Bicentenário de Allan Kardec
Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
2
Sumário Apresentação ................................................................................................................................ 3
Introdução .................................................................................................................................... 3
Biografia de Allan Kardec ............................................................................................................. 8
Memória Histórica ...................................................................................................................... 58
I - Retrospecto ........................................................................................................................ 58
II - O Movimento Moderno .................................................................................................... 64
III – O Espiritismo no Brasil .................................................................................................... 79
Estatística .................................................................................................................................. 106
Portugal e Ilhas ..................................................................................................................... 106
Espanha ................................................................................................................................. 106
França .................................................................................................................................... 106
Itália ...................................................................................................................................... 107
Bélgica ................................................................................................................................... 107
Alemanha .............................................................................................................................. 108
Inglaterra .............................................................................................................................. 108
Áustria - Hungria ................................................................................................................... 108
Holanda ................................................................................................................................. 108
Suécia e Noruega .................................................................................................................. 108
Sérvia ..................................................................................................................................... 108
Rússia .................................................................................................................................... 108
Austrália ................................................................................................................................ 108
América do norte .................................................................................................................. 108
México ................................................................................................................................... 109
Antilhas ................................................................................................................................. 109
América do Sul ...................................................................................................................... 109
Brasil...................................................................................................................................... 109
Nomenclatura ........................................................................................................................... 110
Histórico do Espiritismo ........................................................................................................... 116
Resumo do Ensino dos Espíritos .............................................................................................. 131
Máximas Extraídas do Ensino dos Espíritos ............................................................................. 141
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
3
Apresentação
O Teatro Espírita Leopoldo Machado – TELMA, replica-o em
homenagem aos duzentos anos do nascimento de Allan Kardec,
nobre e talentoso Codificador da Doutrina dos Espíritos. Esperamos
cativa, contribuir para o enriquecimento do acervo científico e
filosófico do Espiritismo nas terras do Cruzeiro do Sul.
Parabéns a Kardec pelo transcurso de sua efeméride.
Justiça e Paz!
Carlos Bernardo Loureiro
Salvador, 03 de outubro de 2004.
Introdução
Com a publicação do presente trabalho, destinado a
comemorar o centenário natalício de Allan Kardec, a Federação
Espírita Brasileira visa um duplo objetivo: fixar por essa forma
alguns esparsos apontamentos, que serão um dia utilizados,
quando se tenha de escrever a história do Espiritismo no mundo,
particularmente em nosso país, e dissipar as prevenções que
porventura subsistam no espírito de muitos, acerca do caráter e
dos intuitos desta Doutrina, que se tem rapidamente propagado
por toda a parte, aliciando as mais significativas simpatias e
adesões, mas ao mesmo tempo provocando as mais rudes
hostilidades e caluniosas investidas.
Dividimo-lo para isso em duas partes. Na primeira,
propriamente histórica, são passados em revista os
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
4
antecedentes do atual movimento doutrinário e fenomenal,
desde a mais remota antigüidade até os nossos dias, e
mencionados, com auxílio dos dados que nos foi possível obter,
os trabalhos de organização recentemente empreendidos, os
quais, embora ainda embrionários, já permitem fazer uma idéia
da importância e do futuro desta consoladora Doutrina.
Constitui a segunda parte a sintética monografia intitulada
O Espiritismo em Sua Mais Simples Expressão, publicada por
Allan Kardec, mas entre nós quase inteiramente desconhecida,
na qual as linhas fundamentais da Doutrina Espírita são
esboçadas com uma sobriedade de estilo e uma clareza que
permitem uma instantânea visão do conjunto da sua estrutura
geral e dos seus elevados ensinos.
Julgamos, além disso, necessário precedê-las da biografia
do grande missionário, afim de tornar conhecida dos leitores
alheios às nossas cogitações essa austera e veneranda figura,
cuja missão no seio da humanidade só mais tarde poderá ser
devidamente reconhecida por todos, assinalando-se-lhe o
eminente lugar que lhe pertence na galeria dos seus
desinteressados benfeitores.
Por aí se ficará sabendo que o grande apóstolo do moderno
Espiritualismo, longe de ser um desses Espíritos crédulos ou
facilmente entusiastas, possuía uma organização física
admiravelmente equilibrada, que lhe assegurava um golpe de
vista seguro e penetrante de todas as coisas, podendo, graças
ao seu sólido preparo científico e ao bom senso de que era
excepcionalmente dotado, penetrar nesse domínio do
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
5
desconhecido, para o explorar com a firmeza de um verdadeiro
predestinado.
Ver-se-á ainda que a Doutrina, a que se acha
perpetuamente associado o seu nome não é uma obra pessoal,
nem o resultado de teorias formuladas à priori, mas, ao contrário,
o fruto de longas e pacientes investigações, a que ele não se
resolveu senão depois de uma legítima relutância diante da
singularidade dos fenômenos, a cuja aceitação se opusera ao
começo, em nome da própria disciplina científica do seu Espírito.
Uma vez, porém, colocado no caminho da Verdade, hesitou
não somente em adotá-la, mas em proclamar a sua
demonstração aos quatro ventos, votando-se denodadamente a
sua divulgação como o maior serviço que poderia prestar à
humanidade, muito embora devesse isso produzir-lhe os mais
cruéis e profundos dissabores, que são quase sempre a moeda
com que a ingratidão dos homens retribui os serviços dos que os
servem com desinteresse.
Fazendo-se o intermediário dos Espíritos, que foram as
vozes do céu, portadoras de uma nova revelação à Terra, Allan
Kardec reservou para si a função aparentemente modesta, mas
realmente importantíssima e difícil, de coordenador dos seus
ensinos, traçando o plano geral da Doutrina, em forma de um
vasto, complexo e minucioso questionário.
Que nos dizem esses ensinos? É o que o leitor encontrará
no fim deste trabalho. Por agora seja-nos lícito adiantar que,
fazendo uma nova e transcendente demonstração da existência
de Deus e da imortalidade da alma, enfeixando a concepção do
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
6
universo e das suas leis, na ordem moral como na ordem física,
em uma larga e poderosa síntese, esses ensinos rasgam novos
e surpreendentes horizontes às aspirações do espírito humano,
recuando ao infinito a órbita dos conhecimentos que é chamado
a adquirir.
Mas, não é tudo. Científica em seus fundamentos e pelos
seus processos, filosófica em suas deduções, arrojadas mas
calcadas no mais puro racionalismo, a Doutrina Espírita vem,
sobretudo, operar uma profunda revolução na ordem moral ou
religiosa.
Ele retoma as tradições do Cristianismo primitivo, no ponto
em que as deixaram os seus infiéis depositários, que o foram
lentamente desfigurando com toda a sorte de adaptações
parasitárias, através dos séculos, e vem restabelecer os ensinos
do Evangelho em espírito e verdade, para confusão dos céticos,
edificação dos crentes, consolo dos aflitos e regeneração dos
transviados.
Na hora presente, em que um vertiginoso descalabro da
moralidade pública e privada ameaça a estabilidade social e
doméstica; quando, como entre nós, as noções do dever e da
virtude, a austeridade no homem e o recato na mulher, o
desinteresse, a abnegação, tudo o que pode fazer a grandeza do
povo e a dignidade da espécie, o sentimento religioso, o culto da
pátria e da família, é rebaixado e substituído pelo espírito do mais
grosseiro utilitarismo; que pode verdadeiramente haver de mais
oportuno e providencial que o aparecimento de uma Doutrina
como esta, que com toda a força da evidência, se impõe aos mais
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
7
refratários Espíritos, dando às aspirações humanas um
enobrecedor e elevado rumo?
É o que efetivamente faz o Espiritismo. Ele não solicita,
demonstra. Ao lado dos erros e das calamidades que afligem as
sociedades contemporâneas, ele vem colocar o remédio que as
deve vigorar e redimir.
Aos sábios procura convencer pela comprovação científica
das verdades que afirma; aos indiferentes, pela eloqüência dos
seus testemunhos, que lhes há de sacudir o mórbido torpor. Aos
crentes de todas as religiões oferece um ideal mais adiantado e
mais perfeito, substituindo por esse culto espiritual de que falava
Jesus à Samaritana ao pé do poço de Jacob, as cerimonias
ritualísticas, de si mesmas insuficientes para a nutrição das
almas.
E assim, em meio das surdas inquietações que por toda a
parte perturbam os Espíritos, antes que o desmoronamento das
velhas instituições sociais e políticas lance as nações na
anarquia e na ruína moral, ele surge como uma nova aurora
alviçareira e redentora. O mundo dos preconceitos, das
injustiças, do egoísmo e da arrogância triunfante, vai ceder o
lugar à nova era da paz e da fraternidade, que surge no horizonte
do planeta. Como um frêmito de asas pelo azul, as vozes dos
Espíritos por toda a parte anunciam.
Sursum Corda!
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
8
Biografia de Allan Kardec
Minhas senhoras, meus senhores1:
Muitas pessoas que se interessam pelo Espiritismo
manifestam muitas vezes o pesar de não possuir senão um
conhecimento muito imperfeito da biografia de Allan Kardec, e de
não saber onde encontrar, sobre aquele que chamamos o
Mestre, as informações que desejariam conhecer. Pois que é
para honrar Allan Kardec e festejar sua memória que nos
achamos hoje reunidos; pois que um mesmo sentimento de
veneração e de reconhecimento faz vibrar todos os nossos
corações a respeito do fundadorda filosofia espírita, permite-me,
no intuito de tentar corresponder a tão legitimo desejo, que vos
entretenha alguns momentos com esse mestre amado, cujos
trabalhos são universalmente conhecidos e apreciados, e cuja
vida intima, cuja laboriosa existência são apenas conjeturadas.
Se fácil foi a todos os investigadores conscienciosos
inteirarem-se do alto valor e do grande alcance da obra de Allan
Kardec pela leitura atenta de suas produções, na ausência até
hoje de elementos para isso, bem poucos puderam penetrar na
vida do homem íntimo e segui-lo passo a passo no desempenho
de sua tarefa, tão grande, tão gloriosa e tão bem preenchida.
Não somente a biografia de Allan Kardec é pouco
conhecida, como ainda está por ser escrita. A inveja e o ciúme
1 Conservamos ao presente trabalho a forma de conferência que lhe deu o autor, lendo-a por ocasião da solenidade com que os espíritas de Lyon celebraram, a 31 de março de 1896, o 27° aniversário da desencarnação de Allan Kardec. (N. do T.)
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
9
semearam sobre ela os mais evidentes erros, as mais grosseiras
e as mais impudentes calúnias.
Vou, portanto, esforçar-me por vos mostrar sob uma luz
mais verdadeira o grande iniciador de quem nos desvanecemos
de ser discípulos.
Todos sabeis que a nossacidade se pode honrar, por justo
título, de ter visto nascer entre seus muros esse pensador tão
arrojado quão metódico, esse Filósofo sábio, clarividente e
profundo, esse trabalhador obstinado, cujo labor sacudiu o
edifício religioso do velho mundo e preparou os novos
fundamentos que deviam servir de base à evolução e à
renovação da nossa sociedade caduca. Impelindo-a para um
ideal mais são, mais elevado, para um adiantamento intelectual
e moral seguros.
Foi, com efeito, em Lyon que a 03 de outubro de 1804
nasceu, de uma antiga família lionesa com o nome de Rivail,
aquele que devia mais tarde ilustrar o nome de Allan Kardec e
conquistar para ele tantos títulos à nossa profunda simpatia, ao
nosso filial reconhecimento.
Eis aqui a esse respeito um documento positivo e oficial:
“Aos 12 do vindimário do ano XIII, auto do nascimento de
Denizard Hippolyte Léon Rivail, nascido ontem às 7 horas da
noite, filho de Jean Baptiste- Antoine Rivail, magistrado e juiz, e
Jeanne Duhamel, sua esposa, residentes em Lyon, rua Sala, n°
76.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
10
“O sexo da criança foi reconhecido masculino.
“Testemunhas maiores:
“Syriaque-Frederic Dettmat, diretor do estabelecimento das
águas minerais da rua Sala. e Jean François Targe, mesma rua
Sala, à requisição do médico Pierre Radamel rua Saint
Dominique. n° 78.
“Feita a leitura, as testemunhas assinaram, assim como o
maire da região do Meio- dia.”
“O Presidente do tribunal, (Assinado): Mathiou”.
O futuro fundador do Espiritismo recebeu desde o berço um
nome querido e respeitado e todo um passado de virtudes de
honra, de probidade; grande número de seus antepassados se
tinha distinguido na advocacia e na magistratura, por seu talento,
saber e escrupulosa probidade. Parecia que o jovem Rivail devia
sonhar, também ele, com os louros e as glórias de sua família.
Assim, porém, não foi, porque desde o começo da sua juventude
ele sentiu-se atraído para as Ciências e a Filosofia.
Denizard Rivail fez em Lyon os seus primeiros estudos e
completou em seguida sua bagagem escolar em Yverdun (Suiça)
com o célebre professor Pestalozzi, de quem cedo tornou-se um
dos mais eminentes discípulos e um colaborador inteligente e
dedicado. Ele se tinha aplicado de todo o coração à propaganda
do sistema de educação que exerceu tão grande influência sobre
a reforma dos estudos na França e na Alemanha. Muitíssimas
vezes, quando Pestalozzi era chamado pelos governos, um
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
11
pouco de todos os lados, para fundar institutos semelhantes ao
de Yverdun, confiava a Denizard Rivail o cuidado de o substituir
na direção da sua escola. O discípulo tornado mestre tinha, além,
de tudo, com os mais legítimos direitos, a capacidade requerida
para dar boa conta da tarefa que lhe era confiada. Ele era
Bacharel em Letras e em Ciências e Doutor em Medicina, tendo
feito todos os seus estudos médicos e defendido brilhantemente
sua tese. Lingüista distinto, ele conhecia a fundo e falava
corretamente o alemão e o inglês, o italiano e o espanhol,
conhecia também o holandês e podia facilmente exprimir-se
nesta língua.
Denizard Rivail era um alto e beto rapaz de maneiras
distintas e humor jovial, bom e obsequioso. Tendo-o a conscrição
incluído para o serviço militar, ele obteve isenção, e dois anos
depois veio fundar em Paris, à rua Sèvres, n°35; um
estabelecimento semelhante ao de Yverdun.Paraessa empresa
se associara com um de seus tios, irmão de sua mãe, o qual era
seu sócio capitalista.
No mundo das letras e do ensino, que frequentava em
Paris, Denizard Rivail encontrou a senhorita Amélie Boudet, que
era professora de 1ª classe. Pequena, muito bem feita,
entretanto gentil e graciosa, rica por seus pais, e filha única,
inteligente e viva, ela soube por seu sorriso e por seus
predicados fazer-se notar por Denizard Rivail, em quem
adivinhou, sob a franca e comunicativa alegria do homem
amável, o pensador sábio e profundo, aliando uma grande
dignidade a mais esmerada urbanidade.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
12
O registro civil nos informa que:
“Amélie Gabrielle Boudet, filha de Julien-Luis Boudet,
proprietário e antigo tabelião, e de Julie Louise Seigneat de
Lacombe, nasceu em Thiais (Seine), aos 2 do frimário do ano IV
(23 de novembro de 1795)”.
A senhorita Amélie Gabrielle Boudet tinha, pois, mais nove
anos que o Sr. Rivail, mas na aparência tinha menos dez que ele;
quando, em 06 de fevereiro de 1832, firmou-se em Paris o
contrato de casamento de Denizard Hipollyte Léon Rivail, diretor
do Instituto Técnico, à rua de Sèvres (método Pestalozzi), filho
de Jean-Baptiste Antoine e senhora, Jeanne Duhamel,
residentes em Château-du-Loir, com Amelie-Gabrielle Boudet,
filha de Julien Louis e senhora, Julie Louise Seigneat de
Lacombe, residente em Paris, 35, Rua de Sèvres.
O sócio do Sr. Rivail tinha a paixão do jogo; arruinou seu
sobrinho, perdendo grossas somas em Spa e em Aix-la-
Chapelle. O Sr. Rivail requereu a adação do Instituto, de cuja
partilha couberam 45.000 francos a cada um deles. Essa soma
foi colocada pelo Sr. e a Sra. Rivail em casa de um de seus
amigos íntimos, negociante que fez maus negócios e cuja
falência nada deixou aos credores.
Longe de desanimar com esse duplo revés, o Sr. e a Sra.
Rivail lançaram-se corajosamente ao trabalho. Ele encontrou e
pôde encarregar-se da contabilidade de três casas, que lhe
produziam cerca de 7.000 francos por ano; e, terminado o seu
dia, esse trabalhador infatigável fazia à noite, em serão,
gramáticas, aritméticas, livros para os estudos pedagógicos
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
13
superiores; traduzia obras inglesas e alemães e preparava todos
os cursos de Levy-Alvaires, freqüentados por discípulos de
ambos os sexos do faubourg Saint-Gemain. Organizou também
em sua casa, à rua de Sèvres, cursos gratuitos de química, física,
astronomia e anatomia, que eram muito freqüentados.
Dentre suas numerosas obras convém citar por ordem
cronológica: Plano Apresentado para o Melhoramento da
Instrução Pública, em 1828; em 1829, segundo o método de
Pestalozzi, ele publicou, Panfleto da primeira obra de cunho
pedagógico para uso das mães de família e dos professores,
Curso Prático e Teórico de Aritmética; em 1831 fez aparecer a
Gramática Francesa Clássica; em 1846, Manual dos Exames
para Obtenção dos Diplomas de Capacidade', soluções racionais
das questões e problemas de aritmética e geometria; em 1848
foi publicado o Compêndio Gramatical da Língua Francesa;
finalmente em 1849 encontramos o Sr. Rivail professor no Liceu
Polymático, em que rege cadeiras de fisiologia, astronomia,
química e física. Em uma obra muito apreciada resume seus
cursos, e depois edita: Ditados Normais dos Exames na
Municipalidade e na Sorbonne; Ditados Especiais Sobre as
Dificuldades Ortográficas.
Tendo essas diversas obras sido adotadas pela
Universidade de França, e vendendo-se abundantemente, pode
o Sr. Rivail conseguir, graças a elas e ao seu assíduo trabalho,
uma modesta abastança. Como se pode julgar por esta muito
rápida exposição, o Sr. Rivail estava admiravelmente preparado
para a rude tarefa que ia ter que desempenhar e fazer triunfar.
Seu nome era conhecido e respeitado, seus trabalhos
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
14
justamente apreciados, muito antes mesmo que ele imortalizasse
o nome de Allan Kardec.
Prosseguindo em sua carreira pedagógica, o Sr. Rivail teria
podido viver feliz, honrado e tranqüilo, estando sua fortuna
reconstituída pelo seu trabalho perseverante e pelo brilhante
sucesso que havia coroado seus esforços; mas sua missão o
atraía a uma tarefa mais onerosa, a uma obra maior, e, como
teremos muitas vezes ocasião de o constatar, ele mostrou-se
sempre à altura da missão gloriosa que lhe estava reservada.
Seus instintos, suas aspirações tê-lo-iam impelido para o
misticismo, mas sua educação, seu juízo reto, sua observação
metódica o conservaram igualmente ao abrigo dos entusiasmos
desarrazoados e das negações não justificadas.
Foi em 1854 que o Sr. Rivail ouviu pela primeira vez falar
nas mesas girantes, a princípio ao Sr. Fortier, magnetizador, com
o qual mantinha relações, em razão dos seus estudos sobre o
magnetismo. O Sr. Fortier lhe disse um dia: “Eis aqui uma coisa
que é bem extraordinária: não somente se faz girar uma mesa,
magnetizando- a, mas faz-se-a falar. Interroga-se-a, e ela
responde”.
“Isso — replicou Rivail — é uma outra questão: eu o
acreditarei quando o vir e quando me tiverem provado que uma
mesa tem um cérebro para pensar, nervos para sentir, e que se
pode tornar sonâmbula. Até lá, permita-me que não veja nisso
senão um conto para dormir de pé”.
Tal era a princípio o estado de espírito do Sr. Rivail, tal
encontrá-lo-emos muitas vezes, não negando coisa alguma por
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
15
“parti-pris", mas pedindo provas e querendo ver e observar para
crer; tais devemos nos mostrar sempre no estudo tão atraente
das manifestações do Além.
Até agora, não vos falei senão do Sr. Rivail professor
emérito, autor pedagógico de renome. Nessa época, porém, de
sua vida, de 1854 a 1856, um novo horizonte rasga-se para esse
pensador profundo, para esse sagaz observador. Então o nome
de Rivail entra na sombra, para ceder o lugar ao de Allan Kardec,
que a fama levará a todos os cantos do globo, que todos os ecos
repetirão e que todos os nossos corações idolatram.
Eis aqui como Allan Kardec nos revela suas dúvidas, suas
hesitações e também sua primeira iniciação:
“Eu me encontrava, pois, no ciclo de um fato inexplicado na
aparência, contrário às leis da natureza, e que minha razão
repelia. Nada tinha ainda visto nem observado; as experiências
feitas em presença de pessoa honradas e dignas de fé me
firmavam na possibilidade do efeito puramente material; mas a
idéia de uma mesa “falante” não me entrava ainda no cérebro.
“No ano seguinte — era no começo de 1855 — encontrei o
Sr. Carlotti, um amigo de vinte e cinco anos, que discorreu acerca
desses fenômenos durante mais de uma hora. Com o
entusiasmo que ele punha em todas as idéias novas. O Sr.
Carlotti era corso, de uma natureza ardente e enérgica; eu
tinha sempre distinguido nele as qualidades que caracterizam
uma grande e bela alma, mas desconfiava da sua exaltação. Ele
foi o primeiro a falar-me da intervenção dos Espíritos, e contou-
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
16
me tantas coisas surpreendentes que, longe de me convencer,
aumentou minhas dúvidas. “— Você um dia será um dos nossos
— disse-me ele. — Não digo que não. — respondi-lhe eu —
veremos isso mais tarde”.
Daí a algum tempo, pelo mês de maio de 1855, encontrei-
me na casa da sonâmbula Sra. Roger, com o Sr. Fortier, seu
magnetizador. Lá encontrei o Sr. Pâtier e a Sra. Plainemaison,
que me falaram desses fenômenos no mesmo sentido que o Sr.
Carlotti, mas noutro tom. O Sr. Pâtier era funcionário público, de
uma certa idade, homem muito instruído, de um caráter grave,
frio e calmo; sua linguagem pausada, isenta de todo o
entusiasmo, produziu-me uma viva impressão; e quando ele me
fez oferecimento para que eu assistisse as experiências que
tinham lugar na casa da Sra. Plainemaison, rua Grange
Batelière, n° 18, eu aceitei com solicitude. A entrevista foi
marcada para a terça- feira2, de maio, às 8 horas da noite.
“Foi ai, pela primeira vez, que fui testemunha do fenômeno
das mesas girantes e que saltavam e corriam, e isso em
condições tais que a dúvida não era possível.
“Ai vi também alguns ensaios muito imperfeitos de escrita
mediúnica em uma ardósia com o auxílio de uma cesta. As
minhas idéias estavam longe de se haver modificado, mas
naquilo havia um fato que devia ter uma causa. Entrevi, sob
essas aparentes futilidades e a espécie de divertimento que com
esses fenômenos se fazia, alguma coisa de sério e como a
2 Essa data ficou em branco no manuscrito de Allan Kardec.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
17
revelação de uma nova lei, que a mim mesmo prometi
aprofundar.
“A ocasião se ofereceu antes de observar mais
atentamente do que o tinha podido fazer. Em um dos serões da
Sra. Plainemaison, fiz conhecimento com a família Baudin, que
morava então a Rua Rochechouart. O Sr. Baudin me fez
oferecimento no sentido de assistir eu às sessões
hebdomadárias que se efetuavam em sua casa, e as quais eu
fui, desde esse momento, muito assíduo.
“Foi aí que fiz os meus primeiros estudos sérios em
Espiritismo, menos ainda por efeito de revelações, que por
observação. Apliquei a essa nova ciência, como até então o tinha
feito, o método da experimentação; nunca formulei teorias
preconcebidas; observava atentamente, comparava, deduzia as
conseqüências; dos efeitos procurava remontar às causas pela
dedução, pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo
como valida uma explicação senão quando ela podia resolver
todas as dificuldades da questão. Foi assim que procedi sempre
em meus trabalhos anteriores, desde a idade de quinze a
dezesseis anos. Compreendi desde o princípio a gravidade da
exploração que ia empreender. Entrevi nesses fenômenos a
chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado
e do futuro, a solução do que eu havia procurado toda a minha
vida; era, em uma palavra, uma completa revolução nas idéias e
nas crenças; preciso, portanto, se fazia agir com circunspecção
e não levianamente, ser positivista e não idealista, para se não
deixar arrastar pelas ilusões.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
18
“Um dos primeiros resultados das minhas observações foi
que os Espíritos, outra coisa não sendo senão as almas dos
homens, não tinham nem a soberana sabedoria, nem a soberana
ciência; que seu saber era limitado ao grau do seu adiantamento,
e que sua opinião não tinha senão o valor de uma opinião
pessoal.
Esta verdade, reconhecida desde o começo, evitou-me o
grave escolho de crer na sua infalibilidade e me preservou de
formular teorias prematuras sobre o dizer de um só ou de alguns.
“Só o fato da comunicação com os Espíritos, o que quer
que eles pudessem dizer, provava a existência de um mundo
invisível ambiente: era já um ponto capital, um imenso campo
franqueado às nossas explorações, a chave de uma multidão de
fenômenos inexplicados. O segundo ponto, não menos
importante, era reconhecer o estado desse mundo, seus
costumes, se assim nos podemos exprimir. Cedo eu vi que cada
Espírito, em razão de sua posição pessoal e de seus
conhecimentos, dele me desvendava uma fase, exatamente
como se chega a conhecer o estado de um país, interrogando os
habitantes de todas as classes e de todas as condições, podendo
cada um nos ensinar alguma coisa, e nenhum deles podendo
individualmente, nos ensinar tudo. Cumpre ao observador formar
o conjunto, com o auxílio dos documentos recolhidos dos
diferentes lados, colecionados, coordenados e confrontados
entre si. Eu, pois, agi para com os Espíritos como o teria feito
com os homens; eles foram para mim, desde o menor até o mais
elevado, meios de colher informações e não ‘reveladores
predestinados’”.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
19
A estas informações, colhidas em Obras Póstumas de Allan
Kardec, convém acrescentar que a princípio o Sr. Rivail, longe
de ser um entusiasta dessas manifestações, e absorvido por
suas outras preocupações, esteve a ponto de as abandonar, o
que talvez tivesse feito, se não fossem as instantes solicitações
dos Srs. Carlotti; René Taillandier, membro da Academia das
Ciências; Thiedeman-Mathèse; Sardou pai e filho; e Didier,
editor; que acompanhavam havia cinco anos o estudo desses
fenômenos e tinham reunido cinqüenta cadernos de
comunicações diversas, que eles não conseguiam pôr em
ordem. Conhecendo as vastas e raras aptidões de síntese do Sr.
Rivail, esses senhores lhe enviaram os cadernos, pedindo-lhe
que deles tomasse conhecimento e os pusesse em termos, os
arranjasse. Esse trabalho era árduo e exigia muito tempo, em
virtude das lacunas e obscuridades dessas comunicações, e o
sábio enciclopedista recusava-se a essa tarefa enfadonha e
absorvente, em razão dos seus outros trabalhos.
Uma noite, seu Espírito protetor, Z., deu-lhe por um
médium uma comunicação toda pessoal, na qual lhe dizia, entre
outras coisas, tê-lo conhecido em uma precedente existência,
quando, pelo tempo dos Druidas, viviam juntos nas Gálias. Ele
se chamava então Allan Kardec, e, como a amizade que lhe
havia votado não fazia senão aumentar, prometia-lhe esse
Espírito secundá-lo na tarefa muito importante a que ele era
chamado, e que facilmente levaria a termo.
O Sr. Rivail, pois, lançou-se à obra, tomou os cadernos,
anotou-os com cuidado, após uma atenta leitura, suprimiu as
repetições e pôs na respectiva ordem cada ditado, cada relatório
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
20
de sessão; assinalou as lacunas a preencher, as obscuridades a
aclarar, e preparou as perguntas necessárias para chegar a esse
resultado.
“Até então — diz ele próprio — as sessões na casa do Sr.
Baudin não tinham nenhum fim determinado; propus-me aí fazer
resolver os problemas que me interessavam sob o ponto de vista
da Filosofia, da Psicologia e da natureza do mundo invisível.
Comparecia a cada sessão com uma série de questões
preparadas e metodicamente dispostas, eram respondidas com
precisão, profundeza e de um modo lógico. Desde esse
momento as reuniões tiveram um caráter muito diferente; entre
os assistentes encontravam-se pessoas sérias que tomavam por
isso um vivo interesse. Se me acontecia faltar, ficavam como que
tolhidas, tendo as questões fúteis perdido o atrativo para o maior
número. A princípio eu não tinha em vista senão minha própria
instrução; mais tarde, quando vi que tudo isso formava um
conjunto e tomava as proporções de uma Doutrina, tive o
pensamento de o publicar, para instrução de todos. Foram essas
mesmas questões que, sucessivamente desenvolvidas e
completadas, fizeram a base de O Livro dos Espíritos”.
Em 1856, o Sr. Rivail freqüentou as reuniões espíritas que
tinham lugar à Rua Tiquetone, na casa do Sr. Roustan com a
Sra. Japhet, sonâmbula, que obtinha como médium
comunicações muito interessantes, com o auxílio da cesta
aguçada6; fez examinar por esse médium as comunicações
obtidas e postas em ordem precedentemente. Esse trabalho teve
a princípio lugar nas sessões ordinárias; mas a pedido dos
Espíritos, e para que fosse consagrado mais cuidado, mais
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
21
atenção a esse exame, foi continuado em sessões particulares.
“Não me contentei com essa verificação — diz ainda Allan
Kardec — e os Espíritos me haviam recomendado. Tendo-me as
circunstâncias posto em relação com outros médiuns, toda a vez
que se oferecia ocasião, eu a aproveitava para propor algumas
das questões que me pareciam mais melindrosas. Foi assim que
mais de dez médiuns prestaram seu concurso a esse trabalho. E
foi da comparação e da fusão de todas essas respostas
coordenadas, classificadas e muitas vezes refeitas no silêncio da
meditação, que formei a primeira edição de O Livro dos Espíritos,
a qual apareceu em 18 de abril de 1857”.
Esse livro era um grande in - 4o em duas colunas, uma para
as perguntas e outra em frente para as respostas. No momento
de o publicar, o autor ficou muito embaraçado em resolver como
o assinaria, se com o seu nome Denizard Flippolyte Léon Rivail,
ou com um pseudônimo. Sendo o seu nome muito conhecido do
mundo científico, em virtude dos seus anteriores trabalhos, e
podendo originar uma confusão, talvez mesmo prejudicar o
sucesso do seu empreendimento, ele adotou o alvitre de o
assinar com o nome de Allan Kardec que, havia-lhe o seu guia
revelado, ele tinha no tempo dos Druidas.
A obra alcançou um tal sucesso que a primeira edição foi
logo esgotada. Allan Kardec reeditou-a em 1858 sob a forma
atual in - 12°, revista correta e consideravelmente aumentada.
No dia 25 de março de 1856 estava Allan Kardec em seu
gabinete de trabalho, em via de compulsar suas comunicações e
preparar O Livro dos Espíritos, quando ouviu ressoarem
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
22
pancadas repetidas no tabique, procurou, sem a descobrir, a
causa disso, e em seguida tornou a pôr mãos à obra. Sua mulher,
entrando cerca das dez horas, ouviu os mesmos ruídos;
procuraram, mas sem resultado, de onde podiam eles provir.
Moravam então à Rua dos Mártires n° 8, no segundo andar; ao
fundo.
“No dia seguinte, sendo dia de sessão na casa do Sr.
Baudin, escreve Allan Kardec, contei o fato e pedi a sua
explicação.
Pergunta: — Ouviste o fato que acabo de narrar; podereis
dizer-me a causa dessas pancadas que se fizeram ouvir com
tanta insistência?
Resposta: — Era o teu Espírito familiar.
P. — Com que fim vinha ele bater assim?
R. — Queria comunicar-se contigo.
P. — Podereis dizer-me o que me queria ele?
R. — Podes perguntar a ele mesmo, porque está aqui.
P. — Meu Espírito familiar, quem quer que sejais,
agradeço-vos terdes vindo visitar-me. Quereis ter a bondade de
me dizer quem sois?
R. — Para ti, chamar-me-ei a Verdade, e todos os meses
durante um quarto de hora, estarei aqui à tua disposição.
P. — Ontem, quando batestes, enquanto eu trabalhava,
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
23
tínheis alguma coisa de particular a me dizer?
R. _ O que eu tinha a dizer-te era sobre o trabalho que
fazias; o que escrevias me desagradava e eu queria fazer-te
parar.
Nota: “O que eu escrevia era precisamente relativo aos
estudos que fazia sobre os Espíritos e suas manifestações”.
P. — Vossa desaprovação versava sobre o Capítulo que
eu escrevia, ou sobre o conjunto do trabalho?
R. — Sobre o Capítulo de ontem; faço-te juiz dele. Torna a
lê-lo esta noite; reconhecer-lhes-ás os erros e os corrigirás.
P. — Eu mesmo não estava muito satisfeito com esse
Capítulo; e o refiz hoje. Está melhor?
R. — Está melhor, mas não muito bem. Lê da terceira a
trigéssima linha, e reconhecerás um grave erro.
P. — Rasguei o que tinha feito ontem!
R. — Não importa. Essa inutilização não impede que
subsista o erro. Relê e verás.
P. — O nome de Verdade que tomais é uma alusão à
verdade que procuro?
R. — Talvez, ou pelo menos é um guia que te há de auxiliar
e proteger.
P. — Posso evocar-vos em minha casa?
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
24
R. — Sim, para que eu te assista pelo pensamento; mas
quanto a respostas escritas em tua casa, não será tão cedo que
as poderá obter.
P. — Podereis vir mais freqüentemente que todos os
meses?
R. — Sim, mas não prometo mais que uma vez por mês,
até nova ordem.
P. — Animastes algum personagem conhecido na Terra?
R. — Disse-te que para ti eu era a Verdade, o que da tua
parte devia significar discrição: não saberás mais que isto”.
De volta à casa, Allan Kardec apressou-se a reler o que
escrevera, e pode constatar o grave erro que com efeito havia
cometido. A dilação de um mês, fixada para cada comunicação
do Espírito Verdade, raramente foi observada. Ele se manifestou
freqüentemente a Allan Kardec, mas não em sua casa onde
durante cerca de um ano não pode este receber nenhuma
comunicação por médium algum. E cada vez que ele esperava
obter alguma coisa, era obstado por uma causa qualquer e
imprevista, que a isso se vinha opor.
Foi a 30 de abril de 1856, na casa do Sr. Roustan, pela
médium Sra. Japhet, que Allan Kardec recebeu a primeira
revelação da missão que tinha a desempenhar. Esse aviso, a
princípio muito vago, foi precisado no dia 12 de junho de 1856
por intermédio da Sra. Aline C., médium. A 06 de maio de 1857,
a Sra. Cardone, pela inspeção das linhas da mão de Allan
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
25
Kardec, confirmou as duas comunicações precedentes, que ela
ignorava. Finalmente a 12 de abril de 1860, na casa do Sr.
Dehan, sendo intermediário o Sr. Crozet, médium, essa missão
foi novamente confirmada em uma comunicação espontânea,
obtida na ausência de Allan Kardec.
Assim também se deu a respeito do seu pseudônimo.
Numerosas comunicações, procedentes dos mais diversos
pontos, vieram corroborar a primeira comunicação obtida a esse
respeito.
Urgido pelos acontecimentos e pelos documentos que
tinha em seu poder, Allan Kardec, formara em razão do sucesso
de O Livro dos Espíritos, o projeto de criar um jornal espírita.
Havia se dirigido ao Sr. Tiedman, para solicitar-lhe o concurso
pecuniário, mas este não estava resolvido a tomar parte nessa
empresa. Allan Kardec perguntou aos seus guias, no dia 15 de
novembro de 1857, por intermédio da Sra. E. Dufaux, o que devia
fazer. Foi-lhe respondido que pusesse sua idéia em execução e
que não se inquietasse com o resto.
“Apressei-me em redigir o primeiro número — diz Allan
Kardec — e o fiz aparecer no dia 10 de janeiro de 1858, sem
nada dizer disso a pessoa alguma. Não tinha um único assinante
nem sócio algum capitalista. Fi-lo, pois, inteiramente por minha
conta e risco, e não tive do que me arrepender, porque o sucesso
ultrapassou a nossa expectativa. A partir de 10 de janeiro, os
números se sucederam sem interrupção, e, como o previra o
Espírito, esse jornal tomou-se- me um poderoso auxiliar.
Reconheci mais tarde que era uma felicidade para mim não ter
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
26
tido um sócio capitalista, porque estava mais livre, enquanto que
um estranho interessado teria pretendido impor-me suas idéias
e sua vontade, e podido embaraçar-me a marcha. Só, eu não
tinha que prestar contas a ninguém, por mais onerosa que, como
trabalho, fosse a minha tarefa”.
E essa tarefa devia ir sempre crescendo em labor e em
responsabilidades, em lutas incessantes contra obstáculos,
emboscadas, perigos de toda sorte. À medida, porém, que a lida
se tornava maior, a luta mais áspera, esse enérgico trabalhador
se elevava também a altura dos acontecimentos, que nunca o
surpreenderam, e durante onze anos, nessa Revista Espírita,
que acabamos de ver como começou tão modestamente, ele
afrontou todas as tempestades, todas as emulações, todos os
ciúmes que não lhe foram poupados, como ele mesmo o constata
e como lho fora anunciado ao ser-lhe reveiada a sua missão.
Essa comunicação e as reflexões de que as anotou Allan Kardec
nos mostram sob um prisma pouco lisonjeiro a situação naquela
época, mas fazem também ressaltar o grande valor do fundador
do Espiritismo e o seu mérito em dela ter sabido triunfar.
Médium, Srta. Aline C., — 12 de junho de 1856:
P — Quais são as causas que me poderiam fazer
fracassar? Seria a insuficiência de minhas aptidões?
R — Não; mas a missão dos reformadores é cheia de
escolhos e perigos; a tua é rude; previno-te-o; porque é o mundo
inteiro que se trata de agitar e de transformar. Não creias que te
seja suficiente publicares um livro, dois livros, dez livros, e ficares
tranqüilamente em tua casa; não é preciso te mostrares no
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
27
conflito: contra ti se açularão ódios; implacáveis inimigos
tramarão a tua perda; estarás exposto à malevolência, à calúnia,
à traição, mesmo daqueles que te parecerão os mais dedicados;
tuas melhores instruções serão desconhecidas e desnaturada;
sucumbirás mais de uma vez ao peso da fadiga; em uma palavra,
é uma luta quase constante que terás de sustentar, com o
sacrifício do teu repouso, da tua tranqüilidade, de tua saúde e
mesmo da tua vida, porque tu não viverás muito tempo. — Pois
bem! Mais de um recua quando, em lugar de uma vereda florida,
não encontra sob seus passos senão espinhos, agudas pedras
e serpentes. Para tais missões, não basta a inteligência. É
preciso antes de tudo, para agradar a Deus, humildade,
modéstia, desinteresse, porque ele abate os orgulhosos e os
presunçosos. Para lutar contra os homens, é necessário
coragem, perseverança e uma firmeza inquebrantável; é preciso
também ter prudência e tato para conduzir a propósito as coisas
e não lhes comprometer o sucesso por medidas ou palavras
intempestivas; é preciso, enfim, devotamento, abnegação, e
estar pronto para todos os sacrifícios.
Vês que tua missão está subordinada a condições que
dependem de ti.
Espírito Verdade.
Nota — (É Allan Kardec quem assim se exprime): “Escrevo
esta nota no dia 10 de janeiro de 1867, dez anos e meio depois
que esta comunicação me foi dada, e constato que ela se
realizou em todos os pontos, porque experimentei todas as
vicissitudes que nela me foram anunciadas. Tenho sido alvo do
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
28
ódio de implacáveis inimigos, da injúria, da calúnia, da inveja e
do ciúme; têm sido publicados contra mim infames libelos;
minhas melhores instruções têm sido desnaturadas; tenho sido
traído por aqueles em quem depositara confiança, e pago com a
ingratidão por aqueles a quem tenho prestado serviços. A
Sociedade de Paris tem sido um contínuo foco de intrigas,
urdidas por aqueles que se diziam a meu favor e que, mostrando-
se amáveis em minha presença, me detratavam na ausência.
Disseram que aqueles que adotavam o meu partido eram
assalariados por mim com o dinheiro que eu arrecadava do
Espiritismo. Não mais tenho conhecido o repouso, mais de uma
vez sucumbi sob o excesso do trabalho; tem-se-me alterado a
saúde e comprometido a vida.
“Entretanto, graças à proteção e à assistência dos bons
Espíritos, que sem cessar me têm dado provas manifestas de
sua solicitude, sou feliz em reconhecer que não tenho
experimentado um único instante de desfalecimento nem de
desânimo, e que tenho constantemente prosseguido na minha
tarefa com o mesmo ardor, sem me preocupar com a
malevolência de que era alvo. Segundo a comunicação do
Espírito Verdade, eu devia contar com tudo isso, e tudo se
verificou”.
Quando se conhecem todas essas lutas, todas as torpezas
de que Allan Kardec foi alvo, quanto ele se engrandece aos
nossos olhos e como o seu brilhante triunfo adquire mérito e
esplendor! Que se tornaram esses invejosos, esses pigmeus que
procuravam obstruir-lhe o caminho? Na maior parte, são
desconhecidos os seus nomes, ou nenhuma recordação
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
29
despertam mais: o esquecimento os retomou e sepultou para
sempre em suas sombras, enquanto que o de Allan Kardec, o
intrépido lutador, o campeão ousado, passará à posteridade com
a sua auréola de glória tão legitimamente adquirida.
Na nota acima lançada pelo próprio Allan Kardec, trata-se
da Sociedade Espírita de Paris, fundada a 10 de abril de 1858.
Até então as reuniões tinham tido lugar em casa de Allan Kardec,
à Rua dos Mártires, com a Srta. E. Dufaux como principal
médium; o seu salão poderia conter de quinze a vinte pessoas.
Cedo ai, reuniu ele, mais de trinta. Tornando-se então esse local
muito acanhado, e não querendo onerar Allan Kardec de todos
os encargos, alguns dos assistentes se propuseram formar uma
Sociedade Espírita e alugar um outro local em que se
efetuassem as reuniões. Mas era preciso, para se poderem
reunir, obter o reconhecimento e a autorização da prefeitura. O
Sr. Dufaux que conhecia pessoalmente o prefeito de polícia de
então, encarregou-se de dar os passos para esse fim, e, graças
ao ministro do interior, o general X., que era favorável às novas
idéias, a autorização foi obtida em quinze dias, enquanto que
pelo processo ordinário teria exigido meses, sem grande
probabilidade de êxito.
“A Sociedade foi então regularmente constituída e reuniu-
se todas as terças-feiras, no local que fora alugado, no Palais
Royal, Galeria Valois. Aí ficou durante um ano, de 10 de abril de
1858 a 10 de abril de 1859. Não podendo lá permanecer mais
tempo, reuniu-se todas as sextas-feiras em um dos salões do
restaurante Douix, no Palais Royal, galeria Montpensier, de 10
de abril de 1859 a 1°de abril de 1860, época em que se instalou
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
30
em sede própria, à rua e passagem Sant’Anna n° 59”.
Depois de haver dado, conta das condições em que se
formou a Sociedade e da tarefa que teve a desempenhar, Allan
Kardec, assim se exprime (Revista Espírita, p. 169):
“— Empreguei em minhas funções, que posso dizer
laboriosas, toda a solicitude e toda a dedicação de que era
capaz; no ponto de vista administrativo, esforcei-me por manter
nas sessões uma ordem rigorosa, e por imprimir-lhes um caráter
de gravidade, sem o qual o prestígio de assembleia séria teria
cedo desaparecido. Agora que minha tarefa está terminada e que
o impulso está dado, devo inteirar-vos da resolução que tomei,
de renunciar de futuro a toda espécie de função na Sociedade,
mesmo a de diretor dos estudos; não ambiciono senão um título
de simples membro titular, com que me sentirei feliz e honrado.
O motivo da minha determinação está na multiplicidade dos
meus trabalhos, que aumentam todos os dias, pela extensão das
minhas relações; porque, além daqueles que conheceis, preparo
outros trabalhos mais consideráveis que exigem longos e
laboriosos estudos e não absorverão menos de dez anos; ora os
trabalhos da Sociedade não deixam de tomar muito tempo, quer
para o preparo, quer para a coordenação e a passagem a limpo.
Reclamam uma assiduidade muitas vezes prejudicial às minhas
ocupações pessoais, e que torna indispensável a iniciativa quase
exclusiva que me tendes deixado. É a esse motivo, meus
senhores, que eu devo o ter tantas vezes tomado a palavra,
lamentando com freqüência que os membros eminentemente
esclarecidos que possuímos nos privassem de suas luzes.
Desde muito tempo alimentava o desejo de demitir-me das
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
31
minhas funções: externei-o de um modo muito explícito em
diversas ocasiões, quer aqui, quer em particular, a muitos dos
meus colegas, e especialmente ao Sr. Ledoyen. Tê-lo-ia feito
mais cedo, se não fosse o temor de produzir uma perturbação na
Sociedade: retirando-me no meado do ano, teriam podido
acreditar em uma deserção, e era preciso não dar essa
satisfação aos nossos adversários. Desempenhei, portanto,
minha tarefa até o fim; hoje, porém, que esses motivos
cessaram, apresso-me a vos dar parte da minha resolução, afim
de não embaraçar a escolha que fareis. É justo que cada um
tenha sua parte nos encargos e nas honras”.
Apressemo-nos a acrescentar que essa demissão não foi
aceita e que Allan Kardec foi reeleito por unanimidade, menos
um voto e uma cédula em branco. Diante desse testemunho de
simpatia ele se submeteu e conservou suas funções.
Em setembro de 1860, Allan Kardec fez uma viagem de
propaganda à nossa região, e eis aqui como ele fez referência
na Sociedade Parisiense dos Estudos Espíritas (Revista Espírita,
novembro, 1860, p. 329).
O Sr. Allan Kardec dá conta do resultado da viagem que
acaba de fazer, no interesse do Espiritismo, e felicita-se pela
cordialidade do acolhimento que por toda a parte encontrou,
notavelmente em Sens, Mâcon, Lyon e Saint-Étienne. Ele
constatou, em todo lugar em que se demorou, os progressos
consideráveis da Doutrina; mas o que sobretudo é digno de nota
é que em parte alguma viu que dela se fizesse um divertimento,
mas que ao contrário, dela se ocupam de um modo sério, e que
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
32
por toda parte lhe compreendem o alcance e as conseqüências
futuras. Há, sem dúvida, muitos adversários, sendo os mais
encarniçados os inimigos interessados, mas os motejadores
diminuem sensivelmente: vendo que os seus sarcasmos não
colocam do seu lado os gracejadores, e que auxiliam mais do
que impedem o progresso das novas crenças, começam a
compreender que nada ganham com isso e consomem o seu
espírito em pura perda, e eis porque se calam. Uma frase muito
característica parece ser em toda parte a ordem do dia, e é esta:
o Espiritismo está no ar; só por si desenha ela o estado das
coisas. Mas é sobretudo em Lyon que são mais notáveis os
resultados. Os espíritas são aí numerosos em todas as classes,
e na classe operária contam-se por centenas. A Doutrina Espírita
tem exercido sobre estes a mais salutar influência, sob o ponto
de vista da ordem, da moral e das idéias religiosas; em resumo,
a propaganda do Espiritismo marcha com a mais animadora
celeridade.
No decurso dessa viagem, Allan Kardec pronunciou um
discurso magistral, no banquete que teve lugar a 19 de setembro
de 1860, do qual eis aqui algumas passagens, próprias para nos
interessar, a nós que aspiramos substituir dignamente esses
trabalhadores da primeira hora: “A primeira coisa que me
impressionou foi o número dos adeptos: eu sabia perfeitamente
que Lyon os contava em grande escala, mas estava longe de
imaginar que o número fosse tão considerável, porque não é por
centenas que se contam eles, e em pouco tempo — eu o espero
—já se poderão contar mais.
“Se, porém, Lyon se distingue pelo número, não o faz
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
33
menos pela qualidade, o que ainda vale mais. Por toda a parte
não encontrei senão espíritas sinceros, compreendendo a
Doutrina sob o verdadeiro ponto de vista. Há, meus senhores,
três categorias de adeptos: uns que se limitam a crer na
realidade das manifestações e que procuram antes de tudo os
fenômenos, o Espiritismo é simplesmente para eles uma série de
fatos mais ou menos interessantes. Os segundos vêem outra
coisa nele além dos fatos, compreendem o seu alcance filosófico,
admiram a moral que deles decorre, mas não a praticam; para
eles a caridade cristã é uma bela máxima, e nada mais. Os
terceiros, finalmente, não se contentam com admirar a moral,
praticam-na e aceitam-lhe as conseqüências. Bem convencidos
de que a existência terrestre é uma prova passageira, esforçam-
se por aproveitar esses curtos instantes para marchar na senda
do progresso que lhes traçam os Espíritos, empenhando-se em
fazer o bem e em reprimir suas más inclinações; suas relações
são sempre seguras, porque suas convicções os afastam
de todo pensamento do mal; a caridade é, em toda ocasião,
a regra de sua conduta: são esses os verdadeiros espíritas, ou
melhor, os espíritas cristãos.
“Pois bem, meus senhores, eu vo-lo digo com satisfação:
ainda não encontrei aí nenhum adepto da primeira categoria, em
parte alguma vi que se ocupassem do Espiritismo por mera
curiosidade, em parte alguma que dele se ocupassem com
frívolos intuitos; por toda a parte o fim é grave, as intenções são
sérias, e, a crer no que me dizem, há muitos da terceira
categoria. Honra, pois, aos espíritas lioneses, por terem assim
entrado largamente nessa senda progressiva, sem a qual o
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
34
Espiritismo não teria objeto. Este exemplo não será perdido, terá
suas conseqüências, e não é sem razão — eu o vejo — que os
Espíritos me responderam noutro dia, por um dos nossos
médiuns mais dedicados, posto que dos mais obscuros, quando
eu lhes exprimia a minha surpresa: “Porque te admiras disso?
Lyon foi a cidade dos mártires; a fé aí é vivaz; ela fornecerá
apóstolos ao Espiritismo. Se Paris é a cabeça, Lyon será o
coração’”.
Essa opinião de Allan Kardec sobre os espíritas lioneses
de sua época é para nós uma grande honra, mas deve ser
também uma regra de conduta. Devemos nos esforçar por
merecer esses elogios, aprofundando por nossa vez as lições do
mestre e, sobretudo, conformando com elas o nosso proceder.
Noblesse Oblige, diz um adágio: saibamos nos recordar sempre
disso e conservar alto e firme o estandarte do Espiritismo.
Mas Allan Kardec não se contentava com atirar flores aos
nossos maiores; dava-lhes, sobretudo, sábios conselhos, sobre
os quais por nossa vez devemos meditar.
“Vindo dos Espíritos o ensino, os diferentes grupos, tanto
como os indivíduos, se acham sob a influência de certos
Espíritos, que presidem aos seus trabalhos, ou os dirigem
moralmente. Se esses Espíritos não se acham de acordo, a
questão está em saber qual é o que merece maior confiança:
será evidentemente aquele cuja teoria não pode provocar
nenhuma objeção séria, em uma palavra, aquele que, em todos
os pontos, dá maior número de provas de sua superioridade. Se
tudo nesse ensino é bom, racional, pouco importa o nome que
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
35
toma o Espírito; e a esse respeito a questão de identidade é
inteiramente secundária. Se, sob um nome respeitável, o ensino
peca pelas qualidades essenciais, podeis afoitamente concluir
que é um nome apócrifo e que é um Espírito impostor ou
galhofeiro. Regra geral: o nome nunca é uma garantia; a única,
a verdadeira garantia de superioridade é o pensamento e a
maneira porque é ele expresso. Os Espíritos enganadores tudo
podem imitar, tudo, exceto o verdadeiro sentimento.
“Acontece muitas vezes que, para fazer adotar certas
utopias, alguns espíritos fazem alarde de um falso saber, e
pensam impô-las, escolhendo no arsenal das palavras técnicas
tudo o que pode fascinar aquele que é facilmente crédulo. Eles
têm, ainda, um meio mais certo: é afetar as exterioridades da
virtude; com o auxílio das grandes palavras caridade,
fraternidade, humildade, esperam fazer passarem os mais
grosseiros absurdos, e é o que acontece muitas vezes, quando
se não está precavido. É preciso, pois, evitar o deixar-se seduzir
pelas aparências, tanto da parte dos Espíritos como dos homens;
ora, eu o confesso, aí está uma das maiores dificuldades; mas
nunca se disse que o Espiritismo fosse uma ciência fácil; tem
seus escolhos que se não podem evitar senão pela experiência.
Para escapar à cilada, é preciso antes de tudo fugir ao
entusiasmo que cega, ao orgulho que leva certos médiuns a
acreditar-se os únicos intérpretes da verdade; é preciso que tudo
seja friamente examinado, maduramente pesado, confrontado,
e, se se desconfia do próprio julgamento, o que é muitas vezes
mais prudente, é preciso recorrer a outras pessoas, segundo o
provérbio: que quatro olhos vêem melhor que dois, só um falso
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
36
amor próprio, ou uma obsessão, podem fazer persistir uma idéia
notoriamente falsa e que o bom senso de cada um repele”.
Eis os conselhos tão sábios e tão práticos que dava aquele
que quiseram fazer passar por um entusiasta, um místico, um
alucinado; e essa regra de conduta, estabelecida no começo,
ainda não foi invalidada, nem pela observação, nem pelos
acontecimentos; é sempre a vereda mais segura, a mais
prudente, a única a seguir por aqueles que se querem ocupar do
Espiritismo.
Allan Kardec trabalhava então em O livro dos Médiuns, que
apareceu na primeira quinzena de 1861, editada pelos Srs. Didier
& Cia., livreiros editores. O mestre expõe a sua razão de ser, nos
seguintes termos, na Revista Espírita:
“Procurávamos neste trabalho, fruto de uma longa
experiência e de laboriosos estudos, esclarecer todas as
questões que se prendem à prática das manifestações; ele
contém, de acordo com os Espíritos, a explicação teórica dos
diversos fenômenos e condições em que se podem produzir;
mas a parte concernente ao desenvolvimento e ao exercício da
mediunidade foi sobretudo da nossa parte o objeto de uma
atenção toda especial.
“O Espiritismo experimental está cercado de muito mais
dificuldades do que se acredita geralmente, e os escolhos que aí
se encontram são numerosos; é o que produz tanta decepção
nos que dele se ocupam sem terem a experiência e os
conhecimentos necessários. O nosso fim foi acautelar os
investigadores contra tais dificuldades, que nem sempre são as
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
37
isentas de inconveniente para quem quer que se aventure com
imprudência por esse novo terreno. Não podíamos desprezar um
ponto assim capital, e o tratamos com um cuidado igual à sua
importância”.
O Livro dos Médiuns é ainda o vade-mecum de todos os
que se querem entregar com proveito à prática do Espiritismo
experimental; nada apareceu de melhor nem de mais completo
nessa ordem de idéias. É o único fio de Ariadne de que nos
podemos servir para explorar sem perigo o terreno da
mediunidade.
No ano de 1861, Allan Kardec fez uma nova viagem espírita
a Sens, Mâcon e Lyon, e constatou que na nossa cidade o
Espiritismo já atingira à virilidade.
“Com efeito, não é mais por centenas, diz ele, que aí se
contam os espíritas, como há um ano, é por milhares, ou para
melhor dizer, já se não contam, e pode-se calcular que, seguindo
a mesma progressão, dentro de um ano ou dois eles serão mais
de trinta mil. O Espiritismo aí tem feito adeptos em todas as
classes, mas é sobretudo na classe operária que se tem
propagado com a maior rapidez, e isso não é de admirar: sendo
essa classe a que mais sofre, volta- se para o lado em que
encontra maior consolação. Vós que clamais contra o
Espiritismo, não lhe ofereceis outro tanto; ela voltar-se-ia para
vós, mas em lugar disso quereis tirar-lhe o que a ajuda a carregar
o seu fardo da miséria; é o meio mais seguro de alienardes suas
simpatias e engrossardes as fileiras dos que se vos opõem. O
que vimos com os nossos próprios olhos é de tal modo
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
38
característico, e encerra um ensino tão grande, que acreditamos
dever consagrar aos trabalhadores a mais larga parte do nosso
relatório.
“No ano passado não havia senão um único centro de
reunião, o dos Broteaux, dirigido por Dejoud, chefe de oficina, e
sua mulher; depois formaram-se outros em diferentes pontos da
cidade, em Guillotière, em Perrache, em Croix Rousse, em
Vaise, em Saint Just, etc., sem contar um grande número de
reuniões particulares. Havia apenas dois ou três médiuns
neófitos; hoje os há em todos os grupos, e muitos são de primeira
ordem; em um só grupo vimos cinco escreverem
simultaneamente. Vimos igualmente um rapaz muito bom
médium vidente, no qual pudemos constatar essa faculdade
desenvolvida no mais alto grau.
“Muito é sem dúvida que se multipliquem os adeptos, mas
o que mais vale ainda que o número é a qualidade. Pois bem,
declaramo-lo bem alto: não vimos em parte alguma, reuniões
espíritas mais edificantes que as dos operários lioneses, quanto
à ordem, ao recolhimento e à atenção que eles prestam às
instruções dos seus guias espirituais; há homens, velhos,
senhoras, moços, crianças mesmo, cuja atitude respeitosa
contrasta com a sua idade; nunca um único perturbou um só
instante o silêncio das nossas reuniões, muitas vezes longas;
pareciam quase tão ávidos como os seus pais em recolher as
nossas palavras.
“Não é ainda tudo: o número das metamorfoses morais é,
entre os operários, quase tão grande como o dos adeptos,
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
39
hábitos reformados, paixões acalmadas, ódios apaziguados,
lares tornados tranqüilos, em uma palavra, as mais legítimas
virtudes cristãs, desenvolvidas, e isso pela confiança, de agora
em diante inabalável, que lhes dão as comunicações espíritas,
no futuro em que não acreditavam; é uma felicidade para eles
assistirem a essas instruções, de que saem reconfortados contra
a adversidade; muitos chegam a galgar mais de uma légua, sob
qualquer tempo, inverno ou verão, tudo arrostando para não
faltarem a uma sessão; é que neles não há uma fé vulgar, mas
uma fé baseada sobre uma convicção profunda, raciocinada e
não cega”.
Essas constatações e esses elogios vindo da parte de Allan
Kardec foram preciosos encorajamentos para os nossos
maiores, devem ser para nós uma norma de conduta e nos incitar
a mostrar-nos dignos sucessores desses trabalhadores da
primeira hora, dos quais o Mestre nos traçou um retrato tão
lisonjeiro quão fiel.
Por ocasião dessa viagem, um banquete novamente reuniu
sob a presidência de Allan Kardec os membros da grande família
espírita lionesa. No dia 19 de setembro de 1860 os convivas
eram apenas uns trinta; a 19 de setembro de 1861 o seu número
era de cento e sessenta, “representando os diferentes grupos,
que se consideram todos como os membros de uma mesma
família, entre os quais não existe sombra de ciúme e de
rivalidade, o que — diz o Mestre — temos, de passagem, grande
satisfação em fazer notar. A maioria dos assistentes era
composta de operários, e toda gente notou a perfeita ordem que
não cessou de reinar um só instante; é que os verdadeiros
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
40
espíritas põem sua satisfação nas alegrias do coração e não nos
prazeres ruidosos”.
14 de outubro do mesmo ano encontramos Allan Kardec
em Bordeaux, onde, como em todas as cidades por que passa,
semeia a boa nova e faz germinar a fé no futuro.
Além das viagens e dos trabalhos de Allan Kardec, esse
ano de 1861 permanecerá memorável nos anais do Espiritismo
por um fato de tal modo monstruoso que quase parece incrível.
Refiro-me ao auto de fé que teve lugar em Barcelona, e em que
foram queimadas pela fogueira dos inquisidores trezentas obras
espíritas.
O Sr. Maurício Lachâtre estava nessa época estabelecido
como livreiro em Barcelona, em relações e comunhão de idéias
com Allan Kardec; pediu-lhe que enviasse um certo número de
obras espíritas, para as expor à venda e fazer propaganda da
nova filosofia.
Essas obras, em número de trezentas aproximadamente,
foram expedidas nas condições ordinárias, com uma declaração
em ordem do conteúdo das caixas. À sua chegada à Espanha,
foram os direitos da alfândega cobrados do destinatário e
arrecadados pelos agentes do governo espanhol; mas a entrega
das caixas não se fez: o bispo de Barcelona, tendo julgado esses
livros perniciosos à fé católica, fez confiscar a expedição pelo
Santo Ofício.
Uma vez que não queriam remeter essas obras ao
destinatário, Allan Kardec reclamou a sua devolução; mas sua
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
41
reclamação foi de nulo efeito, e o bispo de Barcelona, erigindo-
se em policiador da França, motivou sua recusa com a seguinte
resposta — a Igreja Católica é universal, e esses livros são
contrários a fé católica; o governo não pode consentir que eles
vão perverter a moral e a religião nos outros países.
E não só esses livros foram restituídos, como também os
direitos aduaneiros ficaram em poder do fisco espanhol. Allan
Kardec teria podido promover uma ação diplomática e obrigar o
governo espanhol a fazer o recâmbio das obras. Os Espíritos,
porém, o dissuadiram disso, dizendo que era preferível para a
propaganda do Espiritismo deixar essa ignomínia seguir o seu
curso.
Renovando os fastos e as fogueiras da Idade Média, o
bispo de Barcelona fez queimar na praça pública, pela mão do
carrasco, as obras incriminadas.
Eis aqui o título de documento histórico, o processo verbal
dessa infâmia clerical:
“Aos nove dias de outubro de mil oitocentos e sessenta e
um, às dez horas e meia da manhã, na esplanada da cidade de
Barcelona, no lugar em que são executados os criminosos
condenados à pena última, por ordem do bispo desta cidade
foram queimados trezentos volumes e brochuras sobre o
Espiritismo, a saber:
“A Revista Espírita, diretor Allan Kardec;
“A Revista Espiritualista, diretor Piérard;
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
42
“O Livro dos Espíritos, por Allan Kardec;
“O Livro dos Médiuns, pelo mesmo;
“O que é o Espiritismo, pelo mesmo;
“Fragmento de Sonata ditada pelo Espírito Mozart;
“Carta de um católico sobre o Espiritismo, pelo Dr. Grand;
“A História de Joanna D’Arc, por ela mesma ditada à Srta.
Ermance Dufaux;
“A realidade dos espíritos demonstrada pela escrita direta,
pelo Barão de Guldenstubbé.
‘Assistiram ao auto de fé:
‘Um padre revestido dos hábitos sacerdotais, trazendo em
uma das mãos a cruz e na outra uma tocha;
“Um tabelião encarregado de redigir o processo verbal do
auto de fé;
“O escrevente do tabelião;
“Um empregado superior da administração das alfândegas;
“Três Mozos (serventes) da alfândega, encarregados de
alimentar o fogo;
“Um agente da alfândega, representando o proprietário das
obras condenadas pelo bispo.
“Uma multidão incalculável aglomerava-se nos passeios e
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
43
cobria a esplanada em que ardia a fogueira.
“Quando o fogo consumiu os trezentos volumes ou
brochuras espíritas, o padre e seus ajudantes se retiraram
cobertos pelos apupos e as maldições dos numerosos
assistentes, que gritavam: ‘Abaixo à Inquisição!’
“Em seguida muitas pessoas se acercaram da fogueira e
apanharam cinzas”.
Seria diminuir o horror de tais atos, acompanhá-los com a
narrativa dos comentários; constatemos somente que ao clarão
dessa fogueira o Espiritismo tomou um incremento inesperado
em toda a Espanha e, como o haviam os Espíritos previsto,
aliciou aí um número incalculável de adeptos. Só podemos, pois
como o fez Allan Kardec, alegrar-nos com a imensa reclame que
esse ato odioso fez em favor do Espiritismo. A propósito, porém,
da propaganda que nós mesmos devemos fazer da nossa
filosofia, nunca deveremos esquecer estes conselhos do Mestre
(Revista Espírita, 1863, p. 367):
“O Espiritismo se dirige aos que não crêem ou que
duvidam, e não aos que têm uma fé e a quem essa fé é
suficiente; ele não diz a ninguém que renuncie às suas crenças
para adotar as nossas, e nisto é conseqüente com os princípios
de tolerância e de liberdade de consciência que professa. Por
esse motivo não poderíamos aprovar as tentativas feitas por
certas pessoas para converter às nossas idéias o clero, de
qualquer comunhão que seja. Repetiremos, pois, a todos os
espíritas: acolhei com solicitude os homens de boa vontade;
oferecei a luz aos que a procuram, porque com os que crêem
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
44
não sereis bem sucedidos; não façais violência à fé de ninguém,
muito mais quanto ao clero que aos seculares, porque semeareis
nos campos áridos; ponde a luz em evidência, para que a vejam
os que a quiserem ver; mostrai os frutos da árvore e deles daí a
comer aos que têm fome e não aos que se dizem saciados”.
Estes conselhos, como todos os de Allan Kardec, são
claros e simples e, sobretudo práticos; cumpre que deles nos
recordemos e os aproveitemos oportunamente.
O ano de 1862 foi fértil em trabalhos favoráveis à difusão
do Espiritismo. No dia 15 de janeiro apareceu a pequenina e
excelente brochura de propaganda O Espiritismo em sua Mais
Simples Expressão. “O fim desta publicação, diz Allan Kardec —
é apresentar em um quadro muito resumido um histórico do
Espiritismo e uma idéia suficiente da Doutrina dos Espíritos, para
permitir ser compreendido o seu fim moral e filosófico. Pela
clareza e simplicidade do estilo, procuramos pô-la ao alcance de
todas as inteligências. Contamos com o zelo de todos os
verdadeiros espíritas para que auxiliem a propaganda”. — Este
apelo foi ouvido, porque a pequena brochura se espalhou em
profusão, devendo muitos a esse excelente trabalho ter
compreendido o fim e o alcance do Espiritismo.
Tendo os nossos predecessores no Espiritismo transmitido
a Allan Kardec, por ocasião do novo ano, a expressão dos seus
sentimentos de gratidão, eis aqui como respondeu o Mestre a
esse testemunho de simpatia:
“Meus caros irmãos e amigos de Lyon:
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
45
“A manifestação coletiva que tivestes a bondade de
transmitir-me, por ocasião do ano novo, me produziu vivíssima
satisfação, provando-me que conservastes de mim uma boa
recordação; mas o que me causou maior prazer nesse ato
espontâneo de vossa parte foi encontrar, entre as numerosas
assinaturas que nele figuram, representantes de quase todos os
grupos, porque é um sinal de harmonia que reina entre eles. Sou
feliz por ver que compreendestes perfeitamente o fim dessa
organização, cujos resultados desde já podeis apreciar, porque
deve ser agora evidente para vós que uma sociedade única teria
sido quase impossível.
“Agradeço-vos, meus bons amigos, os votos que fazeis por
mim; eles me são tanto mais agradáveis quanto eu sei que
partem do coração, e são os que Deus escuta. Ficai, pois,
satisfeitos, porque ele os ouve todos os dias, proporcionando-me
a extraordinária satisfação, no estabelecimento de uma nova
Doutrina, de ver aquela a que me tenho dedicado engrandecer e
prosperar, em minha vida, com uma rapidez maravilhosa;
considero um grande favor do Céu ser testemunha do bem que
ela já produz.
“Esta certeza, de que recebo diariamente os mais tocantes
testemunhos, me paga com usura de todos os meus sofrimentos,
de todas as minhas fadigas; não peço a Deus senão uma graça,
e é a de dar-me a força física necessária para ir até ao fim da
minha tarefa, que longe se encontra de estar concluída; mas,
como quer que suceda, possuirei sempre a maior consolação,
pela certeza de que a semente das idéias novas, espalhada
agora por toda a parte, é imperecível; mais feliz que muitos
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
46
outros, que não trabalharam senão para o futuro, me é permitido
contemplar os primeiros frutos.
“Se alguma coisa lamento, é que a exiguidade dos meus
recursos pessoais me não permita pôr em execução os planos
que concebi para o seu avanço ainda mais rápido; se Deus,
porém, em sua sabedoria entendeu dispor de modo diferente,
legarei esses planos aos nossos sucessores, que sem dúvida
serão mais felizes. A despeito da escassez dos recursos
materiais, o movimento que se opera na opinião ultrapassou toda
expectativa; crede, meus irmãos, que nisso o vosso exemplo não
terá sido sem influência. Recebei, portanto, as nossas
felicitações pela maneira por que sabeis compreender e praticar
a Doutrina.
"No ponto a que hoje chegaram as coisas, e tendo em vista
a marcha do Espiritismo através dos obstáculos semeados em
seu caminho, pode-se dizer que as principais dificuldades estão
superadas; ele conquistou o seu lugar, e está assente sobre
bases que de agora em diante desafiam, os esforços dos seus
adversários.
“Pergunta-se como uma Doutrina, que toma feliz e melhor
o homem, pode ter inimigos; é natural: o estabelecimento das
melhores coisas choca sempre interesses, ao começar. Não tem
acontecido assim com todas as invenções e descobertas que
têm revolucionado a indústria? As que hoje são consideradas
como benefícios, sem as quais não se poderia mais passar, não
tiveram inimigos obstinados? Toda lei que reprime um abuso não
tem contra si todos os que vivem dos abusos? Como quereríeis
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
47
que uma Doutrina que conduz ao reino da caridade efetiva não
fosse combatida por todos os que vivem de egoísmo? E sabeis
se são eles numerosos na Terra!
“No começo contaram matá-lo com a zombaria, hoje vêem
que essa arma é impotente e que, sob o fogo dos sarcasmos, ele
prosseguiu o seu caminho sem tropeçar. Não acrediteis que se
vão confessar vencidos, não; o interesse material é tenaz,
reconhecendo que é uma potência com que é necessário de hoje
em diante contar, vão dirigir-lhe assaltos mais sérios, mas que
só servirão para melhor atestar sua fraqueza. Uns o atacarão
diretamente por palavras e atos, e o perseguirão até na pessoa
dos seus adeptos, que eles se esforçarão por desalentar a poder
de embaraços, enquanto que outros, secretamente e por
caminhos disfarçados, procurarão miná-lo surdamente.
“Ficai prevenidos de que a luta não está terminada. Fui
avisado de que eles vão tentar um supremo esforço. Não tenhais,
porém, receio, o penhor do sucesso está nesta divisa, que é a de
todos os verdadeiros espíritas: fora da caridade não há salvação.
Arvorai-a bem alto, porque ela é a cabeça de Medusa para os
egoístas.
“A tática, posta já em prática pelos inimigos dos espíritas,
mas que eles vão empregar com um novo ardor, é tentar dividi-
los criando sistemas divergentes e suscitando entre eles a
desconfiança e o ciúme. Não vos deixeis cair no laço, e tende
como certo que quem quer que procure por um meio, qualquer
que seja, quebrar a boa harmonia, não pode ter boa intenção. É
por isso que vos recomendo que useis da maior circunspecção
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
48
na formação de vossos grupos, não somente para vossa
tranqüilidade, como no próprio interesse dos vossos labores.
“A natureza dos trabalhos espíritas exige a calma e o
recolhimento. Ora, não há recolhimento possível se se está
preocupado com discussões e com a manifestação de
sentimentos malévolos. Não haverá sentimentos malévolos se
houver fraternidade; não pode, porém, haver fraternidade com
egoístas, ambiciosos e orgulhosos. Com orgulhosos, que se
suscetibilizam e ofendem por tudo; ambiciosos que se sentirão
mortificados se não tiverem a supremacia; egoístas que não
pensam senão em si; a cizânia não pode tardar à introduzir-se, e
com ela a dissolução. É o que desejariam os nossos inimigos, e
é o que eles procuram fazer.
"Se um grupo quer estar em condições de ordem, de
tranqüilidade e de estabilidade, é preciso que nele reine um
sentimento fraternal. Todo grupo ou sociedade que se formar,
sem ter a caridade efetiva por base, não tem vitalidade, enquanto
que aqueles que forem fundados de acordo com o verdadeiro
espírito da Doutrina olhar-se-ão como membros de uma mesma
família que, não sendo possível habitarem todos sob o mesmo
teto, moram em lugares diferentes. A rivalidade entre eles seria
um contra-senso; não poderia existir onde reina a verdadeira
caridade, porque a caridade não se pode entender de duas
maneiras.
“Reconhecei, pois, o verdadeiro espírita na prática da
caridade por pensamentos, palavras e obras; e persuadi-vos de
que quem quer que nutra em sua alma sentimentos de
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
49
animosidade, de rancor, de ódio, de inveja ou de ciúme, mente a
si próprio se tem a pretensão de compreender e praticar o
Espiritismo.
“O egoísmo e o orgulho matam as Sociedades particulares,
como matam os povos e a sociedade em geral...”
Tudo mereceria citação nestes conselhos, tão justos quão
práticos, mas é preciso que nos limitemos, em razão do tempo
de que podemos dispor.
A pedido dos espíritas de Lyon e de Bordeaux, Allan
Kardec fez, em setembro e outubro, uma longa viagem de
propaganda, semeando por toda a parte a boa nova e
prodigalizando seus conselhos, mas somente aos que lhos
pediam; o convite feito pelos grupos lioneses estava subscrito
por quinhentas assinaturas. Uma obra especial deu conta dessa
viagem de mais de seis semanas, durante a qual o Mestre
presidiu a mais de cinqüenta reuniões em vinte cidades, onde por
toda parte foi alvo do mais cordial acolhimento e sentiu-se feliz
por constatar os imensos progressos do Espiritismo.
A respeito das viagens de Allan Kardec, tendo certas
influências hostis espalhado o boato de que eram feitas a
expensas da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, sobre
cujo orçamento igualmente ele sacava de antemão todos os seus
gastos de correspondência e de manutenção, o Mestre rebateu
assim essa falsidade:
“Muitas pessoas, sobretudo na província, pensaram que as
despesas dessas viagens oneravam a Sociedade de Paris;
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
50
tivemos que desfazer esse erro quando se ofereceu a ocasião;
aos que o pudessem ainda partilhar recordaremos o que
afirmamos noutra circunstância (número de junho de 1862, pág.
167, Revista Espírita): que a Sociedade se limita a prover as suas
despesas correntes e não possui reservas; para que pudesse
acumular um capital, era preciso que tivesse em mira o número;
é o que ela não faz nem quer fazer, porque o seu fim não é a
especulação e porque o número nada acrescenta à importância
dos trabalhos. Sua influência é toda moral e está no caráter de
suas reuniões, que dão aos estranhos a idéia de uma assembléia
grave e séria; aí está o seu mais poderoso meio de propaganda.
Ela, pois, não poderia ocorrer a tal despesa. Os gastos de
viagem, como todos os que as nossas relações reclamam para
o Espiritismo, são tirados dos nossos recursos pessoais e das
nossas economias, aumentadas com o produto das nossas
obras, sem o qual nos seria impossível prover a todos os
encargos, que são para nós a conseqüência da obra que
empreendemos. Isto é dito sem vaidade e unicamente para
render homenagem à verdade, e para edificação daqueles aos
quais afigura que nós capitalizamos”.
Em 1862 Allan Kardec fez também aparecer uma
Refutação às Críticas Contra o Espiritismo, no ponto de vista do
materialismo, da ciência e da religião.
Em abril de 1864 publicou ele a Imitação do Evangelho
Segundo o Espiritismo, contendo a explicação das máximas
morais do Cristo, sua aplicação e sua concordância com o
Espiritismo. O título dessa obra foi depois modificado, e é hoje O
Evangelho Segundo o Espiritismo.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
51
Aproveitando-se da época das férias, Allan Kardec fez em
Setembro de 1864 uma viagem a Anvers e a Bruxelas. Expondo
aos espíritas belgas o seu modo de ver acerca dos grupos e
sociedades espíritas, recorda o que já havia dito em Lyon, em
1861: “Vale mais, portanto, haver em uma cidade cem grupos de
dez a vinte adeptos, nenhum dos quais se arrogue a supremacia
sobre os outros, do que os reunisse todos. Esse fracionamento
em nada pode prejudicar a unidade dos princípios, desde que a
bandeira é uma só e que todos se dirigem para um mesmo fim”.
As Sociedades numerosas têm sua razão de ser sob o
ponto de vista da propaganda, mas quanto aos estudos sérios e
continuados, é preferível constituir para eles os grupos íntimos.
No dia 1o de agosto de 1865, Allan Kardec fez aparecer
uma nova obra O Céu e o Inferno, ou a Justiça Divina Segundo
o Espiritismo, na qual são mencionados numerosos exemplos da
situação dos Espíritos no mundo espiritual e na Terra, e as
razões que motivam essa situação.
Os admiráveis sucessos do Espiritismo, seu
desenvolvimento quase incrível lhe criaram inúmeros inimigos; e
à proporção que ele foi se engrandecendo, aumentou também a
tarefa de Allan Kardec. O Mestre possuía uma vontade de ferro,
um poder de combatividade extraordinário; era um trabalhador
infatigável; de pé, em qualquer estação, desde as 4 horas e meia,
respondia a tudo, às polêmicas veementes dirigidas contra o
Espiritismo, contra ele próprio; às numerosas correspondências
que lhe eram dirigidas; atendia à direção da Revista Espírita e da
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, à organização do
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
52
Espiritismo e ao preparo de suas obras.
Esse excesso físico e intelectual esgota-lhe o organismo, e
repetidas vezes os Espíritos precisam chamá-lo à ordem, afim de
o obrigar a poupar a saúde. Ele, porém, sabe que não deve durar
mais que uns dez anos ainda: numerosas comunicações o
preveniram desse termo e lhe anunciaram mesmo que sua tarefa
não seria concluída senão em uma nova existência, que
sucederia a breve trecho à sua própria desencarnação; por isso
ele não quer perder ocasião alguma de dar ao Espiritismo tudo o
que pode, em força e em vitalidade.
Em 1867, ele faz uma curta viagem a Bordeaux, Tours e
Orleans; em seguida põe novamente mãos à obra, para publicar,
em janeiro de 1868, A Gênese, os Milagres e as Predições
Segundo o Espiritismo. É das mais importantes esta obra, porque
constitui, no ponto de vista científico, a síntese dos quatro
primeiros volumes já publicados.
Allan Kardec ocupa-se em seguida de um projeto de
organização do Espiritismo, por meio do qual espera imprimir
mais vigor, mais ação à filosofia de que se fez apóstolo; procura
desenvolver-lhe o lado prático e fazer-lhe produzir seus frutos. O
objeto constante de suas preocupações é saber quem o
substituirá em sua obra, porque sente que o desenlace está
próximo; e a constituição que elabora tem precisamente por fim
prover às necessidades futuras da Doutrina Espírita.
Desde os primeiros anos do Espiritismo, Allan Kardec havia
comprado com o produto de suas obras pedagógicas 2.666
metros quadrados de terreno na Avenida Ségur, atrás dos
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
53
Inválidos; tendo essa compra esgotado os seus recursos, ele
contraiu com o Crédit Foncier um empréstimo de 50.000 francos
para fazer construir nesse terreno seis pequenas casas com
jardim, alimentava a doce esperança de recolher-se a uma delas,
na Vila Ségur, e torná-la depois de sua morte um asilo a que se
pudessem recolher na velhice os defensores indigentes do
Espiritismo.
Em 1869 a Sociedade Espírita era reconstituída sobre
novas bases e tornada sociedade anônima, com o capital de
40.000 francos, dividido em quarenta ações de 1.000 francos,
para a exploração da livraria, da Revista Espírita e das obras de
Allan Kardec à Rua Lille, n° 7.
Allan Kardec, cujo contrato de arrendamento na passagem
Sant’Anna estava quase a terminar, contava retirar-se para a Vila
Ségur, afim de trabalhar mais ativamente nas obras que lhe
restavam a fazer e cujo plano e documentos se achavam já
reunidos. Estava, pois, em todos os preparativos de mudança de
domicílio, reclamada pela extensão de seus múltiplos trabalhos,
quando a 31 de março a doença de coração que o minava
surdamente pôs termo à sua robusta constituição e, como um
raio, arrebatou-o à afeição de seus discípulos. Essa perda foi
imensa para o Espiritismo, que nele via desaparecer seu
fundador e seu mais poderoso propagandista, e lançou em
profunda consternação todos os que o haviam conhecido e
amado.
Denizard Hyppolite Léon Rivail, Allan Kardec, faleceu em
Paris, 59, passagem Sant’Anna, na circunscrição de Mairie de Ia
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
54
Banque, em 31 de março de 1869, na idade de 65 anos,
sucumbindo da ruptura de um aneurisma.
Unânimes sentimentos acolheram essa dolorosa notícia, e
uma concorrência numeroríssima acompanhou ao Père-
Lachaise, sua derradeira morada, os despojos mortais daquele
que fora Allan Kardec, daquele que, através dos tempos brilhará
como um meteoro fulgurante na aurora do Espiritismo.
Quatro orações foram proferidas à beira do túmulo do
Mestre: a primeira pelo Sr. Levent, em nome da Sociedade
Espírita de Paris; a segunda pelo Sr. Camille Flammarion, que
não fez somente um esboço do caráter do Sr. Allan Kardec e do
papel que cabe aos seus trabalhos no movimento
contemporâneo, mas ainda, e sobretudo, um exposto da situação
das ciências físicas, no ponto de vista do mundo invisível, das
forças naturais desconhecidas, da existência da alma e de sua
indestrutibilidade. Em seguida, tomou a palavra o Sr. Alexandre
Delanne, em nome dos espíritas dos centros afastados; e depois
o Sr. E. Muller, em nome da família e de seus amigos, dirigiu ao
morto querido os últimos adeuses.
A senhora Allan Kardec tinha 74 anos por ocasião da morte
de seu esposo. Sobreviveu-lhe até 1883, ano em que, a 21 de
janeiro, se extinguiu, na idade de 89 anos.
Erraria quem acreditasse que, em virtude dos seus
trabalhos, Allan Kardec devia ser um personagem sempre frio e
austero. Não era, entretanto, assim. Esse grave filósofo depois
de haver discutido os pontos mais difíceis de Psicologia e da
fisiologia transcendental, mostrava-se expansivo, esforçando-se
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
55
por distrair os convidados que ele freqüentemente recebia na Vila
Ségur; conservando-se sempre digno e sóbrio em suas
expressões, sabia adubá-las com o nosso velho sal gaulês e
rasgos de uma causticante e afetuosa bonomia. Gostava de rir
com esse belo riso franco, largo e comunicativo, e possuía um
talento todo particular em fazer os outros partilharem do seu bom
humor.
Todos os jornais da época se ocuparam da morte de Allan
Kardec e procuraram medir-lhe as conseqüências. Eis aqui, a
título de lembrança, o que a esse respeito escrevia o Sr. Pagès
de Noyez, no Journal de Paris, de 03 de abril de 1869:
“Aquele que por tão longo tempo ocupou o mundo científico
e religioso sob o pseudônimo de Allan Kardec chamava-se Rivail
e morreu na idade de 65 anos.
“Vimo-lo deitado num simples caixão, no meio dessa sala
das sessões que há tantos anos ele presidia; vimo-lo com o
semblante calmo como se extinguem aqueles a quem a morte
não surpreende e que, tranqüilos quanto ao resultado de uma
vida honesta e laboriosamente preenchida, imprimem como que
um reflexo da pureza de sua alma sobre o corpo que
abandonaram.
“Resignados pela fé em uma vida melhor, e pela convicção
da imortalidade da alma, inúmeros discípulos tinham vindo lançar
um derradeiro olhar aqueles lábios descorados que ainda na
véspera lhes falavam a linguagem da Terra. Mas eles recebiam
já a consolação de além-túmulo: o espírito de Allan Kardec veio
dizer-lhes quais haviam sido suas comoções, quais as suas
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
56
primeiras impressões, quais, dos que o haviam precedido no
além-túmulo, tinham vindo ajudar sua alma a desprender-se da
matéria. Se ‘o estilo é o homem’, aqueles que conheceram Allan
Kardec em vida não podem deixar de ficar emocionados pela
autenticidade dessa comunicação espírita.
“A morte de Allan Kardec é notável por uma coincidência
estranha. A Sociedade fundada por esse grande vulgarizador do
Espiritismo acabava de terminar. Abandonado o local, retirados
os móveis, nada mais restava de um passado que devia renascer
sobre novas bases. No fim da última sessão, o presidente fizera
as suas despedidas; preenchida a sua missão, retirava-se da luta
cotidiana, para se consagrar inteiramente ao estudo da filosofia
espiritualista. Outros mais jovens — intrépidos — deviam
continuar a obra, e fortes por sua virilidade, impor a verdade por
sua convicção.
“Para que referir os detalhes da morte? Que importa o
modo por que se partiu o instrumento, e por que consagrar uma
linha a esses fragmentos de agora em diante mergulhados no
turbilhão imenso das moléculas? Allan Kardec morreu na sua
hora própria. Com ele terminou o prólogo de uma religião vivaz,
que, irradiando todos os dias, cedo terá iluminado toda a
humanidade. Ninguém melhor que ele podia conduzir a bom
termo essa obra de propaganda, à qual era necessário sacrificar
as longas vigílias que alimentam o espírito, a paciência que
educa com o correr do tempo, a abnegação que afronta a
estultícia do presente, para não ver senão a irradiação do futuro.
“Allan Kardec terá, com suas obras, fundado o dogma
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
57
pressentido pelas mais antigas sociedades. Seu nome,
apreciado como o de um homem de bem, está há muito tempo
vulgarizado pelos que crêem e pelos que temem. É difícil praticar
o bem sem chocar os interesses estabelecidos. O Espiritismo
destrói muitos abusos, reanima muitas consciências doloridas,
dando-lhes a certeza da prova e a consolação do futuro.
“Os espíritas choram hoje o amigo que os deixa, porque o
nosso entendimento, por assim dizer, material não se pode
submeter a essa idéia de ‘transição’; pago, porém, o primeiro
tributo a essa inferioridade do nosso organismo, o pensador
ergue a cabeça, e através desse mundo invisível, que ele sente
existir além do túmulo, estende a mão ao amigo que já não
existe, convencido de que o seu Espírito nos protege sempre.
“O presidente da Sociedade Espírita de Paris está morto;
mas o número dos adeptos cresce todos os dias, e os corajosos
que o respeito pelo Mestre deixava no segundo plano não
hesitarão em se evidenciar, por bem da grande causa.
“Esta morte, que o vulgo deixará passar indiferente, não é
menos por isso um grande fato na humanidade. Não é mais o
sepulcro de um homem, é a pedra tumular enchendo esse
imenso vácuo que o materialismo cavara aos nossos pés e sobre
o qual o Espiritismo esparge as flores da esperança”.
Um ponto sobre o qual não atrai vossa atenção, mas que
devo, terminando, assinalar, é a caridade verdadeiramente cristã
de Allan Kardec: dele se pode dizer que a mão esquerda ignorou
sempre o bem que fazia a direita, e que esta ainda menos
conheceu os botes que à outra atiravam aqueles para quem o
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
58
reconhecimento é um fardo excessivamente pesado. Cartas
anônimas, insultos, traições, difamações sistemáticas, nada foi
poupado a esse intrépido lutador, a essa alma grande e varonil,
que penetrou inteiriça na imortalidade.
O despojo mortal de Allan Kardec repousa no Père-
Lachaise, em Paris, sob um modesto dólmen erigido pela
piedade de seus discípulos; é aí que se reúnem todos os anos,
desde 1869, os adeptos que têm guardado fidelidade à memória
do Mestre e conservam preciosamente em seu coração o culto
da saudade.
E, pois que é um sentimento análogo o que hoje nos reúne,
repitamos bem alto, minhas senhoras, meus senhores:
Honra! Honra e glória a Allan Kardec!
Henri SAUSSE.
Memória Histórica
I - Retrospecto
Antes de propriamente historiarmos, sucintamente embora,
o imponente movimento de renovação espiritualista que vem
fazendo, há meio século, o giro triunfal do mundo, não será
porventura inteiramente destituído de interesse lembrar que as
manifestações que lhe deram origem remontam, por sua
natureza, à mais alta antigüidade.
Desde os Vedas, com efeito, cujos livros religiosos,
aparecidos milhares de anos antes de Jesus Cristo, são os mais
antigos de que há notícia, a crença em um mundo espiritual, de
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
59
cujos habitantes nos podem vir esclarecimentos e conforto, era
geralmente admitida.
“Os Espíritos dos antepassados — dizia o grande legislador
Manu3 — acompanham, no estado invisível, certos brahmanes,
convidados para as cerimônias em comemoração dos mortos,
sob uma forma aérea; seguem-nos e tomam lugar ao seu lado,
quando eles se sentam”.
Confúcio, por sua vez, na China, dá testemunho da
seguinte sentença, gravada 500 anos antes, no sóco de uma
estátua de ouro, no templo da Luz, sentença que não é mais que
um reflexo da crença no mesmo sentido generalizada:
“Falando ou agindo, ainda que estejais só, não cuideis que
não sois visto ou ouvido: os Espíritos são testemunhas de tudo”.
No Egito, o conhecimento do mundo invisível e da
possibilidade das suas relações conosco, deu origem à doutrina
secreta sob o nome de Cabala, a cujos iniciados assegurava o
Calmud o seguinte privilégio:
“Aquele que, sendo instruído desse segredo (a evocação
dos mortos), o guarda com vigilância em um coração puro, pode
contar com o amor de Deus e o favor dos homens. Seu nome
inspira respeito, sua ciência não teme o olvido, e ele se torna o
herdeiro de dois mundos: este, em que agora vivemos, e o
mundo futuro”
3 Manu, Slocas, citado por Gabriel Delanne em O Fenômeno Espírita
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
60
A Pérsia participa das mesmas crenças, que se evidenciam
claramente na religião de Zoroastro.
Se passarmos à Grécia, vamos encontrar as evocações
dos deuses ou gênios praticadas pelas pitonisas, por cujo
intermédio os consultantes obtinham mesmo a aparição dos
seres caros que iam interrogar.
Idêntico mister vemos desempenhado pelas sibilas, em
Roma, a quem os generais iam freqüentemente consultar,
nenhuma deliberação importante sendo adotada sem ser o
oráculo previamente ouvido.
Assim, por toda parte, a crença nos Espíritos e na sua
intervenção junto dos homens era geralmente partilhada, nem
sempre, todavia, isenta das superstições e dos prejuízos a que
por fim davam lugar as suas práticas.
E não foi senão em virtude dos abusos que daí se
originavam que, no Deuteronômio, Moisés se viu induzido a
proibir ao povo hebreu, sob as mais severas ameaças, a
evocação dos mortos, a que esse povo habitualmente se
entregava.
Mas veio Jesus. Os fatos de sua vida, as curas que
operava, a expulsão dos demônios4 são uma nova e
impressionante série de manifestações espíritas.
A sua doutrina, toda de um cunho espiritual, vinha de novo
4 A palavra demônio, a que tão impropriamente se tem dado uma significação exclusiva, vem do grego daimon e quer dizer Espírito, gênio.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
61
abrir as fontes da inspiração invisível, não para o conhecimento
das coisas e dos interesses do mundo, como praticava outrora o
rebanho embrutecido de Moisés, mas para esclarecimento do
seu sentido obscuro ou parabólico, deixado propositalmente, em
muitas passagens, sob o véu da letra, quer para a pesquisa dos
iniciados, quer para o entendimento do futuro.
Assim o compreenderam, com efeito, os primeiros cristãos
que, depois da ressurreição do Divino Mestre, e já o não tendo
presente, sob a forma visível, para o consultar acerca da
interpretação dos seus ensinos, reuniam-se em pequenas
assembléias, sob a direção de um ancião por eles escolhidos, e
aí liam e comentavam os manuscritos evangélicos, com o
concurso dos profetas (que eram os mesmos médiuns dos
nossos dias), por cuja boca lhes enviam os ditados espirituais,
atentamente ouvidos.
É o que pelo menos se evidencia, além de várias
passagens dos Atos dos Apóstolos5, da seguinte advertência que
S. João insere em sua 1a Epístola: “Caríssimos, não creias a
todo Espírito, mas provai se os Espíritos são de Deus (Cap. IV,
v. 1)”.
S. Paulo é ainda mais explícito no indicado sentido:
“Pois que haveis de fazer, irmãos? Quando vos congregais,
se cada um de vós tem o dom de compor salmos, tem o de
doutrina, tem o de revelação, tem o de línguas, tem o de as
5 Veja-se, entre outros, os Cap. XXI e XXIII.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
62
interpretar, faça-se tudo isso para edificação” (I Coríntios, XIV,
26).
Em seguida acrescenta (v. v. 29 a 32):
“Pelo que toca, porém, aos profetas, falem também só dois
ou três, e os mais julguem o que ouvirem. E se nesse tempo for
feita qualquer revelação a algum outro dos que se acham
assentados, cale-se o que falava primeiro.
“Porque vós podeis profetizar todos, um depois do outro,
para assim aprenderem todos, e serem todos exortados no bem
— porque os Espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas”.
Não pode ser mais flagrante a analogia entre as modernas
práticas, em alguns círculos espíritas, e as que davam lugar a
estas instruções do iluminado apóstolo dos gentios.
Essas relações dos primeiros cristãos com o mundo
espiritual conservaram- se inalteradas durante os primeiros
séculos, constituindo uma fonte de poderosos esclarecimentos,
graças aos quais a nova Doutrina era chamada a manter-se em
um perpétuo rejuvenescimento, que seria dos mais fecundos à
sua evolução através dos tempos.
Cedo, porém, a Igreja, organizando-se hierarquicamente,
começou a ver nessas revelações espirituais um perigo de
desmentido aos seus ensinos exclusivos, e um motivo de
contrariedade às vistas interesseiras que já lançava sobre o
mundo.
Começaram então as proibições, que vieram a ter o seu
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
63
sanguinolento apogeu nas fogueiras da Idade Média, cujas
chamas lançaram sobre a Terra o derradeiro clarão da sua
sinistra apoteose.
Acossados pelo terror, perseguidos como feiticeiros,
chacinados em meio das mais cruéis torturas, todos quantos se
entregavam à prática das evocações foram obrigados a
renunciar a esse mister. É certo que dentre essas práticas,
muitas dariam lugar a abusos, em razão da ignorância e
grosseria das paixões que ainda então predominavam, como de
resto, mesmo nos nossos dias, vemos acontecer com o
Espiritismo, que a crendice e a superstição de um lado, e o
charlatanismo interesseiro, do outro, não trepidam em profanar.
Isso, porém, nem de leve pode atenuar, e menos ainda
legitimaria a violência dos processos utilizados pela Igreja para
fazer calar as vozes dos Espíritos.
O certo é que o fez. Emudeceram os mensageiros
espirituais, e ela pôde então estender desafogadamente o seu
domínio indisputado sobre o mundo cristão, ditando como
autoridade exclusiva e soberana o seu destino dogmático.
Mas, o mundo espiritual velava sempre. Se já não dispunha
de instrumentos para transmitir à Terra as doutrinas emanadas
do Divino Instituidor, nem por isso cessava de afirmar a sua
existência, ora por essas aparições de moribundos ou de mortos,
de que, desde tempos imemoriais, não há família que não tenha
pelo menos um caso a relatar, — ora por toda a sorte de
manifestações físicas, como vozes, ruídos, transportes de
objetos, etc., tão bem caracterizadas nesse fato pitorescamente
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
64
denominado “casas mal assombradas”, que as reúne todas.
Esses fenômenos, produzidos — repetimos — em todos os
tempos, não raro desfigurados ou exagerados pela superstição,
mas pertinazes e constantes, representam, por assim dizer, os
marcos com que esse mundo espiritual vinha, através dos
séculos, assinalando o seu caminho, afirmando a sua
coexistência ao nosso lado e chamando sobre ele a atenção dos
homens.
Intermitentes e desordenados a princípio, chegaram,
entretanto, a adquirir por fim um caráter intencional e — o que é
melhor — pareceram obedecer a um plano de generalização e
simultaneidade, demasiado característico e concorde em seus
efeitos para ser atribuído à mera coincidência.
Finalmente! O véu que encobria esse mundo, invisível e
misterioso, ia ser levantado, dando novamente livre culto as suas
relações conosco.
Chegamos, assim, à fase atual das suas manifestações.
II - O Movimento Moderno
Todos os escritores que se têm ocupado do assunto são
concordes em indicar como ponto de partida do atual movimento
espírita os fenômenos que em 1847-1848 se produziram no seio
da família Fox, residente a princípio na pequena cidade de
Hydesville, e logo depois na de Rochester, Estado de New York,
na grande República norte-americana.
Esse é, com efeito, o berço, por assim dizer, clássico dos
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
65
fenômenos espíritas em sua moderna fase. Convém, entretanto,
assinalar como uma circunstância digna de nota que, quase ao
mesmo tempo em que tais manifestações se produziam na
América do Norte, idênticos sucessos se davam em várias
cidades da Europa, posto que sem igual repercussão, e,
sobretudo, sem resultados semelhantemente apreciáveis na
difusão do Espiritismo.
Tais foram: o caso de Cidesville ocorrido, em 1850, na
França, com o Marquês desse nome, e que deu lugar a um
curioso processo em que depuseram inúmeras testemunhas,
perante o juiz de paz de Yerville; o de Bergzabern, na Baviera,
em 1852; — o da vila de Lipzi, distrito de Charkof, na Rússia, em
1853, notável pelas circunstâncias singulares de que se revestiu;
— e finalmente, em uma época menos afastada, o que ocorreu
em 1862 com o advogado Joller, membro do Conselho Nacional
de Stans, cantão de Unterwalden, Zurique (Suiça).
Desses casos, que foram documentadamente expostos por
Aksakof em sua obra Os Precursores do Espiritismo nos Últimos
250 Anos, escrita, infelizmente para nós, em língua russa, o mais
importante foi o de Lipzi, cujo processo, figurou como
protagonista e, ao mesmo tempo, vítima o capitão Jean-
datchenko, terminou por ser arquivado no tribunal de Charkof,
em virtude de ter sido impossível, apesar das rigorosas
pesquisas policiais e judiciais efetuadas durante três anos (de
1853 a 1856), descobrir os misteriosos autores dos prejuízos
materiais causados ao referido capitão, em suas roupas, móveis
e até na própria casa de sua residência.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
66
Escasseiam os dados para uma justa apreciação dos
resultados desses fatos, todos de uma grande notoriedade, para
a aceitação das idéias espíritas naqueles países. Acreditamos
que, sem serem porventura de grande alcance, não terão,
contudo, deixado de exercer alguma influência em tal sentido.
Como quer que seja, porém, a circunstância de terem, de alguma
sorte ocorrido simultaneamente com os de que foi teatro a
América do Norte, tornava necessária esta menção, parecendo
ao demais justificar a conjectura de uma intervenção providencial
e combinada na sua produção em pontos tão opostos.
Não será, com efeito, lícito atribuir a essa simultaneidade o
cunho de uma direção invisível e superior, e nessa múltipla
irrupção dos fenômenos, destinados a atrair sobre o mundo
espiritual a atenção dos homens, não se deve legitimamente
reconhecer o caráter de universalização que, dentro em pouco,
deviam adquirir os ensinos oriundos daquela fonte?
Voltemos, porém, à América do Norte, às manifestações
produzidas em casa da família Fox, em 1847-48.
Começaram elas por insólitos ruídos e pancadas que,
vibradas no forro da casa, no soalho, nas paredes e nos móveis,
cedo traíram o seu caráter intencional.
Desprezadas a princípio, terminaram, por sua insistência,
obrigando os moradores a prestar-lhes uma atenção que foi
crescendo até se estabelecerem diálogos com a entidade
invisível que batia, e que, mediante a adoção de um alfabeto
combinado com o número das pancadas, veio a fazer a
inesperada revelação de ser o Espírito de um tal Charles Rosma,
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
67
vendedor ambulante, que havia sido outrora assassinado e
roubado nessa mesma casa de Hydesville, em que residia a
família Fox.
Nas senhoritas Margarida, de 15; e Kate, de 12 anos, filhas
de John Fox, dono da casa, havia ele encontrado os médiuns de
que carecia para tais efeitos físicos.
E assim continuaram semanas e meses seguidos as
manifestações, cuja notícia não tardou a espalhar-se pela
vizinhança, atraindo inúmeros visitantes e, dessa forma, se
propalando por toda a cidade.
A conselho do Espírito, a família mudou-se pouco depois
para Rochester, onde o caso devia ter mais larga e mais intensa
repercussão.
Ai, de fato, continuaram com um cunho de maior
notoriedade as manifestações, começando também para aqueia
família, particularmente para as duas meninas, uma série de
sofrimentos e perseguições que as deviam sagrar como os
primeiros mártires da ideia nascente.
Interveio em primeiro lugar o ministro da religião
protestante a que pertenciam, e que as intimou, sob pena de
expulsão da igreja, a renunciarem a tais práticas. Mas as
senhoritas Fox, que já haviam sido iniciadas no conhecimento da
missão que tinham a desempenhar, recusaram-se resoluta e
nobremente a obedecer, e — ocioso é. acrescentar — foram
efetivamente expulsas.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
68
Vieram depois as comissões nomeadas para examinar os
fenômenos e pronunciar-se acerca da sua natureza. A primeira,
depois de uma longa e minuciosa pesquisa, acabou
reconhecendo a intervenção espiritual na produção dos fatos,
que o público se obstinava em atribuir a artifício dos pobres
médiuns. Uma segunda comissão foi nomeada, chegando ao
mesmo resultado. Foi um desapontamento para todos.
Nomearam por fim uma terceira comissão, composta de
pessoas escolhidas e insuspeitas, e quando terminou o seu
escrupuloso inquérito, a população de Rochester reuniu-se no
maior salão da cidade, o Corinthian-Hall, para ouvir e ler o seu
resultado.
Escusado é dizer que foi uma nova e triunfal consagração
das anteriores pesquisas. O público então, amotinado e em
atitude hostil, indagado pelo que teimava em supor uma burla
sistemática, levantou-se, em uma onda ululante, e pretendeu
invadir o recinto em que, impávidas e serenas, rodeadas de seus
pais, o Sr. e a Sra. Fox, as jovens médiuns aguardavam o seu
veredicto, — com o intuito de linchá-las! Foi preciso que o
venerando quaker Georges Willets se interpusesse, para evitar a
consumação do inconcebível atentado.
Assim eram recebidas na livre América as primeiras
demonstrações oficiais e decisivas do novo espiritualismo, em
sua primeira e acidentada fase, cujos detalhes, que nos é
impossível reproduzir aqui, se encontram na obra
excelentemente documentada da Sra. Emma Flardinge, História
do Moderno Espiritualismo na América.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
69
Mas a semente estava lançada, e o terreno fora proposital
e providencialmente escolhido para a receber, por mais que
esses sucessos, na aparência, o desmentissem. O estado dos
ânimos em face dos novos fenômenos devia se modificar
profundamente em poucos anos mais. E, com efeito,
prosseguindo e divulgando-se as pesquisas naquele sentido, já
em 1854 era dirigida ao Congresso legislativo de Washington
uma petição subscrita por 15.000 assinaturas, na qual se
solicitava a nomeação de uma comissão para estudar os fatos e
determinar as suas leis.
É claro que o Congresso não tomou em consideração esse
pedido, mas não é menos certo que nem por tal motivo cessaram
de ser feitas as experiências e as investigações. Nelas não
tardaram a tomar parte homens eminentes, como o juiz
Edmonds, o professor Mapes, lente de química na Academia
Nacional, o célebre professor Robert Hare, da Universidade de
Pensilvânia, o sábio Roberto Dale Owen, ministro dos Estados
Unidos em várias cortes européias, além de muitos outros, cuja
nomenclatura seria fastidiosa aqui, e que por esse motivo
incluímos mais adiante.
Servido por tão ilustres campeões, que com o mais nobre
desassombro se colocaram à testa do movimento renovador, o
Espiritismo propagou-se rapidamente por toda a República, de
sorte que menos de vinte anos mais tarde, isto é, em 1870, já
contava 20 associações denominadas de Estado, 105
sociedades privadas, dispunha de excelentes e vastos edifícios
nas cidades mais importantes, onde cerca de 200 conferentes
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
70
faziam suas preleções públicas, e o número dos seus jornais6 e
revistas se elevava a vinte e dois, compreendido o Canadá.
A estas informações nos resta acrescentar que, segundo
os dados estatísticos colhidos pelo grande naturalista A. Russel
Wallace, o número dos espíritas se elevava, há poucos anos, nos
Estados Unidos a onze milhões. E na 11a convenção anual da
Associação Nacional dos Espíritas americanos e canadenses,
reunida na última semana de outubro do ano passado,
compareceram 250 delegados, representando outras tantas
associações a ela filiadas.
E eis aí os resultados verdadeiramente assombrosos a que
serviram de início e de pretexto as manifestações, há apenas
meio século, desenroladas na cidade de Rochester, tendo como
protagonistas as intrépidas senhoritas Margarida e Kate Fox.
Digamos, antes de passar adiante, que em memória
dessas abnegadas heroínas, já falecidas, Kate em 1892 e
Margarida em 1903, a gratidão dos espíritas norte-americanos
fez erigir, no ano passado, um singelo monumento no cemitério
da Colina dos Cysprestes, em Brooklyn (New York), onde
repousam as suas cinzas, com uma inscrição alusiva ao seu
papel e à sua missão no movimento do moderno Espiritualismo.
Bem fizeram eles, mas muito pouco é isso em relação à
merecida consagração que a essa dupla memória fará sem
6 Desses jornais apenas conseguimos a indicação precisa de quatro, que inserimos nas Estatísticas.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
71
dúvida a posteridade.
Passemos agora à Europa, antes de dar conta do
movimento identicamente expansivo operado nas duas Américas
— Central e do Sul — até o nosso país.
Ficou visto anteriormente, na “Biografia de Allan Kardec”,
que foi na França, pátria do grande missionário, que o Espiritismo
se constituiu propriamente em Doutrina, graças ao seu
gigantesco e perseverante trabalho de verdadeiro predestinado,
para em seguida, e com essa feição, irradiar em todas as
direções.
É essa uma circunstância que igualmente convém ficar
consignada, isto é, que enquanto os fenômenos e — em uma
certa medida — as práticas espíritas são de todos os tempos;
enquanto o berço das manifestações ostensivas, provocando o
movimento de renovação moral e filosófica que tão rapidamente
se tem operado, deve ser colocado nos Estados Unidos — aos
esforços de Allan Kardec é que se deve a sistematização dos
ensinos dos Espíritos em um corpo doutrinário, característico da
moderna fase dessas manifestações.
Assim, é de 1857, data da publicação de O Livro dos
Espíritos, coincidindo embora com outras publicações de
natureza semelhante, quer na América7 quer na própria França8,
7 O livro do Dr. Robert Hare, Experimental Investigation of the Spirit Manifestation, precedeu-o apenas de alguns meses.
8 No mesmo ano de 1857 o Barão de Guldenstubbé publicava, com efeito, o voiume De La Realité des Esprits, repositório de interessantes experiências de escrita direta.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
72
que se deve propriamente contar o advento da Doutrina Espírita.
A partir daí, e dada a deficiência de dados atualmente
existentes para a reconstituição cronológica da sua marcha
evolutiva, é difícil dizer de que modo e por onde se fez
sucessivamente a difusão do Espiritismo. O certo é que,
vencidas as primeiras resistências, inseparáveis de toda idéia
nova, ele transpôs todas as fronteiras, penetrou por toda a parte,
de tal sorte que já não há hoje quase um país da Europa em que
não ateste a sua crescente vitalidade, pela fundação de
Sociedades e revistas, portadoras dos seus ideais e das suas
racionalistas e consoladoras doutrinas.
A primeira afirmação da sua força coletiva vamos encontrar
na reunião do Congresso Espírita, realizado em 1888 em
Barcelona, no qual tomaram parte representantes de quase
todos os países e foram votadas importantes conclusões no
sentido dos princípios cardeais que constituem os fundamentos
da nova filosofia.
Em 1889 reunia-se em Paris, por ocasião da exposição, o
segundo Congresso Internacional, com o voto de 40.000
aderentes, representando 20 milhões de espíritas, segundo,
entre outros noticiou Le Figaro, daquela capital.
A essa imponente manifestação devia seguir-se, poucos
anos mais tarde, a realização do Congresso Espiritualista de
Londres em 1898, e por fim a do Congresso Espírita e
Espiritualista de Paris, em 1900, cujas sessões, celebradas de
16 a 27 de setembro, sob a presidência de Léon Denis, tiveram
a mais simpática repercussão na imprensa francesa, que delas
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
73
se ocupou nos mais expressivos termos, salientando a
importância adquirida pelo Espiritismo nos últimos anos.
Aí se acharam representados os espiritualistas de todos os
matizes, repartidos pelas seções de Magnetismo, Hermetismo,
Teosofia e Espiritismo, em que se dividiu, sendo apresentados
notáveis trabalhos e memórias que constam do importante
relatório9 publicado, contendo o seu histórico completo.
Ao lado dessas manifestações coletivas, cumpre colocar os
trabalhos de organização parcial, não menos significativos.
Vemos assim, para começar por Portugal, em que, todavia,
— diga-se de passagem — a difusão se vai fazendo lentamente,
criarem-se alguns círculos de experimentação em Lisboa, mas
particularmente no Porto, além da fundação de dois jornais, a
Revista Espírita, do Porto; e O Futuro, no arquipélago dos
Açores. À frente dos experimentadores, figura um nome que se
tem imposto pelo rigor científico das suas pesquisas: o Dr. José
Alberto de Souza Couto, cujos trabalhos, lidos pessoalmente no
Congresso de Paris, despertaram vivo interesse.
Na Espanha, acha-se à frente do movimento a “Union
Espiritista Kardeciana Espanola”, de Barcelona, com 22
associações filiadas, achando-se representada a imprensa
doutrinária pelas 9 revistas mencionadas na Estatística que
inserimos adiante, cabendo ainda mencionar, entre suas
congêneres, a Sociedade de Estudos Psíquicos Ibero-
9 Compte-rendu du Congrès Spirite et Spiritualiste International de 1900,1 vol. de 722 págs., Paris.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
74
Americana, com sede em Madrid.
Penetrando de novo na França, vamos encontrar o mais
intenso movimento propagandista irradiando em todas as
direções, graças principalmente aos giros de conferências
levados a efeito por alguns intrépidos apóstolos, entre os quais
sobressaem as nobres figuras de Gabriel Delanne e, sobretudo,
de Léon Denis, a cujos esforços se deve a fundação de
agremiações regionais, como a Federação Espírita Sudoeste,
organizada em Bordeaux, no ano passado, além de várias
outras.
Por seu turno a Sociedade Francesa de Estudos dos
Fenômenos Físicos continua em Paris a sua tarefa de
encaminhar a propaganda, tendo a seu cargo a iniciativa e
organização dos Congressos, que lhe está particularmente afeta.
Há ainda a registrar a fundação da Sociedade de Estudos
Físicos de Marselha, em 1903, e a da Federação Espírita
Lionesa e Regional, sem contar a antiga Federação Espírita
Lionesa, além da criação de círculos de experimentação, como
o Instituto Psicológico Internacional, composto de eminentes
cientistas como os Drs. Duclaux, diretor do Instituto Pasteur,
dArsonval e Marey, membros da Academia de Ciências e da
Medicina, Weiss da Faculdade de Medicina, e o professor de
física Branly.
Acrescentemos que, só em Paris, calcula o Figaro haver
cem mil adeptos.
No que toca aos grupos privados de estudo e investigação
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
75
prática, pode-se por dados aproximativos estimar em mais de
cem o seu número em toda a França.
Mas é sobretudo na imprensa que se pode constatar a
importância lá adquirida pela Doutrina Espírita, sendo, como é,
de 25 o número das suas revistas e jornais.
Por ordem de importância vem em seguida — se não lhe
fica a par — a Inglaterra, com as suas 160 sociedades
funcionando regularmente, merecendo entre elas especial
menção a London Spiritualist Alliance e a Spiritualist National
Union Limited, pelo papel que desempenham na direção da
propaganda.
Não menores serviços se devem, no sentido da
investigação e, conseguintemente, da vulgarização, à Society for
Psychical Research e à Sociedade Dialética de Londres, fundada
em 1867, tendo como presidente sir John Sublodck, e como vice-
presidentes os ilustres sábios Thomas Henry Huxley e George
Henry Lewes, a cuja iniciativa se deveu em 1869 a nomeação de
uma comissão para estudar os fenômenos espíritas, da qual
fizeram parte o célebre naturalista Alfred Russel Wallace, o Sr.
Augusto de Morgan, presidente da Sociedade Matemática de
Londres, e o engenheiro Varley, chefe das linhas telegráficas da
Inglaterra.
O resultado dos trabalhos dessa comissão foi uma brilhante
afirmação da realidade dos fenômenos espíritas, não tardando a
seguir-lhe os traços, sempre com o mesmo resultado, outros
eminentes investigadores, como o Sr. Oxon, professor da
Universidade de Oxford, o jurisconsulto Sergeant Cox, os Drs.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
76
Chambers e James Gully, autor da Nevropatia e Nevrose, e por
último esse ilustre, entre os mais ilustres, professor William
Crookes, cuja recente promessa de recomeçar em breve as
investigações espíritas vale por uma nova afirmação da
importância que nelas justamente reconhece.
Na Alemanha não foi menor a aceitação que encontraram
a Doutrina e os fenômenos espíritas, quer da parte do público em
geral, quer da dos seus mais eminentes cientistas. Que o digam
os professores Zõllner, Friese, Weber, Fechner, e Ulrici, etc.,
todos rendidos à evidência das manifestações, e hoje cultores
decididos da moderna filosofia espiritualista.
Os trabalhos populares de organização propagandista se
acham representados em dezenas de associações,
poderosamente secundadas pelas revistas doutrinárias,
igualmente mencionadas, com as dos outros países, na
Estatística com que completamos estas notas.
O mesmo cumpre dizer em relação à Itália, Bélgica, Suiça,
com a sua Sociedade de Estudos Psíquicos e a Aliança Espírita,
de Genebra, e os excelentes livros de Daniel Metzger e Luiz
Gardy, a Suécia e Noruega, a Áustria- Hungria, a Holanda, a
Sérvia e a própria Rússia, com os seus centros de investigação
em S. Petersburgo, Kiev e Moscou, e ainda recentemente com a
criação de um círculo de experiências em Tiflis, no Cáucaso.
Por toda a parte a idéia penetrou, aliciando cultores,
disciplinando esforços em torno da sua divulgação, e dando
origem a uma literatura que será dentro em pouco tempo um dos
mais eloqüentes testemunhos da sua universalização.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
77
E como se as fronteiras da Europa fossem insuficientes
para contê-la invadiu a Austrália, e até na própria Turquia já fez
irrupção, com a fundação de um grupo criado em 1903 para a
observação dos fenômenos. E quem sabe que incremento já não
terá adquirido?
É um fato realmente único na história, esse de em tão curto
lapso de tempo generalizar-se por tal modo singularmente
rápido, em todas as regiões do mundo, uma Doutrina que, só por
essa circunstância, revela o cunho de verdade que constitui os
seus fundamentos e torna incoercível a sua força expansionista.
— Voltemos, agora, novamente ao continente americano.
Na América Central não é menos intenso o movimento de
vulgarização, acerca de cujo início, todavia, nos escasseiam
infelizmente os dados. Da sua atividade atual, porém, pode-se
fazer uma idéia, quer pelo número de jornais que lá se publicam,
quer pelas notas que possuímos relativamente à criação de
grupos no ano passado.
Aqui é o México, ao qual uma estatística recente atribuía a
existência de 60 agremiações e 63.122 espíritas. Possui três
jornais, e em 1903 aquele número de associações foi enriquecido
de mais uma.
Cuba, além das suas três revistas, registrou em 1903 a
formação de 9 grupos, a que se vieram acrescentar mais dois no
primeiro semestre deste ano.
No referido período figuram ainda:
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
78
Porto Rico, com 7 grupos, além da Federação dos Espíritas
de Porto Rico, e mais um novo grupo neste ano;
Nicarágua, com um grupo mais, também neste ano,
convindo igualmente mencionar a fundação da revista Fiat Lux,
em Leon.
A imprensa espírita dessa parte do continente acha-se
representada por um total de 11 revistas, todas de um cunho
acentuadamente doutrinário.
Se, dessa parte passamos à meridional, vemos a
República Argentina figurar nas estatísticas com 48 sociedades
das quais 16 na capital e 32 nas províncias e cidades do interior.
Nela se fundaram mais de 8 associações em 1903 e duas no
primeiro semestre deste ano.
A sua imprensa consta de 4 revistas, cujos nomes vão no
lugar próprio.
O Chile não apresenta tão lisonjeiro movimento, mas nem
por isso a idéia tem cessado de lá caminhar com segurança,
alargando, lenta, mas continuamente, o círculo de sua irradiação
de mais duas, uma em 1903 e outra neste ano.
A sua revista A d’onde vamos é um excelente repositório
de ensinamentos doutrinários.
No momento presente, em que o Espiritismo deve ser
considerado ainda em seus primórdios, e quando os trabalhos de
organização constituem antes ensaios que uma obra
positivamente metodizada, não nos foi possível, com os
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
79
escassos elementos de que dispusemos, reunir dados mais
completos e precisos. O que aí fica, todavia, buscará para
demonstrar que não é uma mera figura dizer- se que a Doutrina
Espírita, como um imenso rastilho, se propagou por todos os
pontos do mundo civilizado... e mesmo além. Ora em meio
propício, ora em terreno refratário, ela surge, esboça-se, vai se
afirmando; caminha ao lado dos fenômenos, que por toda parte
se produzem, e se é obrigada a retrair-se ou ficar estacionária
em um lugar, não tarda a aparecer em outro com redobrado
vigor, para percorrer de novo o mesmo ciclo, até que tenha
completamente triunfado de todos os obstáculos, que serão
inutilmente opostos à sua marcha.
Vimos como nas três Américas a sua invasão se vai
irresistivelmente produzindo. Vejamos agora como se tem
comportado em nosso país.
III – O Espiritismo no Brasil10
Em um relatório acerca da situação do Espiritismo no
10 Ao deliberarmos fazer a presente publicação, e no intuito de obter apontamentos tão minuciosos e completos quanto possível acerca do movimento espirita em nosso país, tivemos o cuidado de dirigir circulares aos espíritas mais em evidência em todos os Estados da República, solicitando-lhes a indicação: a) da data das primeiras manifestações; b) dos primeiros, bem como dos atuais, trabalhos de organização, compreendendo a instituição de centros e grupos e a fundação de jornais e revistas com a respectiva tiragem; c) de uma estimativa do número de adeptos — além de quaisquer outros dados complementares.
Acolhido embora por todos com cativante solicitude esse pedido, devemos, todavia, confessar que o resultado não correspondeu inteiramente a nossa expectativa, sendo em grande parte deficientes as notas enviadas. Daí as lacunas de que, involuntariamente por nossa parte e pela dos que se esforçaram por nos auxiliar com boa vontade e de um modo completo, se ressente esta publicação, que assim ficará reduzida às proporções de um esboço, a completar mais tarde com outros apontamentos que ora não foi
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
80
Brasil, enviado pela Federação Espírita Brasileira ao Congresso
Espírita e Espiritualista reunido em 1900, em Paris, foi assinalado
o Estado, então província, da Bahia como berço da Doutrina
entre nós, graças à criação, em 1865, do Grupo Familiar do
Espiritismo, composto, no dizer dos seus próprios fundadores, de
“poucos, bem poucos homens, mas de firme convicção e fé
inabalável, que, adotando as salutares doutrinas do Espiritismo,
trabalharam e combateram durante 8 anos”, quando adotou o
grupo a denominação Associação Espírita Brasileira, com que
pouco tempo mais durou.
Foi efetivamente esse o primeiro ensaio de organização da
nascente Doutrina nesta formosa Terra do Cruzeiro. Informações
recentes, entretanto, vindas do Ceará, firmadas por um
venerando cultor da nova ciência, o Sr. Catão F. da Cunha
Mamede, fazem remontar muito mais longe, não a data da
primeira organização, que continua legitimamente a pertencer à
cidade de S. Salvador, mas a das primeiras experimentações
tentadas entre nós.
Assim, vimos a saber que já em 1853, isto é, ao mesmo
tempo que na França, onde no ano seguinte deviam atrair a
atenção de Allan Kardec, se faziam na capital do Ceará as
experiências das mesas girantes, que constituíam, como nos
salões de Paris, o entretenimento de quase todas as famílias.
A moda passou, como ali teria passado sem mais
conseqüências, se não fosse a intervenção providencial do
possível reunir.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
81
clarividente missionário, e se, por outro lado, não houvesse
soado a hora da Nova Revelação, a que serviram de início essas
rudimentares experimentações. Mas não é menos digna de nota
essa coincidência, que coloca o nosso país ao lado da França e
outros lugares, na fixação do momento histórico das primeiras
observações espíritas, por meio das tradicionais mesas girantes.
Passaram, entretanto, da moda no Ceará esses ensaios
isolados, e assim, quebrado o fio da sua ligação com outros
sucessos posteriores, que lá deviam surgir anos mais tarde,
assinalando a continuidade do movimento, graças à leitura das
obras de Allan Kardec e a fundação de um grupo devido à
iniciativa de Luiz de França Almeida e Sá, há pouco falecido, —
quebrado esse fio — dizíamos — vamos encontrar, somente em
1865, organizando-se efetivamente pela primeira vez a Doutrina
na Bahia, em cuja capital soltou em tais condições o seu primeiro
vagido.
Foi igualmente aí que, em 1869, apareceu o primeiro jornal
espírita, denominado O Eco de Além-Túmulo, sob a direção do
Dr. Luiz Olímpio Telles de Menezes, membro do Instituto
Histórico da Bahia e um dos primeiros intrépidos campeões da
nova idéia.
Esse jornal trazia como subtítulo “Monitor do Espiritismo no
Brasil”, continha 56 páginas e aparecia bimestralmente, tendo
sido, entretanto, efêmera a sua existência.
A essa tentativa seguiu-se um silêncio de quatro anos,
quando então a 09 de outubro de 1873, fundou-se nesta capital
o “Grupo Espírita Confúcio”, o primeiro aqui formado, e que ao
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
82
fim de dois anos e meio se desorganizou, por desacordo entre
seus membros, para ceder o lugar à “Sociedade de Estudos
Espíritas Deus, — Cristo — Caridade”; constituída a 26 de abril
de 1876.
A partir daí não mais devia cessar o movimento, que, ao
contrário, sempre em um crescendo animador, e à parte
inevitáveis hesitações e alguns insucessos parciais, estava
destinado a caminhar de afirmação em afirmação até ao estado
atual, caracterizado pelo mais lisonjeiro incremento. E ora aqui,
ora nos Estados, sucedia-se a fundação de revistas e a criação
de grupos, podendo-se quanto àquelas fazer uma idéia pela
seguinte escala cronológica:
Em 1875 publicava-se nesta capital a Revista Espírita do
Rio de Janeiro; em 1881 a Revista da Sociedade Deus, Cristo e
Caridade e O Espiritismo, além de A Cruz, em Pernambuco, e
União e Crença, em São Paulo; em 1882, o Renovador, ainda
nesta capital.
Em 1883 era fundado, por iniciativa de Augusto Elias da
Silva — um dos denodados trabalhadores da primeira hora — o
Reformador, que no ano seguinte passou a ser órgão da
Federação Espírita Brasileira, criada a 02 de janeiro de 1884.
Seguem-se, ainda, pelas datas da respectiva fundação: em
1885, a revista Século XX, em Campos, no estado do Rio; em
1886, em São Paulo, o Espiritualismo Experimental; em 1890, A
Nova Era e O Regenerador, nesta cidade ; Regenerador, no
Pará; Verdade e Luz, em São Paulo; Revista Espírita e A Luz,
em Curitiba, Paraná; em 1892, A Evolução, no Rio Grande do
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
83
Sul; em 1893, O Farol, em Paranaguá, estado do Paraná; em
1894, A Voz Espírita, em Porto Alegre; A Verdade, em Mato
Grosso; Perdão, Amor e Caridade, na Franca, São Paulo e A Fé
Espírita em Paranaguá; em 1895, a Revista Espírita, na Bahia;
Eco da Verdade, em Porto Alegre, e A União, em Maceió, em
1896; A Religião Espírita, nesta capital, e Voz da Verdade, em
Paranaguá; em 1898, a Revista Espírita, em Porto Alegre; em
1899, O Guia, no Recife; em 1900, A Regeneração, no Rio
Grande; O Espírita Alagoano, em Maceió e A Doutrina, em
Curitiba.
Até 1900 tinham, pois, sido fundados no Brasil 31 jornais
espíritas, aos quais nestes últimos anos se vieram acrescentar
mais doze, na seguinte ordem:
Em 1901, o Mensageiro, fundado em Manaus, e A Ciência,
em Maceió; em 1902, a Fraternização, nesta capital; A Cruz, na
cidade de Amarante, Estado do Piauí, e Doutrina de Jesus, em
Maranguape, Ceará; em 1903, Luz e Fé e Sofia, no Pará; A Nova
Revelação, em São Paulo, e O Allan Kardec, em Cataguazes,
Minas Gerais; e finalmente, em 1904, A Verdade, em Palmares,
Pernambuco, A Semana, no Recife, e O Alvião, em São Paulo.
Desses jornais apenas existem atualmente os que constam
da Estatística que adiante publicamos, em número de 19, dos
quais alguns com a publicação temporariamente interrompida.
Quanto às associações regularmente organizadas, é difícil,
senão impossível, fixar com precisão o número, mesmo das que
funcionam nesta capital. Recordaremos apenas, como um eco
da representação que, segundo já aludimos, enviou a Paris, em
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
84
1900; a Federação Espírita Brasileira, que o seu relatório foi
prestigiado com a adesão expressa de 79 sociedades11, não
incluindo, por conseguinte, nesse número aquelas que, a esse
tempo existentes, não tiveram conhecimento desse documento,
ou que, por qualquer outra circunstância, o não puderam
subscrever.
Esse número deve hoje ter pelo menos duplicado, o que
não é exagero calcular, tendo-se em vista que só dos
apontamentos habitualmente publicados pelo Reformador, em
seu "Movimento Espírita Universal” a partir de janeiro de 1903,
até o primeiro semestre deste ano, isto é, em um período de 18
meses, consta haverem sido organizados no Brasil 34 grupos,
assim distribuídos:
Em 1903: nesta capital (Rio de Janeiro), 1 grupo; no
Maranhão 1; em Pernambuco (Palmares, Vitória e Quipapá), 3;
em Alagoas 3; na Bahia, 1; no Estado do Rio 1; em S. Paulo 4;
no Paraná 2; no Rio Grande do Sul, 2; e em Minas Gerais 3; ou
um total de 21 novas agremiações.
No primeiro semestre deste ano fundaram-se: nesta capital
(Rio de Janeiro) 2; no Amazonas, a Federação Espírita
Amazonense; na Bahia 1 grupo; no estado do Rio 2; em S. Paulo
1; em Minas Gerais 3 no Rio Grande do Sul 1; e em Mato Grosso
2. Total 13.
11 Dessas sociedades existiam então treze nesta capital, sem contar os inúmeros círculos familiares que se têm ido, até hoje, constantemente instituindo, para estudo e observação dos fenômenos espíritas.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
85
Estes dados recentes, que autorizam a estimar pelo menos
o número de associações espíritas no nosso país em 160
aproximadamente, permitem aquilatar da atividade com que se
vai desdobrando em seu imenso território a propaganda da nova
Doutrina.
Mas é, sobretudo, nesta capital (Rio de Janeiro), que o
movimento se acentua de modo a alarmar, por um lado, os seus
gratuitos adversários, e por outro a encher do mais justo
contentamento o coração dos seus adeptos, legitimamente
alvoroçados diante dos seus repetidos sucessos.
De perseguidos e ridicularizados, que eram no começo,
passaram os espíritas, salvo limitadas exceções, a ser alvo do
respeito e do acatamento geral às suas convicções. Esse
resultado é principalmente devido às curas espirituais,
produzidas, a exemplo do que faziam os primeiros apóstolos do
Cristianismo, com o concurso dos médiuns curadores e
receitistas — instrumentos de que se serve a Providência para
testemunhar a benéfica influência dos Espíritos esclarecidos
junto aos seus irmãos da Terra.
Não se tratasse de um documento histórico, e omitiríamos,
por justificado escrúpulo, um detalhe, por assim dizer, pessoal à
Federação Espírita Brasileira. Aquela circunstância, porém, nos
induz a mencionar aqui, a propósito de tais curas, que tendo sido
de 48.309 o número de receitas fornecidas em 1903 pelo seu
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
86
gabinete mediúnico receitista12, calcula-se terem atingido elas a
quase outro tanto só no primeiro semestre deste ano.
Ao mesmo título de informação histórica, cumpre
acrescentar que a Federação, além do seu órgão doutrinário, o
Reformador, mantido há vinte e dois anos, tem hoje mais de 800
sócios, uma caixa de socorros, destinados à famílias pobres,
sem distinção de crenças, denominada "Assistência aos
Necessitados”, e uma biblioteca com cerca de 900 volumes,
franqueada ao público, mediante a qual procura completar a
instrução doutrinária que proporciona aos seus sócios e faculta
a todos quantos queiram freqüentar as suas sessões semanais
de estudo teórico da filosofia espírita.
Esse incremento adquirido pela Federação, que ainda há
poucos anos lutava com os mais sérios embaraços, não é senão
um reflexo do desenvolvimento adquirido pelo Espiritismo nesta
capital, em que os seus adeptos, ostensivos ou apenas
simpáticos, se contam por muitos milhares.
Pela sua situação geográfica e pela importância que lhe
vem desde o Império e se conserva na República, em virtude da
sua função como capital, esta cidade se tornou assim o centro
do movimento espírita no Brasil. Mas, sem mesmo ter esperado
que daqui partisse o impulso de organização, como se viu linhas
atrás, esse movimento tem irradiado em todos os sentidos,
levando as mais afastadas paragens do nosso vastíssimo
12 Os medicamentos homeopáticos são, como as receitas, gratuitamente fornecidos a todos que os solicitam.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
87
território as alviçaras consoladoras do ensino dos Espíritos.
Como prova deste asserto, para completar estes
apontamentos, eis aqui, por ordem geográfica, mais algumas
informações, sem dúvida incompletas, mas as únicas que por
agora foi possível obter, acerca do desenvolvimento e da
situação atual da Doutrina, nos Estados do norte ao sul:
• Amazonas — É incipiente o movimento, indo pouco
mais além da capital, devido isso porventura à intensidade da
vida industrial que ali absorve os espíritos. Ainda assim, só em
Manaus contavam-se, em 1903, doze associações. Com a
criação da Federação Espírita Amazonense, em 10 de janeiro
deste ano, é de crer, entretanto, que se opere uma concentração
de elementos e, em conseqüência, uma difusão maior. Possui
um jornal muito bem feito, o Mensageiro, cuja publicação foi
interrompida em conseqüência do incêndio ocorrido na tipografia
do Quo Vadis? Em que se imprimia, tendo sido destruído o seu
arquivo.
• Pará — A propaganda na capital segue lentamente o
seu curso. A tentativa, porém, feita por um moço de boa vontade,
o Sr. Arthunio Vieira, no sentido de a encaminhar na imprensa
doutrinária, fundando sucessivamente, no ano passado, o
Sophia e a Luz e Fé, não parece ter sido bem sucedida, por isso
que a sua publicação se acha há algum tempo suspensa, embora
com promessa de ser recomeçada.
A crença espírita, em compensação, vai sempre se
generalizando e irradiando para o interior, onde já em 1886, na
Vila do Castanhal, se produziam as primeiras manifestações e
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
88
se tentava, aí e em Abaeté, alguma organização, com a criação
de alguns grupos regularmente constituídos.
• Maranhão — Não se tem limitado, também ai, à capital
a difusão espírita, caminha para as cidades do interior, e se ainda
não possui um órgão doutrinário, as obras espíritas, em todo o
caso, vão sendo regularmente lidas e preparando os espíritos
para uma próxima arregimentação.
Neste sentido cabe mencionar que na cidade de Carolina
se está formando um núcleo de crentes que, desde 1902, quando
lá se fizeram os primeiros ensaios, não tem cessado de
aumentar, e que atualmente se desdobra em duas associações,
cujos esforços começam a se tornar apreciáveis na propaganda
da Doutrina.
Além desses constituiu-se ainda recentemente na comarca
da Imperatriz um grupo espírita familiar, destinado à observação
dos fenômenos e estudo das teorias.
• Piauí — Na ausência de informações quanto à capital,
prende a atenção o fato significativo de já possuir a cidade de
Amarante a sua folha de propaganda, A cruz, que desde 1902
vai exercendo nobremente o seu mister. E se pode por
presunção fornecer dados à História, não será arriscado
aventurar que, antes de lá chegar, a idéia espírita terá circulado
na própria cidade de Teresina13. Não tem, acontecido assim em
13Já se achavam escritas estas linhas, quando de Amarante nos chegaram informações confirmando esta conjectura. Por elas, com efeito, ficamos sabendo, e o consignamos aqui, que desde 1896 se iniciaram, posto que sem duradouro sucesso, os trabalhos de organização, com a fundação de grupos na capital do estado, criando-se em seguida outros nas cidades de Parnaíba,
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
89
todos os Estados?
• Ceará — Depois das já aludidas experiências de 1853
com as mesas girantes, parece, à vista das informações
recentemente colhidas, que só de 1876 para cá tomou o
Espiritismo a ser objeto da atenção pública. Mas, infelizmente,
um caso de obsessão a que deu lugar, e que se tornou célebre
por sua extensa notoriedade, veio a prejudicar a marcha da
doutrina e as simpatias que doutra sorte teria conquistado.
Não é de estranhar esse resultado, em uma terra pequena;
mas, fruto não somente da ignorância dos preceitos doutrinários,
como da imprudência nas experimentações, deve por de
sobreaviso todos quanto se exponham à exploração desse
domínio, que requer muito critério e prudência, além do preparo
teórico indispensável para ser empreendida, sem que ofereça o
menor risco. E é o que, em tal caso, se dá.
Foram depois disso, não obstante, tentados alguns
trabalhos de organização, por iniciativa do ativo propagandista já
citado, mas atualmente a doutrina se acha estacionária na
capital. Não adormeceu ai, porém, senão para surgir vivaz na
Floriano e Regeneração, bem como na povoação de S. Pedro.
O grupo, todavia, mais importante, pela natureza dos seus trabalhos, contando embora um reduzido número de sócios, é o Fé, Esperança e Caridade, de Amarante, de que é o órgão o jornal A Cruz, e que mantém uma biblioteca modesta, mas escolhida, organização, com a fundação de grupos na capital do estado, criando-se em seguida outros nas cidades de Parnaiba, Floriano e Regeneração, bem como na povoação de S. Pedro.
O grupo, todavia, mais importante, pela natureza dos seus trabalhos, contando embora um reduzido número de sócios, é o Fé, Esperança e Caridade, de Amarante, de que é o órgão o jornal A Cruz, e que mantém uma biblioteca modesta, mas escolhida.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
90
cidade de Maranguape, onde, apesar da oposição que lhe move
o clero romano, conta desde 1902 uma folha de propaganda
denominada Doutrina de Jesus, além de um grupo regularmente
constituído.
• Rio Grande do Norte — Foi em 1867, no palácio da
presidência da então província, que pela primeira vez aí se falou
no Espiritismo. Exercia o cargo a esse tempo o Dr. Gustavo
Adolfo de Sá, médico, que se entretinha em palestra com seus
amigos sobre o assunto, como um eco das investigações que se
faziam na Bahia e de que tivera conhecimento.
Mas foi somente em 1873 que se fizeram as primeiras
experiências, por ocasião da ida ao Natal de uma companhia
dramática, dirigida por um Sr. Bastos, cuja esposa, D. Isabel
Bastos, servia como médium.
Obtiveram-se, entre os fenômenos, algumas
comunicações interessantes, e “daí por diante — diz o nosso
informante — o Espiritismo se propagou em toda a capital,
percorreu todas as cidades, vilas e povoações, e os grupos se
formavam como um meio de experimentação”.
Em 1875, ao mesmo tempo que o capitão Joaquim Lourival
de Melio Açucena organizava um círculo de iniciação com os
mais sérios intuitos, que lhe trouxeram um rápido e justificado
prestígio, um grupo de moços inteligentes e dedicados fundava
um jornal de propaganda intitulado O Espírita, que foi durante
algum tempo uma elevada tribuna de que a nova idéia irradiava
sobre as massas.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
91
O uso das mesas girantes foi também aí introduzido, mas
só em 1885, por um ilustrado médico, ainda hoje vivo, não
tardando a ser adotado pelas principais famílias, e vindo a
desaparecer mais tarde, com o que nada perdeu a Doutrina, pelo
cunho de trivialidade que sempre revestem as experiências por
esse meio.
Continuaram depois disso, com intermitências, as
observações, sem apreciável alcance, até que a 27 de novembro
de 1892, por iniciativa do conceituado livreiro Sr. Fortunato
Rufino Aranha, e com o concurso do capitão Augusto César Leite
e dos Srs. José Garcia Netto e Francisco X. Pereira Guarim,
funcionário público, além de outros crentes hoje falecidos, se
constituiu a Sociedade Natalense de Estudos Espíritas, que,
todavia, não logrou prolongada existência.
Dispersos esses elementos de organização, não cessou,
contudo, a idéia de fazer caminho nos espíritos, aliciando
adeptos em todas as classes sociais, de sorte que atualmente —
resam ainda as informações que obtivemos —“é fora de dúvida
que em qualquer roda em que se converse sobre o Espiritismo,
bem poucas são as pessoas que não crêem nele”.
Para esse resultado, e cessado aquele elemento de ação,
muito tem contribuído a publicação das obras doutrinárias, ali
muito bem aceitas, e a divulgação de artigos de propaganda na
imprensa periódica.
A idéia, pois vai fazendo o seu rumo com lentidão, mas com
segurança ao mesmo tempo, propagando-se também um pouco
pelo interior.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
92
• Pernambuco — Há na capital do importante Estado do
norte uma corrente de propaganda que se vem lentamente
acentuando, posto que sem uniformidade, de vinte e cinco anos
para cá. O núcleo dos adeptos é extenso, faltando-lhe apenas
coesão e unidade de vistas. De vez em quando se formam
agremiações, que estudam, experimentam, fundam revistas e
dissolvem-se em seguida, para voltar de novo a arregimentar-se
e trabalhar, até que um sopro de desânimo as torne a dispersar.
Mas apesar dessas oscilações no que respeita à
organização, o certo é que a Doutrina se torna cada dia mais
conhecida, aliciando os seus adeptos ora nas classes
esclarecidas, ora nas mais obscuras da sociedade. E por outro
lado vai estendendo as suas ramificações pelo interior, desde a
cidade de Jaboatão, até aos sertões além de Caruaru e Quipapá.
Possui dois jornais: A Semana, revista de “ciências e letras”, mas
com intuitos visivelmente doutrinários e propagandistas,
publicada no Recife, e A Verdade, na cidade de Palmares.
• Alagoas — As notas que possuímos acerca deste
estado não alcançam um período anterior a 1896. Desse ano,
porém, a 1902 — acusam essas notas — “a idéia propagou-se e
ocupou a atenção geral, principalmente em Maceió, onde se
fundaram alguns grupos, não tardando que o mesmo
acontecesse em vários pontos do estado”.
Assim, as agremiações fundadas na capital, e das quais só
existem atualmente o Centro Espírita Mello Maia (outrora Centro
Espírita Alagoano) e o Grupo S. Vicente de Paulo, além de
alguns círculos íntimos, foi sucedendo a criação de outros em
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
93
viçosa. S. José da Lage, Camaragibe, S. Luiz do Quitunde,
Atalaia, Pilar, Coruripe, Penedo, e mesmo além, na zona do
sertão, embora sujeitos às mesmas alternativas e eclipses a que
não escapam as idéias novas no seu primeiro período de
organização.
Como em outros lugares, o desfalecimento entibia por
algum tempo os seus adeptos; mas a Doutrina está ai, dilatando
como um rastilho, ora oculto, ora visível, a sua ação, e
preparando os Espíritos para a sua aceitação completa e
definitiva.
Na capital, a propaganda impressa continua a ser feita
pelos dois jornais, O Espírita Alagoano e A Ciência, o primeiro
transitoriamente suspenso, por dificuldades de momento.
Uma outra feição que aí começa, em boa hora, a revestir a
propaganda é a das curas espíritas, tentadas com lisonjeiro êxito
por um digno magistrado, o Dr. Alfredo Odilon, redator de A
Ciência, cuja desassombrada atitude é um título de
enobrecimento para o seu Espírito. Oxalá o imitem outros nesse
caminho de tão fecundos benefícios.
• Sergipe — Pouco extenso, mas, em compensação,
brilhante pela qualidade é o número dos adeptos no pequeno
estado do norte, a julgar pelas notas que em tal sentido
possuímos, sendo nos círculos das letras e da ciência que tem
conquistado a Doutrina as melhores dedicações.
Como ensaios de organização existem alguns grupos em
Aracaju, nos quais se observam os fenômenos e se estudam as
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
94
teorias que os esclarecem e explicam. A idéia se tem, além disso,
divulgado pelo interior, aliciando cultores em Maroim, Rosário,
Riachuelo, Divina Pastora, Nossa Senhora das Dores, etc., não
obstante a oposição que lhe movem alguns, particularmente o
clero romano, ali, como por toda a parte, alarmando com os
constantes progressos da nova e consoladora filosofia.
Que não será dentro de algum tempo mais?
• Bahia — O berço tradicional do Espiritismo no Brasil
não se mostra resolvido a desmentir o seu passado, mas ao
contrário a manter alto e firme o estandarte da nova filosofia, que
lá foi pela primeira vez erguido em terras do Brasil.
É assim que, enquanto na capital a propaganda vai sendo
ativamente sustentada pelo antigo centro religião e Ciência, hoje
Centro Espírita da Bahia, em tomo do qual gravitam várias
associações subsidiárias, e a Doutrina é pregada nas colunas do
seu órgão, a Revista Espírita, e em conferências públicas, novos
focos de irradiação vão sendo sucessivamente criados pelas
cidades do interior e abrangendo por esse modo todo o seu vasto
território.
Na impossibilidade de mencionar detalhadamente todos os
trabalhos neste sentido empreendidos, limitar-nos-emos a citar
as cidades de Cachoeira, Amargosa, juazeiro, Belmonte,
Conquista, Itacaranha, etc., como hospitaleiros asilos desta nova
cruzada, cujos servidores — e dos mais dedicados — lá se
contam por milhares.
No que respeita à capital, poderíamos citar uma boa dúzia
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
95
de nomes ilustres nas letras, no jornalismo e na ciência que lhe
têm prestado o seu ostensivo e desassombrado concurso. Que
valeriam, porém, os nomes, mesmo de maior prestígio, diante da
excelência e superioridade da idéia, que por si mesma se impõe?
Continuaremos, pois, o nosso itinerário.
• Espírito Santo - Pequeno como o seu próprio teritório,
tem sido aí o movimento espírita, nada nos constando em
relação à capital, onde é de crer que os cultores da Doutrina não
se tenham ainda suficientemente preparado para fazer
publicamente uma demonstração das suas crenças. Outro tanto,
porém, já se não dá no interior, onde, como na vila do Alegre e
na estação do mesmo nome, alguns estudiosos se têm reunido
em agremiações, promovendo a difusão espírita, quer no seio
dessas coletividades e mesmo fora, quer nas colunas dos jornais
profanos.
É apenas um esboço inicial. Mas qual é o organismo que
não começa por uma imperceptível célula?
• Rio de Janeiro — Diferentemente é o que sucede no
futuroso Estado em cuja zona, que a limita, se acha encravada a
nossa capital. aí o trabalho de organização acusa uma atividade
digna de nota, já em Niterói, onde só em 1900 se contavam 13
grupos, sendo de 23 o número conhecido dos existentes no
Estado, já nas mais importantes como nas mais modestas
cidades do interior.
Barra do Piraí, Campos, S. Fidélis, Vassouras, Friburgo,
Entre Rios, Macaé, Barra Mansa, Belém, Miracema, Sapucaia,
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
96
Macacos, Três Irmãos, Paty, e outras localidades, oferecem o
espetáculo da criação constante de agremiações
arregimentadas e laboriosas, que são outros tantos núcleos de
ação e de irradiação da Doutrina, cuja sementeira parece ter ali
encontrado o mais propício dos terrenos.
Dentre essas cidades sobressaem, como das mais ativas
na propaganda, as de Barra do Piraí, Vassouras e Campos, em
que o movimento se concentra de modo lisonjeiro. À sua frente
acha-se, na primeira, o Grupo Filhos da Verdade, com a sua
biblioteca, as suas sessões de estudo e as conferências
doutrinárias, e na última a Sociedade Espírita Concórdia,
fundada em 19 de fevereiro de 1883, e na qual veio a fusionar-
se a Sociedade Campista de Estudos Espíritas, que desde 1880,
com os seus três círculos criados no ano seguinte, vinha
sustentando a propaganda.
Porque datam daí os primeiros trabalhos de organização
na importante cidade fluminense, segundo rezam as notas que
nos foram gentilmente fornecidas e conservamos em arquivo,
mas que não é possível reproduzir em todos os seus detalhes,
de que por isso aproveitamos apenas o que contém de mais
essencial e interessante.
Por elas sabemos que as primeiras manifestações ali
tiveram lugar em 1879, surgindo inesperadamente em uma série
de experiências de sonambulismo magnético, em que o
sensitivo, Benedicto Franco, mergulhado em transe, terminou por
denunciar a intervenção de um Espírito, organizando-se então a
24 de novembro daquele ano a primeira das sessões que se
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
97
foram depois regularmente sucedendo.
No ano seguinte fundava-se, a 06 de agosto, a Sociedade
C. de Estudos Espíritas, tendo como instaladores os Srs.
Tenente Marcolino Sudário do Amaral, Francisco Maria Teixeira
de Queiroz, Domingos José de Castro, Cipriano Maria de Castro
Leão, Francisco José Rodrigues de Carvalho, Luiz Rodrigues
Malheiros do Prado, Salvador José de Faria, Arthur Cândido de
Azevedo e Dr. José Manuel Carlos de Gusmão, aos quais viriam
juntar-se dentro de algum tempo os Srs. Júlio Feydit, João
Barreto, F. Paula Carneiro, Múcio da Paixão e outros que
atualmente formam a guarda avançada da Sociedade Espírita
Concórdia.
Dado o impulso, não devia daí por diante esmoerecer ante
nenhum obstáculo. E assim, ora na tribuna doutrinária, ora na
imprensa, pela fundação do Século XX, a 13 de abril de 1885,
embora fosse apenas de alguns meses a sua efêmera duração,
era o Espiritismo chamado a caminhar vitoriosamente no espírito
público em Campos, de modo a concentrar hoje “todas as
atividades capazes de compreender os grandiosos problemas da
fé”, no expressivo dizer do nosso informante.
“Preparamo-nos — acrescenta ele — para uma nova vida,
e atravessamos um período de franca atividade. Por toda a
cidade estão espalhados grupos espíritas, funcionando em casas
de famílias — é esse o meio por que se está fazendo a
propaganda — propondo-se por outro lado, e dentro em breves
dias, a Sociedade Espírita Concórdia a criar escolas noturnas,
uma biblioteca, um quinzenário de distribuição gratuita,
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
98
conferências, etc.”.
Consignemos, como derradeira nota, que o número dos
crentes na referida cidade é avaliado em cerca de 500, sendo
calculado no triplo o dos que apenas simpatizam com a Doutrina.
Na ausência de mais completas informações acerca do
movimento em todo o estado, o que aí fica não parece ser de
pequena significação.
• São Paulo — Três jornais na capital, o Verdade e Luz,
A Nova Revelação, órgão do Centro Espírita de São Paulo, e O
Alvião, representando embora este último apenas um esforço de
boa vontade, parece denunciarem suficientemente, ao lado da
criação repetida de agremiações, a força e o prestígio
conquistados em poucos anos pela Doutrina no vizinho estado.
Como no do Rio, a propaganda se tem feito rapidamente
por quase todas as cidades do interior, destacando-se as de
Santos, Campinas, Amparo, Franca, Mogi- Mirim, S. Roque, S.
Simão, Jaú, Barretos, Iguape, S. Manoel, etc., em algumas das
quais a nova cruzada se apresenta com uma sólida e esclarecida
organização, não sendo de menor valor nas demais os trabalhos
em tal sentido empreendidos.
E se nos escasseiam os detalhes desse movimento geral,
não é por isso menos certo que, por onde quer que vai sendo
lançada a semente, o terreno se revela preparado para a sua
ótima fecundação.
Na capital contam-se por alguns milhares os adeptos, e o
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
99
mais antigo dos órgãos doutrinários, o Verdade e Luz, que lá se
publica desde 1890, graças aos esforços do infatigável
combatente Antônio Gonçalves da Silva Batuira, atesta nesse
ininterrupto período de 15 anos de publicação, e com a sua
tiragem de 11.000 exemplares, a aceitação que a idéia ali tem
encontrado.
• Paraná — Das três associações cuja existência era,
em 1900, conhecida na capital, sobressai visivelmente hoje a
Federação Espírita do Paraná, fundada posteriormente, com
intuitos de arregimentação perfeitamente definidos, e que já vão
produzindo apreciáveis resultados.
Datam, todavia, de muito antes as tentativas de
organização doutrinária no estado, cabendo mencionar, no
domínio da imprensa, a fundação d’A Luz, em 1890, atualmente
substituída em sua função divulgadora pel’A Doutrina, órgão da
mencionada Federação.
Da capital o movimento se tem, como em todos os Estados,
propagado pelo interior, entre outras, pelas cidades de
Paranaguá, Guarapuava e Palmeira, contando-se, só na primeira
delas, quatro grupos em ativo e regular funcionamento.
• Santa Catarina — Ainda não conseguiu criar e manter
um órgão doutrinário. O estudo e a propaganda se vão fazendo,
em todo o caso, por meio das agremiações, das quais a mais
importante é o Centro Espírita Caridade de Jesus, fundado há
muitos anos em S. Francisco, e mantido graças aos assíduos e
perseverantes cuidados de um modesto campeão, o Sr. Joaquim
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
100
Antônio de S. Tiago.
Mas na capital, e não somente ali, a Doutrina tem também
os seus apóstolos, cabendo mencionar ainda a cidade de Lages
como um centro de cultivo e de atividade propagandista.
• Rio Grande do Sul — A população riograndense
possui as qualidades irrequietas de caráter, próprias da raça
castelhana, de que participa, aparentemente, pelo contágio das
Repúblicas fronteiriças, de origem espanhola. As paixões ali são
vivazes e, algumas vezes, explosivas. Por isso em nenhum outro
lugar se faria, mais que lá, necessária a ampla divulgação das
consoladoras e serenas doutrinas do Espiritismo.
Assim também o parece haver entendido a Providência,
porque é com efeito o Rio Grande do Sul um dos estados em que
a Nova Revelação se tem mais rápida e profusamente difundido.
As cidades do Rio Grande, Pelotas, Alegrete, Soledade,
Cachoeira, etc., revelam uma intensa atividade propagandista e
doutrinária, mantendo a primeira há cinco anos, com lisonjeiro
sucesso, um órgão de combate, A Regeneração, e destacando-
se a segunda pelo número de seus grupos, que era de oito em
1900, e que, não obstante se acharem em geral mais ou menos
desorganizados, por acidentes passageiros, não deixam por isso
de representar elementos a que uma nova organização poderá
restituir a vitalidade aparentemente perdida. Porque, como muito
bem assinala o nosso obsequioso informante: “O
desaparecimento dos grupos não fez desaparecerem os
espíritas; e hoje já não se encara o Espiritismo com aquela
prevenção e má vontade que houve em seu começo, sendo em
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
101
grande número as pessoas que abraçam os ensinos da Doutrina
Espírita”.
Ai está, pois, um dos mais salutares efeitos da propaganda
organizada, pouco importando as flutuações a que nesse
particular tem sido exposta. Ao demais o Grupo Espírita Amor e
Deus, fundado em 1897, continua intrepidamente a sua obra,
tendo como um dos principais elementos de sua ação
vulgarizadora uma excelente biblioteca espírita, talvez a mais
importante do estado.
Nas cidades do litoral e do interior a propagação da
Doutrina segue, pois, com firmeza o seu curso. Mas é sobretudo
na capital que tem repercutido com intensidade maior. aí se
publica desde 1899 a Revista Espírita, órgão da Sociedade
Espírita Allan Kardec, e é ainda na sede desta importante
sociedade que se fazem os mais sérios estudos e se realizam,
por sua iniciativa, conferências doutrinárias, da maior utilidade
para esclarecimento e orientação dos crentes.
O certo é que, como naquela cidade, em Porto Alegre o
Espiritismo já conseguiu impor-se à aceitação, ou pelo menos, à
simpatia geral, vendo-se os seus adeptos cercados do respeito
devido às suas crenças, e tendo a satisfação de ver que a
imprensa periódica, quando deles se ocupa é com acatamento e
até com elogios que o faz, como aconteceu há alguns meses, a
propósito de uma controvérsia tribunícia, publicamente travada,
por ajuste prévio, com um ministro da seita protestante.
Nada mais é preciso, para significar a importância aos
olhos de todos, adquirida pela moderna Doutrina no adiantado
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
102
estado riograndense.
• Minas Gerais — A terra da Inconfidência e da
hospitalidade tem passado por ser o baluarte da fé católica, do
que se pode ter efetivamente um testemunho material no número
considerável de igrejas, disseminadas por todas as suas cidades,
importantes ou modestas. Esse cunho religioso dos seus
habitantes parece ser uma conseqüência da simplicidade dos
seus costumes e do recolhimento da sua vida pacífica, ao
mesmo tempo que laboriosa. Ultimamente, porém, o observador
atento, que se dê ao trabalho de sondar os ânimos, verificará em
muitos lugares que a antiga fé se acha singularmente arrefecida.
Esse fenômeno, para cuja produção concorrem causas que
mereceriam ser postas em relevo em um livro de crítica, e que
por isso omitiremos, seria alarmante para a estabilidade da moral
pública, derivada do sentimento religioso, das populações
mineiras, se para substituir as velhas crenças não verificasse o
historiador que um novo código começa ali a ser pregado, com
uma força de expansão que excede as mais otimistas previsões.
É o que está se dando com o Espiritismo, e deve-se
considerar um verdadeiro favor do céu que, ao mesmo passo que
a Igreja vai perdendo o seu prestígio sobre as almas, o vácuo em
que as deixa vá sendo preenchido pela nova Doutrina, que as
vem, no tempo próprio, revigorar e esclarecer. Assim, ao lado
desse visível declínio da fé católica, Minas oferece o mais
lisonjeiro espetáculo no que se refere à difusão da crença
espírita. E se na imprensa doutrinária se conta apenas um órgão
em Cataguazes O Allan Kardec, e esse mesmo com a sua
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
103
publicação interrompida há poucos meses, em compensação o
número de sociedades de estudo e propaganda é
verdadeiramente considerável em relação ao das suas principais
cidades.
Faltam-nos os dados acerca dos seus antecedentes
históricos, mas o que sabemos é que Belo Horizonte, Ouro Preto,
Juiz de Fora, Barbacena, e Sabará constituem animadores
núcleos de organização e proselitismo, quer pela sua importância
como localidades, quer pelo incremento doutrinário, que é dos
mais vivazes.
Não se limitou, porém, aí o movimento de renovação; longe
disso se propagou, conquistando adeptos por todo o interior, e
abrangendo os seguintes lugares: Uberaba, Monte Alegre,
Montes Claros, Palmira, Sítio, Porto Novo do Cunha,
Guaranesia, Itabira do Campo, Rio das Velhas, Lafaiete,
Cataguazes, Santa Clara do Carangola, Lavras, Ubá,
Matosinhos, Pomba, Jaguary, Varginha, Caratinga, Sapé de
Ubá, Sacramento, Conquista, Alto Rio Doce, S. João
Nepomuceno, S. Antônio de Ponte Nova, Perdões, Registro,
Carrancas, Cana Verde, Santa Helena, Bicas, Alfenas, Areado,
Coimbra, S. Sebastião do Paraíso, etc.
Em quase todas essas localidades existem grupos
regularmente constituídos, fazendo-se a propaganda por meio da
divulgação das obras e publicações espíritas, e merecendo igual
cuidado a experimentação fenomenal.
Em 1900 era de 13 o número das associações que aderiam
à Federação Espírita Brasileira, em seu relatório ao Congresso
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
104
Espírita de Paris. Depois disso foram criadas outras 17, sem
contar as de fundação recente, nos últimos 18 meses,
mencionadas no começo deste capítulo.
Pode-se, pois, dizer, à vista desse imponente movimento,
que, se Minas foi o baluarte tradicional da fé católica, será dentro
de algum tempo o mais importante núcleo do Espiritismo no
Brasil.
• Goiás — A Doutrina Espírita ainda não dispõe, na
capital deste estado, de um centro em torno do qual se
congreguem os adeptos que aí existem em grande número, da
mais elevada à mais obscura classe social, segundo informações
fidedignas e pessoais que em tal sentido obtivemos.
Tais elementos não aguardam senão a criação de um
núcleo dessa ordem para se organizarem em uma ação metódica
e vulgarizadora, tanto mais fácil de levar a efeito quanto a idéia
é geral e popularmente conhecida, e, como uma sorte de
trabalho preparatório, já tem sido tentada com êxito relativo a
fundação de círculos familiares de observação dos fenômenos.
Os livros espíritas são em geral conhecidos, não
concorrendo pouco — e em boa hora — a sua leitura para esse
amanho da terra em que a semente doutrinária terá de em pouco
tempo germinar e produzir fruto.
Se, entretanto, na capital a idéia, só há poucos anos
divulgada, aguarda o primeiro impulso de organização, o mesmo
já se não dá no interior, onde, como em outros estados, tem feito
o seu caminho.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
105
É assim que na cidade de Palma, ao norte do Estado, já
existe, pelo menos, um grupo regularmente constituído, não
sendo aí pequeno o número dos adeptos.
• Mato Grosso — A escassez de tempo para uma
demorada pesquisa e a lentidão das comunicações com o
longínquo Estado do sul nos privam de informações mais
completas que as que possuímos, e que nos habilitam
unicamente a consignar que em Cuiabá a Doutrina conta
numerosos adeptos, em via de imprimir-lhe uma estável e
decisiva organização, já existindo mais de um grupo em ativo
funcionamento. O mesmo se pode dizer de Corumbá e, em uma
certa medida, de algumas cidades do interior, onde o Espiritismo
começa a prender a atenção geral.
No Ladário os trabalhadores de organização prometem
entrar em via definitiva, contando-se ali os prosélitos entre os
mais esclarecidos membros das classes armadas e civis, que se
constituíram recentemente em uma das sociedades a que atrás
aludimos, na apreciação geral do movimento espírita entre nós.
Do exposto se verifica que, com exceção apenas da
Paraíba, de que nenhuma informação obtivemos por enquanto,
em todos os outros estados do Brasil o Espiritismo fez irrupção e
ganhou simpatias e adesões, em muitos conquistando
positivamente fóros de cidade. Na maioria deles já entrou no
período de organização propagandista; e naqueles em que ainda
não conseguiu organizar- se, está pelo menos latente em grande
número de Espíritos, aguardando apenas oportunidade para a
sua ostensiva demonstração.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
106
Em tão pouco número de anos, seria desarrazoado exigir
mais das suas forças. É um astro apenas surgido no levante, mas
que já esclarece milhares de consciências nesta parte do
planeta.
A julgar pela sua rápida ascensão, não é temerário vaticinar
que dentro deste século, porventura até ao seu meado, terá
alcançado a plenitude do zenith, iluminando toda a Terra.
Assim o queira Deus!
Estatística
Dos jornais e revistas espíritas que se publicam no mundo,
com as datas da respectiva fundação:
Portugal e Ilhas
1899 O Futuro, Açores;
1900 Revista Espírita, Porto.
Espanha
1865 Lumen, Tarrasa (Barcelona); La Irradiación, Madri; 1871 La Fraternidad Universal, Madri; La Revelación, Alicante; 1895 Revista de Estúdios Psicológicos de Barcelona;
1900 Luz y Union, Barcelona; 1903 Ecos de Ultra-tumba, Alicante; La Evolución, Barcelona; La Vida Futura, Gracia (Barcelona).
França
1858 La Revue Spirite, Paris;
1876 Les Temps Meilleurs, Nantes;
1881 La Lumière, Paris;
1890 Annales des Sciences Psychiques, Paris;
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
107
1891 La Paix Universelle, Lyon;
1892 La Tribune Psychique, Paris;
La Curiosité, Nice;
1894 Le Progrès Spirite, Paris;
1895 Revue Scientifique et Morale du Spiritisme, Paris;
L’Hyperchimie (atualmente Les Nouveaux Horizons
de Ia Science et de Ia Pensée), Douai;
La Résurrection, Saint-Raphael;
1896 L’lnitiation, Paris;
L’Echo du Merveilleux, Paris;
1897 L’Etincelle, Paris;
Revue du Monde Invisible, Paris;
1898 Le Spiritualisme Moderne, Paris;
1900 Moniteur des Etudes Psychiques, Paris;
Bulletin de Ia Sociét d’Etudes Psychiquesde Nancy,
Nancy;
1901 Revue d’Etudes Psychiques, Paris;
Bulletin de I’institut Général Psychologique, Paris;
Bulletin du Centre d’Etudes Psychiques, Marseille;
1902 La Vie Nouvelle et Philosophie de I’Avenir, Beauvais;
1903 Le Phare de I’Esperance Paris;
Le Monde Occulte, Paris;
Journal de I’Eglise de I’Avenir, Paris.
Itália
1901 Luce e Ombra, Milão.
Bélgica
1871 Le Messager, Liège;
1890 Le Médecin, Bruxelas;
1894 La Vie d’Outre-Tombe, Jumet-Gohyssard.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
108
Alemanha
1870 Psychique Studien, Leipzig;
1892 Die Uebersinnliche Welt, Berlim;
Spiritische Rundschau, Berlim;
1896 Zeitschriffür Spiritismus, Leipzig.
Inglaterra
1870 Light, Londres;
1890 Proocedings of the Society for Psychical Research,
Londres;
1900 The Spiritualist, Londres.
Áustria - Hungria
1867 La Gnose, Viena;
1900 Novo Sunce, Croácia.
Holanda
1896 Het Toekomstig Leven, Utrecht.
Suécia e Noruega
1885 Norgendoenrigen Mons, Skiew;
1903 Século XX, Estocolmo.
Sérvia
1900 Videlina, Sliven.
Rússia
1880 Rebres, S. Petersburgo;
1902 Dzwy Zycia, Varsóvia (Polonia).
Austrália
1871 The Harbinger of Light, Melbourne.
América do norte
The Banner of Light, Boston;
1865 The Philosophical Journal, S. Francisco;
1875 The Progressire Thinker; Chicago,
1885 Light of Truth, Cincinnati.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
109
México
1903 Alma, Guadalajara;
1904 Revista de Estúdios Psicológicos, Vera Cruz;
La Nueva Era, México.
Antilhas
1902 La Buena Nueva, Sancti-Spiritus (Cuba;
1903 El Iris de Paz, Santa Clara (Cuba;
Luz de la Verdad, Puerto Plata (Cuba);
El Iris de Paz, Mayaguez (Porto Rico);
La Luz., Porto Rico
1902 Luz de la Verdad, Samana (S. Domingos);
1902 Fiat Lux, (Leon) Nicarágua.
1903 La Nueva Luz (2a época), S. Salvador.
América do Sul
1877 Constância, (Buenos Aires) República Argentina.
1880 La Fraternidad, (Buenos Aires).
1903 La Voz dei Desierto, 2a época, (Buenos Aires),
República Argentina.
1903 El Pensamiento, (Salto) República Argentina.
A Donde Vamos, (Valparaiso), Chile.
Brasil
1865 Mensageiro*, Manaus (Amazonas).
1903 Luz e Fé*, Belém (Pará).
Sofia*, Belém (Pará).
1902 A Cruz, Amarante (Piauí).
Doutrina de Jesus, Maranguape (Ceará).
1904 A Semana (Ciências e Letras), Recife (Pernambuco).
A Verdade, Palmares, (Pernambuco).
1900 O Espírita Alagoano*, Maceió (Alagoas).
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
110
1901 A Ciência
1896 Revista Espírita, Salvador (Bahia).
1883 Reformador, Rio de Janeiro.
1902 Fraternização*.
1890 Verdade e Luz, São Paulo.
1903 A Nova Revelação,
1904 O Alvião*
1900 A Doutrina, Curitiba (Paraná).
1899 Revista Espírita, Porto Alegre (Rio Grande do Sul).
1900 A Regeneração,
1903 O Allan Kardec *14, Cataguazes (Minas Gerais).
Existem, pois, segundo os dados aqui mencionados, 96
jornais e revistas espíritas em todo o mundo, sendo: 56 na
Europa, 1 na Austrália, 4 nos Estados Unidos, 11 no México,
América Central e Antilhas, 5 em uma certa parte da América do
Sul e 19 no Brasil.
Nomenclatura
Dos principais cientistas que se têm ocupado com as
experimentações espíritas, ou que professam ostensivamente as
suas doutrinas:
Professor Charles Richet, da Academia de Medicina de
Paris;
Dr. Paul Gibier, antigo interno dos hospitais de Paris,
laureado pela Faculdade de Medicina, Diretor do Instituto
14 O sinal (*) indica estar a publicação temporariamente
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
111
Pasteur de New York (falecido em 1900);
Coronel Albert De Rochas, antigo Administrador da
Escola Politécnica de Paris;
Sabatier, Professor na Faculdade de Ciências de
Montpelier;
Camille Flammarion, o eminente Astrônomo;
Doutor Dariex, Diretor dos Annales Psychiques;
De Watteville, Doutor em Ciências;
Dr. Ségard, Chefe do corpo de saúde da Armada;
Drs. Baraduc, Moutin, Chazarin, Bonnet, Gyel, Dusard,
Edmonds Dupouy; William Crookes, da Sociedade Real de
Londres;
Alfred Russel Wallace, da Sociedade Real, Presidente da
Sociedade de Antropologia;
Oliver Lodge, da Sociedade Real de Londres, Reitor da
Universidade de Birminghan;
Hodgson, Professor de Psicologia na Universidade de
Cambrigde;
Frank Hales, Professor na Universidade de Cambrigde;
Frederic J. W. Myers, Professor na Universidade de
Cambrigde (falecido em 1903);
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
112
Challis, Professor na Universidade de Cambrigde;
Oxon, Professor agregado da Universidade de Oxford;
Augusto de Morgan, Presidente da Sociedade
Matemática de Londres e Secretário da Sociedade Real
Astronômica;
Cromwel Varley, da Sociedade Real, Engenheiro chefe
das linhas telegráficas inglesas e dos cabos transatlânticos;
Barkas, Presidente do Instituto Geológico de New-Castle;
Zõllner, Professor de Astronomia na Universidade de
Leipzig;
Fechner, Professor na Universidade de Leipzig;
Weber, Professor na Universidade de Leipzig;
Ulrici, célebre Professor;
Barão Carl Du Prel, Doutorem Filosofia;
Alexandre Aksakof, Conselheiro privado do czar Nicolau
II (falecido em 1903);
Wagner, Professor de Zoologia no Instituto Anatômico de
S. Petersburgo;
Doutor Butlerof, Professor de Química na Universidade
de S. Petersburgo;
Doutor Danilewski, Professor na Escola de Medicina de
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
113
S. Petersburgo;
Doutor Ochorowicz, Professor agregado de Filosofia
Física na Universidade de 1 Lemberg;
Professor D. Manuel Otero Acevedo, de Madrid;
Dr. D. Victor Melcior Y Farré, Médico e Filósofo, de
Barcelona;
D. Quintin Lopez Gomez, Diretor da revista Lumen, de
Barcelona;
Dr. D. Manuel Sanz Benito, Lente catedrático de
Metafísica na Universidade de Valadolid;
Hasden, Presidente do Conselho Superior da Instrução
Pública de Burkharest, Membro da Academia das Ciências de S.
Petersburgo;
Professor Istrati;
Th. Flournoy, Professor de Psicologia na Faculdade de
Ciências de Genebra;
Schiapparelli, Diretor do Observatório de Milão;
César Lombroso, Professor de Antropologia na
Faculdade de Medicina de Turim;
M. T. Falcomer, Professor do Instituto de Alexandria;
Ângelo Brofferio, Professor de Filosofia;
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
114
Giuseppe Gerosa, Professor de Física na Escola Real
Superior de Portici;
Enrico Morselli, Diretor da Clínica de Moléstias Mentais
na Universidade de Gênes;
Sílvio Venturi, Diretor do Asilo de Alienados de Girifalco;
Professor Augusto Tamburini;
Professor Ercole Chiaia, de Nápoles;
Professor Laponi, Médico;
Giorgio Finzi, Doutorem Física;
Doutor Hyslop, Professor de Lógica e de Ciência Mental
na Universidade de Columbia (Estados Unidos);
Ch. W. Elliot, Presidente da Universidade de Harvard;
W. James, Professor de Psicologia na Universidade de
Harvard;
Newbold, Professor de Psicologia na Universidade da
Pensilvânia;
Robert Hare, Professor de Química na Universidade da
Pensilvânia;
Denton, Professor de Geologia;
John Mapes, Professor de Química, em New York;
Edmonds, antigo Presidente do Senado dos Estados
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
115
Unidos;
Professor Elliot Coues, a quem coube presidir o
Congresso Internacional das Ciências Físicas, por ocasião da
Exposição Universal Comobiana, em Chicago.
Quanto ao Brasil, não parece ainda haver soado a hora em
que os nossos cientistas, ou pelo menos os conhecidos como
tais, se tenham resolvido a prestar à experimentação espírita a
atenção que, como se vê, têm merecido de outros prestigiosos
vultos do estrangeiro. Podemos, todavia, mencionar entre os
homens eminentes nas Letras, na Política e mesmo na Ciência,
que entre nós tem cultivado o Espiritismo os seguintes nomes:
Dr. Mello Morais (pai), que primeiro traduziu no Brasil as
obras de Allan Kardec; Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, Médico
(falecido); Dr. F. Siqueira Dias, Engenheiro (idem); Dr. Almeida
Nogueira, de São Paulo; Dr. Ramos Nogueira (idem); Dr.
Geminiano Brasil de Oliveira Góes (falecido); Dr. João Batista
Maia de Lacerda (idem); Dr. F. L. Bittencourt Sampaio, o
inspirado cantor da Divina Epopéia (idem); Dr. Antônio de Castro
Lopes (idem); Dr. Antônio Luiz Saião (idem); Dr. Aristides
Spínola; Dr. F. M. Dias da Cruz, Médico; Marechal Dr. Francisco
Raymundo Ewerton Quadros; Dr. Aristides César Zama e
Conselheiro Cincinato Pinto da Silva, da Bahia: Dr. Dionísio
Gonçalves Martins, da Bahia (falecido); Senador Mello Maia, de
Maceió, (idem); Dr. Antônio Pinheiro Guedes, Médico; Professor
Alfredo Alexander; etc...
Citamos apenas os nomes de alguns dos que têm militado
ou militam ostensivamente na propaganda espírita. Se fossemos
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
116
a incluir os dos que são apenas simpáticos à Doutrina ou adotam
os seus princípios, sem todavia se apresentarem publicamente
como tais, tornar-se-ia fastidiosa, a poder de longa, a presente
nomenclatura.
Histórico do Espiritismo
Em 1848 foi atraída a atenção pública nos Estados Unidos
por diversos fenômenos estranhos, que consistiam em ruídos,
pancadas e movimentos de objetos sem causa conhecida. Esses
fenômenos ocorriam muitas vezes espontaneamente, com
intensidade e persistência singulares, notando-se também que
se produziam mais particularmente sob a influência de certas
pessoas designadas pelo nome de médiuns, as quais podiam de
alguma sorte provocá-los à vontade, o que permitia a reprodução
das experiências. Serviram-se preferentemente de mesas; não
que este objeto fosse mais favorável que outro qualquer, mas
unicamente por ser mais cômodo e de natureza portátil, e porque
mais fácil e naturalmente, podemos-nos sentar em torno de uma
mesa que em torno de outro móvel...
Desse modo obtinha-se a rotação da mesa, movimentos
em todos os sentidos, saltos, inclinação, erguimento, pancadas
violentas, etc.
Foi esse fenômeno que se designou a princípio sob o nome
de mesas girantes ou dança das mesas. Até ai, o fato podia
perfeitamente explicar-se pelo efeito de uma corrente magnética
ou elétrica, ou pela ação de um fluido desconhecido, e foi mesmo
essa a primeira opinião formulada. Mas não se tardou a
reconhecer efeitos inteligentes em tais fenômenos, porquanto o
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
117
movimento obedecia a vontade. A mesa dirigia-se à direita ou à
esquerda, a certa pessoa designada, obedecia a uma ordem,
equilibrando-se sobre um ou dois pés, mencionava exatamente
qualquer nome mediante pancadas determinadas, etc.
Tornou-se desde então evidente que a causa não podia ser
puramente física, e consoante o axioma; que, se todo efeito tem
uma causa, todo efeito inteligente deve ter uma causa inteligente,
concluiu-se que a causa desse fenômeno devia ser uma
inteligência.
Qual era a natureza dessa inteligência? Eis a questão.
O primeiro pensamento foi que isso bem podia ser um
reflexo da inteligência do médium ou dos assistentes, mas bem
cedo a experiência demonstrou a impossibilidade de tal, porque
obtinham-se coisas completamente estranhas ao pensamento e
aos conhecimentos das pessoas presentes, e até em contradição
com as suas idéias, vontade e desejo. A manifestação não podia
ser, portanto, senão de um Ser invisível. O meio de o comprovar
era muito simples: tratava-se de entrar em relação com essa
entidade, o que se fez por meio de um certo número de pancadas
significando sim ou não e designando as letras do alfabeto, e
desse modo se conseguiram respostas às diversas perguntas
formuladas.
Esse fenômeno ficou conhecido por mesas falantes. Todos
os seres que se comunicaram por essa forma, quando
interrogados sobre a sua natureza, declararam ser Espíritos e
pertencer ao mundo invisível. Tendo-se os mesmos efeitos
produzidos em um grande número de localidades, por intermédio
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
118
de diversas pessoas, e sendo ao demais observados por homens
esclarecidos e da mais alta respeitabilidade, não era possível
que se fosse joguete de uma ilusão.
Da América passou o fenômeno à França e ao resto da
Europa, onde durante alguns anos as mesas girantes e falantes
estiveram em moda e se tornaram o divertimento favorito dos
salões. Depois, quando o público se fartou de o ver, deixou-o de
lado e procurou outras distrações.
Não tardou o fenômeno a apresentar-se sob um novo
aspecto, que o fez sair do domínio da simples curiosidade. Os
limites deste opúsculo não nos permitem segui-lo em todas as
suas fases; passaremos, pois, sem mais transição ao que ele
oferece de mais característico, ao que atraiu, sobretudo, a
atenção das pessoas sérias.
Digamos previamente, de passagem, que a realidade do
fenômeno encontrou numerosos contraditores; uns, sem ter em
conta o desinteresse e a honorabilidade dos experimentadores,
não viram em tudo isso senão uma farsa, um engenhoso lance
da prestidigitação. Aqueles que nada admitem fora da matéria,
que só crêem no mundo visível, que pensam que tudo morre com
o corpo; os materialistas em suma, que se intitulam espíritos
fortes, repeliram a existência dos Espíritos invisíveis para o
domínio das fábulas absurdas. Taxaram de loucos os que
tomavam a coisa a sério, cumulando-os de sarcasmo e de
ridículo. Outros, sob a influência de certas idéias, não podendo
negar os fatos, os atribuíram à influência exclusiva do diabo e
procuraram por esse meio assustar os tímidos.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
119
Mas, hoje o medo ao diabo perdeu consideravelmente o
prestígio. Tanto se ouve falar dele, de tão variadas formas o
pintam, que já se está familiarizado com essa idéia, e muita gente
resolveu aproveitar a ocasião para ver o que era ele realmente.
Daí resultou que, à parte de um pequeno número de senhoras
timoratas, a notícia da vinda do verdadeiro diabo encerrava algo
de sugestivo para quem só o tinha visto pintado ou no teatro; foi
para muitas pessoas um poderoso estimulante; de sorte que
aqueles que visavam por esse meio opor uma barreira às novas
idéias, erraram o alvo e, sem o querer, tornaram-se agentes
propagadores tanto mais eficazes quão mais forte era a sua grita.
Maior sucesso não tiveram os outros críticos, porque a
fatos constatados e a raciocínios categóricos não podemos opor
senão simples negações. Lede o que publicaram eles; em tudo
encontrareis a prova da ignorância e inobservação criteriosa dos
fatos, e em parte alguma uma só demonstração peremptória da
sua impossibilidade. Todos os seus argumentos se resumem
assim: “não creio; logo isso não existe; todos aqueles que
acreditam são loucos; somente nós possuímos o privilégio da
razão e do bom senso”.
O número dos adeptos conquistados pela crítica séria ou
irônica é incalculável, porque em toda parte não se encontram
senão opiniões pessoais baldas de provas contrárias.
Prossigamos em nossa exposição.
As comunicações por meio de pancadas eram lentas e
incompletas; verificou- se que, adaptando-se um lápis a um
objeto portátil, como uma cesta, uma prancheta ou qualquer
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
120
outro, sobre o qual se colocavam os dedos, o objeto punha-se
em movimento e traçava caracteres. Mais tarde reconheceu-se
que tais objetos eram simples acessórios, de que se podia
prescindir; a experiência demonstrou que o espírito, agindo sobre
um corpo inerte para o dirigir à vontade, podia da mesma sorte
atuar sobre o braço e a mão do homem para conduzir o lápis.
Assim se obtiveram médiuns escreventes, isto é, pessoas
que escreviam involuntariamente sob o impulso dos Espíritos,
dos quais eram instrumentos e intérpretes. Desde esse momento
as comunicações não tiveram mais limites, e a permuta de
pensamentos se pode fazer com tanta rapidez e
desenvolvimento como entre os homens. Era um vasto campo
aberto à exploração, era a descoberta de um novo mundo — o
mundo dos invisíveis — semelhante ao do microscópio
devassando o mundo dos infinitamente pequenos.
'Que são esses Espíritos? Que papel representam no
universo? Com que fim se comunicam conosco? — Tais são as
primeiras questões que se tratava de resolver.
Soube-se em breve, por eles mesmos, que não são seres
à parte da criação, mas as próprias almas daqueles que viveram
na Terra ou em outros mundos; que essas almas, despojadas do
seu invólucro corpóreo, povoam e percorrem o espaço. Já não
foi lícito pô-lo em dúvida, quando se reconheceram nesse
número os parentes e amigos, com os quais se pode conversar,
quando estes vieram dar a prova de sua existência, demonstrar
que a morte só existe para o corpo, que sua alma ou Espírito vive
sempre, que eles ali estão, junto de nós, vendo-nos e nos
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
121
observando como durante a vida, envolvendo em sua solicitude
aqueles que amaram e cuja lembrança lhes é motivo de doce
satisfação.
Faz-se, geralmente, dos Espíritos uma idéia
completamente falsa. Não são, a como muitos se afigura,
entidades abstratas, vagas e indefinidas, nem alguma coisa
como um clarão ou uma centelha, mas, ao contrário, são seres
bem reais, tendo sua individualidade e uma forma determinada,
dos quais se pode fazer uma idéia aproximativa pela seguinte
explicação;
Há no homem três coisas essenciais: 1o A alma ou Espírito,
princípio inteligente em que residem o pensamento, a vontade e
o senso moral; 2o O corpo, envoltório material, pesado e
grosseiro, que põe o Espírito em relação com o mundo exterior;
3o O perispírito, envoltório fluídico, leve, que serve de laço e de
intermediário entre o Espírito e o corpo. Quando o envoltório
exterior está usado e não pode mais funcionar, cai e dele se
despoja o espírito, como o fruto ou a árvore se despojam da
casca, ou em suma, como o homem despe um velho traje
inservível; é o que se chama a morte.
A morte não é, pois, outra coisa mais que a destruição do
envoltório grosseiro do Espírito. Só o corpo morre, o Espírito não.
Durante a vida o Espírito está de alguma sorte oprimido
pelos laços da matéria a que vive unido, e que muitas vezes lhe
paralisa as faculdades. A morte do corpo o desembaraça desses
laços; e ao desembaraçar-se recobra a liberdade, tal como a
borboleta ao desprender-se da crisálida. Só deixa, porém, o
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
122
corpo material; conserva o perispírito, que constitui para ele uma
espécie de corpo etéreo, vaporoso, imponderável para nós e de
forma humana, que parece ser a forma tipo.
Em seu estado normal o perispírito é invisível, mas o
Espírito pode imprimir-lhe certas modificações que o tornam
momentaneamente acessível à vista e mesmo ao tato como se
dá com o vapor condensado. É assim que eles se nos podem
mostrar nas aparições. É com o auxílio do perispírito que o
Espírito atua sobre a matéria inerte e produz os diversos
fenômenos de ruído, movimentos, escrita, etc.
As pancadas e os movimentos são os meios de que se
servem os Espíritos para atestar sua presença e chamar sobre
eles a atenção, tal qual como uma pessoa que bate à porta para
advertir de sua chegada. Há os que se não limitam a ruídos
moderados, mas produzem um fragor semelhante ao da louça
que se quebra, de portas a abrirem-se ou de móveis que se
derrubam. Mediante pancadas e movimentos convencionais,
puderam eles exprimir seus pensamentos, mas a escrita lhes
oferece o meio mais completo, mais rápido e cômodo, e que por
isso preferem. Pela mesma razão que podem formar caracteres,
podem guiar a mão para traçar desenhos, escrever música,
executar um trecho em um instrumento; em suma, à falta do seu
próprio corpo, que já não possuem, servem-se do médium para
se manifestar sensivelmente aos homens.
Os Espíritos podem ainda manifestar-se de vários modos,
entre os quais a vista e a audição. Certas pessoas, denominadas
médiuns auditivos têm a capacidade de os ouvir, podendo assim
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
123
conversas com eles; outros os vêem: são médiuns videntes.
Os Espíritos que se manifestam à vista apresentam-se
geralmente sob uma forma análoga à que tinham quando na
Terra, mas vaporosa então; outras vezes essa forma reveste
todas as aparências de um ser vivo, ao ponto de produzir
completa ilusão, chegando-se muitas vezes a tomá-los por
pessoas em carne e osso, com as quais se chega a conversar e
a trocar apertos de mãos, sem saber que são Espíritos senão
pelo seu súbito desaparecimento.
A vista permanente e geral dos Espíritos é raríssima, mas
as aparições individuais são muito freqüentes, sobretudo no
momento da morte. O Espírito libertado parece ter pressa em ir
ver de novo seus parentes e amigos, como para os advertir de
que acaba de deixar a Terra e dizer-lhes que continua sempre a
viver.
Invoque cada um as suas reminiscências e verá quantos
fatos autênticos deste gênero, aos quais não se prestara
atenção, têm tido lugar não só à noite, durante o sono, mas
também em pleno dia e no mais completo estado de vigília.
Outrora se encaravam esses fatos como sobrenaturais e
maravilhosos e os atribuíam à magia e à feitiçaria; hoje os
incrédulos os levam à conta da imaginação. Mas depois que a
ciência espírita deu a sua chave, sabe-se como se produzem e
que não estão fora da ordem dos fenômenos naturais.
Acredita-se ainda que os Espíritos, só porque são
Espíritos, devem possuir a ciência soberana e a soberana
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
124
sabedoria. É um erro que a experiência não tardou a demonstrar.
Entre as comunicações dadas pelos Espíritos há algumas
sublimes de profundeza, eloqüência, sabedoria e moral,
respirando somente bondade e benevolência. Mas, ao lado
dessas há outras vulgaríssimas, frívolas, triviais, grosseiras
mesmo, nas quais os Espíritos revelam os mais perversos
instintos.
É, pois, evidente que tais comunicações não podem provir
da mesma fonte, e que, se há bons Espíritos, também os há
maus. Ora, não sendo os Espíritos senão as almas dos homens,
não se podem naturalmente tornar perfeitos logo ao deixar o
corpo; até que tenham progredido, conservam as imperfeições
da vida corpórea, e eis porque há entre eles todos os graus de
bondade e maldade, de sabedoria e ignorância.
Os Espíritos geralmente se comunicam com prazer, sendo-
lhes motivo de satisfação ver que não foram esquecidos.
Descrevem de boa vontade as suas impressões ao deixar a
Terra, a sua nova situação e a natureza das suas alegrias ou
sofrimentos no mundo em que se encontram. Uns são
felicíssimos, outros desgraçados, alguns mesmo sofrem
horríveis tormentos, conforme o modo como viveram e o
emprego, bom ou mau, útil ou inútil, que fizeram da vida.
Observando-os em todas as fases de sua nova existência, de
acordo com a posição que ocuparam na Terra, o gênero de
morte, o caráter e os hábitos como homens, chegamos ao
conhecimento, senão completo, ao menos bastante preciso do
mundo invisível, para ficarmos informados do nosso estado
futuro e pressentirmos a sorte feliz ou desgraçada que lá nos
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
125
aguarda.
As instruções dadas pelos Espíritos de ordem elevada
sobre todos os assuntos que interessam à Humanidade, e as
respostas que deram às questões que lhes foram propostas,
tendo sido reunidas e cuidadosamente coordenadas, constituem
uma ciência completa, uma perfeita Doutrina moral e filosófica
sob o nome de Espiritismo.
O Espiritismo é, pois, uma Doutrina fundada na
existência, manifestação e ensino dos Espíritos. Essa
Doutrina está inteiramente exposta em O Livro dos Espíritos,
quanto a parte filosófica, em O Livro dos Médiuns, quanto às
partes prática e experimental, e em O Evangelho Segundo o
Espiritismo, quanto a moral. Pela análise que dessas obras
fazemos adiante pode-se julgar da variedade, extensão e
importância das matérias que abrange.
Como acabamos de ver, o Espiritismo teve início no
fenômeno vulgar das mesas girantes; como, porém, esses fatos
falam mais aos olhos que à inteligência, e despertam mais a
curiosidade que o sentimento, uma vez aquela satisfeita, o
interesse diminuiu tanto mais quanto menos se os
compreendiam. O mesmo não aconteceu quando a teoria veio
explicar a sua causa. E quando, sobretudo, das mesas girantes,
que por algum tempo foram um divertimento, se viu sair uma
Doutrina moral que fala à alma, dissipando as angústias da
dúvida, satisfazendo a todas as aspirações deixadas no vácuo
por um ensino incompleto acerca do futuro da Humanidade, as
pessoas sérias acolheram como um benefício a nova Doutrina,
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
126
que desde então, longe de declinar, cresceu com incrível rapidez.
No espaço de alguns anos ela aliciou em todos os países do
mundo, e principalmente entre os homens esclarecidos,
inúmeros partidários, que se multiplicam todos os dias em
proporção extraordinária, de tal sorte que se pode hoje dizer que
o Espiritismo conquistou direitos de cidade. Ele assenta em
bases que desafiam os esforços dos seus adversários, mais ou
menos interessados em combatê-lo, e a prova é que os ataques
e a crítica não conseguiram deter a sua marcha um só instante.
Isto é um fato da experiência, cuja razão nunca puderam os
adversários encontrar. Os espíritas dizem simplesmente que, se
o Espiritismo se propaga, mau grado a crítica, é sinal de que o
acham bom e de que preferem o seu raciocínio ao dos seus
contraditores.
O Espiritismo, entretanto, não é uma descoberta moderna.
Os fatos e os princípios sobre que repousa perdem-se na noite
dos tempos, por isso que deles se encontram vestígios nas
crenças de todos os povos, em todas as religiões, na maior parte
dos escritores sagrados e profanos, unicamente os fatos,
incompletamente observados, têm sido muitas vezes
interpretados segundo as idéias supersticiosas da ignorância, e
deles não se haviam deduzido todas as conseqüências.
De fato, o Espiritismo é baseado na existência dos
Espíritos, não sendo eles, porém, senão as almas dos homens,
desde que há homens, há Espíritos. O Espiritismo nem os
descobriu, nem os inventou. Se as almas, ou Espíritos, podem-
se manifestar aos vivos, é que isso está na natureza, e logo o
deviam eles ter feito de todos os tempos, por isso também em
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
127
todos os tempos e por toda a parte se encontra a prova dessas
manifestações, que são sobretudo abundantes nas narrativas
bíblicas.
O que é moderno é a explicação lógica dos fatos, o
conhecimento mais completo da natureza dos Espíritos, seu
papel e modo de ação, a revelação do nosso estado futuro,
finalmente a sua constituição em corpo de ciência e de doutrina
e as suas diversas aplicações.
Os antigos conheciam o princípio, os modernos conhecem
os detalhes. Na antigüidade o estudo desses fenômenos era
privilégio de certas castas, que não o revelavam senão aos
iniciados em seus mistérios. Na Idade Média os que deles se
ocupavam ostensivamente eram considerados feiticeiros, e por
esse motivo lançados às fogueiras. Hoje, porém, nem há
mistérios para pessoa alguma, nem se queima ninguém, tudo se
passa a plena luz, e todo o mundo está apto para se esclarecer
e praticar, porque os médiuns se encontram em toda a parte.
A mesma Doutrina, que hoje os Espíritos ensinam, nada
tem de novo. Achamo-la em fragmentos na maioria dos filósofos
da índia, do Egito e da Grécia, e toda inteira no ensino do Cristo.
Que vem fazer então o Espiritismo? — Vem confirmar,
mediante novos testemunhos, demonstrar com os fatos, as
verdades ignoradas ou mal compreendidas; vem restabelecer
em seu verdadeiro sentido as que foram mal interpretadas. Ele
nada ensina de novo, é certo; mas será pouca coisa provar de
modo evidente e irrecusável a existência da alma, sua
sobrevivência ao corpo, sua individualidade depois da morte, sua
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
128
imortalidade, as penas e recompensas futuras? Quantas
pessoas crêem nestas coisas, mas com uma vaga reserva
mental e incerteza, considerando no seu foro íntimo: “Se,
entretanto, não fosse verdade?! “Quantos não foram conduzidos
à incredulidade, por lhe haverem apresentado o futuro sob um
aspecto que a sua razão não podia admitir! Nada, pois, será para
o crente vacilante poder dizer: “Agora tenho certeza!” — como
para o cego tornar a ver a luz?
Pelos fatos e pela lógica o Espiritismo vem dissipar a
ansiedade da dúvida e reconduzir à fé o que dela se afastara.
Revelando-nos a existência do mundo invisível que nos rodeia,
e no meio do qual vivemos sem o suspeitar, ele nos faz conhecer,
pelo exemplo dos que viveram na Terra, as condições da nossa
felicidade ou da nossa desgraça vindouras; explica a causa dos
nossos sofrimentos terrenos e os meios de os suavizar. Sua
propagação terá por efeito inevitável a destruição das doutrinas
materialistas, que não podem resistir à evidência.
O homem, convencido da grandeza e importância da sua
existência futura, que é eterna, compara-a à incerteza da vida
terrestre, que é tão curta, e eleva-se então pelo pensamento
acima das mesquinhas cogitações humanas. Conhecendo a
causa e objetivo das suas dores, ele as suporta com paciência e
resignação, por saber que são um meio de chegar a melhor
estado. O exemplo dos que vêm d’além-túmulo descrever suas
alegrias e pesares, provando a realidade da vida futura, prova ao
mesmo tempo que a justiça de Deus não deixa nenhum vício sem
punição nem virtude alguma sem recompensa. Acrescentemos,
por fim, que as comunicações com os seres caros que partiram
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
129
nos proporcionam uma doce consolação, demonstrando não
somente que eles existem, mas que estamos menos separados
deles do que se estivessem vivos em um país distante.
Em resumo: o Espiritismo atenua o amargor das aflições da
vida, acalma os desesperos e as agitações da alma, dissipa as
incertezas ou os terrores do futuro, exclui o pensamento de
abreviar a vida pelo suicídio; por isso mesmo torna felizes os que
dele se compenetram, e nisso está o grande segredo da sua
rápida propagação.
No ponto de vista religioso o Espiritismo tem por base as
verdades fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma, a
imortalidade, as penas e recompensas futuras; mas é
independente de todo o culto particular. Seu fim é provar aos que
negam, ou duvidam, que a alma existe, que sobrevive ao corpo
e sofre depois da morte as conseqüências do bem ou do mal que
fez durante a vida corporal; ora, isto é de todas as religiões.
Como crença nos Espíritos, ele é igualmente de todas as
religiões, assim como é de todos os povos, pois que em toda a
parte onde há homens, há almas ou Espíritos, e as
manifestações são de todos os tempos, e a sua narrativa se
encontra sem exceção em todas as religiões.
Pode-se ser católico, grego ou romano, protestante, judeu
ou muçulmano e crer nas manifestações dos espíritos, e, por
conseguinte, ser espírita; a prova disso é que o Espiritismo
possui adeptos em todas as seitas.
Como moral, é essencialmente cristão, pois a que ensina
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
130
não é senão a aplicação e o desenvolvimento da do Cristo, a
mais pura de todas e cuja superioridade ninguém contesta —
prova evidente de que é a lei de Deus. Ora, a moral é para uso
de todo o mundo.
O Espiritismo, sendo independente de qualquer forma de
culto, não prescrevendo nenhum, nem se ocupando de dogmas
particulares, não é uma religião especial, porque não tem
sacerdotes nem templos. Aos que lhe perguntem se fazem bem
em seguir tal ou tal prática, responde: “Se acreditais vossa
consciência obrigada a fazê-lo, fazei-o. Deus leva sempre em
conta a intenção”.
Em uma palavra, ele não se impõe a pessoa alguma; não
se dirige aqueles que têm fé e a quem é suficiente essa fé, mas
à numerosa categoria dos indecisos e incrédulos; não os
arrebata à Igreja, pois que dela estão moralmente separados no
todo ou em parte; ajuda-os a fazer três quartas partes do
caminho para lá entrar; a ela cumpre fazer o resto.
O Espiritismo combate — é verdade, — certas crenças, tais
como a eternidade das penas, o fogo material do inferno, a
personalidade do diabo, etc.; Mas não é certo que essas crenças,
impostas como absolutas, têm em todos os tempos feito
incrédulos e os fazem todos os dias? Se o Espiritismo, dando
desses e de alguns outros dogmas uma interpretação racional,
conduz à fé os seus desertores, não presta um serviço à religião?
Por isso dizia a este respeito um venerável eclesiástico: “O
Espiritismo faz crer em alguma coisa; ora é melhor crer em
alguma coisa do que em nada crer absolutamente”.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
131
Não sendo os Espíritos outra coisa senão as almas, não se
pode negar os Espíritos sem negar a alma. Admitindo-se as
almas ou espíritos, a questão reduzida à sua mais simples
expressão é esta: as almas dos que morreram podem se
comunicar com os vivos? O Espiritismo o prova afirmativamente
por meio de fatos materiais. Que prova se poderá dar de que isso
não é possível? Se é, todas as negações do mundo não
impedirão que o seja, porque nenhum sistema, nem uma teoria,
mas uma lei da natureza. Ora, contra as leis da natureza é
impotente a vontade do homem. É preciso, de bom ou de mau
grado, aceitar-lhe as conseqüências e com elas conformar as
crenças e os hábitos.
Resumo do Ensino dos Espíritos
— Deus é a Inteligência Suprema, causa primária de todas
as coisas. Deus é eterno, único, imaterial, imutável, onipresente,
soberanamente justo e bom. Ele deve ser infinito em todas as
suas perfeições, porque se supuséssemos imperfeito em um só
dos seus atributos, já não seria Deus.
— Deus criou a matéria que constitui os mundos, criou
também seres inteligentes que denominamos espíritos,
encarregados de administrar os mundos materiais, segundo as
leis imutáveis da criação, os quais seres são por sua natureza
perfectíveis. Aperfeiçoando-se, eles se aproximam da Divindade.
— O espírito, propriamente dito, é o princípio inteligente;
sua natureza íntima nos é desconhecida; para nós é imaterial,
por não ter analogia alguma com o que chamamos matéria.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
132
— Os espíritos são seres individuais; têm um envoltório
etéreo, imponderável, chamado perispírito — espécie de corpo
fluídico, tipo da forma humana. Eles povoam os espaços, que o
percorrem com a rapidez do relâmpago, e constituem o mundo
invisível.
— A origem e o modo de criação dos Espíritos nos são
desconhecidos; apenas sabemos que são criados simples e
ignorantes, isto é sem ciência e sem conhecimento do bem e do
mal, mas com igual aptidão para tudo, porque Deus em sua
justiça não podia dispensar uns do trabalho que teria imposto a
outros, para chegarem à perfeição. No princípio eles estão em
uma espécie de infância, sem vontade própria e sem consciência
perfeita de sua existência.
— Desenvolvendo-se o livre-arbítrio nos espíritos ao
mesmo tempo que as idéias, Deus lhes diz: “Todos podeis
aspirar a suprema felicidade, quando houverdes adquirido os
conhecimentos que vos faltam e realizado a tarefa que vos
imponho. Trabalhai, portanto, em vosso adiantamento — eis o
objetivo. Atingi-lo-eis, observando as leis que em vossa
consciência gravei”.
Em conseqüência do seu livre-arbítrio uns tomam o
caminho mais curto, que é o do bem; outros tomam o mais longo,
que é o do mal.
— Deus não criou o mal: estabeleceu leis, e estas são
sempre boas, porque ele é soberanamente bom. Aquele que as
observasse fielmente seria perfeitamente feliz; mas os espíritos,
tendo o livre-arbítrio, nem sempre as observaram, e então o mal
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
133
foi para eles o resultado de sua desobediência. Pode-se,
portanto, dizer que o bem é tudo o que é conforme à lei de Deus.
e o mal tudo o que é contrário a essa mesma lei.
— Para colaborar, como agentes do poder divino, na sua
obra dos mundos materiais, os espíritos revestem
temporariamente um corpo material. Pelo trabalho que exige sua
existência corporal aperfeiçoam a inteligência e, observando as
leis de Deus, adquirem os méritos que os devem conduzir à
felicidade eterna.
— A encarnação não é imposta aos espíritos, no princípio
como uma punição; é necessária ao seu desenvolvimento e a
realização das obras de Deus, e todos a devem sofrer, quer
tomem o caminho do bem, quer o do mal. O que há somente é
que os que seguem o do bem, avançando mais rapidamente,
chegam mais depressa ao fim e em condições menos penosas.
— Os Espíritos encarnados constituem a humanidade, que
não é circunscrita à terra, mas povoa todos os mundos
disseminados no espaço.
— A alma do homem é um espírito encarnado. Para o
secundar no desempenho de sua tarefa, Deus lhe deu como
auxiliares os animais, que lhe estão subordinados, e cuja
inteligência e caráter são proporcionados as suas necessidades.
— O aperfeiçoamento do espírito é fruto do seu próprio
labor; não podendo em uma só existência corporal adquirir todas
as qualidades morais e intelectuais que o devem conduzir ao fim,
aí chega por meio de uma sucessão de existências, em cada
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
134
uma das quais avança alguns passos na via do progresso.
— Em cada existência corporal deve o espírito produzir
uma tarefa proporcional ao seu desenvolvimento; quanto mais
rude e laboriosa é esta, mais mérito tem ele em a haver
desempenhado. Cada existência é assim uma prova que o
aproxima do fim. O número dessas existências é indeterminado;
depende da vontade do Espírito reduzi-lo, trabalhando
ativamente em seu aperfeiçoamento moral, do mesmo modo que
depende da vontade do operário, que deve dar conta de um
trabalho, reduzir o número dos dias a empregar em sua
confecção.
— Quando uma existência tenha sido mal empregada, não
aproveita ao espírito, que por isso a deve recomeçar em
condições mais ou menos penosas, em razão da sua negligência
e má vontade. Assim é que também na vida de relação se pode
ser obrigado a fazer no dia seguinte o que se não fez na véspera,
ou a refazer o que se fez mal.
— A vida espiritual é a vida normal do espírito, e é eterna.
A vida corporal é transitória e passageira; é apenas um instante
na eternidade.
— No intervalo de suas existências corporais o espírito está
errante. A erraticidade não tem duração determinada. Nesse
estado o Espírito é feliz ou desgraçado, segundo o bom ou mal
emprego que fez de sua última existência. Ele estuda as causas
que aceleraram ou retardaram seu adiantamento, toma
resoluções que procurará pôr em prática em próxima
encarnação, e escolhe por si mesmo as provas que julga mais
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
135
apropriadas ao seu avanço; mas algumas vezes se engana ou
sucumbe, não mantendo na condição de homem as resoluções
tomadas como espírito.
— O espírito culpado é punido por meio de dores morais
no mundo dos Espíritos, e por sofrimentos físicos na vida
corporal. Suas aflições são a conseqüência de suas faltas, isto
é, de sua infração às leis de Deus; de sorte que elas representam
ao mesmo tempo uma expiação do passado e uma prova para o
futuro. É assim que o orgulhoso pode ter uma existência de
humilhação, o tirano uma vida de escravo, e o mau rico a de
miséria.
— Há mundos apropriados aos diferentes, graus de
adiantamento dos Espíritos, nos quais a existência corporal se
acha em condições muito diversas. Quanto menos adiantado é o
Espírito, tanto mais grosseiros e materiais são os corpos que ele
reveste; a medida que se purifica passa a mundos superiores,
moral e fisicamente. A terra nem é o primeiro nem o último, mas
um dos mais atrasados.
— Os espíritos culpados são encarnados em planetas
menos adiantados, onde expiam suas faltas pelas tribulações da
vida material. Esses planetas são para eles verdadeiros
purgatórios, mas dos quais depende deles sair, trabalhando em
seu progresso moral. A Terra é um desses planetas.
— Sendo Deus soberanamente justo e bom, não condena
suas criaturas a castigos perpétuos por faltas temporárias, mas
oferece-lhes a todo tempo os meios de progredir e reparar o mal
que tenham feito. Deus perdoa, mas exige o arrependimento, a
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
136
reparação e a volta ao bem, de sorte que a duração do castigo é
proporcionada à persistência do espírito no mal e, por
conseqüência, seria eterna para aquele que permanecesse
eternamente no mau caminho. Mas logo que um vislumbre de
arrependimento penetra no coração do culpado, Deus estende
sobre ele a sua misericórdia. A eternidade das penas deve, pois,
entender-se em sentido relativo e não em sentido absoluto.
— Os espíritos, ao encarnar-se, trazem consigo o que
adquiriram nas existências precedentes, e é essa a razão por
que os homens mostram aptidões especiais, tendências boas ou
más, que neles parecem inatas. As más tendências naturais são
restos das imperfeições do Espírito que delas ainda se não
despojou inteiramente; são também indícios das faltas cometidas
— o verdadeiro pecado original. Em cada existência se deve ele
purificar de algumas impurezas.
— O esquecimento das existências anteriores é um
benefício de Deus, que em sua bondade quis poupar aos
homens recordações as mais das vezes penosas. Em cada nova
existência o homem é aquilo mesmo que a si mesmo se fez. É
para ele um novo ponto de partida, conhece os seus defeitos
atuais, sabe que esses defeitos são a continuidade daqueles que
já possuía, e daí tira a conclusão do mal que teria praticado, o
que lhe basta para que trabalhe em corrigir-se. Se outrora tinha
defeitos que já não tem, não há mais que se preocupar com eles,
bastando-lhe, portanto, combater as imperfeições presentes.
— Se a alma já não viveu, foi então criada com o corpo, e
nesta suposição não pode ela ter relação alguma com as que a
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
137
precederam. Pergunta-se, em tal caso, como Deus, que é
soberanamente justo e bom, a pode ter responsabilizado pela
falta do pai do gênero humano, contaminando-a de um pecado
original que não cometeu. Dizendo-se, ao contrário, que ela,
renascendo, traz o gérmen das imperfeições de suas existências
anteriores e que sofre na atual as conseqüências de suas faltas
passadas, temos do pecado original uma explicação lógica, que
todos podem compreender e admitir, porque a alma só é
responsável pelas suas próprias obras.
— A diversidade das aptidões inatas, morais e intelectuais,
é a prova de que a alma já viveu. Se houvesse sido criada ao
mesmo tempo que o corpo atual, não seria conforme a bondade
de Deus ter feito umas mais adiantadas que as outras. Porque
há selvagens e homens civilizados, porque há bons e maus, tolos
e sensatos? Com o princípio de que uns têm vivido mais que os
outros, e adquiriram mais, tudo se explica.
— Se a existência fosse única e devesse só por si decidir
do futuro da alma por toda a eternidade, qual seria a sorte das
crianças que morrem em tenra idade? Não tendo feito bem nem
mal, não merecem recompensas nem punições. Segundo a
palavra do Cristo, sendo cada qual recompensado conforme as
suas obras, não têm elas direito à perfeita felicidade dos anjos
nem tão pouco merecem ser dela privadas. Diga-se que poderão
em outras existências realizar aquilo que não puderam fazer na
que foi abreviada, e já não haverá exceções.
— Pelo mesmo motivo, qual seria a sorte dos cretinos e dos
idiotas? Não tendo eles nenhuma consciência do bem e do mal,
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
138
não são de modo algum responsáveis por seus atos. Deus seria
justo e bom tendo criado almas estúpidas, para votá-las a uma
existência miserável e sem compensações? Admite, ao
contrário, que a alma do cretino e do idiota é um espírito em
punição em um corpo impróprio à expansão do pensamento,
corpo em que ele está como um homem vigoroso manietado por
cadeias, e nada ali vereis que não seja conforme a justiça de
Deus.
— Nessas sucessivas encarnações, o espírito, tendo-se
pouco a pouco despojado de suas impurezas e aperfeiçoado
pelo trabalho, chega ao termo de suas existências corporais,
pertence então a ordem dos espíritos puros, ou anjos, e goza ao
mesmo tempo da vida completa de Deus e de uma felicidade sem
mescla por toda a eternidade.
— Achando-se os homens em expiação na terra, Deus
como bom Pai, não os abandonou, sem guias, a si mesmos.
Desde o começo têm eles seus espíritos protetores, ou anjos da
guarda, que velam por eles e se esforçam por conduzi-los ao
bom caminho. Têm também espíritos em missão na Terra,
espíritos superiores, encarnados de tempos a tempos entre eles,
para lhes esclarecer a rota com seus trabalhos e fazer adiantar
a humanidade. Conquanto tenha Deus gravado sua lei na
consciência humana, entendeu dever formulá-la de modo
explícito: enviou primeiramente Moisés, mas as leis de Moisés
eram apropriadas aos homens de seu tempo, aos quais só falou
da vida terrena das penas e recompensas temporais. Veio o
Cristo em seguida completar a lei de Moisés, mediante um
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
139
ensino mais elevado: a pluralidade das existências15, a vida
espiritual, as penas e recompensas morais. Moisés os conduzia
pelo temor, o Cristo pelo amor e a caridade.
— O Espiritismo, hoje melhor compreendido, acrescenta,
para os incrédulos a evidência à teoria e prova o futuro por fatos
patentes; diz em termos claros e inequívocos o que o Cristo disse
por parábolas, explica as verdades desconhecidas, ou
falsamente interpretadas; revela a existência do mundo invisível
ou dos Espíritos, e inicia o homem nos mistérios da vida futura.
Vem combater o materialismo, que é uma revolta contra o poder
de Deus; vem, finalmente, estabelecer entre os homens o reino
da caridade e da solidariedade anunciado pelo Cristo. Moisés
lavrou a terra, o Cristo semeou, o Espiritismo vem colher.
— O Espiritismo não é uma luz nova, mas uma luz mais
brilhante, porque surge de todos os pontos do globo pela voz
daqueles que já viveram na Terra. Tornando evidente o que era
obscuro, ele põe termo às interpretações errôneas e deve
conduzir os homens a uma mesma crença, pois que só existe um
Deus cujas Leis são idênticas para todos. Ele assinala enfim a
era dos tempos preditos pelo Cristo e os profetas.
— Os males que afligem a humanidade terrena têm como
causa o orgulho, o egoísmo e todas as más paixões. Ao contato
de seus vícios os homens se tornam reciprocamente
desgraçados e se punem uns aos outros. Quando a caridade e a
humildade substituírem o egoísmo e o orgulho, então não mais
15 Evangelho São Matheus, Capítulo XVII, versículo 10 e seguintes; São João, Capítulo III, versículo 2 e seguintes.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
140
procurarão hostilizar-se. Respeitarão os direitos de cada um e
farão entre si reinar a concórdia e a justiça.
— Mas como destruír o egoísmo e o orgulho, que parecem
inatos no coração humano? O egoísmo e o orgulho estão no
coração dos homens porque são espíritos que desde o começo
seguiram a senda do mal e foram exilados na Terra, em punição
de seus próprios vícios. É esse ainda o pecado original de que
muitos se não despojaram. Pelo Espiritismo Deus vem fazer um
derradeiro apelo à prática da Lei ensinada pelo Cristo: a lei de
amor e caridade.
— Havendo a Terra chegado ao tempo marcado para se
tomar uma morada de felicidade e paz, não quer Deus que os
maus Espíritos encarnados continuem a manter aí a perturbação,
em detrimento dos bons, e eis porque devem eles desaparecer.
Irão expiar seu endurecimento nos mundos menos adiantados,
em que de novo trabalharão em seu aperfeiçoamento, numa
série de existências ainda mais desgraçadas e penosas que na
Terra.
Nesses mundos eles constituirão uma nova raça mais
esclarecida, e cuja tarefa será fazer progredir, com o auxílio de
seus conhecimentos adquiridos, os seres atrasados que aí
habitam. Não sairão de lá para o mundo melhor senão quando
houverem merecido, e assim sucessivamente, até que tenham
atingido a purificação completa. Se a terra era para esses tais
um purgatório, aqueles mundos serão o seu inferno, mas um
inferno donde a esperança jamais será banida.
— Enquanto a geração proscrita vai desaparecer
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
141
rapidamente, surge uma nova geração cujas crenças serão
baseadas no Espiritismo Cristão. Estamos assistindo agora à
transição que se opera, e que é prelúdio da renovação moral cujo
advento assinala o Espiritismo.
Máximas Extraídas do Ensino dos Espíritos
— O objetivo essencial do Espiritismo é o melhoramento
dos homens. É preciso não procurar nele senão o que pode
auxiliar o progresso moral e intelectual.
— O verdadeiro espírita não é aquele que crê nas
manifestações, mas o que aproveita o ensinamento dos
Espíritos. De nada serve crer, se a crença não faz dar um passo
avante no caminho do progresso, tornando o homem melhor para
com seu próximo.
— O egoísmo, o orgulho, a vaidade, a ambição, a avareza,
o ódio, a inveja, o ciúme, a maledicência são para a alma ervas
venenosas, de que é necessário arrancar diariamente algumas
folhas. Elas têm como contra-veneno a caridade e a humildade.
— A crença no Espiritismo não é proveitosa senão aquele
a quem cada dia traz um progresso sobre o seu estado da
véspera;
— A importância que o homem liga aos bens temporais
está na razão inversa da sua fé na vida espiritual. A dúvida sobre
o futuro é que o leva a procurar os gozos mundanos,
satisfazendo suas paixões, com sacrifício embora do seu
próximo.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
142
— As aflições terrenas são os remédios da alma, que a hão
de salvar para o futuro, como uma dolorosa operação cirúrgica
salva a vida ao doente e lhe restitui a saúde. É por isso que disse
o Cristo: “Bem-aventurados os aflitos, pois que serão
consolados”.
— Nas vossas aflições olhai sempre para baixo e não para
cima; pensai nos que sofrem ainda mais que vós.
— O desespero é natural naquele que acredita que tudo
acaba com a vida do corpo, naquele que, porém, tem fé no futuro
é um contra-senso.
— O homem é muitas vezes o autor de sua própria
desgraça na terra; remonte ele à fonte de seus infortúnios, e verá
que em sua maior parte resultam da sua imprevidência, do seu
orgulho e ambição e, por conseqüência, da sua infração às Leis
de Deus.
— A prece é um ato de adoração. Orar a Deus é pensar
nele, é aproximar-se-lhe e pôr-se em comunicação com ele.
— Quem ora com fervor e confiança sente-se mais forte
contra as tentações do mal, e Deus lhe envia bons espíritos para
o assistir. É esse um socorro nunca recusado quando pedido
com sinceridade.
— O essencial não é orar muito, mas orar bem. Certas
pessoas entendem que o mérito da prece consiste em sua
extensão, ao passo que cerram os olhos aos seus próprios
defeitos. Para elas a prece é uma ocupação, um emprego de
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
143
tempo, e não um estudo de si mesmas.
— Quem roga a Deus o perdão de suas faltas não o obtém
senão mudando de conduta. As boas ações são a melhor das
preces, porque mais valem os atos que as palavras.
— A prece é recomendada por todos os bons Espíritos, e
solicitada além disso por todos os Espíritos imperfeitos como
meio de aliviar os seus sofrimentos.
— A prece não pode modificar os decretos da Providência;
não obstante, os Espíritos sofredores, ao ver que há quem se
interesse por eles, sentem- se mais aliviados e consideram-se
menos infelizes. A prece os reanima, excita-lhes o desejo de se
elevarem pelo arrependimento e pela reparação, e os pode
desviar do pensamento do mal. É neste sentido que ela pode,
não somente abrandar, mas abreviar seus sofrimentos.
— Que cada um ore segundo suas convicções e do modo
que julgar mais conveniente, porque a forma nada é, o
pensamento é tudo; o essencial é a sinceridade e pureza de
intenção; um bom pensamento vale mais que um grande número
de palavras semelhante ao ruído de um moinho, nas quais não
toma parte o coração.
— Deus tornou os homens fortes e poderosos para serem
o sustentáculo dos fracos. O forte que oprime o fraco é réprobo
perante Deus, e muitas vezes é castigado mesmo nesta vida,
sem embargo do que lhe sucederá no futuro.
— A fortuna é um depósito, cujo possuidor é apenas
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
144
usufrutuário, pois que não a leva consigo para o túmulo, e terá
de prestar severas contas do seu emprego.
— A fortuna é uma prova mais arriscada que a miséria, por
ser um estímulo ao abuso e aos excessos, e porque é mais difícil
ser comedido que resignado.
— O ambicioso que triunfa e o rico que sacia dos gozos
materiais são mais dignos de lástima que de inveja, pois é
preciso considerar o reverso da medalha. O Espiritismo, com os
terríveis exemplos daqueles que viveram e vêm revelar sua
sorte, confirma a veracidade desta frase do Cristo: “aquele que
se exalta será humilhado, e aquele que se humilha será
exaltado”.
— A caridade é a suprema lei do Cristo: “Amai-vos uns aos
outros como irmãos; — amai ao próximo como a vós mesmos;
— perdoai aos vossos inimigos; — não façais aos outros o que
não quereis que vos façam”; — tudo se resume na palavra da
Caridade.
— A caridade não consiste somente na esmola, pois que
há caridade em pensamentos, palavras e atos. Caridoso em
pensamento é quem se mostra indulgente para com as faltas
alheias; caridoso em palavras quem não diz nada que possa
prejudicar ao próximo; caridoso em atos é quem assiste a seu
irmão na medida de suas forças.
— O pobre que reparte seu pedaço de pão com um ainda
mais pobre que ele é mais caritativo e tem mais mérito aos olhos
de Deus que aquele que dá do seu supérfluo sem de nada se
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
145
privar.
— Quem quer que contra seu próximo nutra sentimentos
de animosidade, de ódio, ciúme ou rancor, falta à caridade,
mente se se diz cristão e ofende à Deus.
— Homens de todas as castas, de todas as seitas, de todos
os matizes, sois todos irmãos, porque Deus vos atraí ao seu seio.
Estendei-vos, por conseguinte, as mãos, qualquer que seja o
modo de o adorardes, e não vos anatematizeis, porque o
anátema é a violação da lei de caridade proclamada pelo Cristo.
— Com o egoísmo os homens se acham em perpétua luta;
com a caridade viverão em paz. Só a caridade, formando a base
das suas instituições, pode, portanto, assegurar-lhes a felicidade
neste mundo; segundo as palavras do Cristo, só ela também lhes
pode garantir a felicidade futura, porque enfeixa implicitamente
todas as virtudes que os podem conduzir à perfeição. Sob o
império da verdadeira caridade, tal como a ensinou e praticou
Jesus, não haverá mais egoísmo, orgulho, ódio, ciúme,
maledicência e nem o desordenado apego aos bens terrestre.
Eis porque o Espiritismo cristão tem por lema: fora da caridade
não há salvação.
Incrédulos! Podeis rir dos espíritos, motejar dos que
acreditam nas suas manifestações; ride então, se ousardes,
deste preceito que eles vêm ensinar, e que é a vossa própria
salvaguarda; porque, se a caridade desaparecesse da Terra, os
homens se esmagariam uns aos outros, e então serieis vós
talvez as primeiras vítimas.
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
146
Não vem de longe o tempo em que este preceito,
proclamado abertamente em nome dos espíritos, será um penhor
de segurança e um título de confiança em todos que o trouxeram
gravado no coração.
Disse um Espírito: “Motejou-se das mesas girantes, mas
não se motejará jamais da filosofia e da moral que delas
decorrem”.
Estamos hoje longe, com efeito, passados apenas poucos
anos, dos primeiros fenômenos que serviram por um momento
de distração aos curiosos e aos desocupados. Essa moral, dizeis
vós, é antiquada. “Os espíritos deveriam ter bastante espírito
para nos dar uma coisa nova” (frase espirituosa de mais um
crítico). Tanto melhor! Se ela é antiquada, isso prova que é de
todos os tempos, e os homens são por isso mais culpados não a
tendo praticado, pois não há realmente verdades senão as que
são eternas.
O Espiritismo vem recordá-la, não por uma revelação
isolada feita a um só homem, mas pela voz dos próprios Espíritos
que, semelhantes à trombeta do juízo final, vêm clamar:
‘Acreditai que aqueles que chamais mortos estão mais vivos do
que vós, porque vêem o que não vêdes e ouvem o que não ouvis.
Naqueles que ora vos vêm falar podereis reconhecer vossos
parentes, amigos, todos quantos amastes na terra, e que
julgáveis irremissivelmente perdidos. Infelizes daqueles que
acreditam que tudo se acaba com o corpo, pois serão cruelmente
desiludidos! Infelizes daqueles que tiverem faltado à caridade,
porque sofrerão o mesmo que fizeram sofrer os outros! Escutai
Bicentenário de Allan Kardec Organizado por Carlos Bernardo Loureiro
147
a voz dos que padecem e vos vêm dizer “Sofremos por haver
desconhecido o poder de Deus e duvidado da sua misericórdia
infinita; sofremos por causa do nosso orgulho, do nosso egoísmo
e avareza, e de todas as más paixões, que não soubemos
reprimir; sofremos em razão de todo o mal que fizemos aos
nossos semelhantes, pelo esquecimento da lei de Caridade”.
Incrédulos! Dizei se uma Doutrina que ensina semelhantes
coisas é irrisória, se é boa ou má! Encarando-a unicamente sob
o ponto de vista da ordem social, dizei se os homens que a
praticassem seriam felizes ou desgraçados, melhores ou piores!
Allan Kardec
Top Related