Um passeio pelo sertão: as fronteiras do medo na literatura nacional
SASSE, Pedro (Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ)
Resumo: No âmbito dos estudos da literatura do medo nacional encontramos, com certa
frequência, três principais espaços narrativos: a selva, cheia de seus mistérios e encantos,
ambiente propício para o irromper do medo sobrenatural; a metrópole, onde o
confinamento urbano faz florescer os medos naturais, os medos do Outro, de assaltos,
assassinatos, sequestros; e o sertão, espaço pródigo em narrativas tanto de temática
sobrenatural quanto natural. O presente artigo visa justamente à análise do híbrido
espaço sertanejo na literatura do medo, a fim de caracterizá-lo como local limítrofe
entre o ambiente do medo natural e o ambiente do medo sobrenatural. Para tanto,
utilizaremos os contos “Assombramento”, “Garupa” e “A feiticeira”, do escritor mineiro
Afonso Arinos. Pretende-se, assim, mostrar como a própria configuração espacial do
sertão – sua urbanização precária, a pouca densidade populacional, o entorno muito
mais selvagem do que o que das grandes cidades – propicia esse caráter dual ao espaço.
Nas narrativas analisadas, observaremos como, em um mesmo ambiente, há a mescla
entre o medo sobrenatural, construído, principalmente, a partir do imaginário popular,
dos “causos” fantásticos, e o natural, notável pela presença da violência dos
personagens de natureza agreste, típicos do sertão.
Palavras-chave: Afonso Arinos; Configuração espacial; Sertão; Imaginário popular.
Resumen: En el ámbito de los estudios en la literatura del miedo nacional
encontramos, con alguna frecuencia, tres espacios narrativos centrales: la jungla, llena
de sus misterios y encantamientos, ambiente adecuado para el surgimiento del miedo
sobrenatural; la metrópoli, donde el confinamiento urbano hace surgir los miedos
naturales, los miedos del Otro, de asaltos, asesinatos, secuestros; y el sertão, espacio
pródigo en las narrativas tanto de temática sobrenatural cuanto natural. El presente
artigo se pretende justamente a la análisis del híbrido espacio del sertão en la literatura
del miedo, para caracterizarlo como local limítrofe entre el ambiente del miedo natural e
el ambiente del miedo sobrenatural. Para eso, utilizaremos los cuentos
“Assombramento”, “Garupa” y “A feiticeira”, del escritor de Minas Gerais, Afonso
Arinos. Se pretende, así, mostrar como la propia configuración espacial del sertão – su
urbanización precaria, la poca densidad poblacional, las cercanías mucho más salvajes
que en las grandes ciudades – propicia ese carácter dual al espacio. En las narrativas
analizadas, observaremos como, en un mismo ambiente, existe la mescla entre el miedo
sobrenatural, construido, principalmente, por el imaginario popular, de las narrativas
orales fantásticas, y el natural, notable por la presencia de la violencia de los personajes
de naturaleza agreste, típicos del sertão.
Palabras-clave: Afonso Arinos; Configuración espacial; Sertão; Imaginario popular.
INTRODUÇÃO
Podem-se classificar os espaços narrativos da literatura brasileira em três
macro-ambientes: o metropolitano; o rural e o selvagem. A mesma sistematização é
válida para os estudos da literatura do medo em nosso país. Por um lado, há muitas
semelhanças no modo como o medo é produzido nas narrativas que se passam em
cidades, florestas ou no sertão – através do uso do campo semântico da escuridão, da
degradação, da morte etc. –, tão diferentes cenários, por outro lado, apresentam também
suas peculiaridades quanto à forma com que se configura o medo neles.
No ambiente metropolitano vemos que os medos predominantes são da esfera
do natural. Os agentes do medo são outros humanos que, diante do ambiente opressor e
caótico da cidade, irrompem como ladrões, assassinos, psicopatas etc. Já no ambiente
selvagem, o medo provém do desconhecido, dos seres sobrenaturais que habitam a
floresta e de suas forças avassaladoras. O espaço rural, por sua vez, surge como um
híbrido entre os outros dois espaços, uma vez que se situa na fronteira entre o civilizado
– as pequenas vilas, as fazendas – e o selvagem.
Pensando o sertão como espaço limítrofe entre o urbano e o selvagem, esse
artigo pretende mostrar como se configuram os espaços e os agentes do medo existentes
nele, e para isso fará uma análise de duas obras: o livro Assombrações do Recife Velho,
de Gilberto Freyre, uma compilação dos “causos” de assombração mais típicos de
Recife, e alguns contos de Afonso Arinos, retirados de duas de suas obras: Pelo sertão e
histórias e paisagens. Com isso poderemos perceber os paralelos do medo sertanejo na
literatura e nas narrativas populares.
“ASSOMBRAÇÕES DO RECIFE VELHO”
O livro de Freyre é uma coletânea de relatos sobre alguns lugares de Recife
tidos como mal assombrados e alguns personagens típicos dessas histórias. Já em sua
introdução, mostra como a urbanização foi progressivamente afastando os elementos
sobrenaturais, com a aparição dos lampiões modernos, que emitiam uma luz mais forte
e vívida. De acordo com o sociólogo, a troca desses lampiões:
[...] foi afugentando os fantasmas não só das ruas como do interior das
casas. Obrigando-os a se refugiarem nos ermos, nos cemitérios, nas
ruínas, nos restos de igrejas, de conventos, de fortalezas, nos casarões
abandonados, nas estradas tão sombreadas de arvoredo a ponto dessas
sombras abafarem a própria luz dos lampiões de gás. (FREYRE, 2013,
p.35)
Esse movimento temporal que sai de um passado sobrenatural em direção a
um futuro naturalizado é análogo ao espacial, na saída de um ambiente selvagem em
direção a um espaço plenamente urbanizado. Em ambos os casos, a cidade do sertão é
um entrelugar, visto que é um devir da metrópole, tendendo à expansão e com isso à
modernização.
Freyre observa que os seres sobrenaturais que causam medo ao sertanejo, uns
tem sua gênese no próprio espaço do sertão, enquanto outros pertencem ao ambiente
selvagem. Essa ecologia do sobrenatural nos ajuda a perceber o que nasce propriamente
do ambiente interiorano e o que vem de herança do ambiente enquanto espaço não
civilizado:
Não se pense que as assombrações mais características do Recife —
das quais são aqui apresentadas algumas — não têm a sua ecologia.
Têm. A história natural às vezes limita a sobrenatural. São as
assombrações do Recife assombrações de cidade, para a qual
“caipora”, “boitatá”, “curupira”, “saci-pererê” são entes fora-de-portas.
Mitos rústicos e não urbanos. (IBID., p.40)
Logo, as criaturas dos ambientes mal iluminados antes mencionadas não eram
esses “entes fora-de-portas”, mas criaturas próprias do ambiente sertanejo, que o autor
menciona em seguida ao processo de iluminação das ruas, que foi um “golpe quase de
morte no domínio que até então vinham exercendo as almas dos mortos sobre as ruas
escuras do Recife. As almas dos mortos e os lobisomens e mulas-sem-cabeça.” (IBID.,
p.35). Tais criaturas só podem existir num ambiente minimamente urbanizado, visto que
todas provêm diretamente dos próprios homens. Mortos, lobisomens e mulas-sem-
cabeça foram algum dia humanos que se transformaram, diferente do saci, do curupira e
do boitatá, que independem da presença humana pra existir.
Ao descrever alguns dos casos conhecidos, Freyre menciona a figura do
Cabeleira, ser que servirá aqui como arquétipo do agente do medo no sertão. De nome
José Gomes, esse bandido foi eternizado no imaginário nordestino e, de tão famoso,
ganhou um romance de Franklin Távora. O interessante, porém, para esse artigo, não é
sua trajetória enquanto vivo, mas a persistência de sua figura após a morte no
imaginário da população:
Entretanto, morto Cabeleira para o recifense civilizado, tanto quanto
para o matuto esclarecido do interior, ele passou, para muita outra
gente, a mais que existir: a subsistir à própria morte. A existir como
mito. E esse mito, um mito de terror. (IBID., p.48)
O aterrorizante fora-da-lei é uma figura típica do medo urbano, visto que, em
essência, em nada se diferencia de qualquer outro cidadão sertanejo. Mas, enquanto o
típico agente do medo urbano, após capturado ou morto, finda seu efeito aterrorizante
sobre a população, Cabeleira persiste mesmo após sua morte: torna-se assombração.
Esse trânsito do natural ao sobrenatural serve de base para a presença do agente do
medo sertanejo, como veremos ao analisar as figuras recorrentes dos causos.
FIGURAS DO MEDO
Freyre elenca uma série de histórias de assombração1 – atestadas por seus
narradores como reais, e não como lendas ou mitos. Além de seu caráter intersticial
(natural/sobrenatural), tais seres apresentam-se também num estágio intermediário entre
o civilizado e o não civilizado. Os agentes do medo urbano tem sua existência pautada
pelo ato cometido. Momentos após o crime, um psicopata mistura-se à multidão e deixa
de causar medo, é só mais um na cidade. Já o medo das regiões selvagens parece ser
predominantemente marcado por figuras bem específicas, com nome, características e
comportamentos conhecidos. É o caso do Saci, do Curupira, da Boiúna, do Boto etc. No
sertão, seus entes não são criaturas específicas nem dispersas na multidão, mas, na
maioria dos casos, classes de criaturas: não há um medo de um lobisomem específico,
com nome, localização e descrição, mas há o medo de lobisomens no geral, uma classe
de criatura, que pode irromper na cidade.
Uma das figuras mais recorrentes entre os causos contados, o fantasma aparece
sempre relacionado com algum fato de sua vida. Casos de negros torturados, homens
amaldiçoados, homens ricos e pagãos que voltam do mundo dos mortos por seus
tesouros. Os fantasmas, porém, não são sempre criaturas que visam ao mal dos vivos,
sendo descritos em muitos trechos como seres que buscam auxílio ou que desejam
1 Para Freyre, o termo assombração não se refere apenas a fantasmas mas a qualquer ser
que assombre, ou seja, que cause o medo sobrenatural.
auxiliar os vivos em alguma coisa. Muitos desses fantasmas encontravam na morte a
redenção para suas vidas monstruosas. É o caso do Visconde de Suassuna:
É tradição que o visconde de Suassuna, patriarca duramente ortodoxo,
justiçava ele próprio os escravos da casa do Pombal. Açoites, torturas,
a própria morte, à revelia da justiça do Império. Os mortos eram,
contra a lei, enterrados no próprio jardim, para fecundarem as terras
de onde, na verdade, rebentavam as mais belas rosas do Recife.
Gostando de pastoris, o visconde gostava também de oferecer às
pastoras rosas como não houvesse iguais na cidade. Rosas
avermelhadas a sangue de negro. (IBID., p. 99).
Quando morto, por sua vez, passa a
[...] pedir perdão a escravos que maltratara. Também a pedir missas.
Missas para sua pobre alma de rico arrependido dos pecados contra os
negros. Chegava a visagem a fazer sinal com os dedos para indicar
com precisão matemática aos vivos o número de missas que desejava
fossem mandadas dizer por sua alma pela pessoa a quem aparecesse:
três, quatro, às vezes cinco missas. (IBID., p. 98)
O ato de torturar, matar e enterrar os escravos no quintal para depois servir de
fertilizante é monstruoso. Mas quando se torna um “monstro”, após a morte, passa a
pedir missas por sua alma, não aterrorizar.
Se por um lado temos os monstros em vida se redimindo após a morte, temos,
também aqueles que em vida sofreram, tornando-se, depois de mortos, fantasmas. Em
“O sobrado das três mortes”, Freyre mostra o caso de um sobrado que foi cenário de um
assassinato cruel e passou a ser mal-assombrado pelas “vítimas de horrível tragédia”.
(IBID., p.151)
Outra figura muito mencionada por Freyre é a do lobisomem, descrita por ele
como
[...] um tanto de homens um tanto de lobos, de cães danados, de bodes
infernais, de gatos com olhos de fogo, de porcos doidos por lama e
imundície: monstros que a bala comum não mata mas só a de prata
que tiver levado um banho de água benta. (IBID., p.42)
O lobisomem do sertão não é uma simples mistura de homem com lobo, mas
parece ser contaminado por outros animais. Além de sua aparência, outras
peculiaridades também chamam a atenção, como os sintomas manifestados por um
suposto lobisomem em forma humana:
[...] o doutor branco, em vez de branco ou apenas pálido, era homem
quase sem cor: de um amarelo de cadáver velho. Soube depois que
vivia tomando remédio — ferro e mais ferro — para ganhar sangue e
cor de gente viva. Remédio de botica e remédio do mato, feito por
mandingueiro ou caboclo. (IBID., p.56-57)
Enquanto homem, o lobisomem apresenta palidez e aspecto doentio, sendo
comparado a um cadáver velho. Friso aqui tais características como marcas de um dos
mais canônicos monstros do terror: o vampiro. Caso fosse essa a única característica
semelhante poderia ser tomada como uma coincidência, porém outro trecho termina por
revelar a proximidade: “Também se diz, no Recife, do lobisomem, que chupa sangue:
sangue de moça e sangue de menino” (IBID, p. 118).
Se o lobisomem tem a marca étnico-social do branco rico, há uma terceira
figura do medo sertanejo que é temida e respeitada pelos brancos: o mandingueiro, o
caboclo que, ao longo de todo livro de Freyre e em boa parte dos contos sertanejos, é
tido como autoridade no campo do sobrenatural. Transitando entre o mundo natural e
sobrenatural, o feiticeiro parece surgir como ponte entre esses dois mundos, sendo
mencionado como mediador em casos de lobisomem, fantasmas, invocações
demoníacas e maldições.
Uma constante entre todas as figuras mencionadas é, sem dúvida, a presença de
certos espaços recorrentes para sua aparição. As assombrações do Recife tem uma clara
predileção pelo espaço dos casarões abandonados, local que serve como metáfora para a
própria ideia do hibridismo entre o espaço civilizado e não civilizado, uma vez que
apesar de ser uma construção urbana, está vazia e isolada.
O FANTÁSTICO EM ARINOS
Afonso Arinos, nascido no interior de Minas Gerais, vivenciou a cultura
sertaneja, sendo um grande apreciador desse ambiente, visto que, mesmo depois de
mudar-se para cidades maiores, voltava constantemente à pequena cidade onde nasceu.
Tal é o impacto desse ambiente no autor que suas obras mais famosas giram em torno
do espaço do sertão, não deixando nunca de lado elementos do imaginário sobrenatural.
Tal aspecto se revela em alguns de seus contos, servindo de elemento
comparativo aos estudos de Freyre. O espaço típico das assombrações do Recife aparece
como ambiente de um conto chamado “Assombramento”. O protagonista deseja testar a
casa que dizem ser mal-assombrada, vencer os medos. Manuel Alves, tropeiro veterano,
decide então passar a noite em tal local, indo contra os conselhos de seus companheiros.
A casa reúne muitos dos aspectos cruciais para uma descrição de ambiente de medo,
marcado pela escuridão, pela degradação estrutural e pela podridão.
Uma vez dentro, Manuel começa a explorar o local enquanto uma forte
ventania começa do lado de fora, entrando pelo casarão. Em nenhum momento o
protagonista tem mais do que sensações, a maioria supostamente causada pelo vento,
mas magnificada pelo espaço do medo:
Pouco depois, um estrépito medonho abalou o casarão escuro e a
ventania – alcateia de lobos rafados – investiu uivando e passou à
disparada, estrondando uma janela. Saindo por aí, voltaram de novo os
austros furentes, perseguindo‐se, precipitando‐se, zunindo,
gargalhando sarcasticamente, pelos salões vazios. (ARINOS, 2006,
p.26)
Apesar dos ruídos sugestivos, que poderiam ser vistos como oriundos de
assombrações, o elemento que mais confirma o caráter fantástico do conto, impedindo-
nos de ver unicamente o evento como uma mente influenciada de um homem com medo,
é a presença de um tesouro no porão da casa:
O arrieiro, ensanguentado, jazia no chão estirado; junto de seu corpo,
de envolta com torrões desprendidos da abóbada de um forno
desabado, um chuveiro de moedas de ouro luzia. (IBID., p.35)
Um dos motivos comuns para o aparecimento de fantasmas é a presença de
dinheiro. Muitos deles tentam recuperá-lo, enquanto outros parecem desejar que o
dinheiro seja encontrado e gasto. Sendo assim, sem confirmar a presença da
assombração, mas tampouco sem deixar de inserir alguns indícios de sua presença,
Arinos constrói um conto engenhoso que deixa o leitor na dúvida sobre a natureza do
evento.
Se em “Assombramento” o protagonista teme o ambiente da casa, em “Garupa”
é todo o sertão que se preenche com a aura do medo. Benedito Pires, um cuidador de
éguas, parte com um amigo vaqueiro até uma localidade próxima, quando no meio do
caminho seu companheiro é alvo de uma morte súbita. Não podendo deixar o corpo de
seu amigo ali – não velar um corpo pode fazer com que o morto volte para assombrar –
se vê obrigado a carregar o cadáver consigo no cavalo, e o amarra em suas costas. A
partir de então começa sua jornada pelas trilhas do sertão acompanhado pelo morto,
durante a qual experimenta o que parece ser uma travessia pelo mundo dos mortos:
Daí, patrão, enfim, entendi que aquilo tudo por ali em roda era algum
logradouro da gente que já morreu, alguma repartição de Noss’enhor,
Por onde a gente passa depois da morte. Mas, aquele escuro e aquele
frio! Sim, era muito estúrdio aquilo. Ou quem sabe se aquilo era um
pouso no caminho do outro mundo? Numa comparação, podia bem ser
o estradão assombreado por onde a alma, depois de separada do corpo,
caminha para onde Deus é servido. (IBID., p. 160-161).
Da mesma forma que ocorre em “Assombramento”, mesmo que se possa
afirmar que tudo não passou de um delírio causado pelo medo, o conto dá indícios de
que havia algo de estranho na cena. O primeiro é que, ao chegar ao vilarejo com seu
amigo nas costas, em toda casa que tentava pedir ajuda e mesmo na igreja, todos o
tratavam como uma assombração, gritando, esconjurando e trancando as portas. Além
disso, ao fim do conto, o protagonista confessa que o frio sentido aquela noite nunca o
abandonou, um frio que não era daquele mundo, concluindo, novamente o conto numa
atmosfera do fantástico.
A figura do preto velho também aparece em Arinos, especificamente num
conto chamado “A feiticeira”. Apesar do nome, quem de fato faz os feitiços é um ex-
escravo conhecido como tio Cosme. A feiticeira do título é uma referência a quem
busca o auxílio dele, Benedita. Tal como os feiticeiros descritos em Freyre, Cosme
inspira tanto medo quanto respeito, sendo procurado por uns e temido por outros:
Empregava essas patranhas em serviço de seu ódio aos brancos, de
vingança contra os sofrimentos de sua raça. Espécie de pajé negro, era
Cosme o espírito de revolta entre os seus malungos. Ninguém ousava
ofendê‐lo, porque um terror supersticioso, ao qual os próprios
fazendeiros não escapavam, opunha uma verdadeira muralha a
qualquer agressão à sua pessoa. Verdadeiro duende no meio daqueles
homens simples, ninguém duvidava da eficácia de suas pragas. (IBID.,
p. 181).
Vemos que aqui o fantástico já opera nas expressões modalizadoras, visto que
ao usar supersticioso o narrador traz a dúvida sobre a eficácia de suas magias, mesmo
que “ninguém duvidasse da eficácia de suas pragas”. Vemos também como a presença
do sofrimento dos negros é marcada, reafirmado a possibilidade de parte dessa mística
sertaneja ser um subterfúgio dos escravos contra seus senhores.
Em troca da realização do feitiço pedido por Benedita – um feitiço de amor em
Miguel, por quem era apaixonada – Tio Cosme pede a ela o filho do senhor da casa
onde trabalhava, o pequeno Joaquim. A descrição de como faria o feitiço incrementa o
poder aterrorizante dessa figura:
Menino! menino! O bracinho tirado do corpo ainda quente, há de
mexer tachada de cale ao logo. Quem o beber, mexido assim, na hora
de torrar, perde logo o pouco-caso e apanha rabicho. E eu tenho
encomenda... Deixe ver: uma, duas. Três pessoas que querem remédio
para desprezo... A Rosa ainda ontem me falou nisso. Ora! Num
instante o Quim larga da outra: é só o tempo de beber o café, das mãos
da Rosa. Eu apronto a coisa: tiro o bracinho do menino... Hei de
afogá-lo primeiro: não custa muito. Quando pego algum nhambu na
urupuca, ele nem chega a sofrer: sei dum lugar no pescoço que é só
apertar um pedacinho de tempo – O bichinho morre logo. Assim o
menino: é mesmo que passarinho... (IBID., p. 185).
Em Freyre vemos um caso semelhante em “O papa-figos”:
Desses meninos sussurra a lenda que o africano, protegido pelo branco
opulento, arrancava em casa os fígados para a estranha dieta do doente.
Só assim evitou-se — diz a lenda que parece ser muito recifense —
que o argentário continuasse a alarmar a população sob a forma de
terrível lobisomem. Curou-se mas de modo sinistro. (Freyre, 2013,
p.82)
Vemos nesses casos a dualidade do medo presente. O feitiço em si, apesar de
ser do campo sobrenatural, não é o causador do impacto na cena. O que causa o medo
aqui é a crueldade humana dos negros velhos. Se por um lado eram temidos pelo
sobrenatural, podiam também ser temidos por sua índole e pelo que poderiam fazer no
mundo natural, transparecendo mais um exemplo do hibridismo das figuras do medo
sertanejas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vemos assim que o caráter híbrido do espaço sertanejo, como sendo um
ambiente que se encontra no limiar do civilizado com o selvagem, influencia também na
formação de seus medos, convergência dos males do homem e do mundo sobrenatural.
Formam-se, então as criaturas que, partindo de ações naturais, perpetuam-se nos mitos.
Na literatura de Arinos comprovamos esse aspecto intersticial do medo sertanejo nas
histórias de caráter fantástico, sempre entre os aspectos naturais e não naturais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARINOS, Afonso. Contos. SãoPaulo: Martins Fontes, 2006. [1921, publicação
póstuma]
COHEN, Jeffrey Jerome et al. Pedagogia dos monstros; os prazeres e os perigos
da confusão de fronteiras. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.
FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife velho. Digital source. Disponível
em: <http://pt.scribd.com/doc/36353342/Gilberto-Freire-Assombracoes-do-Recife-
Velho-pdf-rev>. Acesso em: 03 mai. 2013.
SOUSA, Inglês de. Acauã. In:__. Contos Amazônicos. 3ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2004. (pp. 59-71)
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