Carta ao clero
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Carta ao Clero
Quinta-feira Santa de 2016
Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro
“Cuidai de vós mesmos e de todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos
constituiu… para apascentardes a Igreja de Deus, que ele adquiriu com seu
próprio sangue”. (At 20,28)
Aos sacerdotes, diáconos
e aos irmãos bispos auxiliares,
que tanto auxiliam na minha missão na
Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro.
1. Já tive ocasião de me dirigir várias vezes por carta pastoral ao povo desta amada
Arquidiocese, e ultimamente também por uma carta especial aos seminaristas.
Hoje, porém, irei falar ao coração daqueles que me estão mais próximos: o clero.
Neste Ano da Misericórdia gostaria de ter esta proximidade, também através de
uma carta que expressa um pouco daquilo que experimento no dia a dia desta
grande Cidade, com aqueles que colaboram comigo em seus vários serviços e
missões. Portanto, quero falar, de modo especial, aos “próvidos cooperadores da
ordem episcopal” (LG 28), os padres. Incluo ainda os diáconos, que juntos
formam, com aqueles, o clero desta Arquidiocese.
2. São João Paulo II já dizia na Pastores dabo vobis: “O presbítero, de fato, em
virtude da consagração que recebe pelo sacramento da ordem, é enviado pelo Pai,
através de Jesus Cristo, ao qual como Cabeça e Pastor do seu povo é configurado,
de modo especial, para viver e atuar, na força do Espírito Santo, a serviço da
Igreja e para a Salvação do Mundo”1. Realmente, a Ordem é sacramento destinado
1 João Paulo II. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Pastores dabo vobis, n. 12.
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ao serviço da Igreja e tem sua identidade própria e característica. O Catecismo da
Igreja Católica nos apresenta uma síntese da doutrina e da Tradição Eclesial sobre
o sacerdócio ministerial: “A Ordem é o sacramento graças ao qual a missão
confiada por Cristo a seus Apóstolos continua sendo exercida na Igreja até o fim
dos tempos; é, portanto, o sacramento do ministério apostólico. Comporta três
graus: o episcopado, o presbiterato e o diaconato” (CEC, 1536).
3. Queremos hoje refletir sobre o testemunho vivo dos padres e dos diáconos que,
unidos aos bispos, vivem em perfeita obediência, e agradecer pelo seu sim a cada
dia nos diversos serviços, mostrando-se próximos do outro, sentindo-se
pertencentes a uma grande família, na experiência de uma vivência da caridade
verdadeira. Este seja sempre o ânimo de nossos servos pela causa do Reino de
Deus no meio do povo.
4. No sábado e domingo de Ramos, em que tivemos a ocasião de celebrar a Jornada
Diocesana da Juventude, pude me encontrar com os seminaristas e vocacionados,
tanto na igreja paroquial de São José da Lagoa, como no Santuário do Cristo
Redentor e no Santuário Arquidiocesano de Nossa Senhora da Penha. Não nos
esqueçamos de rezar pelas vocações, e desejo vivamente que se faça isso em todas
as paróquias. Porém, naqueles momentos em que iniciamos a Semana Santa,
lembrei-me da importância da unidade entre nós! Em tantos países, as ideologias
conseguiram dividir a Igreja, enquanto, em outros, a Igreja ficou ainda mais unida
diante das controvérsias e situações da sociedade. Neste tempo de tantos
sofrimentos para nossa Nação, quero pedir ainda mais a união do clero em torno a
Cristo Senhor. Não nos deixemos dividir por ideologias que passam, mas
permaneçamos firmes no Senhor. A Semana Santa, como ápice do tempo da
Quaresma e início do grande Tempo Pascal, é justamente a oportunidade de
renovarmos a nossa alegria no seguimento de Cristo.
5. Ao iniciarmos a primavera no hemisfério norte, ao comemorarmos a saída do
povo do Antigo Testamento da escravidão do Egito e ao atualizarmos a nova e
eterna aliança no Mistério Pascal de Cristo, que deu a vida por nós, somos
chamados a renovar nossa adesão a Ele. A renovação das promessas do Batismo
no Sábado Santo é precedida pela renovação de nossos compromissos sacerdotais
nesta Quinta-feira Santa. Como gostaria que esse gesto pudesse nos unir ainda
mais e, junto com todo o belo trabalho apostólico que existe nesta nossa grande
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Cidade, realizado com tanto suor por todos vocês, fosse um sinal para nosso país!
Os cristãos têm uma proposta sempre revolucionária: na unidade e no perdão,
construirmos a civilização do amor. Nestes tempos de divisões e ódios entre
grupos que se digladiam de tantas formas, somos chamados a ser a Igreja Una –
unida – que traz consigo a grande notícia da salvação em Cristo Jesus: Deus nos
ama e enviou o Seu Filho que, dando a Sua vida por todos, está Ressuscitado e
vivo entre nós.
6. O Concílio Vaticano II, que completou este ano seu cinquentenário de
encerramento, insistiu muito na busca da construção de uma Igreja pautada pelos
princípios da comunhão e da participação. Temos caminhado progressivamente
nesta direção. No entanto, podemos aperfeiçoar ainda mais os mecanismos que
permitem a efetiva implantação desta realidade, e vários são os caminhos para
isso. O primeiro passo consiste em reconhecer que, algumas vezes, queremos
influenciar decisões com nossa concepção, movendo-nos em grupos de influência.
A comunhão e participação partem, todavia, de outro fundamento: a unidade com
Cristo e com os irmãos, aos quais amamos e com os quais queremos construir um
mundo novo. A unidade nasce do amor e não da disputa e deve ser um clima a
transbordar em nosso clero. Não nos isolemos ou nos afastemos, mas aumente em
nós o sentido de pertença a uma família, que só cresce e só se desenvolve quando
estamos juntos. Temos problemas, dificuldades mas, nos ajudando e
confraternizando, sentimo-nos bem uns com os outros.
7. Depois de termos vivido intensamente o tempo quaresmal, e após a reflexão em
nossos retiros, entendemos que é o Espírito Santo que conduz não só o retiro, mas
a nossa vida testemunhal. A cada dia, respondemos à pergunta: quid vult? Que
quer de mim o Espírito neste mês, nesta semana, neste dia? Para onde quer me
conduzir? Mas é necessário que cada padre, cada diácono também participe e
responda: quid volo? O que eu desejo, a que me proponho? Eis aqui a importância
de não deixarmos de rezar, termos um tempo de oração, um tempo com Deus no
início de cada manhã. Assim, será o Espírito Santo agindo através do padre e do
diácono, não num sentido de ativismo, mas de vivência da fé a serviço da
comunidade e para a glória de Deus. Frei Boaventura Kloppenburg, OFM, em sua
obra O Ser do Padre, afirmava que “padre sem vida espiritual seria contradição”.
Por isso, “o padre deve viver aquilo que ele é”… “O padre deve viver aquilo que
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ele faz enquanto padre”… e somos chamados a ir ao encontro do outro e acolhê-lo
como se fosse o próprio Cristo. É difícil, mas aqui nasce a iniciativa de não só
esperar a volta, mas também ir ao encontro. Por isso, nunca sair de casa ou do
quarto sem o tempo de oração.
8. Diz-nos São João Paulo II: “Se quisermos exprimir totalmente a verdade acerca da
misericórdia, com aquela totalidade com que ela foi revelada na história da nossa
salvação, devemos penetrar de maneira profunda nesse acontecimento final (da
atividade messiânica de Cristo) que (…) é definido como mistério pascal,”2 um
mistério em que a morte e a vida, com uma intensidade única, se unem na cruz, o
símbolo por excelência da nossa identidade cristã. Sim, contemplemos sempre
mais a cruz como sinal do mais autêntico amor. Por isso, é preciso amar
profundamente! Por amor, Deus criou todas as coisas. Não há outra razão para a
criação senão o amor de Deus. E quem ama também deseja que o amado e a
amada saibam amar, pois somente quem ama e sabe amar é que pode ser feliz…
Então, Deus é feliz. E como! Deus é amor (cf. 1Jo 4, 8.16), puramente amor e,
porque é assim, é feliz. E espera que toda a sua criação também se realize, seja
feliz, seja completa e plena. E, se o amor faz parte da essência de Deus, também
se pode dizer, como São Tomás de Aquino, que “é próprio de Deus usar de
misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua onipotência”3. Hoje
somos chamados por Deus a ser felizes no amor, pois não há ninguém que,
estando fora do amor, seja feliz de verdade. Somente no amor é que podemos ser
quem realmente somos: filhos e filhas de Deus. No Filho Jesus, somos filhos,
porque Ele é imagem do Deus invisível. Olhando para Ele, parecemo-nos mais
com Deus.
9. Para que isso aconteça, precisamos da conversão diária, a fim de que o estilo de
vida de Cristo seja sempre mais o estilo de vida de cada um de nós. Devemos
concretizar a cada dia o fato de termos sido constituídos nas coisas de Deus a
favor dos homens (Hb 5,1). Desse modo, devemos nos esforçar para viver em
comunhão com todas as pessoas, concretizando cada vez mais um amor que doa a
vida. Eis aqui também inscrita a riqueza do sagrado celibato, que leva à
solidariedade autêntica com aqueles que sofrem e com os que experimentam todos
2 JOÃO PAULO II. Rico em Misericórdia, n. 07.
3 Citação do Papa Francisco in: A Alegria do Evangelho, n. 37, e O Rosto da Misericórdia, n. 6.
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os gêneros de pobreza. Devemos ser operários para a coedificação da única Igreja
de Cristo na terra. Por isso, devemos viver com grande motivação e fidelidade a
comunhão de amor com o Papa, com os bispos, com os nossos irmãos e com
todos os fiéis, como Igreja que penetra no mistério de ser Corpo Místico de Cristo.
O Papa Francisco tem se referido constantemente à importância da oração e da
piedade na vida do padre, para ser o pastor com “cheiro de ovelhas”.
10. Sabemos que, às vezes, surge na alma de não poucos sacerdotes um doloroso
sentido de frustração, ao constatar que o mundo cada vez menos se interessa pelo
sentido do seu ofício4, e colocam em discussão as instituições, as atividades e as
obras nas quais se empenham. No interior mesmo da Igreja discute-se o específico
do sacerdote e vemos daí até hipóteses exegéticas, teológicas e históricas que
avançam nestas interrogações sobre o significado próprio do ministério sacerdotal.
No entanto, tais coisas não devem abalar o coração de um homem de oração,
unido ao Coração Amantíssimo de Jesus, pois o sacerdote é homem da
inteligência e do coração. Precisamos de padres que se situem na sociedade como
promotores da verdade e da paz, num mundo que se apresenta violento e marcado
por mentiras, onde eliminam-se os outros, ao invés de acolhê-los e recuperá-los
pelo amor transformador.
11. Algo central na vida do clero e, de modo especial, do presbitério é a comunhão
entre presbíteros, que há de manifestar-se numa amizade profunda entre todos e de
todos conosco. A distância, ou mesmo as atividades, não justificam a solidão nem
o individualismo. Para além das realidades pastorais que permitem a vida em
comum de alguns presbíteros que partilham casa e afazeres, é preciso que todos se
sintam corresponsáveis pelo bem-estar uns dos outros. Acredito que aqui se situa
uma oportuna resposta para muitas situações que vivemos. Somos chamados a ser
irmãos, amigos, unidos em Cristo, na busca de correspondermos ao chamado do
Senhor para nos santificarmos no ministério que Ele nos conferiu.
12. A capacidade de nos sentirmos todos responsáveis pela vida da Igreja
arquidiocesana depende de como nos engajamos em estruturas de participação.
Cada cristão deve sentir a Igreja como sua, e saber-se corresponsável pelos
sucessos e insucessos pelos quais ela passa. As estruturas de participação do clero,
4 Cf. PAULO VI. Discurso aos párocos e pregadores quaresmais, 17 de fevereiro de1969, in AAS 61
(1969), p. 1188, 2.
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aquelas que já existem e as que a criatividade pastoral vier a criar, hão de se
concretizar nos mais diversos níveis. A importância de corresponder aos apelos da
comunhão, com participação e corresponsabilidade, é uma decisão necessária para
darmos passos nos enormes desafios da evangelização na grande cidade. Esperar
não pode significar estar parado. Antes, significa fazer tudo o que está ao nosso
alcance para que se caminhe no sentido certo. Exige também a identificação das
forças de resistência e o seu confronto, para que não se confunda a participação e
o trabalho de equipe com populismo que quer agradar a todos. Se cada padre ou
diácono desempenhar o seu legítimo papel de liderança, em determinada
circunstância, será muito mais fácil obter resultados, ainda que saibamos que os
participantes nunca estarão todos do nosso lado.
13. A fim de que cada um possa contribuir para esta cultura participativa, é necessária
uma formação constante. Participar dos momentos de formação é indispensável
para que aqueles chamados a dar a sua opinião não o façam segundo um
sentimento momentâneo, mas alicerçados num discernimento esclarecido à luz da
fé. A formação espiritual e teológica deve acompanhar a entrega de
responsabilidades e as responsabilidades devem exigir esta formação.
14. É bom e apelamos vivamente que os padres se visitem e se ajudem mutuamente, e
que o povo de Deus possa exclamar como nos Atos dos Apóstolos: “Vede como
eles se amam”! De fato, um dos primeiros testemunhos que um padre deve dar é o
da unidade afetiva e efetiva com outros padres. O povo de Deus reconhece e
estimula esta realidade, chocando-se ao perceber contendas, disputas e inimizades.
Quando os padres manifestam autêntica fraternidade entre si, são admirados por
todos. Quando os padres, ao contrário, manifestam, em suas atitudes e palavras, a
separação, o individualismo ou o partidarismo, é o próprio Evangelho que se torna
rejeitado. Afinal, como seguir um Evangelho se nem seus ministros conseguem
praticar? Este, portanto, é um grande testemunho que precisamos dar e renovar a
cada dia: padres unidos e amigos. Paulo nos exorta, dizendo “Enfim, irmãos,
alegrai-vos, trabalhai no vosso aperfeiçoamento, encorajai-vos, tende um mesmo
sentir e pensar, vivei em paz, e o Deus do amor e da paz estará convosco. Saudai-
vos uns aos outros com o beijo santo” (2Cor 13,11-12).
15. A Constituição Dogmática Lumen Gentium nos recorda o relacionamento do bispo
com os sacerdotes que compõem o presbitério: “Os padres, próvidos cooperadores
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da ordem episcopal, ajuda e instrumento seu, chamados para servir ao povo de
Deus, formam, junto com seu bispo, um único presbitério” (28). E mais adiante:
“Por esta participação no sacerdócio e na missão, os presbíteros reconheçam
verdadeiramente o bispo como a um pai e lhe obedeçam reverentemente” (28). O
programa de vida dos padres está definido nos seguintes termos: “Em virtude da
comum ordenação sagrada e da missão comum, todos os presbíteros se unem
entre si em íntima fraternidade, que deve se manifestar em espontânea e gozosa
ajuda mútua, tanto espiritual como material, tanto pastoral como pessoal, nas
reuniões, na comunhão de vida, de trabalho e de caridade” (28).
16. Só é possível a um bispo reger uma porção do povo de Deus quando o quadro
proposto pela Lumen Gentium se torna uma realidade ou dela se aproxima. O
relacionamento entre os padres e o seu bispo tem sido e deve ser sempre de
verdade e de responsabilidade, na comunhão eclesial que desejamos e edificamos
cotidianamente. Quando os padres e diáconos acolhem os trabalhos a eles
confiados com o carinho e a intensidade de quem encontrou um tesouro (Mt
13,44) acrescentam novo vigor à missão a que são chamados, e ter a presença e o
interesse do bispo é momento de ajuda e estímulo. Por isso mesmo, devem todos
estar sempre de coração aberto e sem medo ou falta de confiança. Ao longo do
tempo em que temos convivido nesta Arquidiocese, tenho procurado manifestar
que estou ao lado de todos os padres, sempre disponível para acolher e ajudar,
mesmo que nem sempre a sobrecarga de compromissos permita.
17. A afetiva e efetiva comunhão entre nós é, sem dúvida, uma grande busca de cada
dia. Como é importante olharmos para o outro com olhar de compreensão e
fraternidade e nos acolhermos uns aos outros, mesmo com experiências
formativas ou pastorais diferentes! Sabemos que, na pluralidade desta grande
Cidade, necessitamos também de um pluralismo de experiências que nos
enriqueçam na unidade pastoral. Por isso, insisto em recordar: pluralismo de
experiências, sim; ausência de comunhão, não!
18. Recordo com carinho aqui os padres que, seja pela idade ou enfermidade, estão
afastados das responsabilidades pastorais. Olhemos sempre para eles com
admiração e gratidão, na certeza de que contamos com a sua oração constante,
como suporte à atividade de todo o clero. Sempre que possível, empenhemo-nos
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por visitá-los e com eles partilhar um pouco de nosso tempo sacerdotal, além de
retribuir-lhes também com nossas orações.
Os Diáconos
19. Desde a Igreja nascente os Apóstolos perceberam a necessidade do auxílio de
homens de boa fama, sobre os quais impuseram as mãos, para o serviço da
caridade (cf. At 6,1-6). O ministério dos diáconos, essencialmente diferente dos
ministérios dos presbíteros e dos bispos, é, com estes, expressão da apostolicidade
da Igreja de Cristo5. Como vocação própria e específica são escolhidos, formados,
ordenados e enviados, sobretudo para aquilo que o ritual da ordenação ressalta:
“Crê no que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas”! Queremos que os
diáconos possam fazê-lo plenamente no exercício do tríplice ministério
evangelizador, caritativo e litúrgico6. Queremos que exista uma comunhão de
amizade e de fraternidade também entre diáconos e presbíteros e, quando possível,
não só nas formações, mas no dia a dia, respeitando suas famílias e o tempo para
elas.
A família
20. Ao lembrar-me dos padres e dos diáconos, não posso deixar de mencionar as
famílias. Tema dos dois últimos Sínodos dos Bispos, a família é indispensável a
qualquer ser humano. Na família, bem sabemos, cada um experimenta o amor, a
partilha, o acolhimento, a doação, a solidariedade e tudo o mais que forma a
estrutura mais profunda de cada pessoa. A família é o lugar da transmissão da fé.
Por isso, peço a cada clérigo um empenho ainda maior em prol da instituição
familiar. Tenho clara consciência de que cada um, padre e diácono, vivendo o
estado de vida para o qual foi chamado, dá o melhor de si para que a família seja
acolhida e fortalecida na Igreja. Agradeço profundamente o empenho de cada um
nas inúmeras atividades com noivos, casais e famílias inteiras. Sabemos, no
entanto, que, nestes tempos de profundas transformações, por mais que
5 Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório do Ministério e da Vida dos Diáconos Permanentes, 30.
6 Idem., 22.
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trabalhemos em favor da família, sempre precisaremos trabalhar mais. É grande a
pressão contra ela!
O momento atual do Brasil e do mundo
21. Contemplando o mundo em que vivemos, deparamo-nos com inúmeras sombras
cuja força nos pode fazer desacreditar na Luz. Como já me expressei antes, 7 “o
Brasil atravessa um difícil momento de crise política, institucional e ética, que não
deixa indiferente nenhum de nós”. Em todo o mundo, inúmeros fatos nos
angustiam, mostrando, como nos lembrou o Papa Francisco em sua Encíclica
Laudato Si’, que é tempo de trabalhar por um “outro rumo” (LS 53), para os
corações, para os povos e, enfim, para todo o mundo. Por isso, não podemos nos
deixar levar pela “globalização da indiferença”, tão lembrada pelo Santo Padre. A
crise e, mais do que ela, a contemplação do Senhor Ressuscitado nos interpelam a
buscar este outro rumo, onde cada ser humano seja efetivamente reconhecido
como imagem e semelhança do Criador.
22. Num mundo plural, não somos os únicos a contribuir. Temos, contudo, nossa
parcela de contribuição, da qual não nos podemos eximir. “Em tempos como
estes, os homens da Igreja são chamados a dar uma palavra de apoio e incentivo a
todos os filhos e filhas desta amada nação que – queiramos ou não – nasceu sob o
signo da Cruz do único e divino Redentor do gênero humano”8
23. Penso e, de fato, me preocupo com a incidência destas sombras sobre nós. Como
pastores, nossa missão consiste em cuidar do rebanho, mantendo-o unido e
esperançoso. Por isso, não podemos nos deixar levar pelo desânimo e pela
consequente incapacidade de enxergar caminhos. Tampouco podemos nos deixar
levar pela desunião, que de nada serve a não ser para fortalecer ainda mais os
problemas que afligem o Brasil e o mundo. De fato, o Criador nos fez livres para,
responsavelmente, tomarmos nossas decisões e, nisso, identificarmo-nos com um
ou outro caminho. Esta identificação, contudo, não pode se transformar em
divergência ou quebra da unidade. Aquele que nos vocacionou e uniu é maior que
tudo o que nos pode separar. Ao pedir as luzes do Cristo Senhor, acolhamos as
palavras do episcopado latino-americano no encerramento do Documento de
7 Tempesta, Orani João. Um olhar sobre a realidade. Artigo publicado em 16/3/2016.
8 Idem.
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Santo Domingo: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus Vivo, Bom Pastor e Irmão
nosso, nossa única opção é por Ti”.
24. Esta certeza é um dos consolos da nossa fé. Que Jesus se compadeça de nossas
carências espirituais e escolha do meio de nós os seus prediletos e os chame… E
que os chamados, os vocacionados, confortados pela Graça não se recusem, não
se acomodem, não se desviem…
A comunhão com Cristo Pastor
25. O Sacerdócio de Cristo se enraíza na sua própria condição de Filho de Deus que,
pela misteriosa união hipostática, assume uma natureza humana unida à sua
divindade. A realidade incomparável do sacerdócio único de Cristo inclui em si
mesma também as funções profética e real, manifestando em muitos modos a
presença e eficácia do amor proveniente de Deus.
26. Na sua vida terrena, Jesus, para tornar-se testemunha do Pai que O enviou e para
fazer a Sua vontade (cf. Jo 8,28-29), compartilhou em tudo, exceto no pecado, a
nossa condição humana (cf. Fl 2,6-11; 2Cor 5,21) e anunciou aos pobres o
Evangelho da salvação (cf. Lc 4,17-21).
27. Sua pregação profética, confirmada com sinais e milagres, culminou no mistério
da sua morte e ressurreição, mensagem suprema do amor divino que o Pai nos
manifestou (cf. DV 4; SC 5). Foi na cruz que Jesus demonstrou, de forma plena,
ser o “bom pastor que dá a vida pelas suas ovelhas” (Jo 10,11). Assim superou
todos os sacerdócios rituais e os sacrifícios do Antigo Testamento e coroou de
uma vez por todas o seu sacerdócio com a oblação de si mesmo ao Pai para a
redenção do mundo (cf. Hb 10,5-7). No mistério pascal, Cristo torna-se pastor da
comunidade do Novo Testamento. Em torno d’Ele, ressuscitado, reúnem-se em
unidade e são introduzidos na comunhão do Espírito os filhos de Deus dispersos
(cf. 1Pd 5,4; Hb 13,20; At 2,25; Jo 11, 51-52).
28. A Igreja, que nasce da Páscoa e se manifesta em Pentecostes, por sua natureza e
missão “em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima
união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1), no anúncio da
Palavra e na administração dos sacramentos. A todo o povo de Deus, reunido em
seu nome, Cristo Senhor participa o seu sacerdócio (cf. Ap 1,6; 5,9-10). Na
verdade, “pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, são consagrados para
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11
serem casa espiritual, sacerdócio santo, para que, por meio de todas as obras
próprias do cristão, ofereçam oblações espirituais e anunciem os louvores daquele
que das trevas os chamou à sua admirável luz (cf. 1 Pd 2, 4-10)” (LG 10).
29. Por isso o sacerdócio da Igreja, que deriva daquele único de Cristo e é
participação nele, mostra-se essencialmente profético e, na sua dimensão interior,
se define como oferta e oblação de si mesmo a Deus em favor da humanidade (cf.
Rm 12,1; Jo 4,23). A Igreja, para realizar a sua missão de salvação, participa de
diferentes maneiras no sacerdócio único de Cristo. A partir dos escritos
neotestamentários resulta claramente que o apóstolo e a comunidade dos fiéis são
elementos próprios da originária estrutura inalienável da Igreja, que se
correspondem em recíproca conexão, sob o Cristo Cabeça e o influxo de seu
Espírito (cf. LG 10). Esta relação é expressa na afirmação: “os Apóstolos foram
assim a semente do novo Israel e ao mesmo tempo a origem da sagrada
Hierarquia” (AG 5).
30. Os que recebem o sacramento do Batismo e os que recebem o sacramento da
Ordem participam do único Sacerdócio de Cristo, cada um, porém, de modo
essencialmente diverso. Cristo, Cabeça da Igreja, faz sacerdotes todos os seus
membros, mas a alguns torna seus ministros para servir e para pastorear. No
Evangelho, Cristo declara que não veio para ser servido, mas para servir. Por
conseguinte, seus ministros são enviados para servir. Mas Cristo diz também, e é
bom não esquecer, que Ele é Pastor, e o pastor é quem apascenta e dirige o
rebanho. À pergunta formulada sobre quem deve determinar o serviço prestado, se
o que serve ou o que é servido, não vejo dificuldade em responder que é o Cristo
quem determina esse serviço, deixando, é claro, aos pastores o juízo imediato e
circunstancial, segundo sua consciência. Cristo anunciou que edificaria a sua
Igreja sobre Pedro e a fundou sobre os Doze (cf. LG 18); por isso os escritos
neotestamentários falam da Igreja fundada sobre os apóstolos (cf. Ap 21,25; Mt
16,18).
31. O ministério sacerdotal do Novo Testamento, que continua o ofício de Cristo
Mediador e Cabeça, é distinto essencialmente, e não só por grau, do sacerdócio
comum de todos os fiéis9. A função própria do ministério sacerdotal, no coração
9 Cf. Paulo VI, Mensagem para a V Jornada Mundial de Orações pelas Vocações, 19 de abril de 1968: "É
uma sorte que temos no Concílio, a honra prestada ao sacerdócio real dos fiéis, mas seria lamentável para
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da Igreja, é de tornar presente, em Cristo, o amor de Deus por nós mediante a
Palavra e o Sacramento, e suscitar a comunhão das pessoas com Deus e entre si.
32. Por isso, o ministério sacerdotal, em sua missão específica, implica:
a) Proclamar incansável, oportuna e inoportunamente o Evangelho, finalidade
para a qual os presbíteros são consagrados (cf. LG 28) e empenhados como
primeiro de seus deveres (cf. PO 2);
b) Reunir e guiar a comunidade, exercitando o ministério da caridade (cf. LG
28; PO 6);
c) Perdoar os pecados¸ reunir e reconciliar a comunidade, sobretudo com a
celebração da Eucaristia, na qual o ministério sacerdotal alcança o seu
cume. A Eucaristia é a fonte e o centro da unidade da Igreja (cf. PO 2,5,3;
LG 21,28).
33. A Evangelização requer, por sua natureza, a diaconia da autoridade, isto é, o
serviço da unidade e a presidência da caridade. Tenho visto muitas experiências
missionárias em todos os cantos da Arquidiocese. A luta e o cansaço da missão
diante de um mundo que foge dos valores do Evangelho tem sido um caminho
percorrido com renovado ardor. Sei que temos que ir mais longe, para águas mais
profundas, porém estamos dando passos. Essa tem sido a exortação que ouvimos
sempre do Papa Francisco nessa nossa missão sacerdotal hoje.
34. Para cumprir o seu ministério, os presbíteros recebem uma particular consagração
por meio do Sacramento da Ordem, que funda uma relação original e irrevogável
com Cristo (cf. PO 2; LG 28). Por meio da imposição das mãos e a oração
comunica-se o dom inefável do Espírito Santo (cf. 2Tm 1,6). Esta realidade é
permanente e imprime um sinal que, na tradição da Igreja, denomina-se caráter
sacerdotal.
35. Marcado pelo Espírito, o ministro é, por isso, “ícone” ou imagem do Senhor,
sacramento, sinal vivente, sensível e eficaz da presença de Cristo Cabeça e da sua
missão no dúplice aspecto de autoridade e de serviço. O ministério sacerdotal
significa um modo eficaz e primado da ação de Jesus Cabeça e Mediador,
exercido na Igreja por meio do seu Espírito.
a santa Igreja se esta exaltação oportuna e necessária do sacerdócio comum de todo o povo de Deus
obscurecesse o sacerdócio ministerial ou hierárquico... ".
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36. O ministério pastoral se inicia com a eleição e a vocação qual ato de amor
proveniente de Cristo (cf. Jo 15,16), que convida o eleito como aos Apóstolos a
segui-Lo (cf. Mc 2,14; Lc 5,27), a “ver” e a “ficar com Ele” (cf. Jo 1,39), pedindo-
lhe como a Pedro um testemunho de fé e de amor (cf. Mt 16,16; Jo 21,15). Cristo
escolhe e chama para si mesmo os seus amigos para enviá-los ao mundo. A
vocação é ordem à missão: “E escolheu doze, qualificando-os como apóstolos,
para que convivessem com Ele e os pudesse enviar a proclamar” (Mc 3,14).
37. A chamada de Cristo ao ministério pastoral pressupõe a vocação batismal sobre a
qual se funda, e que mencionei no início desta Carta. A resposta ao chamado
implica a imitação de Cristo Pastor, vivendo a graça batismal e aquela própria do
Sacramento da Ordem. Jesus resume a norma da vida sacerdotal: “Em favor deles
eu me santifico, para que também eles sejam santificados pela verdade”. (Jo 17,
19). Implementa a dedicação à missão pastoral, com destaque da realidade mais
vital e dos afetos mais queridos até à cruz como participação na sua Páscoa
salvífica (cf. Mc 8,34; 10,20; Mt 19,29; Lc 18,29).
38. Os chamados ao ministério sacerdotal são objetos de uma ulterior predileção por
parte de Cristo, não para ser mais, porém para servir mais e tornar-se disponíveis
àquela voz que é, ao mesmo tempo, convite e comando: “Vem e segue-Me” (Mt
19,21). A maturidade da vocação ao ministério se realiza em uma progressiva
união a Cristo, que prepara aquela união inefável fundada sobre o Sacramento da
Ordem.
39. A chamada do bispo, em união com o presbitério e a comunidade dos fiéis, coloca
o selo de autenticidade à vocação interior. Cabe ao bispo “o dever de pronunciar o
juízo definitivo sobre sinais da vocação divina no ordenando. A ele se reserva o
direito de chamá-lo ao Sacerdócio, tornando assim autêntico e operante diante da
Igreja um chamado divino que é lentamente amadurecido”. 10
A comunhão Eclesial
40. A relação particular com Cristo Pastor, radicada no Sacramento da Ordem, se
coliga com uma segunda relação, também total e irrevogável, na Igreja e pela
Igreja, Corpo de Cristo. O presbítero não é um indivíduo isolado, mas membro de
10 Paulo VI. Summi Dei Verbum in AAS 55 (1963), p. 988.
Carta ao clero
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um Corpo hierarquicamente estruturado, como servo dos irmãos (cf. PO 3). Na
comunhão eclesial, acontecem relações diversas e complementares em Cristo com
o inteiro povo de Deus e em particular com o bispo e com o presbitério. Diante de
tantas exigências hoje, como fazer para que a nossa unidade nos leve a viver numa
comunhão verdadeira, e entusiasme o nosso povo a viver também em comunhão e
unidade, na busca da fraternidade que nos conduza a uma missão permanente,
principalmente para as periferias existenciais, como sempre gosta de nos recordar
o Papa Francisco?
41. A comunhão com o povo de Deus se fundamenta sob o sacerdócio comum. Por
conseguinte, os presbíteros são “irmãos entre irmãos como membros do mesmo e
único Corpo de Cristo, cuja edificação é de todos” (PO 6, LG 28). O presbítero,
no seu ministério, se distingue por uma nova consagração, com o dever de servir
aos fiéis leigos, mas se integra com eles profundamente (cf. LG 10 e 37; PC 6 e
9). Assim, torna-se testemunha com os leigos do único Mistério de Cristo. Na
Igreja, cada distinção está a serviço da unidade; ao interno desta unidade, os
presbíteros “em virtude do Sacramento da Ordem, desenvolvem a função eclesial
e irreprimível dos pais e dos mestres no povo de Deus e pelo povo de Deus” (PO
9).
42. A função de pastor não se restringe à cura dos fiéis, mas se alarga à formação da
autêntica comunidade cristã, que os presbíteros reúnem como uma fraternidade
animada pelo sentido de unidade e por meio de Cristo no Espírito, para levar a
Deus Pai (cf. PO 6; LG 28). E, para fomentar oportunamente o sentido
comunitário, necessita que vise não só à Igreja local, mas também toda a Igreja
(cf. PO 6).
43. Os presbíteros, por meio de seu bispo, estão em comunhão também com o Papa,
que, na sua qualidade de sucessor de Pedro, é o perpétuo e visível princípio e
fundamento da unidade seja dos bispos, seja da multidão dos fiéis. A consciência
da comunhão com o bispo ajuda a perceber também a unidade dos presbíteros que
vivem e operam no âmbito do mesmo grau do Sacramento da Ordem. De modo
especial, os presbíteros formam um único presbitério na diocese, a cujo serviço
são assinalados em comunhão com o próprio bispo (cf. LG 28; PO 8). Tal
comunhão sacerdotal constitui o fundamento da comunhão externa, operativa,
Carta ao clero
15
sinal e manifestação da unidade como Cristo queria, a fim de que o mundo saiba
que o Filho é enviado pelo Pai (cf. PO 8, CD 30).
Servir e dar a Vida
44. Cada sacerdote sabe que não foi ordenado para serviço de si mesmo. A ordenação
contribui para que sejamos santos, porém, temos obrigação de sempre buscar a
santidade, mesmo sem o recebimento da Ordem, identificando-nos com o Cristo
Pastor, no sentido específico de que Ele veio para servir e dar a vida para resgate
da multidão. Este é o objetivo primário da nossa vocação ministerial, tal como era
dos «Doze».
45. Santo Agostinho falava do “amoris officium”. É este amor de Pastor que terá de
imbuir toda a nossa vida e ação, como princípio que vem de dentro. Ele é a grande
característica da vida ministerial. Cristo veio dar a vida e eis aqui a chave da total
entrega por amor. Este é o conteúdo essencial da caridade pastoral, um dom de
nós mesmos, tal como Cristo “amou a sua Igreja e entregou-se por ela” (cf. Ef
5,21-30).
46. A caridade pastoral é dom do Espírito. Ela necessariamente nos leva a ser dom à
Igreja, é uma identificação com Cristo Pastor que dá a vida pelas ovelhas. Eis o
essencial do nosso ministério de pastores. A nossa vocação como entrega só pode
sobreviver se for verdadeiramente uma escolha livre, feita por amor, uma doação
que nos leve a ir à frente das ovelhas, por puro espírito de caridade pastoral, com a
renúncia a nós mesmos e a doação de vida ao serviço dos outros.
47. A caridade pastoral ajuda-nos a fazer esta escolha da própria vocação ministerial,
que nunca poderá ser conduzida como quem a arrasta. Sem esta escolha amorosa
da nossa vocação ministerial, cotidianamente renovada, é muito difícil exercer um
ministério como oportunidade e meio de santificação pessoal. A nossa entrega,
resultante da caridade pastoral, é uma entrega sem fronteiras. Não pode limitar-se
somente àqueles serviços que são do nosso agrado. As contrariedades também
fazem parte da missão do Pastor e identificam-no com o mistério de Cristo, morto
e ressuscitado.
48. A caridade pastoral implica amor a Cristo, à Igreja e àqueles que vão no barco a
remar conosco, bem como a todos quantos foram confiados à nossa ação pastoral.
Quando a caridade pastoral perde força e a comunhão começa a desmoronar, o
Carta ao clero
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nosso ministério poderá estar em risco. Viver a caridade pastoral exige que
estejamos em comunhão hierárquica e nos dediquemos por inteiro ao rebanho que
nos foi confiado. Esta dedicação implica o exercício, a que somos chamados por
Deus, de dirigir, conhecer, guiar, congregar todo o povo de Deus, o que exige de
nós sabedoria para escutar, dialogar, participar e motivar.
49. O mandamento do amor é para todos, pois todos os cristãos têm como única a lei
do amor radicada no Batismo (cf. LG 9). No entanto, o amor, como caridade
pastoral, vem do Sacramento da Ordem. Por isso, se agimos pastoralmente à
margem das exigências do amor, acabamos nos dispersando, sem dar consistência
e solidez a nada. A caridade pastoral concede-nos a graça e o poder para nos
fixarmos no primário e essencial, persistindo (apesar das dificuldades e obstáculos
que inevitavelmente vão surgindo) no exercício do nosso ministério.
50. Se não houver caridade de nada aproveita aquilo que realizamos. O
amadurecimento na caridade pastoral faz da nossa vida ministerial uma verdadeira
ocasião de santificação para nós e para os fiéis a nós confiados. Mas, porque a
caridade pastoral é um dom do Espírito, precisamos buscá-la, acolhê-la e praticá-
la a cada dia. Com ela, vêm-nos os principais frutos do Espírito, principalmente os
primeiros enumerados por São Paulo aos Gálatas (5,22): a caridade, a alegria e a
paz.
51. Sim, os fiéis esperam de nós estes e todos os demais frutos ou obras do Espírito!
Vivendo-os, deixaremos transparecer tão grandes sinais de Deus para aqueles em
cujo meio estamos colocados e ao seu serviço, como guias e educadores da fé.
Embora, no exercício do ministério, por graça a nós confiado, tenhamos muitas
atividades de coordenação e de comando, não o podemos fazer deixando-nos
guiar apenas por critérios do mundo, por mais importantes que venham a ser em
outros ambientes que não a Igreja. Entre nós, disse o Senhor, “não deverá ser
assim” (Mc 10,35-45). Não podemos tratar as pessoas do modo como são tratadas
em outros ambientes, como números ou estatísticas, acolhendo apenas aquelas
com quem nos identificamos e afastando direta ou indiretamente as que nos
incomodam. As pessoas não foram colocadas em nossas vidas para nos servirem,
mas, como seguidores do Cristo Servo, para serem servidas por nós em nome do
Evangelho. Se, no exercício cotidiano da ação evangelizadora, encontramos
dificuldades, maior deve ser nosso empenho na oração pessoal, no acolhimento e
Carta ao clero
17
no anúncio missionário. Da salvação de cada pessoa colocada diante de nós
depende a nossa salvação (1 Cor 9,27). Não precisamos, contudo, do medo da
condenação eterna para sermos pastores ao estilo do Cristo Pastor.
52. Por isso, sempre é bom nos perguntarmos: o meu ministério está sendo exercido
com caridade pastoral, de modo que se vai tornando, cada vez mais, ocasião de
santificação para mim e para os outros? Estou servindo e doando-me ao Povo de
Deus, ou a mim mesmo? Vou entregando a minha vida, no dia a dia, cada vez
com maior generosidade? São três perguntas que deveríamos nos fazer com
frequência, a fim de sondarmos a voz de Deus a respeito do exercício do nosso
ministério como doação de vida.
53. A alegria do serviço ao povo de Deus e a missão evangelizadora comportam
também a preocupação com as questões sociais. E, neste tempo de tantas
dificuldades, somos chamados a olhar com carinho as necessidades dos que
experimentam a angústia e a amargura devido a inúmeros problemas. É mais um
passo que o coração do pastor é sempre chamado a dar. Assim, os exemplos do
Papa Francisco devem não só nos comover, mas nos mobilizar, ainda mais
recordando as “obras de misericórdia” neste ano convocado por ele para
anunciarmos e vivermos a misericórdia.
54. A caridade pastoral se concretiza na caridade social. Na verdade, não se trata de
duas caridades, como se nos fosse possível escolher entre uma e outra. Ao
contrário, a caridade pastoral dá sentido à caridade social e esta é uma das formas
por excelência de concretizar aquela. Se, por um lado, angustiamo-nos com o
crescente número de sofredores, de pobres e solitários, de famintos e
abandonados, de esquecidos e desrespeitados, por outro, devemos sempre nos
perguntar o que estamos realmente fazendo para amenizar cada dor, tendo sempre
o sonho de sanar todas as dores. É verdade que, algumas vezes, os problemas são
maiores do que nós, e a solução total está muito distante do alcance de nossas
mãos. No entanto, o Evangelho nos indica pelo menos dois caminhos para superar
a acomodação e o desânimo. Primeiro, fazer o que pudermos fazer, nunca
deixando de praticar o bem (Gl 6,9). Segundo, unirmos nossas forças para que, no
testemunho da comunhão, encontremos maior eficácia para nossas atividades.
55. A Igreja é casa de Cristo. Por isso, ela é também casa dos sofredores. Já o salmista
dizia que até o pequeno pássaro encontrou na casa de Deus abrigo para seus
Carta ao clero
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filhotes (Sl 83,4-6) e, por isso, os peregrinos, os migrantes, os refugiados da
guerra, da fome e de tantas outras formas de pobreza e sofrimento precisam
encontrar na Igreja um local de acolhimento misericordioso.
56. Além disso, o dom de si mesmo não tem fronteiras. Ele é marcado pelo mesmo
dinamismo apostólico e missionário de Cristo Bom Pastor, que disse: “Tenho
ainda outras ovelhas que não são deste rebanho. Preciso conduzi-las também, e
ouvirão a minha voz e então haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16). A
dimensão missionária deve estar sempre mais dentro do coração do clero, com
uma constante preocupação de como chegar aos últimos e fazê-los entender o que
o Senhor tem a lhes dizer. A utilização dos vários meios de comunicação deve
também nos ajudar no anúncio da Boa Notícia aos que a buscam, mesmo de
longe.
57. No interior da comunidade eclesial, a caridade pastoral do sacerdote preconiza e
exige de um modo particular e específico o seu relacionamento pessoal com o
presbitério, unido ao bispo, como explicitamente escreve o Concílio Vaticano II:
“a caridade pastoral exige que os presbíteros, para que não corram em vão,
trabalhem sempre em união com os bispos e com os outros irmãos no sacerdócio”
(PO 14c).
Oração
58. Caríssimos irmãos e filhos no Senhor, é com o coração cheio de contentamento
que lhes dirijo esta Carta, na esperança de compartilharmos o entusiasmo pela
santificação e um renovado ardor em nosso clero. Pois a santificação do padre é
uma exigência lógica do seu caráter sacramental e do seu ministério, assim como
uma consequência necessária do seu Batismo.
59. Para isso, o presbítero é chamado a ser sempre um homem de oração, a
interiorizar a Palavra de Deus dentro do contexto em que vive e exerce seu
ministério, para, com humildade e simplicidade, comunicá-la de modo vivo e
concreto ao povo. O ponto culminante seja a Celebração Eucarística diária. A
páscoa da Antiga Aliança recordava a saída dos filhos de Israel do Egito. A
Eucaristia, Páscoa da Nova Aliança, deverá ser o impulso constante do povo de
Deus para a autêntica libertação em Jesus Cristo.
Carta ao clero
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60. A vida do padre seja simples, austera e pobre, como sempre nos recorda o Papa
Francisco. Apascentar o rebanho de Deus, não forçado mas de boa vontade, como
um irmão entre os irmãos, não por lucro sórdido, mas com prontidão de ânimo,
não como tirano que domina sobre o seu feudo, mas como modelo para o rebanho
(1 Pd 5.2-4). Não dominador da fé do povo (cf. 2Cor 1,24), mas colaborador da
sua alegria e esperança (Rm 12,12)11. Ser discípulo missionário é escutar Jesus
(Lc 9,35), e na missão, optar pelos mais pobres, pelos mais necessitados, (Lc
4,18), na gratuidade (Mt 19,9). Aprendamos que para ser discípulo missionário,
ninguém, seja padre ou diácono, pode caminhar sozinho. Precisamos do apoio
mútuo dos irmãos para enfrentar os problemas e as dificuldades, promover um
encorajamento mútuo e praticar a perseverança em vista do crescimento na fé. A
nossa missão é continuar a missão de Jesus e ser presença do Reino no mundo em
que vivemos (cf. Jo 20,21; Mc 1,22-27).
61. Na coerência do que se prega e do que se pratica, temos que irradiar luzes no
campo bíblico, teológico, ético, litúrgico e pastoral, e testemunhar no campo
social, político, econômico e cultural. Temos que nos exercitar na prática da
escuta, da ação fundada no dialógo, da humildade e da paciência bondosa e terna
no acolhimento ao irmão (cf. Mt 6,34; Mt 11,28-29; At 10,38). Precisamos de
equilíbrio entre contemplação e ação. A atitude orante é um desafio na vida do
diácono, do presbítero e do bispo, também. Simultaneamente, devem ter o seu
tempo de descanso e de estudo, de recolhimento e de oração, para alimentar
sempre mais a caridade pastoral, eixo de sua espiritualidade e de sua vida, que
deve fazer deles autênticos servidores e pastores. Sem esse eixo, temos o perigo
de nos tornarmos semelhantes a servidores quaisquer, simplesmente “funcionários
do sagrado”, só disponíveis nos horários de expediente, ou pior, mercenários. O
funcionário é aquele que despacha de volta as pessoas, avisando que o horário de
atender acabou, ou que é dia de folga, ou não pode visitar uma família enlutada
porque tem outro compromisso. Busquemos sempre o equilíbrio, fundamentado
na verdade.
62. Todo sacerdote deve olhar a figura de Cristo a fim de ser o Bom Pastor para a sua
grei. Quantos exemplos bonitos temos de vários sacerdotes que se doam e se
consomem, como uma vela no altar, pelo povo de Deus! Aqui recordo tantos que
11 Cf. REB 246, abril (2002), pp. 305-306.
Carta ao clero
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até o fim serviram generosamente nesta Arquidiocese. Por essa razão, eu não
posso deixar de agradecer o trabalho silencioso, muitas vezes incompreendido, de
todos os sacerdotes de nossa amada Igreja Particular. Quantos dos nossos
sacerdotes são mal compreendidos e por vezes até caluniados! Peço, como irmão e
pastor, que as comunidades sejam incentivadas a rezar por cada sacerdote e ajudá-
lo, pois o sacerdote é aquele que traz a Eucaristia, e sem sacerdote não temos este
grande Sacramento.
63. Saibam que todos e cada um dos meus presbíteros e diáconos são lembrados na
minha oração cotidiana, na totalidade de suas vidas e, principalmente, nas
aflições, incompreensões e fadigas. Em minhas visitas às paróquias, admiro o zelo
pastoral e a luta de todos pela missão. Sinto-me próximo de cada um, embora nem
sempre possa estar em todos os lugares. Louvo e bendigo a Deus por cada padre
em sua bela e importante missão e pelos diversos trabalhos dos diáconos, em
tantos âmbitos de nossa Arquidiocese. Desejo que tenham neste seu servo um
porto seguro sempre pronto a atendê-los, a escutá-los, sem descanso, grato pela
bonita e fecunda missão que vocês desempenham em favor da edificação do
Reino de Cristo entre nós!
64. Carinhosamente, agradeço aos bispos auxiliares que, compartilhando comigo a
plenitude do sacerdócio, são irmãos, amigos e companheiros na missão. Com eles,
eu me alegro, partilho as preocupações e busco soluções para os desafios
evangelizadores em nossa Arquidiocese. Na diversidade dos carismas, desejamos
– e estou certo de que conseguimos – construir e fortalecer a unidade entre nós,
nela incluindo os bispos auxiliares eméritos. Deles muito eu aprendo a cada dia, e
também de cada padre e de cada diácono, a melhor servir àquele Senhor que, na
mais profunda gratuidade, um dia me vocacionou e incessantemente me fortalece.
65. Que a comunidade reze pelas vocações e por todos os sacerdotes, para que tenham
perseverança e amor ao ministério que o Senhor depositou em nós. Somos vasos
de barro contendo algo mais valioso do que todo o ouro e a prata deste mundo,
que é levar a esperança, o amor e ainda o próprio Cristo para o outro.
66. Por tudo isso temos que nos alegrar. O ministério sacerdotal significa o primado
da ação de Jesus Cabeça e Mediador, exercido na Igreja por meio do seu Espírito.
A nossa missão é uma só: continuar a missão de Jesus como presença do Reino no
Carta ao clero
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mundo em que vivemos (cf. Jo 20,21; Mc 1,22-27). Portanto, meus irmãos, somos
chamados a nunca perder a esperança, mas, pelo contrário, ser promotores desta
esperança, que é o próprio Senhor ressuscitado, habitando em nosso meio.
67. Maria é o apoio da nossa oração, pois seu Fiat ecoa para todos os seus filhos.
Chega a cada um dos vocacionados, impulsionando-os a servirem o Senhor, como
seus sacerdotes. Por isso, “rogai ao Senhor da messe”, disse Jesus (Mt 9,38).
Obedecendo, rezemos com insistente confiança. Peçamos que o Divino Mestre
nos abra a mente e o coração para entendermos e amarmos devotamente o
apostolado de nossos padres e diáconos.
68. Que Maria, ícone da misericórdia de Deus, interceda por nós junto da Santíssima
Trindade! Maria Santíssima, junto com o Papa Francisco, lhe pedimos: “Nunca se
canse de volver para nós os seus olhos misericordiosos e nos faça dignos de
contemplar o rosto da misericórdia, seu Filho Jesus” (MV 24).
69. Convido todos a fazerem esta oração pelos sacerdotes e pelos diáconos de nossa
Arquidiocese e rezem sempre por nós:
Senhor Jesus,
Presente no Santíssimo Sacramento do Altar, que vos quisestes
perpetuar entre nós por meio de vossos sacerdotes,
Fazei com que suas palavras sejam somente as vossas,
Que seus gestos sejam os vossos,
Que sua vida seja o fiel reflexo da vossa.
Que eles sejam os homens que falem a Deus dos homens
e falem aos homens de Deus.
Que sejam testemunhas do eterno em nosso tempo,
caminhando pelas estradas da história com vosso passo
e fazendo o bem a todos.
Que sejam fiéis aos seus compromissos, zelosos de sua vocação
e de sua entrega, claros reflexos da própria identidade
iluminada por Vós, e que vivam com muita alegria o dom
recebido.
Carta ao clero
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Que os diáconos não tenham medo de servir, mas que sejam
sempre fiéis ao ministério do serviço e da caridade, segundo o
que a Igreja deles espera.
Tudo isso vos pedimos pela intercessão de vossa Mãe
Santíssima: ela que esteve presente em vossa vida, esteja
sempre presente na vida daqueles que colaboram conosco no
pastoreio do povo que nos confiaste.
Amém.
70. De minha parte, como Pastor e Pai desta querida Igreja de São Sebastião do Rio
de Janeiro, a todos os que receberem com fé e boa vontade estas minhas palavras,
abençoo de coração, invocando sobre cada um as melhores graças de Deus, na
vivência da Páscoa que se aproxima.
São Sebastião do Rio de Janeiro, 24 de março de 2016,
Solenidade da Instituição do Ministério Ordenado e da Eucaristia.
Orani João Cardeal Tempesta, O.Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro
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