma das propostas do
Plano era analisar a capacidade suporte do turismo nas comunidades, portanto
o acesso à Laranjeiras também poderia ser melhor controlado.
299
8.2 Técnicos envolvidos na elaboração da Caracterização
Sócio Econômica
Para que possa haver uma aproximação das linhas teóricas envolvidas
na elaboração há três listas de profissionais envolvidos na elaboração das
Caracterizações no Anexo “Documentos”. A primeira lista é
política/institucional: funcionários com cargos de confiança ou não, dispostos
hierarquicamente80. A segunda lista privilegiou a formação dos profissionais e
técnicos que a compõe. A terceira é, no Plano, chamada de Equipe.
Na lista Equipe parece ter havido um equívoco entre colaboradores,
agradecimentos e profissionais81. Torna-se difícil diagnosticar, somente através
desta lista, quantos e quais foram os profissionais que realizaram diretamente
a pesquisa sócio-econômica. Quem deve ser responsabilizado e responde
pelas Caracterizações?
Excluídos os três biólogos e a engenheira agrônoma, a maior
contribuição deles está nos dois volumes da caracterização ambiental;
excluídos os geógrafos da cartografia digital (alguns sequer foram para o
campo); as duas advogadas (da SOS), que fizeram mais um trabalho de
gabinete e viabilizaram as parcerias da ONG com outros órgãos; a
administradora de empresas que ficou dois dias mediando a Oficina (vale
lembrar que o facilitador ou mediador como são chamados, não precisam
necessariamente estar a par de tudo); restam duas arquitetas, (uma é a
coordenadora geral do Plano e membro da SOS), os três diretores da
Supervisão da SOS (uma especialista em Sistemas de Informação, um
geógrafo, um administrador), a Supervisão do IBAMA (devido a parceria
assinada para a realização do Plano) e por fim, o educador, conhecido em
80 Os nomes não foram colocados por uma opção metodológica. Seria uma leitura desgastante e, fundamentalmente optei em pensar as atribuições do cargo e não expor os nomes dos funcionários até por querer acreditar que estes podem, individualmente, mudar a leitura que fazem da realidade da Reserva. Basta olharmos para as datas, 1999 até 2002 para sabermos que o presidente foi Fernando Henrique Cardoso, o ministro do MMA, Sarney, o presidente do IEF, André Ilha ...81 Como já mencionado, morei em Paraty entre 1999 e 2000. Pude conhecer quase todas as pessoas mencionadas: todos os educadores da região costeira, toda a equipe da SOS que foi para campo ou participou das reuniões, os funcionários locais da Prefeitura, do IEF e do IBAMA.
300
quase todas as comunidades. O sociólogo é citado com um escrito seu sobre
cultura caiçara.
Ou seja, os laudos da Caracterização estudada foram realizados
basicamente pela equipe da SOS (diretores, advogados e arquiteta), um
educador (funcionário municipal) e mais uma arquiteta contratada. Alguns
outros profissionais foram contratados82 para visitar as comunidades que eles
já conheciam e aplicar o questionário com as lideranças num trabalho a ser
realizado em um dia ou dois de campo.
Mapear os sujeitos que estão fazendo esta história possibilita conhecer
os limites e os possíveis consensos que a origem, o lugar de trabalho e a
formação científica possibilita. Nota-se a ausência de profissionais preparados
para trabalhar com cultura como antropólogos, sociólogos, historiadores e
geógrafos.
8.3 Objetivos e Diretrizes do Plano
O trecho a seguir encontra-se na primeira página dos três
volumes do Plano – ao todo cerca de 520 páginas, da Terceira versão
para apreciação dos parceiros de fevereiro de 2002:
Antecedentes
Em dezembro de 1998 a Fundação SOS Mata Atlântica e o IBAMA, assinaram
um Termo de Cooperação Técnica com o objetivo da elaboração e
implementação do Plano de Gestão Ambiental da APA de CAIRUÇU. Em abril
de 1999 foram formalizadas parcerias com o Instituto Estadual de Florestas –
IEF, e Prefeitura Municipal de Paraty com o objetivo de integrar neste Plano a
reserva Ecológica da Juatinga –REJ e o poder público local.
Os recursos para a elaboração deste plano vem sendo obtidos principalmente
em função de convênio entre a Fundação SOS Mata Atlântica e o Condomínio
Laranjeiras, localizado no interior da APA, com o apoio da ONG Harmonia
Global.
82 Devido ao meu TGI e ser conhecida dos moradores fui sondada para tal trabalho.301
Diretrizes
Tendo em vista a participação das comunidades da APA no processo de
planejamento e gestão da unidade, a elaboração do plano de Gestão foi
acompanhada de uma série de atividades de educação ambiental e
mobilização social, que vieram a constituir o “Projeto Cairuçu”, coordenado
pela Fundação SOS Mata Atlântica, dentro dos objetivos estabelecidos pelos
termos de cooperação com IBAMA, IEF-RJ e Prefeitura de Paraty.
A principal diretriz do Projeto Cairuçu vem sendo trabalhar a elaboração do
Plano de Gestão Ambiental de forma participativa, informativa e pedagógica,
ouvindo a comunidade e divulgando os principais conceitos do
desenvolvimento sustentável.
As reuniões de autodiagnóstico e planejamento com as 13 principais
comunidades da APA tiveram o intuito de informar a população sobre os
objetivos da APA de Cairuçu e Reserva Ecológica da Juatinga, bem como
levantar os principais pontos positivos e problemas dos seus bairros, ações em
curso e o que poderia ser feito para melhorar a qualidade de vida nestes
locais.”(grifo meu)
O que foi destacado pode ser considerado como as premissas do Plano
e delineia também a metodologia.
Houve uma certa confusão entre o que é diretriz e
apresentação de resultados: o Projeto Cairuçu.
As diretrizes não foram dadas no princípio do Plano, portanto o caminho
a ser percorrido não era conhecido. A única diretriz anunciada à sociedade civil
foi que seria um Plano Participativo. Logo nos primeiros meses já havia
indícios que o conceito de participação da ONG deveria ser explicitado pois
todos se sentiam envolvidos e esperançosos mas de fato não se apropriavam
de nenhum trabalho.
Outro termo que demanda uma explicação é o autodiagnóstico. O
autodiagnóstico poderia ser uma primeira etapa para a comunidade
reconhecer, em uma reunião, quais seus principais problemas e possibilidades
de solução, seus maiores atributos e virtudes para que, posteriormente, estas
questões pudessem virar objeto de trabalho de todos. O autodiagnóstico em si
sem nenhuma conseqüência ou continuidade, como ocorreu, é insuficiente.
302
Na caracterização Sócio Econômica, os objetivos do Plano são assim
descritos:
1.Caracterizar a região em que se insere a APA de Cairuçu e os municípios
vizinhos em seus aspectos históricos e econômicos;
2. Caracterizar os moradores e as comunidades no interior da APA e da REJ
em seus aspectos sociais, econômicos, e culturais, bem como suas relações
com a economia do município, baseada no turismo e na pesca. Os
levantamentos em campo buscaram informações sobre:
Seus habitantes permanentes,
As áreas por eles ocupadas e suas benfeitorias,
A caracterização básica de cada bairro/comunidade da APA,
A atividade turística dentro da APA e sua operação a partir da sede do
município,
As características culturais do caiçara, situação atual e perspectivas,
A percepção da questão ambiental pelas comunidades,
A questão fundiária
3. Listar as instituições e projetos em andamento na região da APA,
4. Listar os principais problemas e ações necessárias apontados pelas
comunidades para o seu desenvolvimento.
A versão analisada do Plano limitou-se a apresentar uma lista dos
problemas elencados. Há que se diferenciar uma Caracterização de um Plano:
este deveria trazer uma proposta ou ao menos um esboço conjunto das
comunidades, do poder público, da sociedade civil - nas suas mais diversas
esferas - para as principais questões da Reserva como a carência de
assessoria jurídica, carências de saúde e educação, entre outros problemas.
A Caracterização é considerada como um trabalho de grande
importância política pois o zoneamento, que regulará o uso do solo, é
formulado baseada nela. Portanto, ela não pode se limitar somente a listas
elaboradas a partir de autodiagnósticos de poucas horas.
Quais poderiam ser os objetivos do Plano formulados pela equipe
realizadora, antes do início do trabalho de campo, e como novos objetivos
poderiam surgir a partir da experiência de ouvir e conhecer a vida tradicional
das comunidades? Poderia ser um casamento entre técnicos e comunidade 303
formulando um estudo sobre modo de vida, recursos, história, conflitos, devir?
Abordaria a identidade destes grupos? Poderia se propor a assegurar a
continuidade harmoniosa de toda a vida?
Outras questões poderiam surgir: qual o tratamento de algumas
categorias polissêmicas? A Caracterização seria o próprio Plano? Seria ela
somente um diagnóstico? Quais práticas pedagógicas envolvidas para garantir
participação? Em que momento do Plano apareceriam propostas para a região
de todos os sujeitos envolvidos, já com um mínimo de consenso? Quando se
daria a busca intricada pelo consenso? Qual seria o melhor momento para o
zoneamento? As comunidades se apropriariam de um zoneamento ou seria
apenas mais um elemento legal na mão do Estado, na mão de fiscais da
polícia florestal?
Todas estas questões foram de certa forma abafadas ao longo da
elaboração do Plano e é através de sua leitura que se pode encontrar as
respostas para estas questões, através da análise do discurso e da
importância dada à algumas categorias tidas como consensuais, como o
desenvolvimento sustentável e o cuidado com o lixo por meio de projetos de
coleta e reciclagem.
O Projeto Cairuçu mencionado na diretriz tinha por finalidade um
envolvimento das comunidades para a reciclagem do lixo com a parceria das
escolas, trata-se do projeto de educação ambiental do Plano. Por ter
alcançado relativo sucesso foi o exemplo de mobilização social explorado
durante todo o Plano através de exposições fotográficas, slides, palestras.
8.4 Organização da Caracterização
A terceira versão não apresenta um índice remissivo que possa facilitar
a busca por informações pontuais, como, por exemplo, o número de fossas
304
simples ou banheiros, ou dar um panorama mais geral dos temas tratados. O
sumário é muito sintético.
Na íntegra, a cópia do Sumário da Caracterização:
Introdução 1
Área de Influência Regional/
Antecedentes Históricos
5
Metodologia da caracterização
Sócio Econômica
2
6
Resumo da Caracterização Sócio
Econômica
2
9
A cultura Caiçara na APA/ REJ
5
1
Aldeias Guarani
7
0
Questão Fundiária
8
2
Turismo em Paraty e na APA/REJ
8
8
Instituições e Atividades voltadas
para o desenvolvimento
sustentável
1
2
3
Carta temática
Sócio-Econômica
Anexos
A1 População
1
4
2
A2 Atividade Econômica
1
5
305
7
A3 Moradia
1
7
4
A4 Infra estrutura Básica
1
8
1
A5 Informações básicas de
cada bairro
1
8
5
Lendo a Caracterização e copiando os subtítulos que ocorrem no
meio do texto, é possível rescrever o sumário, como um exercício da
pesquisadora para facilitar a localização dos temas e para que o leitor possa
minimamente se inteirar da sua forma
306
1. Introdução1.1 Antecedentes1.2 Diretrizes1.3 Ações práticas de Ed. Ambiental e ecoturismo1.4 Resultados1.5 Mobilização municipal e regional pelo desenvolvimento sustentável1.6 Caracterização Sócio Econômica 1.6.1 Objetivos
1.6.2 Procedimentos/ metodologia
2. Área de Influência Regional
2.1 Antecedentes históricos e seus ciclos econômicos
2.1.1 Colonização e ciclos econômicos2.1.2 A decadência2.1.3 As estradas e o turismo2.1.4 BR 101/ Rodovia Rio Santos - A grande transformação2.1.5 Ubatuba2.1.6 Cunha
2.2 Os dias de hoje: agropecuária, turismo e artes
2.2.1 Angra dos Reis
2.3 Paraty 2.3.1 Aspectos Históricos2.3.2 Século XX 2.3.2.1 Monumento Nacional
2.3.2.2 Aspectos Sócio- Econômicos2.3.3.3 Educação2.3.3.4 Saúde2.3.3.5 Atividade comercial e outros indicadores2.3.3.6 Setor rural2.3.3.7 Cultura
3. Metodologia da Caracterização Sócio-Econômica
3.1 Aplicação de questionários por unidade familiar3.2 Entrevistas com lideranças3.3 Reuniões de autodiagnóstico3.4 Banco de dados
4. Resumo da Caracterização Sócio-Econômica da APA e da REJ
307
4.1 População de Paraty4.2 População da APA4.3 Religião4.4 Escolaridade4.5 Economia Renda Familiar 4.5.1 Maior ocorrência de faixas de renda
4.6 Atividades Econômica da Costeira da APA e da Zona Rural4.7 Bens de Consumo e equipamentos de produção4.8 Atividade agrícola, agropecuária e coleta4.9 As moradias 4.9.1 Materiais de construção
4.10 Água 4.10.1 Sanitários4.10.2 Fossas4.10.3 Qualidade da água nas comunidades
4.11 Lixo doméstico
5. A cultura caiçara na região da APA do Cairuçu5.1 Antecedentes Históricos5.2 Retratos e relatos do passado recente
5.2.1 As dificuldades de acesso5.2.2 As festas5.2.3 Tecnologias Patrimoniais5.2.4 Hábitos Alimentares5.2.5 A transformação 5.2.5.1 Igrejas evangélicas
5.2.6 Disputas de terra5.2.7 A Rio-Santos
5.3 Manifestações culturais nas comunidades da APA
5.3.1 O Campinho da Independência5.3.2 Cajaíba5.3.3 Ponta Grossa5.3.4 Ponta Negra5.3.5 Ponta da Juatinga5.3.6 Calhaus5.3.7 Mamanguá5.3.8 Ilha da Araújo5.3.9 Paraty Mirim5.3.10 Corisco
5.4 Conclusão 5.4.1 Modo de ser e fazer5.4.2 Peixe, Tranqüilidade e Liberdade5.4.3 Sustentabilidade, a Tradição e o Surf5.4.4 Boas Perspectivas: Saco do Mamanguá / Ilha do Araújo5.4.5 Nem Trindade, nem Laranjeiras
5.5 Bibliografia
6. Aldeias Guarani
308
7. Questão Fundiária na Reserva Ecológica da Juatinga e APA de Cairuçu7.1 Origem dos títulos de uma área7.2 A titularidade das posses na REJ7.3 Situação na APA
8. Turismo8.1 Antecedentes8.2 Anos 60 – o redescobrimento8.3 Anos 70 – fim do isolamento8.4 A gestão do Turismo em Paraty8.5 Fatores limitantes8.6 Oportunidades8.7 Conseqüências8.8 Perfil do Turista que freqüenta Paraty8.9 Infra Estrutura de Turismo estimada na cidade8.10 Principais roteiros8.11 O turismo na visão de alguns empresários do setor8.12 Caracterização turística8.13 Histórico de ocupação turística na região8.14 Conflitos8.15 Principais destinos turísticos da APA8.16 Perfil do Turista da APA8.17 Conclusão
9. Instituições e Atividades voltadas para o desenvolvimento sustentável9.1 Período de 1999/2000 9.1.1 Instituições Governamentais (Planos e Projetos)
9.1.2 Instituições não-governamentais empresas privadas9.1.3 Universidades9.1.4 ONGs de Paraty9.1.5 ONGs de outras localidades que atuam em Paraty
9.2 Atividades e Projetos em 2001 9.2.1 Instituições Governamentais e parcerias9.2.2 Projetos desenvolvidos com as escolas/Comunidades da APA de Cairuçu9.2.3 Organizações Não Governamentais9.3.4 Projetos desenvolvidos diretamente com as escolas e comunidades da APA de Cairuçu/REJ
309
8.5 Participação
Segundo Carmem Lúcia Rodrigues no doutorado intitulado Limites do
consenso: territórios polissêmicos na Mata Atlântica e a gestão ambiental
participativa, o conceito de participação tornou-se bastante genérico, e:
(...) costuma vir acompanhado por determinados adjetivos que procuram
imprimir-lhe um significado mais ou menos particular: participação comunitária,
participação popular, participação cidadã, participação social, participação
política... Contudo, de forma geral, tal conceito quando utilizado hoje em dia,
raramente, apresenta a mesma conotação que possuía nas décadas de 60 e
70 na América Latina. Assim como ocorre com desenvolvimento sustentável,
os vários significados atribuídos à participação – e seus derivados participativo,
participante, etc. ... – expressa uma ambigüidade do conceito. (2001:12)
Carmem Lúcia salienta ainda que o conceito de participação, na sua
polissemia, vem sendo incorporado como premissa para projetos bi ou multi
laterais:
Também as agências bi, multi e translaterais impõem novas diretrizes. É o caso
do BID e do BIRD, do Grupo dos Sete (G-7), da União Européia, e das
instituições ligadas à ONU, todas responsáveis pelo financiamento de grandes
projetos socioambientais no Brasil. Entre as atuais diretrizes/recomendações,
destaca-se a de interesse central desta pesquisa: o incentivo à participação
comunitária em projetos ambientais. (2001:17)
O Estado brasileiro também criou mecanismos para tornar a participação
pré-requisito, ao menos em tese, na formulação de algumas das políticas
ambientais.
A ampliação dos espaços de participação da sociedade civil é apontada, nos
últimos anos, como uma das diretrizes fundamentais em projetos de
desenvolvimento sustentável e de conservação ambiental, constando entre as
310
principais exigências do Banco Mundial e agências multilaterais de cooperação
(Kfw, PP-G7, Comunidade Européia, etc.) além disso, através da política de
descentralização administrativa, legitimada pela Constituição Brasileira de
1988, a participação no gerenciamento ambiental de áreas naturais protegidas
passa a ser incentivada por meio de mecanismos vários, como é o caso da
criação do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente).(2001:12)
A partir da década de 80, observa-se portanto um sensível
deslocamento de cunho político: relacionada às lutas contra as ditaduras
militares na América Latina, a participação tem sua concepção alterada,
entendida como um fim em si mesma - conseqüência da apreensão da
realidade, investigada a partir do cotidiano - e transforma-se em meio para a
realização de projetos cujos objetivos centram-se na questão ambiental.
A participação passou, então, a fazer parte dos programas de
desenvolvimento, de forma a tornar as políticas desenvolvimentistas mais
eficientes e mais econômicas. (RODRIGUES, 2001:17)
8.5.1 Metodologias Participativas
Os projetos de conservação ambiental implantados em países africanos
sobretudo a partir da década de 60, tendiam a ser insustentáveis
economicamente por não contarem com o apoio das populações envolvidas com
o lugar. Várias metodologias participativas foram sendo desenvolvidas para
mobilizar estas populações para a conservação do meio ambiente e ao mesmo
tempo levar melhores condições de vida.
Luiz Ramalho, na introdução do livro Introdução a metodologias
participativas, um guia prático:
No início dos anos 70, o participativo se introduziu na discussão de concepções
de programas e modelos de desenvolvimento como um instrumento para
melhorar e aprimorar a eficiência e eficácia ( e nos últimos anos garantir a
‘sustentabilidade’). Planejamentos que não ‘incluíam’ a população, o ‘grupo
alvo’, os ‘beneficiários’, geralmente não ‘funcionaram’. Neste sentido, a
311
participação foi introduzida com um caráter claramente instrumental e
funcional. Nos métodos aqui apresentados parte-se de um conceito de
participação mais amplo: o atores analisam em conjunto, determinam os planos
de ação, definem as suas funções e fortalecem as organizações locais. Isto
ocorre através de aprendizado recíproco, sistemático e estruturado, sendo que
os grupos controlam as decisões ao seu nível específico de atuação, local,
regional ou nacional. O ‘participativo’ portanto ao qual, nos referimos, remete a
uma concepção baseada na plena democracia.
Para que a atuação tenha esse caráter sistemático e estruturado é que se
desenvolveram os métodos participativos. (RAMALHO, 1985:8/9)
Citando Mutter, Ramalho lista alguns dos princípios
fundamentais dos métodos participativos. Reproduzo estes
princípios com um pequeno resumo de cada um:
1. Nenhum esquema rígido, flexibilidade. Não há esquema rígido para os
métodos participativos pois dependem do contexto;
2. Transparência acerca do intento. Todos os participantes devem
compreender as atividades;
3. Interdisciplinaridade. Os assessores devem ter diversas especializações
profissionais;
4. Aprender reciprocamente e comunicação nas duas direções. O ‘grupo alvo’
e os assessores devem aprender conjunta e reciprocamente;
5. Juntar qualidade e quantidade. Procedimentos qualitativos e quantitativos
nas análises;
6. Orientação segundo o grupo. Apoiar as organizações de base, os
processos de grupo;
7. Deslocamento do poder de decisão. O controle e a competência de
decisão estão em grande medida com os beneficiários;
8. “From extracting to empowerment”. Os beneficiários serão capacitados para
guiarem a sua própria história;
9. Presença in loco. A avaliação e a assessoria devem ocorrer in loco;
10. Procedimento interativo. Discussão após cada etapa para ajustar os
procedimentos interativos;
312
11. Democratização. As informações e os resultados precisam ser firmados de
forma prática e passíveis de serem executadas novamente por todos.
12. Documentação. A análise, a discussão e os resultados precisam ser
registrados por exemplo em relatórios.
13. O papel do assessor. Não são os donos do projeto, devem proceder como
guias.
Dentre as diversas metodologias participativas, Brose83 destaca: a
Metodologia para a Resolução de Problemas (MRP), difundida pelo SEBRAE; o
Método Altadir de Planificación Popular (MAPP), utilizado principalmente por
sindicatos e agremiações correlatas; o Método de Análise e soluções de
problemas (MASP) aplicado pela Infraero; o Psicodrama utilizável na solução de
problemas grupais e o Processo Criativo de Soluções de Problemas (PCSP)
aplicado pela iniciativa privada.
O Planejamento de Projeto Orientado por Objetivo (ZOPP) foi formulado
a partir das experiências da Sociedade Alemã de Cooperação Técnica (GTZ),
empresa pública federal alemã. Segundo Brose (op.cit), constitui
(...) um conjunto de instrumentos e métodos que possibilitam a execução de
projetos de forma participativa, baseado nas técnicas de moderação e
visualização. Tal instrumental é principalmente usado para o gerenciamento de
projetos cujos efeitos atinjam um grande número de pessoas, envolvam uma
ou mais organizações executoras e com freqüente participação do setor
público.
Carmem Lúcia Rodrigues (2001:19) pesquisando no sul do estado de
São Paulo relacionou a agência de financiamento com a orientação de se
aplicar o ZOPP como metodologia participativa para a formulação do Plano de
Manejo do Parque Estadual da Ilha do Cardoso:
(...) o banco alemão KfW, responsável pelo financiamento de inúmeros projetos
ambientais no Brasil (caso do Projeto de preservação da Mata Atlântica em
foco no presente trabalho), tem estimulado a utilização de um método
participativo desenvolvido pela agência de cooperação alemã GTZ, o Zopp.
83 In: RAMALHO et al. 1985:20, as próximas considerações sobre o ZOPP, pautam-se neste autor.313
O Plano de Gestão Ambiental da APA de Cairuçu e Reserva Ecológica
da Juatinga não esclareceu qual metodologia utilizaria para constituir o
participativo. Levando em conta as reuniões assistidas, a origem dos técnicos
envolvidos na elaboração (SOS Mata Atlântica, funcionários do IF/SP que
realizaram processo semelhante em Picinguaba/SP no interior do Parque
Estadual da Serra do Mar, agraciados pelos financiamentos do KfW), a leitura
de diversas metodologias participativas, acredito que a equipe realizadora
adotou um método híbrido porém pautado no ZOPP.
Algumas etapas são sugeridas para a aplicação do ZOPP. Na primeira
etapa analisa-se os envolvidos com a situação-problema, listando-os e
descrevendo suas características, num esforço de mapear os diferentes pontos
de vista, os diferentes grupos e organizações envolvidos, seus principais
interesses e conflitos potenciais. Numa segunda etapa realiza-se a uma
análise dos problemas na busca de um diagnóstico consensual da situação.
Numa terceira etapa efetua-se uma análise de objetivos e o grupo ensaia um
prognóstico positivo definindo a situação almejada. Na quarta etapa,
normalmente, há uma análise de alternativas para a construção de uma
estratégia para o projeto a ser implantado. Após estas etapas, procede-se a
etapa de planejamento propriamente dita, em que são estabelecidos os passos
lógicos do projeto detalhando as ações preparadas para vencer etapas e
conquistar objetivos.
De acordo com Brose (op.cit),
As etapas do Método ZOPP são modulares podendo ser utilizadas em conjunto
por grupos de 10 a 30 pessoas em oficinas participativas de alguns dias de
duração, ou aplicadas processualmente ao longo de diversos meses de
trabalho de um grupo que pretenda construir o planejamento de médio/longo
prazo de acordo com o desenvolver das ações cotidianas. (1985:23)
O fundamento desta prática é alcançar sempre o consenso para uma
ação conjunta de diversos atores.
As diferenças entre as metodologias na verdade são sutis e seus
fundamentos ideológicos não são explicitados. Muitas vezes as metodologias
314
limitam-se a um conjunto de regras, de passos, de caminhos mais ou menos
flexíveis e aplicam-se como instrumentos de planejamento. Para o exercício
destas metodologias, mediadores ou facilitadores são formados para agirem de
forma neutra.
Rodrigues, traduziu o ZOPP:
No Zopp, parte-se do princípio que o consenso é obtido através da objetivação
por parte das pessoas do grupo, ou seja, através de uma visão essencialmente
racionalista que espera-se de todos os participantes. Nos fóruns de construção
da matriz, o papel do mediador é fundamental para organizar o material
produzido (cartelas, cartazes, painéis...) e orientar os procedimentos que se
sucedem de acordo com uma ordem particular e, diga-se de passagem,
bastante rigorosa. (2001: 142)
O consenso é buscado a todo momento, para tanto faz-se necessário
que todos expressem seus pontos de vista. A expressão adotada baseia-se na
racionalidade e, como apontado por Rodrigues, o pressuposto é que essa
racionalidade é única. Não se leva em conta as diferentes matrizes de
racionalidade (Gonçalves, op.cit) portanto é a razão predominante que
consegue se impor nos projetos com tantos sujeitos com racionalidades
díspares.
8.5.2 Outras concepções de participação
315
Em nenhum momento histórico foi atribuído um só sentido à
participação. Este trabalho não tem a pretensão de esgotar seus significados
ou realizar uma revisão de todos os seus momentos no Brasil ou no
ambientalismo.
Para pensar a questão da participação inserida no contexto da pesquisa,
alguns autores realizaram reflexões interessantes: Paulo Freire, Francisco
Gutiérrez e Cruz Prado, Carlos Rodrigues Brandão, Carmem Lúcia Rodrigues,
Boaventura de Souza Santos, Aldaíza Sposati, Lúcia da Costa Ferreira, Dalmo
Dallari, Bader Sawaia, Carlos Walter Porto Gonçalves84. Algumas destas idéias
ora serão apresentadas:
Paulo Freire em seus escritos sobre educação sublinha a necessidade
de se ler a realidade, sobretudo em projetos de cunho tão político como a
alfabetização de adultos, para se alcançar, através da consciência, a
perspectiva libertadora tão aclamada por ele. Há sempre um eixo de reflexão
imprescindível que diz respeito a problematização do homem com o mundo,
com suas relações com o mundo. Na obra Extensão ou Comunicação, afirma:
Nem aos camponeses, nem a ninguém, se persuade ou se submete à força
mítica da propaganda, quando se tem uma opção libertadora. Neste caso, aos
homens se lhes problematiza sua situação concreta, objetiva, real, para que,
captando-a criticamente, atuem também criticamente, sobre ela. (1977:24)
Para o conceito de participação que se quer forjar nesta pesquisa as
idéias de opção libertadora, problematização da situação concreta e atuação
crítica são fundamentais.
Ao papel de mediador neutro, desideologizado, das metodologias
participativas descritas anteriormente, que optam por uma só racionalidade, opõe-
se o educador que reconhece que:
(...) educar e educar-se, na prática da liberdade é tarefa daqueles que sabem
que pouco sabem – por isso sabem que sabem algo e podem assim chegar a
saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada
84 Os últimos cinco autores citados escreveram artigos no livro Ambientalismo e participação na contemporaneidade. Sorrentino (coord) Educ/Fapesp,2001.
316
sabem, para estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que
pouco sabem, possam igualmente saber mais. (FREIRE,1977:25)
Na década de 90, aos preceitos da educação popular somaram-se as
preocupações com as questões humanistas e ambientais. Bárcena, prefaciando o
livro Ecopedagogia e Cidadania Planetária, de Gutiérrez e Prado, observa:
(...) ponto de partida de uma gestão ambiental participativa são os atores
sociais e não as prioridades temáticas. É a demanda e não as declarações,
que deve orientar a conformação da cidadania ambiental, isto é, deve-se partir
da compreensão das necessidades e interesses dos atores sociais para, a
seguir, interpretar e adequar as verdades técnicas ou os acordos políticos a
partir da trama da cotidianidade. (in: GUTIÉRREZ & PRADO, 1999:18)
O enfoque dado por Sorrentino aos processos participativos contempla
uma gama de aspectos a serem observados:
Os processos participativos, entendidos como propulsores das perspectivas
emancipatórias e de sobrevivência, que estão nas raízes dos movimentos
ligados à temática ecológica-ambiental, levantam a necessidade e urgência de
ser estabelecida uma série de indicadores e dimensões em sua avaliação,
ligados a conceitos de organização, informação, espaço de locução, tomada de
decisão, diálogo, criticidade, historicidade; incorporação no conceito de
emancipação, tanto da subjetividade, do incremento da felicidade, como da
autonomia/autogestão; a possibilidade da participação potencializar ações
cotidianas; sua contribuição para a manutenção da biodiversidade e
sociodiversidade. (2001:8)
Nesta concepção legítimas preocupações são colocadas, diferentemente
das metodologias participativas - entendidas como uma série de procedimentos
na busca do consenso e de um comportamento racional, óbvio, nada reflexivo -
que incorporaram questões que, no fundo, não são nem autóctones, nem fruto de
uma ideologia utópica.
Aldaíza Sposati, no artigo Movimentos utópicos na contemporaneidade
(in: SORRENTINO, 2001) conclui que para se construir uma cultura emancipatória
317
há que se elaborar uma utopia e se reinventar um mapa emancipatório (que não
seja só o da regulação) e uma subjetividade individual e coletiva.
Construir um projeto centrado no ambientalismo e na participação exige discutir
múltiplas questões, como território, relações sociais e de poder, desejos,
normas.(in: SORRENTINO, 2001:29)
Ainda procurando dar um corpo teórico à participação, recorro a Bader
Sawaia, que chama atenção ao fato da participação ter se tornado um conceito
fashion na modernidade, presente do discurso de políticos, empresários,
cientistas. Segundo a autora:
(...)as experiências de participação correm o risco de se tornarem modestas
oficinas de reparos para colisões sociais ou de remendos de tecidos sociais
esgarçados. (in: SORRENTINO, 2001:120)
Numa observação empírica, a autora evidencia a polissemia do termo:
As formas de participação variam: de intensidade desde a simples adesão até
absorção do indivíduo; de espacialidade, de participação “face a face”,
anônima, virtual, local global; de motivo, por obrigação, por interesses, por
imposição, por afeto; de temporalidade, longa duração, imediata.
Fazendo uma referência a Espinosa e o conceito cunhado por ele de
potência de ação85, promotor de bons e maus encontros, a autora propõe a práxis
participativa como potência de ação. Transcrevendo em itens86:
1- assumir a luta contra a potência do padecer em todas as esferas da vida
humana. Não viver do acaso dos encontros, joguete dos acontecimentos,
pondo nos outros o sentido da nossa potência de ação;
85 “Potência de ação é da ordem do encontro, pois remete ao outro, incondicionalmente. O objetivo de cada um é rentabilizar maximamente sua potência, diz Espinosa, ao mesmo tempo que afirma que só o conseguimos quando nos unimos a outros, alargando o nosso campo de ação”. (in: SORRENTINO, 2001:126)86 Os itens seguem acompanhados, quando necessário, de um pequeno resumo.
318
2- contemplar os afetos no planejamento da ação. Tanto o sofrimento como a
paixão da compaixão, não ignorar que quando participamos podemos fazê-lo
motivados por sentimentos intensos;
3- evitar o empobrecimento do campo perceptivo e das necessidades. Não
permitir que as estratégias utilizadas sejam homogeneizadoras;
4- planejar ações de diferentes temporalidades. Prever várias temporalidades,
o presente deve ser olhado de forma capacitadora e a participação realizar-se
por amor à liberdade e não por esperança de recompensa futura, de redenção;
5- diversificar os espaços de ação. O planejamento da participação deve
abarcar, concomitantemente, as esferas da vida cotidiana: a esfera pública, a
privada e a intimidade;
6- diversificar as estratégias de ação e seus indicadores da eficácia para
romper o cotidiano da vida pública e privada sustentador da participação
autista, reativa, imperativa.
Carlos Walter Porto Gonçalves no artigo Meio Ambiente e Poder: diálogo
entre diferentes matrizes de racionalidade, também presente no livro
Ambientalismo e participação na contemporaneidade, salienta que o
ambientalismo guarda um falso consenso. Na década de 60 tratava de resignificar
a vida, de questionar o modo de vida, e contribuiu para o nascimento da
contracultura. O autor aponta o desenvolvimento sustentável como uma
maquiagem ecológica, uma idéia diluidora criada na lógica de se produzir
consenso, estimulada pela ONU, tratando-se portanto de um falso conceito, uma
idéia criada no campo normativo. O diálogo entre as diferentes matrizes de
racionalidade por ele proposto alimenta a reflexão sobre a participação e a
questão ambiental. No capítulo 6 deste trabalho proponho que o pacto87 a ser
firmado com as populações tradicionais leve em conta essas diferentes matrizes
de racionalidade, os diferentes saberes. Carlos Walter afirma, ainda:
O ambientalismo é responsável por oferecer a essas populações uma
possibilidade de diálogo com o projeto civilizatório mais global. E aqui temos
que reconhecer o pioneirismo de Chico Mendes. Ele soube captar esse fluxo
desterritorializado que é o ambientalismo e, por meio dele, reterritorializar-se
como seringueiro. (In: SORRENTINO 2001:154)
87 Manuela Carneiro Cunha e Mauro Almeida. Consultar capítulo 6.319
A participação ganha na fala de Carlos Walter a dimensão espacial. A
questão ambiental pode aliar-se, em alguns momentos históricos, à luta pela
terra e, dessa forma, as populações se reterritorializarem com sua cultura
camponesa. Esta, acredito, pode ser uma faceta do novo projeto civilizatório
em gestação.
A participação dos moradores na elaboração do Plano de Gestão
Ambiental da APA e da Reserva será examinada à luz dos conceitos de
participação elegidos e da caracterização mais esquemática da metodologia
participativa aplicada.
8.5.3 A Participação no Plano de Gestão
A participação da sociedade civil no Plano começou quando houve a
primeira reunião na Casa de Cultura em Paraty no final de 1998. Como
explicado no início deste capítulo, a metodologia ZOPP, com seus cartazes, foi
adotada, elencando temas e interessados. A possibilidade aventada na época,
de que várias pessoas pudessem sentar e conversar por muito tempo,
recebendo os diagnósticos e talvez participando de sua elaboração para,
assim, escrever o Plano, foi abortada tão logo essa reunião-festa acabou. Os
papéis foram enrolados e nunca mais os grupos constituídos foram contatados.
Mesmo nessa primeira reunião, em que se presenciava a assinatura do
Termo de Compromisso, foram poucos os moradores da Juatinga que
compareceram e, mais raros ainda, os que tiveram oportunidade para intervir88.
O que parecia um problema a ser superado naquele momento, a ausência de
uma comunicação eficiente com as comunidades da Reserva, se mostrou, ao
longo do trabalho de campo, uma estratégia de desmobilização política.
A aplicação dos recursos para a elaboração do Plano, cerca de 500 mil
reais, não foi discutida. O orçamento portanto não foi participativo, nem mesmo
88 Os poucos moradores que apareceram foram convidados na hora, chamados por mim no
cais.
320
uma parcela. Este fato, aliado ao mal estar de ser o Condomínio Laranjeiras o
grande financiador, causou desconfiança nos moradores. Muitos diziam:
Me dá 50 mil que eu sei o que posso fazer para meu lugar. Por que não
podemos dividir esse dinheiro entre as comunidades?
Uma das primeiras ações do Plano foi o Projeto Cairuçu. Nascido no
interior da proposta de educação ambiental, este projeto surgiu após o grupo
de professores da chamada zona costeira, algumas comunidades da APA e
todas da Reserva, receberem uma capacitação89.
Cada módulo dessa capacitação ocorreu em uma comunidade e durou
um fim de semana. Os professores eram convocados a comparecer devido ao
convênio firmado, pois a Prefeitura é uma das parceiras do Plano. A
oportunidade de fazer um curso, ministrado pela SOS Mata Atlântica, era
apontada como imperdível para os educadores. Ao todo foram quatro finais de
semana e mais um dia de treinamento para os educadores realizarem a
aplicação dos questionários nas comunidades.
Os educadores estavam sendo preparados em 1999, através de
dinâmicas de grupo, palestras e vivências, a educar os alunos para respeitar o
meio ambiente, valorizar a cultura caiçara e ensinar aos pais a importância de
uma Unidade de Conservação. No segundo módulo, os professores trouxeram
a lição de casa que consistia em um pequeno diagnóstico das comunidades em
que lecionavam. Um dos problemas mais apontados foi o lixo que passou a ser
o carro chefe do Projeto Cairuçu, o nome foi sugerido pelos educadores.
Resumidamente, o Projeto consistiu na colocação de lixeiras para a
separação do lixo em algumas localidades e um trabalho com a comunidade
via escola – entraram em cena os professores capacitados – para a coleta
seletiva e posterior transporte do mesmo para cidade. Durante dois verões
houve verba para que fossem contratados dois monitores ambientais por
comunidade. Entretanto, nem todas tiveram monitores para orientar os
moradores e informar aos turistas sobre a reciclagem e o Projeto.
89 Acompanhei essa capacitação bem de perto. A coordenadora dos projetos de educação ambiental tornou-se uma grande amiga, além disso, neste primeiro momento eu acreditei que o Plano seria um importante instrumento de planejamento. Participei de todos os módulos, gravando depoimentos.
321
Uma proposta de autonomia interessante parecia estar surgindo naquele
momento: a concepção do Projeto era que depois de algum tempo os
moradores se apropriassem da importância da reciclagem do lixo e, por conta
própria, inventassem soluções locais para separá-lo, armazená-lo e transportá-
lo. Duas questões podem ser colocadas: os moradores queriam receber por
este trabalho (ao menos os responsáveis), e a cidade não tinha infra-estrutura
para receber e armazenar este material até que ele fosse devidamente
distribuído às empresas de reciclagem.
Até 2002, poucas comunidades da Reserva haviam incorporado
plenamente o Projeto Cairuçu. Ele tornou-se sazonal e a autonomia pretendida
pela SOS Mata Atlântica foi entendida como "agora é com vocês". Para as
comunidades o lixo não era prioridade. Os adultos se cansaram da separação
do lixo e as crianças, desmotivadas pela mudança constante de professores
em algumas das comunidades, não mais convenceram os pais a separar o lixo.
A ênfase do Projeto concentrou-se nas lideranças das comunidades e nos
educadores.
O trabalho cotidiano, miudinho, com os moradores foi insubsistente. A
opção do Plano sempre foi trabalhar com as lideranças, com as instituições
locais, de acordo com os ideários de desenvolvimento sustentável.
As decisões mais importantes sobre o devir das comunidades
continuaram sendo tomadas na cidade e seus interesses continuaram não
sendo ouvidos porque a forma de participação proposta, além de
desconhecida, é incompreendida por eles.
Quando ocorriam os módulos do Projeto nas comunidades, a entidade
proponente aproveitava o horário noturno da capacitação para realizar os
autodiagnósticos com os moradores. A responsabilidade pela convocação da
reunião era do professor que acolhia a capacitação e do coordenador de
educação ambiental do município, conhecido e respeitado em todas as
comunidades.
Seu Maneco de Martim de Sá compareceu90 quando houve um módulo
no Pouso da Cajaíba, pois um dos objetivos divulgados era a formação e
capacitação de lideranças. Ele participou de todas as dinâmicas propostas para
90 Atendendo a um pedido meu.322
aquecimento do grupo de professores. Em todos os módulos ele foi o único
morador a participar.
Para entender o que os moradores assimilavam das reuniões de
autodiagnóstico, a metodologia utilizada foi: observar as posturas e colocações
dos moradores durante a reunião, que não durava mais de duas horas, intervir
para esclarecimentos e, posteriormente, retornar a campo e perguntar o que
eles haviam compreendido.
A resposta de Seu Maneco de Martim de Sá:
Ai, Lúcia, foi bem divertido para eles, né? Muita brincadeira, festa... quero
saber o que vai ficar disso porque meus netos estudam aqui no Pouso, quanto
dinheiro foi gasto com isso? Gostei mais das conversas sérias.
As brincadeiras referidas foram as dinâmicas propostas, a parte séria
foram as palestras. Seu Maneco é uma liderança respeitada em Martim de Sá,
Saco das Anchovas e Cairuçu das Pedras, comunidades ligadas por fortes
vínculos de parentesco. Na cidade é conhecido devido a sua luta pela terra, por
morar na roça de mais difícil acesso e ser, junto com os filhos, exímio
pescador. Seu Maneco e família são os únicos moradores da Reserva que
atravessam a Ponta da Juatinga para chegar em casa, realizam esta proeza
quase que diariamente com as canoas confeccionadas por eles. Ele apresenta
uma leitura de mundo e uma leitura em relação ao que ocorre em sua posse
muito interessante e foi uma das lideranças que não compreendeu o processo
participativo. Nenhuma nova liderança foi formada e as mais velhas não foram
valorizadas.
Após a reunião na Casa da Cultura de Paraty, o autodiagnóstico no
Pouso e o módulo do Projeto Cairuçu, nunca mais Seu Maneco de Martim de
Sá e familiares participaram de qualquer atividade relacionada ao Plano de
Gestão.
O autodiagnóstico nas comunidades seguia a regra do ZOPP de
flexibilidade (op.cit). Primeiramente os objetivos do Plano eram apresentados e
alguns conceitos básicos transmitidos tais como: Unidades de Conservação,
desenvolvimento sustentável e zoneamento. Num segundo momento, a
323
comunidade relatava seus problemas e os cartazes começavam a surgir. Após
a listagem, a coordenadora do Plano fazia um exercício para buscar com a
comunidade as soluções no nível local e suas alianças com outras instituições.
Exemplo da intervenção da mediadora e da condução:
a) colocação dos moradores: os adolescentes experimentam tóxicos
levados pelos turistas. Mediadora conduzindo: esta esfera é muito íntima, mas
soluções poderiam ser buscadas junto a secretaria de educação para
prevenção e, projetos de geração de renda também poderiam ser criados.
b) moradores: a problemática da contaminação das águas. Condução da
mediadora: o lixo deve ser reciclado e os moradores devem se conscientizar.
Nestas reuniões, a mediadora era a coordenadora do Plano e não dava
soluções prontas. Procurava levar sempre os moradores a falarem as
possibilidades de resolução. A sensação de participação advinha do fato de
parecer fácil solucionar os problemas. Após essas reuniões, novamente os
papéis eram enrolados e a comunidade não se apropriava de nenhum
encaminhamento. Quem iria falar com a Secretaria, por exemplo ou, contactar
o ITERJ para a regularização fundiária?
Os moradores esperavam que as soluções 'que eles haviam pensado'
fossem encaminhadas pela autoridade competente, nesse caso a SOS Mata
Atlântica. Os resultados dos autodiagósticos viraram breves descrições sobre
cada localidade na Caracterização Sócio –Econômica.
Nas comunidades em que a maioria dos adultos é pouco letrada, a
forma de apresentar os objetivos do Plano foi inadequada. Em Ponta Negra,
comunidade vizinha ao Sono, não assisti a reunião de autodiagnóstico mas fui
após alguns dias e perguntei a alguns moradores, os mais falantes, o que havia
sido conversado e resolvido:
A mulher vejo aqui, mostrou para a gente um monte de fotos bonitas. Vi uns
parentes meu lá da Cajaíba que faz tempo que não vejo. É tão bonito lá...
Depois ela arrecolheu tudo e foi embora.
Mesmo perguntando mais especificamente sobre algum ponto da
reunião, a esta altura os passos da metodologia já eram conhecidos, nenhum
324
morador tinha idéia do que poderia acontecer com seu lugar91.
A frase que mais chamou a atenção sobre a metodologia aplicada:
Eu não sabia que as letras voavam...
Em algumas destas reuniões, a SOS Mata Atlântica levava data show
para a apresentação já com as fotos e os mapas escaneados. No Power Point,
as letras voavam, surgiam de todos os lados, apareciam e desapareciam como
um passe de mágica. Os moradores, pouco letrados, ficavam encantados e
distraiam-se com as imagens das letras e com as figuras que estas formavam.
Um outro passo da metodologia participativa foi a Oficina de
Planejamento Participativo. No início do Plano, em 1998, ela foi explicada como
sendo o ponto de encontro de todos os grupos de trabalho, o que não ocorreu
como já mencionado. Inicialmente estava prevista para durar três dias mas foi
adaptada a dois dias.
Um outra facilitadora de metodologias participativas foi chamada pela
SOS Mata Atlântica para mediar a Oficina. Apresentou-se como administradora
de empresas vinda de São Paulo fazendo trabalho voluntário.
Após as apresentações dos autodiagnósticos pela coordenadora do
Plano, houve uma breve dinâmica de grupo: a mediadora pediu que todos se
levantassem e andassem pela Igreja Santa Rita e, após alguns minutos, fez
com que todos se dessem as mãos para atravessar uma cachoeira imaginária:
só com ajuda mútua é que todos atravessariam. A metáfora criada servia para
forjar uma união para os momentos vindouros de discussão.
Essas dinâmicas propostas pelas metodologias participativas podem
desinibir alguns grupos mas, para as populações tradicionais estudadas, criam
descrédito ou mais mal-estar, contribuindo para o esvaziamento político das
discussões sobretudo quando a busca pelo consenso mascara os conflitos que
serão discutidos num posteriori que nunca ocorre.
Na Oficina foram sugeridos pelos participantes os mesmos temas da
Casa da Cultura. Passados mais de dois anos da primeira reunião, não havia
91 Por algum tempo eu tentava explicar a importância da participação deles nas discussões sobre o destino da região mas depois compreendi que era identificada como um membro da SOS e não conseguia nenhum resultado pois a descrença estava instaurada.
325
nenhum amadurecimento das questões e partia-se somente da vivência
empírica. Quando a Oficina foi realizada em 2001, os passos do Plano já
trilhados eram basicamente os autodiagnósticos e a implantação do Projeto
Cairuçu em algumas comunidades.
O SNUC estava há quase um ano aprovado e o interesse daqueles que
trabalham mais diretamente com a Reserva estava todo dirigido à ele. A própria
discussão do Plano de Gestão tornava-se menor diante da possibilidade da
reavaliação e reclassificação da Reserva. O grupo formado para discutir a
Reserva Ecológica da Juatinga, com direto a cartaz e apresentação para o
grupo maior, deliberou, como já relatado, pela categoria Reserva de
Desenvolvimento Sustentável.
Na Oficina, o papel da mediadora foi questionado após uma intervenção
na busca forçada pelo consenso. A administradora de empresas afirmou que
não havia todo o tempo para a discussão, a noite iria chegar e as pessoas da
roça teriam dificuldade em voltar para a casa portanto, seria interessante
objetivar alguns pontos. Uma moradora de Trindade, que faz parte da APA,
interrompeu-a e disse que ela poderia ir para São Paulo, mas os moradores
queriam todo o tempo para discutir pois ficariam ali até o final de suas vidas.
Se formos analisar a participação, levando em conta os princípios que
regem as metodologias participativas92, podemos destacar que: houve
flexibilidade no acompanhamento das normas ditadas pelo ZOPP; não houve
transparência acerca do intento pois os moradores até hoje não sabem sequer
para que servirá o Plano de Gestão; não houve interdisciplinaridade, uma
consulta à formação da equipe o demonstrará; não houve a aprendizagem
recíproca, os moradores entrevistados assimilaram muito pouco das
discussões fundamentais para a gestão da área; o Plano foi extremamente
centralizador, não houve o deslocamento do poder de decisão; as informações
continuam concentradas nas mãos dos proponentes do Plano, as informações
das fontes primárias não são divulgadas e não há um banco de dados
disponível. Até outubro de 2003 as comunidades não haviam recebido sequer
uma cópia do Plano para estudá-lo portanto as aludidas democratização e
documentação ainda não ocorreram.
92 RAMALHO, 1985 (op.cit)326
Rodrigues (op.cit) afirmou:
Do meu ponto de vista, o Zopp é um instrumento de planejamento que serve,
principalmente, para escamotear conflitos existentes entre sujeitos que atuam
numa determinada área do Projeto. Durante as reuniões ou oficinas em que
esse método é utilizado, a mediação procura evitar, de qualquer maneira, que
os debates prolonguem-se demais, sobretudo quando acalorados. Ao final de
todo o processo de planejamento, aquelas opiniões divergentes que haviam
sido registradas anteriormente entram como apêndice no documento final, ou
são literalmente descartas. Portanto, ao meu ver, força-se uma situação de
consenso. (2001: 143)
As afirmações de Rodrigues acerca do método podem ser aplicadas
também ao Plano de Gestão da Reserva Ecológica da Juatinga.
Os princípios norteadores das metodologias não foram em boa parte
cumpridos e ao que parece formam a concepção que a SOS Mata Atlântica
tem de participação.
Se tomarmos a concepção de processos participativos de Sorrentino
(op.cit), como propulsores das perspectivas emancipatórias e de sobrevivência
e as de Sposati (op.cit) que salienta a necessidade de se discutir, num projeto
centrado no ambientalismo e na participação, discutindo território, relações
sociais e de poder, desejos e normas, pode-se afirmar que realmente não
houve participação dos moradores da Reserva na elaboração do Plano de
Gestão da APA Cairuçu e Reserva Ecológica da Juatinga.
Rodrigues (op. cit) cita Carlos Rodrigues Brandão, quando ele
(...) em 1982, faria várias ressalvas às estratégias participativas que, naquela
época, eram entendidas como sinônimo de apoio às classes trabalhadoras.
Questionaria os sentidos atribuídos à participação :
“Um dos atributos mais usuais das estratégias autoritárias é justamente o de
convocar todos à participação. Conclamar as classes populares a ‘um amplo
processo de participação’ para, depois, exercer sobre o ‘povo participante’
projetos tutelares de controle e manipulação (...) Uma coisa é criar estratégias
de participação popular e transformá-la em um exercício de manipulação
populista, e outra coisa é fazer com que as práticas de mediação sejam, elas
327
sim, participantes de situações e processos de produção e fortalecimento do
poder popular.”
O diálogo como concebido por Carlos Walter (op.cit) não ocorreu, e a
práxis participativa como potência de ação, de Sawaia (op. cit.), tampouco.
As assinaturas nos livros de presença das reuniões, os autodiagnósticos
e o Projeto Cairuçu convalidam a necessidade da participação sugerida por
agências financiadoras.
Os moradores foram "participados" do Plano, convocados a legitimar a
participação fashion da entidade proponente.
Na última página dos Anexos (A-40) há um Convite para a cerimônia de
assinatura dos Termos de Compromisso para a implantação do Plano de
Gestão Ambiental da APA e da Reserva. Mais uma reunião-festa para
implantar o Plano, em março de 2002, sendo que o Plano, até o presente
momento, não foi aprovado e teve seu prazo estendido até Janeiro de 2004.
328
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
(...) coragem de romper com o colapso da
emancipação na regulação
e ousar defender um
paradigma digno para
um vida decente.
(Boaventura de Sousa Santos)
329
Se a natureza continuar a ser entendida separadamente da produção
cultural e sociedade e natureza constituírem um par de opostos; se o
modelo de produção vigente perdurar por um longo tempo e seu potencial de
estender a desigualdade e a destruição prevalecer; se o modelo de áreas
protegidas continuar existindo sob a égide da regulação; se não construirmos
uma nova forma estar no mundo, de resignificar os modos de sentir, de ser e
fazer (como dito por Boff); uma alternativa que esta pesquisa vislumbra, no
contexto das Unidades de Conservação, é buscar modelos que valorizem a
cultura camponesa e façam valer os direitos conquistados no foro internacional.
Em 1993, a primeira vez que viajei para a Praia Grande da Cajaíba,
encontrei 17 casas dispostas entre a praia e o sertão. No carnaval de 2003,
penúltimo trabalho de campo, contei 25 casas. O argumento que as
comunidades crescerão e sobrecarregarão os recursos naturais com novas
roças, por exemplo, para essa comunidade (e para quantas outras?) é inválido.
As novas casas continuam pertencendo a filhos do lugar, que se casaram de
forma tradicional e construíram suas casas na posse dos pais. Há os
adolescentes que saíram, casaram ou arranjaram trabalho fora e assim,
também asseguraram a reprodução camponesa, que sempre encontrará
formas para ocorrer.
A última vez que fui à Praia Grande, em maio de 2003, havia uma notícia
triste: a família mais combativa e amorosa estava com as malas prontas para
sair. Bidica e Dedé enxotaram a família Gibrail, descobriram os contratos de
comodato, participaram das reuniões do plano Diretor - foi ela que se recusou,
num desafio à autoridade imposta, chamar o genro de Gibrail de doutor e teve
seu processo de reintegração de posse acelerado.
A menos de uma semana do recesso do Fórum para as festas de 2002,
este casal teve que se esconder no mato carregando filhos, farinha e café
para fugir do oficial de justiça - que já estava com a ordem de despejo
esperando o barco da família Gibrail para reintegrar na posse a filha do
paulista. Graças aos advogados da Verde Cidadania que despacharam com os
330
desembargadores e obtiveram a suspensão da liminar de despejo, a família de
Dedé e Bidica conseguiu permanecer na posse ainda que muito abaladas.
Vários motivos93 levaram Bidica e Dedé a vender a posse e mudar para o
bairro mais pobre da cidade: problemas de saúde na família; as primeiras
disputas pelas melhores áreas para a exploração do turismo; a eterna pressão
sofrida - cada vez que algumas famílias saem da Praia Grande para Paraty, o
caseiro avisa por telefone e quase sempre são esperados no cais por outros
funcionários da família paulista.
Desesperançosos com a perda da comadre combativa e parente de
todos, outras famílias saíram: Patrocínia e Luiz, Barnabé e Mariana, Seu
Lisiário e D. Yvone, Anildo, Roberto, Dadá e André, Loro, Pedro e Lúcia e
alguns meses antes também por motivos de saúde, Zé, D. Jovenia e Seu Luiz
Hoje (dezembro de 2003) há na Praia Grande as casas de: Filhinho,
Maria, Domingas e Norvino, Caju e Adelaide, Baíca, D. Silvana e Seu Maneco,
Clarisse e Zé, Altamiro e Jandira, Dica, Lando, Japão e, as da nova geração,
Santana, Flávio, Sandro, Cacaio.
Há processos de reintegração de posse contra novas lideranças e desta
forma, escolhendo criteriosamente seus réus, Elizabeth Tannus Notari, herdeira
do Gibrail, logra tirar as famílias. Com Altamiro, morador da Praia Grande,
novamente às vésperas do fechamento do Fórum em dezembro de 2003 a
juíza defere a ordem de despejo e, mais uma vez, os advogados lutam contra o
tempo e revertem temporariamente o despejo, com menos de quatro dias úteis
para montar todas as peças judiciais necessárias.
Seu Maneco de Martim de Sá espera o conclusão de seu processo, os
moradores do Sono e da Ponta Negra também.
Diante da possibilidade da reclassificação da Reserva, a questão
fundiária deve ser contemplada e a terra deve ser de domínio público para que
cessem os processos judiciais que transformam a comunidade em ré e
posteriormente em moradores das zonas mais pobres da cidade. Os contratos
de concessão real de uso devem ser emitidos conforme o que dita lei e dessa
forma garantir a terra como valor de uso.
93 Todos esses motivos foram relatados e acompanhados. Talvez haja algum motivo mais íntimo que a pesquisa não alcançou. Insere-se na dinâmica da comunidade.
331
Com esta afirmação posso me indispor com a comunidade pois não
deixo de admitir que a terra para o camponês tem significado de trabalho, de
sonho, de reprodução social mas também pode ser vendida quando
necessário. Os avós tinham a liberdade de vender e negociar com essa terra,
inclusive trocando-a por outra para casamentos ou cedendo parte da posse
para outros parentes. Os dois valores coexistem na cultura camponesa.
Em algumas reuniões quando procurávamos entender o significado de
cada categoria uma moradora me questionou:
Você pode vender sua casa em São Paulo e mudar para onde quiser. Por que
nós não podemos? Posso sair daqui mas não posso vender? Para onde vou
sem dinheiro?
Diante da atual realidade, essa moradora não podia vender pois estava
em terras da família paulista. Porém, uma contradição continua colocada.
Mantenho a proposta de domínio público até que uma outra forma para
conciliar estes interesses seja descoberta.
Paulo Freire, na obra Extensão ou Comunicação (1977:39) tece
considerações acerca do papel do extensionista e do educador no trabalho
com comunidades camponesas. Espero, adotando esta postura, inserir-me na
teoria da ação com a matriz da dialogicidade.
Para que novos Planos de planejamento territorial não assolem as
comunidades com conceitos pouco transparentes e interesses difusos, a
participação das comunidades, como autores do processo, de acordo com as
concepções de Gonçalves, Brandão, Sawaia e Sposati deve ser considerada e
valorizada na busca de um projeto com decisões compartilhadas, autonomia
consciente e envolvimento.
Seu Maneco de Martim de Sá angustiado revela:
Os Pachecos não conseguiram me tirar daqui mas os turistas vão conseguir.
332
O seu lugar foi descoberto por hordas de turistas. Num primeiro
momento Seu Maneco e família se animaram: os turistas traziam alegria,
reconheciam e respeitavam o lugar. Porém, quando chegaram mais de 400
barracas sem controle de nenhum órgão, a única família penava para atender a
todos. O lixo se acumulava. Seu Maneco construiu banheiros, providenciou
lenha, cercou a casa e convocou as filhas para cozinhar. O IEF não conseguiu
controlar o fluxo de turistas mas autuou o morador pelo banheiro, por vender
lenha e por permitir o camping na praia e restinga.
Bourdieu em Contrafogos - táticas para enfrentar a invasão neoliberal,
identifica no aparelho do Estado uma mão esquerda e uma direita.
Constituindo o grupo da mão esquerda, segundo o autor (1998:9), estão os
assistentes sociais, educadores, os trabalhadores sociais e todos aqueles de
certa forma envolvem-se nos chamados ministérios gastadores, vestígios no
seio do Estado das lutas do passado. Na mão direita estão incluídos os
burocratas das finanças, dos bancos, dos gabinetes ministeriais.
Parece-me que a questão ambiental como foi observada nesta pesquisa
é ambidestra: insere-se na mão esquerda por ser gastadora e guardar vestígios
de lutas do passado porém, encontra na mão direita a sua faceta mais
autoritária, mais burocrata. Como dito por um morador já citado, o Estado é um
polvo: um braço nos salva, outro nos afoga.
Levando em conta o modo de vida tradicional da comunidade caiçara, a
nova categoria a ser escolhida, para a Reserva - democraticamente e não por
Decreto - deve permitir a permanência destas populações, e de fato incorporar
um novo olhar sobre elas, sem reduções ou deificações. Os diferentes saberes
podem se complementar na busca de um novo modelo civilizatório. Este é o
diálogo em que acredito.
A categoria aqui defendida é a Reserva Extrativista. A nova Unidade de
Conservação, acredito, deve ter: Conselho Deliberativo, terras de domínio
público com uso concedido às populações, a visitação pública prevista no
Plano de Manejo e compatível com os objetivos da UC e ter o Plano de Manejo
aprovado pelo Conselho.
333
Novamente Boff: (2000:11/32)
A lógica que explora as classes e submete os povos aos interesses de uns
poucos países e poderosos é a mesma que depreda a Terra e espolia suas
riquezas, sem solidariedade para com o restante da humanidade e para com as
gerações futuras.
(...)
Impõe-se pois, a tarefa de ecologizar tudo o que fazemos e pensamos, rejeitar
os conceitos fechados, desconfiar das causalidades unidirecionais , propor-se
ser inclusivo contra as disjunções, holístico contra todos os reducionismos,
complexo contra todas as simplificações. Assim, o novo paradigma começa a
fazer a sua história.
334
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escritório da Pró- Bocaina.
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obtida na sede da AMAM (Associação dos Moradores e Amigos do Mamanguá).
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29/11 a 02/12/94 & Estratégia Mundial para Conservação. Câmara dos Deputados,
Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias. Cópia xerox obtida no
escritório da Reserva em Paraty.
Discriminatória da Praia do Sono. Apoio Técnico: Secretaria de Estado de
Assuntos Fundiários e Assentamentos Humanos. Órgão Responsável: Procuradoria Geral
do Estado. Cópia xerox obtida no ITERJ.
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Gênese de um plano de Manejo: o caso do Parque Nacional do Jaú.
Fundação Vitória Amazônica:FVA:1998.
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Estadual de Florestas do Estado do Rio de Janeiro e a Fundação SOS Pró-Mata Atlântica
visando a parceria na elaboração e execução do Plano Emergencial e do Plano Diretor
para garantir a Conservação da Diversidade Biológica e das Comunidades Tradicionais da
REJ. Cópia xerox obtida no escritório da Reserva em Paraty.
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São Paulo, fevereiro de 1998.
Plano de Gestão Ambiental da APA de Cairuçu e Reserva Ecológica da Juatinga.
Volume: Caracterização Regional e Sócio Econômica. Terceira versão para apreciação dos
parceiros. Cópia mimeo.
342
Projeto: Ecoturismo como forma de sobrevivência da REJ. João Fernandes de
Oliveira e Cyro Duarte Sobrinho. Cópia mimeo obtida no escritório da Reserva em Paraty.
343
ANEXOS
344
DOCUMENTOS
I.
Listas de profissionais envolvidos no Plano
Abaixo, as três listas dos profissionais que trabalharam na elaboração do
Plano ou tinham cargos institucionais. As listas foram copiadas na íntegra das
primeiras páginas do volume da Caracterização Sócio Econômica. Na lista B e C,
segue ao lado da formação profissional, um pequeno comentário nosso. Nos
primeiros momentos de elaboração do Plano, como eu fazia o campo vivendo da
cidade, conheci quase todos dessas listas.
1 - Relação institucional, no âmbito federal:
Ministro do Meio Ambiente;
Secretário de Biodiversidade;
Presidente do IBAMA;
Coordenador do Núcleo das Unidades de Conservação;
Chefe da APA94.
No âmbito estadual:
Secretário do Meio Ambiente;
Presidente do IEF;
Diretor de Conservação da Natureza;
Administrador da Reserva.
Municipal:
Prefeitura de Paraty;
Equipe da SOS
Presidência;
Diretoria.
2 - Relação dos profissionais técnicos (e, muito importante, sua formação
técnica ou profissional)
Coordenação do Plano, arquiteta;
Caracterização Sócio-Econômica, duas arquitetas (a coordenação incluída);
Fauna, dois biólogos;
Ambiente Marinho, um biólogo;
94 Lembrando: a APA do Cairuçu é uma UC federal. A Reserva encontra-se no seu interior e é estadual.
345
Cobertura vegetal e Uso do Solo, uma engenheira agrônoma;
Gestão, legislação, licenciamento e fiscalização, uma das arquitetas, duas
advogadas da SOS;
Cartografia Digital, três geógrafos;
Mobilização social, um educador (coordenador de Educação Ambiental do
município);
Moderação Oficina de Planejamento95, uma advogada da SOS e uma
administradora de empresas (afirmou no início da Oficina que realizaria esse
trabalho voluntariamente) ;
Supervisão geral SOS Mata Atlântica, três diretores da SOS;
Supervisão IBAMA/DIREC, geógrafa (funcionária em Brasília).
3 - Equipe
Sociólogo, também coordenador da Educação ambiental do município;
Mobilizador Social, da equipe da SOS;
Engenheira agrônoma, coordenou os projetos com educadores da APA e da
Reserva;
Sociólogo rural, realizou a aplicação dos questionários para a caracterização nos
bairros rurais da APA, era na época técnico da Emater;
Jornalista, cobriu os grandes eventos;
Analista de sistema;
Arquiteta, a mesma que participou da caracterização sócio-econômica;
Guarda-Parque, moradora engajada de Trindade;
Técnica em informática;
Geógrafa, (***da USP, preciso descobrir qual foi a sua verdadeira participação,
não a vi em campo, acredito que esteja auxiliando a equipe de cartografia digital
***)
arquiteta;
Professores da Rede Municipal, na análise do Plano comentarei a participação
deles que acompanhei de perto;
guia de turismo, paratiense coordenou o projeto do lixo após a saída da
engenheira agrônoma;
biólogo, da equipe da SOS , trabalha com a despoluição do Rio Tietê;
educador, o único assim chamado;
voluntariado da SOS, distribuíram sacos de lixos num carnaval e possivelmente apresentaram relatórios do que viram sobre o turismo enfurecido.
95
346
II.
Laudo da perícia Realizada em maio de 2002
Atendendo à solicitação de laudo técnico no processo 4559/98 encaminhada ao laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo, visitamos a área denominada Martim de Sá, localizada no município de Paraty, RJ em maio de 2002.
1° quesitoO réu se utiliza da área há muito tempo. Observamos, como seguem as fotos, que a casa abriga uma varanda, uma sala, dois quartos, duas cozinhas e banheiro. Moram nessa casa o Réu, Manoel dos Remédios; sua esposa, D. Lourença XX; a mãe do réu, D. Capitulina XX. Segundo a mãe do Réu, a família Remédios já morava nesse local antes do nascimento do Réu. Depois ter o parto na Praia do Sono, onde havia parteira, D. Capitulina levou o réu com menos de 2 meses para a área onde já habitava com seu marido, conhecido na região como “ Roque Caçador” e com seu sogro, “Benedito Caçador”. O pai e o avô do réu nasceram e morreram na área em litígio, são conhecidos como “Caçadores” pois antes da década de 70 a pesca não era a atividade fundamental da família e das comunidades que viviam da roça de mandioca, banana e artesanato. A caça era praticada por todos e consistia a fonte protéica suplementar ao peixe principalmente nos períodos de inverno, em que o mar bravo não permite, até os dias de hoje, que os barcos saiam para mar.Nessa casa de área descontínua notamos a presença dos elementos típicos da cultura caiçara como fogão a lenha, esteiras de “tabôa”, bancos, varal para secagem de peixes, conhecido como “jiréu”, e casa de farinha com todos aviamentos para o fabrico da farinha de mandioca: roda, motor, tapitis, fuso, forno de cobre. O preparo da farinha ocorre cerca de uma vez por mês e é base da alimentação junto com a pesca.Há ainda uma segunda casa na área de quatro cômodos: uma cozinha, uma sala, dois quartos, onde vivem duas filhas com três netos do Réu. Dois desses netos freqüentam a escola da Praia do Pouso. Nas cercanias dessa casa encontram-se o galinheiro da família com patos e galinhas, um tanque para a lavagem de roupa e uma pequena área que guarda os instrumentos utilizados na roça como enxadas, pás, botas.Na faixa de areia utilizada pela família há um rancho construído para abrigar as embarcações e os aviamentos da pesca como redes, isopor.Considerando a origem caiçara de tais construções, sua complexidade, as condições em que se encontram os acessos ao local, conclui-se que o Réu pratica atos de dono e é assim considerado por todos que conhecem o lugar há pelo menos 10 anos.
2º quesitoA praia de Martim de Sá localiza-se na área rural do município de Paraty. Toda a Reserva Ecológica da Juatinga, Unidade de Conservação que abriga toda a região costeira da Praia do Sono ao Mamanguá, encontra-se em área rural. É um dos lugares mais isolados da área rural e mesmo nas áreas próximas como Saco das Anchovas e Cairuçu das Pedras, a presença do Poder Público não se faz perceber através de escolas, postos de saúde, saneamento básico. Segundo o Plano Diretor do município, ainda em fase de aprovação, no capítulo III, Das Atividades Agrícolas, artigo 35, “ A atividade agrícola será objeto da ação do poder Público, que dará ênfase à fixação do homem ao meio rural e apoio à produção de alimentos”O acesso à área em litígio é difícil o que provocou a existência de uma só família vivendo isolada até a abertura da BR 101 na década de 60 assim como, contribuiu para que a área encontre-se muito preservada com o maior trecho de Floresta
347
Ombrófila Densa contínua, conhecida como Mata Atlântica, do Estado do Rio de Janeiro.O acesso por terra pode ser realizado por dois caminhos. Um se faz partindo de Laranjeiras numa caminhada com mais de 10 horas. Atravessa-se a Paria do Sono, Praia dos Antigos, Praia da Ponta Negra, um trecho da Serra que abriga o ponto mais alto da região, Pico do Cairuçu, com 1070 m de altitude, Praia do Cairuçu, Saco das Anchovas e finalmente chega-se a Praia de Martim de Sá que, se destaca das demais, por sua preservação e pela presença de somente uma família morando. Outro acesso possível, ainda somente por terra, é sair de Paraty Mirim, atravessar para o Saco do Mamanguá, atravessar o Saco de barco, passar por toda a Cajaíba, uma baía com mais de 4 praias e, da Praia denominada Pouso da Cajaíba, rumar para Martim de Sá numa caminhada com cerca de 2 horas. Esse percurso não é realizado em menos de 20 horas.O acesso realizado por barco é o mais utilizado desde a década de 70 com o advento da pesca como atividade econômica principal das comunidades costeiras do município de Paraty. Os barcos da região são conhecidos como “traineiras”. Na área em litígio, as embarcações são ainda artesanais, canoas confeccionadas pelos próprios moradores com motor de popa ou pequenas “voadeiras” adquiridas na época da proibição do uso da mata pelos órgãos ambientais. Do condomínio Laranjeiras pega-se um barco sentido Paraty para contornar a península de Juatinga. São necessárias cerca de duas horas com a embarcação típica, canoa a motor, dos moradores caiçaras residentes na península. A forma mais comum utilizada para se chegar a área conjuga barco e trecho de caminhada. Saindo do cais de Paraty, ruma-se sentido São Paulo, contorna-se a Ponta da Cajaíba e, da Praia do Pouso faz-se o último trecho de caminhada, cerca de 2 horas.
3º quesitoA área em litígio apresenta, na posse do réu, cerca de 6,7 hectares, o que a caracteriza como pequena propriedade, segundo o INCRA e o IBGE. A área e o perímetro foram calculados a partir das medições feitas com GPS em coordenadas UTM. O cálculo assim como o perímetro podem apresentar distorção de cerca de 15 m.
Descrição da posseA frente da posse, do ponto a ao b, caracteriza-se por uma linha de praia de cerca de 100m com o rancho de pesca no centro.O limite segue para o norte , do ponto b ao c, até o bambuzal situado ás margens do curso de água que cruza a posse. Deste ponto segue sentido leste cerca de 300 m até onde o rio encontra com outro curso d’água pequeno, pontos c, d, e.A partir desse encontro o limite segue ao norte margeando outro curso de água em direção ao ponto f até o bananal. Desse ponto o limite segue m linha reta sentido oeste até um afloramento rochoso localizado no fundo da posse atrás da casa de farinha, do ponto f ao g .O limite segue então sentido sudoeste passando por um portão –ponto h – até o ponto extremo oeste da posse onde encontra-se uma queda de água, ponto i de onde Seu Manoel dos Remédios puxa, com mangueiras, água.O limite segue em linha reta desse curso de água até a praia, ponto a finalizando assim todo o perímetro da posse.
4º quesitoAtravés da descrição acima realizada da casa do Réu, podemos confirmar a moradia do mesmo e de sua família na área em litígio. A terra não é utilizada como bem para especulação imobiliária e sim como lugar para se viver, trabalhar e sonhar. Terra de vida e de trabalho.A casa é coberta por telhas de barro, construída da forma tradicional caiçara, de pau a pique com varas de madeira tiradas da mata, o jacatirão, e coberta por barro e cal.
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A estrutura da casa e as roças datam de mais de 10 anos. O pai e avô do réu nasceram e morreram na área e seus corpos estão enterrados no cemitério mais próximo, do Pouso da Cajaíba. XXX filhos do réu nasceram também na área segundo as certidões de nascimento registradas no cartório de Paraty. O Réu não apresenta título de propriedade, nem posse, em nenhum outro lugar.
5º quesitoAtualmente as fontes de renda da família estão associadas às atividades tradicionais de pesca e roça e ao turismo que se implantou nos últimos 5 anos sem nenhum ordenamento por parte dos órgãos competentes.O Réu mantém um cerco – forma típica de pesca da região – associado aos filhos. A produção é vendida nas peixarias de Paraty que compram e ditam os preços ainda no cais. Essa fonte de renda sustenta durante todo a ano a família. O Réu planta e produz farinha de mandioca para seu consumo e de sua família.Atualmente, devido ao grande fluxo de turistas, segundo a SOS Mata Atlântica no Plano de Gestão da Reserva Ecológica, foram mais de 300 barracas no carnaval de 2001, o Réu junto com sua família vende os conhecidos PF´s (pratos feitos) na varanda de sua casa. A farinha de mandioca é produzida por eles, o peixe vem do cerco que a família tem.Essa atividade tem completado a renda da família durante a temporada que se estende do Natal ao Carnaval e nas férias de julho. Durante esse período, que atrai muitos jovens seduzidos pelas condições de preservação da área, por sua beleza e pelas ondas para a prática do surf, a esposa, as filhas, a mãe e o Réu trabalham quase todo o tempo atendendo os turistas que chegam desavisados, sem nenhum preparo, e muitas vezes desrespeitam a família que vive ali isolada. Como ainda não há nenhum ordenamento para o turismo que tenha sido implantado pelos órgãos competentes, na época da temporada, o réu presencia um verdadeiro enxame de pessoas no seu lugar, especialmente escolhido devido ao isolamento para o réu viver com sua família.Seu Manoel dos Remédios construiu dois banheiros na praia após uma temporada sem nenhuma fiscalização em que os turistas poluíram muito a restinga, utilizada por todos como banheiro e as doenças de pele e hepatite começaram a surgir.O lixo deixado pelos turistas também não tem merecido nenhum cuidado especial dos órgãos competentes. O réu auxiliado por alguns turistas separa o lixo inorgânico e o leva de barco para Laranjeiras ou para Paraty.Longe de suas atividades tradicionais, nessa época de temporada, o réu é obrigado, pois não há nenhum controle do número de pessoas que chegam de barco fretado no cais de Paraty, a cuidar de sua posse e tentar um mínimo ordenamento ao menos do lixo e do banheiro. Para a manutenção mínima do lugar para sua família e para esses turistas, o réu cobra uma taxa de R$ 10,00 reais por barraca independente do tempo em que ficam ou do número de pessoas.Com a aprovação do Plano de Gestão da APA e da Reserva o número de turistas será reduzido segundo a capacidade suporte da região. Até isso ocorrer o Réu nada pode fazer com o fluxo de gente que não cessa de chegar nas épocas de temporada.
6º, 7ºe 8ºquesitosSão encontradas ao redor da casa de moradia as árvores perenes com mais de 40 anos, plantadas segundo o Réu, quando ele era ainda era criança. São mangueiras, jaqueiras e um bananal com cerca de 10 anos. Ver localização no croqui.Em volta da casa localiza-se as espécies mais utilizadas pela família que foram plantadas há mais de 10 anos: banana, goiaba, limão, pitanga, laranja.4 pés de jamelão com cerca de 45 anos;6 pés de jaca com cerca de 45 anos;20 pés de laranja com cerca de 10 anos;5 pés de abacate com cerca de 10 anos;5 pés de mangueiras com 45 anosHá ainda as espécies temporárias de ciclo mais curto como mandioca, banana (cerca de 400 pés), abacaxi além das ervas medicinais cultivadas pela esposa e mãe do réu como capim cidró, saião, terramicina, boldo, cheiros verdes em geral. Ver croqui.
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A roça constitui, em todas as sociedades camponesas, um elo forte entre o homem e a natureza, entre o homem e seu lugar de vida. Através dos ciclos das plantas muitas vezes o tempo é contado e percebido. “A época da laranja, o tempo de cada roça de mandioca, a época do abacaxi, da manga...” As árvores perenes marcam os tempos longos da família, como o nascimento ou morte de algum ente querido. O trabalho na roça normalmente é dividido entre os homens e as mulheres. À eles toca limpar a área, fazer o aceiro contra o fogo. À elas, plantar, manter a roça limpa, sem as plantas invasoras e sem bichos como formigas. A colheita pode ser efetuada pelos dois com a ajuda das crianças que desde cedo aprendem a lida do trabalho na roça e na pesca. Nas sociedades caiçaras normalmente o homem cuida mais das atividades relacionadas à pesca e as mulheres às da roça.
9º quesitoNa região costeira de Paraty a pesca de cerco trazida pelos japoneses chegou somente na década de 70. Antes desse tempo a atividade principal das comunidades costeiras era agrícola, principalmente roça de mandioca. O peixe, então abundante, era pescado somente para o autoconsumo ou para ser vendido seco.Seu Manoel dos Remédios conta que trabalhou muito na roça e foi dessa forma que criou os filhos. Quando chegou a pesca de cerco e a pesca embarcada aderiu à essa atividade, como os demais, construindo canoas, aprendendo a tecer a rede, colocá-la na água, visitar o cerco, remendá-la para de novo colocá-la na água. Com a popularização dos isopores as comunidades compram gelo na cidade e saem para pescar, voltando novamente após alguns poucos dias para vender sua produção.Na posse do réu os elementos que compõem essa cultura caiçara típica da região estão presentes: há canoa, puxada do mato pelo próprio Manoel dos Remédios, rede de cerco, isopores, tarrafas.Seu Maneco mantém em sociedade com um dos filhos um cerco. Este cerco é tecido em Martim de Sá com a ajuda da mãe que passa as tardes sentada na varanda tecendo a rede. A produção vendida em Paraty é dividida entre eles. D. Lourença, esposa do réu, também mantém um cerco em sociedade com outro filho que mora no Saco das Anchovas.Na praia está construído o típico rancho caiçara que serve para guardar os aviamentos da pesca e a canoa depois de ser puxada do mar. É no rancho que a família, as mulheres, esperam os homens retornarem do mar para a ajudar na puxada da canoa, guardar os isopores e já escolher o peixe para preparar a refeição.
10º quesitoTodos os ecossistemas relacionados à Mata Atlântica estão preservados na
área em questão. Devido à prática de pousio, as áreas destinadas à roça, mesmo aquelas com mais de 10 anos, estão em estágio de recuperação. Notamos a presença de plantas pioneiras típicas de restinga como aroeira, timbó, goiabeira, araça, embaúba na área destinada à roça conhecida como “vargem”. Ver croqui.Nenhuma mata ciliar está desmatada.Não há plantação em área com declividade superior a 20%.
11º quesitoCaiçaras são populações que se encontram nas praias mais longínquas e ilhas do sul do Espírito Santo ao Norte do Paraná. Surgiram há muito tempo da fusão do índio, do português e que mesclaram, desde a época da colonização, a cultura indígena, portuguesa e também costumes negros. Vivem basicamente da pesca artesanal não predatória e da agricultura principalmente da mandioca. É do mar, das áreas de roça e da mata que tiram seu sustento e que constróem sua identidade social assim como seu imaginário.Na área de moradia do Réu há a presença de todos esses elementos:a roça de mandioca; a casa de farinha - casa construída próxima à casa de moradia com todos os aviamentos para se fazer a farinha - como os tapitis, a roda, o forno;
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quintal com as ervas medicinais e o conhecimento da utilização dessas principalmente pelas mulheres;criação de animais domésticos como cachorros, gatos, galinhas, patos;alimentação à base de peixe, farinha e banana e outros produtos da terra e do mar como frutas e frutos do mar tirados do costão rochoso;o cerco, a tarrafa;o costume de sentar na praia ou num banco na varanda e tecer ou remendar a rede do cerco;presença de canoa ou barco a motor para a pesca;rancho na beira do mar com os aviamentos para a pesca;artesanato e fabrico de utensílios domésticos como tapiti, esteira de tabôa, gaiolas, colheres;presença de fogão a lenha, hoje associado ao gás.Além desses elementos há também os de ordem simbólica que fazem parte do cotidiano como a divisão de trabalho entre homens, crianças e mulheres, as históricas, o conhecimento íntimo da natureza que o cerca assim como sua utilização e seus interditos. O morador conhece todos os bichos da fauna local, como a paca, o jacu, o macuco, o quati, os pássaros e seus costumes de alimentação e moradia. Esse conhecimento foi herdado das gerações anteriores que , não tinham no mar sua grande fonte de sustento.Essa família apresenta ainda um grande diferencial: é a única que mora, partindo de Paraty, depois da Ponta da Juatinga – ponta mais perigosa do litoral sudeste- o que faz com que sejam exímios “homens do mar”. As relações de parentesco, que caracterizam as comunidades tradicionais (segundo os antropólogos Lévi-Strauss, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Maria Isaura Pereira de Queirós, Woortmann entre outros) se estendem de Martim de Sá, onde mora a mãe do réu, senhora com XXX anos, até o Cairuçu das Pedras onde moram primos, sobrinhos do réu, da esposa e da mãe. Essas relações de parentesco criam uma identidade e auxiliam a manutenção dos mutirões para certos afazeres que requerem um maior número de pessoas como limpar uma área para a roça, puxar uma canoa, embarrear uma casa. Segundo Woortmann, “o parentesco não é uma coisa em si mesma; os conceitos de descendência, afinidade, filiação, casamento preferencial expressam relações com a terra enquanto base material da existência do grupo isto é, o parentesco é uma linguagem que fala do uso e da posse da terra.”Quanto maior o isolamento, mais preservados estão os elementos concretos da cultura. Toda a península da Juatinga, devido ao difícil acesso, só foi redescoberta, após a decadência do ciclo da cana e do ciclo do ouro, com a abertura da BR 101. É na década de 60 que chegaram os especuladores imobiliários, os novos proprietários de terra, o turismo. É a partir da década de 60 e 70 que também se cria uma consciência ecológica, de cunho preservacionista imitando modelos norte-americanos, e que surgem as primeiras Unidades de Conservação federais e estaduais nos lugares até então apartados do desenvolvimento do século XX e que, portanto, guardavam além da beleza cênica uma importante diversidade natural e cultural.
12º quesitoA área em questão encontra-se inserida em duas Unidades de Conservação:
Reserva Ecológica da Juatinga criada pelo Decreto Estadual 17981 de 30/10/1992 e APA Cairuçu criada em 1983 através do Decreto 89242/93.
Na justificativa da criação da Reserva há a preocupação em “ preservar o ecossistema local, composto por costões rochosos, remanescentes florestais de mata Atlântica, restingas e mangues que, em conjunto com o mar, ao fundo, forma cenário de notável beleza, apresentando peculiaridades não encontradas em outras regiões do Estado”.
Segundo o Art. 1º “ Fica criada, no município de Paraty, a Reserva Ecológica da Juatinga, de natureza non edificandi limitada de um lado pelo Saco do Mamanguá, de outro e pela frente, pelo mar aberto e, pelos fundos, por uma linha reta imaginária que partindo do ponto conhecido como Cachoeira do Cocal (no local do Canto Bravo
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da Praia do Sono), alcança o local conhecido como Porto do Sono (ao fundo do Mamanguá), ficando destarte, resguardada a faixa de marinha.”
No artigo 4º, “ A Fundação Instituto Estadual de Florestas –IEF/RJ desenvolverá programa específico de Educação Ambiental, com o objetivo de fomentar a cultura caiçara local, compatibilizando a utilização dos recursos naturais com os preceitos conservacionistas estabelecidos neste Decreto”
Portanto, não só a área encontra-se dentro da Unidade de Conservação supra citada como a cultura caiçara tem seu espaço garantido pelo órgão estadual competente vinculado a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.
14º quesitoA lei 9985/2000 institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza e estabelece critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação.
No artigo 2º, parágrafo2º entende-se por conservação da natureza: “O manejo do uso humano da natureza, compreendendo a preservação, a manutenção, a utilização sustentável, a restauração e a recuperação do ambiente natural, para que possa produzir o maior benefício, em bases sustentáveis, às atuais gerações, mantendo seu potencial de satisfazer as necessidades e aspirações das gerações das gerações futuras, e garantindo a sobrevivência dos seres vivos em geral.”. A Reserva Ecológica da Juatinga no seu artigo 4º, supracitado, procura portanto, com seus preceitos conservacionistas, garantir a sobrevivência em bases sustentáveis para os moradores tradicionais ali residentes, fomentando a cultura e promovendo atividades de educação ambiental para a elucidação do conceito de sustentabilidade.As principais características das populações tradicionais, segundo a antropologia rural são:populações que apresentam um modo de vida voltado principalmente para subsistência com fraca articulação com o mercado;utilizam tecnologias de baixo impacto derivadas de conhecimentos patrimoniais; utilizam mão de obra familiar, não há força de trabalho assalariada;apresentam relações de parentesco e o compadrio como norteadoras da organização social do grupo;em geral ocupam a área há muito tempo; têm pouco poder político devido ao isolamento e pouco acesso às instituições da cidade como fórum, escolas, hospitais, cartórios, bancos...;normalmente não têm registro legal de propriedade privada da terra, definem apenas o local de moradia como individual, sendo o restante do território utilizado como área de uso comunitário, com seu uso regulamentado pelo costume e por normas costumeiras;herdam, de forma dinâmica, muitas vezes através da história oral, histórias do lugar e da natureza que compõem o imaginário do grupo criando assim uma identidade cultural e territorial muitas vezes distinta do resto da sociedade;têm conhecimento profundo dos ciclos biológicos e dos recursos naturais pois necessitam dele no trabalho diário;interdependência com a natureza.O Réu é um representante legítimo de população tradicional pois apresenta todos os atributos acima citados. É um caiçara que herdou o relacionamento com a terra e as tecnologias rudimentares de baixo impacto com os pais, assim como as histórias sobre o lugar, as relações de parentesco, o profundo conhecimento da mata que o cerca e a habilidade particular de sua família para atravessar a Ponta da Juatinga com as canoas confeccionadas por eles.
18º quesitoNa posse, há trechos de mata atlântica em avançado grau de recuperação, restinga, roça, água doce, onde é captada a água através de mangueiras, e área construída. Nas áreas de roça há um trecho em pousio, desde a época do início de processo, que já se encontra em avançado grau de recuperação dando lugar a restinga.
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A mata atlântica vizinha a área do Réu encontra-se no estágio sucessional secundário. Há árvores de mata atlântica primária como jequitibá, cedro, timbuíba, jatobá, o que comprova que as ações não são impactantes. O próprio Réu reconhece essas espécies e ajuda na localização das mesmas para a preservação e pesquisa.A declividade da área é baixa, menor que 20%, o que aconselha a prática da agricultura no local sem riscos de desabamentos ou impactos ambientais.
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III.
Reuniões na Prefeitura de Paraty – 20/07/01
A reunião tem início às 10:26.O representante da FEEMA se posiciona a favor da Reserva de Desenvolvimento Sustentável.
A intenção da reunião era elaborar uma emenda ao art. 182 do Plano Diretor que trata das áreas protegidas do município.
Paulo Schiavo, Diretor da Conservação da Natureza (DCN), do IEF, se posiciona contrário à Reserva de Desenvolvimento Sustentável.
Gleison { chefe de gabinete da prefeitura e quem coordenou as reuniões para o plano Diretor} afirma que o executivo municipal apoia as comunidades.Paulo afirma que há uma lei nova que obriga o Estado a implantar os Conselhos Gestores e que esses serão deliberativos.
{ Hoje, de posse dessa lei, é possível ver que não há obrigatoriedade do Conselho ser deliberativo.}
A Comissão Pró-Juatinga terá seguinte formação:
7) Associações de Moradores: Ponta Negra Juatinga Sono Praia Grande da Cajaíba Pouso Mamanguá Cairuçu Calhaus Ipanema
8) Proprietários Fernando Notari {genro do falecido Gibrail} Lincon Pacheco {proprietário de Martim de Sá e parte do Pouso} Miriam Sérgio { único caiçara que se apresentou com títulos de terras, do Pouso} Lenir Tannus {viúva do Gibrail}
9) Instituições Governamentais IEF ITERJ SEMA IPHAN IBAMA Câmara Municipal de Paraty
10)Ongs Sos Mata Atlântica IPHAC Verde Cidadania Associação Cairuçu
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11)Universidades Nupaub (USP) Esalq – Lastrop (USP)
Surge um novo grupo pois a comunidade perguntou onde eu estaria. Eu disse que não queria votar, que estava feliz com meu lugar de assessorar a comunidade quando fosse necessário. Eles sugerem então a inclusão de um novo grupo:
12)Convidados Lúcia ALERJ OAB IAB ( Instituto dos arquitetos do Brasil). { participou de duas reuniões um
arquiteto que estava pensando nas obras dentro da reserva e resolveu se incluir} Patrícia (uma advogada que também participou de duas reuniões)
Como a lista de convidados tinha crescido eu sugeri que esse grupo não tivesse direito a voto. O que foi aceito pela maioria dos presentes.Há uma pausa na reunião pois um pequeno grupo se retira para escrever o manifesto – como estava sendo chamado por Gleison.A reunião termina com a leitura do manifesto e com a nova data para ouvirmos a posição de todos os convidados.
Reunião na Prefeitura de Paraty – 30/08/01
transcrição de fita gravadaSempre que as falas estiverem reproduzidas na íntegra estarão entre aspas com o nome, sempre que identificável, na frente. Esclarecimentos meus estarão entre colchetes No meio da fala o símbolo (...) representará uma quebra na fala, possivelmente uma intervenção de alguma outra pessoa ou um trecho indecifrável. Os grifos são meus.
lado A
Gleison, chefe do gabinete
Apresentação do Chefe do Gabinete dando início aos trabalhos. Ressaltando que durante os quatro meses de discussão {de junho a setembro de 2001} a grande conquista que ele enxergava nesses trabalhos foi a aprovação do parágrafo que será introduzido no plano Diretor, além da organização das pessoas para se defenderem.
Gleison: “Agora eu acho que é necessário que as pessoas que compõem esse colegiado, essa plenária façam alguma outra ação que não somente se manifestar com o Plano Diretor, é hora do Comitê tirar alguma manifestação, alguma maneira de se manifestar, a nível da Prefeitura Municipal já está bem conduzido, bem aceito, democraticamente colocado dentro do plano Diretor. Estamos aqui ombro a ombro com as comunidades, com os proprietários para encaminhar a questão que foi colocada. Agora quem vai realmente decidir a questão sobre a Reserva Ecológica da Juatinga não é a Câmara dos Vereadores, é a Assembléia Legislativa, quem vai autorizar o Executivo do Estado a tomar alguma ação com relação à Reserva Ecológica da Juatinga é a ALERJ. E quem vai tomar alguma ação em relação à Reserva da Juatinga. É o Governo do Estado então, portanto, eu acho que nós chegamos num momento em que esse coletivo, esse plenário, pode e deve (...)
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Há um breve esclarecimento pois a reunião anterior não havia sido coordenada por ele. {O secretário de meio ambiente municipal, quem o substituiu, tentou dar um outro encaminhamento para a questão da reclassificação, que não foi aceita e a reunião foi muito tumultuada. Nessa Gleison voltou a coordenar.}
Gleison: “ A posição da Prefeitura Municipal é aquela decidida, que foi tirada na última plenária. A gente acata aquilo que foi discutido porque foi discutido durante bastante tempo, com bastante cuidado, bastante cautela. Então pedimos à vocês o seguinte: a Prefeitura virou um sócio menor agora para se manifestar frente á Assembléia Legislativa, a o Governo do Estado, para tornar público essa decisão e a maneira como essa decisão foi tomada. Foi tomada de uma maneira democrática, amplamente discutida etc. e etc.”
Gleison diz que a Prefeitura pode ceder para o Comitê a possibilidade política, assessoria de imprensa, contatos e o que já foi decidido será encaminhado.Esclarecendo uma pergunta:
Gleison: “ A Reserva da Juatinga foi criada pelo Governo do Estado, o que fizemos durante esse tempo, porque soubemos que haveria uma intenção do Governo do Estado, da Assembléia Legislativa, de reclassificar a Reserva e nós nos manifestamos democraticamente com relação a maneira que nós consideramos que essa Reserva deva ser reclassificada. Agora a nossa vontade (...) é uma vontade que deve ser muito considerada e de preferência respeitada. Se a pirâmide fosse montada do jeito que deve ser, ou seja, que o poder local tivesse realmente privilégio mas, infelizmente o nosso sistema é assim: o governo federal tem mais poder que o governo estadual, que teoricamente tem mais poder que o governo local (...) nós temos que reconhecer isso. E a nós, do poder local, nós da prefeitura, nós pessoas ligadas à movimentos democráticos coube fazer com que as pessoas se organizem para a gente fazer com que haja o retorno ao topo da pirâmide e diga: olha nós estamos aqui embaixo, estamos organizados e queremos que a coisa seja conduzida dessa maneira.(...)“É importante, independe das (...) que tenham ocorrido na última reunião, que as pessoas se manifestem, e que se manifestem para ajudar dentro daquilo que já foi decidido. E vamos contar toda essa história para os deputados. Poderia ser escrita uma carta da Comissão, e não da Prefeitura, a Prefeitura entra como signatária. Essa carta deve ser encaminhada em breve, pode ser uma manifestação, um manifesto (...) A manifestação tem que sair do Fórum da localidade e ir para o âmbito de tornar isso público. Fazer com que todo mundo saiba a decisão que foi tomada e como ela foi tomada.
Gleison explica que irá se ausentar um pouco pois terá uma agenda cheia com a chegada dos franceses que irão visitar Paraty e ver a candidatura da cidade para ser tombada pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade.
Fala do Ribeiro - presidente da Associação dos maricultores e proprietário de terras na Juatinga. Ele fala sobre as dúvidas jurídicas em relação as categorias do SNUC [pois ele ainda não havia sido regulamentado] Gleison pede a palavra:
Gleison: “Questão de ordem, Ribeiro, para a gente não perder o fio da meada: essa questão jurídica já foi discutida na plenária e como a gente também tinha uma dúvida, naquele momento não era jurídica era de condução, a gente se manifestou não foi sobre um tipo de unidade de conservação. A gente se manifestou sobre um conceito de unidade de conservação (...)
Gleison se mostra contrário a idéia de Ribeiro de esperar a posição do IEF por seria esperar “Inês morta”. Sugere que o manifesto seja enviado e seja dado um prazo de 45 dias para que todos os que receberem se manifestem numa nova reunião. Salienta que deve ser colocado nesse manifesto o que foi decidido, por quem e como. Sugere a
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formação de uma pequena comissão para escrever e encaminhar para ALERJ, Governo do Estado, impressa....Alecir, presidente da Associação dos Moradores do Mamanguá inicia sua fala:
Alecir: “Nós comunidade, na última reunião marcamos uma nova reunião só para as comunidades com alguns convidados nossos pra nos ajudar a esclarecer algumas coisas. Fizemos essa reunião, esses convidados todos eles compareceram e as comunidades do Mamanguá, Praia Grande da Cajaíba, Ponta negra, Sono, [ eu lembro que Cairuçu das Pedras] ainda faltou algumas mas acho que o tempo estava ruim. Nessa reunião que nós fizemos nós também tomamos uma decisão porque isso que você acabou de falar até agora eu concordo, com tudo mesmo. Não tem o que tirar nem pôr. Agora nós decidimos chegar aqui hoje e fazer uma proposta, até que apareça uma proposta melhor ou seja, nós já vamos ter a nossa proposta até que alguém chegue para a gente a apresente outra.Então a nossa proposta, inclusive um dos convidados, era o Paulo Schiavo do IEF – quando eu liguei para ele, ele falou que não dava para ele vir mas marcou uma reunião quarta-feira passada, dia 29 e ele não apareceu, mandou, avisou de tarde que não poderia ia aparecer [ uma voz: O Paulo é o rei de não parecer] então, tudo bem, nós fizemos a reunião assim mesmo, passamos para o pessoal o que estava acontecendo mas não foi o que esperávamos...
Gleison: “Mas qual foi a proposta?
Alecir: “A nossa proposta até o momento é Reserva de Desenvolvimento Sustentável com domínio público. Está tudo dentro do que você falou, né? Agora nós pedimos uma nova reunião pra daqui dois meses...”
Gleison: “Agora tem uma sutil diferença. Como nós não temos ainda o Sistema de Unidades de Conservação aprovado, regimentado, com o que foi tirado aqui no plenário foi uma manifestação sobre o tipo de Unidade de Conservação não necessariamente uma Reserva de desenvolvimento Sustentável, mas uma ... o texto está lá. É em cima deste texto que o executivo peça para a gente fazer esse encaminhamento. Claro que vocês podem se manifestar. Agora esse plenário, que é um fórum maior, que reuniu mais pessoas etc. e tal, ele se manifestou assim, que se a Reserva Ecológica for reclassificada seja reclassificada, tá lá no texto, não como reserva de Desenvolvimento Sustentável.”
Gleison explica que não foi acordada a categoria de RDS por todos pois na regulamentação alguma vírgula poderia ser modificada e a categoria poderia não interessar mais o plenário.
Gleison: “ Só estou fazendo uma ressalva que a proposta do Executivo Municipal é essa: nos manifestarmos porque a coisa não pode ficar circunscrita a esse grupo que a cada dia está menor (...) nos manifestamos para fora daqui, para quem de direito, com aval, com o apoio do Executivo Municipal, de que esse plenário se reuniu tantas vezes, reuniu tantas pessoas, tão significativamente representadas e democraticamente e encaminhemos para os deputados, SEMA, IEF, IBAMA, SOS Mata Atlântica, pra todo mundo saber que nós nos manifestamos assim, mantida a manifestação que saiu daqui. Agora, mais tarde regulamentado o SNUC aí já é um outro capítulo.”
Pede a palavra Adriana Mattoso, {da SOS Mata Atlântica, coordenadora do Plano de Gestão da APA e da Reserva Ecológica da Juatinga}.Explica que há uma grande indefinição com a questão fundiária da Reserva. O Estado acha que as terras são dele e muitas pessoas têm o domínio. Explica qual a proposta da SOS para a questão. Primeiramente aponta que a) há terras de domínio privado comprovadas, escrituradas, e que essas devem continuar só sairão se houver algum fato gravíssimo que torne a permanência complicada; b) há terras de domínio do estado que estão ocupadas: existe terras ocupadas por caiçaras e
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terras de pessoas que compraram a posse; c) existem proprietários ou não que estão embargados, que tem obras embargadas.A proposta segue a linha de unidade de uso sustentável e propõe que para as comunidades que não tem documentação seria feito um levantamento para a concessão do uso. No caso das pessoas que são de fora há casos distintos: a) os que têm construção embargada; b) os que compraram antes da reserva se tornar Reserva; c) os que compraram a posse depois da Reserva e que precisamos descobrir o que vai acontecer com eles pois contribuem para a especulação imobiliária e que esse é um comércio que não interessa ninguém; há os que foram embargados e os que não foram. É o Estado quem deve se manifestar do ponto de vista jurídico.
Adriana: “O Estado não pode dar a concessão de uso pro fulaninho que comprou terras na Reserva.”
Continua que a concessão só deverá ser dada àqueles que estão há mais de 50 anos, segundo a própria Lei do Minc. O Estado vai dar a concessão pra quem ele entender que deva ser contemplado. Na proposta a novidade, até então não aventada, é que os que compraram posse depois do decreto da reserva vão ter que se entender com o Estado e de repente até negociar, junto com o Conselho de Gestão, uma mitigação – maneira de repor os danos ao patrimônio do estado. A Reserva precisa de ajuda para ser implantada. Ela sugere que uma fonte de recursos possa ser essa já que compraram a preço de banana, agora podem negociar com o estado quantos por cento terá que pagar em quanto tempo.
Adriana: “ Agora, para os proprietários ou posseiros, caiçaras ou o pessoal (...) a ocupação da terra vai se dar conforme o zoneamento, quer dizer é o zoneamento que rege a ocupação.”
Gleison pergunta quando esse zoneamento ficará pronto e quando será ao IEF.
Adriana: “ Então, a gente não vai entregar (...) para o IEF, a gente vai tá fazendo isso junto com vocês”.
Ela diz que uma reunião com a prefeitura poderá estar ocorrendo na semana seguinte.
Gleison: “(...) é interesse da comunidade, do meio ambiente, do poder executivo municipal. Não dá para criar uma reserva em cima de terras particulares e depois desconhecer esses proprietários.
{ a posição da prefeitura que sempre oscilou e se mostrou promíscua com os proprietários é revelada. Chamo de promíscua pois o prefeito Zé Cláudio ao término das reuniões saía da prefeitura acompanhando a viúva do proprietário Gibrail, D. Lenir, em uma charete conduzida por moços com trajes de séculos passados pelas ruas da cidade histórica. Por mais que o chefe de gabinete estivesse conduzindo bem as reuniões sempre ficava essa dúvida em relação a posição pessoal do prefeito. Antes de se tornar prefeito, Zé Cláudio me confessou que achava que o “Dr. Gibrail era o maior ecologista de Paraty, pois a reserva só estava daquele jeito bonito pois ele comprava terras para a preservação”.}
Ele ainda diz que o zoneamento deve ser razoável e a Adriana concorda pois um zoneamento razoável pode resolver as questões colocadas dentro da Unidade de Conservação pois a comunidade poderá saber de quem são as terras e o que pode ser feito, pode saber até onde é da comunidade tradicional, onde não é e onde um proprietário pode fazer um empreendimento.
Gleison: “ A gente não quer uma Unidade que seja uma camisa de força”.
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Ele pergunta quando o zoneamento proposto pela Adriana, estará pronto pois a proposta do zoneamento pode, talvez, estar colada com a reclassificação da reserva {lembrando para uma categoria de usos sustentável}. O plenário se manifestaria sobre a reclassificação e cobraria uma posição dos órgãos envolvidos e já se manifestaria também em relação ao Plano da APA e da Reserva.
Gleison: “ As comunidades querem saber o que vai acontecer, os proprietários estão ansioso para saber como essas questão vai ser equacionada (...).”
A Adriana é cobrada, o poder executivo municipal quer saber um prazo para atrelar a proposta de uso sustentável. Adriana sugere 30 dias.Entra uma fala minha para esclarecer entendendo que o plano não poderia ser entregue e analisado nesse tempo. O meu receio era que ele fosse aprovado no bojo da discussão da reclassificação. Depois de uma breve discussão Gleison retoma à idéia que dentro do manifesto e da convocação para uma reunião com os órgãos no prazo de 45 dias para eles se posicionarem sobre a reclassificação, poderia já haver uma referência ao Plano enquanto isso nós estaríamos discutindo-o
Inicia a fala Serginho { se diz proprietário de terras no Pouso da Cajaíba e passou boa parte das reuniões perdido pois era o único caiçara que se apresentou com documentação, alega um título de 1912. Ainda nesse momento não se vê na posição dos proprietários grileiros, tampouco no posição dos caiçaras –grandíssima maioria- dos posseiros. Não quer perder sua propriedade e ter somente a concessão de uso}96. Ele argumenta que tem família no Pouso, escrituras de 1912...
Gleison retoma a palavra dizendo que a intenção da reunião era chegar num bom acordo e não discutir casos específicos, particulares.Adriana continua.
Adriana: “ (...) para concluir meu pensamento que é o seguinte: sou do time que quer que o cara que se ferrou a vida inteira lá agora que tem uma oportunidade de ganhar, possa ganhar alguma coisa. Eu brigo por isso desde a briga da Trindade.
Ela prossegue explicando que quem ficou na Trindade hoje está bem: com pousada, carro e celular, há questões para serem discutidas como o desenvolvimento urbano da vila para que não vire um “Frade” de Angra dos Reis.
Gleison interrompe novamente Serginho que tenta falar e diz que as pequenas discussões devem ser evitadas para que a gente não se perca e diz que a Adriana traz boas notícias com o Plano.
Eu peço a palavra para esclarecer os encaminhamentos, novamente tenho a preocupação de não juntar, sem cuidados, a reclassificação da Reserva com aprovação do Plano de Gestão da Reserva e da APA.
Gleison reafirma a intenção do manifesto.
Gleison : “ Não podemos perder a beleza desse consenso que foi tirado.”
Ribeiro fala, não é possível a compreensão e transcrição.A reunião começa a ficar mais tumultuada com várias pessoas falando junto e querendo participar da escritura da elaboração do manifesto.
96 Nos anos subsequentes ele acabou trabalhando como monitor do IEF e é identificado pelos moradores como “puxa-saco” dos proprietários pois sempre andava com eles e negociava as terras dos caiçaras para os proprietários adquirirem a posse na terras onde dizem portadores da propriedade.
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Bia, representante do IPHAC sugere que a Comissão para escrever poderia já ser formada.Gleison ressalta que o poder executivo municipal endossará o documento – que é de todos – chama de novo a responsabilidade para o coletivo presente.
Adriana sugere que a Comissão para escrever seja a mesma que formou a proposta do Comitê Gestor da Reserva e repete que o zoneamento da reserva determinará o uso da terra é o Estado quem definirá a questão jurídica da terra.
Gleison diz que a prefeitura é parceira na elaboração do Plano e está esperando a proposta de zoneamento para discutir com o plenário pois não definirá sozinha a aprovação.Alguém do plenário sugere que numa data anterior á apreciação do zoneamento pelos órgãos convidados é necessário passá-lo pelo “Conselho”.,Gleison diz que o coletivo não pode esperar nenhum { ele reforça o nenhum } particular seja de um órgão do estado, de Ongs, de proprietários. Reafirma que essa é maravilha da reunião: o respeito, a democracia. Sugere que participe dessa comissão a Adriana, o Ribeiro.
Nesse momento perco a possibilidade de transcrição pois sou abordada pela proprietária Bete que se sentara ao meu lado e durante toda a reunião observou minhas anotações e me inquire de onde sou, como alguém pode ser representante de uma Universidade , exatamente de onde eu era e anota todas as informações e logo, do celular, procura informações sobre o laboratório de geografia agrária da USP. Afirma que desde o final da reunião passada haviam dado outra informação para ela, que não existia esse lugar...
Interrompo a sabatina, a qual eu estava sendo submetida pela Bete, para lembrar que na reunião do dia 20/07 havíamos já proposto o que poderia ser o futuro Conselho Gestor da Reserva e que foi denominado Comitê Pró-Juatinga.
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LEIS
I.
SNUC - SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃOLEI No 9.985, DE 18 DE JULHO DE 2000.
Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências.
O VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA no exercício do cargo de PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
CAPÍTULO I
DAS DISPOSIÇÕES PRELIMINARES
Art. 1o Esta Lei institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, estabelece critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação.
Art. 2o Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
I - unidade de conservação: espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção;
II - conservação da natureza: o manejo do uso humano da natureza, compreendendo a preservação, a manutenção, a utilização sustentável, a restauração e a recuperação do ambiente natural, para que possa produzir o maior benefício, em bases sustentáveis, às atuais gerações, mantendo seu potencial de satisfazer as necessidades e aspirações das gerações futuras, e garantindo a sobrevivência dos seres vivos em geral;
III - diversidade biológica: a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas;
IV - recurso ambiental: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora;
V - preservação: conjunto de métodos, procedimentos e políticas que visem a proteção a longo prazo das espécies, habitats e ecossistemas, além da manutenção dos processos ecológicos, prevenindo a simplificação dos sistemas naturais;
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VI - proteção integral: manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos seus atributos naturais;
VII - conservação in situ: conservação de ecossistemas e habitats naturais e a manutenção e recuperação de populações viáveis de espécies em seus meios naturais e, no caso de espécies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde tenham desenvolvido suas propriedades características;
VIII - manejo: todo e qualquer procedimento que vise assegurar a conservação da diversidade biológica e dos ecossistemas;
IX - uso indireto: aquele que não envolve consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais;
X - uso direto: aquele que envolve coleta e uso, comercial ou não, dos recursos naturais;
XI - uso sustentável: exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável;
XII - extrativismo: sistema de exploração baseado na coleta e extração, de modo sustentável, de recursos naturais renováveis;
XIII - recuperação: restituição de um ecossistema ou de uma população silvestre degradada a uma condição não degradada, que pode ser diferente de sua condição original;
XIV - restauração: restituição de um ecossistema ou de uma população silvestre degradada o mais próximo possível da sua condição original;
XV - (VETADO)
XVI - zoneamento: definição de setores ou zonas em uma unidade de conservação com objetivos de manejo e normas específicos, com o propósito de proporcionar os meios e as condições para que todos os objetivos da unidade possam ser alcançados de forma harmônica e eficaz;
XVII - plano de manejo: documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade;
XVIII - zona de amortecimento: o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade; e
XIX - corredores ecológicos: porções de ecossistemas naturais ou seminaturais, ligando unidades de conservação, que possibilitam entre elas o fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a dispersão de espécies e a recolonização de áreas degradadas, bem como a manutenção de populações que demandam para sua sobrevivência áreas com extensão maior do que aquela das unidades individuais.
CAPÍTULO II
DO SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
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DA NATUREZA – SNUC
Art. 3o O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC é constituído pelo conjunto das unidades de conservação federais, estaduais e municipais, de acordo com o disposto nesta Lei.
Art. 4o O SNUC tem os seguintes objetivos:
I - contribuir para a manutenção da diversidade biológica e dos recursos genéticos no território nacional e nas águas jurisdicionais;
II - proteger as espécies ameaçadas de extinção no âmbito regional e nacional;
III - contribuir para a preservação e a restauração da diversidade de ecossistemas naturais;
IV - promover o desenvolvimento sustentável a partir dos recursos naturais;
V - promover a utilização dos princípios e práticas de conservação da natureza no processo de desenvolvimento;
VI - proteger paisagens naturais e pouco alteradas de notável beleza cênica;
VII - proteger as características relevantes de natureza geológica, geomorfológica, espeleológica, arqueológica, paleontológica e cultural;
VIII - proteger e recuperar recursos hídricos e edáficos;
IX - recuperar ou restaurar ecossistemas degradados;
X - proporcionar meios e incentivos para atividades de pesquisa científica, estudos e monitoramento ambiental;
XI - valorizar econômica e socialmente a diversidade biológica;
XII - favorecer condições e promover a educação e interpretação ambiental, a recreação em contato com a natureza e o turismo ecológico;
XIII - proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente.
Art. 5o O SNUC será regido por diretrizes que:
I - assegurem que no conjunto das unidades de conservação estejam representadas amostras significativas e ecologicamente viáveis das diferentes populações, habitats e ecossistemas do território nacional e das águas jurisdicionais, salvaguardando o patrimônio biológico existente;
II - assegurem os mecanismos e procedimentos necessários ao envolvimento da sociedade no estabelecimento e na revisão da política nacional de unidades de conservação;
III - assegurem a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação;
IV - busquem o apoio e a cooperação de organizações não-governamentais, de organizações privadas e pessoas físicas para o desenvolvimento de estudos, pesquisas científicas, práticas de educação ambiental, atividades de lazer e de turismo ecológico, monitoramento, manutenção e outras atividades de gestão das unidades de conservação;
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V - incentivem as populações locais e as organizações privadas a estabelecerem e administrarem unidades de conservação dentro do sistema nacional;
VI - assegurem, nos casos possíveis, a sustentabilidade econômica das unidades de conservação;
VII - permitam o uso das unidades de conservação para a conservação in situ de populações das variantes genéticas selvagens dos animais e plantas domesticados e recursos genéticos silvestres;
VIII - assegurem que o processo de criação e a gestão das unidades de conservação sejam feitos de forma integrada com as políticas de administração das terras e águas circundantes, considerando as condições e necessidades sociais e econômicas locais;
IX - considerem as condições e necessidades das populações locais no desenvolvimento e adaptação de métodos e técnicas de uso sustentável dos recursos naturais;
X - garantam às populações tradicionais cuja subsistência dependa da utilização de recursos naturais existentes no interior das unidades de conservação meios de subsistência alternativos ou a justa indenização pelos recursos perdidos;
XI - garantam uma alocação adequada dos recursos financeiros necessários para que, uma vez criadas, as unidades de conservação possam ser geridas de forma eficaz e atender aos seus objetivos;
XII - busquem conferir às unidades de conservação, nos casos possíveis e respeitadas as conveniências da administração, autonomia administrativa e financeira; e
XIII - busquem proteger grandes áreas por meio de um conjunto integrado de unidades de conservação de diferentes categorias, próximas ou contíguas, e suas respectivas zonas de amortecimento e corredores ecológicos, integrando as diferentes atividades de preservação da natureza, uso sustentável dos recursos naturais e restauração e recuperação dos ecossistemas.
Art. 6o O SNUC será gerido pelos seguintes órgãos, com as respectivas atribuições:
I – Órgão consultivo e deliberativo: o Conselho Nacional do Meio Ambiente - Conama, com as atribuições de acompanhar a implementação do Sistema;
II - Órgão central: o Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de coordenar o Sistema; e
III - Órgãos executores: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama, os órgãos estaduais e municipais, com a função de implementar o SNUC, subsidiar as propostas de criação e administrar as unidades de conservação federais, estaduais e municipais, nas respectivas esferas de atuação.
Parágrafo único. Podem integrar o SNUC, excepcionalmente e a critério do Conama, unidades de conservação estaduais e municipais que, concebidas para atender a peculiaridades regionais ou locais, possuam objetivos de manejo que não possam ser satisfatoriamente atendidos por nenhuma categoria prevista nesta Lei e cujas características permitam, em relação a estas, uma clara distinção.
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CAPÍTULO III
DAS CATEGORIAS DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
Art. 7o As unidades de conservação integrantes do SNUC dividem-se em dois grupos, com características específicas:
I - Unidades de Proteção Integral;
II - Unidades de Uso Sustentável.
§ 1o O objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceção dos casos previstos nesta Lei.
§ 2o O objetivo básico das Unidades de Uso Sustentável é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais.
Art. 8o O grupo das Unidades de Proteção Integral é composto pelas seguintes categorias de unidade de conservação:
I - Estação Ecológica;
II - Reserva Biológica;
III - Parque Nacional;
IV - Monumento Natural;
V - Refúgio de Vida Silvestre.
Art. 9o A Estação Ecológica tem como objetivo a preservação da natureza e a realização de pesquisas científicas.
§ 1o A Estação Ecológica é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.
§ 2o É proibida a visitação pública, exceto quando com objetivo educacional, de acordo com o que dispuser o Plano de Manejo da unidade ou regulamento específico.
§ 3o A pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável pela administração da unidade e está sujeita às condições e restrições por este estabelecidas, bem como àquelas previstas em regulamento.
§ 4o Na Estação Ecológica só podem ser permitidas alterações dos ecossistemas no caso de:
I - medidas que visem a restauração de ecossistemas modificados;
II - manejo de espécies com o fim de preservar a diversidade biológica;
III - coleta de componentes dos ecossistemas com finalidades científicas;
IV - pesquisas científicas cujo impacto sobre o ambiente seja maior do que aquele causado pela simples observação ou pela coleta controlada de componentes dos ecossistemas, em uma área correspondente a no máximo três por cento da extensão total da unidade e até o limite de um mil e quinhentos hectares.
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Art. 10. A Reserva Biológica tem como objetivo a preservação integral da biota e demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos naturais.
§ 1o A Reserva Biológica é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.
§ 2o É proibida a visitação pública, exceto aquela com objetivo educacional, de acordo com regulamento específico.
§ 3o A pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável pela administração da unidade e está sujeita às condições e restrições por este estabelecidas, bem como àquelas previstas em regulamento.
Art. 11. O Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.
§ 1o O Parque Nacional é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.
§ 2o A visitação pública está sujeita às normas e restrições estabelecidas no Plano de Manejo da unidade, às normas estabelecidas pelo órgão responsável por sua administração, e àquelas previstas em regulamento.
§ 3o A pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável pela administração da unidade e está sujeita às condições e restrições por este estabelecidas, bem como àquelas previstas em regulamento.
§ 4o As unidades dessa categoria, quando criadas pelo Estado ou Município, serão denominadas, respectivamente, Parque Estadual e Parque Natural Municipal.
Art. 12. O Monumento Natural tem como objetivo básico preservar sítios naturais raros, singulares ou de grande beleza cênica.
§ 1o O Monumento Natural pode ser constituído por áreas particulares, desde que seja possível compatibilizar os objetivos da unidade com a utilização da terra e dos recursos naturais do local pelos proprietários.
§ 2o Havendo incompatibilidade entre os objetivos da área e as atividades privadas ou não havendo aquiescência do proprietário às condições propostas pelo órgão responsável pela administração da unidade para a coexistência do Monumento Natural com o uso da propriedade, a área deve ser desapropriada, de acordo com o que dispõe a lei.
§ 3o A visitação pública está sujeita às condições e restrições estabelecidas no Plano de Manejo da unidade, às normas estabelecidas pelo órgão responsável por sua administração e àquelas previstas em regulamento.
Art. 13. O Refúgio de Vida Silvestre tem como objetivo proteger ambientes naturais onde se asseguram condições para a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora local e da fauna residente ou migratória.
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§ 1o O Refúgio de Vida Silvestre pode ser constituído por áreas particulares, desde que seja possível compatibilizar os objetivos da unidade com a utilização da terra e dos recursos naturais do local pelos proprietários.
§ 2o Havendo incompatibilidade entre os objetivos da área e as atividades privadas ou não havendo aquiescência do proprietário às condições propostas pelo órgão responsável pela administração da unidade para a coexistência do Refúgio de Vida Silvestre com o uso da propriedade, a área deve ser desapropriada, de acordo com o que dispõe a lei.
§ 3o A visitação pública está sujeita às normas e restrições estabelecidas no Plano de Manejo da unidade, às normas estabelecidas pelo órgão responsável por sua administração, e àquelas previstas em regulamento.
§ 4o A pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável pela administração da unidade e está sujeita às condições e restrições por este estabelecidas, bem como àquelas previstas em regulamento.
Art. 14. Constituem o Grupo das Unidades de Uso Sustentável as seguintes categorias de unidade de conservação:
I - Área de Proteção Ambiental;
II - Área de Relevante Interesse Ecológico;
III - Floresta Nacional;
IV - Reserva Extrativista;
V - Reserva de Fauna;
VI – Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e
VII - Reserva Particular do Patrimônio Natural.
Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.
§ 1o A Área de Proteção Ambiental é constituída por terras públicas ou privadas.
§ 2o Respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma Área de Proteção Ambiental.
§ 3o As condições para a realização de pesquisa científica e visitação pública nas áreas sob domínio público serão estabelecidas pelo órgão gestor da unidade.
§ 4o Nas áreas sob propriedade privada, cabe ao proprietário estabelecer as condições para pesquisa e visitação pelo público, observadas as exigências e restrições legais.
§ 5o A Área de Proteção Ambiental disporá de um Conselho presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes dos órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e da população residente, conforme se dispuser no regulamento desta Lei.
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Art. 16. A Área de Relevante Interesse Ecológico é uma área em geral de pequena extensão, com pouca ou nenhuma ocupação humana, com características naturais extraordinárias ou que abriga exemplares raros da biota regional, e tem como objetivo manter os ecossistemas naturais de importância regional ou local e regular o uso admissível dessas áreas, de modo a compatibilizá-lo com os objetivos de conservação da natureza.
§ 1o A Área de Relevante Interesse Ecológico é constituída por terras públicas ou privadas.
§ 2o Respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma Área de Relevante Interesse Ecológico.
Art. 17. A Floresta Nacional é uma área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas nativas.
§ 1o A Floresta Nacional é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas de acordo com o que dispõe a lei.
§ 2o Nas Florestas Nacionais é admitida a permanência de populações tradicionais que a habitam quando de sua criação, em conformidade com o disposto em regulamento e no Plano de Manejo da unidade.
§ 3o A visitação pública é permitida, condicionada às normas estabelecidas para o manejo da unidade pelo órgão responsável por sua administração.
§ 4o A pesquisa é permitida e incentivada, sujeitando-se à prévia autorização do órgão responsável pela administração da unidade, às condições e restrições por este estabelecidas e àquelas previstas em regulamento.
§ 5o A Floresta Nacional disporá de um Conselho Consultivo, presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e, quando for o caso, das populações tradicionais residentes.
§ 6o A unidade desta categoria, quando criada pelo Estado ou Município, será denominada, respectivamente, Floresta Estadual e Floresta Municipal.
Art. 18. A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.
§ 1o A Reserva Extrativista é de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais conforme o disposto no art. 23 desta Lei e em regulamentação específica, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.
§ 2o A Reserva Extrativista será gerida por um Conselho Deliberativo, presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área, conforme se dispuser em regulamento e no ato de criação da unidade.
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§ 3o A visitação pública é permitida, desde que compatível com os interesses locais e de acordo com o disposto no Plano de Manejo da área.
§ 4o A pesquisa científica é permitida e incentivada, sujeitando-se à prévia autorização do órgão responsável pela administração da unidade, às condições e restrições por este estabelecidas e às normas previstas em regulamento.
§ 5o O Plano de Manejo da unidade será aprovado pelo seu Conselho Deliberativo.
§ 6o São proibidas a exploração de recursos minerais e a caça amadorística ou profissional.
§ 7o A exploração comercial de recursos madeireiros só será admitida em bases sustentáveis e em situações especiais e complementares às demais atividades desenvolvidas na Reserva Extrativista, conforme o disposto em regulamento e no Plano de Manejo da unidade.
Art. 19. A Reserva de Fauna é uma área natural com populações animais de espécies nativas, terrestres ou aquáticas, residentes ou migratórias, adequadas para estudos técnico-científicos sobre o manejo econômico sustentável de recursos faunísticos.
§ 1o A Reserva de Fauna é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas de acordo com o que dispõe a lei.
§ 2o A visitação pública pode ser permitida, desde que compatível com o manejo da unidade e de acordo com as normas estabelecidas pelo órgão responsável por sua administração.
§ 3o É proibido o exercício da caça amadorística ou profissional.
§ 4o A comercialização dos produtos e subprodutos resultantes das pesquisas obedecerá ao disposto nas leis sobre fauna e regulamentos.
Art. 20. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica.
§ 1o A Reserva de Desenvolvimento Sustentável tem como objetivo básico preservar a natureza e, ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da qualidade de vida e exploração dos recursos naturais das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente, desenvolvido por estas populações.
§ 2o A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é de domínio público, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser, quando necessário, desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei.
§ 3o O uso das áreas ocupadas pelas populações tradicionais será regulado de acordo com o disposto no art. 23 desta Lei e em regulamentação específica.
§ 4o A Reserva de Desenvolvimento Sustentável será gerida por um Conselho Deliberativo, presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da
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sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área, conforme se dispuser em regulamento e no ato de criação da unidade.
§ 5o As atividades desenvolvidas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável obedecerão às seguintes condições:
I - é permitida e incentivada a visitação pública, desde que compatível com os interesses locais e de acordo com o disposto no Plano de Manejo da área;
II - é permitida e incentivada a pesquisa científica voltada à conservação da natureza, à melhor relação das populações residentes com seu meio e à educação ambiental, sujeitando-se à prévia autorização do órgão responsável pela administração da unidade, às condições e restrições por este estabelecidas e às normas previstas em regulamento;
III - deve ser sempre considerado o equilíbrio dinâmico entre o tamanho da população e a conservação; e
IV - é admitida a exploração de componentes dos ecossistemas naturais em regime de manejo sustentável e a substituição da cobertura vegetal por espécies cultiváveis, desde que sujeitas ao zoneamento, às limitações legais e ao Plano de Manejo da área.
§ 6o O Plano de Manejo da Reserva de Desenvolvimento Sustentável definirá as zonas de proteção integral, de uso sustentável e de amortecimento e corredores ecológicos, e será aprovado pelo Conselho Deliberativo da unidade.
Art. 21. A Reserva Particular do Patrimônio Natural é uma área privada, gravada com perpetuidade, com o objetivo de conservar a diversidade biológica.
§ 1o O gravame de que trata este artigo constará de termo de compromisso assinado perante o órgão ambiental, que verificará a existência de interesse público, e será averbado à margem da inscrição no Registro Público de Imóveis.
§ 2o Só poderá ser permitida, na Reserva Particular do Patrimônio Natural, conforme se dispuser em regulamento:
I - a pesquisa científica;
II - a visitação com objetivos turísticos, recreativos e educacionais;
III - (VETADO)
§ 3o Os órgãos integrantes do SNUC, sempre que possível e oportuno, prestarão orientação técnica e científica ao proprietário de Reserva Particular do Patrimônio Natural para a elaboração de um Plano de Manejo ou de Proteção e de Gestão da unidade.
CAPÍTULO IV
DA CRIAÇÃO, IMPLANTAÇÃO E GESTÃO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público.
§ 1o (VETADO)
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§ 2o A criação de uma unidade de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em regulamento.
§ 3o No processo de consulta de que trata o § 2o, o Poder Público é obrigado a fornecer informações adequadas e inteligíveis à população local e a outras partes interessadas.
§ 4o Na criação de Estação Ecológica ou Reserva Biológica não é obrigatória a consulta de que trata o § 2o deste artigo.
§ 5o As unidades de conservação do grupo de Uso Sustentável podem ser transformadas total ou parcialmente em unidades do grupo de Proteção Integral, por instrumento normativo do mesmo nível hierárquico do que criou a unidade, desde que obedecidos os procedimentos de consulta estabelecidos no § 2o deste artigo.
§ 6o A ampliação dos limites de uma unidade de conservação, sem modificação dos seus limites originais, exceto pelo acréscimo proposto, pode ser feita por instrumento normativo do mesmo nível hierárquico do que criou a unidade, desde que obedecidos os procedimentos de consulta estabelecidos no § 2o
deste artigo.
§ 7o A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica.
Art. 23. A posse e o uso das áreas ocupadas pelas populações tradicionais nas Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável serão regulados por contrato, conforme se dispuser no regulamento desta Lei.
§ 1o As populações de que trata este artigo obrigam-se a participar da preservação, recuperação, defesa e manutenção da unidade de conservação.
§ 2o O uso dos recursos naturais pelas populações de que trata este artigo obedecerá às seguintes normas:
I - proibição do uso de espécies localmente ameaçadas de extinção ou de práticas que danifiquem os seus habitats;
II - proibição de práticas ou atividades que impeçam a regeneração natural dos ecossistemas;
III - demais normas estabelecidas na legislação, no Plano de Manejo da unidade de conservação e no contrato de concessão de direito real de uso.
Art. 24. O subsolo e o espaço aéreo, sempre que influírem na estabilidade do ecossistema, integram os limites das unidades de conservação.
Art. 25. As unidades de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, devem possuir uma zona de amortecimento e, quando conveniente, corredores ecológicos.
§ 1o O órgão responsável pela administração da unidade estabelecerá normas específicas regulamentando a ocupação e o uso dos recursos da zona de amortecimento e dos corredores ecológicos de uma unidade de conservação.
§ 2o Os limites da zona de amortecimento e dos corredores ecológicos e as respectivas normas de que trata o § 1o poderão ser definidas no ato de criação da unidade ou posteriormente.
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Art. 26. Quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosaico, a gestão do conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se os seus distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional.
Parágrafo único. O regulamento desta Lei disporá sobre a forma de gestão integrada do conjunto das unidades.
Art. 27. As unidades de conservação devem dispor de um Plano de Manejo.
§ 1o O Plano de Manejo deve abranger a área da unidade de conservação, sua zona de amortecimento e os corredores ecológicos, incluindo medidas com o fim de promover sua integração à vida econômica e social das comunidades vizinhas.
§ 2o Na elaboração, atualização e implementação do Plano de Manejo das Reservas Extrativistas, das Reservas de Desenvolvimento Sustentável, das Áreas de Proteção Ambiental e, quando couber, das Florestas Nacionais e das Áreas de Relevante Interesse Ecológico, será assegurada a ampla participação da população residente.
§ 3o O Plano de Manejo de uma unidade de conservação deve ser elaborado no prazo de cinco anos a partir da data de sua criação.
Art. 28. São proibidas, nas unidades de conservação, quaisquer alterações, atividades ou modalidades de utilização em desacordo com os seus objetivos, o seu Plano de Manejo e seus regulamentos.
Parágrafo único. Até que seja elaborado o Plano de Manejo, todas as atividades e obras desenvolvidas nas unidades de conservação de proteção integral devem se limitar àquelas destinadas a garantir a integridade dos recursos que a unidade objetiva proteger, assegurando-se às populações tradicionais porventura residentes na área as condições e os meios necessários para a satisfação de suas necessidades materiais, sociais e culturais.
Art. 29. Cada unidade de conservação do grupo de Proteção Integral disporá de um Conselho Consultivo, presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil, por proprietários de terras localizadas em Refúgio de Vida Silvestre ou Monumento Natural, quando for o caso, e, na hipótese prevista no § 2o do art. 42, das populações tradicionais residentes, conforme se dispuser em regulamento e no ato de criação da unidade.
Art. 30. As unidades de conservação podem ser geridas por organizações da sociedade civil de interesse público com objetivos afins aos da unidade, mediante instrumento a ser firmado com o órgão responsável por sua gestão.
Art. 31. É proibida a introdução nas unidades de conservação de espécies não autóctones.
§ 1o Excetuam-se do disposto neste artigo as Áreas de Proteção Ambiental, as Florestas Nacionais, as Reservas Extrativistas e as Reservas de Desenvolvimento Sustentável, bem como os animais e plantas necessários à administração e às atividades das demais categorias de unidades de conservação, de acordo com o que se dispuser em regulamento e no Plano de Manejo da unidade.
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§ 2o Nas áreas particulares localizadas em Refúgios de Vida Silvestre e Monumentos Naturais podem ser criados animais domésticos e cultivadas plantas considerados compatíveis com as finalidades da unidade, de acordo com o que dispuser o seu Plano de Manejo.
Art. 32. Os órgãos executores articular-se-ão com a comunidade científica com o propósito de incentivar o desenvolvimento de pesquisas sobre a fauna, a flora e a ecologia das unidades de conservação e sobre formas de uso sustentável dos recursos naturais, valorizando-se o conhecimento das populações tradicionais.
§ 1o As pesquisas científicas nas unidades de conservação não podem colocar em risco a sobrevivência das espécies integrantes dos ecossistemas protegidos.
§ 2o A realização de pesquisas científicas nas unidades de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, depende de aprovação prévia e está sujeita à fiscalização do órgão responsável por sua administração.
§ 3o Os órgãos competentes podem transferir para as instituições de pesquisa nacionais, mediante acordo, a atribuição de aprovar a realização de pesquisas científicas e de credenciar pesquisadores para trabalharem nas unidades de conservação.
Art. 33. A exploração comercial de produtos, subprodutos ou serviços obtidos ou desenvolvidos a partir dos recursos naturais, biológicos, cênicos ou culturais ou da exploração da imagem de unidade de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, dependerá de prévia autorização e sujeitará o explorador a pagamento, conforme disposto em regulamento.
Art. 34. Os órgãos responsáveis pela administração das unidades de conservação podem receber recursos ou doações de qualquer natureza, nacionais ou internacionais, com ou sem encargos, provenientes de organizações privadas ou públicas ou de pessoas físicas que desejarem colaborar com a sua conservação.
Parágrafo único. A administração dos recursos obtidos cabe ao órgão gestor da unidade, e estes serão utilizados exclusivamente na sua implantação, gestão e manutenção.
Art. 35. Os recursos obtidos pelas unidades de conservação do Grupo de Proteção Integral mediante a cobrança de taxa de visitação e outras rendas decorrentes de arrecadação, serviços e atividades da própria unidade serão aplicados de acordo com os seguintes critérios:
I - até cinqüenta por cento, e não menos que vinte e cinco por cento, na implementação, manutenção e gestão da própria unidade;
II - até cinqüenta por cento, e não menos que vinte e cinco por cento, na regularização fundiária das unidades de conservação do Grupo;
III - até cinqüenta por cento, e não menos que quinze por cento, na implementação, manutenção e gestão de outras unidades de conservação do Grupo de Proteção Integral.
Art. 36. Nos casos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, assim considerado pelo órgão ambiental competente, com fundamento em estudo de impacto ambiental e respectivo
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relatório - EIA/RIMA, o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de unidade de conservação do Grupo de Proteção Integral, de acordo com o disposto neste artigo e no regulamento desta Lei.
§ 1o O montante de recursos a ser destinado pelo empreendedor para esta finalidade não pode ser inferior a meio por cento dos custos totais previstos para a implantação do empreendimento, sendo o percentual fixado pelo órgão ambiental licenciador, de acordo com o grau de impacto ambiental causado pelo empreendimento.
§ 2o Ao órgão ambiental licenciador compete definir as unidades de conservação a serem beneficiadas, considerando as propostas apresentadas no EIA/RIMA e ouvido o empreendedor, podendo inclusive ser contemplada a criação de novas unidades de conservação.
§ 3o Quando o empreendimento afetar unidade de conservação específica ou sua zona de amortecimento, o licenciamento a que se refere o caput deste artigo só poderá ser concedido mediante autorização do órgão responsável por sua administração, e a unidade afetada, mesmo que não pertencente ao Grupo de Proteção Integral, deverá ser uma das beneficiárias da compensação definida neste artigo.
CAPÍTULO V
DOS INCENTIVOS, ISENÇÕES E PENALIDADES
Art. 37. (VETADO)
Art. 38. A ação ou omissão das pessoas físicas ou jurídicas que importem inobservância aos preceitos desta Lei e a seus regulamentos ou resultem em dano à flora, à fauna e aos demais atributos naturais das unidades de conservação, bem como às suas instalações e às zonas de amortecimento e corredores ecológicos, sujeitam os infratores às sanções previstas em lei.
Art. 39. Dê-se ao art. 40 da Lei n o 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 , a seguinte redação:
"Art. 40. (VETADO)
"§ 1o Entende-se por Unidades de Conservação de Proteção Integral as Estações Ecológicas, as Reservas Biológicas, os Parques Nacionais, os Monumentos Naturais e os Refúgios de Vida Silvestre." (NR)
"§ 2o A ocorrência de dano afetando espécies ameaçadas de extinção no interior das Unidades de Conservação de Proteção Integral será considerada circunstância agravante para a fixação da pena." (NR)
"§ 3o ...................................................................."
Art. 40. Acrescente-se à Lei no 9.605, de 1998, o seguinte art. 40-A:
"Art. 40-A. (VETADO)
"§ 1o Entende-se por Unidades de Conservação de Uso Sustentável as Áreas de Proteção Ambiental, as Áreas de Relevante Interesse Ecológico, as Florestas Nacionais, as Reservas Extrativistas, as Reservas de Fauna, as Reservas de Desenvolvimento Sustentável e as Reservas Particulares do Patrimônio Natural." (AC)
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"§ 2o A ocorrência de dano afetando espécies ameaçadas de extinção no interior das Unidades de Conservação de Uso Sustentável será considerada circunstância agravante para a fixação da pena." (AC)
"§ 3o Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade." (AC)
CAPÍTULO VI
DAS RESERVAS DA BIOSFERA
Art. 41. A Reserva da Biosfera é um modelo, adotado internacionalmente, de gestão integrada, participativa e sustentável dos recursos naturais, com os objetivos básicos de preservação da diversidade biológica, o desenvolvimento de atividades de pesquisa, o monitoramento ambiental, a educação ambiental, o desenvolvimento sustentável e a melhoria da qualidade de vida das populações.
§ 1o A Reserva da Biosfera é constituída por:
I - uma ou várias áreas-núcleo, destinadas à proteção integral da natureza;
II - uma ou várias zonas de amortecimento, onde só são admitidas atividades que não resultem em dano para as áreas-núcleo; e
III - uma ou várias zonas de transição, sem limites rígidos, onde o processo de ocupação e o manejo dos recursos naturais são planejados e conduzidos de modo participativo e em bases sustentáveis.
§ 2o A Reserva da Biosfera é constituída por áreas de domínio público ou privado.
§ 3o A Reserva da Biosfera pode ser integrada por unidades de conservação já criadas pelo Poder Público, respeitadas as normas legais que disciplinam o manejo de cada categoria específica.
§ 4o A Reserva da Biosfera é gerida por um Conselho Deliberativo, formado por representantes de instituições públicas, de organizações da sociedade civil e da população residente, conforme se dispuser em regulamento e no ato de constituição da unidade.
§ 5o A Reserva da Biosfera é reconhecida pelo Programa Intergovernamental "O Homem e a Biosfera – MAB", estabelecido pela Unesco, organização da qual o Brasil é membro.
CAPÍTULO VII
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS E TRANSITÓRIAS
Art. 42. As populações tradicionais residentes em unidades de conservação nas quais sua permanência não seja permitida serão indenizadas ou
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compensadas pelas benfeitorias existentes e devidamente realocadas pelo Poder Público, em local e condições acordados entre as partes.
§ 1o O Poder Público, por meio do órgão competente, priorizará o reassentamento das populações tradicionais a serem realocadas.
§ 2o Até que seja possível efetuar o reassentamento de que trata este artigo, serão estabelecidas normas e ações específicas destinadas a compatibilizar a presença das populações tradicionais residentes com os objetivos da unidade, sem prejuízo dos modos de vida, das fontes de subsistência e dos locais de moradia destas populações, assegurando-se a sua participação na elaboração das referidas normas e ações.
§ 3o Na hipótese prevista no § 2o, as normas regulando o prazo de permanência e suas condições serão estabelecidas em regulamento.
Art. 43. O Poder Público fará o levantamento nacional das terras devolutas, com o objetivo de definir áreas destinadas à conservação da natureza, no prazo de cinco anos após a publicação desta Lei.
Art. 44. As ilhas oceânicas e costeiras destinam-se prioritariamente à proteção da natureza e sua destinação para fins diversos deve ser precedida de autorização do órgão ambiental competente.
Parágrafo único. Estão dispensados da autorização citada no caput os órgãos que se utilizam das citadas ilhas por força de dispositivos legais ou quando decorrente de compromissos legais assumidos.
Art. 45. Excluem-se das indenizações referentes à regularização fundiária das unidades de conservação, derivadas ou não de desapropriação:
I - (VETADO)
II - (VETADO)
III - as espécies arbóreas declaradas imunes de corte pelo Poder Público;
IV - expectativas de ganhos e lucro cessante;
V - o resultado de cálculo efetuado mediante a operação de juros compostos;
VI - as áreas que não tenham prova de domínio inequívoco e anterior à criação da unidade.
Art. 46. A instalação de redes de abastecimento de água, esgoto, energia e infra-estrutura urbana em geral, em unidades de conservação onde estes equipamentos são admitidos depende de prévia aprovação do órgão responsável por sua administração, sem prejuízo da necessidade de elaboração de estudos de impacto ambiental e outras exigências legais.
Parágrafo único. Esta mesma condição se aplica à zona de amortecimento das unidades do Grupo de Proteção Integral, bem como às áreas de propriedade privada inseridas nos limites dessas unidades e ainda não indenizadas.
Art. 47. O órgão ou empresa, público ou privado, responsável pelo abastecimento de água ou que faça uso de recursos hídricos, beneficiário da proteção proporcionada por uma unidade de conservação, deve contribuir financeiramente para a proteção e implementação da unidade, de acordo com o disposto em regulamentação específica.
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Art. 48. O órgão ou empresa, público ou privado, responsável pela geração e distribuição de energia elétrica, beneficiário da proteção oferecida por uma unidade de conservação, deve contribuir financeiramente para a proteção e implementação da unidade, de acordo com o disposto em regulamentação específica.
Art. 49. A área de uma unidade de conservação do Grupo de Proteção Integral é considerada zona rural, para os efeitos legais.
Parágrafo único. A zona de amortecimento das unidades de conservação de que trata este artigo, uma vez definida formalmente, não pode ser transformada em zona urbana.
Art. 50. O Ministério do Meio Ambiente organizará e manterá um Cadastro Nacional de Unidades de Conservação, com a colaboração do Ibama e dos órgãos estaduais e municipais competentes.
§ 1o O Cadastro a que se refere este artigo conterá os dados principais de cada unidade de conservação, incluindo, dentre outras características relevantes, informações sobre espécies ameaçadas de extinção, situação fundiária, recursos hídricos, clima, solos e aspectos socioculturais e antropológicos.
§ 2o O Ministério do Meio Ambiente divulgará e colocará à disposição do público interessado os dados constantes do Cadastro.
Art. 51. O Poder Executivo Federal submeterá à apreciação do Congresso Nacional, a cada dois anos, um relatório de avaliação global da situação das unidades de conservação federais do País.
Art. 52. Os mapas e cartas oficiais devem indicar as áreas que compõem o SNUC.
Art. 53. O Ibama elaborará e divulgará periodicamente uma relação revista e atualizada das espécies da flora e da fauna ameaçadas de extinção no território brasileiro.
Parágrafo único. O Ibama incentivará os competentes órgãos estaduais e municipais a elaborarem relações equivalentes abrangendo suas respectivas áreas de jurisdição.
Art. 54. O Ibama, excepcionalmente, pode permitir a captura de exemplares de espécies ameaçadas de extinção destinadas a programas de criação em cativeiro ou formação de coleções científicas, de acordo com o disposto nesta Lei e em regulamentação específica.
Art. 55. As unidades de conservação e áreas protegidas criadas com base nas legislações anteriores e que não pertençam às categorias previstas nesta Lei serão reavaliadas, no todo ou em parte, no prazo de até dois anos, com o objetivo de definir sua destinação com base na categoria e função para as quais foram criadas, conforme o disposto no regulamento desta Lei.
Art. 56. (VETADO)
Art. 57. Os órgãos federais responsáveis pela execução das políticas ambiental e indigenista deverão instituir grupos de trabalho para, no prazo de cento e oitenta dias a partir da vigência desta Lei, propor as diretrizes a serem adotadas com vistas à regularização das eventuais superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação.
Parágrafo único. No ato de criação dos grupos de trabalho serão fixados os participantes, bem como a estratégia de ação e a abrangência dos trabalhos,
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garantida a participação das comunidades envolvidas.
Art. 58. O Poder Executivo regulamentará esta Lei, no que for necessário à sua aplicação, no prazo de cento e oitenta dias a partir da data de sua publicação.
Art. 59. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 60. Revogam-se os arts. 5 o e 6 o da Lei n o 4.771, de 15 de setembro de 1965; o art. 5 o da Lei n o 5.197, de 3 de janeiro de 1967 ; e o art. 18 da Lei n o
6.938, de 31 de agosto de 1981.
Brasília, 18 de julho de 2000; 179o da Independência e 112o da República.
MARCO ANTONIO DE OLIVEIRA MACIELJosé Sarney Filho
Publicado no D.O. de 19.7.2000
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II.
Presidência da RepúblicaCasa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos Decreto no. 4340
Regulamenta artigos da Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC, e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe conferem o art. 84, inciso IV, e o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII, da Constituição Federal, e tendo em vista o disposto na Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000,DECRETA:Art. 1o Este Decreto regulamenta os arts. 22, 24, 25, 26, 27, 29, 30, 33, 36, 41, 42, 47, 48 e 55 da Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000, bem como os arts. 15,17, 18 e 20, no que concerne aos conselhos das unidades de conservação.
CAPÍTULO IDA CRIAÇÃO DE UNIDADE DE CONSERVAÇÃO
Art. 2o O ato de criação de uma unidade de conservação deve indicar:I - a denominação, a categoria de manejo, os objetivos, os limites, a área da unidade e o órgão responsável por sua administração;II - a população tradicional beneficiária, no caso das Reservas Extrativistas e das Reservas de Desenvolvimento Sustentável;III - a população tradicional residente, quando couber, no caso das Florestas Nacionais, Florestas Estaduais ou Florestas Municipais; eIV - as atividades econômicas, de segurança e de defesa nacional envolvidas.Art. 3o A denominação de cada unidade de conservação deverá basear-se, preferencialmente, na sua característica natural mais significativa, ou na sua denominação mais antiga, dando-se prioridade, neste último caso, às designações indígenas ancestrais.Art. 4o Compete ao órgão executor proponente de nova unidade de conservação elaborar os estudos técnicos preliminares e realizar, quando for o caso, a consulta pública e os demais procedimentos administrativos necessários à criação da unidade.Art. 5o A consulta pública para a criação de unidade de conservação tem a finalidade de subsidiar a definição da localização, da dimensão e dos limites mais adequados para a unidade.§ 1o A consulta consiste em reuniões públicas ou, a critério do órgão ambiental competente, outras formas de oitiva da população local e de outras partes interessadas.§ 2o No processo de consulta pública, o órgão executor competente deve indicar, de modo claro e em linguagem acessível, as implicações para a população residente no interior e no entorno da unidade proposta.
CAPÍTULO IIDO SUBSOLO E DO ESPAÇO AÉREO
Art. 6o Os limites da unidade de conservação, em relação ao subsolo, são estabelecidos:I - no ato de sua criação, no caso de Unidade de Conservação de Proteção Integral; eII - no ato de sua criação ou no Plano de Manejo, no caso de Unidade de Conservação de Uso Sustentável.
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Art. 7o Os limites da unidade de conservação, em relação ao espaço aéreo, são estabelecidos no Plano de Manejo, embasados em estudos técnicos realizados pelo órgão gestor da unidade de conservação, consultada a autoridade aeronáutica competente e de acordo com a legislação vigente.
CAPÍTULO IIIDO MOSAICO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
Art. 8o O mosaico de unidades de conservação será reconhecido em ato do Ministério do Meio Ambiente, a pedido dos órgãos gestores das unidades de conservação.Art. 9o O mosaico deverá dispor de um conselho de mosaico, com caráter consultivo e a função de atuar como instância de gestão integrada das unidades de conservação que o compõem.§ 1o A composição do conselho de mosaico é estabelecida na portaria que institui o mosaico e deverá obedecer aos mesmos critérios estabelecidos no Capítulo V deste Decreto.§ 2o O conselho de mosaico terá como presidente um dos chefes das unidades de conservação que o compõem, o qual será escolhido pela maioria simples de seus membros.Art. 10. Compete ao conselho de cada mosaico:I - elaborar seu regimento interno, no prazo de noventa dias, contados da sua instituição;II - propor diretrizes e ações para compatibilizar, integrar e otimizar:a) as atividades desenvolvidas em cada unidade de conservação, tendo em vista, especialmente:1. os usos na fronteira entre unidades;2. o acesso às unidades;3. a fiscalização;4. o monitoramento e avaliação dos Planos de Manejo;5. a pesquisa científica; e6. a alocação de recursos advindos da compensação referente ao licenciamento ambiental de empreendimentos com significativo impacto ambiental;b) a relação com a população residente na área do mosaico;III - manifestar-se sobre propostas de solução para a sobreposição de unidades; eIV - manifestar-se, quando provocado por órgão executor, por conselho de unidade de conservação ou por outro órgão do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, sobre assunto de interesse para a gestão do mosaico.Art. 11. Os corredores ecológicos, reconhecidos em ato do Ministério do Meio Ambiente, integram os mosaicos para fins de sua gestão.Parágrafo único. Na ausência de mosaico, o corredor ecológico que interliga unidades de conservação terá o mesmo tratamento da sua zona de amortecimento.
CAPÍTULO IVDO PLANO DE MANEJO
Art. 12. O Plano de Manejo da unidade de conservação, elaborado pelo órgão gestor ou pelo proprietário quando for o caso, será aprovado:I - em portaria do órgão executor, no caso de Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural, Refúgio de Vida Silvestre, Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva de Fauna e Reserva Particular do Patrimônio Natural;II - em resolução do conselho deliberativo, no caso de Reserva Extrativista e Reserva de Desenvolvimento Sustentável, após prévia aprovação do órgão executor.Art. 13. O contrato de concessão de direito real de uso e o termo de compromisso firmados com populações tradicionais das Reservas Extrativistas e Reservas de Uso Sustentável devem estar de acordo com o Plano de Manejo, devendo ser revistos, se necessário.Art. 14. Os órgãos executores do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC, em suas respectivas esferas de atuação, devem estabelecer, no
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prazo de cento e oitenta dias, a partir da publicação deste Decreto, roteiro metodológico básico para a elaboração dos Planos de Manejo das diferentes categorias de unidades de conservação, uniformizando conceitos e metodologias, fixando diretrizes para o diagnóstico da unidade, zoneamento, programas de manejo, prazos de avaliação e de revisão e fases de implementação.Art. 15. A partir da criação de cada unidade de conservação e até que seja estabelecido o Plano de Manejo, devem ser formalizadas e implementadas ações de proteção e fiscalização.Art. 16. O Plano de Manejo aprovado deve estar disponível para consulta do público na sede da unidade de conservação e no centro de documentação do órgão executor.
CAPÍTULO VDO CONSELHO
Art. 17. As categorias de unidade de conservação poderão ter, conforme a Lei no
9.985, de 2000, conselho consultivo ou deliberativo, que serão presididos pelo chefe da unidade de conservação, o qual designará os demais conselheiros indicados pelos setores a serem representados.§ 1o A representação dos órgãos públicos deve contemplar, quando couber, os órgãos ambientais dos três níveis da Federação e órgãos de áreas afins, tais como pesquisa científica, educação, defesa nacional, cultura, turismo, paisagem, arquitetura, arqueologia e povos indígenas e assentamentos agrícolas.§ 2o A representação da sociedade civil deve contemplar, quando couber, a comunidade científica e organizações não-governamentais ambientalistas com atuação comprovada na região da unidade, população residente e do entorno, população tradicional, proprietários de imóveis no interior da unidade, trabalhadores e setor privado atuantes na região e representantes dos Comitês de Bacia Hidrográfica.§ 3o A representação dos órgãos públicos e da sociedade civil nos conselhos deve ser, sempre que possível, paritária, considerando as peculiaridades regionais.§ 4o A Organização da Sociedade Civil de Interesse Público - OSCIP com representação no conselho de unidade de conservação não pode se candidatar à gestão de que trata o Capítulo VI deste Decreto.§ 5o O mandato do conselheiro é de dois anos, renovável por igual período, não remunerado e considerado atividade de relevante interesse público.§ 6o No caso de unidade de conservação municipal, o Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente, ou órgão equivalente, cuja composição obedeça ao disposto neste artigo, e com competências que incluam aquelas especificadas no art. 20 deste Decreto, pode ser designado como conselho da unidade de conservação.Art. 18. A reunião do conselho da unidade de conservação deve ser pública, com pauta preestabelecida no ato da convocação e realizada em local de fácil acesso.Art. 19. Compete ao órgão executor:I - convocar o conselho com antecedência mínima de sete dias;II - prestar apoio à participação dos conselheiros nas reuniões, sempre que solicitado e devidamente justificado.Parágrafo único. O apoio do órgão executor indicado no inciso II não restringe aquele que possa ser prestado por outras organizações.Art. 20. Compete ao conselho de unidade de conservação:I - elaborar o seu regimento interno, no prazo de noventa dias, contados da sua instalação;II - acompanhar a elaboração, implementação e revisão do Plano de Manejo da unidade de conservação, quando couber, garantindo o seu caráter participativo;III - buscar a integração da unidade de conservação com as demais unidades e espaços territoriais especialmente protegidos e com o seu entorno;IV - esforçar-se para compatibilizar os interesses dos diversos segmentos sociais relacionados com a unidade;V - avaliar o orçamento da unidade e o relatório financeiro anual elaborado pelo órgão executor em relação aos objetivos da unidade de conservação;
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VI - opinar, no caso de conselho consultivo, ou ratificar, no caso de conselho deliberativo, a contratação e os dispositivos do termo de parceria com OSCIP, na hipótese de gestão compartilhada da unidade;VII - acompanhar a gestão por OSCIP e recomendar a rescisão do termo de parceria, quando constatada irregularidade;VIII - manifestar-se sobre obra ou atividade potencialmente causadora de impacto na unidade de conservação, em sua zona de amortecimento, mosaicos ou corredores ecológicos; eIX - propor diretrizes e ações para compatibilizar, integrar e otimizar a relação com a população do entorno ou do interior da unidade, conforme o caso.
CAPÍTULO VIDA GESTÃO COMPARTILHADA COM OSCIP
Art. 21. A gestão compartilhada de unidade de conservação por OSCIP é regulada por termo de parceria firmado com o órgão executor, nos termos da Lei no 9.790, de 23 de março de 1999.Art. 22. Poderá gerir unidade de conservação a OSCIP que preencha os seguintes requisitos:I - tenha dentre seus objetivos institucionais a proteção do meio ambiente ou a promoção do desenvolvimento sustentável; eII - comprove a realização de atividades de proteção do meio ambiente ou desenvolvimento sustentável, preferencialmente na unidade de conservação ou no mesmo bioma.Art. 23. O edital para seleção de OSCIP, visando a gestão compartilhada, deve ser publicado com no mínimo sessenta dias de antecedência, em jornal de grande circulação na região da unidade de conservação e no Diário Oficial, nos termos da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993.Parágrafo único. Os termos de referência para a apresentação de proposta pelas OSCIP serão definidos pelo órgão executor, ouvido o conselho da unidade.Art. 24. A OSCIP deve encaminhar anualmente relatórios de suas atividades para apreciação do órgão executor e do conselho da unidade.
CAPÍTULO VIIDA AUTORIZAÇÃO PARA A EXPLORAÇÃO DE BENS E SERVIÇOS
Art. 25. É passível de autorização a exploração de produtos, sub-produtos ou serviços inerentes às unidades de conservação, de acordo com os objetivos de cada categoria de unidade.Parágrafo único. Para os fins deste Decreto, entende-se por produtos, sub-produtos ou serviços inerentes à unidade de conservação:I - aqueles destinados a dar suporte físico e logístico à sua administração e à implementação das atividades de uso comum do público, tais como visitação, recreação e turismo;II - a exploração de recursos florestais e outros recursos naturais em Unidades de Conservação de Uso Sustentável, nos limites estabelecidos em lei.Art. 26. A partir da publicação deste Decreto, novas autorizações para a exploração comercial de produtos, sub-produtos ou serviços em unidade de conservação de domínio público só serão permitidas se previstas no Plano de Manejo, mediante decisão do órgão executor, ouvido o conselho da unidade de conservação.Art. 27. O uso de imagens de unidade de conservação com finalidade comercial será cobrado conforme estabelecido em ato administrativo pelo órgão executor.Parágrafo único. Quando a finalidade do uso de imagem da unidade de conservação for preponderantemente científica, educativa ou cultural, o uso será gratuito.Art. 28. No processo de autorização da exploração comercial de produtos, sub-produtos ou serviços de unidade de conservação, o órgão executor deve viabilizar a
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participação de pessoas físicas ou jurídicas, observando-se os limites estabelecidos pela legislação vigente sobre licitações públicas e demais normas em vigor.Art. 29. A autorização para exploração comercial de produto, sub-produto ou serviço de unidade de conservação deve estar fundamentada em estudos de viabilidade econômica e investimentos elaborados pelo órgão executor, ouvido o conselho da unidade.Art. 30. Fica proibida a construção e ampliação de benfeitoria sem autorização do órgão gestor da unidade de conservação.
CAPÍTULO VIIIDA COMPENSAÇÃO POR SIGNIFICATIVO IMPACTO AMBIENTAL
Art. 31. Para os fins de fixação da compensação ambiental de que trata o art. 36 da Lei no 9.985, de 2000, o órgão ambiental licenciador estabelecerá o grau de impacto a partir dos estudos ambientais realizados quando do processo de licenciamento ambiental, sendo considerados os impactos negativos, não mitigáveis e passíveis de riscos que possam comprometer a qualidade de vida de uma região ou causar danos aos recursos naturais.Parágrafo único. Os percentuais serão fixados, gradualmente, a partir de meio por cento dos custos totais previstos para a implantação do empreendimento, considerando-se a amplitude dos impactos gerados, conforme estabelecido no caput.Art. 32. Será instituída no âmbito dos órgãos licenciadores câmaras de compensação ambiental, compostas por representantes do órgão, com a finalidade de analisar e propor a aplicação da compensação ambiental, para a aprovação da autoridade competente, de acordo com os estudos ambientais realizados e percentuais definidos.Art. 33. A aplicação dos recursos da compensação ambiental de que trata o art. 36 da Lei no 9.985, de 2000, nas unidades de conservação, existentes ou a serem criadas, deve obedecer à seguinte ordem de prioridade:I - regularização fundiária e demarcação das terras;II - elaboração, revisão ou implantação de plano de manejo;III - aquisição de bens e serviços necessários à implantação, gestão, monitoramento e proteção da unidade, compreendendo sua área de amortecimento;IV - desenvolvimento de estudos necessários à criação de nova unidade de conservação; eV - desenvolvimento de pesquisas necessárias para o manejo da unidade de conservação e área de amortecimento.Parágrafo único. Nos casos de Reserva Particular do Patrimônio Natural, Monumento Natural, Refúgio de Vida Silvestre, Área de Relevante Interesse Ecológico e Área de Proteção Ambiental, quando a posse e o domínio não sejam do Poder Público, os recursos da compensação somente poderão ser aplicados para custear as seguintes atividades:I - elaboração do Plano de Manejo ou nas atividades de proteção da unidade;II - realização das pesquisas necessárias para o manejo da unidade, sendo vedada a aquisição de bens e equipamentos permanentes;III - implantação de programas de educação ambiental; eIV - financiamento de estudos de viabilidade econômica para uso sustentável dos recursos naturais da unidade afetada.Art. 34. Os empreendimentos implantados antes da edição deste Decreto e em operação sem as respectivas licenças ambientais deverão requerer, no prazo de doze meses a partir da publicação deste Decreto, a regularização junto ao órgão ambiental competente mediante licença de operação corretiva ou retificadora.
CAPÍTULO IXDO REASSENTAMENTO DAS POPULAÇÕES TRADICIONAIS
Art. 35. O processo indenizatório de que trata o art. 42 da Lei no 9.985, de 2000, respeitará o modo de vida e as fontes de subsistência das populações tradicionais.Art. 36. Apenas as populações tradicionais residentes na unidade no momento da sua criação terão direito ao reassentamento.
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Art. 37. O valor das benfeitorias realizadas pelo Poder Público, a título de compensação, na área de reassentamento será descontado do valor indenizatório.Art. 38. O órgão fundiário competente, quando solicitado pelo órgão executor, deve apresentar, no prazo de seis meses, a contar da data do pedido, programa de trabalho para atender às demandas de reassentamento das populações tradicionais, com definição de prazos e condições para a sua realização.Art. 39. Enquanto não forem reassentadas, as condições de permanência das populações tradicionais em Unidade de Conservação de Proteção Integral serão reguladas por termo de compromisso, negociado entre o órgão executor e as populações, ouvido o conselho da unidade de conservação.§ 1o O termo de compromisso deve indicar as áreas ocupadas, as limitações necessárias para assegurar a conservação da natureza e os deveres do órgão executor referentes ao processo indenizatório, assegurados o acesso das populações às suas fontes de subsistência e a conservação dos seus modos de vida.§ 2o O termo de compromisso será assinado pelo órgão executor e pelo representante de cada família, assistido, quando couber, pela comunidade rural ou associação legalmente constituída.§ 3o O termo de compromisso será assinado no prazo máximo de um ano após a criação da unidade de conservação e, no caso de unidade já criada, no prazo máximo de dois anos contado da publicação deste Decreto.§ 4o O prazo e as condições para o reassentamento das populações tradicionais estarão definidos no termo de compromisso.
CAPÍTULO XDA REAVALIAÇÃO DE UNIDADE DE CONSERVAÇÃO DE CATEGORIA NÃO
PREVISTA NO SISTEMA
Art. 40. A reavaliação de unidade de conservação prevista no art. 55 da Lei no 9.985, de 2000, será feita mediante ato normativo do mesmo nível hierárquico que a criou.Parágrafo único. O ato normativo de reavaliação será proposto pelo órgão executor.
CAPÍTULO XIDAS RESERVAS DA BIOSFERA
Art. 41. A Reserva da Biosfera é um modelo de gestão integrada, participativa e sustentável dos recursos naturais, que tem por objetivos básicos a preservação da biodiversidade e o desenvolvimento das atividades de pesquisa científica, para aprofundar o conhecimento dessa diversidade biológica, o monitoramento ambiental, a educação ambiental, o desenvolvimento sustentável e a melhoria da qualidade de vida das populações.Art. 42. O gerenciamento das Reservas da Biosfera será coordenado pela Comissão Brasileira para o Programa "O Homem e a Biosfera" - COBRAMAB, de que trata o Decreto de 21 de setembro de 1999, com a finalidade de planejar, coordenar e supervisionar as atividades relativas ao Programa.Art. 43. Cabe à COBRAMAB, além do estabelecido no Decreto de 21 de setembro de 1999, apoiar a criação e instalar o sistema de gestão de cada uma das Reservas da Biosfera reconhecidas no Brasil.§ 1o Quando a Reserva da Biosfera abranger o território de apenas um Estado, o sistema de gestão será composto por um conselho deliberativo e por comitês regionais.§ 2o Quando a Reserva da Biosfera abranger o território de mais de um Estado, o sistema de gestão será composto por um conselho deliberativo e por comitês estaduais.§ 3o À COBRAMAB compete criar e coordenar a Rede Nacional de Reservas da Biosfera.Art. 44. Compete aos conselhos deliberativos das Reservas da Biosfera:I - aprovar a estrutura do sistema de gestão de sua Reserva e coordená-lo;II - propor à COBRAMAB macro-diretrizes para a implantação das Reservas da Biosfera;
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III - elaborar planos de ação da Reserva da Biosfera, propondo prioridades, metodologias, cronogramas, parcerias e áreas temáticas de atuação, de acordo como os objetivos básicos enumerados no art. 41 da Lei no 9.985, de 2000;IV - reforçar a implantação da Reserva da Biosfera pela proposição de projetos pilotos em pontos estratégicos de sua área de domínio; eV - implantar, nas áreas de domínio da Reserva da Biosfera, os princípios básicos constantes do art. 41 da Lei no 9.985, de 2000.Art. 45. Compete aos comitês regionais e estaduais:I - apoiar os governos locais no estabelecimento de políticas públicas relativas às Reservas da Biosfera; eII - apontar áreas prioritárias e propor estratégias para a implantação das Reservas da Biosfera, bem como para a difusão de seus conceitos e funções.
CAPÍTULO XIIDAS DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 46. Cada categoria de unidade de conservação integrante do SNUC será objeto de regulamento específico.Parágrafo único. O Ministério do Meio Ambiente deverá propor regulamentação de cada categoria de unidade de conservação, ouvidos os órgãos executores.Art. 47. Este Decreto entra em vigor na data da sua publicação.Art. 48. Fica revogado o Decreto no 3.834, de 5 de junho de 2001.Brasília, 22 de agosto de 2002; 181º da Independência e 114º da República.FERNANDO HENRIQUE CARDOSOJosé Carlos CarvalhoEste texto não substitui o publicado no D.O.U. de 23.8.2002
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III.
LEI Nº 2393, DE 20 DE ABRIL DE 1995.
DISPÕE SOBRE A PERMANÊNCIA DE POPULAÇÕES NATIVAS RESIDENTES EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
O Governador do Estado do Rio de Janeiro,Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu sanciono a seguinte lei:
Art. 1º - Fica o Poder Executivo, através de seus órgãos competentes, autorizado a assegurar às populações nativas residentes há mais de 50 (cinqüenta) anos em unidades de conservação do Estado do Rio de Janeiro, o direito real de uso das áreas ocupadas, desde que dependam, para sua subsistência, direta e prioritariamente dos ecossistemas locais, preservados, os atributos essenciais de tais ecossistemas e cumpridas as exigências previstas na presente Lei. § 1º - A concessão do direito real de uso às áreas ocupadas, prevista no caput desse artigo, será inegociável por prazo indeterminado, podendo ser transferível apenas aos descendentes diretos somente se os mesmos também dependerem direta e prioritariamente destas mesmas áreas, vedadas a locação ou sublocação a outros interessados.
§ 2º - Como contrapartida deste direito, as populações beneficiadas por esta Lei ficam obrigadas a participar da preservação, recuperação, defesa e manutenção das unidades de conservação.
§ 3º - Em nenhuma hipótese poderá ser concedido o direito real de uso de terra em áreas que sejam consideradas, por Lei, como Reservas Biológicas.
Art. 2º - A permissão da exploração e uso dos recursos naturais às populações nativas residentes em unidades de conservação do Estado do Rio de Janeiro, e beneficiadas por esta Lei, obedecerá as seguintes exigências:
I - Proibição de exploração e/ou uso de espécies ameaçadas de extinção, bem como adoção de práticas que comprometam seus respectivos habitats, assim como o ecossistema como um todo;
II - Permissão restrita de exploração de recursos naturais não renováveis, condicionada ao mínimo indispensável à manutenção da qualidade de vida das populações beneficiadas por esta Lei, vedadas as práticas que comprometam os atributos essenciais dos ecossistemas explorados;
III - Proibição do uso de práticas e/ou atividades que comprometam a recuperação natural dos ecossistemas;
IV - Demais restrições de uso de unidades de conservação, segundo Legislação Federal e Estadual vigentes.
Art 3º - O não cumprimento dos dispositivos desta Lei sujeita o infrator às seguintes penalidades:
I - Multa de 1 (uma) a 100 (cem) UFERJ's referentes à data da infração;
II - Obrigação de recomposição da área afetada com espécies nativas do local;
III - Para os casos de reincidência de infração, perda do direito real de uso da área
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ocupada, concedido pela presente Lei.
Parágrafo único - As penalidades previstas nos incisos I e III, independem das impostas no inciso II.
Art. 4º - O Poder Executivo, através de seus órgãos competentes, promoverá:
I - O cadastramento das populações nativas a serem beneficiadas por esta Lei;
II - Ampla informação às populações beneficiadas sobre os direitos garantidos por esta Lei, bem como os deveres e as penalidades impostas pelo não cumprimento da mesma;
III - VETADO
IV - Criação de mecanismos de proteção e preservação especiais nas áreas ocupadas ou sob influência das populações nativas, de forma a compatibilizar a melhoria da qualidade de vida das populações beneficiadas por esta Lei e a preservação dos atributos essenciais dos ecossistemas locais;
V - Levantamento sócio-econômico das populações nativas promovendo, preservada a cultura local, as medidas necessárias para o atendimento médico e educacional, bem como para a regularização da concessão real de uso da terra, nos termos desta Lei.
Art. 5º - Na elaboração de políticas, programas ou ações que objetivam as populações nativas beneficiadas por esta Lei ou provoque qualquer influência em seu modo de vida, o Poder Executivo através de seus órgãos competentes garantirá a efetiva participação dos interessados, diretamente ou através de seus representantes.,
Art. 6º - As despesas decorrentes desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.
Art. 7º - VETADO.
Art. 8º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 20 de abril de 1995.
MARCELO ALENCARGovernador
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IV.
DECRETO N° 17.981, de 30 de outubro de 1992
Cria a Reserva Ecológica de Juatinga, no Município de Parati, e dá outras providências
O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, no uso de suas atribuições legais, tendo em vista o disposto no art. 9°, VI, da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, regulamentada pelo Decreto nº 99.274, de 7 de junho de 1990, bem como a Lei Estadual nº 1.859, de 1 de outubro de 1991, e considerando ser impostergável preservar o ecossistema local, composto por costões rochosos, remanescentes florestais de Mata Atlântica, restingas e mangues que, em conjunto com o mar, ao fundo, forma cenário de notável beleza, apresentando peculiaridades não encontradas em outras regiões do Estado,
DECRETA:
Art. 1º - Fica criada, no Município de Parati, a Reserva Ecológica da Juatinga, de natureza non edificandi, delimitada, de um lado, pelo Saco de Mamanguá, de outro e pela frente, pelo mar aberto e, pelos fundos, por uma linha reta imaginária que, partindo do ponto conhecido como Cachoeira do Cocal (no lado do Canto Bravo da Praia do Sono), alcança o local conhecido como Porto do Sono (ao fundo do Mamanguá), ficando, destarte, resguardada a faixa de Marinha.
Art. 2º - A administração da Reserva Ecológica da Juatinga será exercida pela Fundação Instituto Estadual de Florestas I.E.F./RJ, entidade administrativa vinculada à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Projetos Especiais.
Art. 3º - A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Projetos Especiais expedirá, através de atos normativos próprios, as instruções necessárias à efetiva implementação da Reserva Ecológica de Juatinga, obedecendo à legislação ambiental em vigor.
Art. 4º - A Fundação Instituto Estadual de Florestas I.E.F./RJ desenvolverá programa específico de Educação Ambiental, com o objetivo de fomentar a cultura caiçara local, compatibilizando a utilização dos recursos naturais com os preceitos conservacionistas estabelecidos neste Decreto.
Art. 5º - Este Decreto, entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
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V.
LEI Nº 1859, DE 1º DE OUTUBRO DE 1991.
AUTORIZA O PODER EXECUTIVO A CRIAR A RESERVA ECOLÓGICA DA JUATINGA, NO MUNICÍPIO DE PARATI.
O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a criar Reserva Ecológica da Juatinga, no Município de Parati, abrangendo a área limitada, de um lado, pelo Saco do Mananguá, de outro lado, e pela frente, pelo mar aberto; e, pelos fundos, por uma linha reta que, partindo do ponto conhecido como Cachoeira do Cocal (no lado do Canto Bravo da Praia do Sono),a alcança o local conhecido como Porto do Sono (ao fundo do Saco do Manguá), ficando, destarte, resguardada a faixa de Marinha.
Art. 2º - A Reserva Ecológica da Juatinga será declarada non edificandi, ficando preservadas as áreas tradicionalmente ocupadas pelas comunidades nativas de pescadores caiçaras, devendo o Poder Executivo encarregar-se das respectivas regularizações fundiárias.
Art. 3º - Caberá ao Poder Executivo zelar pela preservação do ecossistema da Reserva, apoiar e orientar as comunidades de pescadores neste sentido, buscando recurso, se necessário, junto a instituições nacionais e internacionais.
Art. 4º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 1º de outubro de 1991.
LEONEL BRIZOLAGovernador
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VI.LEI 3443, DE 14 DE JULHO DE 2000
REGULAMENTA O ARTIGO 27 DAS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS E OS ARTIGOS 261 E 271 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, ESTABELECE A CRIAÇÃO DOS CONSELHOS GESTORES PARA AS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO ESTADUAIS, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS
O Governador do Estado do Rio de Janeiro,Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º - Fica estabelecida a participação da sociedade civil organizada, em conjunto com o Poder Público e as Universidades, na gestão das unidades de conservação do Estado do Rio de Janeiro, de acordo com o Art. 261, Inciso XXI, através da criação de Conselhos Gestores das Unidades de Conservação Estaduais.§ 1º - As organizações civis de que fala o "caput" deste artigo compreendem aquelas que se adequam aos seguintes requisitos:a) - estejam legalizadas há pelo menos 1 ano;b) - tenham em seus estatutos a defesa do meio ambiente e a ausência de finalidade lucrativa;c) - estejam cadastradas no Cadastro Estadual de Entidades Ambientalistas.§ 2º - A co-gestão, prevista no "caput" deste artigo, implica na participação na administração, fiscalização e elaboração de plano diretor.
Art. 2º - As organizações civis interessadas em participar da gestão de unidades de conservação deverão firmar convênios com o órgão ambiental do Estado responsável pela administração das unidades.
Art. 3º - Será criado um Conselho Gestor para cada unidade de conservação do Estado.§ 1º - Cada Conselho Gestor será formado por:a) - representante de cada município abarcado pela unidade de conservação;b) - representante do órgão ambiental do Estado responsável pela administração da unidade de conservação;c) - representante de universidade ou outra instituição científica de ação local;d) - representante de ONG (Organização Não-Governamental), uma para cada município envolvido, devidamente conveniada de acordo com o Art. 2º da presente Lei.e) - representante da Ordem dos Advogados do Brasil da Seção do município envolvido.§ 2º - A composição do Conselho Gestor deverá ser publicada em Diário Oficial pelo órgão ambiental competente.
Art. 4º - O Conselho Gestor deverá se reunir ordinariamente com periodicidade mensal, e extraordinariamente sempre que convocado pela maioria dos seus membros.
Art. 5º - O Conselho Gestor deverá elaborar prioritariamente um plano gestor de ação integrada, a ser apresentado em audiência pública 6 meses após a data de sua instalação.
Art. 6º - Caberá ao Poder Executivo promover o reforço institucional para a efetiva gestão das unidades de conservação estaduais.
Parágrafo único - O reforço institucional previsto neste artigo compreende a construção de sede da unidade, estrutura administrativa e de fiscalização, elaboração
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de plano diretor, demarcação da área da unidade e regularização fundiária, de acordo com a Constituição Estadual, Art. 27 das Disposições Transitórias.
Art. 7º - O Poder Executivo deverá incluir anualmente, na Proposta Orçamentária do Estado, dotação específica para o cumprimento desta Lei.
Art. 8º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 14 de julho de 2000.
ANTHONY GAROTINHOGovernador
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