VÍCTOR GABRIEL RODRÍGUEZ
Argumentação Jurídica
ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Técnicas de persuasão e lógica informal
Víctor Gabriel Rodríguez
Martins FontesSão Paulo 2005
C opyright © 2005, Livraria M artins Fontes Editora Ltda.. São P au lo, para a presente edição.
1- edição2002 (Editora LZN)
3â edição 2004 (Editora Vox)
4- edição revista e ampliada2005
Acompanhamento editorialH elena Guimarães B ittencourt
Preparação do original Ana M aria de O. M. Barbosa
Revisões gráficas M aria Luiza Favret
lvan i A parecida M artins Cazarim D inarte Z orzanelli da Silva
Produção gráfica Geraldo Alves
Paginaçâo/Fotolitos Studio 3 D esenvolvim ento Editorial
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Rodríguez, Víctor Gabriel A rgum entação ju rídica : técnicas de persuasão e lógica in
form al / Víctor G abriel Rodríguez. - 4* ed. - São Paulo : M artins Fontes, 2005. - (Justiça e direito)
ISBN 85-336-2194-9
1. A rgum entação forense 2. Lógica 3. Persuasão (Retórica)I. Título.
05-6235 C D U -34:16
índices para catálogo sistemático:1. A rgum entação jurídica 34:16
Todos os direitos desta edição reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
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índice
Introdução (aos professores).................................................. XIIIPrefácio................................................................................... XVII
I. A argumentação existente................................ 1Um mínimo escorço histórico............................. 8
II. O argumento.......................................................... 13Os três tipos de discurso....................................... 13A disputa entre dois certos.................................. 16Argumento e verdade........................................... 20Os objetivos e os meios da argumentação........ 23Características da argumentação........................ 27
III. Argumentação e fundamentação. Pensando no ouvinte......................................................... 31O discurso científico.............................................. 31Um corte de casimira............................................ 33Argumentação x fundamentação: a distinçãorelativa....................................................................... 40Uma eterna desvantagem: o ponto de vista comprometido......................................................... 44
IV. Ouvinte específico e discurso genérico. In-tertextualidade...................................................... 49O auditório universal............................................ 50A intertextualidade................................................. 53
V. Progressão discursiva e coerência.................. 57A coerência.............................................................. 57Coerência e percurso............................................. 60Estabelecendo a coerência.................................... 63Coerência e sentido: a dependência do mundoexterior....................................................................... 65Coerência e extensão da argumentação........... 72Texto e ritm o............................................................ 75Coerência, intertextualidade e intenção: quebrando regras........................................................... 80Falar algo, dizer outra coisa................................. 82Quatro dicas a respeito da coerência................. 85
VI. Narrando os fatos................................................. 89Características da narrativa: figuratividade...... 90Características da narrativa: transcurso do tempo. 91Função argumentativa da narrativa dos fatos.A questão do ponto de vista do narrador.......... 94Coerência narrativa................................................ 100Conclusão................................................................ 106
VII. Argumento de autoridade: apelando paraa opinião do experto........................................... 107Apresentação: os tipos de argumento............... 107A autoridade............................................................ 108Argumentum ad verecundiam ................................ 110Ciência e verdade................................................... 114A confiabilidade da opinião da autoridade:quia nominor leo....................................................... 117Estabelecendo a validade do argumento.......... 119A questão do experto............................................ 121Questão da área...................................................... 124Questão da validade da opinião.......................... 126Questão da confiabilidade.................................... 128Questão da consistência....................................... 130Questão das provas................................................ 131As perícias em geral............................................... 133
Os pareceres............................................................ 134Combatendo o argumento ad verecundiam....... 137Nada contra os clássicos. Mas.............................. 140
VIII. Argumento por analogia: o uso da jurisprudência ....................................................................... 143A analogia e a ilustração....................................... 143Jurisprudência: analogia e autoridade................ 145Uso da jurisprudência: quantidade e qualidade 148Segue: valor e uso da jurisprudência.................. 150Combatendo o argumento de analogia............ 151
IX. Exemplo, figuratividade e ilustração do discurso.......................................................................... 153O exemplo............................................................... 153Requisitos do exemplo.......................................... 155Representatividade do exemplo......................... 159Falando em ilustração........................................... 160Ilustração e argumento......................................... 162Mau uso da ilustração........................................... 166Tendência atual da figuratividade...................... 167A imagem e sua importância: a questão dapresença.................................................................... 169Conclusão................................................................ 171
X. Estrutura lógica e argumento: a fortiori, ad absurdum e ridículo............................................... 173O argumento jurídico............................................ 173O argumento contrario sensu................................ 173O argumento ad absurdum ................................... 176O uso da ridicularização....................................... 182O argumento a coherentia...................................... 184Lei ou brechas da lei? ............................................ 187Argumento a fortiori............................................... 190O córax...................................................................... 194Argumento ad hominem ........................................ 195Conclusão................................................................ 201
XI. Argumentação fraca: fuga e senso comum .. 203A argumentação corriqueira................................ 203O argumento de senso comum........................... 204Argumento de fuga................................................ 210Conclusão................................................................ 213
XII. Quando a linguagem é argumento.................. 215Predisposição à argumentação............................ 215Palavra....................................................................... 217Conteúdo e form a.................................................. 219A linguagem adequada......................................... 221O discurso jurídico................................................. 224Linguagem técnica x jargão................................. 226Competência lingüística e linguagem corrente 229Carga semântica..................................................... 232Expressões latinas e brocardos jurídicos........... 233Conclusão................................................................ 235
XIII. Honestidade da argumentação e ordem dosargum entos............................................................ 237Honestidade e falácia............................................ 237Ordem dos argumentos........................................ 243Momentos principais da argumentação........... 245Criando argumentos............................................. 250Argumentar ou mostrar erudição?..................... 253Conclusão................................................................ 254
XIV. Espaço da argumentação jurídica: sentençae teses subsidiárias............................................. 255Sentença como espaço argumentativo............. 255Teses subsidiárias e efeito argumentativo......... 258Argumentar é colocar em dúvida....................... 259Tese subsidiária e aceitabilidade em juízo......... 262A fundamentação do juiz: demonstrativa ouargumentativa?....................................................... 264Conclusão................................................................ 266
XV. Peculiaridades do discurso oral................... 269Discurso oral e discurso escrito.......................... 269Discurso oral, papel e evidência......................... 270Predisposição à argumentação no discurso oral 274Carisma e empatia: uma difícil definição.......... 278Discurso parlamentar............................................ 282Discurso no tribunal do júri................................. 284Conclusão................................................................ 286
XVI. Peculiaridades do texto escrito ....................... 287Uma premissa: quem lê o que escrevemos?.... 288Escrita e coesão textual......................................... 290Gramaticalidade e pontuação.............................. 295Algumas dicas de construção.............................. 298Escrita como fator argumentativo...................... 302
XVII. Argumentação, estilo e subjetividade.......... 303Construir um estilo, edificar uma imagem....... 306O segredo final: a humildade.............................. 308Conclusão................................................................ 310
XVIII. Argumentação e criatividade........................... 311Medo de mudanças ou medo de que as coisasnão m udem ?........................................................... 312Criatividade e informação.................................... 317Novidade e persuasão........................................... 322Renovando o discurso........................................... 325Conclusão................................................................ 327
Bibliografia.............................................................................. 329
El and ar a caballo a unos h ace caballeros, y a otros caballerizos.
Cervantes, "De los consejos segundos que dis Don Quijote
a Sancho Panza", p. 734.
Introdução(aos professores)
Este livro foi idealizado em sala de aula. Quando veio em primeira edição, trazia a experiência de nosso trabalho na Escola Superior de Advocacia da OAB/SP. Ao notar que os alunos, todos advogados, interessavam-se muito pelo tema da argumentação, acreditei que as principais lições pudessem ser perfiladas em um manual.
Hoje aqui já se encontra em quarta edição, bastante reformulada. Tive novos aprendizados, não só pelo aprimoramento científico e por repensar em todas as sugestões que me foram feitas, mas principalmente por coordenar um curso específico de argumentação, na graduação em Direito.
Sei que este livro tem sido adotado em muitas faculdades, como norte de matérias zetéticas ou como referência de construção de discurso em vários cursos ligados à área jurídica, no pós-graduação. Tenho visto de perto alguns deles e louvo a iniciativa de muitos professores de ministrar essa disciplina, principalmente (vá lá a modéstia) caso utilizem esta obra. Porém indico a todos que queiram conhecer, em especial a coordenadores de departamento, como nós, a experiência que se tem feito ao instaurar uma disciplina específica deste tema na graduação em Direito. Em outros países, como se sabe, a prática é comum.
A este autor vem a alegria de ver, recentemente, reconhecida a argumentação - assim, autônoma - como fator relevante de estudo para os cursos de Direito, pelo próprio
XIV ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Conselho Nacional de Educação (Resolução CES/CNE n?09, de 27/9/04, art. 4?, inc. VI). Entendemo-nos pioneiros na instauração de um curso dessa natureza, bem como em perfilar um manual do assunto que desse a ele tratamento moderno e prático no país.
Neste livro, espera-se que tanto o professor quanto o aluno e o operador do Direito tenham uma leitura agradável, mas principalmente - como aqui nos dirigimos aos professores - que se possa apresentar um programa, em lições diversas, que venha efetivamente a desenvolver o potencial argumentativo de cada aluno, principalmente ao que interessa em curso de graduação em Direito.
Como livro de leitura didática ou paradidática, as normas de metodologia científica certamente não se encontram rígidas. As anotações de rodapé são incluídas apenas nos momentos mais decisivos, em que foi necessário um argumento de autoridade, ou para fazer complementações e remissões que, por coerência, não couberam no corpo do texto.
Aos professores que utilizam a obra, em primeiro lugar os agradecimentos pelas considerações que são feitas a respeito dela. Depois, o conselho - talvez evidente - de que o curso de argumentação siga metodologia de ensino aberta e interdisciplinar. Nossos exemplos, aqui, muitas vezes abordam as artes, a literatura e o cinema para servir de apoio à intelecção e estímulo ao diálogo com os demais tipos de linguagem, em que está alicerçada a tese fundamental do livro e do curso: a de que o operador do Direito é também um profissional da comunicação. As aulas, portanto, não devem ser diferentes: devem estimular o diálogo e a leitura constantes, para muito além deste manual.
Aliás, as idéias e conceitos aqui não se cristalizam e estão, claro, apresentados à crítica e ao debate.
De qualquer modo, seguro é que vale implantar a disciplina de Argumentação Jurídica, como autônoma, nos cursos de Direito, não apenas pelas diretrizes curriculares ora vigentes, mas por fazer parte da formação do aluno, já que,
INTRODUÇÃO (AOS PROFESSORES) XV
neste mundo pós-moderno, por questões que aqui não vale aprofundar, é imprescindível fomentar o trabalho do raciocínio, para que não prevaleça a ilusória impressão de que o excesso de informação importa diretamente em capacidade para a construção do raciocínio.
É só.
Prefácio
Conheci o advogado Víctor Gabriel quando ele ainda era estudante, no Largo São Francisco. Lá, eu ministrava aulas na matéria de Técnicas de Negociação e Arbitragem e já notava seu interesse pelas técnicas de argumentação, as quais faziam parte de nosso programa curricular.
Sempre entendi serem as disciplinas de argumentação imprescindíveis ao operador do Direito, em especial ao advogado, por isso me satisfazia adentrar nesse tema, lecionando na Faculdade de Direito. Vejo, agora, que aquelas aulas renderam frutos: Víctor, hoje professor na Escola Superior de Advocacia, escritor de ficção e mestre e doutorando na mesma Faculdade de Direito, com intensa atividade letiva, apresenta-me para prefaciar uma interessante obra sobre técnicas de persuasão.
O livro não abandona a retidão científica, mas, antes de apresentar-se como uma obra caudalosa, destinada à reflexão acadêmica sobre a lógica informal e a lógica jurídica, é uma obra didática, que certamente contribuirá para o leitor em sua atividade profissional, no desenvolvimento de suas teses, em seus discursos forenses ou em suas monografias jurídicas.
Com exemplos claros, retirados de casos famosos, da literatura ou da doutrina, o autor apresenta uma gama de lições sobre os vários tipos de argumentos, seu uso, sua propriedade e, também, seus defeitos; mostra-nos que pensar
XVIII ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
sobre a argumentação é tarefa imprescindível ao bom operador do Direito, para que seu estudo jurídico possa se tornar dinâmico, vindo a operar-se com maior eficiência.
Sem dúvida, o leitor da obra perceberá que, ao terminar sua leitura, terá adquirido relevante conhecimento, que lhe permitirá lidar com a necessidade de persuadir com maior desenvoltura, ampliando vastamente a gama de recursos suasórios a sua disposição.
Trata-se de leitura extremamente recomendável aos que querem operar o Direito com competência e refletir sobre a lógica argumentativa, além de bom livro-texto para a disciplina. Mais uma mostra da capacidade e do preparo do autor.
Celso Cláudio de Hildebrand e Grisi Professor Titular da Faculdade de Economia
e Administração da Universidade de São Paulo Bacharel em Direito pela USP
Capítulo I
A argumentação existente
Estudar argumentação não significa, hoje, rever discursos empolados. Mas não resta dúvida de que, em sistema jurídico aberto, essa disciplina alcança campo de estudo muito maior que o para ela reservado alguns anos atrás. Por quê?
"Terias preferido limpar os estábulos de Áugias"1, afirmou o imperador Cláudio a Hércules, querendo provar que o herói teria preferido fazer a limpeza daqueles estábulos, o que representara um de seus doze trabalhos, a administrar a justiça e ouvir a argumentação dos advogados. Realmente, fica a impressão de que a argumentação, para quem a faz ou a escuta, seja algo enfadonho, ligado aos discursos longos, empolados e capciosos de advogados e políticos, que muito falam e pouco dizem. E, a julgar pela antiguidade da citação, essa impressão não é nova.
Mas será que toda argumentação é enfadonha?Quando se pretende tornar um tema qualquer aplicável
a determinada realidade, não se pode afastar dela. Assim, se aqui se tem o anseio de, como já apresentado na Introdução, rever algumas técnicas argumentativas para colaborar com o operador do Direito na construção de seu discurso persuasivo, ou seja, na forma de tomar mais convincentes suas teses, precisamos, a princípio, saber se existe realmente compatibilidade entre a teoria e a prática, se o mundo real demanda ou ao menos aceita as técnicas argumentativas a serem desenvolvidas.
1. "Maluisses cloacas Augeae purgare". In: TOSI, Renzo. Dicionário de sentenças latinas e gregas, p. 747.
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Em outras palavras, para dar continuidade à questão anterior, procuremos apresentar a resposta a esta pergunta: para o operador do Direito atual é importante bem argumentar?
A resposta não é imediata. A experiência na atividade forense não raro tem mostrado a toda classe de operadores do Direito algo como a massificação da atividade: os advogados, com demandas em excesso, algumas delas financeiramente pouco promissoras, utilizam-se dos recursos tecnológicos para reproduzir argumentações copiadas de textos já existentes, nem sempre com propriedade. Juizes, diante da obrigatoriedade de dar célere desfecho às lides sob sua presidência, proferem julgados cujo relatório mal permite ao leitor depreender que seu autor tenha sequer tomado conhecimento da extensão e dos limites do processo. Na fundamentação das decisões judiciais a praxe não alcança caminho diverso: a pressa em proferir a decisão e a repetição das teses levadas a juízo justificam, ao menos na aparência, discursos progressivamente sucintos ou padronizados, com remissões a outros julgados como prova de legitimidade do posicionamento adotado, quando não se furtando a responder a argumentos pertinentes de ambas as partes demandantes, que merecem, na exposição do raciocínio do julgador, a demonstração do devido provimento jurisdicional.
Mas esse problema não é exclusivo do discurso jurídico e pode ser encontrado em todo o contexto social, que ousamos rapidamente invadir.
A linguagem se dinamiza, e, à medida que a velocidade de transporte de informações aumenta, diminui - ao menos é o que parece - o espaço para a construção do raciocínio argumentativo. Isto é observável em nosso cotidiano: suportes eletrônicos armazenam quantidade inimaginável de texto, um disco de leitura de computador consegue guardar mais jurisprudência que, quiçá, uma biblioteca inteira; mais que isso, todo esse teor de informações pode ser transportado virtualmente pela internet, em questão de fração de segundos, para o ponto mais distante do globo.
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Ter à disposição um número excessivo de informações, a exemplo do mundo virtual levado a efeito pela internet, não significa, porém, maior possibilidade de construção de raciocínio. De forma paradoxal, parece que o efeito é totalmente inverso: uma geração criada com as inúmeras informações da televisão e da internet parece - ao menos parece- cada vez menos capaz de uma construção argumentati- va competente, de elaboração de teses e raciocínios convincentes.
Isto porque, nesse excesso de informações, dispensamos cada vez menos atenção aos raciocínios mais complexos. O fluxo informativo é tão caudaloso que qualquer combinação entre enunciados mais intrincados, ao menos nas matérias humanas, parece ser de menor importância, dispensável. Não há tempo de compreendê-lo, quanto mais de elaborá-lo. A velocidade de produção e absorção de informações não permite reflexão aprofundada.
Tomemos por exemplo um jornal impresso qualquer, desses de grande circulação nacional. Um periódico moderno tem várias seções: empregos, internacional, cultura, informática, imóveis, tecnologia, caderno rural, cada qual com sua miríade de informações, produzidas por agências de notícias espalhadas pelo mundo. São tantas as informações disponíveis ao alcance da redação do jornal que fica difícil selecionar o que irá ser publicado. Nesse contexto, as notícias, porque várias, assumem tamanhos menores, sendo raras as reflexões, as opiniões aprofundadas a respeito de cada uma delas, salvo em uma ou outra página de editorial ou em um destaque especial. O periódico que trouxer notícias muito longas, procurando conduzir seus leitores a uma reflexão mais aprofundada, pode ver surgir contra si um efeito deletério: dispondo de pouco tempo para absorver informações, os leitores elegem o jornal concorrente, que lhes fornece conteúdo parecido, exigindo menor leitura.
Pior ainda ocorre com um jornal televisivo, que conta com minutos e segundos cronometrados para apresentar um denso, ou melhor, um extenso conteúdo informativo: suas
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notícias serão compactadas ao extremo, e procurar-se-á asilo nas imagens para complementar a linguagem telegráfica que o compõe.
Tudo isso não é novidade, apenas ilustração: queremos velocidade na comunicação porque temos pouco tempo disponível para qualquer atividade, principalmente as secundárias. Maximizar produção, otimizar o tempo, aplicar a reengenharia das atividades são máximas do discurso da Administração de Empresas, que convergem para um único ponto: a necessidade de cortar excessos, de concentrar informações, de não se estender em raciocínios que não sejam, antes de tudo, produtivos. Daí, no contexto empresarial, a comunicação sempre direta, as mensagens curtas, as reuniões céleres, a tecnologia fazendo por si só tudo quanto lhe for possível.
Quando voltamos à área jurídica - percebe-se - a realidade não é em nada diversa, seguindo essa mesma tendência: as petições são feitas com forçosa rapidez, muitas vezes recheadas de julgados de pertinência discutível, mas a que se tem fácil acesso. O trabalho argumentativo afigura-se menos compensador porque surte resultados progressivamente menores: na medida em que os juizes não se persuadem com a leitura, o tempo de redação de um texto suasório ou o tempo de preparação de um discurso para convencimento, na reengenharia moderna, pode ser mais bem utilizado na realização de uma audiência, na apreciação de outro processo, em outra reunião em que se cuide de maior valor econômico etc.
É aí que a argumentação parece perder espaço na atividade do advogado e, conseqüentemente, dos demais operadores do Direito. A produção exige fins e não meios, e a retórica do advogado aparece como exemplo mais corriqueiro de um meio pouco adequado ao fim perseguido, o resultado interessante ao cliente.
Será possível, realmente, encarar hoje a argumentação dessa maneira? Para se falar bem claro, é possível crer que, para o advogado de hoje, é necessário mais o conhecimen
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to jurídico propriamente dito e menos a retórica, a argumentação? E a teoria da argumentação seria algo do passado, daqueles advogados antigos que gostavam de discursos longos e monótonos, que seriam totalmente inadequados ao ritmo da advocacia moderna? A argumentação é coisa do passado?
Manuel Atienza, na introdução de seu trabalho As razões do direito2, traz como premissa a seguinte afirmação:
Ninguém duvida que prática do Direito consista, fundamentalmente, em argumentar, e todos costumamos convir em que a qualidade que melhor define o que se entende por um "bom jurista" talvez seja a sua capacidade de construir argumentos e m anejá-los com facilidade.
A premissa é agradável e precisa a todos os estudiosos, mas nossa humilde experiência em sala de aula tem demonstrado que a idéia de capacidade argumentativa como qualidade principal do jurista não tem sido aceita de forma tão unânime como observa o autor. Visões imediatistas ou reducionistas do Direito, observadas do prisma mercadológico, por vezes trazem a ilusão de que a argumentação seja atividade de menor importância para o advogado, como estudo, por assim dizer, antiprodutivo. Daí a necessidade destas informações iniciais, dando conta de que a argumentação é trabalho importante de todo operador do Direito, por mais grave que seja sua demanda por produção.
Vamos responder negativamente. A argumentação é tão imprescindível ao operador do Direito quanto o conhecimento jurídico. Como atividade provinda do raciocínio humano, o Direito não se articula por si só, daí porque somente pode ser aplicado através de argumentos. São os argumentos os caminhos, os trilhos da articulação e da aplicação do Direito.
No Direito, nada se faz sem explicação. Não se formula um pedido a um juiz sem que se explique o porquê dele,
2. As razões do direito, p. 19.
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caso contrário diz-se que o pedido é desarrazoado. Da mesma forma, nenhum juiz pode proferir uma decisão sem explicar os motivos dela, e para isso constrói raciocínio argu- mentativo.
Sem argumentação, o Direito é inerte e inoperante, pois fica paralisado nas letras da lei, no papel. A partir do momento em que se exercita o Direito - e é essa a função de todo profissional que nessa área atua - , a argumentação passa a ser imprescindível. Ela surge de várias fontes: da doutrina dos professores que interpretam e analisam o ordenamento jurídico, das peças dos advogados que articulam teses para adequar seu caso concreto a um ou a outro cânone da lei, da decisão dos juizes que justificam a adoção de determinado resultado para um caso concreto.
Argumentação é instrumento de trabalho do próprio Direito, e então é objeto de previsão legal. Quando a Constituição fala em fundamentos da decisão legal, evidentemente está se referindo aos argumentos formulados pelo Poder Judiciário (embora ainda façamos alguma distinção entre fundamentação e argumentação propriamente dita, mas com princípios muito próximos). Quando determinado recurso cuida a respeito das razões, pede os argumentos que o sustentam, caso contrário será inoperante.
Os argumentos são também a própria essência do raciocínio jurídico. A teoria do Direito somente é aceita na medida em que bons argumentos a sustentem, e também só pode ser aplicada a um caso concreto se outros argumentos demonstrarem a coerência entre estes e a teoria.
Nesse contexto, quem mais argumenta, melhor opera o Direito, melhor o aplica.
O conhecimento jurídico propriamente dito representa, então, uma série de informações que se encontram à disposição do argumentante, mas elas por si mesmas não garantem a capacidade de persuasão. Informações puras não se combinam, não fazem ninguém chegar a conclusão alguma, a não ser que sejam intencionalmente dirigidas, articuladas para convencer alguém a respeito de algo.
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Por exemplo: uma folha de antecedentes criminais do réu juntada aos autos de um processo constitui uma informação, assim como um livro de doutrina jurídica representa também um conteúdo informativo denso em relação a um caso concreto que se pretenda defender. Eles não têm função autônoma para alterar o resultado de um processo judicial qualquer, a não ser que sejam invocados como razão, intencionalmente, por um trabalho de raciocínio: a folha de antecedentes, revelando primariedade do acusado, pode convencer um juiz a aplicar-lhe uma pena no mínimo legal, assim como a citação de um trecho do livro de doutrina jurídica pode convencer a respeito de determinada tese, explicada e defendida por uma reconhecida autoridade no campo do Direito. Em ambos os casos, à informação foi aplicado um raciocínio argumentativo, e somente a partir disso ela passou a surtir um efeito prático.
Assim, a argumentação é a própria prática do Direito, é como ele se opera, principalmente nas lides forenses. Engana-se quem pensa que apenas o conhecimento jurídico interessa ao operador do Direito, pois este representa conteúdo essencialmente informativo.
Por isso, voltando à nossa primeira questão formulada, pode-se dizer que nem toda argumentação é enfadonha, pois assim o próprio Direito o seria. A argumentação é a prática e a dinâmica da operação do Direito, o que nele há de mais ágil e concreto. E vale estudá-la como meio de aprimoramento da atividade jurídica como um todo. Todavia, quem pensa em construção argumentativa como aquele discurso retórico complexo, gongórico, e no estudo da argumentação com reiterada referência a escolas clássicas, pode-se supreender com o estilo deste livro. O que faremos será constituir um estudo com método que efetivamente contribua para a atividade do operador do Direito, de forma que enriqueça sua enunciação argumentativa e tenha parâmetros e exemplos suficientes para conhecer a boa argumentação e assim poder aplicá-la ao conjugar-se com seu conhecimento jurídico em busca de um resultado pretendido. Basta conhecer os métodos.
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Um mínimo escorço histórico
O estudo da argumentação data de antes de Cristo, e sua evolução na Antiguidade pode merecer análise aprofundada para aquele que aprecie a matéria. Porém aqui preferimos não nos prolongar nesse percurso histórico, apenas naquilo que se faz essencial para realçar a importância do estudo desta nossa matéria no Direito atual.
É porque recentemente passaram a existir trabalhos pioneiros de inserção da disciplina de argumentação nas faculdades de Direito brasileiras e, sem falsa modéstia, temos atualmente a honra de participar e dirigir tal matéria em instituições que se preocupam muito com a formação acadêmica integral de seus alunos, que ora nos ocupamos em demonstrar como o estudo dessa disciplina bem se aplica ao Direito. Mas foi no início de 1970 que um filósofo do Direito, e também lingüista, Chaím Perelman (autor, dentre outras obras, do Tratado da argumentação: a nova retórica, já com edição brasileira pela Martins Fontes, 1996) inseriu o curso de argumentação na Universidade de Bruxelas. Por isso, recorremos a ele para discorrer uns poucos parágrafos a respeito da pertinência deste estudo, e desta disciplina, na visão atual que se tem do Direito, ainda que incorramos em certo reducionismo, ou seja, na falta de consideração de alguns fatores muito importantes no assunto.
O autor nota que, durante séculos, o papel da argumentação no Direito era secundário porque as decisões ju diciais não necessitavam ser fundamentadas. O juiz, que deveria buscar antes de tudo o "justo", tinha fontes do Direito não muito claras e não raro confundia - porque assim o era - os preceitos jurídicos com critérios morais e religiosos. O Direito restringia-se quase à atribuição de certos órgãos para legislar e outros para aplicar a lei. Sem a necessidade de fundamentação específica dos julgados, de persuasão racional, era natural que o papel da argumentação e de seu estudo fosse alijado a segundo plano, ainda que valores e maior subjetividade fossem elastério para a aplicação de
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elementos de persuasão. Pense-se, por exemplo, no abso- lutismo monárquico, em que o rei intervinha nas decisões judiciais e raramente se encontravam sentenças com grandes fundamentos, somente uma sucinta exposição de contexto probatório.
Por isso Perelman elege a Revolução Francesa como marco importante para a diferenciação de todo esse contexto. De fato, o advento da separação de poderes, as leis escritas e a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais trouxeram à tona a necessidade da construção do discurso, dos processos escritos, da racionalização do processo de construção do Direito. Depois de muito tempo de arbitrariedade, a Revolução Francesa marca como maior valor jurídico a segurança e a igualdade, ali entendidos como conformidade da decisão com a lei prévia. O juiz submete- se à letra da lei, e é isso o que mais há de relevante em sua atividade: a racionalização como fuga ao subjetivismo e aos privilégios.
E em todo esse contexto misturam-se as idéias de Dar- win, determinando uma origem genética para a raça humana em evolução de espécies, Freud dizendo que pode interpretar sonhos e descobrir a origem para as personalidades, seguidores de enciclopedistas opondo-se à fé e recontando a história, e assim a cultura como um todo aproxima-se do auge do empirismo, da impressão de que, grosso modo, todos os fenômenos podem ser explicados no laboratório. E enquanto o mundo vive o fascínio, como ilustra o personagem Brás Cubas, da "pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas", quando passa "fazendo romantismo prático e liberalismo teórico", no campo das ciências humanas floresce o positivismo de Comte, refratado no Direito por pensadores como Duguit e Hans Kelsen. O Direito afasta- se definitivamente do jusnaturalismo, da crença de que existam valores superiores às leis postas e, assim, procura sistematizar sua atividade com o raciocínio e o cálculo quase cartesiano em sua aplicação. Evolução louvável, mas que parece trazer à argumentação, à linguagem natural e às téc
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nicas de persuasão menor valor, porque afastados da exatidão que demandava o raciocínio jurídico àquele tempo, impregnado de concepções naturalistas.
Porém a crença nos valores exatos e deterministas chega a tal ponto que um tirano calcula que consegue desenvolver empiricamente uma raça naturalmente superior no mundo, a ariana. Tal superioridade física justificaria, de forma empírica, a dominação e o possível extermínio das raças inferiores. Assim, a Segunda Grande Guerra chegou a extremos de quase conduzir a humanidade à extinção. Ao mesmo tempo, o ser humano observa a matemática e a engenharia, que construiu máquinas absolutamente modernas, que tanto eram admiradas, incrementar o instrumental bélico e transformar-se em potencial de morte e extermínio. Mais ou menos por esse percurso é que Perelman elege o processo de Nuremberg como marco de uma nova visão na filosofia do Direito, quando demonstrou que um Estado poderia ser criminoso. Em outras palavras, ainda que juridicamente posto, o Estado poderia ser tremendamente injusto. E cruel.
Entre a Revolução Francesa e o processo de Nuremberg o que se viu foi a valorização do aspecto absolutamente formal e sistemático do raciocínio judiciário, embora atualmente este entendimento seja tido como parcialmente superado. É que se percebe que trabalhar com valores sociais, com expectativas e com conceitos mais amplos, ou confusos, como justiça e igualdade, também é tarefa do Direito como matéria humana. Nas palavras de Perelman, "faz algumas décadas que assistimos a uma reação que, sem chegar a ser um retorno ao Direito natural, ao modo próprio dos séculos XVII e XVIII, ainda assim confia ao juiz a missão de buscar, para cada litígio particular, uma solução eqüitativa e razoável, pe- dindo-lhe ao mesmo tempo que permaneça, para consegui- lo, dentro dos limites autorizados por seu sistema de Direito".
O Direito como processo absolutamente empírico e naturalista está superado. As mais diversas áreas de seu estudo estão progredindo cada vez mais para acrescentar valo
A ARGUMENTAÇÃO EXISTENTE 11
res e possibilidade de argumentação em cada processo e até mesmo conceito da ciência jurídica. Os conceitos têm-se flexibilizado para poder trabalhar paradigmas humanos e acrescentar carga valorativa a seu processo de aplicação.
Nesse sentido, o ordenamento jurídico não mais significa verdade absoluta de um sistema fechado, até porque, como veremos, algumas características suas, indeclináveis, impedem-no de contar com essa exatidão. Encarar o Direito como sistema aberto, que permite a analogia, a comparação, a absorção de características próprias da sociedade cultural implica dar maior relevo à atividade argumentativa, que demonstra, entre as várias soluções possíveis para uma lide, uma mais razoável. Assim, o ordenamento jurídico não é posto de lado, mas encarado como fator orientador e limitador de uma atividade argumentativa que se inicia com aquele que pleiteia a aplicação da norma e termina com aquele que a decide, todos em um grande processo comunicativo.
E a tendência à abertura da hermenêutica do sistema jurídico tem feito desta matéria, a argumentação, algo aceito e cada vez mais aprofundado nas faculdades de Direito, o que é bastante proveitoso.
Capítulo II
O argumento
Para compreender a argumentação deve-se abandonar o conceito binário de certo/errado. No Direito concorrem teses diferentes, e não necessariamente existe uma verdadeira e outra falsa. O que existe é, no momento da decisão, uma tese mais convincente que as demais.
Vimos que a argumentação é necessária àquele que trabalha com o Direito, pois o conhecimento jurídico desenvolve-se por meio de argumentos.
Mas o que são os argumentos? Sem nenhuma dúvida, definir o argumento de um modo bastante simples terá para nós efeito prático.
Acompanhemos, então, essa definição.
Os três tipos de discurso
Argumentar é a arte de procurar, em situação comunicativa, os meios de persuasão disponíveis.
A argumentação processa-se por meio do discurso, ou seja, por palavras que se encadeiam, formando um todo coeso e cheio de sentido, que produz um efeito racional no ouvinte. Quanto mais coeso e coerente for o discurso, maior será sua capacidade de adesão à mente do ouvinte, porquanto este o absorverá com facilidade, deixando transparecer menores lacunas.
Desde Aristóteles, adota-se uma divisão tripartite entre os tipos de discurso. O critério de diferenciação entre eles é o auditório a que se dirige, ou seja, quem são os destinatários finais das mensagens transmitidas pelo discurso. Para cada tipo de auditório, uma maneira distinta de compor o texto que lhe será levado a conhecimento.
ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Pode-se citar Aristóteles:
São três os gêneros da retórica, do mesmo modo que três são as categorias de ouvintes dos discursos. Com efeito, um discurso comporta três elementos: a pessoa que fala, o assunto de que se fala e a pessoa a quem se fala. O fim do discurso refere-se a esta última, que eu chamo o ouvinte. O ouvinte é, necessariamente, um espectador ou um juiz. Se exerce a função de juiz, terá de se pronunciar ou sobre o passado ou sobre o futuro. Aquele que tem de decidir sobre o futuro é, por exemplo, o membro da assembléia. O que tem de se pronunciar sobre o passado é, por exemplo, o juiz propriamente dito. Aquele que só tem que se pronunciar sobre a faculdade oratória é o espectador.1
São os tipos de discurso em Aristóteles:a) O discurso deliberativo é aquele cujo auditório é uma
assembléia tal qual um senado - atual ou da Grécia antiga. A assembléia é chamada a decidir questões futuras: um projeto, uma lei que deverá ser aplicada, o direcionamento de um ou outro plano para se atingir uma meta. Enfim, questões políticas, em que se discute o que é útil, conveniente ou adequado.
b) O discurso judiciário é aquele que se dirige a um juiz ou a um tribunal. Nele decidem-se questões que dizem respeito ao tempo pretérito. Tudo o que está documentado em um processo qualquer são, evidentemente, questões do passado, ainda que possam trazer como resultado eventos futuros. Tais fatos passam por um esclarecimento, para que se comprove sua ocorrência de determinada forma, e depois vão a julgamento, quando são atingidos por um juízo de valor, para que se lhes aplique determinada conseqüência.
Para Aristóteles, o discurso judiciário pode ser a acusação ou a defesa. E esse o tipo de discurso que
1. Arte rctórica. Capítulo III.
O ARGUMENTO 15
aqui mais nos interessa, na medida em que nos propomos a tratar da argumentação jurídica,
c) O discurso epidíctico ou demonstrativo é aquele colocado a uma platéia para louvar ou censurar determinada pessoa ou fato, não se interagindo com o ouvinte a ponto de este necessitar tomar posição sobre o que lhe é relatado. Esse é o tipo de discurso, por exemplo, dos comícios políticos atuais, a que comparecem apenas os eleitores daquele a quem cabe a fala principal, diante de uma enorme platéia, enaltecendo seus próprios predicados.
Mesmo no discurso demonstrativo, em que não existe contraditório, está presente a arte retórica, de valorizar os pontos favoráveis àquele que fala. Por exemplo, é porque em um comício político um candidato não encontra, em número relevante, opositores a quem discursar que sua fala pode deixar de trilhar um caminho argumentativo que leve à adesão de seus ouvintes às idéias que são momentaneamente proferidas.
Veja-se que curioso o trecho de Arte retórica, de Aristóteles, intitulado "Habilidade em louvar o que não merece louvor":
Convém igualmente utilizar os traços vizinhos daqueles que realmente existem num indivíduo, a fim de os confundir de algum modo, tendo em mira o elogio ou a censura; por exemplo, do homem cauteloso, dir-se-á que é reservado e calculista; do insensato, que é honrado; daquele que não reage a coisa alguma, que é de caráter fácil [...]. Importa igualmente ter em conta as pessoas diante das quais se faz o elogio, pois, como diz Sócrates, não custa louvar os atenienses na presença de atenienses.2
O que têm em comum os três tipos de discurso vistos? A resposta é simples: todos procuram convencer. Ainda no
2. Idem, p. 63.
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discurso demonstrativo, cuja única finalidade é enaltecer ou criticar determinada pessoa ou atitude, procura-se convencer os ouvintes a respeito daquilo que se fala: que determinada pessoa é importante, que só tem qualidades etc.
Mas a platéia que temos, quando nos voltamos à atividade principal do operador do Direito, é o juiz ou tribunal, e, se o Poder Judiciário existe para pacificar contendas, tem- se duas partes debatendo. Quando se argumenta nas atividades forenses, na acusação ou na defesa, não se tem como fim principal a deliberação ou o elogio, mas sim a vitória em uma controvérsia.
E a idéia de controvérsia nos conduz a alguns outros comentários um tanto pertinentes. Como a disputa é condição do discurso judiciário, este reveste-se de qualidades que lhe são peculiares, que vale compreender.
A disputa entre dois certos
Participar do discurso judiciário é envolver-se em uma demanda, em uma disputa entre partes. Cada uma das partes, como bem se sabe, procura obter para si o melhor resultado: a sentença e o acórdão favorável. Para isso, têm de fazer vingar uma tese, que envolve questões relativas à prova dos fatos alegados e à incidência de determinado instituto ou conseqüência previstos por lei, para que se aplique o Direito ao efetivo caso concreto. Por isso as partes se di- gladiam, afinal, seria desnecessário um juiz se não houvesse controvérsia: poderia ser fechado um acordo de vontades, tal qual ocorre na assinatura de um contrato. Mas não é assim, naturalmente: cada uma das partes, quando se socorre do Poder Judiciário, entende estar com a razão, às vezes lançando sobre a realidade um olhar por demais comprometido com seus próprios interesses. Na justiça criminal assim também ocorre, pois, ainda que um réu venha a reconhecer seu erro pelo cometimento de um delito, sempre entenderá merecer reprimenda mais leve que a que seu per- secutor lhe deseja.
O ARGUMENTO 17
No Direito, quando se fala em disputa havida por meio da argumentação, surge, primariamente, sempre a idéia do justo. Se duas partes debatem, é natural que se entenda que ao menos uma delas não deva estar com a razão, não seja acobertada pelo Direito, pois não é possível que duas idéias contrárias estejam certas.
Sob tal ótica, a argumentação ou a retórica seriam um instrumento de fazer com que aquele que não tem razão se valha de artifícios formais para enganar o julgador3. Quem nunca viu um advogado ser chamado de velhaco porque disfarça a verdade através de truques, de falácias em seu discurso?
Essa idéia não é rara, mas bastante tragicômica. Em um evidente prejulgamento, entende-se a argumentação como um debate entre um certo e um errado. Ora, se duas teses são conflitantes, uma é correta, outra não, e a disputa da argumentação somente viria a revelar quem é essa parte que procura fazer uma comprovação impossível. Assim, o debate argumentativo poderia ser comparado àquelas imagens dos desenhos animados: a personalidade do protagonista divide-se em dois pólos diferentes: à esquerda, sua imagem travestida de demônio o tenta a uma atitude evidentemente má, enquanto a mesma figura, travestida de anjo, tenta dissuadi-lo, mostrando-lhe o caminho do bem. Fácil saber quem tem a razão, qual o melhor caminho, apenas decidindo-se procurar a forma angelical.
Alguns tentam ver as lides processuais com a mesma obviedade que o jocoso discurso entre o anjo e o demônio, afirmando fazer uso do conceito de justiça. A disputa argu- mentativa seria uma lide em que se daria a oportunidade de retirar o véu que encobre a divisão entre o justo e o injusto: aquele que tem o direito e a justiça a seu lado reforça sua razão, mostrando, por meio de argumentos, que seu raciocínio é o único correto porque decorre de premissas vá
3. "Fada, non verba" - Fatos, não palavras! Frase latina que indica que a argumentação é dispensável porque visa turbar a realidade.
18 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
lidas. Qualquer comportamento está em acordo ou em desacordo com o Direito e, portanto, se existe alguma divergência entre duas partes, somente uma delas pode estar agasalhada pelo direito e/ou pela justiça.
Veja-se como Kelsen, cuja lição sempre constitui uma aula de raciocínio, defende, ao analisar a justiça no conceito de Aristóteles, a idéia de que dos fatos somente se pode fazer dois juízos: adequados ou inadequados ao ordenamento jurídico:
A afirmação de que uma virtude é o meio entre um vício de deficiência e um vício de excesso, com o entre algo que é pouco e algo que é muito, implica a idéia de que a re lação entre virtude e vício é uma relação de graus. Mas, com o a virtude consiste na conformidade, e o vício na não- conformidade de uma conduta a uma norma moral, a relação entre a virtude e o vício não pode ser uma relação de graus diferentes. Pois, no que diz respeito à conformidade ou à não-conform idade, não há graus possíveis. Uma conduta não pode ser muito ou pouco, só pode ser conform e ou não conform e uma norma (moral ou jurídica); só pode contradizer ou não contradizer uma norma. Se pressupomos a norma: os hom ens não devem mentir, ou - expresso positivamente - os hom ens devem dizer a verdade, uma afirm ação definida feita por um hom em é verdade ou não é verdade, é mentira ou não é mentira. Se for verdade, a conduta do hom em estará em conformidade com a norma; se for uma mentira, a conduta do hom em estará em contradição com a norm a.1
O ordenamento jurídico prescreve modelos de condutas e sanções àquelas que aparecem em desacordo com a norma. Dele surgem problemas intrínsecos, como a hierarquia entre as normas, as antinomias e as lacunas. Daí a necessidade do discurso judiciário, que pode ser caracterizado como aquele que procura comprovar a conformidade ou o
4. O que é justiça?, p. 118.
O ARGUMENTO 19
afastamento das condutas humanas às prescrições jurídicas. Mas isso não importa em dizer que, sempre que duas partes se encontram em litígio, uma necessariamente defende uma conduta justa ou legal e a outra está afastada da norma jurídica, ou longe da justiça.
Vale a pena ler o texto abaixo, adaptado do filme Um violinista no telhado5, em que o protagonista, Tevie, escuta a discussão entre Perchik e outro aldeão, ambos contrapondo-se em suas opiniões:
Perchik - A vida é mais do que conversa. Deviam saber o que acontece com o mundo lá fora.Aldeão - Por que esquentar a cabeça com o mundo? Que o mundo esquente a própria cabeça!Tevie (apontando para o aldeão) - Ele tem razão. O Livro Sagrado diz: "Cuspindo para o alto, cairá em você."Perchik - Não pode fechar os olhos para o que passa no mundo.Tevie (apontando para Perchik) - Ele tem razão.Avram - Um e outro têm razão? Ambos ao mesmo tempo não podem estar certos.Tevie - Você também tem razão.(Risos.)
Em obra de qualidade, como o citado filme, é evidente o teor ilustrativo de cada diálogo. O personagem Avram faz, no trecho recortado, observação final que pode ser traduzida como: se dois personagens discutem e argumentam em teses antagônicas, ambos não podem estar certos! O pensamento do personagem rechaça a idéia de dois discordantes ao mesmo tempo terem razão, porque aceitá-la seria assentir com a impossível idéia de que duas verdades opostas coexistam.
Quantas dificuldades isso pode trazer! Imaginemos um juiz que prolate uma sentença dizendo que as teses de ambas as partes estão corretas; forçosamente nenhum litígio
5. A fidleron the roof. Warner Brother South Inc., 1971.
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seria resolvido, porque é impossível uma conclusão como essa. Uma das teses deve estar errada.
De fato, duas verdades opostas não coexistem. Ou uma conduta é contrária à lei ou não é, pois não se pode ser meio contrário à lei, como já visto. Quer dizer, é até possível que uma conduta seja permitida por uma norma jurídica e proibida por outra, mas aí entraríamos em conflito de normas, que não é nosso assunto aqui. O que de fato se tem é que um juiz não pode aceitar duas teses opostas como verdadeiras, porque nesse caso seu julgamento seria inócuo, motivo pelo qual aponta como verdadeira apenas uma das teses, aquela vencedora em seu julgamento, em sua decisão.
Mas se duas verdades opostas não podem coexistir, duas argumentações opostas não significam necessariamente que alguma delas seja incorreta.
Como isso pode acontecer?
Argumento e verdade
A argumentação não se confunde com a lógica formal, não sendo então equivalente à demonstração analítica, absoluta, como acontece, por exemplo, em uma equação matemática.
Em uma equação matemática verdadeira, somente se admite um resultado, fixando-se as variáveis. Sua resolução, passada em uma demonstração analítica, quaisquer que sejam os métodos válidos pelos quais ocorra, sempre chegará a um mesmo resultado.
Imaginemos dois matemáticos discutindo o resultado de uma equação bastante complexa. Cada um deles utiliza um método de resolução, mas chegam a resultados diferentes: o matemático A demonstra que a proposição resulta em 350, enquanto o B demonstra que ela, em vez disso, traz forçosamente o resultado de 700. O que se deduz desse contexto? Evidentemente, um dos matemáticos, A ou B, está erradol
O ARGUMENTO 21
O matemático lida com números, e estes representam, antes de tudo, exatidão. Na matemática ou em outras ciências exatas não existem opiniões ou posicionamentos, porque os números não o permitem. São linguagem artificial. Mas é um erro tentar aplicar ao Direito essa mesma premissa.
Quem argumenta não trabalha com a exatidão numérica, por isso se afasta do conceito binário de verdadeiro/falso, sim/não. Quem argumenta trabalha com o aparentemente verdadeiro, com o talvez seja assim, com aquilo que é provável. E diante dessa carga de probabilidade com a qual se opera que surge a possibilidade de argumentos combinados comporem teses totalmente diversas, sem que se possa dizer que uma delas esteja certa ou errada, mas apenas podendo-se afirmar que uma delas seja mais ou menos convincente.
Vejamos um exemplo:Conta-se que, em um plenário do júri, um promotor
exibia aos jurados as provas processuais. Procurava, portanto, na prática de um discurso judiciário, convencer os ju rados a respeito de sua tese. Mostrava a eles, com muita propriedade - argumentando que o laudo elaborado pela polícia técnica concluía que havia 99% de chance de que o projétil encontrado no corpo da vítima fatal houvesse sido disparado pelo revólver de propriedade do réu. Queria dizer o acusador que o réu não poderia, diante daquela prova concreta, negar a autoria do crime.
Diante de tal fortíssimo argumento, a probabilidade matemática, o defensor, em tréplica, formulou aos jurados a seguinte pergunta retórica: "Suponhamos que eu tivesse um pequeno pote com cem balinhas de hortelã. E que eu, então, pegasse uma delas, tirasse do papel celofane que a envolve e, dentro dela, injetasse uma dose letal de um veneno qualquer. Em seguida, que eu embrulhasse novamente o caramelo letal, colocasse dentro do pote com outras 99 balinhas idênticas e misturasse todas. Teria algum dos jurados coragem de tirar do pote um caramelo qualquer, desembrulhá-lo e saboreá-lo? Certamente que não. Pois, se ninguém se arrisca à morte ainda que haja 99% de chance de
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apenas se saborear um caramelo de hortelã, ninguém pode condenar o acusado, ainda que haja 99% de chance de haver disparado sua arma contra a vítima!"
Conta-se que, lançando mão desse argumento, o defensor conseguiu a absolvição de seu cliente.
Analisemos o exemplo. Trata-se de um discurso em que duas partes defendiam posicionamentos contrários, cada qual com seu argumento. A acusação procurava comprovar ser o réu o autor de um crime, enquanto a defesa negava tal autoria. Daí que, quando a acusação trouxe um argumento forte, a defesa procurou enfraquecê-lo perante os jurados.
Assim se esquematiza a argumentação:Acusação: argumento forte, com uma prova concreta -
99 chances em 100 de que a arma que efetuara os disparos fosse a do acusado, o que o colocaria indiscutivelmente como autor do crime.
Defesa: argumento mais fraco matematicamente: uma chance em 100 de que a arma não fosse a que efetuara os disparos. Todavia, esse 1% não autoriza a certeza, como demonstrou seu exemplo dos caramelos de hortelã.
Note-se que, nessa argumentação, cada qual tinha sua parcela de razão, embora ambos procurassem comprovar teses totalmente opostas.
Porém, ao mesmo tempo que valorizavam sua razão, ambos os argumentantes tinham sua parcela de falta de razão: ao argumento acusatório faltava revelar que realmente existia uma probabilidade de a arma letal não ser a do acusado, enquanto ao argumento de defesa faltou dizer que, apesar da falta de certeza, as probabilidades apontavam fartamente para a razão da acusação.
A boa argumentação consistiu, no caso concreto, em valorizar para o ouvinte, no caso os jurados, aquilo que é meramente provável como se verdadeiro fosse. Tanto não é verdade que daquela porcentagem pertinente à criminalística se possa inferir ser um acusado real autor de um crime (porque 99% não são 100%), quanto não é de todo verdade a conclusão que a defesa pretende inferir: a de que o teste
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de balística não pode ser levado em consideração para a constituição da culpa do acusado.
Porque o processo não é matemático, mas matéria humana, não existe uma conclusão única: acusação e defesa estão, ao mesmo tempo, certas e erradas! O argumento, então, antes de ser um modo de comprovação da verdadeb, é apenas um elemento lingüístico destinado à persuasão.
Argumento é elemento lingüístico porque se exterioriza por meio da linguagem. E, por isso, elemento que aparece inserto em um processo comunicativo, que deve ser o mais eficiente possível.
Argumento é destinado à persuasão porque procura fazer com que o leitor creia nas premissas e na conclusão do retor, ou seja, daquele que argumenta.
Os objetivos e os meios da argumentação
Qual é o objetivo da argumentação? Quem argumenta tem, como objetivo final, fazer com que o destinatário da argumentação creia em alguma coisa, como já dissemos.
Tal idéia, no entanto, não é unânime, pois há quem afirme que o objetivo principal da argumentação vai além de levar o leitor a crer em algo, uma vez que o escopo último do retor seria o de fazer com que o destinatário viesse a agir da maneira como se prescreve. E a diferença é relevante.
Quem defende que argumentar é primordialmente levar o ouvinte a agir de maneira determinada, no discurso judiciário, tem uma visão, curiosamente, ao mesmo tempo pragmática e utópica. Pragmática - explicamos já - porque é destinada ao resultado de modo bastante imediato. Defen
6. João Mendes Neto (Rui Barbosa e a lógica jurídica, p. 27) comenta que a verdade é a conformidade do intelecto e da coisa (conformitas intelectas et rei). Entendemos que, para a argumentação, a definição é bastante válida, na medida em que o intelecto somente assume a coisa como um significante, uma representação.
24 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
de, com sua parcela de razão, que o objetivo de quem argumenta é uma ação específica do ouvinte: o advogado que arrazoa um recurso, sustentando certa tese, intenciona que o magistrado - seu destinatário - pratique uma ação determinada por ele: julgar a causa a seu favor. De nada adiantaria- defende essa corrente aparentemente pragmática - o magistrado crer nas razões do advogado argumentante, mas não agir deferindo-lhe o pedido.
Porém os defensores dessa corrente tropeçam em um elemento da realidade que não se pode ignorar, sejam eles os casos em que fogem do alcance do trabalho argumenta- tivo os motivos que ensejam a ação do ouvinte. Entre a crença do ouvinte e sua ação determinada existe um claro em que, infelizmente, a argumentação não pode interferir.
Pode-se, com bons argumentos, convencer um fumante de que muito maior do que o prazer que o cigarro proporciona seriam os benefícios que imediatamente lhe viriam se deixasse o vício. Ele pode vir, por meio de elementos não raros de persuasão, a crer que é necessário abandonar o cigarro. Mas elementos exteriores à comunicação argumentativa interferem na realidade - a exemplo da necessidade química de nicotina do fumante - e podem fazer com que ele não aja da maneira como se lhe prescreve. Melhor se o fizesse, mas a argumentação não pode, por si só, garanti- lo. O fumante crê, porém não age.
Outro exemplo: um advogado defende excelentemente uma tese perante o tribunal. Dos três julgadores do caso, relator e revisor não lhe dão razão, fundamentando a tese da parte contrária. O terceiro juiz, entretanto, pensando sobre os argumentos que lhes foram dirigidos, crê que a tese do nosso argumentante, a despeito da opinião de seus colegas, é a correta. Todavia, uma questão exterior à argumentação se lhe coloca: se agir da maneira como prescreve o argumentante, terá de discordar de seus colegas. Isso lhe trará- pensa o magistrado - duas conseqüências desagradáveis, sendo a primeira delas o próprio fato de discordar de uma turma que há tempos é uníssona, e a segunda a necessidade
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de redigir um voto, imprescindivelmente bem fundamentado por dissuadir de seus colegas. O comodismo indevido assola o julgador, e ele, contrariamente a seu dever, deixa seu livre convencimento e sua independência funcional de lado, e, embora creia na tese defendida pelo argumentan- te, não age da maneira como lhe fora prescrito. Acaba por acompanhar o voto dos colegas.
Assim, para definir a argumentação não se pode apartar muito da realidade, devendo-se reconhecer que existe, entre o crer e o fazer, um intervalo que a argumentação deveria alcançar, mas nem sempre o consegue, por mais eficiente que seja.
Essa idéia tem valor prático, pois todas as vezes que argumentamos precisamos ter em mente que o leitor deve ser levado a crer em algo. Fazê-lo crer na tese representa o objetivo da argumentação.
E quais são os meios utilizados para esse objetivo?Para que o leitor creia na tese é necessário que ela lhe
seja transmitida de forma que seu raciocínio venha aderir ao percurso transmitido pelo leitor. Nesse ponto, a atividade forense (o discurso judiciário) tem algumas peculiaridades.
Quando um renomado jogador de futebol aparece na televisão e, em um comercial, afirma utilizar determinada marca de chuteiras, não há dúvida de que ele exerce um efeito de persuasão em seus espectadores. Em um anúncio como esse existe um argumento que não está expresso, mas pode ser resumido em: se esse atleta usa tal chuteira, é porque esse calçado é o melhor de sua categoria; afinal, um jogador desse gabarito só pode usar produtos de primeira linha.
Dúvidas não existem de que a figura daquele atleta renomado, no comercial, funciona como uma forma de fazer crer na qualidade do produto anunciado. Afigura do jogador é, então, parte de uma argumentação que dispensa um raciocínio complexo a ser transmitido, mas que ali existe simples e implícito, caso contrário o comercial não teria nenhum efeito prático nas vendas do produto. Pode-se afir
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mar que, no anúncio, foram predominantes a imagem e o conceito do jogador, sendo o raciocínio lógico um elemento imprescindível, porém de menor importância. De qualquer modo, existiam argumentos.
Se um indivíduo vai comprar um tênis esportivo, é fácil (e muito provável) que valorize imagens associadas aos ídolos dos esportes. Mas quando um juiz avalia uma tese jurídica, pouco (mas não nada)7 lhe importa a figura do argu- mentante, mas sim o raciocínio que lhe apresentam as partes, pois é um raciocínio desse tipo, em um percurso determinado, que deve refratar-se em sua sentença.
O fator de persuasão mais válido no discurso judiciário é, então, o raciocínio jurídico, seja na interpretação da lei, seja na análise das provas. Acontece que esse raciocínio não é unidi- recionado, como já explicamos, pois a lógica jurídica não é exata8. Ele depende dos argumentos para ser exteriorizado.
E, ao se fazer essa exteriorização do raciocínio, o argu- mentante procura valorizar o que lhe é favorável, e isso se faz por meio de técnicas de argumentação.
Assim, pode-se dizer que, se o objetivo da argumentação é fazer crer em uma afirmação, seus meios são a hipertrofia dos elementos favoráveis, ou seja, a valorização deles.
7. Não deve causar espanto ao iniciante o fato de se afirmar que o julgador é persuadido, ainda que em menor grau, por elementos externos aos próprios argumentos que fazem parte do aqui chamado raciocínio jurídico. O que não se deve é retirar deste trabalho o objetivo prático, e para isso é necessário observar a realidade. Por exemplo, é impossível negar que quando se cita, para fundamentar uma peça, a doutrina de um famoso jurista, em parte se está valendo de sua imagem, tal qual faz o esportista de nosso exemplo ao anunciar a marca de chuteiras.
8. Vale conhecer como o professor Alaôr Caffé Alves expõe esse tema: "Por isso, a Lógica formal jamais poderá orientar a ação dos homens. Por conseqüência, ela não pode ser a lógica dominante nos assuntos humanos, devendo ser, a teoria da argumentação retórica, a única forma de justificar os valores e os atos morais dos homens. A argumentação retórica, ao contrário da lógica simbólica ou Matemática - caracterizada por universal e, por isso, impessoal, neutra e monológica - , supõe sempre o embate (dialético) de opiniões ou o confronto das ideologias e consciências no interior de situações e circunstâncias históricas determinadas e particulares" (Lógica, pensamento formal e argumentação, elementos para o discurso jurídico, p. 165).
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Fazemos hipertrofias com freqüência, e elas não são monopólio do discurso jurídico. Desde a propaganda de uma famosa doçaria que diga que seus produtos propiciam saborosa energia ou doces momentos, em vez de dizer, obviamente, que seus alimentos engordam demais, até um elogio a um colega de trabalho, afirmando-se que ele é muito compenetrado em vez de lento em suas funções. Evidentemente, a argumentação jurídica desenvolve-se por meios mais complexos, mas de mesma natureza: a valorização dos aspectos favoráveis à tese defendida.
O advogado que defende uma tese em juízo procura um percurso argumentativo eficiente naquilo que é mais persuasivo a seu leitor: o raciocínio jurídico válido.
Fortalecer o raciocínio jurídico válido é a tarefa de quem procura chegar a um resultado efetivo.
Características da argumentação
Visto o que se entende por argumento e os meios da argumentação, cabe sistematizá-los em algumas breves características, que serão retomadas com maior profundidade no decorrer dos capítulos posteriores.
A argumentação diferencia-se da mera demonstração porque tem o ouvinte, o interlocutor como alvo. A demonstração é absolutamente impessoal e, exagerando, poderia ser realizada por uma máquina, como já foi aqui afirmado, tal qual o computador resolve qualquer equação matemática. E, assim, axiomática e segue um percurso definido por sistemas formais de raciocínio.
Para que possa haver um raciocínio demonstrativo formal, em sistema fechado, como aponta Olivier Reboul, é necessário que coexistam três condições: a) que não haja ambigüidades na significação dos signos - por isso a matemática se utiliza de uma linguagem artificial (o número um, o zero, o dois... são meros conceitos); b) o sistema deve ser coerente - não se pode afirmar dentro dele sua proposição e
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negação: assim os sistemas de raciocínio formal progridem de modo único e não encontram contradições e quebra de coerência; c) o sistema deve ser completo - vale dizer que para cada proposição formada em um sistema deve-se ter condições de demonstrar sua verdade ou falsidade. Em outras palavras, cada proposição feita no sistema axiomático deve trazer uma resposta única, um resultado inequívoco e não pode haver proposições, se aceitas pelo sistema, que não encontrem resultado seguro.
Todas essas características de um sistema formal em muito se afastam de nosso esquema argumentativo. A argumentação traz, ainda aproveitando-nos de Reboul, cinco características que devemos compreender, para aprofundá- las em momentos seguintes do nosso estudo. São elas:
a) A argumentação dirige-se a um auditório.Sempre argumentamos para alguém, diante de alguém.
Os argumentos e a progressão do discurso devem variar de acordo com aquele a quem este é direcionado. Tal característica é objeto de nosso estudo, principalmente quando tratarmos a intertextualida.de.
b) Utiliza-se de língua natural.Ponto muito importante. Quando argumentamos, uti-
lizamo-nos da mesma linguagem com que nos comunicamos no dia-a-dia. E isso sujeita a construção argumen- tativa a diversas regras, que são as mesmas da comunicação em geral. Se, por um lado, a língua natural dificulta o trato com os argumentos, já que eles não podem vir dissociados de uma enunciaçâo, por outro confere-lhes uma série infindável de recursos: o trato com a palavra. Assim, os mesmos recursos da enunciaçâo em geral, da linguagem como um todo, aplicam-se integralmente à construção argumentativa. Tais características serão exploradas neste livro, principalmente quando tratarmos de competência lingüística.
c) Suas premissas são verossímeis.Essa característica foi matéria do presente capítulo, por
que contida na classificação do argumento. Da realidade re
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duzimos seu contexto, para fixar pontos de partida imprescindíveis ao início da construção do discurso. Esses pontos de partida, como os demais argumentos, não são prova de verdade, mas sim elementos de demonstração de probabilidade. Mais convincente o argumento quanto mais verossímil for, e nisso também se enquadra a forma, a enunciação.
d) A progressão depende do orador.Quando se argumenta se faz constante seleção de ele
mentos lingüísticos que podem vir a compor o discurso. Cogitamos o melhor argumento, as melhores palavras, as citações mais adequadas, formulam-se introduções, conclusões, prolongam-se ou encurtam-se exemplos... Tudo à livre escolha daquele que constrói seu discurso, quer seja oral, quer escrito. Quem defende que, por exemplo, para a construção de um recurso judicial exista um padrão de progressão argumentativa indeclinável está evidentemente ocultando do estudante uma visão realista da atividade suasória, nesse caso no contexto jurídico.
Fazer progredir um discurso é atividade do intelecto humano.
A progressão da argumentação será abordada nos capítulos que tratam da coerência e da ordem dos argumentos.
e) As conclusões são controvertidas.Ao contrário da lógica formal, a argumentação permite
conclusões controvertidas. Veja-se: a lógica formal, como lembra Atienza, move-se no terreno da necessidade. Um raciocínio demonstrativo ou lógico-dedutivo importa necessariamente que a passagem de uma premissa para a conclusão seja determinada. Mas a argumentação move-se na mera probabilidade. Os argumentos, na retórica, não demonstram provas evidentes, por isso é possível chegar-se a conclusões controvertidas, quando se avança em raciocínios retóricos por trilhas distintas. Nenhuma conclusão é, por fim, absolutamente verdadeira, ainda que o orador a anuncie como verdade ímpar, como único raciocínio aceito. Um orador jamais afirmará que seu discurso é composto de afirmativas em mera probabilidade. Porém, na realidade, qual
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quer raciocínio retórico é meramente razoável. Mas não está aí a beleza da argumentação?
Compreendidas essas características do argumento e da argumentação, pode-se passar a uma leitura mais específica de cada uma delas, já com novo alcance prático.
Capítulo IIIArgumentação e fundamentação. Pensando no ouvinte
Um discurso passa a ser argumentativo quando seu autor toma consciência de que tem um auditório, um ouvinte específico a ser persuadido. Assim, não expõe seu próprio raciocínio, mas aquele que entende ser mais adequado a seu interlocutor.
No capítulo anterior, dissemos que quem argumenta, em discurso judiciário, procura fortalecer um raciocínio jurídico válido diante de outra argumentação que lhe é contrária.
Nossa experiência em sala de aula indica, não raro, alguma relutância do aluno em aceitar a existência de uma grande diferença entre o trabalho argumentativo e o estudo do Direito em si. Por isso preparamos o presente capítulo.
O discurso científico
O Direito não tem a mesma sistemática exata da matemática, como já foi dito, mas nem por isso deixa de se constituir em uma ciência. A inexistência de fórmulas e diagramas1 na demonstração do raciocínio jurídico não lhe retira a cientificidade, ao contrário do que muitos pensam.
Durante a universidade, embora a maioria dos livros de estudo sejam manuais que se preocupam mais com a didática do que com a originalidade, nos é dada uma visão aprofundada da ciência do Direito, ou seja, construções de raciocínio
1. Cf. ECO, Umberto. Como se faz uma tese, p. 21: "... Para alguns, a ciência se identifica com as ciências naturais ou com a pesquisa em bases quantitativas: uma pesquisa não é científica se não se conduzir mediante fórmulas e diagramas."
32 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
a respeito do ordenamento jurídico que têm um caráter genérico, que buscam tangenciar a veridicidade científica2.
Ao absorver o Direito por meio de teses desenvolvidas pela veridicidade científica, alguns de seus operadores têm dificuldade em dissociar aquelas teses da aplicação do Direito aos casos concretos, em que se abandona, já como premissa, o caráter genérico do discurso científico.
Em termos mais simples: alguns operadores do Direito prendem-se por demais a opiniões prontas, a teses sustentadas na doutrina pela qual apreenderam a matéria e então deixam - sem consciência disso - de ver a ciência como instrumento importantíssimo do argumentante, passando a encará-la como único instrumento de demonstração da realidade.
Quando o operador do Direito, especialmente na advocacia, confunde conhecimento jurídico com convencimento científico, encarando o que aprendera na faculdade como verdade intransponível, está no caminho para se tornar um mau argumentante. Pode até ser um bom jurista por certo tempo, mas um mau argumentante.
O bom argumentante deve ter um brilhante conhecimento jurídico, conceitos bem firmados, mas não se pode prender, na argumentação, a seu convencimento puramente pessoal. Deve sempre ter em conta que, em seu trabalho de argumentação, não procura a veracidade científica, que se opera erga omnes, mas sim o convencimento de uma ou mais pessoas determinadas, a respeito de uma tese que surge de determinada situação fática específica.
Por isso, no discurso judiciário se utiliza da ciência do Direito como instrumento para o convencimento de um terceiro, o julgador. E o trabalho que leva à persuasão desse terceiro não é trabalho idêntico ao que existe na demonstração de uma tese científica, tal como em uma dissertação acadêmica de mestrado, doutorado ou livre-docência.
2. Cf. MARCHI, Eduardo C. Silveira. Guia de metodologia jurídica, p. 36.
ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 33
Pode parecer muito estranha uma colocação como essa, mas estas lições - reafirmo - perderiam seu fundamento prático caso se evitassem tais observações. E em sala de aula muitas vezes vimos estudantes que, nesta matéria, relutam em aceitar apresentar argumentos que se afastem de seu convencimento pessoal, como transpondo a si próprios no lugar do destinatário da argumentação. Isso importa, fatalmente, em pouca persuasão, como veremos a seguir.
Um corte de casimira
O texto que segue é um conto de Moacyr Scliar3. São desnecessárias quaisquer considerações a respeito de sua qualidade, pois brevemente o leitor o apreciará. Este texto nos permitirá depreender uma distinção importante na atividade argumentativa. Para chegarmos a ela, é interessante que façamos, em sua leitura, o exercício tal qual ora proposto.
O leitor perceberá que se trata de uma carta deixada pelo marido a sua esposa, e que o conteúdo dessa carta é eminentemente argumentativo. Por um esforço de raciocínio, o enun- ciador procura convencer a esposa a respeito de algo.
Leia o texto abaixo e, ainda sem grandes preocupações com a técnica, procure perceber quais são os principais argumentos utilizados pelo autor da carta.
Estou lhe escrevendo, Matilda, para lhe transmitir aquilo que a contrariedade (para não falar em indignação) me impediu de dizer de viva voz. Note, é a primeira vez que isso acontece em nossos trinta e cinco anos de casados, mas é a primeira vez que pode também ser a última. Não é ameaça. É constatação. Estou profundamente magoado com sua atitude e não sei se me recuperarei.
Tudo por causa de sua teimosia. Você insiste, contra to das as minhas ponderações, em dar a seu pai um corte de
3. "O s usos da casemira inglesa". In: Contos reunidos, p. 15-7.
ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
casemira inglesa como presente de aniversário. Eu já sei o que você vai me dizer: é seu pai, você gosta dele, quer hom enageá-lo. M as com casemira, Matilda. Com casemira inglesa, Matilda. Q ue horror, Matilda.
Raciocinemos, Matilda. Casemira inglesa, você sabe o que é isso? A lã dos melhores ovinos, Matilda. A tecnologia de um país que, afinal, deu ao mundo a Revolução Industrial. O trabalho de competentes operários. E sobretudo tradição, a qualidade. Esse é o tecido que está em questão, M atilda. A casemira inglesa.
Há muitos aspectos nesse problema, mas quero deixar de lado tudo o que me parece menos significativo, inclusive o preço. Sim, o preço. Você sabe que sou homem de poucas posses e que um corte de tecido importado custaria bastante, mas vamos admitir que isso seja secundário, vamos omitir esse detalhe; fixemo-nos na própria casemira inglesa, M atilda. E da casemira eliminemos aquilo que possa entre nós gerar controvérsia - por exemplo, a conveniência de dar a um hom em que sempre se vestiu mal, que não dá a mínima importância já não digo à elegância, mas à limpeza, algo tão sofisticado, tão distinto. Não, não vamos discutir isso, não vamos discutir a sofisticação da casemira. Vamos abordar outro tópico.
A duração.Sabe quanto tempo pode durar a casemira inglesa,
Matilda?Muito tempo, Matilda. Muito tempo. D isse-m e o ven
dedor - porque tomei o cuidado de colher essas inform ações, não estou polemizando pelo prazer de polemizar, estou querendo que você raciocine comigo - que um paletó de casemira inglesa, bem cuidado e ao abrigo de traças (e como há traças na casa de seu pai, Matilda, como há traças lá), pode durar anos, décadas, séculos, talvez (ele falou em roupas guardadas desde o século XVII, mas talvez haja exagero nisso, vendedor é vendedor, mesmo que esteja vendendo um fino artigo, com o é o caso).
Isso, a casemira inglesa. Agora, seu pai.Ele está fazendo noventa anos. E uma idade respeitá
vel, e não são muitos os que chegam lá, mas - quanto tempo ele pode ainda viver? Sim, todos nós desejamos que ele che
ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 35
gue ao centenário, mas, francamente, Matilda, você acredita nisso? A gente fala em cem anos porque é um número redondo, é um espaço de tempo expressivo, um século, mas quantos centenários há no mundo? E as chances de seu pai ser um deles... Aquela tosse, a falta de ar... Não sei, não. Mas mesmo que ele viva dez anos, mesmo que ele viva vinte anos, a casemira sem dúvida durará mais. Aí, depois que o sepultarmos, depois que voltarmos do cemitério, depois que recebermos os pêsames dos parentes, e dos amigos, e dos conhecidos, teremos de decidir o que fazer com as coisas dele, que são poucas e sem valor - à exceção de um casaco confeccionado com o corte de casemira que você pretende lhe dar. Você, em lágrimas, dirá que não quer discutir o assunto, mas eu terei de insistir, até para o seu bem, Matilda; os mortos estão mortos, os vivos precisam continuar a viver, eu direi. Algumas hipóteses serão levantadas. Vender? Você dirá que não; seu pai, o velho fazendeiro, verdade que arruinado, despreza coisas como comprar e vender, ele acha que ser lojista, como eu, é a suprema degradação. Dar? A quem? A um pobre? Mas não, ele sempre detestou pobres, Matilda, você lembra a frase característica de seu pai: tem de matar esses vagabundos. Essas hipóteses todas estando esgotadas, você se voltará para mim e me pedirá, naquela sua voz súplice: fique com o casaco. E eu terei de dizer que não, Matilda. Em primeiro lugar, eu sou muito maior que seu pai, coisa que ele sempre fazia questão de me lembrar, chamando-me de gordo porco, você lembra? Você achava graça, dizia que era brincadeira, mas eu sabia que no fundo ele estava falando sério. Gordo porco, Matilda. Ouvi isso durante trinta e dois anos. Mas mesmo que o casaco me servisse, Matilda, eu não o usaria. Você sabe que isso seria a capitulação final, M atilda. Você sabe que com isso eu estaria renunciando para sempre à minha dignidade.
O casaco ficaria pendurado em nosso roupeiro, M atilda. Ficaria pendurado muito tempo lá. A não ser, Matilda, que seu pai dure mais tempo que o casaco. Não apenas isso é impossível, como rem ete a uma outra interrogação: e o seguro de vida dele, Matilda? E as jóias de sua mãe, que ele guarda debaixo do colchão? Quanto tempo ainda terei de esperar?
36 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Estou partindo, Matilda. Deixo o meu endereço. Comovocê vê, estou indo para longe, para uma pequena praia daBahia. Trópico, Matilda. Lá ninguém usa casemira.
O texto é argumentativo porque se utiliza de vários elementos lingüísticos que procuram fazer com que a leitora ideal - a esposa do enunciante - seja conduzida a determinada conclusão. Quem leu o texto procurando seus principais raciocínios de persuasão percebeu-os muitos, pois aparecem de modo exagerado, hiperbólico, como costuma acontecer nos textos que buscam o humor. Mas esse conto nos ensina mais, e procuraremos dele aproveitar suas nuanças que se identificam em uma boa argumentação.
Releia o texto e responda a estas questões:1. Qual é a tese principal da qual o autor da carta pro
cura convencer a esposa?2. Qual é sua estrutura argumentativa principal, ou:
em que se concentram seus argumentos?3. Quais são os motivos ou fundamentos que levam o
autor a escrever a carta?A resposta a essas perguntas nos estabelecerá concei
tos relevantes. Portanto, leitor, alertamos mais uma vez: pense nas respostas antes de seguirmos.
Perceba que a tese principal apresentada é aquela de que se pretende convencer o leitor. A primeira vista, pode parecer que ela estaria representada no tema de não compensar ofertar ao sogro do autor da carta um corte de casimira. Mas esse é apenas um grande argumento do texto, não a tese.
Esta aparece na primeira frase do segundo parágrafo: Tudo por causa de sua teimosia. O que o autor procura comprovar, como objetivo final da argumentação, não é o fato de caber ou não o presente da casimira, mas sim o fato de o abalo no casamento dever-se ao comportamento da esposa, qualificado como teimoso.
A tese principal é aquela idéia para a qual todos os argumentos convergem. Os argumentos passam pela impertinência do corte de casimira pretendido pela esposa, e nis
ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 37
so de fato se concentram, mas todo o conjunto converge para uma idéia que vai além: colocar a mulher como a única responsável pelo fim do casamento (conseqüência que somente é apresentada na última parte do texto).
Esse princípio nos é essencial: o objetivo final da argumentação nem sempre representa a idéia principal mais aparente. Às vezes o percurso argumentativo tracejado pelo argumen- tante faz a tese depender muito da aceitação de um argumento principal, mas ele por si só não constitui a tese4.
A tese é aquela que representa objetivo último do ar- gumentante ao ouvinte.
Conhecedores de sua tese, e percebendo que ela ultrapassa o mero cerne da argumentação, vamos à segunda questão: quais foram os principais argumentos tracejados pelo autor?
Essa questão é mais simples, dada a diferenciação anterior. Como elementos lingüísticos destinados à persuasão (no caso, a persuasão da esposa do autor da carta), temos vários raciocínios ali enunciados.
A argumentação do autor é vasta, e vai de argumentos mais longos, com estruturas maiores, a outros menores, idéias curtas, mas também lançadas ao convencimento.
O maior deles é a pertinência da casimira, pois, como visto, todo esse tema é apenas um vasto lugar argumentativo de todo o texto, apartado da tese. Dentro dele, um percurso definido, permeado de diversas outras idéias com teor suasório indiscutível, podendo ser resumido em: a) a casimira e seus aspectos: o preço, a conveniência, a qualidade e
4. Em sala de aula, motivamos aos alunos a notar como não é rara a técnica retórica de fazer com que o ouvinte se concentre tanto em um argumento que o interprete como em uma verdadeira tese. Isso ocorreu no exemplo que citamos no capítulo anterior, a respeito do confronto entre os 99% do laudo de balística e a alegoria do veneno oculto na bala de hortelã. O advogado daquele exemplo, porque sabia que tinha um argumento muito forte, diante da evidência transforma aos jurados a desconstituição da certeza do laudo em uma lese. Entretanto, sua tese era a negativa de autoria de que o laudo de balística - conclusivo ou não - era apenas um argumento. Essa técnica se denomina rcducionismo.
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a duração; b) o pai, sua idade, sua morte em intervalo de tempo curto, quanto mais se comparado à duração do tecido, e os destinos da casimira depois desse evento; c) a casi- mira e a hipótese de o pai durar mais tempo que o casaco. E enfim a conclusão, a fuga do autor-argumentante para um lugar onde não estará sujeito a todos esses problemas, porque nos trópicos "ninguém usa casemira".
O leitor pode ter percebido muitos outros argumentos, dentro de nossa definição ampla. A título de exemplo, usa- se um forte argumento ao se dizer "Raciocinemos, Matilda". Aquilo que parece simplesmente um modo de preencher o texto e chamar a atenção do leitor é muito mais: transmite à destinatária do texto que lhe vai ser demonstrada uma conclusão fruto do melhor raciocínio - contrario sensu induzindo a que o pedido inicial (a casimira) seria desprovido de razão, de raciocínio.
Outros argumentos há, em um texto dessa qualidade, mas aqui o principal é procurar responder à terceira questão formulada para a leitura: quais são os motivos ou fundamentos que levam o autor a escrever a carta?
Quem procurou responder às três perguntas formuladas percebeu a evidente distinção entre argumento e motivos ou fundamentos que a induzem.
Pois essa distinção - a seguir explicada - parece-nos o elemento mais característico do texto de Scliar, que fundamenta seu forte elemento humorístico. E que o leitor mantém, na leitura do texto, um estranhamento constante: o fato de um marido buscar tantos recursos de raciocínios diversos a respeito de um corte de casimira, dando-se ao trabalho de lançá-los em uma longa epístola à esposa. Esse estranhamento, porque a atitude foge à normalidade, traz uma expectativa no leitor: não haveria um interesse do marido que transcendesse à compra da casimira?
Com essa expectativa - que é característica da narrativa literária - o leitor aos poucos descobre outros detalhes da vida do casal que o lançam em uma contradição cômica: que os motivos que o levam a escrever são muito diferentes dos argumentos que o marido elenca.
ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 39
Em resumo: o que motiva o autor a escrever é o fato de querer terminar seu casamento e atribuir à esposa a culpa por tal ato; e os fundamentos do fim do casamento são: a) o desprezo do velho para com seu genro; b) as ofensas freqüentes em decorrência desse desprezo, que se prolongam por 32 anos; c) a ruína econômica atual do velho; e d) a desistência por aguardar o prêmio do seguro e as jóias como herança.
Quando o autor enuncia esses fatos, o leitor percebe os verdadeiros fundamentos de sua argumentação: o casamento termina devido a um martírio longo, composto por esses quatro elementos, além de outros que não vieram enunciados.
Os fundamentos são, então, os elementos racionais que sustentam a conclusão daquele que enuncia o texto, daquele que, aqui, argumenta.
Entretanto, no texto de Scliar, fica evidente que esses fundamentos não poderiam ser expostos à leitora, a esposa, pois nela não surtiriam nenhum efeito persuasivo. Em primeiro lugar, porque a maioria dos fundamentos dirige-se diretamente a defeitos do pai da leitora, os quais ela relutaria em aceitar por uma condição pessoal. Ninguém com bom relacionamento familiar aceita objetivamente críticas ao próprio pai.
Consciente disso, o autor da carta livra-se de pensar em como ele, autor, é convencido a abandonar o laço matrimonial e passa a colher idéias que venham a surtir maior efeito na leitora. E assim aproveita a casimira, que não é fundamento para o fim do casamento, mas que funcionou como argumento, pois surtirá efeito no raciocínio da esposa, a quem direciona o texto.
Ao escrever à esposa, o autor abandona a fundamentação em sentido estrito para dedicar-se à argumentação. Isso ocorre no exato momento em que ele pensa não em si, não em justificar como funciona seu raciocínio ou em explicar suas conclusões, mas sim no que convence o terceiro.
E esse raciocínio, no texto, implicou também a elaboração de uma outra tese. No momento em que o argumen-
40 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
tante, o marido, percebeu que os motivos que os convenceram eram diferentes daqueles que efetivamente convenceriam sua esposa, optou por este último percurso. E assim foi persuasivo. O argumentante adaptou seu discurso às condições pessoais do ouvinte.
Tal conclusão nos é muito importante.
Argumentação x fundamentação: a distinção relativa
Toda decisão judicial deve ser motivada ou fundamentada5.
A fundamentação da sentença é elemento essencial não só para o processo, mas para toda a sociedade, que diante dos fundamentos da decisão tem condições de saber se o Judiciário age com imparcialidade e se suas decisões são fruto da lei ou do arbítrio do prol a to r .
A Constituição garante a fundamentação do julgado, bem como os códigos de procedimento.
A motivação compreende "a exposição atinente às provas produzidas e aos respectivos critérios de avaliação"7.
Quando o juiz faz sua fundamentação, elenca elementos que devem convencer as partes de que seu raciocínio é o mais correto, é o decorrente da lei, e de que seu livre convencimento não provém da arbitrariedade, mas sim de uma boa avaliação de todas as provas e de todo o ordenamento legal.
5. Utilizam-se como sinônimos os termos fundamentação e motivação, pois aparentemente a doutrina nacional não lhe faz distinção relevante. A lei parece também utilizar como sinônimo, ao tratar e ao se referir à fundam entação na lei maior e no ordenamento processual civil (art. 93, IX, da CF 88, e arts. 165 e 458, II, do CPC) e motivação na lei processual penal (art. 381, III). Importante será aqui a distinção entre esses termos e a argumentação, que tem efeitos práticos evidentes.
6. Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et alli. As nulidades no processo penal, p. 209.
7. CHIAVARRIO, Mario. In: FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional.
ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 41
Ao fundamentar, o julgador põe à prova seu método de raciocínio. Deve sempre motivar exaustivamente sua decisão, pois as partes merecem conhecer tanto o método de raciocínio do juiz quanto, e principalmente, a prova de que foram avaliados todos os elementos levados ao processo, incluindo-se nesses elementos os argumentos argüidos pelas partes, um a um8.
Assim, a fundamentação deve ser exaustiva, deve revelar um percurso lógico bem detalhado, completo, que possa ser criticado em seu raciocínio pelos interessados em resultado diverso daquele proferido na decisão.
Quando fundamenta uma decisão, o juiz está preocupado em exteriorizar seu próprio raciocínio, em explicar - detalhadamente - os motivos pelos quais ele foi levado a determinada conclusão, seja na avaliação das provas, seja na avaliação das teses a ele expostas. Sua conclusão só pode ser sujeita a críticas fundamentadas na medida em que o decisor exponha de modo claro os meios pelos quais fo i levado a determinada conclusão. Ao menos assim deveria ser.
Expondo os motivos de sua decisão, o juiz põe à prova seu raciocínio enunciado. A avaliação das provas, a solidez das premissas e o percurso até a chegada a suas conclusões, as idéias invocadas como fundamentos, as estruturas lógicas, os elementos que podem vir subentendidos, os trechos do ordenamento jurídico invocados e aplicados ao caso em julgamento, os argumentos a ele lançados que fizera acatar e, principalmente, os elementos que fazem com que tenha deixado de aceitar a tese contrária ao direcionamento de sua decisão.
Em resumo, ao que nos interessa neste tópico, quem fundamenta explica, em tese, sua própria decisão\ Veremos, adiante, que, em posicionamento mais aprofundado, pode-
8. Vide Capítulo XIV.9. Essa decisão, claro, é objetiva, conforme a alegação das partes. Afinal,
o juiz de Direito, ao contrário do jurado, julga secundum allegata etprobata par- tium, e não secundum propriam suam conscientiam.
42 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
se acreditar que mesmo o julgador, em lugar de construir fundamentação, acaba convencendo-se por fatores muito diversos daqueles que elenca, e isso aproxima seu trabalho da argumentação propriamente dita, na medida em que também pretende convencer as partes. Mas para esse comentário crítico remetemos a leitura posterior10.
Quando lemos julgados ou participamos do estudo ou da produção científica do Direito, acostumamo-nos ao discurso da fundamentação, ou seja, ao discurso em que as partes explicam suas próprias conclusões. É bem verdade que esse discurso nunca aparece puro11, e não é raro que mesmo em uma tese dotada da mais objetiva cientificidade ou em uma decisão das mais fundamentadas e imparciais en- contrem-se elementos lingüísticos que busquem mais a persuasão que a demonstração, mas essa não é a regra.
Porém aquele que argumenta, que defende um ponto de vista buscando primordialmente a adesão do leitor ou ouvinte não o pode fazer como se construísse uma fundamentação.
O argumentante não apenas explica seu próprio motivo de convencimento, mas pode até afastar-se dele quando se preocupa em conseguir a adesão daquele a quem sua argumentação se dirige.
Para o advogado essa idéia é essencial: deve sempre ter em mente que os raciocínios que o levam a determinado convencimento não coincidem necessariamente com aqueles que levam o ouvinte ou leitor a aderir a esse mesmo convencimento12.
Argumentar, em sentido estrito, é algo mais que a construção do bom raciocínio jurídico, para aqueles que operam o Direito. Argumentar significa partir do bom raciocínio ju
10. Vide Capítulo XTV.11. Por isso todo discurso judiciário é também argumentativo.12. Exemplo simples: um advogado pode estar convencido de que de
terminado cliente não é autor do crime porque o conhece há anos, sendo testemunha de sua integridade. Este é um motivo próprio e predominante, mas não lhe serve de argumento, pois não é o que convencerá o magistrado. Terá de conseguir provas nos autos, embora independa delas, em raciocínio próprio, para crer na inocência.
ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 43
rídico e preocupar-se com o conteúdo lingüístico necessário para que o leitor o aceite como verdadeiro (ou, ao menos, o aceite como o melhor dos raciocínios apresentados, no caso da dialética processual).
Quando um advogado, argumentando, cita trecho de um julgado de um tribunal qualquer, está utilizando-se de um argumento por analogia. Apoiando-se na eqüidade, pede que para em fatos análogos o Judiciário aplique resultados idênticos. Ao lançar mão desse argumento - porque é argumento, e não fundamento - , não está dizendo que ele, advogado, tenha se convencido de sua tese por força do texto que recorta, mas sim que entende que aquele julgado funciona como fator de persuasão para quem pretende atingir.
O advogado, porque defende um interesse, não explica seu raciocínio, mas sim expõe um raciocínio que leva, por seu percurso, a uma adesão. Essa adesão depende do interlocutor, e por isso atende às peculiaridades, aos gostos e à visão de mundo deste.
Nesse contexto, não é exagero dizer que, enquanto a fundamentação tem seu centro de gravidade naquele que fala, a argumentação se concentra naquele a quem se fala.
Retomemos exemplos aqui já fornecidos nesse sentido. No texto de Moacyr Scliar, o marido, ao dirigir sua carta à esposa, já tem claros os fundamentos de seu pedido. Mas eles não bastam: daqueles fundamentos, o enunciador tira a questão "que devo fazer para convencer a esposa acerca deles?". Ao fazer essa pergunta, hipotética, o enunciador transporta o centro de argumentação dele para a destinatária. Então percebe que os fundamentos que o convencem não são os argumentos eficientes para persuadir a esposa. Esta precisa, como argumento, de um raciocínio bem diverso.
O mesmo ocorreu com o exemplo do tribunal do júri, no confronto entre os 99% do laudo e os 100% que autorizariam a certeza. Ao transportar o centro do raciocínio dele para os jurados, o advogado criou um raciocínio persuasi- vo: as balinhas de hortelã. Evidentemente elas não fazem parte dos motivos que o levaram a acreditar que o laudo não era digno de certeza da culpabilidade, mas representaram
44 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
meio eficiente de levar os jurados a aderir a essa conclusão, ainda que por um caminho diverso. Mais que rechaçar o laudo, porque não contava com 100% de certeza, o advogado preocupou-se com um meio eficiente de exteriorizar esse raciocínio e atingir ouvintes específicos, e foi nesse momento que passou, em sentido estrito, a argumentar.
Essa é a diferença principal entre fundamentação e argumentação que nos autorizou a iniciar o presente capítulo, afirmando que nem sempre aquele que bem fundamenta faz boa argumentação. Alguns têm prática em exteriorizar seu próprio raciocínio, mas podem não alcançar resultado prático de persuasão se não estiverem conscientes, a todo momento, de que a argumentação é o modo de atingir o interlocutor.
Mas não digamos absurdos: em momento algum se afirma que aquele que argumenta, no campo jurídico, dispensa a fundamentação. Ele parte dela, adotando teses que contam com sustentabilidade jurídica, para valorizar essas teses por meio de argumentos que devem se concentrar no destinatário. Da mesma forma, a decisão judicial não dispensa argumentos, pois o julgador também deve se preocupar em convencer as partes das razões de seu raciocínio, mas é o raciocínio próprio, pois ele não busca a adesão das partes em litígio a sua tese. Até porque isso seria impossível: uma das partes (ou ambas!) estará sempre insatisfeita.
Conscientizar-se da diferença entre fundamentação e argumentação resulta em mais trabalho ao argumentante, mas também em maior liberdade e em resultados mais eficientes. E disso que trataremos a seguir.
Uma eterna desvantagem: o ponto de vista comprometido
E importante uma observação a respeito da atividade de argumentar. Vimos que quem argumenta procura atingir o leitor, o ouvinte, o destinatário de suas normas, e para isso não basta expor os motivos de seu convencimento.
ARGUMENTAÇÃO £ FUNDAMENTAÇÃO 45
Durante algum tempo essa idéia encontrou grande oposição, como já dissemos no capítulo anterior. Acreditou-se que o bom raciocínio era sempre mais próximo da fundamentação que da argumentação, pois esta levaria à falácia, ao engodo, já que se procuraria a qualquer custo o convencimento do ouvinte, sem se importar com a verdade.
A oposição é válida, mas parte de premissa errada. Nunca se procura, ao argumentar, o convencimento do ouvinte a qualquer custo. A argumentação depara com princípios éticos válidos e exigíveis, como a proibição de se levar ao engodo ou de se alterar os fatos em sua essência13. O anunciante que divulga qualidades que o produto anunciado não tem ou o advogado ou promotor que afirma fatos que não existem nos autos abandonam o processo de persuasão e caem, agora sim, na falsidade.
Com a argumentação pretende-se valorizar um raciocínio para determinado leitor. E o que autoriza o argumentante a buscar os elementos de persuasão específicos a um interlocutor - aquele a quem se dirigem seus argumentos - é o fato de sua argumentação partir sempre de um ponto de vista comprometido.
Expliquemos.Imagine que uma pessoa entre em uma concessionária
de automóveis de uma marca específica, interessada em comprar um carro popular. Traz consigo seu filho, de apenas onze anos de idade. Na concessionária, encontra o vendedor. Como está em dúvida entre o carro que irá comprar, pois o modelo similar - de outra marca - também traz atrativos, o interessado pergunta ao vendedor, diante do automóvel ali posto à venda: "Este carro é bom?"
O filho, diante da questão levantada pelo pai, olha-o e faz a interpelação: "Que pergunta boba, pai! Que acha que o vendedor vai dizer?"
O aparte do filho tem uma razão muito evidente. Em sua imaturidade, fez uma observação pertinente, a de que o
13. Vide Capítulo XIII.
46 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
vendedor, diante daquela questão, somente poderia dar uma resposta: a de que o carro é bom. Por isso a pergunta seria totalmente dispensável, boba mesmo.
O que o menino observou ao pai é que a resposta do vendedor era conduzida por um interesse evidente. Tal é a condução de seu interesse que sua resposta é comprometida. Embora pelas várias maneiras diferentes que se possa dar essa resposta, ela somente pode dirigir-se a um sentido único: aquele que atende aos interesses pessoais daquele que fala, que no caso é quem quer vender o carro.
O vendedor é, portanto, parcial.O que o menino talvez não tenha percebido é que o
interesse do vendedor conduz e compromete sua resposta, mas não necessariamente a corrompe. Seu pai, ao perguntar ao vendedor se o veículo que este pretendia vender era bom, não ansiava apenas pela resposta, mas procurava fomentar uma argumentação. Talvez pudesse questionar: por que devo comprar este veículo?
Encarregado da venda, o profissional lhe falará sobre as vantagens do carro, e terá de fazê-lo com argumentos, comprovando suas afirmações. Evidentemente, o pretenso comprador "filtrará" seus argumentos, ou seja, dará a eles menor crédito a partir do momento em que sabe que não são "mentiras", porém nascem comprometidos com um interesse daquele que fala.
Situação diversa ocorreria se esse mesmo comprador encontrasse um amigo de escritório que lhe falasse a respeito das vantagens daquele modelo de automóvel. O dono do automóvel, para convencer o amigo da compra de um modelo idêntico, precisaria de argumentos bem mais exíguos. Por não ter interesse aparente em convencer o amigo a semelhante compra, os fundamentos do dono do veículo parecem dignos de maior crédito.
Não é impossível ao vendedor convencer o comprador da aquisição do automóvel, porque talvez este seja mesmo o melhor modelo do mercado e porque os argumentos elen- cados (a economia de combustível, a força do motor, a tec
ARGUMENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO 47
nologia no painel, o espaço interno...) sejam todos baseados na mais absoluta correspondência com a verdade.
O fato é que o vendedor tem de buscar uma argumentação mais eficiente para compensar o ponto de vista comprometido que tem. Assim, procura os argumentos que surtirão mais efeito naquele comprador (se tem uma família grande, o espaço interno; se faz um trajeto longo todos os dias, o baixo consumo; se viaja nos fins de semana, o porta-malas...).
Por isso é lícito ao vendedor que busque expor os argumentos que interessam ao comprador, ainda que não representem seus motivos pessoais para a aquisição do veículo (até porque é possível que, por convicção pessoal, o vendedor prefira a marca concorrente, mas isso afronta seus interesses naquele momento).
O vendedor, porque é parcial, busca, na força dos argumentos, a compensação do inevitável desvalor que suas idéias sofrem no ouvinte pelo simples fato de partirem de um ponto de vista comprometido, atrelado a um interesse.
No Direito ocorre o mesmo. Para garantir a imparcialidade do juízo, as partes são parciaisu.
Aquele que representa uma parte defende um interesse. Esse interesse implica um desvalor a todos os fundamentos lançados. Ao defender seu cliente, o advogado não pode ocultar que seu ponto de vista é comprometido por um sentido argumentativo: aquele que interessa a seu cliente. O mesmo faz o promotor de justiça, na defesa de seu ministério.
Esse interesse não faz com que o advogado ou o promotor, partes enfim, sejam vistos aprioristicamente como dispostos a produzir falácias de raciocínio, em atenção a suas pretensões. Ao contrário, dá-lhes liberdade de buscar
14. Mesas de processo penal, Súmula 5 6 - 0 contraditório, representando o momento dialético do processo, exige a parcialidade das partes, para garantir a imparcialidade do juiz. Por isso, não configura apenas direito público subjetivo da parte, mas garantia do legítimo exercício da jurisdição (in: GRINO- VER, Ada Pellegrini et alli. Recursos no processo penal, p. 433).
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nas técnicas argumentativas (e não na pura fundamentação) a compensação ao incontestável desvalor a suas idéias que lhe impinge sua parcialidade funcional.
Aí fica, então, uma premissa relevantemente válida para nosso estudo: a de que não existe um único caminho correto na argumentação nem verdade absoluta no Direito. Ra- zoabilidade e força persuasiva: são esses os conceitos principais com que o argumentante deve lidar.
Capítulo IV
Ouvinte específico e discurso genérico. Intertextualidade
Qualquer discurso, por mais completo que seja, traz informações sempre fragmentárias. Para atribuir sentido a um texto, o leitor ou ouvinte complementa os argumentos que lhe são proferidos com elementos de sua própria realidade e conhecimento de mundo. Estes passam, assim, a ser instrumentos de trabalho do argumentante.
Um advogado, colega de larga perspicácia, contou-nos fato muito ilustrativo: fora ele a uma sessão de julgamento no tribunal encontrar alguns desembargadores. Lá estavam todos os três magistrados que participariam do julgamento da causa em que atuava, na sessão da semana seguinte. Trazia o advogado, dentro de um envelope grande, seus memoriais, um texto curto entregue como última oportunidade argumentativa aos julgadores.
Não desejando interromper a sessão, sentou-se e assistiu a uma parte dela. Observou, então, de modo arguto, o comportamento do julgador já sorteado como relator da causa de seu interesse, agendada para a sessão da semana seguinte. "Quando expunha seus votos", disse o colega com natural exagero, "para cada cinco expressões que utilizava, três eram contra legem. Desisti de entregar os memoriais e voltei para o escritório para redigir outros, mais adequados.
"Naqueles novos memoriais", contava, "fiz questão de indicar quase que somente o texto da lei em que se apoiava meu pedido. E disse, mais de uma vez, com grande realce, que aceitar o pedido da parte contrária seria desatender à lei positiva, seria referendar um resultado contra legem. E ganhei a causa."
Ganhou mesmo, e não sem mérito. Percebera o profissional algo que, em grande parte, já expusemos nos ca
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pítulos anteriores: que a argumentação centraliza-se no ouvinte, no destinatário, e foi isso que fomentou sua alteração no texto que já estava pronto. A descoberta de características novas no desembargador que deveria ler os memoriais fez com que estes tivessem de ser alterados, pois a ele se dirigiam.
Levar o leitor em consideração já não é para nós novidade1, mas sobrevive a pergunta: como fazê-lo?
O auditório universal
Não existe argumentação erga omnes que valha contra todos, o tempo todo.
O percurso de uma resolução matemática convence da retidão do resultado de uma equação a qualquer matemático, em qualquer confim do planeta. Trata-se de uma demonstração.
Mas quando o advogado percebeu que o juiz seria mais facilmente persuadido se lesse a expressão que este utilizava com muita constância, e assim resolveu alterar seus memoriais, mostrou ter consciência de que seus argumentos têm de variar conforme a pessoa a que se destinam.
Defendemos sempre que o discurso jurídico, por constituir matéria humana, carrega certa dose de subjetivismo. Quando se refere à adesão de espíritos de que trata Perelman,
1. Antônio Suarez Abreu resume com grande pertinência: "Argumentar é também saber persuadir, preocupar-se em ver o outro por inteiro, ouvi-lo, entender suas necessidades, sensibilizar-se com seus sonhos e emoções. A maior parte das pessoas, neste mundo, só é capaz de pensar em si mesma. Por isso, o indivíduo que procura pensar no outro, investir em sua auto-esti- ma, praticamente não enfrenta concorrência" (A arte ác argumentar, p. 93). No mesmo sentido, Perelman: "... O grande orador, aquele que tem ascendência sobre outrem, parece animado pelo próprio espírito de seu auditório. Esse não é o caso do homem apaixonado que só se preocupa com o que ele mesmo sente. Se bem que este último possa exercer certa influência sobre as pessoas sugestionáveis, seu discurso o mais das vezes parecerá desarrazoado aos ouvintes..." (Tratado da argumentação, p. 27).
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ou seja, da arte de persuadir, há ainda maior dose de adequação às necessidades do leitor. O que não importa em afirmar que se tecerá um discurso sentimental ou passional, o que é bem diverso. Ocorre que aqueles que fazem a apologia da exatidão extrema dos discursos, como mera demonstração (puramente) racional das argumentações em matérias humanas, não raro, até por via de conseqüência, transbordam para idéias totalitárias, porque crêem que existem conceitos, apreciações e conclusões que se possam impor erga omnes.
A argumentação tem algo de subjetivo, de pessoal. Encantos, gostos, preferências e idiossincrasias humanas estão em estrito diálogo no momento da efetiva persuasão, tal qual no exemplo anterior. Um relógio que marque hora com exatidão é um instrumento objetivamente útil e necessário, porém um Rolex agrega em si um valor maior, eminentemente subjetivo, mas nem por isso menos importante, até porque acaba se refletindo em seu preço de mercado. Um Rolex ofertado como presente constitui um fino regalo, mas se seu destinatário sequer conhece a marca, muito provavelmente o considerará um instrumento como qualquer outro (talvez mais caro e pesado?), e assim o presente, como oferta que deve ser apreciada pelo seu receptor, perde seu valor.
Aquele que ofertara o caro relógio a uma pessoa que não o valorizara certamente doou um excelente relógio, mas um mau presente. Este depende menos da qualidade objetiva do bem e mais de uma interpretação, um entendimento que dele faça o receptor, no caso o presenteado.
Pois tal como um objeto de qualidade nem sempre é um bom presente, também uma idéia forte nem sempre constitui um bom argumento. Uma idéia, para que seja um bom argumento, necessita, além de seu conteúdo, de dois fatores a ela exteriores: primeiro, a compreensão e o entendimento do leitor; segundo, a coerência com os demais argumentos elencados no texto. Esse segundo fator, a
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coerência, será objeto de nosso estudo um pouco mais adiante.
Já se afirmou, talvez com algum exagero, que todo discurso, na sua obtenção de sentido, é feito 50% pelo orador e 50% pelo receptor, pelo ouvinte. Isto significa dizer que, ao ler (ou ouvir) um texto, o interlocutor passa a ser um co- produtor2 do seu sentido, e o bom argumentante leva tal fator em alta consideração, caso contrário seu discurso pode cair no vazio.
Quando alguém se dispõe ao ouvir uma argumentação, certamente se predispõe a interpretar o que diz o emissor. Quando o advogado escreve, por exemplo, alegações finais em processo-crime, certamente conta com que o juiz, cujo espírito deseja conquistar, interprete suas palavras e seus argumentos, complementando-os com seu conhecimento próprio, seu arcabouço de vivência e conhecimento.
Pareça ou não, todo texto tem lacunas, pois não se estende ao infinito. Trabalha com fragmentos de sentido, que são sempre complementados pelo leitor/ouvinte, para que ali se estabeleça coerência de sentido e, então, seu potencial de convencimento. Se o procurador da parte diz a um juiz que se deve aplicar o princípio do contraditório em determinado processo, evidentemente aquele, para compreender tal alegação, faz uso de um conhecimento prévio, armazenado em seu intelecto, que dispensa o emissor de lhe explicar de que se trata esse princípio. Caso tal procurador venha a construir uma longa explicação sobre esse contraditório, desperdiça em seu discurso precioso espaço em que poderia cuidar de trazer informações novas, provavelmente muito
2. "Através do processo de interação sujeito/linguagem gerado pela leitura, o leitor será co-produtor do texto, completando-o com sua bagagem histórico-sociocultural. Para que essa co-produção se efetue é necessária a ativação de todo um processo cognitivo, desde a percepção do texto e sua posterior decodificação, passando pela compreensão, pelos processos infe- renciais até a interpretação, que é um novo texto" (DELL'ISOLA, Regina Lúcia, "A interação sujeito-linguagem e leitura". In: As múltiplas faces da linguagem, p. 73).
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mais relevantes ao objetivo de persuasão. De qualquer modo, a todo momento quem argumenta invoca do leitor seu conhecimento, seja pela própria definição das palavras que utiliza - o idioma - , seja na citação de algum evento histórico, algum conceito teórico ou científico, a invocação da figura de uma pessoa ou personagem literário. Com esse conhecimento, o leitor lhe completa as lacunas, como um verdadeiro diálogo.
Melhor é a argumentação quanto mais se aproxima do pensamento do leitor, enquanto as lacunas do texto são mais rápida e eficientemente complementadas por aquele a quem o discurso é direcionado, e quanto mais próximas são as idéias de seu próprio raciocínio, de seu próprio gosto.
A intertextualidade
O nome é complexo, mas o conceito é simples e bastante útil: se nossa argumentação sempre depende da interpretação do receptor, a intertextualidade é o diálogo que nosso discurso faz com os outros textos que montaram nosso próprio discurso e que podem ou não fazer parte do universo de conhecimento do receptor.
Todo discurso que o ser humano compõe, como já temos adiantado, constitui-se de uma trama de outros textos diversos, perfazendo o raciocínio daquele que argumenta, perceba ele ou não. Se um argumentante utiliza uma citação de Pontes de Miranda, espera que o leitor o conheça, caso contrário não valorizará a autoridade3 de seu argumento. Se o leitor conhece a obra do aludido professor, provavelmente o valoriza como doutrinador, e então seu argumento será eficiente; se o leitor, além de conhecer o doutrinador, admira suas opiniões como sendo sempre corretas, ainda é mais persuasivo o mesmo argumento.
3. Vide Capítulo VI.
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O nível de eficiência de cada argumento pode ser, grosso modo, medido também pela proximidade que o receptor tenha com os textos que são invocados no discurso do retor.
Certa vez um amigo apresentou discurso curto, que procurou que fosse extremamente persuasivo. De grande erudição, articulava idéias que apresentavam a fragilidade do trabalho de alguns profissionais de sua área, em virtude de ensino deficitário; comparou esses mesmos profissionais a outros de formação diferente, muito mais sólida, demonstrando a inegável disparidade entre a produtividade de uns e de outros. E finalizou, como em um arremate conclusivo: que não se compare Babieca a Rocinante\
A frase final poderia ter se constituído em um excelente argumento. A imagem dos dois personagens é exemplo de diálogo intertextual: o discurso do colega invocou a presença de duas figuras da literatura espanhola: uma, símbolo de vigor e força; outra, de fraqueza e fracasso. A representação de um e de outro, na mente do autor do discurso, por certo importava em reforço extremamente persuasivo às idéias anteriormente apresentadas, e assim deveria fazer com que os ouvintes, acolhendo tal imagem, acreditassem em suas premissas.
Mas o efeito não surtiu como devido, porque os ouvintes não conheciam - como era de se esperar - os personagens invocados. Babieca, a égua de "El Cid Campeador", forte e vigorosa, e Rocinante, o fraco e magro cavalo de Dom Quixote, foram personagens retirados de textos que eram do repertório do arguitientante, mas nada representavam (ao menos apenas pelo nome) aos ouvintes, que não os reconheceram.
O diálogo textual foi ineficiente e, portanto, a argumentação mostrou-se fraca. A não ser que o argumentante tivesse a deliberada intenção de mostrar erudição e tornar inquietos os ouvintes, deveria ter considerado que aqueles textos de que retirara ambos os personagens para
4. Sentido semelhante ao ditado grego "comparar flauta a trombeta"
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a construção de seu argumento não eram de conhecimento dos interlocutores, e então ali não surtiriam o efeito pretendido.
A idéia era corretíssima, mas, como argumento, foi fraca, pelo mau diálogo intertextual. As lacunas do texto não foram devidamente completadas pelos interlocutores, e por isso seu sentido ficou prejudicado.
O bom diálogo intertextual é aquele que compõe o discurso que não apenas faz sentido completo ao ouvinte, mas também aquele que se lhe faz próximo. Um exemplo retirado de um fato recente e notório, a jurisprudência de um tribunal famoso e respeitado pelo leitor, a doutrina de um professor que conte com a admiração do interlocutor são sempre bons argumentos, desde que pertinentes ao raciocínio que se desenvolve.
Por isso o trabalho argumentativo depende também da consciência que se tenha a respeito daqueles a quem é dirigido. Não existe argumentação que seja perfeita a qualquer público, pois a compreensão e a proximidade dependem do leitor. Um juiz pode respeitar a opinião de um tribunal e ter pouco apreço pelos julgados de outra Corte, aceitar como correto, às cegas, o posicionamento de um doutrinador e guardar restrições à teoria de outro, assim como um jurado pode acatar sempre como verdadeira a opinião de determinado sacerdote religioso e predispor-se a rechaçar sempre o posicionamento de um representante de uma religião com a qual não simpatize.
Nem sempre então a idéia mais erudita constitui o melhor argumento. O argumento forte é o elemento lingüístico que encontra bom feedback em determinados interlocutores. Grandes escritórios de advocacia trabalham com aprofundadas pesquisas quanto ao posicionamento de juizes, na busca de construir sua argumentação de acordo com as idéias e os textos mais facilmente aceitos por cada um dos julgadores; sabem que é mais fácil convencer o interlocutor falando-lhe de modo mais próximo, com sua própria linguagem, seu mesmo trilho de raciocínio.
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Quem se preocupa em conhecer o ouvinte dá grande passo para o discurso mais persuasivo.
Trataremos um pouco mais sobre intertextualidade em contexto específico no capítulo final, que cuida do estilo e da subjetividade.
Capítulo V
Progressão discursiva e coerência
A unidade de sentido do texto e, conseqüentemente, sua força persuasiva dependem do nível de ligação entre as idéias nele enunciadas. Se o discurso, por definição, não é completo, deve ser coerente.
A coerência
Para que uma boa idéia represente um forte argumento, primeiro é necessário trabalhar a intertextualidade, na real medida em que o argumento é complementado pelo próprio interlocutor. Esta foi a matéria do capítulo anterior. Mas há um segundo ponto, como ali se adiantou.
A boa informação deve ser pertinente a um percurso determinado, para que possa representar na mente do destinatário um acréscimo à conclusão que se pretende que ele aceite, ao comportamento que se anseia seja adotado. Parece óbvio, mas o trabalho com a coerência, sem dúvida, constitui uma das matérias mais difíceis da argumentação, motivo pelo qual merece ser sempre matéria de atenção e reflexão.
Para Plantin, "a argumentação é uma operação que se apóia sobre um enunciado seguro (aceito) - o argumento - para chegar a um enunciado menos seguro (menos aceitável) - a conclusão"1.
Nessa definição, o argumento transforma-se apenas em um apoio para um caminho a ser trilhado. É, pois, a ordem e o nível de ligação entre esses "apoios", os argumentos, que fazem chegar à conclusão. Dá-se realce, assim, à im
1. La argumentación, p. 39.
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portância da coerência como fator de ligação entre os argumentos e de condução ao resultado final, de que o argumento em si é mero instrumento.
Se um advogado defende que o conceito de "clamor público" não é suficiente para fundamentar a prisão cautelar de um indivíduo, pode socorrer-se da jurisprudência. Esta, entretanto, somente vai se transformar em um argumento forte se convergir para essa mesma tese. Caso o advogado recorte um texto jurisprudencial que, ao contrário, aponte que, em certos casos, o clamor público pode efetivar a motivação da prisão excepcional, este julgado - ainda que contenha excelente fundamentação jurídica - transforma-se em um mau argumento, pois não converge para a conclusão.
A coerência é o nível de ligação entre as idéias do texto, para que dele se retire a unidade de sentido. Quanto maior o nível de coerência entre as idéias, mais valorizadas elas se tornam no texto argumentativo, o que importa afirmar que se fortalece seu efeito suasório. Tal como a inter- textualidade, a coerência é um fator exterior à própria idéia, porque depende da inter-relação dela com as demais lançadas no discurso.
Entretanto, a coerência depende pouco menos do universo de conhecimento de cada auditório, de cada receptor do texto argumentativo, ao menos se comparado com a in- tertextualidade. E que a coesão entre idéias do texto depende pouco da interpretação do leitor e mais de um raciocínio lógico, ainda que não formal: a ruptura no percurso argumentativo ofende a construção de pensamento do interlocutor, e por isso - se ele a identifica - muito provavelmente rejeita a conclusão que o retor lhe pretende impingir.
Certa vez participamos da avaliação de um trabalho universitário, em que se identificou grave erro de coerência, ainda que contasse com excelentes argumentos. Tentamos reproduzir trecho dele, em paráfrase:
A evolução da tecnologia da informação transformou as relações humanas em nível mundial, fazendo surgir o fenômeno de contato de culturas chamado de globalização. Trans
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missões via satélite, TV a cabo e internet trouxeram a possibilidade e daí a necessidade de maior entrosamento entre os diversos cantos do planeta, assim como o contato próximo com diversas culturas, antes até inatingíveis. Mas, como não se pode evitar, o contato entre as culturas determina influências e, com raras exceções, vence a cultura superior, e hoje essa superioridade é econômica. Napoleão, general francês, em anotações à obra de M aquiauel, já observava o fenômeno, com entando a possibilidade de transformação da cultura francesa como hegemônica, ao menos em toda a Europa.
A argumentação parecia perfeita. Com boa vontade, pode-se entender que o argumentante, procurando comprovar a veracidade dos efeitos do contato das culturas, apresentou um argumento histórico: os comentários de Napoleão. Assim como nas conquistas napoleônicas, a guerra atual, que é a tecnológica, implica imposição da cultura dominante à dominada. Mas não é bem isso o que está escrito: diz o autor que o general francês já observava o fenômeno da aculturação hegemônica. E então pergunta-se: se Bona- parte já comentava o fenômeno, como afirmar que ele tenha surgido pela moderna tecnologia de comunicação? Ora, o argumento histórico, que parecia excelente e erudita idéia, pelo modo como apresentado no texto acaba por descons- tituir a tese, ao invés de comprová-la. O "argumento" (à revelia da vontade do autor) demonstrou que a aculturação existia independentemente dos modernos meios de comunicação. Ou seja, o inverso do que afirmava sua tese, a não ser que se possa imaginar Napoleão Bonaparte falando no telefone móvel e navegando na internet.
Não bastam ao argumentante as boas idéias, pois elas devem ser entravadas em um percurso coerente, que permita ao destinatário compreender, comodamente, a que serve cada um dos argumentos articulados. Se o interlocutor não tiver plena compreensão da utilidade de cada um dos argumentos, o discurso terá falhas de coerência.
No exemplo acima, a coerência atingiu nível grave, a contradição. Entretanto, raras vezes se percebe um argumen
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to contraditório, mas a mera ausência de contradição não implica necessariamente boa coerência. Isto porque ela se desenvolve em diversos níveis, no transcorrer do percurso argumentativo.
Sua importância será analisada adiante.
Coerência e percurso
O texto abaixo é fragmento do poema "I-Juca-Pirama", de Gonçalves Dias2. Nele, o velho Tupi guerreiro amaldiçoa seu filho, ao saber que ele fora aprisionado pelos índios Timbiras, porque chorara diante da morte:
Tu choraste em presença da morte?Na presença de estranhos choraste?Não descende o covarde do forte;Pois choraste, meu filho não és!Possas tu, descendente maldito De uma tribo de nobres guerreiros,Implorando cruéis forasteiros,Seres presa de vis Aimorés.
Possas tu, isolado na terra,Sem arrimo e sem pátria vagando,Rejeitado da morte na guerra,Rejeitado dos homens na paz,Ser das gentes o espectro execrado;Não encontres amor nas mulheres,Teus amigos, se amigos tiveres,Tenham alma inconstante e falaz![...]Q ue a teus passos a relva se torre;Murchem prados, a flor desfaleça,E o regato que límpido corre,Mais te acenda o vesano furor;Suas águas depressa se tom em ,
2. In: Poesia indianista, pp. 58-60.
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Ao contacto dos lábios sedentos,Lago impuro de vermes nojentos,Donde fujas com asco e terror![...]Sê maldito, e sozinho na terra;Pois que a tanta vileza chegaste,Que em presença da morte choraste,Tu, covarde, meu filho não és.
Irado com a revelação de haver o filho se acovardado diante do inimigo e ter sido "rejeitado da morte na guerra", o velho índio passa a amaldiçoá-lo. Entretanto, para sustentar a gravidade de seus vaticínios, suas maldições, procura primeiro retirar-lhe a condição de filho e, para isso, argumenta afirmando que "não descende o covarde do forte".
Fora de seu contexto, o argumento é falacioso, pois adota uma idéia que parece falsa, embora com algum índice de probabilidade. É provável que um pai corajoso tenha um filho também valente, mas isso não autoriza dizer-se, em hipótese alguma, que um pai valente não possa ter um descendente medroso.
A afirmação "não descende o covarde do forte" não tem nenhum valor fora do poema. Cientificamente não passa de um absurdo: em uma ação de investigação de paternidade, esta não poderia ser negada ao afirmar-se não poder haver relação biológica entre covardes e destemidos, tentando-se levar a crer que somente um pai medroso poderia gerar um filho patife.
Mas no poema a idéia é perfeita e funciona como principal ou único argumento. Todavia, percebe-se claramente que a relação de descendência a que se refere o enunciador não é a relação biológica, mas sim a afetiva e ideal. Nessa relação, agora sim, é possível afirmar que um pai valente não tenha um filho covarde, pois nessas condições quebra- se o laço de afetividade, que é exatamente o que comprova o chefe tupi. Então, na forma em que a afirmação "não descende o covarde do forte" encadeia-se com as demais do
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poema, ela serve como perfeito argumento para a conclusão final "Tu, covarde, meu filho não és"3.
Do ponto de vista da argumentação, não há um argumento útil fora de seu contexto4. Todo discurso é complexo, e a coerência estabelece o que é ou não pertinente como argumento, ou seja, como afirmação capaz de levar ao convencimento do quanto é desejado. No tribunal do júri, por exemplo, uma brincadeira, uma frase de efeito pode ser mais útil para a persuasão que a leitura de uma peça importante dos autos, o que não significa ausência de uma séria argumentação. Por vezes, a ocultação de uma informação ou o silêncio pode funcionar muito mais que sua exteriorização, e uma comparação imperfeita, uma ilustração figurativa pode ter maior valia que um longo percurso lógico a respeito de um conceito jurídico aplicável ao caso concreto.
Nesse sentido, a coerência, mais refinada, vem carregada de aspectos particulares, que cabe ao argumentante conhecer de seu próprio texto e, novamente, por vezes do próprio leitor.
Veremos nos capítulos seguintes que existem tipos de argumento de que quase sempre é válido lançar mão. Os argumentos variados sempre persuadem mais o leitor, pois a repetição leva ao cansaço e ao enfaro. Mas o bom argumento só o é porque pertinente a um percurso lógico, delimitado, progressivo e, por isso, consciente. Intencional.
3. Cf. Oswald Ducrot em lição em que aponta como as palavras podem ser argumentativamente orientadas, a partir do exemplo do vocábulo "am ornar", que pode significar "esfriar" ou "esquentar", em relação ao fim a que é dirigido (in: Provar e dizer: leis lógicas e leis argumentativas, pp. 226 ss.).
4. "... we cannot understand the meaning of a piece of reasoned dis- course, unless we know what counter-positions are being implicitly or expli- citly rejected. In the same way, we cannot understand the attitudes of an individual, if we are ignorant of tye vvider controversiy in wich the attitudes are located. In other vvords, the meaning of a piece of reasoned discourse, or na expressed attitude, does not merely reside in the agregation of dictionary de- finitions of the wordsused to express the position: it also resides in the argu- mentative context. ..." (BILLING, Michael. Ideology and Opimons: Studies m Rhethorical Psychology. Apud TINDALE, Cristopher. Acts ofArguing: a Rhetori- cal Model o f Argument, p. 77).
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O argumentante que não tem plena consciência do percurso que trilharão suas idéias, muitas vezes joga argumentos que perdem coerência, e então não é raro que leiam seu texto ou ouçam seu discurso com aquela indagação: o que ele quis dizer aqui? Não percebi aonde quis chegar com essa idéia! Ou ainda: isso eu já sei, está se repetindo muito, sem trazer uma conclusão!
Para evitar esse tipo de interferência, deve-se cuidar de construir um percurso argumentativo muito definido.
Estabelecendo a coerência
A unidade de sentido no discurso se estabelece, em primeiro lugar, pela não-contradição. Se afirmo que um réu não merece pena porque não cometeu fato típico, não posso assertar que seu ato, apesar de constituir fato típico, fora acobertado por situação excludente de antijuridicidade. Se o faço, caio em contradição, pois disse, no mesmo discurso, que um evento era e não era fato típico5.
Podem ser estabelecidos graus de coerência.Um discurso não-contraditório pode ser incoerente.
Basta que, para tanto, o interlocutor não encontre unidade de sentido. Se digo que em determinado caso o réu agira em estado de necessidade porque não gostava de andar armado, o ouvinte acha incoerente meu discurso, porque não observa relação direta entre não andar armado e estar em estado de necessidade.
Um discurso não-incoerente pode ser pouco coerente, na medida em que nele não se encontrem relações suficientes de sentido que levem a uma perfeita condução do raciocínio do leitor. A coerência maior do texto ou do discurso persua- sivo dá-se na combinação dos argumentos-chave, que representam as marcas principais do percurso. Vejamos como
5. Vide Capítulo XIII.
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exemplo o texto abaixo, que é parte da fala da personagem Otávio Santarrita, de Dias Gomes6:
Quanto será que me resta? Dez, vinte anos? Isso só me preocupa porque ainda não terminei meu trabalho. N ão que tenha medo da morte. Palavra que não tenho. Mas não estou preparado para envelhecer, essa é que é a verdade. Perder o vigor físico, a agilidade mental, a memória... isso me apavora. A velhice é uma tremenda sacanagem da natureza. Ou de Deus, quem sabe? Também, o que se pode esperar de um deus que criou o universo provocando uma grande explosão? Deus é um terrorista!
Reclamando a respeito da falta de vigor físico, o personagem revolta-se contra a figura de Deus. Irritado, conclui a idéia de que Deus seria um terrorista, e para tanto traz um argumento: Ele teria criado o universo a partir de uma explosão. Evidentemente, entre a idéia de que o universo fora criado a partir do big-bang e a conclusão de que Deus implantaria o terror existe coerência que, ainda que possa ser depreendida, é falha.
O leitor reconhece o raciocínio do personagem, compreendendo-o: os ativistas do terrorismo têm como meio preferido de ação a explosão de bombas - se Deus se utiliza da explosão para seu trabalho de criação, provavelmente é terrorista; a essa idéia soma-se vagamente o discurso anterior do personagem, um provável gosto de Deus pelas mazelas humanas, no caso a velhice. Entretanto, ainda que reconhecendo o raciocínio do autor, o ouvinte não o aceita inteiramente, pois não se convence, claro, de que Deus seja realmente um ativista do terror. É que percebe que apenas o big-bang não autoriza identificar Deus com tal predicado, assim como somente o uso de uma gravata não permite identificar uma pessoa como advogado7. Desta forma, ainda que se compreenda o nível de ligação entre
6. Meu reino por um cavalo, p. 87.7. "Barba non facit philosophum” - A barba não faz o filósofo.
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um argumento e sua conclusão, esta não é aceita porque a coerência foi pouca.
No exemplo do texto de Dias Gomes, claro, a coerência é estabelecida por outros fatores exteriores ao argumento do personagem: seu estado emotivo, de indignação, que se agrava no decorrer do texto, permite que ele estabeleça a criticada relação, que se faz coerente com o ponto de vista comprometido que tem em virtude de seu próprio estado de espírito. Na boca do personagem, enuncia-se a falácia para se chegar a outra conclusão: sua ira em relação ao estado das coisas.
No discurso argumentativo, a pouca coerência prejudica a persuasão. Tal qual no exemplo acima, em um texto de coerência comprometida o leitor compreende o texto, mas raramente é persuadido, pois percebe que o percurso é falho. No ambiente forense, em que a argumentação conta com o contraditório, o leitor é levado a preferir aquela que melhor conduz ao fim pretendido, e assim rejeita o texto em que as conclusões não derivam necessariamente das premissas estabelecidas.
Coerência e sentido: a dependência do mundo exterior
Vejamos o texto abaixo:
Cachorro e burro são dois animais injustiçados. Burro é ofensa também. (Aqui entre nós, eu justifico. Conheci alguns burros mais burros que certos homens da minha carreira.) Entre esses homens, sou comumente conhecido como vira-lata, ou melhor, cão sem dono. De vira-lata me xingam. Mal sabem eles que, para um cachorro, chamar de "sem -dono" é o maior dos elogios. Para o homem seria também...
Vira-lata sou, com orgulho o digo. E adoro meus irmãos, com ou sem dono. Tenho agüentado muita injustiça pessoal sem reagir. E vou agüentar ainda, com certeza. Mas à minha raça, na minha frente, não tolero ofensa.
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É o início das Confissões de um vira-lata, de Orígenes Lessa8, brilhante autor de nossa literatura. No trecho, o protagonista, cachorro sem dono, tece explicações sobre sua própria condição, a circunstância de ser xingado de vira-lata ou elogiado com o predicativo de "cachorro sem dono". O texto procura estabelecer coerência, ligação entre as idéias nele expostas, a partir de seu próprio título: inevitável uma explicação, preliminar, para mostrar ao leitor quem é o "vira- lata", protagonista. A partir desse início, o autor já estabelece a coerência com o título da obra e deixa fixada uma série de condições, que aparecem nesse primeiro trecho, necessárias para que se atribua sentido à obra toda, principalmente no que concerne às condições do personagem e da narrativa: um cachorro antropomorfo, com capacidade de expressão, que fará observações, sob seu ponto de vista, a respeito da condição humana. Tudo isso está, com excepcional enunciação, nesse pequeno trecho do texto.
Mesmo naquela obra de ficção, em que o autor não tem a menor necessidade de vínculo com a realidade, deve se estabelecer coerência, fixar premissas que orientem o pensamento do leitor. Então a diferença entre a narrativa literária e a argumentação é apenas que a primeira não tem necessariamente estreito vínculo com o mundo exterior, enquanto a argumentação exige constante diálogo com a realidade, como veremos ainda a seguir, em leituras de valor bastante prático.
Alijado da obrigatoriedade do vínculo com o mundo exterior, o narrador literário ainda assim zela, e muito, para que as idéias de seu texto combinem-se sempre, não permitindo que o raciocínio do interlocutor possa encontrar fragmentação, não-intencional, o que faz com que o discurso perca sua unidade e então deixe de aderir à mente do interlocutor (e tal adesão é objetivo da narrativa literária tanto quanto o é da argumentação). Veja como Machado de Assis11
8. Confissões de um vira-lata, p. 14.9. Memórias póstumas de Brás Cubas. Capítulo 138, p. 200.
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demonstra essa mesma preocupação, ao fazer com que Brás Cubas, narrador já morto, explique a coerência de seu escrito, respondendo à crítica de um leitor:
A um críticoMeu caro crítico,
Algumas páginas atrás, dizendo que eu tinha cinqüenta anos, acrescentei: "Já se vai sentindo que o meu estilo não é tão lesto como nos primeiros dias". Talvez aches esta frase incompreensível, sabendo-se o meu atual estado; mas eu chamo a tua atenção para a sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer não é que esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte não envelhece. Quero dizer, sim, que em cada fase da narração de minha vida experimento a sensação correspondente. Valha-m e Deus! é preciso explicar tudo.
Diante do comentário a respeito do envelhecimento, o "crítico" questionara a respeito da coerência do texto (como pode um morto envelhecer?), o que fez merecer a resposta acima transcrita, já dos capítulos finais das Memórias póstumas. Ora, se o autor pretende fazer crer o leitor na verossimilhança de sua história (e nesse ponto a própria ficção assume caráter suasório), natural é que zele pela coerência dos limites que ele próprio fixou (em Machado de Assis, um defunto autor, que também critica as mazelas da humanidade).
Todo interlocutor é seduzido pelo bom raciocínio, e este é o que não se quebra, não se altera, não apresenta a incoerência em nenhuma de suas fases, desde a mais absoluta contradição até seus níveis mais efêmeros, como o ritmo.
O próprio discursante estabelece parâmetros para seu discurso, e por eles deve se orientar, caso contrário quebra a coerência e assim perde a adesão do leitor. Machado pôde, com a liberdade narrativa, estabelecer o defunto autor, desde que mantivesse - como manteve - a coerência dessas condições, até mesmo quando apontou que o narrador- personagem, morto, sentia-se envelhecer. Na argumentação, esse mesmo princípio deve ser seguido: o autor esta
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belece seus próprios parâmetros, suas próprias premissas, e deve segui-las para não quebrar a coerência.
A única diferença é que o texto argumentativo, longe da licença da ficção, tem um estreito vínculo com a realidade, com o mundo exterior. Um argumentante não pode estabelecer, em um discurso político, por exemplo, que o Brasil é um país de Primeiro Mundo para, a partir disso, iniciar sua argumentação. Se o fizer, seu texto também perderá a coerência.
Essas considerações implicam afirmar que, na argumentação jurídica, existe uma coerência externa e outra interna. O ouvinte que estabelece a coerência do discurso que deseja compreender trabalha com elementos, por mínimos que sejam, de fatores e informações que não estão no próprio texto, mas que fazem parte do mundo exterior, da realidade, e que sabe que o leitor leva em consideração. Para ilustrar, leiam-se os três fragmentos de texto abaixo, de pe- nalistas de absoluto renome, que discutem - argumentam- a respeito de um tema polêmico: a imputabilidade penal do menor.
I
Antes de tudo, com esta tradicional afirmação, esque- ce-se o fato incontestável de que há loucos e psicopatas - e são muito numerosos - que compreendem bem a imoralidade e a criminalidade dos seus atos e sabem bem que estes são punidos. O m esm o se deve dizer das crianças que, nos casos de precocidade do crime por tendência congênita, agem com discernimento e sabem praticar coisas proibidas, mesmo quando estão em idade de absoluta irresponsabilidade presumida (até os 9 anos, art. 53 do CP). Assim se deve dizer, tanto mais, dos criminosos habituais, que com freqüência conhecem o Código Penal melhor do que algum seu defensor experiente...
Mas depois, se a lei penal - em vez de se propor a tarefa, hum anamente irrealizável, de proporcionar um castigo a uma culpa moral humanamente impossível de medir - en tende, pelo contrário, prover à defesa social, as suas disposições devem valer contra qualquer pessoa que com eta um ato
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por ele previsto como prejudicial ou perigoso para a segurança social. Pois a sociedade não deve ter o direito de legítima defesa que se reconhece ao indivíduo quando é injustam ente agredido?1"
II
E notório que as condições sociais de 1940, quando se fixou o limite mínimo da imputabilidade penal aos dezoito anos, já não são as de hoje. Tudo mudou, de forma radical e sensível: as condições sociais, que possibilitam condutas permissivas; os meios de comunicação de massa, com a in fluência poderosa da televisão, ensejam ao jovem conhecer amplamente o mundo; e assim por diante. Por via de conseqüência, o pressuposto biológico não será mais o mesmo. O jovem de hoje, aos dezesseis anos, costuma ter plena capacidade para entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com esse entendimento. Como então insistir em estabelecer aos dezoito anos o limite mínimo da imputabilidade penal?11
III
O s adolescentes são muito mais vítimas de crimes do que autores, contribuindo este fato para a queda da expectativa de vida no Brasil, pois se existe um "risco Brasil", este reside na violência da periferia das grandes e médias cidades. Dado impressionante é o de que 65% dos infratores menores vivem em família desorganizada, junto com a mãe abandonada pelo marido, que por vezes tem filhos de outras uniões também desfeitas, e lutam para dar sobrevivência à sua prole. Alardeia-se pela mídia, sem dados, a criminalidade do menor de dezoito anos, dentro de uma visão tacanha da "lei e da ordem ", que de má ou boa fé crê resolver a questão da criminalidade com repressão penal, como se por um passe de mágica a imputabilidade aos dezesseis anos viesse a reduzir comodamente, sem políticas sociais, a criminalidade.12
10. FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal. Campinas, p. 127.11. COSTA Jr., Paulo José da. Comentários ao Código Penal, p. 122.12. REALE Jr., Miguel. Instituições dc direito penal, p. 213.
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Os três textos apresentam opiniões diversas sobre o mesmo tema, mantendo cada qual sua coerência. No texto I, o autor, positivista do início do século XX, defende que a lei penal deve ser aplicada sem diferenciação àqueles inim- putáveis. Para tanto, estabelece seu fator de coerência: o de que o ordenamento penal não serve para "medir culpabilidade", mas sim para promover a defesa social. O texto II, moderno, defende, no ordenamento nacional, a redução da maioridade penal, levando em conta a capacidade do menor de 18 anos de absorver informações e valores no contexto social.
O último fragmento, mais completo, aponta para a impossibilidade de a redução da maioridade ser de alguma valia para a diminuição da criminalidade. Para completar esse argumento, o autor leva em consideração a opinião generalizada que "alardeia-se pela mídia", e, para combatê-la, aponta dados numéricos, de pesquisas realizadas, combinando-os a outras considerações que lhe valem de argumento.
O que se percebe, em todos os textos, é que, defendendo seu ponto de vista (e, portanto, procurando persuadir o leitor), seus respectivos autores consideram as opiniões dominantes contrárias. Para que possam persuadir, sabem que têm de estabelecer vínculo com idéias que não estão presentes em seu discurso, mas encontram-se arraigadas no leitor. Desta maneira, consideram os autores que pouco profícuo seria seu discurso se não apresentasse, de alguma forma, como premissa, um vínculo com argumentos que, apesar de lhes serem contrários, estão presentes no mundo dos fatos.
Diversamente do que ocorria nos textos de ficção, o argumentante do mundo jurídico, além de zelar pela coerência interna de seu discurso, deve considerar (em uma relação de intertextualidade) a coerência com idéias que não fazem parte daquele, mas que estão arraigadas no leitor, ao menos quando essa atitude for estritamente necessária. Caso contrário, ainda que o autor do texto suasório zele pela coerência de seu discurso (em uma boa fundamentação), o
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leitor (ou ouvinte, no discurso oral) pode repelir os argumentos que lhe são dirigidos, estabelecendo por sí só lacunas no texto em relação a argumentos estranhos a este, mas de que se recorda no momento da leitura. O ouvinte forma relações de sentido de acordo com sua experiência e visão de mundo, daí dizer-se que a coerência tem estrita relação com a intertextualidade, já abordada.
Tais considerações não implicam a assertiva de que, para estabelecer coerência em seu texto, o argumentante tenha de considerar todas as opiniões que lhe possam ser contrárias (a não ser que lhe seja imposta tal obrigação, em casos excepcionais). Tal conduta não apenas seria impossível de realizar13, como também, se pudesse ser feita, enfraqueceria sobremaneira o discurso. Entretanto, é imprescindível entender que o argumentante, para atingir o interlocutor, estabelece um vínculo com elementos da realidade externos a seu texto, dos quais não se pode furtar. Caso o faça, seu texto, ainda que pareça coerente (coerência interna), pode ser considerado pelo leitor como reducionista, ou seja, texto que deixa de considerar fatores importantes, presentes no interlocutor, que ele imediatamente acessa ao ouvir o discurso que lhe é encaminhado, ainda que o dis- cursante não levante tais fatores.
Quando se constrói qualquer tipo de texto, selecionam- se elementos da realidade que passam a fazer parte do discurso. E imprescindível então, nessa seleção, que o autor absorva e comente algumas das idéias que sabe (ou pode saber) que o interlocutor não deixará de considerar na in
13. Tércio Sampaio Ferraz Jr. ensina: "A liberdade faz, por isso, da situação comunicativa jurídica uma relação insegura e instável. Essa insegurança e instabilidade é incômoda e tende a ser reduzida (sic). O discurso jurídico revela-se, assim, como um instrumento básico nessa redução. [...] Essas regras permitem que as partes estabeleçam entre si modalidades diversas de ação e reação em termos de que toda ação lingüística é questionável, mas, ao mesmo tempo, garantem que isso possa ocorrer. [...] Ora, é exatamente isso que torna o discurso jurídico, em princípio, ambíguo em relação à verdade: é sempre reconhecida mais de uma possibilidade como ponto de partida de uma discussão" (Direito, retórica e comunicação, p. 62).
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terpretação de seu discurso. Todavia, deve-se fazê-lo com temperança, pois é impossível em uma argumentação, principalmente nas mais sucintas, que se conciliem ou considerem todas as opiniões distintas, em especial na ampla seara jurídica; nesses casos, o argumentante deve emprestar maior ênfase à coerência interna de seu texto.
Coerência e extensão da argumentação
Chegamos aqui, rapidamente, a um ponto relevante do estudo da argumentação, que não raro desperta a atenção dos operadores da retórica jurídica, principalmente na construção de textos escritos. Qual deve ser a extensão de um texto argumentativo?
Em nosso trabalho de advocacia notamos que a extensão dos textos depende muito do estilo de cada autor. O estilo é o conjunto de características que permitem atribuir individualidade14 a uma obra. Assim, alguns magistrados escrevem longas sentenças e outros traçam decisões curtas, o que por si só não representa melhor ou pior conteúdo de fundamentação. Do mesmo modo, observam-se em nossos alunos, advogados, o mesmo diferencial, ou seja, alguns se estendem em longas considerações, enquanto outros, disser- tando sobre o mesmo tema, utilizam-se de linguagem quase telegráfica. O que tampouco implica melhor ou pior conteúdo suasório. Aliás, o estilo e a subjetividade serão matéria de capítulo à parte (XVII).
Mas reduzir a questão da extensão da argumentação a idiossincrasias seria furtar-se a conceder resposta à questão formulada. A extensão do texto relaciona-se diretamente à coerência, por isso é tratada nesta lição.
A princípio é preciso reconhecer que todo leitor ou ouvinte tem em si, ainda que não perceba, uma lei indeclinável:
14. "Duo cum faciunt idem, non est idem" - Quando duas pessoas fazem a mesma coisa, a coisa não é a mesma.
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a de que o argumentante gastará mais seu tempo falando sobre o que é mais importante. Assim, a coerência do texto diminui quando o argumentante passa muito tempo explicando uma premissa que não tem valor grave para a conclusão que se pretende impor. Se em razões de apelação o argumentante se estende em páginas explicando um conceito jurídico que já está arraigado no julgador, não apenas desperdiça espaço que poderia ser reservado a questões mais decisivas, mas também confunde o leitor, pois este entende, intuitivamente, que a questão em que mais se estendeu o argumentante seja a principal, porque assim deveria ser.
Para estabelecer um texto coerente é necessário levar em conta, então, esse primeiro mandamento: estender-se sobre o que é mais importante. E o que é mais importante no texto argumentativo? O que melhor contribui para a persuasão.
Essa observação tampouco encerra a questão e, ao contrário, impõe a necessidade de novas considerações em busca do que mais contribui para a persuasão, em cada caso concreto.
Buscar a coerência é primeiro compreender em que medida o interlocutor necessita das informações e dos argumentos expendidos. Vejamos este exemplo, relativo a coerência narrativa:
a) O advogado dr. João não conseguiu chegar ao fórum porque o prédio pegou fogo.
Faltam informações para a boa compreensão, apenas nesse curto trecho de texto. Embora pudesse o narrador ter perfeita idéia do que falava, o interlocutor não consegue exatamente estabelecer unidade de sentido: afinal, qual foi o prédio que pegou fogo? Pode ser o prédio do fórum, o prédio de seu escritório ou algum outro. A não ser que o ouvinte contasse com outras informações subentendidas, seria preferível dizer:
O advogado dr. João não conseguiu chegar ao fórum a tempo porque o prédio dos Correios pegou fogo, os
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bombeiros interditaram a avenida principal e assim o trânsito ficou caótico.
Quanto mais extenso o texto - evidente - , mais detalhes cabem e, portanto, menor o risco de lhe faltarem informações. Mas o excesso é deletério.
Nos exemplos abaixo, vêem -se situações diversas.
b) O nobre aristocrata acendeu o charuto, e a fumaça incomodou todos que estavam na sala.
c) Meu cliente pagou-m e, mas eu não sei onde pus o dinheiro.
O texto b não indica qual é a "fumaça" a que se refere, mas o leitor, ao contrário do que ocorria no texto a, não questiona "qual é a fumaça", pois de imediato depreender-se que se trata da fumaça exalada pelo charuto, do mesmo modo que em c é rápida a com preensão de que o "d inheiro" é aquele fornecido pelo cliente. Imaginem os que o autor procurasse enunciar detalhes, e assim escrevesse:
a) O nobre aristocrata acendeu o charuto, e a fumaça que saía do charuto que ele acendera incomodou todos que estavam na sala.
b) Meu cliente pagou-me, mas eu não sei onde pus o dinheiro que ele utilizou para efetuar o pagamento a que me referi.
E patente que as informações destacadas são dispensáveis. Apesar de esclarecedoras, em nada contribuem para a coerência, pois não determinam maior sentido ao discurso. Se o sentido, naquele trecho, já estava completo pelo próprio contexto, qualquer informação que o repita afasta o leitor da progressão do texto, ou seja, do transcorrer daquele percurso que poderia levar à persuasão.
Então começa-se a estabelecer um critério mais objetivo para a extensão do texto, principalmente o argumenta- tivo: ele deve conter as informações que contribuem para a
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persuasão e para a coerência, ou seja, para o estabelecimento de sentido desejado na progressão do discurso.
É importante que o argumentante tenha consciência da progressão da argumentação e como a extensão de cada argumento é significativa para o contexto suasório. Pode-se comparar - sempre sem exatidão - o processo argumentativo ao econômico: se aparecem argumentos demais ou enunciados muito extensos, mais do que o conteúdo suporta, a argumentação como um todo se desvaloriza. Tal qual um processo monetário inflacionário: com moedas demais sendo impressas, cada uma delas, por igual, perde seu valor. A economia que não sustenta muita moeda é como o contexto que não sustenta a extensão ou a quantidade dos argumentos: faz desvalorizar cada um deles. Em nosso contexto, então, por vezes é muito mais proveitoso que um texto apareça curto, o que pode implicar maior força em cada argumento. Assim, quando se citam vários julgados para comprovar uma tese em um recurso jurídico, cada um deles perde valor diante dos demais. Em um ou outro caso concreto pode ser mais valoroso citar um julgado único, mais pertinente à tese, que terá no leitor efeito mais incisivo. Questões de noção e sustentabilidade, nas quais nos aprofundaremos adiante.
Texto e ritmo
Toda comunicação impõe seu ritmo, e o interlocutor, conscientemente ou não, busca-o para a compreensão do discurso que lhe é transmitido. Façamos uma analogia.
Quem assiste à novela de televisão, que dura meses em episódios diários, sabe que ela tem um ritmo lento de evolução. Por isso o telespectador torna adequadd seu nível de atenção a ela: interrompe enquanto a novela é transmitida, falando ao telefone, lendo, jantando, quando não perde capítulos inteiros; sabe que os trechos realmente relevantes ao enredo aparecem em certos momentos já determinados, e não raro são repetidos no dia seguinte. Quando
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o telespectador assiste a um filme feito para o cinema, seu nível de atenção deve alterar-se radicalmente: é quase impossível perder qualquer uma das cenas, pois, se o fizer, prejudicará grande parte da coerência, sendo difícil restabelecer a unidade de sentido; por isso o espectador se fixa altamente na evolução do enredo, e aí, no cinema, qualquer cochicho que atrapalhe tal concentração é reprimido por um pedido enérgico de silêncio.
O enredo de cinema não é por definição melhor ou pior que de telenovela apenas por ser muito mais curto. Cada texto tem suas características, mas o autor do enredo de um ou de outro deve ter consciência do ritmo esperado para cada um. Assim, no enredo do filme um fato decisivo pode ser exteriorizado em uma cena curtíssima, talvez só sugerido com uma imagem breve; na telenovela, o mesmo fato decisivo deve ocupar uma cena longa, com reflexo expresso nas demais, se possível repetido no episódio seguinte.
Se esse ritmo for violado, o espectador frustra-se e perde o teor da mensagem transmitida. O filme que não traz progressão no conflito torna-se monótono, tal como a telenovela que exibir cenas muito importantes em poucos capítulos poderá perder audiência, pois os espectadores não acompanharão o desenrolar da história, que deve respeitar o ritmo que ela própria se estabeleceu.
A argumentação também segue seu ritmo como um dos fatores determinantes de sua extensão. Longa ou curta, deve-se regrar pelo estabelecimento de um ritmo determinado e criterioso. O interlocutor, na leitura de um texto argumentativo, adota um ritmo de interpretação e frustra-se se ele é violado.
Costumamos, em sala de aula, apresentar exemplo claro a respeito do modo como o leitor adota um ritmo de leitura do texto, seja quanto ao macrotexto - os argumentos principais e a coerência - , seja quanto ao microtexto - a estrutura das frases e sua coesão. Um atleta é convidado a correr. Conhece os limites de seu corpo e então lhe é apresentado um ponto de partida: deve correr a partir dele. Mas isso não basta ao atleta, pois, antes de iniciar a corrida, ele
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tem de conhecer a extensão do percurso que terá de enfrentar. Só assim saberá qual ritmo impor a seu exercício, porque uma corrida de cem metros não pode ser feita de modo semelhante a outra de 42 quilômetros. Quando algum interlocutor lê um texto, faz constantes medições para estabelecer o ritmo de sua leitura, não apenas vendo inicialmente sua extensão (quantas páginas tem?), mas procurando saber qual a carga informativa de cada trecho, quanto é necessário estar atento para compreender o que lhe é transmitido.
Chegamos então a estabelecer um critério mais seguro para a argumentação. Ela deve ser feita conforme um planejamento de tempo (no discurso oral) ou de espaço (no discurso escrito). Como já dito, todo leitor espera que aquilo em que o discurso mais se ocupa seja o mais importante.
Portanto, se pretendo escrever um texto que busque comprovar que certo evento ocorreu, agindo o réu em legítima defesa, devo estabelecer um esqueleto do texto que determine quais são as informações e os argumentos mais relevantes. Se tenho de fazer uma longa narração prévia para que se entendam condições preliminares do fato, nada há de mau, desde que eu me lembre de que devo reservar a mesma importância ao fato principal, que mais contribui para a comprovação da legítima defesa. Sobre esse fator, mais importante, devem-se concentrar mais argumentos. Se o texto é, no todo, curto, eles devem ser colocados de modo mais sucinto; se o texto é, no todo, longo, a esses mesmos argumentos devem-se agregar outros, secundários, que estendam o percurso e tragam mais detalhes. Dessa maneira evita-se o grave erro de construir um percurso argumenta- tivo que se encurta no raciocínio mais relevante, o que daria a entender ao leitor que aquela idéia teria menor importância, porque o autor se prendera menos a ela; a conseqüência de um erro como esse seria a não-apreensão, pelo leitor, de um relevante argumento, porquanto, ao perceber um texto longo, estabeleceu um ritmo de leitura mais veloz, e conseqüentemente prendeu menos sua atenção a argumentos menos extensos.
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Com os recursos do computador, alguns textos escritos, argumentativos, apelam para a estética da tipografia para dar realce a argumentos mais importantes: itálicos, negritos, sublinhas, fontes maiores, de estilos diferentes, são todos recursos bem-vindos, mas por si só não estabelecem coerência. Talvez a estética. Usados com pouca moderação, têm efeito reverso: poluem o texto e pouco resolvem quanto à clareza do percurso argumentativo. Nesse sentido, aliás, vale reproduzir a observação de Umberto Eco, citada por Mar- chi'1: "O computador não é uma máquina inteligente que ajuda pessoas burras; ao contrário, é uma máquina burra que só funciona na mão de pessoas inteligentes."
O texto abaixo, adaptado de petição de aluno, serve como exemplo:
O réu conhecera a autora em um bar, denominado Super Bar. O bar é localizado na avenida Rui Barbosa, centro da cidade. Era por volta das duas da manhã, e o réu encostara seu carro, um Mustang novinho, à porta do estabelecimento. Sozinho, entrou, avistou seu primo, que àquela hora conversava com a autora; pelo aludido parente foram ambos apresentados e logo passaram a dialogar, apenas os dois. Segundo relatos da autora, conversavam sobre assuntos comuns porque eram ambos universitários, falaram das festas que ocorreriam, de um ou outro professor que conheciam; informaram suas idades, já demonstravam interesse de maior intimidade quando revelaram os lugares onde residiam, oportunidade em que o réu reconheceu que viviam em casas muito próximas, apesar de jamais haverem se visto.
Durante a conversa, o réu bebia bastante, e já estava muito alcoolizado quando trouxe a autora para seu autom óvel. Prometendo deixar a autora em casa, fez com o carro manobras imprudentes e, apesar do pedido dela para que diminuísse a velocidade, chocou o veículo contra o poste, causando à autora as seqüelas adiante noticiadas. Esse fato é o gerador da indenização que será pleiteada.
15. Apud MARCHI, Eduardo C. Silveira. Guia de metodologia jurídica, p. 21.
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O texto, ainda que narrativo, ou seja, que apenas relate fatos, evidentemente tem teor argumentativo, na medida em que visa persuadir (veremos essa distinção no capítulo seguinte). Mas ele peca pela quebra na coerência, em seu nível mais minucioso, ou seja, o ritmo. Deve-se perceber que quando o leitor nota que existem bastantes detalhes no relato logo de início, descendo-se a minúcias como o assunto discutido por réu e autora, supõe que o texto tenha um ritmo lento de evolução. Entretanto, em um parágrafo mais curto, o escritor, logo em seguida, relata o único fato juridicamente relevante, com pouquíssimos detalhes: o acidente e a culpa do réu.
Qual o problema de se construir um discurso com essa falha de coerência?
Evidentemente, como a falha não é grande, o leitor compreende o discurso, mas corre-se o risco de ele não dar a atenção necessária a fatos importantes porque deles o autor pouco se ocupou. E com falhas dessas, progressivamente, perde a capacidade de persuasão.
Agora, sim, podemos estabelecer melhor critério para a extensão do discurso e seu interesse para a argumentação. Basta definir.
A extensão de um discurso não interfere, como condição única, no fato de ele ser bom ou ruim, persuasivo ou não. Mas certamente é fator relevante para o estabelecimento da coerência. A extensão - estando bem consciente dela o argumentante - determina o espaço que deve ocupar cada argumento ou informação, bem como a pertinência ou não de idéias menores, que acabam por prolongar outras, maiores, que devem merecer esse complemento.
Dependendo da extensão e do nível de detalhes e informações novas expostas, o discurso adquire um ritmo que impõe ao interlocutor um nível específico de atenção. Esse ritmo não deve ser quebrado, a não ser que se trate de um recurso intencional do autor.
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Coerência, intertextualidade e intenção: quebrando regras
Ao analisar os presentes aspectos do discurso argumen- tativo, sempre convergimos para um mesmo ponto, para o qual alertamos desde o início deste livro: o de que o melhor discurso é sempre o mais consciente; vale dizer, o que tem intenção mais determinada.
O estudo da coerência do discurso, na progressão dos argumentos, até a sensibilidade para a chegada ao ritmo do texto e sua influência na persuasão são sempre recursos que auxiliam a tomada de consciência de níveis mais detalhados da construção suasória.
Entretanto, a quebra de uma regra, desde que consciente, pode deixar de ser uma falha e transformar-se em um recurso útil na performance de um ou de outro discurso. Claro que desde que essa regra seja quebrada conscientemente, atendendo a uma intenção definida (e muito bem definida!).
Se uma das regras do bom discurso judiciário é que ele tenha linguagem sóbria e formal, não se pode dizer que a utilização de um vocábulo chulo (que representaria também uma quebra de coerência) não possa apresentar-se, na enunciação do discurso, como recurso bastante representativo. Necessita, porém, a intenção determinada: mostrar indignação, tomar informal o ambiente, chamar a atenção de um auditório distraído etc.
O texto abaixo é um poema do escritor espanhol José Angel Valente16:
Sobre a areia traço com meus dedos uma linha dupla, interminável,com o sinal da infinita duração deste sonho.
16. No amancce el cantor.
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A falta de coerência é o grande atrativo do poema: a infinita duração do sonho, expressamente afirmada no texto, aparece em contraste com a inconstância e a falta de solidez do traço sobre a areia. Caso se tratasse de uma comparação (que em regra resulta bons argumentos), teria essa alegoria efeito inverso, pois, em vez de comprovar infinita duração, mostraria um fim muito próximo. Mas era essa a intenção do autor.
E a quebra de coerência não é monopólio da licença poética, embora dela se aproxime apenas na ousadia do autor, que tem de conhecer os exatos (ou melhor, os mais exatos possíveis) limites da interpretação de seu auditório, para não correr grandes riscos de ser mal compreendido, deixando os interlocutores de aceitar a quebra de coerência como recurso intencional.
Certa feita, um advogado enunciou discurso oral que pode ser assim reproduzido:
Meu cliente é dono de uma empresa que pede dinheiro emprestado e não paga, suborna fiscais do governo para não o multarem em suas infrações, deixa de recolher ao fisco dinheiro descontado do pagamento de seus funcionários, deve a vários fornecedores, declara movimento menor do que o que realmente existe. Ou seja, tem uma conduta absolutam ente normal de empresário do país, nesta crise caótica em que o colocaram nossos governantes. Quid delirant reges, plectuntur achini - quando os reis deliram, os gregos são açoitados.
Enunciando uma série de condutas moral e criminal- mente condenáveis, o advogado parece mais atacar que defender os interesses de seu cliente. Na última frase, entretanto, quebra a coerência de seu discurso e passa a apontar para o verdadeiro sentido da tese que pretende comprovar: a de que de seu cliente era, naquele contexto nacional- provavelmente um plano econômico qualquer - , inexigível conduta diversa. Claro que correu um grande risco, mas sua intenção foi bem determinada: confessando aqueles primeiros erros, chamou a atenção do auditório para a enun-
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ciação de sua tese e, mais, demonstrou grande segurança, determinação e planejamento de seu percurso argumentativo, o que importa em persuasão.
Aliás, se cabe uma dica bem vaga mas relevante, não há interlocutor que não se predisponha à argumentação que pareça mais bem planejada, e nesse sentido todos os recursos lingüísticos, que também estão na coerência, são válidos se usados com consciência e temperança.
Falar algo, dizer outra coisa
No mês de novembro de 2003, o presidente do Brasil, em visita à Namíbia, disse a seguinte frase: "Quem chega a Windhoek não parece que está em um país africano. Poucas cidades do mundo são tão limpas, tão bonitas arquitetonicamente e têm um povo tão extraordinário como tem essa cidade." Questão política evidentemente à parte, o discurso, como enunciava um jornal, "provocou constrangimento na comitiva brasileira".
Porque a coerência depende, como já visto, sempre do conhecimento de mundo também do ouvinte, certo é que o sentido de um argumento pode ser ampliado àquilo que não foi lingüisticamente enunciado. Portanto, ao se afirmar que uma cidade é tão limpa que nem parece a África, certamente isto significa - ainda que não assim elaborado - que a África é, em geral, suja.
Claro, uma gafe que não será repetida, mas que fez parte do risco daquele que discursa. Ao constituir sua assertiva expressa, acabou por insinuar uma afirmação indesejada, porque ela era inevitável premissa de sua fala. Sem que se formasse aquela premissa indesejada, a afirmação efetivamente enunciada não teria nenhum sentido. Construção como essa, que no exemplo do presidente foi feita por equívoco, pode ser realizada intencionalmente, e assim apresentar-se como recurso de enunciação, como se alguém dissesse: "João é honesto, apesar de ser advogado." Nesta asserti
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va, duas afirmações concorrem: a primeira, explícita, de que João é honesto, e a segunda, mais forte porém implícita, de que os advogados são em geral desonestos. Essa segunda afirmação aparece porque é condição para que a primeira afirmação, explícita, obtenha sentido, guarde coerência.
Vejamos como ocorre algo semelhante no texto abaixo, retirado da peça Vida de Galileu, em tradução de R. Schwarz. Na cena, Galileu Galilei, preso pela Inquisição, é convidado a responder a indagações do arcebispo a respeito de sua posição em relação à ciência e à fé. De sua cela, dita à filha, encarregada de redigir este trecho de carta:
Agradeço a Vossa Eminência muito especialmente pela maravilhosa citação da Epístola aos Efésios. Estimulado por ela, fui encontrar outra frase, em nossa inimitável Imitação. "Ele, a quem fala a palavra eterna, está livre das muitas perguntas." Peço vênia, nesta ocasião, para falar de mim m esmo. Até hoje me repreendem porque outrora usei da língua do mercado para escrever um livro sobre os corpos celestes. Não era minha intenção propor ou aprovar que se redigissem no jargão dos pasteleiros os livros de importância maior, como, por exemplo, os que tratam de teologia. Aliás, o argumento em favor da liturgia latina me parece pouco feliz - quando se apóia na universalidade dessa língua, a qual permitira aos povos todos ouvir a santa missa de maneira igual; os blasfemadores, que estão sempre atentos, poderiam responder que assim povo algum entenderá o texto. Renuncio de bom grado à compreensão barata das coisas sagradas. O latim do púlpito protege a verdade eterna da Igreja contra a curiosidade dos ignorantes, e desperta confiança ao ser pronunciado pelos padres das classes inferiores, em cuja fala se conserva o acento do dialeto local.17
Galileu faz afirmações incisivas contra o sistema eclesiástico da época, fingindo estar se retratando das acusações que lhe foram formuladas. Defende veementemente que,
17. BRECHT, Bertolt. Vida de Galileu, p. 157.
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tal como se faz hoje, as missas fossem enunciadas na língua local e não no latim, mas aparenta negar por completo essa idéia. Todavia, a força de seu argumento, para o leitor mediano, salta mais corporificada que sua enunciaçâo, e daí se percebe que Galileu utilizava-se do recurso da ironia, do sarcasmo. Ao mesmo tempo, dava mostras de que sua argumentação levava, e muito, o leitor em consideração: certamente o destinatário de sua retratação não compreenderia dela o conteúdo irônico, mas outro que viesse a ler o texto poderia depreender por detrás de suas afirmações a mais completa anuência àquilo que expressava combater: a idéia dos "blasfemadores".
Tal recurso é possível porque a necessidade do leitor de estabelecer coerência em sua leitura força-o a atribuir o sentido reverso daquele efetivamente enunciado. Veja-se o exemplo abaixo, mais corriqueiro:
As provas no processo criminal são submetidas a contraditório, para que possam defesa e acusação fiscalizar to dos os atos, retirando a retidão da prova da confluência de interesses díspares. Já no inquérito policial não há contraditório, mas isso é certo, porque na atividade policial não se faz necessária nenhuma fiscalização, pois lá nunca se teve notícia de corrupção de interesses.
A conclusão a que o texto conduz é evidente: há maior necessidade de contraditório na atividade policial que no próprio processo judicial. Mas talvez não fosse o texto tão persuasivo se seu último trecho não apelasse para o raciocínio maior do leitor, compreendendo que a última afirmação- a inexistência de notícias de corrupção - trata-se de um sarcasmo. A coerência do texto é estabelecida pela intenção do autor, que deve ser compreendida pelo interlocutor, caso contrário o texto perde todo o seu efeito persuasivo.
Percebe-se como um recurso como a ironia, se feito em justa medida, convida o ouvinte a transformar em seu raciocínio aquilo que lhe é transmitido, o que significa fazê-lo participar de uma interação com o interlocutor. Assim sen
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do, o uso da coerência como elemento de persuasão vai além da mera construção não-contraditória do percurso argumentativo, podendo também funcionar como forma de estímulo à atenção do ouvinte.
Claro que se deve levar em consideração o interlocutor e suas condições: se ele, por qualquer motivo, não estiver preparado para entender a ironia como tal, o recurso pode funcionar ao reverso. São níveis mais aprofundados de trato com a qualidade da coerência.
Quatro dicas a respeito da coerência
O destinatário da argumentação, ainda que jamais tenha estudado algo a respeito de coerência, adere mais às idéias que se lhe apresentam em um percurso bem formado. Isso importa em dizer, sem nenhuma dúvida, que o argumentante deve se esforçar para que seus argumentos sejam encadeados da melhor forma, ou seja, pareçam o mais possível lógica e indeclinavelmente coesos.
Claro que quanto mais complexa for a argumentação, mais ela vai exigir de trabalho e consciência dessa qualidade do discurso. Neste capítulo, a noção e a preocupação com o percurso argumentativo já em muito contribuem para a coerência mais robusta. Como aqui tem sido nosso método, é melhor o aluno conhecer cada conceito e característica do texto, com exemplos os mais claros possível, que estabelecer regras a serem seguidas ou dicas enunciadas. Isto porque as regras e as dicas são reducionistas e nunca darão conta de todas as situações argumentativas.
Mas mesmo assim, sobre a progressão discursiva, ousamos expressar alguns conselhos que podem ser de valia para muitos dos interessados em aperfeiçoar o discurso, principalmente aqueles mais extensos.
1. Em primeiro lugar, aquele que constrói o discurso deve ter para si bem fixado que existem inúmeras possibili-
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dades de progressão do texto. Por isso não é de estranhar que, no decorrer de sua construção argumentativa, confun- da-se com qual será o melhor meio de construir seu discurso ou sinta-se de certa maneira irritado porque todas as idéias que lhe vêm à mente não cabem em uma única progressão.
É algo absolutamente natural: se encaixadas todas as idéias que o argumentante traz em sua mente, seu discurso torna-se confuso. Por que isso ocorre? Em virtude de algo que já vimos: nem toda idéia é boa quando em determinado percurso. Deve-se selecionar os argumentos que cabem em um percurso, e por isso é natural que muitos tenham de ser excluídos, e tal exclusão é salutar.
Preocupar-se com espaço ou tempo existente para a enunciação do discurso é algo intrínseco à argumentação, diversamente do quanto ocorre com a demonstração. Um matemático, ao resolver uma equação, não se aflige com questão como o espaço no papel que tenha para resolvê-la, mas um advogado a quem se concedem apenas vinte minutos para uma sustentação oral certamente tem no limite de tempo uma questão de coerência discursiva: encaixar os assuntos, as premissas e os argumentos que caibam naquele interregno determinado.
E a exclusão de muitas idéias desse contexto é conseqüência da necessidade de seleção de que tratamos e evita confusão de duas partes: o argüente e o interlocutor.
2. Decorrência dessa mesma não-definição apriorística da progressão do discurso é nossa segunda dica, pertinente ao encadeamento. Vimos outrora a característica da argumentação de que a passagem de uma premissa para uma conclusão é meramente verossímil. Mas essa verossimilhança não implica dúvida ou insegurança nessa fronteira de uma idéia para outra.
Assim dizemos porque, principalmente em texto escrito, é natural a preocupação do argumentante em enunciar elementos de ligação de idéias (principalmente entre os parágrafos) para que a condução de seu discurso pareça segura. Recheia-se então o texto - em regra, o início dos pará
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grafos - de conectivos como: dessa maneira, assim sendo, da mesma forma, portanto, conseqüência disso, destarte... e daí por diante. Esse excesso de elementos de ligação expressamente enunciados acaba, se empregados de forma exagerada, tendo efeito deletério: revelam insegurança na progressão das idéias, na passagem de uma a outra.
Lembre-se: as idéias estão coerentes, independentemente de que venham "destarte", "portanto" ou "desta forma". Nem sempre é necessário enunciar a ligação, deixando que o leitor a faça por si mesmo.
3. Outra dica importante é relacionada à questão topográfica do texto. Todo discurso tem projeção espacial, porque o leitor, como já se disse, sempre aguarda que se o entrete- nha mais naquilo que é mais importante. Isso conduz a um conselho bastante profícuo, que se recomenda seja seguido: o argumentante deve fazer um rascunho de seu discurso, planejá-lo em tópicos.
Quem inicia, por exemplo, as razões de apelação sem ter já planejado, ainda que grosso modo, o percurso de seus argumentos, dá um grande passo para a construção de um texto confuso e, assim, não-persuasivo. Não raro terá, em meio à progressão de idéias, de enunciar longas informações que já deveriam ser premissa de seu discurso, mas que não foram ainda expressas no texto porque, antes de se invocar um novo argumento, pareciam dispensáveis. Terá então de interromper a progressão do discurso para relatar algo fático e, assim, interrompe o raciocínio do leitor, como interrompeu o seu próprio.
Discurso e planejamento prévio, pois o tempo gasto em afiar o machado nunca é desperdiçado. O intervalo que se perde na elaboração de um bom rascunho ou plano será recuperado na facilidade de construção do discurso e em seu resultado em coerência. E essa regra não costuma ter exceções.
Aliás, costumávamos dizer, em aula de redação, que a comparação do resultado final do texto com seu planejamento prévio dá boa noção do nível de intencionalidade e
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consciência de escrita de cada um. Mais conhece sua escrita quem antevê, ao fazer um rascunho, quantos subtítulos, parágrafos ou linhas gastará ao enunciar um percurso argumentativo. Então, um bom planejamento de texto (rascunho, apontamentos, tópicos) serve, no mínimo, de elemento eficaz de treino.
4. Última dica para o estabelecimento da coerência vem, de novo, relacionado à intertextualidade. Nada prejudica mais a coerência do que explicações que vêm repetidas ou em excesso, ou, pior, explicações ou premissas que faltam ao leitor para a compreensão de um discurso. Para que se estabeleça a coerência, o argumentante deve realmente se preocupar em colocar-se no lugar do leitor e prever o que para ele é necessário compreender, a fim de que o raciocínio do interlocutor acompanhe o percurso que lhe é intencionalmente traçado.
Decerto os leitores deste livro têm níveis argumentati- vos diversos, bem como necessidades distintas. Sem problemas, porque a diversidade é salutar. Mas a coerência sempre pode ser aprimorada. Desde duas idéias em um texto que efetivamente não se encaixam ou são contraditórias até, em um nível elevado, uma pequena palavra - um adjetivo que possa ser colocado ou retirado - que interfira no tamanho da frase e na extensão do discurso. São todos sub- tipos da coerência, se bem que em níveis diferentes. M elhor estará o discurso quanto mais intencional for, ou seja, aqui, quanto maior for a consciência de sua forma de progressão.
Capítulo VINarrando os fatos
Na narrativa dos fatos não há, primordialmente, idéias que se combinam, mas personagens que, mediante ações, alteram seu ambiente; como essas ações ordenam-se pela passagem do tempo, diz-se que a progressão narrativa é temporal.
Até aqui, cuidamos da argumentação e definimos o argumento como enunciado que leva à persuasão. Vez por outra demos um exemplo de discurso narrativo sem uma definição precisa do que seja a narração.
Quem argumenta procura levar ao convencimento, utilizando-se de combinação coerente de enunciados aceitos. Por isso trabalha com temas, com enunciados genéricos, ainda que às vezes só bem assimilados por grupos específicos, conforme estudamos.
Mas, antes de argumentar, de procurar apresentar uma tese que convença o interlocutor, é necessário fixar premissas amplamente aceitáveis, que sirvam como base de percurso argumentativo. É essa a utilidade primeira da narração dos fatos, a de permitir ao interlocutor compreender os limites e as premissas da argumentação que terá de desenvolver.
Nos processos judiciais, a narrativa dos fatos precede sempre a argumentação jurídica propriamente dita. Dentro de uma visão simplista, dir-se-ia que a narrativa dos fatos tem um conteúdo meramente informativo porque assume apenas essa função de esclarecer uma situação sobre a qual ainda se vai tirar o processo argumentativo. Mas é claro que esse conteúdo informativo não é puro, porque contaminado pela constante vontade do argumentante de persuadir, ainda que, em tese, o momento seja apenas de informar.
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Por causa desse evidente papel suasório que tem a narração, podemos traçar alguns breves comentários sobre ela. Entretanto, para não fugir ao tema deste livro, é melhor abordar apenas o que é essencial à atividade argumentativa.
Características da narrativa: figuratividade
Ao narrar, apresentam-se os fatos sobre os quais recairá a argumentação. Assim, se pretendo comprovar que existe dano moral indenizável na conduta de uma pessoa ao acusar injustamente outra de haver cometido determinado delito, devo a princípio mostrar como os fatos originários ocorreram e em que circunstâncias.
A narrativa é, portanto, auxiliar da argumentação, mas desenvolve-se em progressão bastante diversa porque tem características essencialmente diferentes.
A primeira característica que a narrativa tem é a figuratividade. Ela se desenvolve por meio de figuras, ou seja, personagens que atuam sobre a realidade de determinada maneira, transformando-a.
Veja como o texto abaixo é eminentemente narrativo:
Fiquei imóvel por dez minutos, o suficiente para tomar metade da sopa e comer alguns biscoitos, depois fui para o telefone. Mordecai não tinha encontrado nada.
Consultando os classificados, comecei a telefonar para corretores e serviços de locação de apartamentos. Depois pedi um carro com chofer, de uma locadora de automóveis. Tomei um longo banho de chuveiro para relaxar os m úsculos doloridos.
Meu motorista se chamava Leon. Sentei na frente, ao lado dele, tentando não fazer uma careta cada vez que o carro passava por um buraco.1
O texto narrativo é representado por figuras, sejam elas pessoas (no texto acima, o protagonista, Mordecai e Leon) e
1. GRISHAM, John, O advogado, p. 36.
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coisas (sopa, biscoitos, telefone, classificados, automóvel...). Essas pessoas e coisas interagem para determinar a mudança de uma realidade. A mudança na realidade, ou seja, a alteração do status quo ante, representa o núcleo de toda a narrativa, e somente pode ocorrer pela ação e combinação das figuras apresentadas. Em um homicídio consumado existe a alteração da realidade anterior pela intervenção de personagens: alguém que era vivo perde, no transcurso do tempo, essa qualidade, pela intervenção de um segundo personagem que, com determinada ação, vem provocar a morte do primeiro.
Quando narramos os fatos, então, mais do que nos concentrar em idéias, apresentamos a relação com as figuras. São elas o fator determinante do texto, e daí a narrativa dos fatos que conceda pouca atenção a elas, desviando em digressões a temas mais genéricos, perde clareza e prejudica- se em coerência.
Características da narrativa: transcurso do tempo
A primeira característica da narrativa que apresentamos, como diferença da argumentação, é que ela dá maior relevo à ação de personagens e coisas.
Essas figuras são apresentadas ao leitor de acordo com uma ordem também característica, qual seja, o transcurso do tempo. Entre uma ação e outra, determinante das alterações operadas pelos personagens, há um lapso temporal, que deve ser indicado para o leitor como eixo principal da coerência narrativa.
A indicação do transcurso do tempo é essencial ao discurso narrativo e pode aparecer de modo explícito (como a determinação de data e hora), ou de modo implícito (a referência a um marco histórico ou a própria seqüência das ações, que permita ao leitor depreender o passar do tempo etc.)2.
2. Lembra Rupert Cortright: "A primeira idéia é a de tempo. Tanto os oradores como seus ouvintes precisam aprender a ligar a noção de tempo à
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Assim, enquanto a progressão da argumentação é lógica, representando o encadeamento de idéias que se combinam, a progressão da narrativa é temporal, pois, indicado ou não, o tempo é o único elemento que ordena as ações narradas.
Tal diferença entre os eixos narrativo e argumentativo é que fundamenta a separação usual no discurso forense escrito, ou seja, os fatos - a narrativa, e o direito - a argumen- tativa. Não se trata apenas de construir uma separação organizacional, padronizada como uma praxe jurídica cristalizada, mas também de separar discursos que correm por progressões diversas, na medida em que a argumentação não se rege pela passagem do tempo.
É claro que a distinção entre narrativa e argumentação é conceituai, pois não existe texto narrativo puro nem mesmo discurso argumentativo em que a narração não interfira. Quando, em argumentação, damos um exemplo, fazemos uma analogia ou mesmo relembramos fatos a título de argumentos específicos para determinado efeito suasório, recorremos à figuratividade e ao transcurso do tempo porque nos servem naquele momento, tomando de empréstimo o eixo de progressão específico da narrativa.
Veja, como exemplo, o discurso abaixo, de Plutarco3:
O lavrador não pode tornar fecunda qualquer árvore, nem o caçador domar o primeiro animal que chegar; eles procuram, então, outros meios de tirar proveito, o primeiro, da esterilidade vegetal; o segundo, da selvageria animal. A água do mar é pouco potável e tem mau gosto; mas sustenta
ocorrência dos fatos, descrições, inferências e generalizações sobre o que se discorre, acompanhando-os de referência de data, hora etc. Muito bate- boca inútil, em meio a conferências, tem decorrido seja de nos esquecermos inteiramente de datas, seja de divergirmos quanto à precisão delas no que toca ao seu relacionamento com os nossos postulados. João Qualquer, 1959, difere tanto de João Qualquer, 1949, quanto diferem entre si os automóveis produzidos, respectivamente, nessas datas" (Técnicas construtivas dc argumentação e debate, p. 153).
3. Como tirar proveito de seus inimigos, p. 5.
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os peixes, favorece os trajetos em todos os sentidos, é uma via de acesso e um veículo para aqueles que a utilizam. Q uando o sátiro contemplou pela primeira vez o fogo, desejou beijá-lo e abraçá-lo; então, Prometeu lhe disse:
"D e tua barba de bode chorarás a perda."O fogo queim a quem o toca; mas fornece luz e calor,
serve a uma infinidade de usos para aqueles que sabem utilizá-lo.
Para comprovar como o inimigo pode trazer proveitosos frutos, Plutarco recorre a exemplos e comparações que são figurativas: em seu núcleo, rege-se por personagens e coisas, e não por idéias em si. Desse modo, relata atitudes de diversos personagens (lavrador, caçador...) e relembra a mitologia de Prometeu e seu diálogo com o sátiro, para comprovar sua tese. Entretanto, o autor bem sabe que, embora se utilize da figuratividade e daí, obrigatoriamente, do transcurso do tempo, ela é mero auxiliar de uma progressão argumentativa. Por isso os exemplos são curtos, os diálogos, mínimos. Afinal, apenas se utiliza das figuras enquanto servem ao percurso argumentativo, pois sua intenção ali é primordialmente a de argumentar, e não a de relatar fatos (o que ocorreria, em um discurso primordialmente narrativo, se a intenção do autor fosse a de contar o drama de Prometeu).
O texto argumentativo utiliza-se também do discurso narrativo porque é impossível a argumentação pura, mas mantém sua progressividade lógica, não se aprofundando no transcurso do tempo. O texto narrativo, por sua vez, tem o transcurso do tempo como fator regente principal, mas não único.
Por isso a técnica narrativa do texto assume sempre a progressão temporal. No momento da enunciação, o dis- cursante atribui um marco temporal em seu texto, um centro que tem como presente o instante do momento da fala, do momento da enunciação e, a partir dali, situa os fatos narrados como anteriores, concomitantes ou posteriores a
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esse marco temporal. O ato de enunciação instaura um momento presente, que é fundamento de toda a relação temporal narrativa4.
É que assim como a argumentação se utiliza da narrativa, esta se aproveita daquela, como veremos no tópico seguinte.
Função argumentativa da narrativa dos fatos.A questão do ponto de vista do narrador
Grande parcela de razão têm aqueles que defendem que, em muitos procedimentos judiciais, importa mais no convencimento do leitor a narrativa dos fatos que a argumentação propriamente dita, ou seja, que em algumas petições o julgador dá maior atenção à narrativa dos fatos que à persuasão referente ao direito. Mas isso não ocorre apenas em petições, em textos escritos do cotidiano forense. Muitas sustentações orais, profícuas, de advogados, concentram-se no esclarecimento de fatos ocorridos durante o processo, seguindo sua fala um percurso eminentemente narrativo, regido pelo transcorrer do tempo. E nem assim são pouco persuasivos.
Por quê? Para responder, leiamos um trecho da defesa de Ferri5:
4. Ensina José Luiz Fiorin: "Se o agora é gerado pelo ato de linguagem, desloca-se ao longo do fio do discurso permanecendo sempre agora. Toma- se, portanto, um eixo que ordena a categoria topológica da concomitância vs. não-concomitância. Esta, por sua vez, articula-se em anterioridade vs. posteriori- dadc. Assim, todos os tempos estão intrinsecamente relacionados à enunciação. O momento que indica a concomitância entre a narração e o narrado permanece ao longo do discurso e, por isso, é um olhar do narrador sobre o transcurso. A partir dessa coincidência, surgem duas não-coincidências: a anterioridade do acontecimento em relação ao discurso, quando aquele já não é mais e, por conseguinte, deve ser evocado pela memória, e sua posteridade, ou seja, quando ainda não é e, portanto, surge como expectativa" (As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo, pp. 142-3).
5. Defhisas penales, p. 105.
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Na pensão Dienensen está a Hamilton? Ali está... Dão- lhe o único departamento disponível, bem próximo ao seu, no mesmo andar. A senhora tinha o quarto 33 e a ele coube o quarto 39.
Diz que desejava tomar banho porque nos países do Norte o banho é um hábito muito freqüente. E acabava de fazer uma viagem de 36 a 40 horas ininterruptas, tinha necessidade de tomar um banho. Mas a camareira disse que levaria meia hora para preparar-lhe o banho, e ele, atormentado pela pressa, renuncia ao banho. Faz então uma toalete rápida, arruma-se, sai, pergunta onde pode encontrá-la. Pergunta ao porteiro, que, como os senhores viram aqui, não tem uma estrutura gigantesca, seja corpórea, seja por sua função na pensão. Ele responde: "Provavelmente no Hotel Regina, no Hotel Excelsior, lá servem um chá pela tarde..." Vai, busca ansiosamente, não encontra; regressa à pensão; há quem tenha visto sua amada. Sabe que está por ali, sente-se de novo sob sua influência, sabe que respira seu mesmo ar, que seu tormento de amor está realmente próximo.
[;•■]É somente no instante fatal e funesto da ação fulmina-
tória que a idéia preordenada do suicídio evoca também de improviso a idéia da morte de outro, e o desesperado am ante chega à idéia de suicídio, mas turbada pelo homicídio, uma vez que os freios de sua vontade já não funcionam. E ntão ele, em um ímpeto que obscurece os sentimentos e a vontade, com a pistola à queima-roupa, com a luz acesa, dispara três tiros contra a mulher que se encontra nua sobre o leito.
Não é difícil perceber que o enunciador atua em defesa do réu, o qual, conforme o texto, acaba por cometer um homicídio. Não há, entretanto (ou aparentemente), argumentos lançados no texto, mas apenas elementos informativos, o que ocorrera com o personagem - o réu - até o momento do fato delituoso, o irrefreável instinto da vontade que culmina na morte da mulher. Aliás, será que não existem mesmo argumentos?
Os argumentos (como elementos lingüísticos que visam à persuasão) estão no texto, mas diluídos de modo que
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não apareçam explicitamente. Explicamos. O texto acima é evidentemente narrativo, pois mostra a ação dos personagens, sua transformação no espaço e no tempo, buscando informar o ouvinte (no caso, os jurados) a respeito de fatos relevantes para o julgamento. Mas, como criação do intelecto humano, como ocorre com qualquer discurso, a narrativa assume um ponto de vista que parte de seu enuncia- dor. Esse ponto de vista rege o percurso trilhado e determina que, ainda que o enunciador não o possa revelar explicitamente, a narrativa seja construída de acordo com uma interpretação pessoal. Tal interpretação pode ser uma tese a ser comprovada adiante, quando a argumentação propriamente dita iniciar-se, como acontece com freqüência no discurso judiciário. Veja-se.
Ao construir uma narrativa, o enunciador, grosso modo, transforma fatos em elementos lingüísticos. Portanto, é obrigado a selecionar de uma realidade os fatos mais importantes para um fim pretendido. O narrador esportivo encarregado da transmissão, pelo rádio, de um jogo de futebol sabe que é impossível relatar ao ouvinte tudo o que vê (a ação de cada um dos 22 jogadores, o comportamento da torcida, do juiz, dos bandeirinhas, dos policiais, em atitudes todas concomitantes), por isso escolhe os fatos mais importantes: geralmente, o comportamento dos jogadores que interferem na trajetória da bola, se é que não há uma peleja mais interessante na arquibancada.
É o ponto de vista do narrador esportivo que constrói o percurso dos fatos que os espectadores vão conhecer, de acordo com sua intenção. Não se pode dizer que a narrativa daquele locutor esportivo não vise à informação; mas a informação não é pura, tanto que um comentarista tendencioso pode ser identificado: pelo modo como relata os fatos, torce para este ou aquele time6.
6. Os próprios profissionais da imprensa asseveram que a informação pura, no discurso, é impossível. Sobre o tema, nota o jornalista Carlos Alberto di Franco que: "A imprensa honesta e desengajada tem um compromisso com
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O bom narrador, como no exemplo de Ferri, seleciona elementos da realidade que conduzem, no transcurso do tempo, o interlocutor a um ponto de vista que ele pretenderá demonstrar. Não pode afastar-se da verdade, pois tem vínculo estreito com os fatos comprovados no processo, mas pode selecionar os fatos que mais contribuem para o contexto, sobre o qual certamente defenderá sua tese: a turbação mental do autor do crime, apaixonado, que deverá levar a uma reprovabilidade menor de sua conduta. Essa tese não é parte da narrativa, mas nela ficará sedimentada.
Portanto, a narrativa, conduzindo-se pelo eixo temporal, não abre espaço a argumentos explícitos, mas apenas a um fio condutor, relacionado, entre outros fatores, pela seleção dos fatos e sua disposição, que dão margem à aceitação de uma tese, a qual somente pode ser exposta em outro discurso, o argumentativo propriamente dito.
Nesse raciocínio, duas considerações relevantes devem ser feitas a respeito do efeito suasório do texto narrativo. A primeira delas é que, se o enunciador, no relato, deixar transparecer o comprometimento de seu ponto de vista com a tese que posteriormente irá defender, sua versão na mesma medida perderá credibilidade. À primeira vista essa colocação pode parecer estranha, mas representa apenas mais um dos efeitos práticos da distinção entre argumentação e narrativa dos fatos.
A argumentação tem um ponto de vista explícito. Ferri, na defesa que aqui lemos, poderia dizer aos jurados: "Vou provar, com diversos argumentos, como a paixão e o ciúme podem tornar a pessoa absolutamente desconhecedora da
a verdade. A neutralidade é uma mentira, mas a imparcialidade deve ser perseguida. Todos os dias. A busca de isenção enfrenta a sabotagem da manipulação deliberada, da preguiça profissional e da incompetência arrogante. O jornalista engajado é sempre um mau repórter. [...] A grande surpresa no jornalismo de qualidade é descobrir que 'quase nunca uma história corresponde àquilo que imaginávamos', sublinha Bernstein. O bom repórter esquadrinha a realidade, o jornalista preconceituoso constrói a história" ("Desafios do jornalismo", OESP 22/7/02, p. A2).
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gravidade dos eventos que provocara." Trata-se apenas de haver explicitado sua tese argumentativa. Porém imaginemos se Ferri dissesse: "Vou narrar os fatos de tal maneira que Vossas Excelências, senhores jurados, convençam-se de que o acusado estava de tal maneira entorpecido pela paixão que nem percebeu a gravidade de seu ato." Com essa fala, condenaria todo o seu discurso, pois o jurado espera que a narrativa dos fatos seja meramente informativa, não comprometida com pontos de vista.
O ponto de vista existe, permeia toda a narrativa dos fatos, mas nela jamais deve ser revelado. Daí a dizer que, ao contrário da argumentação, na narrativa o ponto de vista tem de ser implícito.
E é impossível que a intenção do autor deixe de influenciar no processo de criação, como o texto discursivo. Em sala de aula, trazemos um exemplo ilustrativo. Imagine que dois amigos, Pedro e Paulo, caminhando no centro da cidade, encontram um amigo comum, que havia longa data não viam. Trata-se de Hermes, que estava vestido de paletó e gravata, esta meio frouxa no colarinho; bem mais obeso que da última vez que o encontraram, tinha a barba por fazer e, sorridente, descendo de seu Mercedes-Benz ano 1980, conversível, brilhando muito porque bem encerado, cumprimentou rapidamente ambos os amigos, deu-lhes um cartão da empresa em que trabalhava, pediu para que os dois não deixassem de visitá-lo, escusou-se por estar apressado, despediu-se também sorridente, entrou novamente em seu carro e foi embora.
Paulo sempre gostara muito de Hermes, mas Pedro - ninguém o sabia - tinha com ele uma desavença antiga, pois lhe roubara uma namorada, ainda nos tempos de colégio. Relatando o encontro com Hermes, Pedro e Paulo apresentaram versões diferentes.
Versão de Paulo:
Encontramos Hermes. Estava muito bem, ficou felicíssimo em nos ver. Deve estar muito bem de vida! Gordo, corado, um ar desleixado, o protótipo do big boss, de quem está
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por cima mesmo: barba por fazer, gravata frouxa, blasée. Saiu de um Mercedes-Benz enorm e, limusine mesmo, que brilhava de doer os olhos, bancos de couro que eu não via há anos. Demonstrou toda satisfação com o encontro e, muito apressado - como todo hom em de negócios - , insistiu bravamente para que voltássemos a nos encontrar.
Versão de Pedro:
Encontramos Hermes. Foi bastante cordial quando nos viu, não muito mais que isso. Coitado, não deve estar muito bem de vida não. Muito obeso e fora de forma, malvestido, a gravata frouxa. Barba por fazer, um desleixo que dava um mau aspecto. Saiu de um carro velho, daquelas banheironas mesmo, sabe? Tudo bem, tentou dar uma valorizada e, pra disfarçar, lascou tanta cera naquela lata velha que ela brilhava de doer os olhos. Rapidamente deu a desculpa de que estava apressado e saiu correndo, deu-nos o cartão e disse para ligarmos pra ele; aquela história, formalidades, nem insistiu muito.
Nenhum deles mentiu quanto aos fatos, e foram discretos ao expressar juízos de valor. Não revelaram expressamente seus pontos de vista porque, se o fizessem, seu relato perderia a credibilidade. Todavia, mostram realidades totalmente distintas ao interlocutor, baseadas nos mesmos fatos. Na narrativa, pode estar presente a dialética, mas sempre de modo implícito.
Segundo fato importante a se notar, a respeito do efeito suasório da narrativa, é decorrência do primeiro. Se a explicitação do ponto de vista prejudica a narrativa, esta, quando aparentemente informativa, encontra no interlocutor maior probabilidade de atenção que a própria argumentação.
Responda rápido: o que convence mais: a propaganda política de determinado candidato em horário eleitoral, ou um noticiário de televisão que, aparentemente independente de qualquer opinião política, noticie fatos amplamente benéficos à imagem do mesmo candidato? Evidentemente, a segunda hipótese. Qualquer candidato trocaria seus cinco
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minutos no horário eleitoral por cinco minutos de infiltração de suas idéias diluídas em notícias, ainda que em conteúdo meramente narrativo, em um telejornal de grande audiência.
Do mesmo modo, muito mais vale um merchandising in- serto em uma novela, em que um personagem despretensiosamente use determinada marca de sabão em pó, visível ao telespectador, que aparecer a mesma atriz, fora de seu personagem, em horário comercial, anunciando com vários argumentos as vantagens daquele mesmo produto de limpeza.
Sendo assim, o efeito suasório da narrativa pode ser menor porque esse tipo de discurso não assume grandes enunciados argumentativos, mas traz a vantagem de contar- desde que respeitados seus estreitos limites - com grande atenção do interlocutor.
Temos insistido, em vários trabalhos, que o efeito de persuasão da narrativa deve ser mais valorizado pelo profissional do Direito. A função de persuasão da narrativa dos fatos é de grande valia, e assim as técnicas de progressão desse tipo de texto merecem estudo aprofundado. A coerência narrativa representa um diferencial que o argumentante deve adquirir, pois a liberdade que existe na exposição dos fatos e sua característica nodal de exposição da novidade são elementos que despertam interesse no destinatário do discurso, e pode ser esse o momento principal da formação da opinião7.
Coerência narrativa
Sobre a narrativa e sua progressão há muito para dizer, mas aqui faremos um apanhado mais sucinto, novamente restringindo-nos à diferenciação entre a construção argu- mentativa e a narrativa e os efeitos de uma sobre a outra.
7. Vide o Capítulo XVIII, em que mais se expõe a respeito dos efeitos do discurso inovador.
NARRANDO OS FATOS 101
A narrativa é figurativa e tem ponto de vista implícito, não revelado (ao contrário da argumentação, em que o ponto de vista tem, necessariamente, de ser explicitado para que o interlocutor compreenda o que dele se pede). A narrativa tem seu percurso regido pelo transcurso do tempo, o que implica diferenças graves no estabelecimento de sua coerência.
Todo interlocutor, conscientemente ou não, estabelece como eixo progressivo de uma narrativa o transcurso do tempo, por isso sempre está em busca de referências temporais em seu texto; quando um leitor inicia um romance ou quando o jurado ouve o relato do fato criminoso, quer, já a princípio, uma primeira orientação cronológica: quando ocorre o primeiro fato narrado?
As ações que compõem a narrativa se dispõem no tempo e por isso, em discursos mais longos, grande parte da falta de clareza pode ser atribuída à falta de referência temporal. Entretanto, antes de estabelecer a progressão temporal da narrativa o enunciador deve escolher quais os fatos a selecionar para a informação do ouvinte. Nesse momento, tal qual na coerência argumentativa, seleciona os fatos mais importantes e agrega outros, menos relevantes, apenas como forma de esclarecer ou dar maior realce aos primeiros. A narrativa que muito informa sobre aquilo que não é o cerne do conflito estabelecido também desconta a compreensão e o interesse do ouvinte. Desvaloriza a leitura, tal qual ocorre na argumentação em sentido estrito.
Costumamos, por didática, estabelecer quatro tipos de fatos na narrativa do discurso judiciário: a) os fatos juridicamente relevantes: são aqueles sobre os quais recai conseqüência jurídica direta, geralmente representando o cerne da argumentação; b) os fatos que contribuem para a compreensão dos juridicamente relevantes: são aqueles responsáveis pela criação do contexto para os primeiros, para que o ouvinte possa compreender o processo e as circunstâncias em que ocorrem os juridicamente relevantes. Representam condições mínimas para essa compreensão e, diz-se, para que
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uma narrativa possa ser minimamente entendida, deve responder a sete questões: o quê?, quem?, como?, quando?, onde?, por quê?, por isso...; c) os fatos que contribuem para a ênfase de outros mais importantes: são aqueles que estabelecem circunstâncias com finalidade suasória, com vistas a uma argumentação; e d) os fatos que satisfazem a curiosidade do leitor ou despertam seu interesse: são aqueles que contribuem para a progressão de um conflito no discurso narrativo, que fazem com que o ouvinte anseie pelo seu desfecho, aumentando sua atenção. Geralmente estes últimos são adequados apenas à narração literária; aliás, o que distingue a narrativa da narração é a presença, nesta, da consciente progressão de um conflito.
O estabelecimento dessa classificação serve para evitar, na seleção dos fatos, a menor coerência pelo agregamento de informações pouco úteis ou da falta de circunstâncias relevantes. Diz-se então que somente podem ser enunciados os últimos fatos - que contribuem para a progressão do conflito - se os anteriores estiverem esgotados, como em uma cadeia de importância.
A exposição do transcurso do tempo, na narrativa, depende de dois fatores principais: a ordem de disposição dos fatos no discurso e a indicação dos intervalos entre as ações relatadas.
Diz-se que os fatos, no discurso, estão dispostos em ordem cronológica quando enunciados na seqüência temporal em que ocorreram, ou seja, seguindo o decurso do calendário ou do relógio; estão os fatos em ordem alinear ou alterada quando sua disposição, no discurso, não segue a disposição temporal.
Pergunta-se: por onde se deve começar uma narrativa? Pelo fato mais importante? Pelo fato que ocorreu primeiro?
A regra é que, na narrativa do discurso judiciário, sejam os fatos dispostos em ordem cronológica. Dessa maneira, fica fácil responder à questão: deve-se iniciar a narrativa expondo o fato que primeiro ocorreu e em seguida os demais. Se, fixado esse método, ainda não se sabe com
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que fato iniciar, o problema é outro: ainda não houve correta seleção dos fatos que devem ser expostos no discurso narrativo.
Mas excepcionalmente pode-se escolher ordem não- linear para a narrativa dos fatos no discurso judiciário. Para que se permita a subversão da ordem cronológica, tecnicamente, deve-se voltar ao ponto em que insistimos relutantemente: essa subversão tem de ser fruto de um processo consciente, de uma intenção determinada, aliás, muito bem determinada.
Quando a subversão da ordem cronológica não é intencional (e é comum isso ocorrer), é fruto de um mau planejamento do autor do discurso: esquecendo-se de haver narrado um fato anterior, apresenta-o em momento posterior, e isso quebra a coerência preestabelecida, não raro gerando confusão na mente do interlocutor.
Intencional, entretanto, a narrativa não-cronológica tem grandes utilidades, sendo a mais comum o propósito de dar pouco realce ao transcurso do tempo. Então, se a narrativa cronológica ajuda a orientar o ouvinte quanto ao transcurso do tempo, a alinear o desorienta em relação a esse mesmo aspecto. As vezes o transcurso do tempo tem efeito deletério no fator argumentativo, como ocorre no discurso do advogado no tribunal do júri que, em busca de fazer valer a tese de que o réu agira em violenta emoção logo após injusta provocação da vítima, narra os fatos em ordem alterada. Com esse recurso, se sua intenção é impor, com sua carga informativa, menor relevo ao (longo) transcurso do tempo havido entre a injusta provocação e o crime, consegue fazê-lo com sucesso. Inverter a ordem cronológica transfor- ma-se em recurso.
Na narrativa pertencente à ficção literária, a narrativa alinear desempenha funções diversas, não só para a progressão do conflito (com a antecipação de um fato que crie expectativa no leitor), mas também revelando o fluxo de pensamento, ou seja, descrevendo os fatos na reflexão do personagem, como lá efetivamente ocorreriam: mesclados a lem
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branças mais remotas, permeados por fatos ocorridos recentemente, com noção de tempo alterada por emoções etc. Leia-se, como exemplo, trecho da ficção de Lygia Fagundes Telles8:
Voltei ao gravador, a gente sempre volta. Estou menos brilhante do que ontem, a saliva engrossando na boca, acontece a mesm a coisa com os bichos, Rahul com eça a salivar e lamber o focinho quando está com medo. Na manhã em que Gregório - enfim, naquela manhã de horror em que ele foi embora, enquanto eu corria de um lado para outro na ataza- nação do desespero, olhei para o Rahul que estava na sua posição de esfinge. Lambia o focinho.
E não sei por que me vem de novo a história do rio b otando para fora aqueles peixes, talvez os melhores, os mais belos, os mais limpos. Mas ele viajou porque foi preciso ou?...- perguntou Ananta quando falei no assunto. Fiquei olhando com cara de idiota a sua cara idiota. Não, queridinha, ele saiu daqui ventando só para dar uma olhadela lá na M ona Lisa do Louvre, Ô meu Pai [...].
Houve vantagem evidente, no fragmento de Lygia, para seu fim específico, da inversão da ordem narrativa. Aparece a verossimilhança do pensamento tal qual ele existe na mente humana, repleto de entrecortes, recordações e confusões.
A desvantagem óbvia da não-linearidade narrativa é a quebra da coerência, que diminui, sempre, o nível de compreensão do interlocutor. Toda vez que o enunciador desejar subverter a ordem cronológica, deve sopesar esses fatores.
Vejamos, como nova ilustração, o que ocorre no texto abaixo de Gabriel Garcia Márquez9:
No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m in da manhã para esperar o navio em que chegava
8. As horas nuas, p. 189.9. Crõmca de uma morte anunciada, p. 2.
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o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se com pletamente salpicado de cagada de pássaros. "Sem pre sonhava com árvores", disse-m e sua mãe 27 anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira ingrata. "N a semana anterior tinha sonhado que ia sozinho em um avião de papel aluminizado que voava sem tropeçar entre as amendoeiras", disse-me.
O protagonista Santiago Nasar narra, como se vê, despertando no dia em que seria morto. Mas essa cena constitui apenas o primeiro marco temporal do texto recortado. Perceba como o texto, nesse curto trecho, desloca-se entre tempos distintos: 1) o despertar, às 5h30min; 2) o sonho, marcado pelo pretérito anterior ("tinha sonhado"); 3) o retorno ao momento em que acordou ("mas ao acordar"); 3) a mãe do protagonista enunciando, em momento bem posterior ("27 anos depois"); 4) o retorno à primeira cena ("aquela segunda-feira ingrata"); 4) um tempo ainda anterior à primeira cena ("na semana anterior tinha sonhado"); 5) a volta ao tempo mais recente ("disse-me") e 6) tudo isso enunciado por um tempo ainda posterior a todos eles, demarcado pelo narrador, já que, ainda descrevendo o último fato a que se refere (o que dizia a mãe), utiliza-se do tempo verbal pretérito.
Trata-se de um texto literário de ficção, e talvez para nós não sirva de parâmetro a ser imitado: o excesso de câmbio em relação ao tempo da narrativa pode prejudicar a in- telecção pelo leitor. Mas ao menos reforça a quase impossibilidade de narrativa estritamente cronológica e linear dos fatos, por isso a necessidade de fazer percorrer o discurso narrativo com várias referências temporais, que deixem claro o percurso ao leitor.
Sendo, então, o primeiro fator de indicação da coerência temporal na narrativa a ordem de enunciaçâo dos fatos, o segundo fator é a própria enunciaçâo lingüística de marcos temporais. Referências a datas, horas, intervalos expres
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samente enunciados (uma hora, duas horas, um ano...), advérbios ou locuções indicando tempo (logo após, remotamente...), alusões a marcos históricos (à época do governo Vargas...) são todos elementos que orientam de modo mais explícito o leitor quanto ao eixo de coerência narrativa.
Conclusão
A narrativa representa ao argumentante, no discurso judiciário, uma premissa e uma grande oportunidade. Premissa porque, como vimos, é dos fatos que surgem os direcionamentos da argumentação, e as informações necessárias para que o interlocutor a compreenda e, logo, a aceite; e grande oportunidade porque, ainda que não admita uma atividade suasória expressa, tem a narrativa, diluído em seu conteúdo, grande poder de persuasão, ao informar o interlocutor para que ele aceite uma versão dos fatos verdadeira e verossímil, que contribua para a conclusão a ser apresentada no momento argumentativo próprio.
Respeitada sua estrutura e coerência específicas, a narrativa dos fatos deve ser objeto de estudo do argumentante.
Capítulo VII
Argumento de autoridade: apelando para a opinião do experto
Uma assertiva pode ser considerada válida apenas porque provém de fonte confiável. Entretanto, não se pode su- pervalorizar o argumento de autoridade: ele deve submeter- se a alguns critérios para que seja digno de confiabilidade.
Apresentação: os tipos de argumento
Até aqui trouxemos questões genéricas da argumentação jurídica: a apresentação da função do argumento, a estrutura argumentativa, a coerência, a intertextualidade e a narrativa. São todos pontos importantes, mas sem qualquer dúvida o leitor deseja aprofundar-se em aspectos mais práticos.
É hora de apresentar tipos de argumento usuais àquele que argumenta em juízo. Somente nos vale, nesta introdução, dedicar algumas palavras ao método de seleção desses argumentos e à utilidade de seu estudo.
Sendo os argumentos meios lingüísticos de persuasão, eles têm uma gama enorme de tipos. Sua classificação segue pontos de vista distintos, dependendo do teórico e do método utilizado para sua validação. Seria impossível apresentá-los todos, porque uma classificação criteriosa tenderia ao infinito, já que infinitos são os modos de persuadir pela linguagem. Qualquer classificação é inexoravelmente obsoleta: quando construída, já deixou de abarcar uma série de recursos que a linguagem comum inventa a todo tempo.
Nosso método, aqui, seguirá um caminho muito simples: apresentaremos os tipos de argumento mais comuns, mais usuais no Direito, procurando deixar bem claro seu aspecto eminentemente prático. Todavia, preocupamo-nos
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com a apresentação de um mínimo de embasamento teórico, caso o leitor tenha algum interesse mais aprofundado ou, ainda, precise utilizar, em um caso seu, da discussão da adequação do valor de cada um dos argumentos ou fundamentos expendidos pela parte adversa.
Preocupamo-nos em que o leitor desta obra, ao conhecer ou aprofundar-se em cada tipo de argumento jurídico, tanto acrescente cada um dos tipos de argumento a seu discurso, refletindo a respeito de seu valor, como também conheça técnicas de desarticulá-lo, quando utilizado pela parte contrária. Então, por esse contexto nosso trabalho não foge à veridicidade científica: estabelece as vantagens de cada argumento na persuasão humana ao mesmo tempo que - pretendemos - ficará fixado em que medida cada argumento pode tenderão sofisma, à falácia ou ao engodo em um discurso.
Veremos, em capítulos posteriores, que a grande utilidade de conhecer tipos novos de argumento consiste no fato de o melhor discurso não ser aquele que traz argumentos em quantidade, mas sim o que (principalmente em auditórios heterogêneos) articula argumentos diversificados, evi- tando-se a repetição da técnica e seu esgotamento.
Iniciaremos, então, com o argumento de autoridade. Este merece considerações mais aprofundadas, aqui por dois motivos: primeiro, porque traz fundamentos que se aplicam quanto a outros tipos dele dependentes, que veremos adiante; segundo, por tratar-se de um dos mais relevantes argumentos do discurso judiciário atual. Por assumir tal valor, merecerá também algumas críticas, que se farão sem querer ofuscar a importância ímpar que ele revela em nosso cotidiano.
A autoridade
Muitas das verdades que aceitamos estão baseadas no conhecimento de autoridades. Se procuramos saber a previsão do tempo, confiamos na opinião de autoridades, de
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expertos em meteorologia, para que nos passem um diagnóstico que, sozinhos, com nosso conhecimento leigo, não somos capazes de obter. Do mesmo modo, se temos um problema de saúde, consultamos um médico especialista, procurando nos fiar em suas conclusões e recomendações, diante do quadro clínico que ele nos estabelece, após pedir exames, submetidos à avaliação de outros especialistas que o realizam. Acreditamos na opinião do médico e do meteorologista porque confiamos, de algum modo, que eles somente venham a lançar manifestações oriundas de observações científicas aplicadas à realidade colocada à sua frente: o corpo do paciente, as condições climáticas de uma região a uma época específica.
Dentro desse conceito, em um mundo em que, cada vez mais, nosso conhecimento estreita-se em aprofundamento sobre áreas tão mais específicas (non multa, sed mul- tum), muito do que acreditamos nos foi passado por meio de manifestações de autoridades. Quando crianças, experimentamos sensações diversas, desconfiando das afirmações que nos são transmitidas por quem já as viveu: colocamos o dedo na tomada e sentimos o primeiro choque, e é raro aquela criança que teme um cachorro sem que algum já não lhe haja ao menos ameaçado um ataque. No transcorrer do tempo, entretanto, vimos, pela impossibilidade de experimentar e conhecer todas as áreas do saber humano, repousando nossa fidelidade em pronunciamentos estabelecidos por aqueles que são, no senso comum, reconhecidos como dotados de conhecimento que autorize a convincente manifestação de opinião a respeito de assuntos determinados: cremos que a luz tem massa e caminha em direção curvilínea porque assim assentou Einstein, ainda que - ao menos a este cidadão leigo - não conheçamos os meios de colocar à prova essas afirmações.
Esse conhecimento técnico baseado apenas em declarações de autoridades consegue, refletindo em um panorama mais amplo, criar uma verdadeira ditadura de autoridades, porque parece pouco sensato que um ser humano lo
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gre refrear todas as colocações pronunciadas por aqueles que se estabelecem como dotadas de conhecimento aprofundado. Por um lado, o saber humano amplia-se e, por outro, reduz-se o tempo das pessoas para que possam estabelecer conhecimento e colher dados suficientes a respeito das origens de cada matéria ou problema abordado, restando a cada interessado a alternativa de estabelecer premissas ou conclusões baseadas naqueles que sejam donos de uma experiência arraigada, ou que tenham reconhecidamente se dedicado a estudar determinada matéria em questão. São eles os especialistas ou expertos.
Como aponta Douglas Walton1, o estereótipo do problema da autoridade nos dias atuais tem sido composto pela figura do Big Brother, a criação de Orwell, em que uma oligarquia fixava pensamentos e conceitos, por um sistema de controle ferrenho, ditando às pessoas o modo de agir e pensar. Exageros à parte, a força que tem o conceito das autoridades estabelecidas, por influência de fatores como ciência, religião, mídia e imprensa em geral e cultura de massa contemporânea, faz com que o argumento de autoridade assuma, nas mais diversas áreas do conhecimento, força inigualável, em que vale nos aprofundar.
Antes, porém, de fazê-lo, é necessário compreender o conceito de argumento de autoridade.
Argumentum ad verecundiam
Argumento de autoridade é aquele que se utiliza da lição de pessoa conhecida e reconhecida em determinada área do saber para corroborar a tese do argumentante.
1. Cf. WALTON, Douglas S. Appeal to Expert Opinion, p. 2: "...Instead we have to assume and guess and, very often, trust or rely on the opinion of those who have presumably taken the effort to study the matter - the experts. So we have to fix on or accept certain opinions or beliefs as the best information or advice we have to act on for the moment. But there is also a widespread tendency to fix onto these beliefs that cannot be questioned."
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O argumento de autoridade é também chamado de ar- gumentum magister dixit ou ad verecundiam. Esta última denominação foi criada por John Locke2. Ele o definiu como uma espécie de argumento utilizado para fazer prevalecer seu posicionamento ou silenciar um opositor. Significaria utilizar-se da opinião de uma terceira pessoa, que "construíra seu nome" e ganhara sua reputação no senso comum como pessoa de certa autoridade. Segundo Locke, uma pessoa, quando adquire certa reputação ou autoridade na sociedade, realça a modéstia dos terceiros, que pouco questionam o posicionamento daqueles que têm essa qualificação específica. Dessa maneira, qualquer um que não conhecesse a opinião das autoridades poderia ser colocado, em uma discussão, como imprudente ou ignorante, fazendo com que um discursante adverso gozasse de maior crédito, se de acordo com a opinião daqueles que construíram bom nome.
Utilizar-se do argumentum ad verecundiam significa trazer, em uma discussão, a opinião de um experto, que se presuma tenha conhecimento aprofundado sobre determinado assunto. Vejamos o exemplo abaixo:
O réu não pode figurar no pólo passivo desta demanda, porque, como mero entrevistado, não é legítimo autor de crime contra a honra em lei de imprensa. Se um jornalista transcreve no jornal a entrevista com determinado personagem público e, nela, redige ofensas a terceiros, atribuindo sua autoria à pessoa entrevistada, é ele, jornalista, o único responsável por eventual delito contra a honra, enquanto não fizer inequívoca prova de que copiara, no texto publicado, fielmente aquilo que o entrevistado dissera. Ademais, o entrevistado deve autorizar a publicação das ofensas proferidas - se é que as proferira caso contrário continua o jornalista sendo responsável por todas as ofensas publicadas na imprensa. É assim que pontifica Darcy Arruda Miranda:
2. WALTON, Douglas S. Informal Logic: a H andbookfor Criticai Argumen- tation, pp. 172-3: "A denominação 'argumentum ad verecundiam' literalmente significa 'o argumento da modéstia' e foi John Locke quem pela primeira vez a usou para referir-se a uma tática ou técnica que pode ser usada por uma pessoa contra outra."
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"[...] se nos conceitos emitidos pelo entrevistado houver ofensa à honra de alguém, o ofendido deverá agir contra o diretor ou redator-chefe do jornal ou periódico [...] responsável pela divulgação, tal seja a hipótese, caso não se prove, desde logo, que o entrevistado autorizara a divulgação (...). A responsabilidade do entrevistado só se fixaria se tivesse dado a entrevista por escrito e ali apusesse a sua assinatura. Ninguém pode ser responsabilizado pelo que não escreveu e não disse. E o repórter ou jornalista que publica ou transmite uma entrevista, sem a cautela de sua autenticação pelo entrevistado, principalmente quando nela se contêm expressões ofensivas a qualquer pessoa, assume a responsabilidade pela divulgação se seu nome constar da publicação [...], como autor da entrevista e, caso contrário, responsável será o diretor ou redator-chefe" (Comentários à Lei de Im prensa: 1969. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. II, p. 681; II, p. 681).
Pela lição do eminente professor, indiscutível se faz a ausência de responsabilidade criminal do entrevistado, ao menos no estágio probatório atual.
Para comprovar a veracidade de sua tese, o autor da argumentação judiciária recortou lição de professor conhecido e reconhecido em sua área de atuação. Talvez as idéias do argumentante fossem pouco aceitas se não apelasse à autoridade do jurista citado, e não há dúvidas de que o potencial suasório de seu discurso aumentou incrivelmente aludido argumento. Se aumenta a capacidade suasória, não há dúvidas de que se trata de um eficiente recurso e, portanto, seu uso é recomendável.
A citação da doutrina representa o uso mais comum de argumento de autoridade em nosso discurso forense atual. Reconhecendo-se professores com vasto conhecimento e obras de notório valor científico, buscam-se manifestações suas que estejam de acordo com a tese estabelecida pelo argumentante, de tal modo que prevaleça sua opinião contrária em relação à parte adversa.
Quando se estabelece essa coerência entre a tese estabelecida pelo autor (ou ao menos um ponto forte que se de
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seje comprovar) e o posicionamento da autoridade, o argumento ad verecundiam aperfeiçoa-se.
Mas o que fundamenta seu efeito suasório, sua capacidade de convencer?
Grosso modo, a autoridade invocada apresenta um aval para a veracidade do posicionamento sustentado pelo argumentante. Ao citar Arruda Miranda, o argumentante do exemplo acima acresceu ao seu discurso a opinião daquele que tem vasto conhecimento jurídico; o argumentante usa, então, da presunção de que qualquer manifestação do citado jurista seja reflexo de seu saber reconhecido, e então o toma de empréstimo para fundamentar sua tese, se seus posicionamentos forem de fato coincidentes.
Mas há outra vantagem no uso do argumento ad verecundiam, e ela se aplica muito mais especificamente ao discurso judiciário. Trata-se da presunção de imparcialidade. Toda vez que um autor expõe seu argumento na dialética processual, parte de um ponto de vista comprometido com os interesses que defende, porquanto, como já dissemos em lições anteriores, assume a condição de parte. Isso não condiciona sua argumentação à falácia, mas sempre faz com que o interlocutor, que deve ser convencido, vincule de certa maneira essa parcialidade à possibilidade de existência de uma argumentação que leve ao engodo. Quando o argumentante lança mão do posicionamento de uma autoridade, principalmente ao recortar trecho de obra publicada havendo algum tempo, em grande medida desfaz tal impressão, pois sabe o leitor que aquela opinião, defendida pela autoridade, não atende a interesses outros que não a veracidade científica, ao menos presumivelmente.
Portanto, o fortíssimo efeito suasório do argumentum ad verecundiam repousa em um duplo efeito: de um lado, a presunção de conhecimento e, de outro, a presunção de imparcialidade da autoridade e de seus posicionamentos acerca da tese que se pretende comprovar.
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Ciência e verdade
O que se busca no (bom) argumento de autoridade é, principalmente, que ele seja reflexo de um pensamento confiável e científico. Em nossa sociedade moderna, os modelos científicos estão espalhados por todas as áreas do conhecimento, e as reflexões subjetivas, ainda que sorrateiramente apareçam em considerações de lógica informal, são rechaçadas como depoimentos apaixonados, de pouca técnica. Descartes procurou modelos geométricos de raciocínio, iniciando com premissas indubitáveis e representando inferências unicamente por etapas que não poderiam levar do certo ao falso; assim, um raciocínio poderia tender ao infinito sem que se afastasse de uma veridicidade comprovada.
Ocorre, aparentemente, que, em nossa técnica diária, não temos tempo, espaço ou conhecimento hábil para desenhar essas mesmas etapas, então nos contentamos em fixar raciocínios já prontos, de fontes seguras. Não é difícil, entretanto, imaginar que essas fontes seguras, as autoridades, ainda que representem o raciocínio científico tão ansiado por nossa sociedade imediatista e tecnológica, podem constituir uma falácia: a de impor um raciocínio como verdadeiro apenas porque ele provém de uma fonte segura ou renomada.
Em primeiro lugar, é necessário deixar evidente que, mesmo em bases científicas seguras, as fontes podem trazer resultados equivocados e contraditórios. Vale a pena copiar, neste ponto, o exemplo pertinente fixado por Walton3:
Muitas pessoas acatam essas descobertas científicas e opiniões com tamanha seriedade, e agem conform e elas, mesmo lembrando que essas opiniões freqüentemente m udam com rapidez e podem ser frontalmente contrapostas por outros cientistas. Um caso excelente descrito por Cynthia
3. Appeaí, cit., p. 6.
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Crossen é a mania de farelo de aveia (oat bran) da década de 1980. Em uma época em que as pessoas estavam começando a preocupar-se com as influências do colesterol nas doenças cardíacas, os resultados de uma pesquisa parcialmente patrocinada pela Quaker Oats Company foram publicados por uma equipe da Northwestern University no Journal o f the American Dietetic Association. O estudo mostrou que, de 208 casos, adicionar o farelo de aveia a sua dieta resultava em significativa queda da taxa de colesterol. A Quaker, conseqüentemente, passou a anunciar seu cereal com farelo de aveia como um alimento redutor de colesterol, que baixava os riscos de ataque cardíaco, e a mídia acatou tal alimento com o um miraculoso ingrediente na comida. Farelo de aveia foi adicionado a mais de trezentos produtos, incluindo batatas fritas, alcaçuz e cerveja. Em janeiro de 1990, um novo estudo foi publicado por dois pesquisadores de Harvard, concluindo que o farelo de aveia não funciona quase nada no combate às doenças cardíacas.
Para o consumidor leigo, que desconhece até mesmo a essência do colesterol, a seriedade de um estudo publicado em jornal especializado, com a chancela de uma universidade norte-americana, com certeza representa autoridade ou ciência. Não interessa saber, no exemplo, se o farelo de aveia tem ou não efeito na prevenção das doenças cardíacas, mas é importante notar que os dois estudos, científicos, contrapuseram-se frontalmente. A busca da opinião de uma autoridade, ainda que em estudo aparentemente científico - fixe-se - não é cem por cento segura.
Mas ainda que longe da exatidão, a ciência a persegue. As ciências humanas estão em franca desvantagem nessa busca, porém continuam na batalha. Por isso é natural que o raciocínio do magistrado guie-se, na atividade jurídica e na interpretação do Direito, pelo raciocínio que se aproxime da construção científica e, daí, da exatidão. Esta, evidentemente, não é plenamente alcançada, ao menos no Direito, mas o argumentante, quando lhe aprouver, defenderá a exatidão do raciocínio científico jurídico e, não podendo reconstruí-lo todo, etapa por etapa, até a premissa mais re
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mota do ordenamento jurídico, apresenta um texto com presunção de veracidade científica.
Na interpretação e aplicação do Direito como ciência, o julgador vai sempre procurar o embasamento com maior quantidade de provas, o que permite lembrar a advertência de Kant, em Crítica do juízo4:
Toda argumentação... não deve somente persuadir, senão convencer ou ao menos contribuir à convicção... porque de outra forma o intelecto fica seduzido, mas não convencido.
Para contribuir para a convicção, a argumentação, quando se imiscui na ciência, busca seus modos de convencimento. E a ciência recomenda a localização e a indicação de boas fontes para que se exponha um raciocínio válido em seu âmbito, como ensina Marchi, dissertando sobre a veri- dicidade científica5:
Esta interpretação ou entendimento da fonte, todavia, deve quase sempre ser comprovada substancialmente pela citação ou referência a outro (ou outros) autor, cuja opinião embase (parcial ou inteiramente) aquela interpretação.
Este outro autor, porém, não pode ser qualquer um. Deverá ele constituir-se, de preferência, em um cientista-ju- rista renomado, já reconhecido e legitimado como tal na comunidade científico-jurídica.
A exigência desta prova substancial se justifica pela natureza da ciência jurídica.
Não sendo ela uma ciência exata, isto é, inexistindo uma prova inquestionável do resultado proposto (como 2 + 2 = 4), não há com o se provar uma solução (ou afirmação) proposta a não ser em basando-a nos "resultados" (= interpretações ou opiniões) de autores já legitimados cientificamente.
Não resta então nenhuma dúvida de que a opinião do experto é reiteradamente necessária na metodologia cientí
4. Apud CASCIO, Vincenzo. Gramática dc la argumentación, p. 250,5. Guia dc metodologia, citv p. 38.
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fica, e, portanto, vale também na argumentação jurídica como meio de convencimento objetivo, que procura impor ao leitor, desde que adequada a opinião da autoridade à tese defendida, a validade do raciocínio exposto.
A confiabilidade da opinião da autoridade: quia nominor leo
Alfredo Gaspar define argumento de autoridade como sendo "argumento psicológico de grande peso (e tanto que alguns autores o tratam como argumento quase-lógico ou mesmo lógico), aquele em que o orador abona sua opinião no ensinamento de um autor renomado, ou de um texto consagrado, fora de qualquer suspeição'"’. Como argumento, não há dúvida de que o melhor é sempre aquele que conta com maior aceitação do auditório, mas é pouco provável que se possa definir o argumento magister dixit como sendo apenas aquele que provém de fonte fora de qualquer suspeição. Suspeitas sempre existem, ainda que consagrados os textos citados.
Por isso, não basta um texto de uma autoridade para comprovar uma tese, devendo ser ela apenas parte de um raciocínio mais complexo e aprofundado do próprio argumentante. A nossa praxe judiciária, entretanto, tem hipertrofiado o valor do argumento magister dixit, transfor- mando-se ele, indevidamente, algumas vezes, em único recurso persuasivo de discursos judiciários, fonte e fim de todas as discussões jurídicas práticas, conforme exemplo a seguir.
Conta-se que o leão estava faminto e procurava caçar a zebra, mas não conseguia. A zebra embrenhava-se na mata, corria e corria; volta e meia a caça, na fuga, invadia o rio, onde, com pernas mais longas, escapava do rei da floresta. Furioso, o felino, sob os conselhos sábios da leoa,
6. Instituições de retórica forense, p. 63.
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propôs ao crocodilo uma união de esforços: o crocodilo e sua esposa espreitariam a zebra na água, enquanto o leão e a leoa a perseguiriam em terra. Não haveria escapatória. Com a união de esforços, foi realmente impossível, e a zebra sucumbiu à boca do crocodilo. Chegou o momento, então, de dividir a presa entre os quatro caçadores, e o leão anunciou: "Dividimos a zebra em duas metades. A primeira metade será dividida igualmente: um terço ao crocodilo, por ter matado a caça; outro terço a sua esposa, por ter feito a tocaia; o último, à leoa, por haver planejado tudo com perfeição... e a outra metade é minha, porque meu nome é Leão."
Quia nominor leo. A autoridade do leão determinou-lhe a razão, ainda que sua explicação não fosse lá a mais razoável. Se pensarmos em argumentação como modo de levar à persuasão a qualquer preço, podemos nos aproveitar de uma única opinião de um autor consagrado para sustentar nossa tese, como absoluta dispensa de nos aprofundarmos em o que levara a autoridade a concluir desta ou daquela maneira.
Se um médico consagrado me prescreve certo remédio, eu o tomarei sem questionar: uso o remédio porque me foi recomendado por um profissional reconhecido da Medicina. Mas, se ele não me faz nenhum exame, clínico ou laboratorial, se sua consulta é rapidíssima e eu posso perceber que sequer deu-se conta de meu estado de saúde, poderia aceitar aquele mesmo medicamento sem exigir do profissional explicação minimamente aprofundada a respeito dos motivos que o levaram a recomendar-me o tratamento? Parece evidente que não.
O problema agrava-se quando se nota que, nos dias de hoje - permita-nos que seja dito algumas empresas e meios de comunicação elegem ou até mesmo criam autoridades que estão longe de ser equiparadas a outros especialistas, estes com alto gabarito e conhecimento em suas áreas de estudo e atuação. Não é raro que os grandes sábios, realmente especialistas, sejam preteridos por outros que têm
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maior acesso à mídia7: o médico, o advogado, o professor, o nutricionista que mais aparece na televisão ou que é mais divulgado pela editora por ser autor de best-sellers da área técnica, com pouquíssima originalidade científica. Acontece.
Por isso, ainda que seja absolutamente funcional, na argumentação, o apelo à autoridade, aproveitando-se da humildade do interlocutor a reconhecer seu desconhecimento, ou, ao menos, um conhecimento menor a respeito da matéria sobre a qual a autoridade disserta, alguns princípios devem ser observados para que não se tome (apenas) a fonte como absoluto meio de atribuição de valor a uma conclusão, já que até essa fonte pode ser algo duvidosa.
Quando o argumento de autoridade desvirtua-se de sua função de presunção razoável de certeza da opinião de um verdadeiro expert para que se dê maior crédito a uma tese, passa a constituir a falácia da autoridade.
Estabelecendo a validade do argumento
A regra de validade do argumento de autoridade é esta8:
X (alguma pessoa ou organização que deve sabê-lo) disseque Y.Portanto, Y é verdade.
7. O acesso à mídia, que coloca com grande agilidade nomes em evidência, conduz (ou pode conduzir) à falácia da popularidade, pois com facilidade as pessoas embarcam nas crenças da maioria, como explica Govier Trudy: "A claim may be widely believed only because it is a common preju- dice. Thus, the fact that it is widely believed is irrelevant to its rational accep- tability. Argumentsin wich there is a fallacious appeal to popularity are based on premises that describe the popularity of a thing ('Everibody's doing it', 'Everibody believes it'), and the conclusion asserts that the thing is gook or sensible. The arguments are fallacious because the popularity of a product or a bielief is in itself irrelevant to the question of its real merits. The fallacy of appealing to popularity is also sometimes called the bandwagon fallacy, or the fallacy of jumping on a bandwagon" (A Practical Study ofArgument, p. 189).
8. Cf. WESTON, Anthony. Las claves de la argumentación, p. 55.
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Como argumento, então, vale a afirmação porque provém de alguém que deve sabê-lo. Mas há várias maneiras de pôr à prova o argumento de autoridade, para que ele não se transforme em uma falácia. Apenas a título de exemplo: sabe-se que, quando se faz a citação de determinado autor em um texto jurídico, indica-se o ano da edição da obra transcrita. Por que isso é feito? Porque a autoridade pode mudar seu posicionamento9 em obra posterior, retificando-o, admitindo um engano ou uma ilusão passageira. Assim, uma citação de pessoa famosa pode constituir um posicionamento cientificamente errado, mas se tal falha não é apontada no contraditório, passa como boa afirmação, argumento persuasivo.
Quem se depara com o argumento de autoridade utilizado pela parte contrária deve colocá-lo à prova, estabelecendo sua validade. Mas não só: para aquele que, mais que seduzir, pretende realmente convencer com técnica, é recomendável que também questione a validade do argumento de autoridade que utiliza.
Faremos mais algumas considerações importantes a respeito desse tipo de argumento e de sua validade porque, como já adiantamos no início deste capítulo, dessas características do argumentum ad verecundiam outros tipos de argumentos também se aproveitam, e então nos pouparemos, mais adiante, de dissertar sobre elas. Vale já, entretanto, considerarmos o modo de aferição de validade da consideração da autoridade, por meio de seis perguntas, de Walton, que apresentam cada uma um dos requisitos para a validade pretendida.
Imaginemos que um experto (E) apresente determinada afirmação (A), que é aproveitada em discurso de um ar-
9. "If [the cited expert] is a great authority and the consensus of autho- rities is large, then the argument becomes stronger. But it's never 100 percent conclusive. Ali the authorities in the world might agree on something that they later discover to be wrong. So we shouldn't think that something must be so because the authorities say it is" (GENSLER, Harry. Logic: Analyzing and Appraising Arguments. Apud WALTON, S. Appeal, cit., p. 234).
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 121
güente, em consonância com sua tese. Um argumento de autoridade, para que seja válido, deve ter respondidas afirmativa ou satisfatoriamente a todas estas questões:
1. A questão do experto: Qual é o crédito de E como uma fonte científica?
2. Questão da área: E é experto na área em que se encontra A?
3. Questão da validade da opinião: O que E disse que realmente implica A?
4. Questão da confiabilidade: E é pessoalmente confiável como uma fonte?
5. Questão da consistência: A está de acordo com as afirmações de outros expertos?
6. Questão das provas: A assertiva A é baseada em provas?
A resposta a essas questões garante a validade do argumento ad verecundiam, afastando-o da falácia, do engodo do pronunciamento sem validade científica. Analisemos rapidamente cada uma delas.
A questão do experto
Qual é o crédito do experto como uma fonte científica?A autoridade deve ser credenciada como tal. Nas cita
ções de doutrina na argumentação jurídica, sempre se deve procurar uma autoridade cientificamente autorizada, ou seja, em geral um professor universitário de gabarito. Parece natural, pois, que se o fundamento do argumento de autoridade é a presunção de razão em virtude da boa fonte do pronunciamento utilizado, mais forte será o argumento quanto melhor for tal fonte.
Nesse ponto, entretanto, algumas observações podem ser feitas com grande segurança.
É fato certo que, em questões teóricas do Direito, o estudo universitário é o maior fator de crédito da autoridade. A ciência jurídica tem seu melhor desenvolvimento, técnico
122 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
e mais preciso, dentro das universidades. Elas são o campo autorizado para o crescimento do conhecimento jurídico propriamente dito, portanto á sempre preferível utilizar-se da autoridade que tenha reconhecida atividade acadêmica. Ela, presume-se, foi colocada à prova várias vezes e galgara seu conhecimento com a amplitude e o aprofundamento necessários para que não construa teses ou pensamentos com desconhecimento de fatores imprescindíveis a suas manifestações.
Com a certificação do crédito do experto como autoridade, principalmente acadêmica, o primeiro grande risco afasta-se da falácia do argumento magister dixit: o de que se escolham como autoridade pessoas de sucesso, de renome em determinada área, mas que não se possam colocar, tecnicamente, na qualidade de autoridades, porque não dispõem do devido credenciamento para tanto, ainda que sejam de larga fama.
Esse tema já foi abordado no tópico anterior: os interesses de propaganda e de mídia que levam ao engodo de pessoas de não tão vasto conhecimento em sua área serem afamadas como grandes conhecedoras. O crédito de autoridade não se alcança, ou melhor, não se deveria alcançar por meio de propaganda, aparição reiterada na mídia ou venda de produtos que levam seu nome. Sem generalizações, claro: a fama pode também advir de uma iniludível competência técnica e científica, mas é esta que deve valer à autoridade.
Cabe ressaltar ainda que não se deve confundir a autoridade técnica com o poder. No ambiente jurídico, em que essa confusão é muito comum, costumamos afirmar que autoridade jurídica não é o mesmo que autoridade judiciária ou autoridade legal. Um cargo público bem elevado e reconhecido ou uma carreira de sucesso na advocacia não determinam a autoridade jurídica no pronunciamento científico. Somente se pode confiar na autoridade do pronunciamento pela experiência ou pelo cargo se a matéria abordada, como se verá adiante, for específica dessa mesma ex
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 123
periência, como se um desembargador de notável carreira escrevesse sobre o ofício de julgar, ou um governador do Estado se pronunciasse sobre a árdua tarefa de comandar um governo.
Vale, apenas a título de ilustração, o discurso de San- cho Pança, que, conduzido ao cargo de governador insular, assenta, com os ditados característicos de suas falas, que sua autoridade, recém-imposta, acobertará sua ignorância e fará prevalecerem suas opiniões: "Bien sé firmar a mi nom- bre - respondió Sancho que cuando fui prioste en mi lugar aprendi a hacer unas letras como de marca de fardo, que decían mi nombre; cuando más, que fingiré que tengo tullida la mano derecha, y haré que firme otro por mí, que para todo hay remedio, sino para la muerte; y teniendo yo el mando y el paio haré lo que quisiere; cuanto más que el que tiene el padre alcalde, seguro va al juicio... y siendo yo gobernador, que es más que alcalde, llegaos, que la de- jan ver!"10
Mais uma vez, é claro que a autoridade também depende em certa medida do público a que se dirige. As palavras do romano pontífice para os católicos são sempre dotadas de razão11, porque proferidas pelo legítimo sucessor de Pedro, e nem por isso seus pronunciamentos deixam de conter raciocínio lógico e fundamentação desenvolvidos. Do mesmo modo, a prescrição de um médico a um paciente que se sujeita e aceita seu tratamento raramente será contestada, ainda que outro possa entendê-la incorreta, pois ao paciente seu médico representa ali máxima autoridade em sua saúde.
A primeira questão, então, de validade do argumento de autoridade investiga o arcabouço científico daquele que se apresenta como especialista. Enganos há aos montes,
10. CERVANTES, Miguel. El ingcnioso hiáalgo Don Quijote de la Mancha, p. 737.
11. Por isso, v.g., no Código de Direito Canônico, as sentenças proferidas pelo papa não comportam recurso (c. 1629, §1°).
124 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
com autoridades que se apresentam como tal mas não o são. Resta sempre lembrar que, quanto maior a representa- tividade daquele invocado como expert, mais forte é o argumento dele retirado. Todavia, apenas a autoridade não determina o argumento.
Questão da área
Exemplo pouco técnico, mas bastante esclarecedor:Três sábios cientistas chegam de carro a uma cidade do
interior em que jamais estiveram. Eles participarão de um importante congresso no salão nobre da prefeitura da cidade, mas não têm a menor idéia de onde seja a sede do governo municipal. Perguntam, então, a um munícipe que por eles passa, um caboclo iletrado, que carrega espigas de milho em um balaio de palha. Certamente, o homem saberá responder-lhes onde é a prefeitura.
Naquele momento, qual das quatro personagens é a autoridade? Evidentemente, o caipira analfabeto. Qualquer resposta que ele proferir (a não ser que diga que a sede do governo é em Marte) é digna de todo o crédito, pois naquela matéria - a topografia da região - ele é entre todos o único especialista, e não há que se dizer que em toda a região haja alguém mais indicado que ele para proferir a resposta.
Caricaturas à parte, é evidente que não basta a credencial científica da autoridade para que ela possa ser encarada como fonte segura para a manifestação em qualquer assunto. A autoridade é especialista em sua área de conhecimento e, fora dela, tem opinião como outro qualquer, que requer fundamentação vasta, pois não se presume que seja produto de vasto conhecimento.
Conta-se que Albert Einstein, que como cientista alcançou grande sucesso ainda vivo, era procurado pela imprensa para manifestar-se continuamente sobre questões políticas e sociais, na comunidade norte-americana e européia. Evidentemente, Einstein era autoridade na física, mas não
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 125
em questões políticas, em que deveria funcionar apenas como comentarista leigo, não obstante contasse com inteligência privilegiada.
Na televisão, em programas de meio de tarde, artistas de novela são chamados a discutir questões nacionais, como se fossem grandes especialistas em economia ou sociologia. Claro, apenas alguns poucos dão crédito àquelas opiniões como se emanassem de alguém que faça presumir serem verdadeiras todas as suas manifestações, de tal modo que a influência (às vezes surpreendentemente grande) dos juízos do artista é de tal maneira subjetiva que deve ficar a cargo do estudo dos publicitários.
Mas no discurso judiciário não é raro ocorrer desvir- tuamentos da manifestação da autoridade, que aproximam o argumento da falácia. Algumas autoridades em determinada área do Direito, em pareceres e outras manifestações, por vezes opinam em matérias que em nada se aproximam daquelas em que são realmente expertos. São raros os casos, mas às vezes algumas autoridades aproveitam-se de seu reconhecimento público para intrometer-se em áreas que, de fato, conhecem pouco, ou conhecem menos que um verdadeiro especialista no assunto, porém de renome menor. Nesse caso, o argumento perde seu valor12.
O tema das especialidades na área do Direito é algo em que, aqui, buscando apenas o efeito argumentativo, não vamos avançar muito, até porque, é bem oportuno dizer, fugiria a nossa temática de estudo. É pertinente apenas fazer a ressalva de que, embora as especialidades e as disciplinas do Direito estejam em constante crescimento, alguns renomados juristas, por seu amplo conhecimento do ordenamento legal como um todo, podem atrever-se a opinar em área diversa, conservando seu status de fonte credenciada, porquanto seguem, em campo estreito, um raciocínio jurídico mais amplo que efetivamente dominam. Mas é necessário cautela.
12. "Ne supra crepidam sutor iudicaret" - Não julgue o sapateiro mais do que a sandália.
126 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Se alguém é credenciado experto em determinada matéria e se sua afirmação diz respeito a ela, o argumento de autoridade já ganhou grande força. Caso contrário, perdeu um de seus sustentáculos. Mas há mais.
Questão da validade da opinião
O que E disse que realmente implica A ?Essa, em nossa opinião, é a questão mais importante
do argumento ad verecundiam, a validade da opinião da autoridade. Questão complexa, porque envolve diretamente o conceito desse argumento: sendo a autoridade realmente especialista em determinada área do conhecimento, e se for seu pronunciamento atinente a essa mesma área, importa em que todos os ouvintes aceitem como verdadeiro esse pronunciamento, porque se presume que a autoridade não se engana naqueles limites. Todavia, ainda que provindo de uma boa fonte, melhor o argumento em que forem acrescidas outras razões, explicações da própria autoridade.
É claro que, se, v.g., um argumentante faz uma citação de Nelson Hungria, corroborando sua tese, tem ele argumento magister dixit-, ainda que outros penalistas adotem posicionamento diverso do daquele professor, nunca se irá dizer que Hungria manifestara idéia absurda, descabida: o conteúdo do todo de sua obra faz presumir, com segurança, que jamais articularia idéia infundada sobre Direito penal, ainda que não se exponham os fundamentos que o levaram àquela conclusão, de que o argumentante se aproveita.
Mas a questão se agrava quando o argumento é submetido ao contraditório, quando a parte contrária combate o argumento ad verecundiam com a manifestação de outra autoridade, em que advoga tese diversa: Nelson Hungria defendera determinado posicionamento, mas Aníbal Bruno divergia, e sustentava tese distinta. Duas autoridades, dois
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 127
posicionamentos diferentes13. Que fazer? Qual o melhor? Evidentemente, a disputa argumentativa, no uso de duas autoridades diversas, não se vai resumir às questões levantadas nos tópicos anteriores; não se trata de uma competição de egos e medalhas, de qual dos dois é a maior autoridade.
Isso porque o argumento magister dixit não se resume a apontar o credenciamento da autoridade citada; deve também apresentar suas razões, e o argumentante tem de cuidar de fazê-lo. Se assim não fosse, as autoridades não seriam mestres, mas semideuses (como no exemplo da declaração de Sancho Pança quando governador). Pode ser, por exemplo, que um comentário de Nelson Hungria seja versado em artigo da Constituição anterior, ou de cânone legal já alterado, motivo pelo qual seu posicionamento deve ser revisto, não obstante sua autoridade permaneça.
Quem cita a autoridade, evidentemente usa do fator persuasivo que tem a credencial e o valor do mestre ou experto citado, mas deve permitir ao auditório, ao menos o mais especializado, que possa acompanhar os motivos que levaram a autoridade a alcançar a conclusão que é utilizada como tese pelo argumentante.
Esse percurso argumentativo da autoridade deve ser mostrado por dois motivos: o primeiro, permitir ao ouvinte atestar o raciocínio lógico da autoridade, validando sua conclusão. E o segundo é o próprio fator persuasivo do raciocínio do experto: se é realmente uma autoridade, saberá fundamentar sua conclusão melhor que qualquer outro.
Tal exposição dos fundamentos da autoridade não necessita ser exaustiva. Aliás, em se tratando de citação (e é esse o modo mais comum de uso do argumento ad verecundiam), deve-se sempre ser breve. Nenhum ouvinte é persuadido pela argumentação deixada a cargo dos fundamentos da citação: o argumentante deve utilizar a citação
13. "Quod capita, tot sensus" - Quantas cabeças, tantas sentenças.
128 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
magister dixit apenas como um de seus argumentos e aproveitar-se da presunção de razão da autoridade para resumir seus fundamentos. Caso contrário, o argumento perde seu sentido, pois se tratará de mera repetição de raciocínio alheio.
Questão da confiabilidade
O experto E é confiável como uma fonte?A questão é bem esclarecedora, e o bom leitor já a in
tuía, motivo pelo qual há pouco a dizer. A autoridade, o experto, tem características objetivas que o fazem figurar nessa condição, e isso já foi analisado. Mas parece indispensável que a autoridade tenha retidão de caráter, e isso é uma característica subjetiva. A honestidade, não apenas no sentido de corrupção financeira, mas a honestidade moral, a retidão de manutenção da própria opinião e posicionamento científicos são características importantes da autoridade.
Se o argumento ad verecundiam é o argumento do humilde, da veneração àquele que merece o status de autoridade, sem dúvida há entraves em se questionar de um mestre sua confiabilidade, exatamente porque argumentante e auditório, para que bem funcione o argumento, respeitam ao máximo o especialista cujo posicionamento é invocado. Mefistófeles, em Fausto'1, de Goethe, adverte sobre a decepção que pode haver diante do mestre:
Nem que a verdade alguém aos jovens leve,A que um fedelho desses não subscreve,Mas que, após anos, talvez se revele,Quando a sente arranhar-lhe a própria pele,Julga que o próprio miolo a luz encete.Asserta então: "O Mestre era um pateta."
14. Fausto, p. 274.
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É, pois, da natureza do argumento magister dixit que não se questione a retidão de opinião daquele que é reconhecido como mestre. Mas ao argumentante, em sua dialética, desde que não recaia em ofensas pessoais, denominadas ad hominem, é absolutamente lícito questionar a respeito da confiabilidade da autoridade.
Nullius addictus iurare in verba magistrP, dizem os que advogam a autonomia intelectual. É muito raro, mas às vezes os mestres falham em sua personalidade16, e isso provoca uma mancha em sua reputação, que deixa dúvidas quanto à retidão do pronunciamento daquela autoridade.
Um pronunciamento fundamentado de uma autoridade em determinada área do saber pode ocasionalmente não refratar seu verdadeiro conhecimento. A autoridade pode ceder a pressões das mais diversas, defender uma teoria que pouco conhece mas está na moda, ceder a uma amizade, a uma pressão política ou até, quem sabe, a uma oferta de pagamento, por assim dizer irrecusável.
Quando isso ocorre, a autoridade cai em descrédito, e assim o argumento perde seu valor. Quem se depara, por exemplo, com um parecer de um jurista, geralmente recorre à sua doutrina escrita, buscando saber se o posicionamento sustentado no parecer é reflexo de sua doutrina, com coerência. Se não o for, diz-se que a autoridade tem forked tongue, língua bifurcada, a língua de cobra.
A autoridade pode cair em contradição também quando não se aprofunda no estudo da matéria sobre a qual se pronuncia, talvez por desídia, excesso de trabalho etc. As contradições são, sempre, causa de descrédito à fonte. Exemplo é a narrativa literária do julgamento de Jim Willians, no romance de Jon Berendt17. Em plenário, no quarto julgamento do caso, o advogado Seiler ganha a causa desacreditando
15. "Ninguém é obrigado a jurar sobre as palavras de um mestre" - citação de Horácio.
16. "Nemo mortatium omnibus horis sapit" - Nenhum mortal é sensato o tempo todo.
17. M eia-noite no jardim do bem e do mal, p. 391.
130 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
os peritos: "Seiler ridicularizou a promotoria pelas inconsistências nos depoimentos dos peritos chamados por eles - principalmente no do dr. Larry Howard, diretor do laboratório estadual. Num dos julgamentos, o dr. Howard tinha afirmado que Williams não poderia ter dado todos aqueles tiros em Hansford de detrás da escrivaninha; num outro, disse que Williams poderia ter feito isso. Em momentos diferentes, Howard dissera que a cadeira de Danny Hansford ora caíra para trás, ora para o lado, ora para a frente [...]"
Evidentemente, como já vimos, todo experto ou cientista pode mudar sua opinião, valores e conceitos no decorrer de sua experiência, mas deve ser claro ao registrar essa transformação, como sendo sedimento de seu conhecimento, e não sua destruição.
A confiabilidade da fonte, então, aparece mais nas características subjetivas da autoridade, mas não deixa de ser quesito importante para a validade do bom argumento, desde que bem respeitados os estreitíssimos limites que a honrada argumentação impõe às questões de cunho subjetivo18.
Questão da consistência
A afirmação A está de acordo com a opinião de outros expertos?
A ciência não se faz isolada, e a divergência é nas matérias humanas algo corriqueiro, para o bem da argumentação. Todo pronunciamento é mais consistente quanto mais uníssono for em relação a outros do mesmo gabarito. Quando se trata de uma matéria que dominamos, como o Direito, é fácil pesquisar e saber se o pronunciamento de uma autoridade é convalidado por outras de saber igual ou maior.
Unanimidade não pode haver; é rara e, como disse o dramaturgo..., burra. Mas a comparação do pronunciamen
18. Vide, no Capítulo XIII, falácia ad hominent e, no Capítulo X, argumento ad honiinem.
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 131
to da conclusão de uma autoridade com o de outras serve, no mínimo, para fomentar o debate, comparar pontos de divergência e criar um contra-argumento. Ou então validar ainda mais o posicionamento da autoridade.
Quem se depara com um argumento ad verecundiam articulado pela parte adversa deve sair em busca de outros que digam inversamente, sendo-lhe, por conseqüência, favorável.
Aquele que tem a seu favor um bom argumento de autoridade, caso se depare com outra autoridade que advogue tese distinta, não está obrigado a citar, pois diminuiria a coerência de seu texto. Ademais, citar a doutrina contrária é trabalho da parte adversa, que deve achá-la e trabalhar com ela em seu proveito, caso contrário não haveria uma argumentação, mas certamente um texto apenas informativo ou didático, ou a investigação científica.
Quanto maior for a aclamação do mesmo princípio por várias autoridades, de maior força reveste-se o argumento; este, assim, é mais consistente quanto menos isolado vier.
Questão das provas
A assertiva A é baseada em provas?Para que um argumento ad verecundiam seja eficiente,
deve também fazer prova material de suas conclusões. A prova, na metodologia jurídica, significa a citação de documentos que permitam ao leitor comprovar as fontes de todo o raciocínio desenvolvido. Assim, se faço uma citação de Magalhães Noronha, devo indicar com detalhes de onde a retirei: nome da obra, lugar da edição, nome da editora, ano da publicação, página em que se encontra no livro. Somente com isso permito que o leitor e a parte contrária façam prova, se quiserem, da veracidade daquilo que utilizei para comprovar o raciocínio1".
19. O uso de citações não-verdadeiras, mais do que repreensível, não é fenômeno recente. Sabe-se que no século V d.C. os imperadores romanos Teodósio II e Valentiniano III, em virtude das citações falsas que advogados levavam ao juízo, constituíram a chamada Lei das Citações. Nas palavras de Mo-
132 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Do mesmo modo, se um perito criminal, que é autoridade em sua área de conhecimento, atesta que determinada substância que lhe fora enviada para exame é droga ilícita, deve guardar parte dessa substância para posterior contra- prova. Permite, então, que seu parecer magister dixit seja submetido ao devido questionamento.
O trabalho probatório é, também, requisito do bom argumento de autoridade, para que se evite a falácia e o engodo.
Neste último ponto, vale polemizar um pouco, assentando-se que existem citações falsas, fruto de trabalho equivocado ou maldoso de alguns argumentantes. Essas citações podem se perpetuar pela desídia de argumentantes posteriores de pesquisar a fonte primária do texto citado já de segunda mão. Apenas para ilustrar como é simples fazer citações desprovidas de provas, veja-se como Luis Fernando Veríssimo20 satiriza essa situação na crônica "Citações":
Nada com o uma boa citação para dar um toque de classe ao texto. Qualquer texto. A citação é uma espécie de testem unho insuspeito que a gente invoca para reforçar - ou, pelo m enos, para tornar mais respeitáveis - nossos argumentos. Principalmente quando os nossos argumentos, com o diria Toynbee, "não valem meia bola de gude". Toyn- bee, é claro, nunca disse isto, mas esta é a vantagem da citação falsa. Dá a impressão de erudição mas na verdade dispensa a erudição. Na frase de Sartre "A Aparência precede
reira Alves, "essa constituição imperial criou um verdadeiro tribunal de mortos, pois estabeleceu que somente poderiam ser invocados em juízo os escritos de cinco jurisconsultos (Gaio, Papiniano, Ulpiano, Paulo e Modestino), bem como as opiniões dos autores citados por qualquer deles, desde que o original fosse trazido a juízo. No caso de divergência de opiniões, prevalecia a da maioria; se houvesse empate, preponderaria a opinião de Papiniano; e, caso, enfim, este, na última hipótese, não se tivesse manifestado, o juiz seguiria orientação que lhe parecesse melhor" (Direito romano, 13a ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 44, vol. 1).
20. "Citações". In: O rei do rock, p. 60.
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 133
a Essência. A não ser nos casos em que isso não acontece. Sei lá ."[...]
A arte do cronista serve para despertar a atenção a respeito de como a falta de acuidade à origem do texto citado pode ser prejudicial à confiabilidade da argumentação.
As perícias em geral
As perícias em geral são modo de produção do argumento ad verecundiam. O perito profere manifestação fundamentada a respeito da matéria que, presume-se, domina, aceitando-se daí como verdadeiras suas conclusões. Não obstante, seu laudo deve trazer fundamentação suficiente para permitir contraditório, como bem assenta Zarzuela21, ao definir laudo pericial em criminalística:
Laudo pericial consiste na exposição minuciosa, circunstanciada, fundamentada e ordenada das apreciações e interpretações realizadas pelos peritos, com a pormenorizada enumeração e caracterização dos elementos materiais en contrados no local do fato, no instrumento do crime, na peça de exame e na pessoa física, viva ou morta. A perícia é uma modalidade de prova destinada a levar ao juiz elementos ins- trutórios de ordem técnica, podendo consistir em uma declaração de ciência, na afirmação de um juízo ou em ambas as operações simultaneamente.
Como modalidade de prova, as perícias em geral têm pouco interesse para um manual de argumentação. Apenas quando utilizadas em composição lingüística é que se transformam em argumento, e assim servem as demais considerações já expressas.
21. Laudo pericial, aspectos técnicos e jurídicos, p. 36.
134 ARG UMENTAÇÃO JURÍDICA
Os pareceres
Com relação aos pareceres, já fizemos a eles várias alusões, pois representam, no dia-a-dia forense, modo comum de utilização do argumento de autoridade.
O parecer é a opinião do experto, aplicada. Deve ser fundamentada e contar com provas, confiabilidade e consistência, como requisito de todos os argumentos de autoridade válidos, conforme já explanado nos tópicos anteriores. É usual que professores de Direito, em geral doutrinadores, sejam contratados pelas partes para proferirem pareceres em processos específicos. Assim, seu escrito transforma-se na aplicação da doutrina ao caso concreto.
O parecer espelha-se na solução de um caso concreto, em geral mais complexo e intrincado. O consulente formula perguntas, questões à autoridade parecerista, que, objetivando responder a elas, estuda a questão em um prévio arrazoado. Então, um parecer com redação técnica é aquele que traça, em sua fundamentação, percurso que dá aporte às questões que ainda estão por ser respondidas. Assim, é necessário que o parecerista apresente seu currículo, se já não é reconhecidamente público (questão do experto); demonstre de início ou diluída em todo o texto sua experiência com o tema sobre o qual disserta (questão da área); exponha, em percurso lógico-argumentativo, todos os pontos sobre os quais se baseia sua opinião (questão das provas); confronte seu resultado com a doutrina de outros expertos (questão da consistência) e, principalmente, demonstre que seu posicionamento já fora adotado, por ele próprio, em outras ocasiões (questão da confiabilidade).
Mas o consulente que encomenda parecer, pretendendo utilizá-lo como argumento de autoridade, obviamente conhece o sentido para o qual as respostas do parecer devem apontar. Por isso, não é raro, para que não se diga que é extremamente usual, que as questões formuladas nos pareceres que têm por objetivo a argumentação magister dixit sejam todas perguntas retóricas, ou seja, aquelas cuja resposta, em linhas gerais, já é conhecida do inquiridor. Com
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 135
respostas fundamentadas, que atendam aos quesitos do bom argumento ad verecundiam, o parecer transforma-se em excelente argumento e passa a contar com as vantagens típicas do magister dixit: a presunção de conhecimento (de veracidade) e a presunção de imparcialidade.
A presunção de imparcialidade do magister dixit perde terreno em alguns - alguns, diga-se bem - casos em que o próprio parecerista deixa de fundamentar para argumentar em sentido estrito22. Seu interesse ultrapassa o primordial (porque nunca o é puro) discurso científico, a fundamentação, para lançar-se a um trabalho puramente argumentativo, ou seja, centrado no próprio leitor. Nesse sentido, como já vimos no Capítulo III, o parecerista abandona a exposição de seu próprio convencimento para expor as idéias que tenham maior efeito suasório em seu leitor específico, seja o imediato (o consulente), seja, principalmente, o imediato (o juiz de direito ou a autoridade administrativa, no caso de pareceres formulados para serem juntados aos autos).
Se esse desvirtuamento do parecer ocorrer, o argumentante deverá estar alerta para perceber que, de imediato, ele passa a carecer da imparcialidade, o que representa uma das forças argumentativas do magister dixit. Afinal, diferentemente do que ocorre com a doutrina citada em uma peça copiada de um livro ou revista posta à publicação por puro interesse científico, o parecerista revela-se, nesses casos, como pessoa com um ponto de vista comprometido, já que defende um interesse. Não se pode dizer - como nunca se diz em matéria de argumentação - que o parecerista esteja pronto para mentir ou enganar, mas é certo que o ponto de vista comprometido com um interesse a ser defendido retira o pilar da imparcialidade, que é um (embora não o principal) dos que sustenta o argumento ab auctoritatem2i.
22. Vide Capítulo III.23. O ponto de vista comprometido, que corrompe a imparcialidade do
parecer, pode acontecer também na esfera pública: um pronunciamento ministerial, quando prolatado por alguém que representa parte acusatória no processo, deve ser encarado como argumentação, se comprometido com os interesses da parte.
136 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Mas essa falta de imparcialidade não aparece por presunção, devendo ser comprovada por aquele que pretende demonstrar ou corromper a validade do pronunciamento magister dixit no parecer. Caso mais delicado ocorre quando o parecerista, em seu pronunciamento específico, contradiz posicionamento anteriormente escrito em sua doutrina. Quando o faz, corrompe a autoridade do pronunciamento quanto à confiabilidade (vide subtítulo retro), e, desse modo, o parecer, como argumento, perde seu valor, deixa de persuadir.
Alguns operadores do Direito, no lidar diuturno com os pareceres jurídicos encartados em autos de processo, apontam para a possibilidade não rara de pronunciamentos em falta de coerência com a opinião prolatada na doutrina anterior do parecerista. Têm, para tanto, um argumento convincente: o de que seria dispensável contratar o parecer de uma autoridade se ela já tivesse, em sua doutrina, exposto a tese que deve ser defendida, porquanto bastaria copiar, em citação, o excerto da doutrina pertinente ao caso concreto. Argumento convincente que realça o alerta para a validade dos pareceres, que muitas vezes inflam processos com considerações tomadas pela parte.
Todavia, é necessário muito cuidado ao tentar desvalorizar-se uma autoridade, pois o dever de coerência constante de opinião daquele que fundamenta (e não meramente argumenta) é observado pelos sábios. É indispensável averiguar se o caso concreto não traz peculiaridades que tomem diversa a opinião do parecerista em relação a uma hipótese genérica ou a outro caso concreto sobre o qual proferira pronunciamento. Como é difícil, aliás impossível, que dois casos concretos sejam idênticos, suas diversidades podem implicar conclusões muito diferentes, como comentaremos, depois, em relação aos argumentos de autoridade. Somente então, depois de se constatar que existe discrepância entre a opinião fora dos aspectos peculiares da discussão24 do caso
24. Cf. Eemeren: "The tu quoquc variant of the argumentum ad hominem can also cause complícations. This form of falllacy is, for example, committed
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 137
concreto, é que se pode demonstrar que a autoridade, em seu parecer, utiliza falácia tu quoque, a língua bifurcada.
O parecer é argumento de autoridade, na medida em que seu redator conhece a matéria sobre a qual se pronuncia, e esse conhecimento funciona como presunção de veracidade da tese para a qual aponta. Tem sido largamente utilizado no cotidiano jurídico em nosso país, por isso vale absolutamente como técnica de persuasão. Entretanto, é necessário apontar para seus requisitos, como em todo argumento magister dixit.
Combatendo o argumento ad verecundiam
Quando se estuda um tipo de argumento, deve-se conhecer seus pontos fortes e fracos.
Durante este capítulo, diluímos vários modos de desvalorizar esse tipo de argumento, principalmente afirmando que, no discurso judiciário, ele tem sofrido hipertrofia indevida, ou seja, tem se dado maior crédito à fonte que aos fundamentos de sua afirmação, quando, evidentemente, deveria ser o contrário.
Em resumo, dois caminhos distintos existem para destruir um argumento magister dixit. O primeiro deles é desvirtuar a discussão da pessoa da autoridade para seus próprios fundamentos: a autoridade não pode, apenas por seu conhecimento notório, livrar-se do ônus de fundamentar
if one reject one's opponent's standpoint on the grounds that he held a different opinion at some time in the past. Yet no fallacy is committed by pointing out contradictions in the standpoints na arguments that the opponent has advanced in the course of the discussion. On the contrary, such criticism is highly relevant contribution to the resolution process. Admitting inconsistent statements within one and the same discussion makes it impossible to resolve the dispute. It is there- fore necessary to differentiate between discrepancies inside and outside the discussion. Only in the second case can there be a tu quoque. Unfortunately, where exactly one discussion ends and the next begins is in real life sometimes hard to determine" (EEMEREN, F. H. e GROOTENSDORST, Rob. Argumentation, Communication and Faltacies: a Pragma-Dialectical Perspective, p. 114).
138 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
todos os seus pareceres, sob pena de, por assim dizer, ser uma "autoridade arbitrária". E isso não se admite, ao menos na área científica.
Não apenas no Direito elegem-se autoridades que passam a fazer pronunciamentos, os quais são supervaloriza- dos. Com o "poder" da autoridade, muitos doutrinadores, cientistas, professores manifestam-se sem já terem de se preocupar em demonstrar os fundamentos de suas conclusões. E mesmo assim persuadem, porque o pronunciamento autoritário é a conseqüência do poder. Como gostamos de ilustrar25, lembramos a história de Carpaccio, contada por Luis Fernando Veríssimo. Carpaccio era um bobo da corte, de um reino medieval, famosíssimo por sua competência. Fazia rir aos bichos e às pedras, como se dizia. Tinha, por conta disso, todas as mordomias do reino a seus pés, talvez mais que o próprio rei. Certo dia, insatisfeito, expõe ao rei que ele, o bobo Carpaccio, pretende ser a própria majestade, que estava cansado de ser bobo. Seguiram-se então, na pena de Verissimo, no diálogo entre o rei e o palhaço, estas ilustrativas palavras26:
O rei ergueu-se e abriu os braços.- Eu estou lhe oferecendo um reino. O meu reino. Com
todas as vantagens...Carpaccio fez a sua cara de pouco-caso, famosa em
toda a Europa, que todos julgavam ser uma máscara cômica e era a sua cara mais real. A boca parecia a de um grande peixe triste.
- Que vantagens?- Riqueza, servos, mulheres. Um lugar na m esa com os
nobres. Um lugar certo no céu. Por que mais alguém quer ser rei?
- Para decidir. Para mudar as coisas, para decretar que pedra é bicho e bicho é pedra. Para tirar a História do nariz.
25. Veja as funções da ilustração, como dar concretude ao texto, no Capítulo IX.
26. "Bobos II". In: Outras do analista de Bagé, pp. 58-9.
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 139
- Mas isso é a desvantagem do poder!- Isso é o poder. O resto até um bobo consegue, se vi-
ver bastante.
A autoridade, por maior que seja, não se pode acomodar na presunção da boa fonte de seu pronunciamento. Assim adquire o poder e pode passar a dispensar razões necessárias a muitas de suas assertivas, ou, pior, pode ser tentada a inovar, sem humildade científica, a cada pronunciamento seu (em hipérbole, a "dizer que pedra é bicho e bicho é pedra", como na ilustração anterior). Por isso a possibilidade de aquele que se deparar com o argumento ad verecundiam encontrar uma falácia ab auctorictatem.
O segundo modo de desvalorizar o argumento é buscar outras autoridades que desmintam a afirmação magister dixit que se pretende combater. Para isso, ao menos no que se refere à doutrina jurídica, é essencial a leitura exaustiva, valendo o alerta de Umberto Eco27:
E isto a hum ildade científica. Todos podem ensinar- nos alguma coisa. Ou talvez sejamos nós os esforçados quando aprendemos algo de alguém não tão esforçado como nós. Ou então, quem parece não valer grande coisa tem qualidades ocultas. Ou ainda, quem não é bom para este o é para aquele. As razões são muitas. O fato é que precisamos ouvir com respeito a todos, sem por isso deixar de exprimir juízos de valor ou saber que aquele autor pensa de modo diferente do nosso e está ideologicam ente distante de nós. Até nosso mais feroz adversário pode sugerir-nos idéias. Isso pode depender do tem po, da estação ou da hora. [...] M as com este episódio aprendi que, quando querem os fa zer um a pesquisa, não podem os desprezar nenhum a fonte, e isto por princípio. A í está o que chamo humildade científica.
27. Como se faz uma tese, cit., p. 112.
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140 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Diante do argumento de autoridade, a melhor arma é a boa pesquisa e o aprofundamento na matéria, pois, se há opinião diversa, muito provavelmente outra autoridade a haverá articulado. O valor da manifestação magister dixit, como se pretende haver provado, é substancialmente forte na argumentação, mas não absoluto.
Nada contra os clássicos. Mas...
Não se incomode o leitor com o excesso de críticas que são lançadas ao argumento de autoridade. Sempre se reforça que não se diz que ele valha pouco, muito ao contrário: procuramos atribuir a ele seu devido valor, e para tanto é necessário critério. Pois agora, então, observa-se um erro muito comum em nosso discurso forense, que merece alguma censura: o excessivo gosto por citações clássicas ou de autores antigos, sem o devido critério.
Imagine-se que Tício, hoje, vá ao médico. Este diz a Tí- cio que precisará submeter-se a uma cirurgia, e, claro, nosso personagem não gosta nada da notícia. "Uma intervenção, em mim?", questiona ao médico, assustado. O doutor, então, percebendo o medo em seu paciente, olha-o fixamente nos olhos e assenta: "Não se preocupe, Tício. Não é uma cirurgia arriscada. Nela utilizarei a melhor técnica cirúrgica, idêntica à que utilizavam os médicos do século XVII. Pode confiar."
E de se achar que o médico quer matar Tício do coração, não? Como utilizar técnica do século XVII, há tanto ultrapassada? Tício gostaria de ouvir que nele fosse utilizada a técnica cirúrgica mais moderna, o último grito em tecnologia médica. Do mesmo modo, se Tício fosse à concessionária de veículos escolher seu "carro zero", certamente não gostaria de ouvir um vendedor dizer que seu carro novo tem a mesma tecnologia de motor que um veículo da década de 1960, por mais apaixonado que seja ele por um Ford V-8,
ARGUMENTO DE AUTORIDADE 141
desses que não se fazem mais. Em sua compra, Tício gostaria de comprar o carro mais moderno. Natural.
Pois o contexto jurídico - mudando o que deve ser mudado - muitas vezes aproxima-se muito da nossa historinha do médico. Quantas vezes o advogado ou o juiz não gosta de citar clássicos, absolutamente desatualizados, como se neles houvesse assertivas pertinentes a nosso Direito atual. Citam-se excertos de autores que jamais conviveram com nosso sistema legislativo, grandes nomes de juristas que, a seu tempo (note: a seu tempo) foram vanguarda jurídica e hoje não são mais que história. Editoras entopem o mercado com reedições de obras escritas séculos atrás, sem nenhum prefácio ou atualização que indique que aquela literatura tem representatividade histórica no Direito, mas é ultrapassada. Os textos de algumas obras, chamadas clássicas, se não interpretados dentro de seu contexto temporal, trans- formam-se em literatura recheada de preconceitos e falta de técnica.
Se o Direito é uma ciência, evolui e aprimora-se como as demais. O que há de mais moderno é mais aprimorado, o que não significa dizer que todo texto juridicamente novo seja uma maravilha.
Veja-se: quando um estudante constrói um trabalho científico (dissertação de mestrado, tese de doutorado), sempre faz um escorço histórico do instituto que deseja analisar. E por que o faz? Para que possa citar cada autor que achou em sua pesquisa em seu contexto histórico, dando a ele seu devido valor. Se assim não o fizer, poderá cometer grandes equívocos científicos.
Mas nosso tema, aqui, não é em regra o trabalho científico, mas a argumentação em si. Esta raramente abre espaço para uma criteriosa evolução histórica, daí o risco de citar os clássicos. Não se pode formular como dogma a im- possiblidade de que autores antigos ou clássicos venham a compor um discurso suasório, mas sua utilização como argumento de autoridade requer cuidados: que apareçam em seu contexto.
Em outras palavras, na argumentação magister dixit uma citação atualizada pode valer muito mais que invocar lições que vêm fora de seu tempo.
Como diz a máxima latina, "Amicus Plato, sed magis amica veritas"28.
142 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
28. Gosto de Platão, mas prefiro a verdade.
Capítulo VIII
Argumento por analogia: o uso da jurisprudência
A regra da justiça impõe que se concedam soluções idênticas para casos essencialmente semelhantes. Mais per- suasiva a analogia quanto mais estreita a proximidade entre o caso concreto e o paradigma.
A analogia e a ilustração
O argumento por analogia é aquele em que se transita de um caso concreto a outro, arrazoando-se que, devido ao fato de serem ambos os casos semelhantes em alguns aspectos, são também semelhantes em outros mais específicos1.
Vejamos o exemplo abaixo, de texto de Chico Buarque2:
Oh, pedaço de mimOh, metade exilada de mimLeva os teus sinaisQue a saudade dói como um barcoQue aos poucos descreve um arcoE evita atracar no cais.Oh, pedaço de mimOh, metade arrancada de mimLeva o vulto teuQue a saudade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu.Oh, pedaço de mimOh, metade amputada de mim
1. Cf. WESTON, Anthony. Las claves, cit., p. 47.2. Ópera do malandro, pp. 171-2.
144 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Leva o que há de ti Q ue a saudade dói latejada É assim como uma fisgada No membro que já perdi.
Na conhecida letra, para enunciar a dor causada pela saudade, o autor utiliza metáforas e comparações, demonstrando semelhanças entre aquele sentimento e as imagens por ele criadas. A dor da perda é muito bem revelada pela imagem daquele que arruma o quarto do filho que já morreu, ou da fisgada no membro que já perdi. Condições poéticas à parte, é certo que o enunciador tem expressivo recurso a seu favor, transmitindo sua mensagem com força que jamais alcançaria se não se utilizasse dessas imagens.
Com as semelhanças havidas entre, de um lado, a saudade e, de outro, as imagens ali destacadas, pode-se dizer que o autor persuade a respeito da intensidade da dor que sente, o que era, finalmente, sua intenção. Tal como no texto abaixo (que tem cunho argumentativo), a imagem, criada pela descrição lingüística, seduz muito mais que qualquer outra explicação que se possa conceber a respeito do tema que se desenvolve:
Anoiteceu e faz frio. M erde, voilà Yhiver, é o verso que, segundo Xenofonte, cabe dizer agora. Aprendi com ele que palavrão em boca de m ulher é como lesma em corola de rosa. Sou mulher, logo, só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se possível, fazendo parte de um poem a.’
O ser humano raciocina muito pela semelhança, pela analogia. As comparações são sempre constantes, na conversa do dia-a-dia, na exemplificação (ainda que o exemplo seja uma questão um pouco mais específica), e, nesse contexto, o argumento a simili, por analogia, assume papel relevante em qualquer discurso suasório.
3. TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile verde, p. 35.
ARGUMENTO POR ANALOGIA 145
No contexto jurídico fazemos uma distinção entre a analogia propriamente dita e o exemplo e a ilustração, sendo a primeira mais específica, tratada neste capítulo. No próximo, abordamos exemplo e ilustração, também relevantes.
No discurso judiciário, o argumento por analogia assume relevância ainda maior, porquanto tem-se como regra evidente a de que o fundamento da justiça é o de tratar de maneira idêntica situações essencialmente semelhantes.
Jurisprudência: analogia e autoridade
A jurisprudência representa fonte do Direito, como construção contínua de entendimentos pelo Poder Judiciário. Sua utilidade repousa principalmente no princípio da eqüidade, porque a justiça deve transpor resultados equivalentes a casos que, em essência, sejam semelhantes.
O uso da jurisprudência transforma-se em argumento a simili (ou por analogia) na medida em que determinado julgado é utilizado como parâmetro ou paradigma para o resultado que se pretende alcançar. Abaixo temos um exemplo desse tipo de argumento:
Ao órgão acusatório, que é, por definição, parcial, não se pode dar o poder de, por intervenção única sua, determinar a prisão processual, pelo simples acréscimo de qualifica - doras ao homicídio, antes de qualquer apreciação maior - e imparcial - do Poder Judiciário.
Nesse sentido, colocar-se ao talante apenas da acusação a capitulação legal, e, por via de conseqüência, chegar-se à prisão processual obrigatória, representa total ilegalidade. Por isso, as decisões reiteradas do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a capitulação por crime hediondo não vincula a prisão processual, a exemplo do quanto assentou o ministro Celso de Mello, no recente julgamento do H abeas Corpus nu 80.719-4, que se recorta em trecho:
"[...] Entendo - tal com o pude enfatizar na decisão que concedeu a medida liminar - que os fundamentos subjacentes ao ato decisório emanado da ilustre magistrada da Co
146 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
marca de Ibiúna/SP, que decretou a prisão cautelar do ora paciente, conflitam com os estritos critérios jurisprudenciais consagrados pelo Supremo Tribunal Federal, em tema de prisão preventiva.
Impende assinalar, desde logo, que a configuração jurídica do delito de homicídio qualificado com o crime hediondo não basta, só por si, para justificar a privação cautelar da liberdade individual do réu.
O Supremo Tribunal Federal, a esse propósito, tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta a justificar, só por si, a privação cautelar do status libertatis daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado.
Esse entendim ento vem sendo observado em sucessivos julgamentos proferidos no âmbito desta Corte, ainda que o delito imputado ao réu seja legalmente classificado como crime hediondo (HC n? 80.064-SP , rei. Sepúlveda Pertence, RHC n.° 71.954-PA , rei. Min. Sepúlveda Pertence, RHC n? 79.200-BA, rei. Min. Sepúlveda Pertence) [...]."
É reiterado o entendimento, tanto no Supremo quanto nesse Superior Tribunal, que a lei dos crimes hediondos não pode sobrepujar o princípio da presunção de inocência, sob pena de utilizar-se a capitulação da denúncia para, parafraseando o ministro Celso de Mello, presum ir-se a culpabilidade do réu, assim antecipando-lhe a prisão penal, o que seria construir, per saltum, ilegal antecipação, por óbvio aleatória, do veredito do órgão competente para julgar o mérito da ação, neste caso um Conselho de Sentença popular, que nem sequer está formado.
Recortando o julgado, o argumentante, sem necessitar enunciar - porque essa é a força do próprio argumento a si- mili - , requer a seu caso tratamento idêntico àquele que invoca como paradigma: se o ministro do STF, em julgamento de um processo específico, decide que a capitulação legal não é suficiente para a decretação da prisão cautelar, esse princípio deve alcançar todos aqueles que se encontram nas mesmas condições, caso contrário o Direito se afastaria de seu ideal maior, a isonomía.
Essa analogia é, portanto, implícita ao recorte da jurisprudência na argumentação e muito segura, na medida em
ARGUMENTO POR ANALOGIA 147
que não é coerente que, com um mesmo ordenamento jurídico a aplicar, situações idênticas sejam submetidas a tratamentos diversos. Juridicamente, é claro, pode-se defender que a independência funcional do julgador permite que ele faça de cada situação a interpretação que bem entenda, desde que devidamente arrazoada e, assim, justificável do ponto de vista do Direito e da persuasão racional. Mas o argumento da jurisprudência, que se recorre da similitude dos casos, vai além: o desejo, inatingível, da homogeneidade da aplicação do Direito, o que representa, antes de tudo, segurança aos jurisdicionados. O anseio por essa segurança é reconhecido em nosso ordenamento jurídico, a partir da própria Constituição Federal, que prevê (art. 105, III, c) a solução, pelo Superior Tribunal, do dissídio pretoriano, ou seja, a divergência entre os tribunais.
Mas a jurisprudência reveste-se também, em certa medida, da força da autoridade. Não a autoridade jurisdicional apenas, mas a autoridade científica, tal qual exposta na lição anterior, do argumento ad verecundiam. Ela tem também, como fator suasório, a presunção de que o relator do julgado invocado como paradigma bem conheça o Direito (jura novit curia) e, como conseqüência, tenha pouca probabilidade de construir um mau pronunciamento em questões jurídicas.
Conforme se sabe, tem em tese maior efeito suasório um julgado de um tribunal superior que a decisão de um único magistrado de primeiro grau de jurisdição, porquanto presume-se (como ocorre quase sempre em matéria de argumentação) que o arcabouço científico-jurídico do ministro do Judiciário seja maior que o do magistrado em início de carreira.
Se a jurisprudência tem como um de seus prismas o argumento magister dixit, especialmente quando recortada dos tribunais superiores, está ela, como argumento, atrelada às condições de validade elencadas na lição anterior, para o pronunciamento ad verecundiam. Mas prevalece a analogia.
148 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Uso da jurisprudência: quantidade e qualidade
Como ocorria com o argumento de autoridade, o uso do argumento a simili pode seguir regras para maior eficiência. Cumpre esclarecer que essas regras, antes de buscarem a lógica formal, continuam na esteira do quanto nos propusemos desde o início deste trabalho: preocuparmo- nos com a persuasão do discurso. E o discurso persuasivo é o discurso sólido, aquele em que se afastam as falácias, os enganos, seguindo-se um percurso que, embora possa sempre ser contestado, faz-se coerente.
A analogia, conforme ensina Perelman4, estabelece uma proporção: a está para b, assim como c está para d. Essa proporção é assimétrica, portanto distingue-se da matemática, em que são sempre estabelecidas proporções de simetria, de valores iguais, entre elementos homogêneos. Chama- se, na lógica informal, foro a relação conhecida (entre c e d, no exemplo) e tema a relação menos conhecida, objeto da discussão.
Pela assimetria dos valores existentes na proporção estabelecida pela analogia (como relacionar, diretamente, para nos utilizarmos do primeiro exemplo deste capítulo, figuras tão díspares como a dor da saudade e uma fisgada no membro que já se perdeu?), requer esse tipo de argumentação uma série de idéias menores, que comprovem a proporção existente em campos diferentes5.
Mesmo que alguns leigos possam sustentar o contrário, não existe em nossos foros dois processos, dois casos idênticos. Melhor para nós, operadores do Direito, pois se assim não fosse a inteligência humana seria dispensável
4. Cf. Lógica jurídica, pp. 176 ss.5. "O que faz a originalidade da analogia e o que a distingue de uma
identidade parcial, ou seja, da noção um tanto corriqueira de semelhança, é que em vez de ser uma relação de semelhança, ela é uma semelhança de relação. E isso não é um mero trocadilho, pois o tipo mais puro da analogia se encontra numa proporção matemática..." (CRAZALS, M. Apud PERELMAN, C. Tratado, cit., p. 424).
ARGUMENTO POR ANALOGIA 149
dos procedimentos, uma vez que o computador ocuparia o lugar do homem no mero processamento de dados.
A essência da analogia é a aproximação desses valores díspares, para que seja eficiente, persuasiva ao interlocutor a proporção que se pretende fixar. Daí que a qualidade dessa comparação de distintos importa muito mais que sua quantidade.
Quando tratamos, então, da citação da jurisprudência como argumento, temo-na por dois prismas diversos: se compreendida como persuasão ad verecundiam, como explicamos no momento oportuno, é muito valorosa que sejam, em uma argumentação, expostos vários julgados, de tribunais diversos, para demonstrar que um julgado, que se elege como opinião de autoridade, tem apoio em posicionamento de autoridades diversas. Busca-se então a idéia de unanimidade do posicionamento defendido, na mesma medida em que se persuade o julgador, qualquer que seja, que decidir de forma diversa seria ir contra uma maioria, o que nunca é recomendável, ao menos no senso comum.
Entretanto, ainda que se possa firmar o entendimento de que é relevante encarar o uso da jurisprudência como argumento de autoridade, o excesso de julgados recortados em um discurso judiciário (como se vê em petições que abusam do utilíssimo recurso de repertório de julgados armazenados em CD-ROM) raramente contribui para a persuasão. Em um auditório mais selecionado, sabe-se que o trabalho intenso do Poder Judiciário produz decisões em grande número, e então não é bem a quantidade que representa fator de convencimento no recorte da jurisprudência.
Ela persuade pela autoridade do órgão prolator (tribunal mais respeitado - como argumento de autoridade), por sua atualidade e pela proximidade entre foro e tema, em que estas últimas características (atualidade e proximidade) são valores intrínsecos ao argumento por analogia.
150 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Segue: valor e uso da jurisprudência
Portanto, o melhor elemento do uso da jurisprudência é o nível de proximidade entre foro e tema, ou seja, entre o caso que se discute e a solução que a ele se pretende dar, refletida em um acórdão paradigma. Isso serve de alerta aos argumentantes mais afoitos, que muitas vezes constroem discursos escritos repletos de recortes de ementas, que pouco contribuem para a efetiva persuasão do destinatário.
As ementas são resumo do julgado, que geralmente vêm em letras em destaque, nos acórdãos dos tribunais. Permitem, e bem, a pesquisa para o interessado, mas raras vezes são eficientes no discurso argumentativo em si, salvo em casos especiais. Em geral a ementa de julgado toma-se recurso persuasivo em dois casos diversos: quando o julgador é leigo e não se interessa por entender mais que o perfunctório necessário para sua decisão (no caso de questões eminentemente jurídicas no tribunal do júri) ou quando a questão é tão incontroversa que não merece, na coerência do discurso, maior aprofundamento, reservando-se então mais espaço para temas de menor certeza ao interlocutor.
Mas um ponto discutível para aquele que usa a jurisprudência é a questão de sua extensão. Se, pois, desaconselha-se o uso de meras ementas e recomenda-se gravemente a comprovação da estreita relação entre tema e foro, ou entre caso concreto e acórdão paradigma, entende-se que o julgado paradigma deva ser transcrito na íntegra, ou, ao menos, em longo trecho seu, para que se possa compreender a relação de paralelismo atinente a esse tipo de argumento. Essa idéia seria contraposta a uma grave recomendação dos professores de redação, os quais sempre aconselham a que se evitem longas transcrições.
Realmente, qualquer transcrição ou citação ipsis litteris conta com mínima atenção do leitor. Todo interlocutor pretende originalidade, e, por assim dizer, não gosta de ter o trabalho de ler (ou ouvir) aquilo que o autor/argumentante não teve o trabalho de elaborar, mas apenas de copiar.
ARGUMENTO POR ANALOGIA 151
Imaginemos que um professor entre em sala de aula e diga aos seus alunos que, como seu livro-texto tem toda a matéria daquele dia exposta em detalhes, melhor do que ele poderia recriar em nova elaboração, poupar-se-á de dar uma aula convencional e passará, durante cinqüenta minutos, a ler o livro de sua autoria, conclamando a atenção dos estudantes. O que estes fariam? Certamente se distrairiam ou abandonariam a aula. Embora o conteúdo do livro seja o mesmo ou até melhor do que aquele que o professor poderia recriar em aula, a leitura da transcrição é desinteressante. Por isso toda citação longa é pouco recomendável. Todo ouvinte ou leitor merece a cortesia da originalidade.
Dosar a citação na jurisprudência é mais um trabalho de coerência argumentativa. Se muito curta, ela perde seu valor de analogia e não persuade o interlocutor. Se muito longa, desestimula a leitura ou a atenção do ouvinte, e, por mais detalhada que seja, cairá no vazio (muito provavelmente, no texto escrito, o leitor não terá o menor escrúpulo de pulá-la, partindo para o próximo texto).
O mais recomendável, no uso da jurisprudência, é que se escolha o acórdão paradigma e este seja transcrito em detalhes, o quanto for imprescindível para a comprovação do paralelismo. Mede-se essa necessidade pelo nível de aproveitamento que as idéias copiadas têm no próprio discurso do argumentante, antes ou depois da citação.
Combatendo o argumento de analogia
Para combater o uso da analogia deve-se desconstituir ao ouvinte o paralelismo entre foro e tema que a parte contrária apresenta.
Pode-se assim proceder ao cobrar-se da parte contrária demonstração eficiente do paralelismo que pretende comprovar. Quem recorta jurisprudência em ementas raramente faz a proximidade suficiente que devem ter caso e paradigma para que se aceite o julgado. Todavia, essa ausência
152 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
de requisitos suficientes tem de ser mostrada àquele que deve ser persuadido, caso contrário, por inércia da argumentação oposta, a analogia acaba se perfazendo em eficiência.
Também é possível, em busca da desconstituição daquele paralelismo, demonstrar cabalmente a própria disparidade entre foro e tema. E isso não é nada raro: há excesso de recortes de julgados que se aproximam tão pouco do efetivo conteúdo do argumentante que não é difícil demonstrar que há um mero tangenciamento ou até mesmo contradição entre o julgado citado e a tese que se pretende fazer prevalecer. Se, por exemplo, um autor recorta uma jurisprudência que diz: "Age em estado de necessidade quem, sem maus antecedentes, necessitando de calçados, subtrai um par em estabelecimento comercial"6, traz efetivamente poucos dados para permitir a analogia, pois não informa se o necessitar de calçados do julgado significa não ter o que calçar ou então necessitar de calçados mais novos, em melhores condições. Se o julgado, na íntegra, esclareceu ser lícita a primeira interpretação e o retor pretendia comprovar a segunda (calçados mais novos), evidentemente estabeleceu falha em sua argumentação.
O último meio de se combater o argumento a simili é achar outra analogia que possa fazer frente à primeira. No exemplo da jurisprudência, vários julgados existem, defendendo posicionamentos díspares, e os bons repertórios já preparam suas antíteses. É meio desgastado, porém útil, indicando que também deva ser hora de realçar o aspecto a verecundiam de que se reveste a jurisprudência.
6. TACrim - SP - Ap. Crim. Rei. Nelson Schiesari - JUTACRIM 68/387.
Capítulo IX
Exemplo, figuratividade e ilustração do discurso
O recurso à figuratividade (exemplos e ilustrações) pode ser fator de eficiente aproximação ao ouvinte, desde que conhecidos seus limites na progressão argumentativa. Uma figura inserta no discurso pode ficar muito mais presente ao interlocutor que um conceito ou uma progressão lógica alinhavada como argumento.
O exemplo
O argumento pelo exemplo é largamente conhecido. É comum que, nas discussões que mais envolvem o senso comum, os discursantes procurem exemplos. Certa vez um aluno bem observou: "Preste atenção às conversas que saem num bar, quando os argüentes já têm o pensamento turbado pelo álcool; o que mais se ouve, nas exaltadas argumentações, é o famoso 'por exemplo...'"
Os quase ébrios retores de botequim sabem, ou ao menos intuem, que o exemplo serve para confirmar uma regra e é efetivamente um excelente recurso para o convencimento, ainda que naquele ambiente esse resultado seja alcançado mais pelo tom de voz e pela disposição do ouvinte de manter ou não amigável o necessário diálogo. Mas o exemplo, bem colocado, funciona em grandes argumentações, como se pode ler no texto de Bernardino Gonzaga1:
Ora, a Inquisição equiparou-se a uma Justiça Penal, de sorte que naturalmente adotou os modelos que vigiam nos tribunais laicos. Eram métodos processuais que mereciam total beneplácito dos mais renomados juristas e que estavam
1. A inquisição em seu mundo, pp. 120-1.
154 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
de acordo com os costumes. O s hom ens que compunham a Igreja eram hom ens daquele tempo e não podiam deixar de subm eter-se às suas influências. [...]
Em todo o desenvolvimento da humanidade, até m uito recentem ente, as práticas repressivas sempre foram s e veríssimas. Cristo m orreu entre dois ladrões. Ao penalista não passa despercebido o fato e que dois hom ens, um dos quais aliás na última hora mostrou ter boa índole, sofreram o trem endo castigo da crucifixão, apenas por serem ladrões.
O procedimento dos tribunais inquisitoriais é, para a mentalidade atual, inaceitável. Mas, apesar disso, representou um abrandamento perante o que se passava nos seus congêneres do Estado. Não podemos julgar o que eles fizeram sem focalizá-los como órgãos condizentes com certo teor de vida, investidos de uma missão sobrenatural e social a cumprir, que se ocupavam de crimes a seus olhos gravíssimos e que terão agido, em regra, com zelo, equilíbrio e h onestidade.
A tese do autor, grosso modo, é a de que, se entendemos os procedimentos inquisitoriais hoje como inaceitáveis do ponto de vista penal e processual, em sua época eles representavam abrandamento da crueldade. Para isso, traz como forte argumento, maior, o fato de que os outros procedimentos criminais, até o fim da Idade Média, eram ainda mais draconianos. Na intenção de confirmar essa regra, apresenta um caso particular, a crucifixão de Cristo, ao lado de dois bandidos.
Cristo não aparece, ali, como modelo de conduta, porque não é esse o realce que faz o autor. Mas utiliza-se de fato, de conhecimento, pode-se dizer, de todo o público a que se destina o livro, ou seja, o bom ladrão e a grave pena que recebera. A regra é confirmada: não se pode dizer que o processo penal era brando e racional sequer sob as luzes do Império Romano, tendo em vista a reprimenda impingida aos ladrões: a morte com sofrimento.
O exemplo confirma a regra que se pretende provar. Se o exemplo encontra imediato feedback no leitor, como
EXEMPLO, F1GURAT1VIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 155
no caso da leitura do Evangelho, tanto melhor, porquanto sua aceitação (se perfeito o exemplo) é ainda mais imediata.
Exemplo é espécie de argumento que vai do fato à regra2. E, então, modo de argumentação diferente da analogia, porquanto esta compara dois casos para destes extrair uma pretensão ou regra final. O exemplo pode servir ora apenas como uma ilustração - como diremos mais adiante - , ora como efetivo meio de se comprovar regra útil ao discurso.
Para que um argumento desse tipo efetivamente comprove a regra ao leitor, é necessário que ele cumpra alguns requisitos.
Requisitos do exemplo
O exemplo exige que exista falta de consenso entre a regra que se pretende comprovar, caso contrário deixa de ser exemplo para ser mera ilustração, embora a linguagem corriqueira chame ambos pelo mesmo nome.
Assim como a ilustração, o exemplo é figurativo1, ou seja, apresenta um fato concreto e não apenas a relação entre conceitos. Por isso diz-se que é argumento que vai do fato à regra. Na denominação de Perelman, elemento lingüístico que fundamenta a estrutura do real.
A questão mais natural que se coloca a respeito do exemplo é se ele pode mesmo confirmar a regra. As ciências geralmente procuram, antes de formular uma regra qualquer, pescar uma série de exemplos distintos, para que se possa buscar uma generalização que evite a falácia. Veja-se como é formulado o exemplo no texto abaixo, conhecida (e brilhante) argumentação de Luis Fernando Ve- rissimo4:
2. Cf. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, pp. 181 ss.3. Vide Capítulo V.4. "O gigolô das palavras". In: O nariz e outras histórias, p. 77.
156 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas da gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. E screver bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer escrever claro não é certo, mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover... Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com gramática.)
A gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e a í é de interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela som bria gravidade que a gente nota nas fotografias em grupo dos m em bros da A cadem ia Brasileira de Letras é de reprovação pelo Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva.
Verissimo aproveita o consenso de que a gramática é o esqueleto da língua (argumento de senso comum) para desvirtuar a argumentação: o esqueleto, como imagem de estrutura, passa a ser imagem de morte, pois só predomina em línguas mortas5. Assim chega a seu exemplo principal, que se desenvolve contrario sensu, a confirmar sua regra: gramática não é essencial à comunicação. Exemplo: professores de latim são excelentes gramáticos, mas péssimos comunicadores.
Ao utilizar o exemplo dos professores de latim, o enunciador confirma sua regra. Claro que o tom humorístico do texto permite-lhe deixar de apresentar dados mais concretos, que mais pertenceriam à ciência, como uma pesquisa que demonstrasse que efetivamente os professores de latim mal se comunicam, mas o fato é que o exemplo foi persuasivo6.
5. Vide Capítulo XIII, em comentário sobre o mesmo texto, em relação à argumentação sofismática.
6. A seguir, Verissimo coloca-se também como exemplo, dessa vez positivo, a confirmar a mesma tese: "... E adverti que minha implicância com a
EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 157
Todavia, o exemplo que efetivamente confirma a regra, no discurso judiciário, deve ser mais que uma ilustração, que uma observação da realidade fugaz, hipótese em que será facilmente desconstituído. Para que o exemplo funcione como fator de persuasão eficiente, a principal recomendação é a de que venha seguido de vários outros, que possam confirmar a mesma regra. Nesse sentido, manifesta-se Perelman7:
Quando são evocados fenômenos particulares uns em seguida dos outros, mormente se oferecem alguma similitu- de, ficaremos inclinados a ver neles exemplos, ao passo que a descrição de um fenôm eno isolado seria tomada mais por uma simples informação.
Recomenda-se gravemente que se articule mais de um exemplo na argumentação, para que ele não se aproxime da mera ilustração, e possa vir a confirmar uma regra. Sem apresentar mais de um exemplo, como ressalta Weston8, o exemplo pode ser apenas a exceção que, como se diz no senso comum, existe para que a regra seja confirmada. E desse modo o exemplo surte efeito reverso.
O exemplo, como recurso à figuratividade, deve ser curto, pois se apresenta, como já tratamos em lição anterior, tal qual fuga ao eixo temático da lógica argumentativa, ainda que vá reforçá-la. No exemplo longo, o interlocutor pode, ao procurar compreender seus detalhes, perder a idéia de sua pertinência, no caso a relação entre a ilustração e a idéia
gramática na certa se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas - isso eu disse - vejam vocês, a intimidade com a gramática é tão dispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria."
7. Tratado da argumentação, cit., p. 400.8. "Um exemplo simples pode ser usado, às vezes, para uma ilustra
ção. O único exemplo de Julieta pode ilustrar os matrimônios júvenes. Mas só um exemplo não oferece praticamente nenhum apoio para uma generalização. Pode ser um caso atípico, a 'exceção que confirma a regra," (Las claves, cit., p. 35).
158 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
que se pretende provar. A coerência é preservada na argumentação que reforça a relação entre exemplo e regra, pois assim o orador ilustra seu texto com aquilo que realmente colabora para a persuasão. Veja o discurso abaixo, retirado de sustentação em plenário:
A acusação afirma que o réu deve ser responsabilizado pelo homicídio, admitindo que sua participação foi apenas a de vender a arma ao verdadeiro executor. Afirma que pouco importa se conhecia o motivo para o qual a arma s e ria usada, já que a venda era ilegal. Para tanto, apresenta o artigo 13 do Código Penal, considera-se causa a ação ou om issão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Sustenta a acusação, então, que, se a arma não fosse vendida ao executor, ele não poderia m atar a vítima, e portanto o resultado não teria ocorrido.
A regra que a acusação pretende fazer valer não é aceitável. Ora, se ela fosse verdadeira, um motorista de ônibus que transporta, dentre outras dezenas de passageiros, um executor de um delito, sem saber de quem se trata, deveria responder pelo evento, pois sem o ônibus o facínora não chegaria ao local do crime e assim não haveria o resultado. Claro, é necessário querer aquele resultado, conhecê-lo ou saber de suas possibilidades, ou então se regressará ao infinito.
O exemplo utilizado (o caso do motorista de ônibus) é curto, mas confirma a regra porque é retomado pelos elementos temáticos do discurso argumentativo, que a exibem com toda a sua pertinência.
É interessante notar no texto acima outro ponto importante da argumentação pelo exemplo: percebe-se que o argumentante utilizou um caso particular, mas não um fato; era algo hipotético, fruto de sua criação. Ora, para que se possa confirmar uma regra, o mínimo que se espera é que o caso particular apresentado seja verídico. O caso anterior não era verídico, mas funcionou no exemplo porque era extremamente verossímil, ou seja, trata-se de seqüência de fatos tão comum e corriqueira que o ouvinte não lhe cria a menor dúvida.
EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 159
Melhor o exemplo quando feito por fato notório. Nada pior que um exemplo de que o interlocutor duvide. O famoso "já aconteceu uma vez comigo" é volátil e banal como (agora sim) o papo de botequim que iniciou este capítulo. Os bons argumentos são notórios e eruditos, fatos de domínio público ou ao menos do público a que o texto é dirigido. Novamente, a intertextualidade.
Quando, no texto aqui recortado, ao dissertar a respeito da Inquisição o professor citou o calvário de Cristo, não se pode dizer que algum leitor ignore o exemplo, e por isso ele é efetivamente persuasivo. Fatos históricos dão ótimos exemplos, assim como elementos da realidade atual: o último crime amplamente noticiado, a situação atual dos países mais pobres, o golpe militar do país latino ocorrido na última semana.
O exemplo isolado e o exemplo subjetivo, que não ultrapasse os limites daquele que o profere, raramente confirmam uma regra.
Representatividade do exemplo
A questão principal do argumento pelo exemplo é saber se ele é capaz de confirmar a regra que se propõe. Se proponho como exemplo, real, o fato de fulano de tal, pobre e analfabeto, ter se tornado milionário achando um bilhete de loteria premiado ou sendo descoberto pela mídia e se transformado em um popstar, não posso apresentar a regra segura de que nossa sociedade dá a todos a oportunidade de alcançar excelente padrão de vida. Posso, isso sim, confirmar com esse exemplo que alguns têm muita sorte, ou que há casos interessantíssimos de grandes fortunas que surgiram do zero. Não mais que isso.
Pois todo exemplo tem seu nível de representatividade. Ele não pode extrapolar seus limites, ou seja, o alcance de determinada regra, pois, se assim o fizer, atingirá a falácia, podendo chegar às raias do absurdo ou do preconceito.
160 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Nesse contexto, o grave conselho de que o exemplo, salvo a hipótese de grande representatividade, não deve vir isolado de outros tipos de argumentos que confirmem a proposição trazida, a não ser se o nível de coerência o permitir, como temos sempre revelado, concedendo-se menor importância à regra proposta.
Falando em ilustração
O ouvinte trabalha com imaginação e, já dissemos, com um ritmo de interpretação dos elementos a ele lançados. Toda atenção, em certo momento, esvai-se, pois o homem tem como uma de suas misérias o cansaço e a conseqüente distração. O que se faz por demais abstrato cansa e dificulta o entendimento9.
O professor que leciona a matéria sabe que seu aluno se distrai depois de certo tempo de explicação, e o advogado do tribunal do júri tem conhecimento de que as duas horas que tem para a primeira sustentação não podem ser gastas integralmente na explicação do processo; é necessário variar, distrair.
Um dos modos de rapidamente distrair o auditório ou o leitor é a ilustração. A ilustração é a parte figurativa da argumentação que, sem se afastar do tema defendido, porque é intrinsecamente ligado a ele, fortalece-o, sem que necessariamente comprove uma regra. Vejamos como isso ocorre em Machado de Assis10:
Curto, mas alegre Fiquei prostrado. E contudo era eu, nesse tempo, um
fiel compêndio de trivialidade e presunção. Jamais o problema da vida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse
9. “Cito rumpes arcum, semper si tenum habueris" - Logo romperás o arco, se o mantiveres sempre teso.
10. Memórias póstumas de Brás Cubas. Capítulo XXIV, p. 62.
EXEMPLO, F1GURATMDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 161
dia m e debruçara sobre o abismo do Inexplicável. Faltava- me o essencial, que é o estímulo, a vertigem...
Para lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opiniões de um cabeleireiro, que achei em Módena, e que se distin- guia por não as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada que fosse a operação do toucado, não enfadava nunca. Ele intercalava as penteadelas com muitos m otes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor...
Não tinha outra filosofia. Nem eu.
Brás Cubas quer demonstrar a seu leitor que jamais se preocupara com a morte, porque lhe faltava o estímulo. Até aquele momento, não pensava esse ilustre personagem em questões filosóficas. Poderia descrever amplamente essa situação de ceticismo ou despreocupação com várias palavras, mas preferiu uma imagem. Descrevendo a figura do cabeleireiro de Módena e sua ocupação estrita com o trabalho, a ilustração transmitiu (está certo que com a arte descritiva machadiana), também como em uma analogia bastante imperfeita, mas muito eficiente, a pouca inquietação do personagem com a morte. Era esse o objetivo do texto.
No discurso machadiano, a imagem do cabeleireiro de Módena teve, então, dupla função: a didática, de facilitar o entendimento, o que traz por conseqüência direta o poupar de outras explicações mais enfadonhas, caso a imagem não ficasse arraigada diretamente no leitor; e a segunda função, também muito comum à figuratiuidade do discurso - a própria distração do leitor, que subjetivamente tem muito maior estímulo a imaginar a peculiar figura do cabeleireiro que a receber explicações objetivas ou técnicas sobre o estado de espírito do cético narrador-persona- gem. Aliás, essas duas características refratam-se no próprio título do capítulo, denominado "Curto, mas alegre". Curto porque a imagem do cabeleireiro tornou possível melhor coerência, dispensando o narrador de dizer mais a respeito de seu estado à época, e alegre porque, efetivamente, sabia ser inesperada e, assim, digna de humor a fi
162 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
gura de um barbeiro discreto e sem opiniões, o que é deveras raríssimo.
Talvez o mais importante de se perceber em relação à figuratividade ou ilustração do discurso é que ela, apesar de assemelhar-se ao exemplo e à analogia, que são argumentos mais complexos, não tem as mesmas pretensões. O exemplo do barbeiro lacônico de Brás Cubas não comprovou, à evidência, que os barbeiros são pessoas que têm pouca opinião a respeito do mundo, pois a generalização era impossível. Não era, portanto, exemplo no sentido estrito que a argumentação lhe confere, mas mera imagem. Todavia, de um ponto de vista mais abrangente, a importância daquela imagem no discurso pode ser por vezes maior que a de um exemplo ou analogia perfeita, sempre em estrita dependência com o leitor e o momento em que é produzido.
Ilustração e argumento
A importância didática e, por assim dizer, lúdica da ilustração, como vimos no exemplo de Machado, também está presente na argumentação. Mas a boa ilustração assume importância ainda maior quando utilizada com senso de oportunidade. Vejamos o fragmento de Juan Luis Lorda11:
Em outras épocas, especialm ente na imediatamente anterior à nossa, durante a Revolução Industrial, muitos trataram a natureza como se pudessem explorá-la indefinidamente, com o se não se gastasse ou não se estragasse. Esta mentalidade que ainda está espalhada na prática, em bora não tenha tantas manifestações externas, tende a con siderar a natureza como res nullius, isto é, como propriedade de ninguém; e relaciona-se com as coisas com uma avidez sem medida, tal como uma criança se relaciona com um bolo de chocolate.
11. Moral: a arte de viver, p. 98.
EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 163
Na comparação estabelecida pelo autor, a imagem do homem que se relaciona com a natureza como uma criança se relaciona com um bolo de chocolate ultrapassa os limites da compreensão e do divertimento. O leitor do texto já havia, obviamente, compreendido que o autor discursava sobre a consciência ecológica, ou mais propriamente sobre o trato do homem com a natureza, o respeito. A necessidade de freio ã avidez na relação homem-natureza for reforçada, e muito, pela imagem da criança que come o bolo, indiscriminadamente, com gula e sem pensar em guardar para depois. Não precisou entrar nesses detalhes, aliás, porque tudo ficou subentendido na força da imagem.
Essa ilustração, curta, tem força evidentemente persuasi- va. Sua função no texto, mais do que ser claro ou quebrar o ritmo filosófico que se desenvolvia, é aumentar a presença dos argumentos na consciência do ouvinte ou leitor. Percebe-se que, sem o acompanhamento dos argumentos temáticos que já se haviam desenvolvido, a comparação não surtiria nenhum efeito, até porque sequer seria compreendida. Mas a imagem que o ouvinte faz da criança e do bolo, após entender no discurso a crítica sobre a relação homem-natureza, retoma todos os argumentos anteriores de modo breve e claro.
Se uma pessoa fosse colocada para ouvir o texto inteiro de Lorda, talvez não se lembrasse do teor de todos os argumentos temáticos, mas certamente repetiria a figura, a imagem a que foi convidado a construir em sua mente - a criança e o bolo. Não se trata apenas de um truque de memória, mas um efeito persuasivo: guardando a ilustração, no momento em que ela foi transmitida, o ouvinte capta todos os seus elementos periféricos, o discurso que o levará à aceitação da conclusão que se lhe pretende impingir.
A ilustração, repita-se, não é tão criteriosa como o exemplo, porque não pretende credibilidade ou represen- tatividade, mas apenas alcançar o leitor para que ele aceite com maior ênfase uma idéia que conta com maior consenso, mas necessita ser reforçada e compreendida. E a compreensão é um elemento essencial no discurso, porque, en
164 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
quanto não existe o entendimento de uma idéia que deva ser fixada como premissa, o argumentante não pode passar ao elemento efetivamente persuasivo, que atinge aquilo que em seu discurso goza de menor consenso.
Daí que a ilustração é um excelente meio de estabelecimento de coerência no texto argumentativo. Ela prepara o ouvinte para a apreensão de outros argumentos mais convincentes, e o interlocutor pode trazê-la à tona toda vez que for preciso para estabelecer a imprescindível ligação com os elementos que compõem seu percurso. Observemos como, neste texto de Einsteín12, o elemento figurativo é imprescindível para a compreensão do discurso que ele inicia a desenvolver:
O que mostra o relógio?
Os conceitos físicos são criações livres do espírito humano e não são, como se poderia acreditar, unicamente d eterminados pelo mundo exterior. N o esforço que fazemos para compreender o mundo, assem elham o-nos um pouco ao homem que tenta compreender o mecanismo de um relógio fechado. Ele vê o mostrador e os ponteiros em movimento, ouve o tique-taque, mas não tem meio algum de abrir o relógio. Se for engenhoso, poderá formar alguma imagem do mecanismo, que ele tomará responsável por tudo o que observa, mas jamais estará seguro de que sua imagem seja a única capaz de explicar suas observações. Jamais terá condições de comparar sua imagem com o mecanismo real, e não pode imaginar a possibilidade ou a significação de tal comparação.
O discurso inicia-se com a comparação com a imagem do relógio, e nele continua, como figura essencial para sua compreensão. E patente que apenas a comparação não faz com que o leitor aceite as idéias elencadas, que continuam muito além do fragmento recortado, mas sem elas o inter
12. EINSTEÍN, Albert e INFELD, Léopold. In: IDE, Pascal. A arte de pensar, p p .143-4.
EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 165
locutor não atingiria o leitor do modo necessário para poder dar continuidade a seu discurso, sem lançar mão de explicações mais longas e, talvez, muito menos persuasivas.
Quem desperdiça o efeito suasório das imagens abre mão de grande parte da conquista de adesão de espíritos que é pretendida na argumentação. Os paradoxos, as antíteses, as comparações, as sinestesias são recursos corriqueiros na argumentação, que têm valor ilustrativo evidente e aproximam o texto da realidade do leitor, fazendo-o compreender e aceitar o que lhe está sendo proposto. Nos discursos orais, os momentos de ilustração, como em uma comparação, servem ao interlocutor em grande medida, pois é principalmente ao ouvir a ilustração que o ouvinte mais manifesta, em sua expressão corporal, o nível de aceitação do quanto lhe está sendo transmitido: ri, assente com a cabeça, abre mais os olhos ou permanece impassível. Esta última reação, claro, é mau sinal.
De qualquer modo, aquele que argumenta deve levar em consideração que tem a seu alcance opções expressivas diferentes. Tais opções passam pela escolha das ilustrações do texto, das diversas maneiras de se expor uma mesma idéia, de modo mais ou menos concreto, mais ou menos próximo da mente de cada leitor, de cada ouvinte. Essas opções de expressão refletem-se tanto na importância da ilustração (efeito da concretude)13 quanto na possibilidade de varia
13. Sobre o tema, comenta Elisa Guimarães: "O pressuposto de que há duas maneiras básicas e equivalentes de dizer as coisas - uma própria e outra figurada - levou a análise retórica a uma visão paradigmática do sentido figurado, pois este resultaria da substituição de dois significantes entre si, no caso das figuras. O problema das opções expressivas era ponto importante para a retórica e dizia respeito a um princípio mais geral compreendido no conceito aptum, ou, na forma grega, prepon, isto é, a virtude de harmonizar as partes de um todo, conferindo-lhes unidade. Por esse princípio, as várias formas de linguagem deveriam estar de acordo com as diferentes situações em que são empregadas: pessoa, lugar, gênero literário etc. Daí a necessidade de se ter à disposição um léxico amplo e diferenciado para atender aos múltiplos contextos" ("Figuras de retórica e argumentação". In: Retóricas de ontem e de hoje, p. 151).
166 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
ção semântica, com o acesso a um léxico diferenciado e criterioso, o que é tema do Capítulo XI.
Mau uso da ilustração
A ilustração representa o recurso à figuratividade, em que não se comprova uma regra específica, mas faz-se paridade entre o que existe de temático - as idéias defendidas- e as figuras nela enunciadas.
Ela é importante, mas seu uso é também restrito. Não se pode abusar da ilustração como não se pode abusar de nenhum argumento. Novamente, repetimos a regra que vale para todos eles: a ilustração deve ser consciente, por isso a estudamos. Em outras palavras, o discursante deve utilizar a ilustração respeitando suas limitações, conhecendo seu verdadeiro alcance.
O erro mais comum no mau uso da ilustração é ser ela empregada a título de argumento ad exempla. Neste tópico, ao início da explanação sobre argumento pelo exemplo, fez- se claro que o requisito do exemplo é que ele procure confirmar uma regra sobre a qual não há consenso, por isso necessita ser representativo. Contrario sensu, a ilustração somente pode ser utilizada se existem outros argumentos que trazem consenso à idéia que se procura ilustrar, pois a figuratividade por si só não convence ninguém, a não ser por pura emotividade, em casos excepcionais.
A ilustração, portanto, não é exemplo. É criação figurativa do autor e não pode ter a menor pretensão de confirmar uma regra, mas apenas de deixar claro aquilo que já é de conhecimento do leitor. Adoniran14 faz isso com maestria:
PafunçaO teu coração sem amor,Se esfriou, se desligou,
14. Transcrito de Meus momentos: Adoniran Barbosa, EMI Music.
Inté parece, Pafunça,Aqueles elevadorQue tá escrito "não fununça"E a gente sobe a pé,E pra me judiar Pafunça,Nem meu nom e tu pronunça.
Mas o argumentante não pode abusar das figuras de comparação, pois o leitor percebe sua imperfeição. A analogia entre Pafunça e o elevador que não "fununça" é frágil, se colocada do ponto de vista lógico, ainda que informal. Bastante persuasivo, reconheça-se, mas não funciona como exemplo, à ausência de regra a ser confirmada.
Quando o argumentante abusa da ilustração, constrói discurso inconsistente. O ouvinte está acostumado a acei- tá-la apenas como reforço, mas não como razão em si mesma. Ademais, se o exemplo já deve ser curto, por se tratar de figuratividade, a ilustração deve ser mais sucinta ainda. O prolongamento da ilustração no texto argumentativo desvia o leitor do raciocínio persuasivo e lhe desfavorece a coerência, como já analisamos com outros argumentos.
Tendência atual da figuratividade
A proposta deste livro, como frisamos desde o início, é a de investigar os métodos atuais de persuasão. Isso importa dizer que não voltaremos a uma retórica antiga, como tantos fazem, revisitando apenas os grandes clássicos - sempre importantíssimos - da Antiguidade, pois seu efeito prático, para esta proposta, não seria tão representativo; tal proposta, todavia, tampouco importa em nos afastarmos de instrumentos teóricos de grande valia.
Retoma-se essa proposta porque a figuratividade é a grande tendência de nossos discursos atuais, pois a articulação temática do discurso hodierno tem pedido cada vez mais a ilustração. As crônicas que se vêem nos jornais são
EXEMPLO, FIGURATMDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 167
168 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
textos de conteúdo eminentemente argumentativo, pois defendem uma tese essencial, mas não dispensam uma história, figurativa, que inicia e termina o texto. Se não houvesse essa história inicial certamente o destinatário se desinteressaria de lê-la; o recurso de que se utiliza o escritor, para defender uma idéia e ao mesmo tempo atrair para a leitura, é o de inserir a figuratividade no texto, iniciando-o, por exemplo, com a narrativa de um fato que ocorrera com ele mesmo. Os ensaios, por seu lado, expõem questões por vezes de cunho científico ou filosófico, mas fazem predominar o estilo15, não raro com recursos lúdicos, porque caso contrário a leitura toma-se desinteressante. Assim, o texto exposi- tivo-argumentativo mescla-se a modernos recursos literários, na tentativa de livrar-se do enfadonho.
Em obra publicada sobre redação, defendemos gravemente que não se deve buscar a literatura no discurso ju rídico, mas deve-se utilizar dos recursos necessários para convidar à leitura ou à audição atenta do discurso, mesmo aos que tenham constitucional obrigação de apreciar todos os pedidos relacionados a possível lesão ou ameaça a direito.
Por isso recomendamos o uso do texto figurativo, da ilustração no discurso jurídico, dentro de seus estreitos limites, como fixado no tópico anterior. E a saída que o jornalismo e a literatura científica e filosófica encontram na crônica e no ensaio e que, embora não sejam gêneros novos e possam ter tipologia pouco definida, representam efetivamente uma tendência. Ora, se é atraente ao interlocutor, é eficiente argumento.
Não se pode defender a banalização que a mídia oferece a seu discurso geral: notícias curtas, imagens substituindo palavras, aversão a qualquer percurso mais aprofundado ou raciocínio logicamente arquitetado com alguma com
15. Cf. ÁLVAREZ, Miriam. Cuademos de lengua espanola, p. 40: "El ensa- yo, por tanto, queda definido como vehículo de ideas, intentando siempre (como senala su etimologia) fijar su identidad entre lo rigurosamente científico y el predomínio de lo estético."
plexidade. Mas pode-se dizer que no Brasil o discurso jurídico é capaz de flexibilizar-se tanto em linguagem - como será exposto ao tratarmos do argumento de competência lingüística - como no competente uso da figuratividade.
Discussões jurídicas fechadas, que parecem discursos prontos, fazendo da argumentação nos processos apenas uma alternância entre doutrina e jurisprudência (às vezes tão pouco pertinentes), dão lugar, em nome da sobriedade, somente à pobreza do discurso e ao desinteresse do interlocutor, que muitas vezes pula leitura de longos trechos de textos de petições, e com todo o direito, pois já sabe seu conteúdo. Exemplos, ilustrações e pequenos trechos narrativos são um modo de tornar o competente discurso jurídico atraente e adequado, ainda que seja necessário ousar.
Mas que (bom) argumentante não é ousado?
A imagem e sua importância: a questão da presença
Anteriormente afirmamos que as ilustrações têm o poder de aumentar a presença de algum tema importante na mente do interlocutor.
É de Perelman a lembrança de um relato da cultura oriental que interessa ilustrar neste tópico. Narra que um rei via passar, diante de si, um boi que seria levado a imo- lação, em certa cerimônia presidida pelo monarca. Sentiu piedade do animal e assim, de imediato, ordenou que não o matassem, mas o substituíssem por um carneiro. Posteriormente, o monarca foi indagado sobre o motivo da substituição. Sua resposta foi simples: mandara salvar o boi porque o vira. Como não viu o carneiro, seria ele o sacrificado.
O relato serve a Perelman para demonstrar que "a presença atua de modo direto sobre nossa sensibilidade". Quando argumentamos, selecionamos elementos da realidade que devemos fazer presentes à mente de interlocutor.
EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO 169
170 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Quando o promotor de justiça, em plenário, mostra aos jurados a fotografia do cadáver da vítima, transfigurado, pretende que essa imagem se torne presente àqueles que estão encarregados da decisão. Claro, todos os jurados que saibam estar julgando um crime de homicídio consumado concluem pela existência inequívoca de um cadáver, e, muito provavelmente, se invocados a imaginar o corpo sem vida do vitimado, não formulariam imagem muito diferente da que lhes é mostrada pela acusação. Mas o promotor bem sabe que, ao mostrar a fotografia, ela se faz presente.
Não é necessário raciocínio muito elaborado para comprovar que uma guerra entre nações é praticamente irracional, mas a foto da capa de jornal que mostre uma mãe chorando ao ver o lar e a família dizimados por um ataque militar; ou a imagem de uma criança correndo nua, fugindo das armas químicas; ou aquela imagem do oriental que, sozinho, faz parar um comboio de tanques de guerra em protesto contra a ditadura em seu país; ou o disco do cantor americano que traz como tema o regime de segregação racial sul-africano - todos comovem o mundo: fazem a realidade, que existe independentemente da ilustração, presente ao interlocutor. Motivam uma reação mais forte de todos os cidadãos. Como o olhar do boi tornou presente a crueldade do sacrifício ao rei que conduzia a cerimônia.
Por isso a argumentação pode ser encarada também como a arte de tomar os elementos mais importantes presentes na mente do leitor. Não se trata apenas de imagens visuais, embora seja inegável que elas tenham maior poder, como ilustração, de atingir a mente do ouvinte. Um recurso lingüístico, uma citação literária, um toque de humor, uma fotografia, os documentos que são juntados, embora possam dizer o que já se sabe (existe uma vítima de homicídio, o sacrifício é cruel, a guerra é injusta, a segregação racial é inaceitável...), podem, sem que o interlocutor note, aumentar-lhe a presença de determinado argumento e, assim, torná-lo preferível a um arrazoado da parte contrária, o qual,
EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E iLUSTRAÇÃO DO DISCURSO 171
ainda que correto, não se encontra tão arraigado no interlocutor no momento de tomar sua decisão.
Faça, leitor, esse pequeno exercício: quantas vezes você não ficou influenciado ou comovido não por dados estatísticos da realidade, mas por pequenas cenas, imagens ou máximas criadas pela ficção de um escritor ou diretor de cinema, captadas pelas lentes de um fotógrafo ou ditas por um cidadão comum em um momento de especial inspiração? Por que, então, temer que seu interlocutor utilize esses recursos, por exemplo, anexando aos documentos de uma peça uma importante fotografia, acreditando estar se afastando do quanto seja "jurídico"?
Com boa dose de comedimento, as imagens e as ilustrações podem ser recurso muito eficiente no percurso discursivo.
Conclusão
O exemplo confirma uma regra, e por isso é submetido a condições de validade; já a ilustração tem outros atrativos (como ser didática, aumentar a presença de outros argumentos na mente do leitor, fazer pausa em discussão que se torna enfadonhamente temática, permitir a retomada após explicações paralelas ou mais aprofundadas etc.), mas não consegue confirmar nenhuma regra, pois não tem re- presentatividade.
Ambos são figurativos e parecem muito próximos, mas têm funções verdadeiramente distintas, que não podem ser confundidas.
Para combater o exemplo, o melhor é atacar sua repre- sentatividade, tratando-o como caso isolado, o que não é raro. Assim, achar um contra-exemplo, ou seja, um caso diferente que não confirme a regra, é o melhor meio de fazê-lo.
A ilustração não necessita combate, pois é apenas um recurso retórico, que pode ceder diante de argumentos mais sólidos. Apontar a ilustração utilizada pela parte contrária
172 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
como mero recurso didático, sem nenhum compromisso com a verdade ou com a coerência lógica, pode ser também útil, em um ou outro caso. Se a ilustração é utilizada como se fosse exemplo, por erro ou malícia da parte contrária, pode-se, então, apontar sua falta de poder para confirmar qualquer regra, como já é sabido.
Capítulo X
Estrutura lógica e argumento: a fortiori, ad absurdum e ridículo
Alguns tipos de argumento, porque constituem raciocínios comuns no Direito, fazem-se típicos do discurso judiciário e, portanto, são muito persuasivos nesse contexto, se enunciados com coerência.
O argumento jurídico
Não se pode dizer que exista um argumento jurídico propriamente dito, porque, como meio lingüístico que busca a persuasão, todo tipo de argumento pode ser utilizado no discurso forense. Entretanto, há argumentos criados e fomentados com maior intensidade no discurso judiciário, seja por se relacionarem ao trabalho probatório, seja por se fundamentarem em princípios jurídicos, da interpretação da norma.
O argumento de autoridade e o argumento a simili tinham também sua especificidade no discurso judiciário, mas nesta lição procuramos agrupar técnicas argumentati- vas um pouco mais específicas e também usuais. Os raciocínios contrario sensu, a fortiori e ad absurdum são corriqueiros do discurso judiciário.
O argumento contrario sensu
Tem como principal fundamento o conhecido princípio da legalidade, que em nossa Constituição encontra-se no inciso II do artigo 5?: "Ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei."
174 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Sua origem como argumento, no âmbito judiciário, está na invocação ao interlocutor de que, se a norma jurídica prescreve uma conduta e a sua transgressão uma sanção (direta ou indiretamente), devem-se excluir de sua incidência todos os sujeitos que não sejam alvo literal daquele preceito. Dessa maneira, se o artigo 29 do Código Penal dispõe que "quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas...", tem-se, contrario sensu, que quem não concorre para o crime não pode incidir nas suas penas.
O argumento contrario sensu (de interpretação inversa) não é utilizado apenas para interpretar dispositivos legais, pois ele pode ser articulado quando afirmações em sentido inverso são invocadas em favor da tese que o argumentante precisa comprovar. É usual o raciocínio contrario sensu, como forma de persuasão, no aproveitamento da doutrina e da jurisprudência, quando tratam de casos distintos, de sentido oposto à pretensa analogia. Assim, se a jurisprudência afirma ser lícita a prisão cautelar quando houver fortes indícios de autoria, pode-se defender, contrario sensu, que, à ausência desses fortes indícios, a prisão cautelar torna-se ilegal. Assim também no exemplo abaixo:
A testem unha afirmou em plenário que, porque não tivera aula naquela noite, chegara cedo a casa. Disso infere- se, contrario sensu, que era seu costum e chegar tarde a casa, nos dias de aula.
Entretanto, a validade do argumento contrario sensu deve ser aferida caso a caso, pois não raro ele pode tender à falácia, sendo o que torna seu poder de persuasão muito menor. Veja como isso ocorre no caso abaixo:
O artigo 27 do Código Penal dispõe que os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis. Assim, contrario sensu, os maiores de dezoito anos são criminalmente responsáveis.
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 175
Correto o raciocínio? Não. Nem todos os maiores de dezoito anos são penalmente imputáveis, pois os doentes mentais inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito de seus atos, ainda sendo maiores de dezoito anos, também são agraciados pela inimputabilidade.
Diz o famoso autor que "o funcionário público que se apropria de bens, móveis ou imóveis, comete crim e". Portanto, aquele que se apropria de bens alheios, não sendo funcionário público, não com ete crime.
Novamente inaceitável o raciocínio. Somente o funcionário público, na definição criminal do termo, comete o crime de peculato, o que não significa que a atitude de apro- priar-se indevidamente de bens alheios somente seja conduta criminosa para o agente funcionário público.
Diz a Súmula n? 282 do Supremo Tribunal Federal que: "É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada." Portanto, se, como ocorre no caso concreto, o v. acórdão recorrido faz expressa menção à questão federal objeto do presente recurso extraordinário, deve ser ele admitido.
Raciocínio inválido. Pode-se dizer que, se o acórdão em tela faz menção à questão federal suscitada no recurso interposto, este não pode deixar de ser admitido com base no preceito da súmula citada. No entanto, vários outros requisitos são necessários para essa admissibilidade, que não estão elencados no preceito interpretado ao contrário.
O reducionismo é falácia comum ao argumento contrario sensu, e deve ser evitado, pois o interlocutor que percebe a falácia não é persuadido. Consiste o reducionismo em se retirarem da argumentação elementos essenciais a ela1, imprescindíveis à sua validade, pois o discurso argumentativo tem, como já se expôs, um sério comprometimento com a
1. Vide Capítulo XIII.
176 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
realidade: ainda que a interpretação dos fatos observáveis nunca possa ser abrangente o bastante para descrever e considerar todos os fenômenos atinentes a eles, pode-se ofender o interlocutor caso se deixe de considerar elementos que como premissa já entenda essenciais.
Portanto, o raciocínio contrario sensu é válido recurso argumentativo, até porque tem comprovada origem lógico- formal, desde que não tenda ao reducionismo.
O argumento ad absurdum
O argumento do absurdum é outro típico do discurso jurídico. Também denominado argumento apagógico, é aquele que procura demonstrar a falsidade de uma proposição estendendo-se seu sentido e aplicando-lhe regras lógicas do Direito, até alcançar um resultado que o interlocutor entenda como impossível. A impossibilidade do resultado faz com que o interlocutor rechace sua gênese, o que é o principal objetivo do discursante.
Exemplifica-se com o texto abaixo um tipo de argumento ad absurdum de construção bem singela:
O réu está preso por porte ilegal de arma de fogo. A acusação quer que se lhe negue o direito à liberdade provisória, pois afirma que o crime é grave e a lei não lhe permite0 benefício. Mas, pensem os: estatística recente assenta que perambulam, nesta cidade de São Paulo, aproximadamente1 milhão de armas ilegais. Se existem 1 milhão de armas ilegais, há a m esm a quantidade de pessoas com etendo o m esmo delito que o ora acusado. Sendo a justiça igual para to dos - e isso parece inegável deveria haver, neste momento,1 milhão de paulistanos presos cautelarmente, sob a mesma acusação. Isso importa em afirmar que, pelo mais sensível e banal princípio jurídico, nem se o maior bairro de São Paulo fosse transformado em um presídio haveria como alocar to dos os presumidos detentos!
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 177
O exemplo é ilustrativo. Percebe-se que, submetendo a proposição da parte contrária (a prisão cautelar do réu devido à gravidade do delito) à aplicação de outras regras lógicas e elementos verossímeis da realidade, induz-se a um resultado absurdo que o interlocutor não aceita (que se transforme o maior bairro da cidade em presídio para alocar aqueles que praticam o mesmo delito). Trouxe-se ao discurso uma premissa verossímil (embora não comprovada em um texto oral) de que existam em São Paulo 1 milhão de armas clandestinas. Logo em seguida, protestou-se pela aplicabilidade do princípio jurídico básico de que a justiça deve dispensar privilégios, sendo aplicável a todos que cometeram o delito. O resultado desse raciocínio, como lá construído, é inaceitável: a prisão de quase dez por cento da população da metrópole.
Talvez haja nesse exemplo algum exagero nos números, mas é certo que é persuasivo. Percebe-se que o ouvinte não acredita necessariamente na viabilidade do resultado absurdo, mas certamente é levado a concluir que a premissa que se pretende destruir é pouco razoável. No exemplo, existe um substrato de que o argumentante se utilizou sem necessitar enunciar: a tolerância ao delito de porte ilegal de arma, seja por parte do Estado ou da sociedade paulistana, faz com que o crime não possa, em tese, ser entendido como gravíssimo.
A aplicação de premissas verossímeis até chegar a resultados inaceitáveis tem aplicação brilhante no texto "Usos da casemira inglesa", de Scliar, transcrito no Capítulo III deste livro. Recomenda-se que o leitor, para um exercício ilustrativo, retorne, ao fim deste tópico, à leitura desse texto e reveja como vários argumentos ad absurdum encadeiam- se para desconstituir, na mente da interlocutora, sua pretensão de conseguir para o pai um corte de casimira como presente de aniversário.
Mas, para que sigamos as reflexões sobre o argumento ad absurdum, é importante deixar estabelecido: o que se
178 ARGUMENTAÇÃO jURÍDICA
riam premissas verossímeis? Quando o argumentante, no texto anterior, disse que na metrópole paulistana haveria 1 milhão de armas de fogo ilegais, ou quando, no aludido texto de Scliar, o marido assentou que o velho sogro não passaria dos cem anos, trouxe premissas verossímeis, ou seja, que são aceitas pelo ouvinte no decorrer da argumentação.
O transcurso argumentativo aceita o verossímil (que não é o mesmo que o verdadeiro) como aquilo que funciona tal qual o apoio do percurso argumentativo sem que lhe represente um entrave, sem que seja questionado naquele momento da argumentação pelo ouvinte, ou, em outras palavras, o verossímil é aquilo que aparece como verdadeiro no transcorrer do percurso argumentativo.
Reboul fundamenta bem esse conceito, e é útil transcrevê-lo2:
O que é então o verossímil? Para encurtar: tudo aquilo em que a confiança é presumida. Por exemplo, os juizes nem sempre são independentes, os médicos nem sempre capazes, os oradores nem sempre sinceros. Mas presum e-se que o sejam; e, se alguém afirma o contrário, cabe-lhe o ônus da prova. Sem esse tipo de presunção, a vida seria impossível; e é a própria vida que rejeita o ceticismo.
Para os juristas, que conhecem todos os conceitos de praesumptio juris tantum, fica muito acessível a explicação de Reboul para a verossimilhança. Pois ela é mesmo uma espécie de presunção, aquilo que o orador sabe que pode utilizar sem que conte diretamente com a contestação do ouvinte, pois caso contrário a argumentação não se aperfeiçoa. Esse é um dos elementos constituintes do compromisso que o argumentante tem com a verossimilhança.
É importante notar que, como observa Caffé, a verossimilhança depende da aceitação do interlocutor, porque é
2. Introdução à retórica, cit., pp. 95-6.
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 179
necessária a presença de um sujeito para quem o enunciado em questão seja verossímil, ou seja, está presente a necessidade de uma atitude de crença (por alguém) de que um enunciado seja verdadeiro3.
Essa questão é aqui colocada com maior ênfase porque é na argumentação apagógica que o ouvinte (e a parte contrária, no caso da dialética produção de sentido do discurso judiciário) questiona-se sobre a validade das premissas que lhe são colocadas à reflexão, porquanto depara-se com um resultado que lhe ofende o bom senso (resultado, aliás, em que repousa toda a força do argumento).
Claro, a força do argumento apagógico está mesmo na pouca aceitabilidade do resultado que se propõe como final. Entretanto, o interlocutor deve ficar suficientemente convencido de que é o percurso apagógico lícito para conduzir àquele resultado inaceitável, ou, em outras palavras, que o que há de inaceitável no raciocínio é a premissa inicial4, e não qualquer daquelas idéias acessórias que levam ao resultado, pois todas elas devem ser verossímeis.
A progressão do argumento ad absurdum é matéria de grande atenção também do interlocutor, pois ao perceber o resultado inverossímil, sua primeira reação é a de procurar no percurso argumentativo um dado não-verdadeiro que tenha permitido o desvio do raciocínio. No exemplo, o interlocutor questionaria os números apresentados e, se fossem patentemente exagerados, rejeitaria o argumento por completo. A possibilidade de construção de silogismos contínuos, como em uma verdadeira demonstração científica aproximando-se do raciocínio exato, é a maior arma daquele que argumenta ao absurdo.
Embora a argumentação como um todo tenda a trabalhar mais com a verossimilhança que com a verdade (apesar de esta última aparecer em dados indubitáveis no dis
3. ALVES, Alaôr Caffé. Lógica, cit., pp. 397-9.4. "Nihil est in effectu quod non sit in causa" - Nada está no efeito que não
esteja na causa.
180 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
curso argumentativo, como quem diz que um homem é mortal) e mais com o provável que com o certo, já foi dito que a aparência de demonstração exata sempre permeia o discurso. Por isso, o cuidado ao enunciar o argumento ad absurdum deve ser redobrado, fixando-se com vagar todas as premissas utilizadas, com ritmo lento, para que o interlocutor perceba sua verossimilhança, que lhe soe como absoluta verdade. O raciocínio lógico sempre seduz, ainda que possa desviar-se da demonstração absoluta.
No exemplo da posse ilegal de arma, perceba-se que há dados que podem tornar-se pouco verossímeis, ainda que o argumento como um todo seja excelentemente persuasivo: o número de 1 milhão de armas parece exagerado e, se houver, muitas delas devem estar sem condições de uso. Algumas pessoas podem ser proprietárias de várias dessas armas, o que diminuiria sensivelmente o número de criminosos; ademais, algumas delas podem sequer ter donos, estando à deriva ou nos depósitos oficiais, de modo que tampouco seriam computadas para o fim que se lhe pretendeu. Entretanto, essas idéias não puderam aparecer na construção do discurso, pois são de responsabilidade da parte contrária, e assim o raciocínio tornou-se forte.
A argumentação ad absurdum é, por fim, excelentemente persuasiva. No discurso judiciário há predileção pelo raciocínio que parece bem conduzido, mas verdadeira oje- riza à possibilidade de chegar a resultados inaceitáveis, que ofendam a lógica jurídica, ainda que esta seja fruto da criação suasória do argumentante. Deve-se, entretanto, cuidar para que todas as premissas pareçam verossímeis, pois fora disso toda a construção argumentativa enfraquece ou mesmo desaba.
E nesse sentido que, comentando o argumento ad absurdum, João Mendes Neto afirmava5:
5. Rui Barbosa e a lógica jurídica: ensaio de prática da argumentação, p. 77.
ESTRUTURA LÓGICA £ ARGUMENTO 181
Dem onstra-se o absurdo de um texto restabelecendo- se a verdade que nele deva estar contida.
Para isso, partindo do texto julgado absurdo, apresen- ta-se o sentido eqüitativo, criterioso, reto, a que o princípio que o inspirou deverá levar e, após, ressaltam-se as conseqüências absurdas não previstas pelo legislador nem admitidas na sistemática jurídica. E, pois, uma argumentação indireta e tem por fundamento o princípio lógico de que duas idéias contraditórias não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas.
Para combater o argumento ad absurdum basta demonstrar que existem regras aplicadas à pretensão que não correspondem à verdade, embora pareçam verdadeiras. Assim, no exemplo da arma de fogo, bastaria pedir-se uma prova de que houvesse 1 milhão de revólveres clandestinos na cidade; mas, como se percebe, corre-se o risco de o ouvinte continuar entendendo a premissa verossímil, e então a con- tra-argumentação funcionaria ao revés, fortalecendo a idéia que se pretendia destruir. Aliás, na argumentação vale a regra: o argumento que não persuade, prejudica.
Alternativa para combater o argumento apagógico é também uma espécie de argumento de fuga, muito comum no discurso político atual, mas frágil ao ouvinte mais atento. Aproxima-se do estratagema 33 de Schopenhauer*’:
"Isto pode ser correto na teoria; na prática é falso." Com esse sotisma adm item -se os fundamentos, porém ne- gam -se suas conseqüências, em contradição com a regra a ratione ad rationatum valet consequentia [de uma razão ao seu efeito vigora a conseqüência]. A afirmação citada gera uma impossibilidade: o que é correto na teoria deve valer tam bém na prática: se isso não se confirma é porque há alguma falha na teoria; algo passou despercebido e não foi levado em consideração e, por conseguinte, é falso também na teoria.
6. A arte de ter razão, p. 68.
182 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Todo estudo jurídico é construído para que possa valer absolutamente, não se podendo - ao menos no próprio discurso jurídico - construir um abismo entre teoria e prática, porque isso representa evidente fuga à discussão jurídica que muitas vezes o raciocínio ad absurdum procura entabular. Ainda que o estudo da realidade pelo prisma jurídico sempre deixe a desejar na explicação de muitos fenômenos, é certo que a discussão dogmática tem lugar e deve ser enfrentada, mesmo que chegue a resultados pouco críveis. Mais fácil é, como expôs Schopenhauer, achar uma falha na teoria, algo que passou despercebido e não fo i levado em consideração.
E como há fatos ocultos nos argumentos! Pois se eles são fruto da redução simbólica da realidade que deve haver para a construção do próprio texto discursivo, muito, como já se viu, há de ficar subentendido ou invocado como premissa. Questões da argumentação.
O uso da ridicularização
O uso do argumento ad absurdum leva-nos à breve referência ao uso da ridicularização também como meio de persuasão. O raciocínio ridículo é aquele que merece a reprovação do riso7 porque eleva-se a um nível de não-acei- tabilidade humorística. Quando existe consenso ou verossimilhança em determinada afirmação, qualquer outro raciocínio que a contrarie pode levar ao ridículo.
O ridículo leva ao riso, e o riso é humorístico. Ridendo castigat mores, aponta a máxima latina, e então o humor é eficiente meio de repreender aquilo que não se deseja desafiar frontalmente, seja por ser cansativo, seja por não se poder fazê-lo por temor ou por não se desejar, na coerência do discurso, prolongar-se naquilo que não é tema central.
7. Cf. PERELMAN. Tratado da argumentação, cit., p. 233.
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 183
Elevar ao ridículo é parte do argumento ad absurdum, e pode-se dizer que o humor bem colocado tem o condão de ser mais persuasivo - pela questão da presença, que já tratamos - do que críticas longas à argumentação da parte contrária, pois, grosso modo, o ouvinte que tem seu humor elevado pela argumentação sempre tende a aderir ao orador que o alegra.
Fkra ilustrar, leia o trecho da "Fábula dos dois leões", de Stanislaw Ponte Preta. Nele, o cronista conta que dois leões fugiram do zoológico, sendo encontrados tempos depois. Um, magro e maltratado, e o outro, gordo e vigoroso, voltaram ao cativeiro e então encontraram-se. O fragmento que segue é seu trecho final, o diálogo entre os dois animais8:
Mal ficaram juntos de novo, o leão que fugira para as florestas da Tijuca disse pro coleguinha: - Puxa, rapaz, como é que você conseguiu ficar na cidade esse tempo todo e ainda voltar com essa saúde. Eu, que fugi para as matas da Tijuca, tive que pedir arrego, porque quase não encontrava o que comer, como é então que você... vá, diz como foi.
O outro leão então explicou: - Eu meti os peitos e fui me esconder numa repartição pública. Cada dia eu comia um funcionário e ninguém dava por falta dele.
- E por que voltou pra cá? Tinham acabado os funcionários?
- Nada disso. O que não acaba no Brasil é funcionário público. É que eu cometi um erro gravíssimo. Comi o diretor, idem um chefe de seção, funcionários diversos, ninguém dava por falta. No dia em que eu comi o cara que servia o cafezinho... me apanharam.
Qualquer um que leia o texto percebe a crítica à ineficiência do funcionalismo público com grande efeito de persuasão, talvez maior que um discurso repleto de estatísticas e de repetição de informações conhecidas sobre o mau sis
8. Primo Altamirando e elas, p. 154.
184 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
tema burocrático. Com o humor, a argumentação ultrapassa o que seria o teor meramente expositivo para alcançar o resultado suasório.
Aí está, mais do que evidente, o efeito persuasivo do humor, somado à figuratividade alegórica com que o cronista trabalha.
Bem, mas trata-se de uma crônica, de autoria de um verdadeiro personagem social da época, Stanislaw Ponte Preta. Características suas permitiam criar um ambiente e um grupo de interlocutores (seus leitores fiéis) que aceitam de bom grado o efeito humorístico fino e anseiam pelo humor ao lerem seus textos.
No discurso judiciário, o papel do humor é bastante discutível, e talvez estes breves estudos não possam ousar aconselhar quando o toque humorístico pode ser eficiente, e em qual ambiente. O que se pode dizer é que o ar sorum- bático de alguns operadores do Direito não se justifica, pois o bom humor nunca retira a seriedade de nenhum trabalho; entretanto, o aprofundamento e a respeitabilidade do ambiente em que se desenvolve o discurso judiciário autoriza reprovação severa a bobices que sejam inoportunas, que surjam como verdadeira fuga a uma discussão mais aprofundada da matéria colocada sob a dialética suasória. Ademais, a generalização é a grande tendência do humor, e pode ir de encontro a princípios éticos seguros, o que nunca é desejável.
Mal colocado, o ridicularizador torna-se ridículo9.
O argumento a coherentia
O argumento a coherentia é, nos dizeres de Perelman, aquele "que, partindo da idéia de que um legislador sensato - e que se supõe também perfeitamente previdente - não pode regulamentar uma mesma situação de duas maneiras
9. “Inciciit infaveam qui prinius fecerat illam" - Cai na cova quem a cavara.
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 185
incompatíveis, supõe a existência de uma regra que permite descartar uma das duas disposições que provocam a antinomia"10. O argumento pretende demonstrar que, na existência de duas normas jurídicas que aparentemente regulam o mesmo fato, deve haver um diferencial que faça com que apenas uma delas incida sobre um caso concreto. Evidentemente, o argumento tende a demonstrar que a norma jurídica que incide sobre o caso é aquela mais benéfica à parte cujo interesse se defende.
O texto abaixo dá conta desse tipo de argumento:
O réu, segundo diz a inicial do Ministério Público, haveria feito propaganda enganosa de produto. Isso porque o inculpado é proprietário de uma loja de móveis e, querendo divulgar a oferta de seu produto, veiculou propaganda em jornal local, anunciando a venda de estantes padrão mogno, a um preço muito baixo.
Policiais da Delegacia do Consumidor, em diligência no local, verificaram que a estante anunciada não era de mogno maciço, mas de madeira de inferior qualidade, apenas revestida com uma película que imita a cor da madeira de mogno.
Em virtude da existência de tal publicidade enganosa, entende a acusação que o ora réu deve estar incurso na pena do artigo 7? da Lei n? 8.137, que dispõe que:
Art. 7? Constitui crime contra a relação de consumo:VII. induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de
indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária.
Pena - detenção, de 2 a 5 anos, ou multa.
No entanto, a defesa tem visão muito diversa da aplicação do ditame legal retro recortado. Na verdade, se for admitida que a propaganda objeto da presente ação é de fato enganosa, o réu deveria estar incurso em outro dispositivo
10. Lógica jurídica, pp. 78-9.
186 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
legal, qual seja o artigo 66 do Código de Defesa do Consu- midor, que assim dispõe:
Art. 61. Constituem crimes contra as relações de consumo previstas neste Código, sem prejuízo do disposto no C ódigo Penal e leis especiais, as condutas tipificadas nos artigos seguintes.
Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços:
Pena - detenção de três meses a um ano e multa.
Ora, com o pode haver dois dispositivos legais vigentes, cominando pena para a mesma conduta, a de publicidade enganosa? Como um cânone legal pode impor a pena máxima de cinco anos para uma conduta enquanto outro, para a mesma conduta, impõe pena máxima de apenas um ano? Teria cochilado o legislador?
Entendemos que não: o artigo 7° da Lei n? 8.137 deve ser aplicado quando exista um consumidor lesado, enquanto o artigo 66 do Código do Consumidor, com reprimenda m enos grave, tem cabível sua aplicação quando a publicidade enganosa não causa dano efetivo, mas a mera pontenciali- dade dele. O u seja, quando nenhum consumidor é efetivamente levado a erro.
No presente caso, como não houve prova de a publicidade enganosa haver logrado algum consumidor, deve-se aplicar o artigo de menor reprimenda, qual seja o do CDC.
Diante de dois artigos de lei que reprimiam a mesma conduta, a publicidade enganosa, com penas muito diferentes, o argumentante procurou a aplicação da lei mais benéfica à parte que defendia. Não admitiu que o legislador houvesse prescrito duas normas para o mesmo fato e, então, encontrou um diferencial: a efetiva lesão do consumidor. Assim, procura persuadir o leitor pela aplicação do artigo que prescreve menor sanção.
O efeito persuasivo desse tipo de argumento é bastante contundente, na medida em que, até subjetivamente, ne
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 187
nhum operador do Direito está predisposto a admitir que o legislador, em sua tarefa, caia em contradição. É tarefa hermenêutica dirimi-la, pela unidade e harmonia do ordenamento. Desse modo, qualquer argumento que invoque justificativa para configurar como ilusória a contradição do legislador, reforçando a coerência do ordenamento jurídico, é persuasivo.
Tem-se como máxima jurídica que quem exerce direito seu a ninguém prejudica. Desse modo, denunciar um delito cometido por alguém não pode constituir dano moral ao delinqüente, pois, se a denúncia é direito garantido pelo ordenamento, este mesmo não pode impor-lhe sanção, ainda que meramente civil, uma vez que se presume seja o ordenamento coerente, e qualquer antinomia ou conflito entre normas é mera aparência, passível de ser resolvida por regras gerais de hermenêutica ou princípios gerais de Direito. Trata-se de um raciocínio a coherentia.
Para combater o argumento a coherentia não há regra evidente, pois deve ser analisado caso a caso. Em geral, o argumento a coherentia implica comparação de valores diversos, e a doutrina e a jurisprudência tratam de resolver antinomias do próprio ordenamento, o que está mais próximo da hermenêutica e de suas regras clássicas.
Lei ou brechas da lei?
Quando tratamos da coerência do ordenamento jurídico, sob o ponto de vista da argumentação, fazemos um breve parêntese para abordar uma questão que com freqüência se coloca: o trabalho do operador do Direito com as "brechas" da lei.
Para quem já lida com o Direito freqüentemente, o tema pode parecer pueril: conhece do sistema jurídico suas antinomias e resolve lacunas ou conflitos de normas sem grandes dificuldades. Mas a alguns ainda resta a visão - lugar-comum, ao certo - de que o operador do Direito, e no
188 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
mais das vezes o advogado, trabalha com as aludidas "brechas": procura falhas na enunciaçâo do conjunto normativo para criar argumentos que, à evidência, contrariam a vontade da lei.
Pois é a observação de que ainda subsiste a alguns essa idéia de desvirtuamento do contexto normativo por meio da argumentação que faz com que tal tema seja aqui novamente invocado. Um dos entraves à busca da boa argumentação, e do próprio trato com o Direito, é observar a lei como dogma inatingível, indiscutível ou impossível de alterar-se. Em um sistema dogmático, certo é que a lei deve ser observada, pois a decisão judicial é a aplicação do Direito, e este como direito posto. Todavia, a complexidade do sistema normativo cria nele, sim, contradições e interpretações das mais diversas, próprias do raciocínio humano. Novas tendências doutrinárias, peculiaridades do caso concreto, interpretações jurisprudenciais, combinação com valores maiores - por vezes até do próprio sistema normativo - impõem que uma norma específica deva ter seu significado flexibilizado ou agudizado, de acordo com a coerência de um raciocínio, um percurso argumentativo. E, assim, isso que os leigos chamam de trabalhar com brechas da lei nada mais é do que assumir como premissa que a lei é um objeto de criação do raciocínio humano; e, porque humano, sujeito à submissão a outros percursos que a combinem, interpretem ou relativizem. A norma não aparece, no sistema argumentativo, como uma verdade absoluta, mas como uma diretriz dogmática da decisão do juiz, sujeita à construção ar- gumentativa.
Observe o texto a seguir, retirado da peça Antígona, de Sófocles” (em tradução de J. Melville), escrita quatro séculos antes de Cristo. Antígona, filha de Edipo e Jocasta, pretendia enterrar seu irmão Polinice. Entretanto, Creonte, tio de Antígona e rei de Tebas, proibira, por norma sua, tal se- pultamento, porque Polinice houvera combatido contra sua pátria. Antígona, por desobedecer a Creonte e dar sepultu
11. Antígona, p. 96.
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 189
ra ao corpo de Polinice, acreditando que o sepultamento era um dever sagrado, foi condenada à morte. Estabelece-se, assim, o conflito entre duas ordens: a lei religiosa, que An- tígona pretende seguir, e a proibição secular, fruto do gênio do rei Creonte. O trecho recortado é uma das falas mais contundentes da obra:
CREONTE - E, contudo, tiveste a ousadia de desobedecer a essa determinação?ANTIGONA - Sim, pois não foi decisão de Zeus; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, ja mais estabeleceu tal decreto entre os humanos; tampouco acredito que tua proclamação tenha legitimidade para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, nunca escritas, porém irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém pode dizer desde quando vigoram! Decretos com o o que proclamaste, eu, que não temo o poder de hom em algum, posso violar sem m erecer a punição dos deuses! Que vou morrer, bem o sei; é inevitável; e morreria m esm o sem o teu decreto. E para dizer a verdade, se morrer antes do meu tempo, será para mim uma vantagem! Q uem vive como eu, envolta em tanto luto e desgraça, que perde com a morte? Por isso, a sorte que me reservas é um mal de bem pouca monta; muito mais grave seria aceitar que o filho de minha mãe jazesse insepulto; tudo o mais me é indiferente! Se julgas que com eti um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura!
Antígona discute com o tio a legitimidade de sua ordem. Observa nela a obra do arbítrio humano, no caso corrompido por momentâneos interesses, e assim a sopesa, diante de outros valores que estabelece para si: invoca a inevitabilidade da morte e o que a pena estabelecida pelo rei lhe significa, particularmente.
Ilustrativo o trecho: a lei não é feita para ser desobedecida, mas sua origem humana impõe que seja sempre analisada a coherentia, e por isso o Direito reserva o dever de
190 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
fundamentação e a possibilidade constante de argumentação na aplicação de qualquer norma. Não existe por detrás da lei uma vontade insuperável, que permita dizer que um raciocínio completo, razoável e persuasivo de sua interpretação seja um injusto aproveitamento de suas "brechas". Dentro, claro, dos limites da razoabilidade, da progressão aceitável de um contexto argumentativo.
Daí o grande valor dos argumentos apresentados neste tópico.
Argumento a fortiori
O argumento a fortiori é típico do raciocínio jurídico porque impõe a distinção entre normas proibitivas e permissivas. E muito difundido, pois é comum na dialética forense. A fortiori significa com maior razão. Argumentando a fortiori, o discursante impõe uma analogia com um p/ws: o de que seu raciocínio tem ainda maior razão para valer do que aquele que seria fruto da analogia perfeita. Veremos casos mais concretos.
Ele divide-se em dois tipos distintos: o argumento a mi- nori ad maius e o a maiori ad minus. Em ambos há o mesmo princípio de que, se uma norma jurídica impõe uma conduta a alguém, com ainda mais razão determina uma conduta que tenha as mesmas características, mas com ainda maior intensidade, gravidade ou razão.
O argumento a minori ad maius aplica-se no caso de prescrições negativas. Formulemos a seguinte hipótese: se uma lei prescreve que não se pode trafegar de noite com os faróis do veículo apagados, a fortiori deve-se entender que é proibido trafegar de noite com um veículo sem f a róis. Se a lei proíbe o menor, evidentemente deve proibir o maior.
O argumento a minori ad maius tem aplicação prática quando se investiga a jurisprudência e a doutrina, e se encontra, em julgados ou em obras da literatura jurídica, posi
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 191
cionamento ainda mais incisivo que aquele que se pretende demonstrar. Veja como isso ocorre no exemplo abaixo:
O contrato trazido à execução não serve para alicerçar a ação executória pretendida. Isso porque falta ao contrato a assinatura de duas testem unhas, um dos requisitos do título executivo extrajudicial, de acordo com o artigo 585, inciso II, do Código de Processo Civil. A jurisprudência pátria tem entendido, ademais, que o documento meramente rubricado por duas testemunhas não preenche os requisitos do título executivo, como se lê no julgado abaixo:
"[...] A rubrica não permite identificar-se quem é que a lavrou no documento. Assim não atende ao escopo do artigo 585 do CPC, que é o de trazer duas outras pessoas que firmem a validade do documento. [...]"
Ora, se tem -se entendido, como acima provamos, que a mera rubrica da testem unha não serve para conferir ao documento particular o status de título executivo, porquanto a lei exige seja ele assinado, um título em que sequer consta a rubrica das testem unhas deve ser entendido, com mais razão, como inapto para sustentar ação de execução.
O trecho mostra a aplicação de argumento a minori ad maius. Se existe o entendimento de que a norma proíbe a executoriedade do documento meramente rubricado por duas testemunhas - porque rubrica não é o mesmo que assinatura - , com mais razão se deve entender que ela proíbe a executoriedade do título sem assinatura e sem rubrica.
O segundo tipo de argumento a fortiori é o argumento a maiori ad minus, o qual é bem enunciado no brocardo quem pode o mais pode o menos. Seu raciocínio é análogo ao tipo exposto acima, mas com aplicação para normas permissivas em vez de proibitivas: se a lei concede certo benefício a alguém, com certeza concede um benefício menor, que está contido nele. Se uma jurisprudência recortada em um discurso defende que aquele que cometeu crime com abuso de violência possa responder a processo em liberdade, com mais razão deve livrar-se solto aquele que cometeu o mesmo delito sem o uso da violência.
192 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Um argumento a maiori ad minus é exposto no exemplo abaixo, que, ainda que longo, demonstra evidente e persuasivo raciocínio a fortiori:
O réu é acusado pela contravenção de vias de fa to , porque haveria empurrado sua ex-esposa para fora de casa, desferindo-lhe tam bém leve bofetada, no intuito de fazer cessar seus berros descontrolados.
É certo que o delito de vias de fato se configura pela briga sem lesão corporal, conforme assenta toda a doutrina e a jurisprudência, com o se lê, por exemplo, na lavra do d esembargador M unhoz Gonçalves, com destaques nossos: "A agressão a socos e pontapés, de que não resulta ferim entos na vítima, caracteriza contravenção de vias de fato" (RT 451/466).
Em virtude da anim osidade m om entânea que houve entre o casal, no m om ento da ação contraventora, a vitim ada queixou-se na delegacia, dando azo ao início da persecução crim inal que redundou no presente processo. Entretanto, a vitimada, agora já passada a em oção passional daquele m om ento, não pretende de forma alguma dar continuidade ao presente processo, conform e declarou em juízo.
Ainda assim, o Ministério Público pretende levar adiante a ação penal, por entender ser ela de natureza pública, não condicionada à representação, com o ocorre com todas as contravenções penais.
Ocorre que a Lei dos Juizados Especiais Criminais, em seu artigo 88, inseriu, para determ inados crimes de m enor m onta, uma medida despenalizadora específica, qual seja a exigência de representação do ofendido. Assim dispõe o aludido artigo de lei, abaixo copiado, com d estaques nossos:
Art. 88: Além das hipóteses do Código Penal e da le gislação especial, dependerá de representação a ação p enal relativa aos crim es de lesões corporais leves e lesões culposas.
Mas o que é a lesão corporal dolosa leve? Nada mais que a contravenção de vias de fato de que adveio resultado, a lesão. Então, se a lei determina que a ação penal para lesão
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 193
corporal leve depende da condição da representação, a fo r tiori deve exigir para a contravenção de vias de fato, que nada mais é que a agressão sem lesão. Assim, se a efetiva lesão é agraciada com a condição da representação, o mero perigo de lesão - as vias de fato - tam bém merece o mesmo benefício, a medida despenalizadora.
Dessa forma, a presente ação deve ser condicionada à existência de representação do ofendido.
O argumento do peticionário é simples e bastante persuasivo: se a lei concede um benefício para um delito mais grave, a lesão corporal leve, com mais razão (a fortiori) deve conceder o mesmo benefício a um crime menos grave, a contravenção de vias de fato. Esse argumento tem por base a lógica jurídica, a proporcionalidade entre as penas e, assim, os benefícios legais devem também resguardar um mínimo de proporcionalidade. Quem pode o mais pode o menos.
O argumento a fortiori é extremamente persuasivo, porque seu arcabouço lógico é incontestável e cabível em inúmeros casos. Sua construção, entretanto, leva por vezes à falácia, porquanto se procura ampliar ou restringir interpretação da lei vedada explicitamente pelo próprio Direito.
No entanto, argumentar a fortiori não significa apenas estender o sentido da norma jurídica. Significa, sim, esten- dê-lo com maior razão, como ocorre no exemplo acima.
Para combater o argumento a fortiori basta buscar imperfeição na analogia, já que é a analogia seu primeiro substrato. No exemplo da distinção entre vias de fato e lesão corporal leve, basta recorrer ao princípio da reserva legal para demonstrar-se que os favorecimentos jurídicos devem ter interpretação estrita e, assim, se a lei não fizer exata alusão às vias de fato, aquele que as praticou não merece o favor iuris. Mas isso não descarta a validade e a força persuasiva do raciocínio lógico desse tipo de argumento.
194 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
O córax
O argumento do córax é aquele que, conforme Reboul12, consiste em dizer que uma coisa é inverossímil por ser verossímil demais. Argumento corriqueiro para os operadores do Direito penal, embora esteja vivo em outras searas.
Os operadores do Direito que têm experiência em lides forenses sabem quão complexa é a produção probatória, como é difícil encontrar uma construção de uma versão sólida em meio a provas que apontam para sentidos às vezes diametralmente opostos. Documentos que faltam, versões diferentes para cada testemunha, insegurança em reconhecimentos, lapsos de memória, intimidações, troca de números, tudo isso forma lacunas preenchidas pela argumentação, pelo raciocínio lógico, pela razoabilidade.
O argumento do córax procura demonstrar que, à ausência dessas lacunas, aparece a imperfeição da versão apresentada. Paradoxal, porque a perfeição acaba sendo a causa da imperfeição, mas na verdade a pseudoperfeição é apenas o modo pelo qual se manifesta o engendramento do ser humano, manipulando a própria realidade.
Não foram nem serão poucas as vezes que os defensores do tribunal do júri demonstrarão que depoimentos prestados em delegacia por várias testemunhas foram escritos pela mesma pena incriminadora, apenas porque descrevem o mesmo fato sem qualquer contradição. De tão pouco contraditórios, os depoimentos passam a ser inverossímeis. Do mesmo modo funciona o argumento daquele que jura, aos brados, na mesa do bar, que matará Tício, e Tício aparece morto no dia seguinte. A incriminação daquele que jurara a morte é tão evidente que chega a ser mais provável que outro inimigo do vitimado, mais oportunista, tenha se aproveitado da ameaça para cumprir seu intento criminoso11. Ao menos é disso que se vale esse tipo de raciocínio.
12. Introdução, cit., p. 3.13. Exemplo literário de morte tão evidente que parece inverossímil está
na obra Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Márquez, em que
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 195
Não deixa de ser curioso que a perfeição torne-se alvo de crítica, mas o córax fundamenta-se na vaidade e na ganância da mente humana, tão complexa e impenetrável que sempre representa material argumentativo riquíssimo ao argumentante: quando existe a simulação ou a mentira, aparece a tendência da hipervalorização do aparente, que supera a própria realidade. Assim, o relógio falso é - aos olhos do leigo - mais bonito que o verdadeiro, mas essa beleza denuncia ao expert a falsidade do produto, do mesmo modo que a testemunha que guarda detalhes extremos daquilo que diz ter presenciado mais parece, na verdade, não ter visto absolutamente nada.
Para combater o argumento do córax cabe apenas reforçar as provas perfeitas, demonstrando que o argumentante que invoca o córax o encontrou como única saída, falaciosa, diante da contundência da prova que deveria enfrentar. Mas não se pode negar que, em certos casos peculiares, o argumento do córax aparece como raciocínio absolutamente persuasivo.
Argumento ad hominem
Toda argumentação, porque direcionada a um auditório, ainda que não determinado especificamente, pode-se dizer dirigida ad hominem, aos homens, a não ser que se trate de uma argumentação ad humanitatem, buscando-se um auditório universal14. Entretanto, diz-se argumento ad ho-
todo o povoado conhece o fato de a personagem Santiago Nasar estar na iminência de ser assassinado, como no trecho que ora transcrevemos: "...Victória Guzmán, por sua vez, foi terminante na resposta de que nem ela nem a filha sabiam que estavam esperando Santiago Nasar para matá-lo. Mas, ao longo de seus anos, admitiu que ambas já o sabiam quando ele entrou na cozinha para tomar café. Disse-lhe uma mulher, que passou depois das cinco para pedir um pouco de leite por amor de Deus, e revelou também os motivos e o lugar onde o estavam esperando. 'Não o preveni porque pensei que era conversa de bêbado', disse" (p. 23).
14. PERELMAN, Tratado, cit., p. 125.
196 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
minem aquele que busca criticar mais determinado homem do que as idéias que ele profere15.
Muitos autores assentam ser esse tipo de argumento uma falácia, porquanto os ataques pessoais não desqualificam suas fontes, e, portanto, não se poderia construir uma argumentação sólida com base em ataques às pessoas que proferem argumentos fortes. Os argumentos valem por sua materialidade lógica e seu confronto com a realidade, e não pelas boas ou más características do orador que a profere.
Todavia, seria exagero qualificar o argumento ad homi- nem somente como ofensa pessoal, falta de decoro que deve ser evitada a qualquer custo, pois há breves exceções que transformam esse tipo de argumento em elemento lingüístico oportuno, verdade que em ocasiões excepcionais.
A regra, de fato, é a de que os ataques pessoais à parte contrária apenas prejudicam aquele que os profere, porque no mais alto grau de discussão, mormente no discurso judiciário, aquele que pretende julgar pouco se interessa pelas figuras dos argumentantes, mas vê (ou deveria ver) maior representatividade no conteúdo de seu discurso. Weston cita o bom exemplo de von Mises, explicando os ataques ilegítimos à pessoa do economista Ricardo1'’:
A teoria de Ricardo é espúria aos olhos dos marxistas porque Ricardo era um burguês. O s racistas alemães condenam a mesma teoria porque Ricardo era judeu, e os nacionalistas alemães porque era um inglês... Alguns professores alemães formulam conjuntamente esses três argumentos contra a validade das lições de Ricardo.
É evidente que os ataques à pessoa de Ricardo não bastam a qualquer professor para que possa desqualificar suas lições, notadamente se envolvem questões originárias de
15. Cf. WALTON, Douglas. Informal Logic, cit., p. 134: "is the kind of ar- gument that criticizes the arguer rather than his argument".
16. Las clnves, cit., p. 64.
ESTRUTURA LÓGICA £ ARGUMENTO 197
preconceito, injustificáveis, portanto. Desse modo, o argumento ad hominem só pode realmente ser entendido como insulto, sendo desde logo acatado pelo interlocutor como uma fuga à verdadeira discussão que se trava.
Entretanto, quando tratamos longamente do argumento ad verecundiam, fizemos várias recomendações a respeito da propriedade de se questionar da autoridade suas qualificações pessoais para figurar em tal posto, de modo a poder fazer presumir que seus pronunciamentos são todos corretos. Ora, então a argumentação ad hominem pode ser licitamente levantada em um discurso sem que importe, de imediato, em levar o discurso às raias da ofensa pessoal e da falta de brio, como acontece corriqueiramente nos debates políticos mais acalentados.
Walton divide tal tipo de argumento em três classes diversas. O primeiro deles, o argumento ad hominem abusivo, em que se centra o ataque diretamente à pessoa do argumentante, incluindo-se o vilipêndio a sua confiabilidade como pessoa ou a seu próprio caráter. Esse tipo de argumento é aquele em que se tende à ofensa pura, como que puxando à discussão elementos que efetivamente nela não cabem, tal como no exemplo anterior, em que a nacionalidade ou a origem étnica do autor foram trazidas ao discurso como meio de combater as idéias objetivas levantadas pelo professor Ricardo. É corriqueiro no (mau) discurso político, quando se ouvem falas como "Você é um ladrão e, portanto, não deveria sequer falar de corrupção na política", como se a má reputação do argüente fosse causa bastante para apagar toda uma série de razões objetivas que demonstram uma efetiva denúncia de corrupção. Ou então colocações do tipo: "um candidato que foi traído pela mulher não merece meu voto", furtando-se a discutir ou ouvir seu programa de governo, ou "quem é aquele professor, bêbado famoso, que acha que pode me ensinar Direito, se não sabe nem zelar pela própria bebedeira?", como se o possível alcoolismo afastasse totalmente a possibilidade de ser uma autoridade em determinada matéria.
198 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
O argumento ad hominem abusivo17 - pode-se perceber por sua própria denominação - não se justifica em nenhuma hipótese que não a retorsão a uma ofensa pessoal (mas nesse caso, entendemos, afasta-se o estudo da argumentação, que não pode oferecer nenhuma teoria em momentos em que a discussão passa a exceção absoluta).
O segundo tipo de argumentação ad hominem, na concepção de Walton, é o argumento ad hominem circunstancial. É aquele em que se infere ou se demonstra que a posição do argumentante não é compatível com o teor das idéias ou argumentos que ele apresenta. Nessa circunstância, o argumento ad hominem passa a ter certo valor, sem que constitua ofensa grave, em termos de discurso. Assim, se alguém se coloca em posição de aconselhar que um governo não possa endividar-se (o que representa uma idéia correta e objetivamente apresentada), pode-se dizer que aquele que defende essa idéia não deveria sustentá-la, pois sua gestão criara grande dívida ao Estado. O argumento continua sendo direcionado ad hominem, ou seja, mais à pessoa que propriamente às idéias que profere, mas o reforço da incompatibilidade entre estas e aquela serve como excelente meio de persuasão.
É natural que se espere consistência daquele que advoga determinada idéia, embora sempre se procure evitar o envolvimento das pessoas que argumentam na matéria discutida. Assim, age em argumento ad hominem circunstancial o promotor de justiça do tribunal do júri que diz aos jurados que o advogado só defende as barbaridades que o acusado cometera porque ganhara de seu cliente uma vasta quantia em dinheiro a título de honorários, e que portanto não estaria intimamente convencido daquilo que diz. Ainda que possa ser verdade, a argumentação ad hominem torna-se falaciosa, pois não combate os argumentos que deveria en
17. Pode-se traçar um paralelo entre o argumento ad hominem abusivo e o que Perelman chama de argumento ad personam, a pura ofensa pessoal (cf. Tratado, cit., p. 127).
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 199
frentar, desviando-se de um coerente percurso para a fuga às idéias objetivas colocadas pela parte contrária.
Porém há excepcionais momentos em que o argumento ad hominem não representa uma má argumentação, uma falácia. A pessoa que argumenta é em regra elemento periférico, circunstancial, mas às vezes é de tamanha relevância o que ocorre com essa pessoa que ela pode se transformar, licitamente, em objeto da própria discussão. O terceiro tipo de argumento ad hominem, então, é o não-falacioso.
Vejamos os versos que se declamavam à época do império18:
Nós tem os um rei Chamado João...Faz o que lhe mandam.Come o que lhe dão.E vai para Mafra Cantar cantochão.
Diante do endurecimento de Napoleão em suas relações com Portugal e à subserviência dessa metrópole ao reino inglês, dom João, regente português em fuga no Brasil, governando em lugar de dona Maria I, a Viradeira, estabeleceu o domínio inglês no mercado brasileiro, abriu os portos àquela nação e depois retornou a Lisboa, atendendo à vontade de Carlota Joaquina, rainha. Demonstrou sua fraqueza, seja diante do império francês, do reino inglês ou dos próprios governantes estabelecidos em Portugal. Parece evidente que a fraqueza pessoal do governante, demonstrada por episódios dessa monta, expanda-se a seu governo; assim se faz tremendamente lícito, nesse contexto, a cobrança do povo dirigida diretamente à personalidade do seu pretenso chefe de Estado.
Quando a crítica, como nos versos satíricos do Brasil colônia, apontam diretamente à pessoa do rei, não se pode
18. ROCHA, Jucenir. Brasil em três tempos: a história é essa?, p. 40.
200 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
dizer que não seja objetiva a argumentação em face da sua conduta diante do govemo que exerce. Ele, pelo papel social que representa, deve responder por seus atos pessoais que impliquem conseqüências em relação à sua conduta com o governo. Nesse mesmo contexto não se faz falácia uma referência ad hominem como a abaixo reproduzida:
A defesa (ou o defensor) leu vários depoim entos te n tando conduzir à inocência do acusado. Não leu aos senhores jurados, entretanto, os depoim entos mais isentos, pois essa leitura não interessa ao posicionam ento que a defesa advoga.
A referência a interesses é tão explícita que não chega a ser ofensiva, mas pode ser extremamente útil no caso do discursante, se ele entender ser hora de reforçar aos interlocutores, os jurados, as diferenças de conduta entre acusação e defesa.
Aludir às pessoas pode não ser recomendável, mas, como se vê, há momentos em que se torna razoável, principalmente quando a parte contrária utiliza-se de valores pessoais em seu favor, como ao dizer "sou mais velho, conheço bem mais a vida que o outro advogado", ou "meu conhecimento é muito maior porque sou especialista nessa área".
Em suma, não se pode absolutamente recomendar a argumentação ad hominem, pois o ideal seria a argumentação que jamais recaísse nas pessoas que se digladiam. Por outro lado, não se pode pretender, em uma obra de objetivos também práticos, alcançar uma separação total entre o ar- güente e suas idéias, pois isso seria uma quimera. Argumentação e argumentante estão, na prática, indissociavelmente ligados, e não é raro que o interlocutor atente para as características físicas daquele que fala, sua roupa, seu modo de se expressar, e todos esses detalhes que fazem parte da oratória; ou até mesmo para a assinatura daquele que propõe um pedido ou argumentação escrita, como se essa valesse mais que o próprio conteúdo da petição. No último capítulo, tratando de estilo, voltaremos a este assunto.
ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO 201
A argumentação então algumas vezes tangencia as pessoas envolvidas no debate, oral ou escrito; basta lembrar que é pela argumentação ad hominem que se refuta o argumento de autoridade”. Portanto, é cabível esse tipo de argumentação, desde que não represente indevida fuga à causa, sendo fonte (talvez em raras vezes) de grande força suasória, como- usa-se para concluir - aparece na ficção de West20, narrando a resposta de Giordano Bruno aos cardeais inquisidores gerais do Santo Ofício, que sob a acusação de heresia fora expulso de todas as ordens eclesiásticas:
Frei G. Bruno:Neste exato m om ento pensoQue maior do que o medo que vos tenhoE o medo que tendes, senhores,De mim.
Conclusão
Os argumentos que se desenvolvem com maior especificidade no discurso judiciário têm características diversas e poderiam ser agrupados de modo mais ortodoxo, que seria entretanto menos funcional. Este livro seria uma cópia de outros, caso se restringisse a uma reprodução da siste- matização argumentativa feita com o brilhantismo de Aristóteles ou com o estudo de renomados estrangeiros que no contexto hodierno realçam suas teorias com grande aprofundamento, ainda que surjam obras inteiras de paráfrases de um ou outro estudo mais denso.
Nossa preocupação não é enumerar tipos de argumentos em grande quantidade, o que seria simples buscando
19. "There are two ways of undermining your opponent's use of autho- rity, either by an ad hominem attack on his specific authorities, or by providing counter authorities..." (CAPALDI, Nicholas. The Art o f Deception: an Introduc- tton to Criticai Thinking, p. 101).
20. O herege, p. 195.
202 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
subclassificações de cada um dos que foram aqui apontados. Interessa esmiuçar cada tipo de argumento mais usual, explicando-o com ilustrações e apontando suas falhas, para que também possa servir de material de consulta breve para aquele que se depara com um argumento aparentemente forte da parte contrária. Não queremos, com isso, perder de vista um pouco do rigor científico, já que são costumeiras as opiniões pouco credenciadas sobre a argumentação.
Vale, então, continuar a exposição dos argumentos mais usuais do discurso judiciário, passando ao senso comum e seu papel em nosso contexto.
Capítulo XI
Argumentação fraca: fuga e senso comum
Argumentar pelo senso comum não é, claro, a melhor técnica jurídica. Mas haverá momentos em que será necessário enunciar o óbvio na progressão discursiva.
A argumentação corriqueira
A argumentação tem altos e baixos. Existem momentos tópicos da construção de um discurso, em que idéias complexas se combinam para levar o interlocutor a aceitar determinado resultado: argumentos encontram-se e separam-se, convergem para uma mesma conclusão por um mesmo caminho ou por trilhas diversas, dependendo da estratégia do orador. Por vezes, percorrem raciocínios complexos, como o córax ou o argumentum ad absurdum; mas também há momentos em que o discurso não pode pretender alcançar grande profundidade, por desviar-se da pretensão do discursante, de uma coerência que beire a perfeição.
A cozinheira que faz um bom arroz com feijão não é melhor nem pior, na culinária, que um chef estrangeiro que prepare uma sofisticada lagosta com molhos de ervas. Apenas cada um se presta a seus momentos e sua realidade, e aplica-se a fazer bem aquilo a que se propôs: uma boa comida caseira ou um prato top de um restaurante caro. Mas (continuando na culinária), em contrapartida, o cliente do nosso refinado restaurante não suporta comer todos os dias a mesma lagosta com ervas, e pode um dia achar esplêndido um baião-de-dois, que talvez o requintado chef não saiba preparar.
204 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Há momentos e oportunidades para cada argumento, e nem sempre a complexidade e a sofisticação reinam na argumentação. Há horas em que uma idéia corriqueira, aparentemente óbvia, figura mais persuasiva que um raciocínio aprofundado. Nessas oportunidades, aparece o argumento de senso comum.
O argumento de senso comum
O argumento de senso comum é aquele que se aproveita de uma afirmação que goza de consenso geral, não sendo contestada por nenhum dos interlocutores.
O senso comum é aquele conhecimento amplo e genérico que não possui lastro científico aprofundado, mas que está amplamente difundido no seio da sociedade. Portanto, se alguém afirma que a função do Direito é distribuir justiça ou, também na mesma esteira, afirma que sem a educação o país não vai adiante, está usando do senso comum.
Tal senso comum transforma-se em argumento, então, quando é aplicado no discurso para fundamentar determinada idéia. Uma tese, ou seja, a idéia principal que se pretende comprovar, não pode ser de senso comum, pois se o for não necessita de argumentos, já que é aceita por unanimidade em qualquer auditório.
A vantagem do argumento de senso comum é essa qualidade que ele tem de ser absolutamente incontestável. E sedutora a idéia de utilizar-se um argumento que não admite contradita, pois realmente seu uso não comporta re- torsão: quem pode dizer que a educação não é solução para o país? Qual argumentante pode afirmar que o Direito não visa à justiça? Diante desse argumento, a parte contrária, à primeira vista, deve calar-se.
É bem verdade que o argumento de senso comum não admite contraditório específico, mas isso é compensado (sempre há uma compensação) por sua pouca força. Esse tipo de argumento é sempre muito brando, vago, obtuso, e
ARGUMENTAÇÃO FRACA: FUGA E SENSO COMUM 205
por isso são raras as vezes que sua colocação em um discurso opera a vitória, exclusivamente. Por outro lado, é também certo que, em momentos de pertinência, principalmente no discurso oral, a exposição de algo que é puro senso comum pode fermentar idéias a ponto de torná-las próximas da aceitabilidade geral, e assim impingir ao interlocutor - por vezes em construção que beira à falácia - uma idéia contestável como se inconteste fosse.
Não é difícil que, de tão obtusa que é a argumentação por senso comum, ela valha para ambas as partes oponentes no discurso. Desse modo, o político de ultradireita e o de esquerda radical se opõem na discussão de seus planos de governo. O comunista, dizendo espelhar-se na experiência soviética, propõe: "Darei prioridade à educação, pois, para mim, sem ela não se forma o país." O político fascista, por seu turno, dizendo imitar a sociedade austríaca, advoga o mesmo: "Eu também só me preocuparei com escolas, pois elas formaram a Europa como é hoje." Percebe-se que o que existiu não foi apenas um consenso entre ambos, mas sim uma argumentação que, ainda que se digladiando, os oponentes trouxeram idéias idênticas. Invocaram, cada um, o consenso a seu favor, e por isso foi inevitável a concórdia. Para o eleitor mais atento, claro, a discussão foi absolutamente infrutífera, pois os argumentos são fracos: importaria saber quais são os planos de cada um para intervir pela boa educação no país.
Os argumentos são fracos, nesse exemplo, mas mesmo assim bastante corriqueiros no discurso político. Por quê? Porque às vezes, como dissemos na Introdução, é preciso dizer o óbvio, ou melhor, é frutífero enunciar o consenso. Pensemos no mesmo debate de políticos candidatos ao governo, em que um deles assim enuncie:
O que nosso país faz com os aposentados é uma vergonha! Velhinhos, que contribuíram a vida toda para a construção da história de nosso Brasil, passam dias nas filas do Seguro Social, esperando por uma aposentadoria irrisória, vergonhosa até. Maltratados, morrem em filas de hospital, não têm
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direito sequer a remédios e são as pessoas que, m atem aticamente, mais pagaram impostos ao governo, o mesmo governo que sequer os assiste. Essa situação precisa mudar, pois, além de insuportável, representa a maior das injustiças.
Quem ousaria contestar qualquer um desses argumentos articulados? Claro, eles parecem muito mais uma exposição que um discurso propriamente argumentativo, mas não há nenhuma dúvida de que um político que articule um discurso assim (que, admita-se, não são raros) pretende convencer a respeito de sua plataforma de governo. Pois então, está argumentando. O argumento de senso comum, tal como visto acima, é efetivamente um ponto de contato entre a mera exaltação (discurso epidíctico, na classificação aris- totélica) e o discurso dialético, de persuasão. Todavia, pode funcionar com êxito na medida em que a própria enunciação levará o interlocutor a fazer ilações que, embora não explícitas, são fatores de persuasão (por vezes apenas pela expressividade da exposição do argumento).
O candidato que proferisse esse discurso em favor dos aposentados com certeza conseguiria vários votos daqueles tantos que recebem quantia mensal irrisória da Previdência. Não pensaram os idosos eleitores, evidentemente, que algum outro candidato não achasse que as aposentadorias fossem irrisórias ou que seja justo os aposentados morrerem na fila de aguardo da pensão ou de tratamento do hospital. Entretanto, a mera enunciação daquilo que é óbvio fez, em nosso exemplo hipotético, com que os aposentados presumissem que o discursante está mais preocupado com eles do que aquele que nada disse a respeito da situação dos idosos. O candidato discursante, então, percebeu a oportunidade de dizer aquilo que é consenso, as vantagens de trazer para si o que era de domínio de todos, ou seja, de usar do senso comum.
É bom ressaltar, antes de continuarmos a ver a força do argumento do senso comum na arte de realçar o incontes- te, que muito da força suasória desse tipo de argumento pode repousar em sua expressividade, na adesão dos espí
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ritos àquilo que tem como maior qualidade sua forma. É assim, por exemplo, que os provérbios e refrões populares ganham corpo quando invocados em contexto que os sustente, como grande reforço da persuasão de um discurso, como acontece neste trecho de Cervantes1:
Voy a parar - dijo Sancho - em que vuestra merced me senale salario conocido de lo que me há de dar cada mes el tiempo que le sirviere, y que el tal salario se me pague de su hacienda, que no quiero estar a mercedes que llegan tarde, mal o nunca; yo queiro saber lo que gano, poco o mucho que sea; que sobre um huevo pone la gallina y muchos pocos hacen um mucho, y mientras gana algo no se pierde nada.
A fala de Sancho Pança, defendendo seu salário diante de seu senhor, ao dizer que sobre o ovo põe a galinha, muitos poucos fazem um muito e enquanto se ganha alguma coisa não se perde nada, evidentemente suporta seu pedido com argumentos incontestáveis, ditados conhecidos de seu povo, a que se soma seu grande valor expressivo. Não se pode combater tal argumentação senão desviando-se da força e do consenso provocado pelos provérbios invocados pelos ar- gumentantes. No exemplo abaixo, o mesmo valor expressivo e suasório2:
Tem um ditado tido como certo,Que "cavalo esperto não espanta boiada"E quem refuga o mundo resmungando Passará berrando essa vida marvada.Compadre meu que envelheceu cantando Diz que ruminando dá pra ser feliz
O valor do ditado tido como certo, conforme diz o autor, evidentemente lhe vale como consenso para a idéia que começa a defender, a calma durante a vida. Ao enunciar o di
1. Don Quixote. In: ÁLVAREZ, Miriam. Cuademos, cit., p. 34.2. Rolando Boldrim, de Grandes sucessos, RGE.
208 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
tado, já conta com o consenso e a baixíssima reprovabilida- de do ouvinte, que o aceita sem reservas (a que se soma, lembre-se, a força expressiva da figuratividade, com grande valor subjetivo, como já visto). Mais expressivo será o argumento de senso comum quanto maior for a pertinência da idéia amplamente aceita ao discurso enunciado.
A argumentação baseada exclusivamente no senso comum, como se sabe, não ultrapassa a mera exposição, e assim não persuade, mas a invocação da idéia do consenso a favor de um conjunto lógico mais representativo pode significar ponto decisivo do discurso, até mesmo daquele articulado no ambiente forense. Nas petições jurídicas, eles são utilizados mais para dar reforço, ênfase a determinada colocação mais específica, como um recurso retórico. Fora do contexto jurídico, os argumentos de senso comum são menos raros, em discursos políticos demagógicos ou em propagandas que dizem o óbvio. Vejamos mais alguns exemplos:
a) Nosso partido tem consciência de que o país deve olhar por seu povo.
Efeito persuasivo muito pequeno, salvo se o ouvinte já é simpatizante do partido, que faz discurso vazio de sentido. Como ênfase ou complemento, o argumento de senso comum assume efeito persuasivo: Propomos sejam os recursos públicos ora utilizados para pagamento de juros externos desviados para a construção de moradias para os desabrigados. O país deve olhar primeiro para seu povo.
Realçando o que é evidente, mas invocando, pelo reforço dos outros argumentos menos abrangentes, porém mais incisivos, o senso comum cresce na persuasão, pois o argumentante traz para si o monopólio da preocupação com o povo, o que era sua verdadeira intenção.
b) O consumidor deve escolher o melhor produto. Compre nossa marca.
ARGUMENTAÇÃO FRACA: FUGA E SENSO COMUM 209
É senso comum que o consumidor deve escolher o melhor. Aliás, sempre, em qualquer situação, o ser humano busca escolher o melhor. Argumento pouco persuasivo. Entretanto, utilizado como ênfase ou conclusão, tem efeito persuasivo: Nossa marca, apesar de menos famosa, tem maior qualidade, por vários motivos. Em vez de comprar a marca, o consumidor deve escolher o melhor produto.
Abaixo, um argumento jurídico:c) É essencial que o juiz seja equânime.
Afirmação evidente, pouco persuasiva. A pergunta é: em que consiste a eqüidade? O argumentante deve evitar esse tipo de construção.
Prefira: Como foi demonstrado, o magistrado deu muito mais oportunidades de manifestação para a parte contrária do que para a parte ora requerente. Isso desequilibrou o processo, sendo necessário que se garanta a eqüidade dos atos.
Não se pode afirmar que o argumento não continue dizendo o óbvio, mas agora o faz em reforço (em conteúdo e em forma) ao que anteriormente foi sustentado, com argu- fnentos mais sólidos. Outros argumentos arrazoaram, pode- se dizer pouco tecnicamente, enquanto o senso comum, bem invocado, persuadiu.
As oportunidades para utilizar o argumento de senso comum devem ser, claro, observadas pelo discursante, mais uma vez tendo em conta a coerência de seu texto e a aceitação do auditório. Para argumentações de ritmo mais lento, torna-se esse tipo de argumento muito pertinente, pois permite a reflexão sobre outros temas ou informações que podem se somar e tornar-se confusas na ausência de reforço a princípios e premissas que já são de conhecimento do interlocutor, mas que lhe vêm fortalecidas como se fossem conclusão.
No percurso argumentativo, então, o argumento de senso comum aparece quase como petição de princípio, ou
210 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
seja, o erro em se esforçar em argumentar ou comprovar uma tese que o interlocutor já admitiu. Quem vem pedir "justiça!" em um discurso perante um representante do Poder Judiciário cai, se não reforçar sua tese com um objetivo mais específico e contestável, em petição de princípio, pois quer convencer o interlocutor daquilo que ele já está plenamente convicto: que deve ser justo.
É difícil combater o argumento de senso comum porque sua natureza é a de invocar aquilo que é absoluto consenso. O que se recomenda fazer é demonstrar como a amplitude do argumento o faz fraco: o Direito determina que se dê a cada um o que é seu, mas, afinal, o que é de cada um? O ditado diz que o burro precavido morreu de velho, mas o que significa ser precavido? Quando, ao contrário, é necessário ousar? São exemplos de contradita, mas fracos, sendo mesmo o melhor não se aprofundar na resposta ao que já não é aprofundado.
Argumento de fuga
O enxadrista sabe que, ao salto do cavalo, o rei parte em fuga.
A figura do xadrez é ilustrativa: estando o rei sob xeque imposto por qualquer uma das pedras inimigas, pode proteger-se deslocando ao meio do caminho um dos outros personagens de seu reino: o bispo, a rainha, um peão... Mas, se o rei sofre xeque do cavalo, tem de se mover, pois este, com seu estranho campo de ação, pula qualquer outra pedra. Diante dele, ao rei somente resta a fuga; mas nem por isso todo xeque do cavalo é xeque-mate.
Em alguns momentos, o argumentante coloca-se como o rei diante do cavalo: desvia o assunto, pois não pode en- frentá-lo diretamente, mas nem por isso está faltando com a boa atividade suasória. Vejamos como isso ocorre na hipotética argumentação a seguir:
ARGUMENTAÇÃO FRACA: FUGA E SENSO COMUM 211
O réu é pessoa idônea, já com seus respeitáveis 55 anos de idade. E certo que cometeu, como de fato confessara, ato injusto ou ilícito, desviando dinheiro de seus clientes para o pagamento de contas prementes de sua empresa.
Quando o réu desviou o dinheiro que lhe fora confiado por seus clientes para o pagamento das despesas com seu estabelecimento, certamente cria poder devolver a mesma quantia momentos depois, quando fosse cobrado. No en tanto, seus rendimentos não permitiram essa devolução, e por isso o réu é neste m om ento acusado.
Não foi apenas o réu que teve dificuldades financeiras. Nesses últimos tempos, com a crise econômica em que vivemos, várias empresas tiveram de fechar suas portas. As dívidas frente aos bancos aumentaram muito e o inadimplemen- to é recorde, como noticiam diariamente nossos jornais.
A apropriação havida não tinha o dolo de deixar os vitimados sem seu dinheiro, é evidente, mas a situação econôm ica de toda nossa sociedade acabou fazendo com que o réu não pudesse devolver a quantia de que se apropriara em um m om ento de desespero. Não se há de negar como é deses- perador ver uma empresa, estabelecida como idônea há anos, desequilibrar-se diante de um contexto econômico todo controvertido, como o atual.
Não se pode conceber que o réu, já em idade respeitável, sem nenhuma mácula em sua vida como empresário, te nha esperado por todo esse tempo para dar o golpe. O que houve foi uma ação precipitada, diante da tentativa, natural do ser humano, de evitar que anos de trabalho fossem jogados à ruína.
A tática argumentativa do discursante foi a de desviar a discussão para aquilo que não era o cerne argumentativo naquele momento. O procedimento criminal ali ilustrado, que discutia apropriação indébita, obviamente não foi instaurado para discutir a idade do réu, sua situação financeira ou a crise que se abateu sobre o país, mas, naturalmente, como a história dá a entender, pela inversão da posse de uma quantia que lhe fora confiada por clientes. O defensor, no entanto, achou oportuno fugir à discussão que já estava estabelecida para trazer ao contexto questões que, ainda
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que antes não pertinentes, passam a ter valor na conclusão que pretenderá impor. Talvez não comprove que deve ser excluída a culpabilidade de seu cliente por causa da situação financeira da nação, mas, enquanto reflete sobre esses fatores, deixa de aprofundar-se na questão que lhe é amplamente desfavorável.
Assim faz o advogado do tribunal do júri que discute o valor da pena que pode advir do veredito dos jurados: expõe os prós e os contras da pena mais grave, o que o acusado pode vir a tornar-se se for preso, a família que dele depende, seus filhos, o emprego que deixará. É evidente que foge à discussão do processo, mas assim, bailando em questões periféricas, tem condições de ser mais persuasivo do que seria ao procurar enfrentar uma discussão mais específica, por exemplo, ao negar a existência de uma qualificado- ra para cuja configuração aponta todo o contexto probatório.
O argumento da fuga não é por definição inidôneo. Há certos momentos em que desviar a discussão é necessidade do argumentante, pois a parte contrária sempre vai buscar que o percurso argumentativo trilhe aqueles elementos que lhe são mais favoráveis, sobre os quais não há bons argumentos do adversário. Imaginemos, então, o seguinte diálogo:
Defensor. A testemunha Tício disse, ao depor em juízo, que não reconhecia o acusado com o aquele autor do crime: "N ão parece ser a mesma pessoa que vi sacar da arm a", afirmou Tício, em mais uma evidente mostra de que o réu não é o verdadeiro homicida.
Promotor: Um aparte, doutor. Na delegacia, no calor dos fatos, a mesm a testem unha reconheceu positivamente o acusado. O senhor poderia ler aos jurados o depoimento de Tício no distrito policial.
Defensor: Não, não poderia. A acusação teve sua oportunidade de falar e de replicar, e o nosso processo penal, ju sto ao menos na teoria, concede a mim, como defesa, o m esmo tempo que teve o senhor, só que agora para articular aquilo que vem em fav or do m eu cliente. Oxalá tivéssemos nós, sempre, uma sociedade tão igualitária como é a distri-
ARGUMENTAÇÃO FRACA: FUGA E SENSO COMUM 213
buiçao de tempo no Tribunal do Júri, a mesma oportunidade de exposição para todos os interesses em conflito como a te mos nós, tribunos, no plenário. Não farei o papel que lhe in cumbe, doutor, porque se assim o fizer me transformo em um mau advogado, de um mau advogado a um mau profissional, de mau profissional a um ser inútil socialmente e, de inútil socialmente, em breve em um criminoso. Seu pedido, doutor, é impossível de ser atendido, me perdoe.
Evidentemente, a fala do advogado, no discurso final, fugiu ao que lhe fora proposto, porque não lhe interessava dar continuidade à argumentação tal qual pretendia direcionar a acusação, promovendo o aparte. A igualdade no processo penal não era objeto principal de discussão, e seria amplamente favorável ao defensor se pudesse trazer outros argumentos que dessem continuidade à exposição probatória do processo, mas, como ele próprio afirmara, se o fizesse estaria minando seu próprio percurso argumentativo.
A fuga é lícita na argumentação, desde que o tema desenvolvido pareça ao interlocutor, ainda que em mínimo grau, pertinente à discussão (como, no exemplo dado, o advogado desenvolve sua argumentação articulando tema mais próximo possível daquele que pretende evitar, algo acerca do processo penal no tribunal do júri). Porque é o argumentante quem cria seu percurso temático, tem sempre o talante de eleger o melhor tema, desde que não fuja ao cerne da discussão, como o rei ameaçado pelo cavalo não pode fugir de seu ataque mais que um passo.
Porque construção lingüística que se apresenta inequivocamente persuasiva, a fuga ao tema, quando intencional, transforma-se em argumento útil.
Conclusão
O argumento do senso comum e o argumento de fuga não figuram como os mais importantes da argumentação jurídica, mas são sem dúvida comuns. Desde que
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representem verdadeira intenção do argumentante, servem no mínimo para estabelecer boa coerência, prolongando um argumento mais importante e complexo ou, ao contrário, desviando a atenção daquilo que não interessa que o interlocutor compreenda profundamente. São técnicas válidas.
Capítulo XII
Quando a linguagem é argumento
Ao ouvinte do discurso é impossível dissociar conteúdo e forma. Ele não os separa. Conseqüência disso é que a boa linguagem do argumentante faz presumir que o conteúdo discursivo é verdadeiro, e nesse sentido ela - a linguagem - constitui argumento de extrema força suasória.
Predisposição à argumentação
Todo discurso tem por base um acordo mínimo entre o discursante e seu interlocutor. Para que exista argumentação efetiva é necessário que alguém se disponha a discursar e, evidentemente, outra pessoa coloque-se na disposição de escutar.
Não é sempre que se tem a atenção do interlocutor, e contar com ela é algo de grande valor na argumentação, conforme já comentamos. Como bem lembra Perelman: "Não esqueçamos que ouvir alguém é mostrar-se disposto a aceitar-lhe eventualmente o ponto de vista."1 De fato, quando alguém se predispõe a escutar uma argumentação, o faz porque pode mudar seu ponto de vista, aceitando aquilo que lhe é transmitido pelo discursante, ou concordar diretamente com ele, se ambos já compartilhavam da mesma visão sobre o assunto discutido ou apresentado.
Conseguir a atenção do interlocutor não é tarefa simples: esforços homéricos são opostos pelos publicitários em busca de fazer-se ver diante de tantos outros comerciais, em sociedade saturada de argumentos de venda. No contexto jurídico, como já observado, seria muito rasa a observação de que a obrigatoriedade do provimento jurisdicional
1. Tratado, cit., p. 19.
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dispensa recursos para tornar atento o interlocutor, incrementando sua capacidade de absorver os argumentos e informações que se lhe devem transmitir.
Alcançar bons níveis de atenção do interlocutor demanda técnicas das mais variadas. Para o orador, a roupa apresentável, os gestos firmes e adequados, a entonação de voz pertinente, um ou outro recurso mais extravagante para chamar a atenção, como a simulação de um esquecimento, de um improviso antes tão planejado, dentre outros; para o texto escrito, sempre é eficiente a utilização de um bom papel, de impressão limpa, de fontes maiores que permitam a leitura mais cômoda, subtítulos que mostrem ao leitor qual o assunto que será tratado nas linhas que o seguirem, dentre outros.
Cuidaremos ainda dos meios de iniciar o discurso, de deixá-lo mais atraente, mas não se pode negar que o bom uso da linguagem é um dos modos mais eficientes de chamar a atenção do leitor, de fazê-lo atento ao discurso que por meio de palavras se expressa. Quando alguém se coloca para ouvir determinada argumentação, repara primeiro na forma e depois no conteúdo, e isso é bastante natural: antes de experimentarmos um prato, sentindo seu gosto, reparamos em sua aparência, em como ele nos é apresentado; do mesmo modo, aquele que vê um discursante repara na maneira como ele se apresenta para falar, ou na forma que seu texto escrito assume2. Depois, continua levando em consideração a forma, pela absorção da linguagem do discursante. Sabe que o conteúdo lhe será transmitido, mas por meio da linguagem, por isso sua importância em todo discurso.
É diferencial do ser humano a admiração do belo. Um animal pode ter instintos e afetos, mas não repara na beleza de uma obra de arte. Um quadro de Goya a enfeitar um ambiente, ao olhar de um cachorro, não é mais que mera parede. O belo é da natureza, mas apenas o ser humano o
2. Vide Capítulo XVI.
QUANDO A LINGUAGEM É ARGUMENTO 217
reproduz intencionalmente. Assim, a seleção das palavras, a forma de expor o raciocínio procura ordem e harmonia. Um tanto lírico, porém verdadeiro.
Este pequeno trabalho não tem por objetivo tratar de linguagem ao leitor, sendo matéria específica dos bons manuais de redação. Mas a linguagem transforma-se em argumento na medida em que importa, mais do que à transmissão dos discursos, à persuasão, à adesão do leitor. No momento em que a boa linguagem adequada serve de meio para fortalecer uma idéia, seu interesse ao estudo da retórica passa a ser relevante. Daí se dizer que existe um argumento lingüístico.
Palavra
Todo discurso tem, como aponta Plantin3, um fundo cognitivo, ou seja, de exercer um pensamento justo, de revelar informações, noções a respeito da realidade. O discurso é feito de palavras, e a palavra evidentemente informa porque é meio de produção de conhecimento.
De fato, todos os nossos pensamentos atuais são exercidos por palavras. Quando um cientista descobre alguma novidade em seu meio, tem como primeira atitude batizá- la, dar um nome àquela novidade. Somente a partir de seu nome é que com ela vão se construir novos pensamentos, novos conceitos, que se combinam para chegar a conclusões importantes. A apreensão de novas palavras, nesse contexto, implica a apreensão de novos raciocínios antes de significar, sem dúvida, um novo recurso para expressar-se com maior clareza. Quando um leitor consulta um verbete no dicionário, vocábulo cujo significado desconhecia por completo, não apenas acrescentou novo recurso a seu modo de expressar-se, mas, principalmente, somou a seu raciocínio
3. La argumentación, cit., p. 25.
218 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
o conceito que aquele termo novo traz consigo. Esse conceito poderia estar até adormecido na mente dessa pessoa, mas desperta por meio do conhecimento da palavra porque é por intermédio de seu nome, e somente dele, que aquele conceito pode passar a fazer parte do discurso, de qualquer pensamento lógico daquele ser humano. Assim, um leigo em Direito que aprenda o que é uma nulidade não apenas trouxe aquela palavra para seu vocabulário passivo mas, principalmente, pode articular raciocínios por esse conceito novo que aprendeu e pode entender o que é um processo nulo, uma nulidade relativa ou absoluta, uma causa de nulidade, ou a nulidade que ocorrera no processo em que ele é parte.
Othon M. Garcia cita pesquisa realizada por membro do Laboratório de Engenharia Humana de Boston, que afirma haver testado o vocabulário de cem alunos de determinado curso, feito com executivos. Relatou o pesquisador estrangeiro que, cinco anos depois, "verificou que os dez por cento que haviam revelado maior conhecimento (vocabular) ocupavam cargos de direção, ao passo que dos 25 por cento mais fracos nenhum ocupara igual posição"4.
Sem conhecer os métodos de tal pesquisa, que pegamos "de segunda mão", seus resultados parecem bastante razoáveis. A posse de vasto vocabulário é fator diferencial não só daqueles que se aventuram pela literatura, mas para todos os que trabalham com as matérias humanas e, como se disse, não apenas na desenvoltura de exteriorizar raciocínios, mas também ao apreendê-los e elaborá-los. E fácil então concluir por que reparamos tanto nas palavras daqueles que falam em público, no modo como expressam e articulam suas frases, antes mesmo de nos atermos com interesse ao conteúdo: o bom vocabulário faz presumir bom conhecimento, e é nesse sentido que ele se transforma em argumento.
4. Comunicação em prosa moderna, p. 155.
QUANDO A LINGUAGEM É ARGUMENTO 219
Conteúdo e forma
O argumento de competência lingüística é aquele em que conteúdo e forma misturam-se para levar à persuasão. Na medida em que todo discurso é transmitido por meio de palavras, pode-se dizer, grosso modo, que a boa escolha delas é também um tipo de argumento, e por isso se imiscui com o próprio conteúdo, em um amálgama difícil de ser resolvido, pois argumentação é fusão contínua de raciocínio e expressividade, ou, em outra variante, retórica é união íntima entre estilo e argumentação.
Os operadores do Direito estão acostumados a valorizar a forma, sobre a qual há discussões infindáveis no plano jurídico, todas importantes, porquanto é ela um instrumento de garantia para uma série de direitos substanciais. Não resguardada a forma, a substância, o que há de material, raras vezes seria igualmente preservado ou exercido, pois ela dá validade ao ato; trata-se de questão jurídica na qual não necessitamos nos aprofundar, mas há um paralelo muito grande entre esse valor essencial da forma no Direito e a forma na argumentação.
Para entender, é interessante a leitura deste (embora longo) fragmento do discurso de Rui Barbosa, ainda no Império, em defesa da eleição direta5:
Mas não mudou; porque acima das nossas dissidências jurídicas quanto à forma, reunia-nos a mais unânime unanimidade num pensamento superior, numa convicção política; e era que faltaríamos ao nosso dever pondo na forma a nossa questão; era que cumpria-nos aceitar a forma, fosse qual fosse, contanto que se salvasse a substância; era que, fosse por constituinte, fosse por lei ordinária, o nosso empenho definitivo e essencial consistia na eleição direta.
"A forma é uma grande questão, a forma é tudo", res- ponde-nos, porém, uma voz do Senado. Senhores, não nego
5. Discurso proferido na Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro, na sessão de 21 de junho de 1880. In: BARBOSA, Rui. Escritos e discursos seletos, p. 127.
220 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
que, nos provarás de um jurista, toasse deliciosamente esse apotegma; mas, na boca de um hom em de Estado, é m onstruoso; é a negação de tudo quanto, nestes assuntos, se tem aprendido; porque, particularmente em coisas políticas, ou na mente de toda a experiência acumulada pelo gênero humano, ou a grande questão é sempre a questão de moralidade, a questão de utilidade, a questão de necessidade, e a forma não passa de um acidente, modificável segundo as exigências de uma ocasião.
Mas, insistem de lá, a forma é a Constituição. E a Constituição que é? A Constituição, segundo as impressões sentimentais de um nobre senador, é um a frágil individualidade, cuja vida pende do fio dos nossos punhais; segundo a im aginação pinturesca de outro, um Himalaia severo, imóvel, superior aos séculos, que embalde tentaríamos abalar, com a base eterna de rochas no seio da terra e o topo nas nuvens do céu. Ora, Sr. Presidente, se não há um simples somniua aegri em ambos esses perfis contraditórios da Constituição é o caso de levarem as mãos à cabeça os devotos supersticiosos da Carta, pedindo a Deus, com o Paulo Luís Courier que lhes acuda, que valha às instituições contra a peste da m etáfora; porque, afinal, com estas e outras, sombra, aqui de m ontanha indestrutível, imagem, acolá, de débil criatura humana, essa desfigurada Constituição corre o risco de perder, aos olhos do público, a sua realidade objetiva, até o ponto de passar por uma simples ilusão individual, por uma condensação da fantasia de cada um - aparência vaporosa, ondean- te, efêmera, "com o as névoas que descem sobre o m onte", na frase de um dos poetas do centenário, que não sei se dá- me a honra de estar entre nós.
Rui Barbosa é sempre exemplo de boa argumentação, não sem razão. Discute, nesse fragmento, a superioridade, no contexto político, da substância à forma, sendo esta reservada às discussões jurídicas. E inicia seu discurso com argumento que procura angariar a simpatia de seu amplo auditório: colocando-se como ente que, em nome de seu ideal- as eleições diretas - procura superar as divergências jurídicas, que seriam todas formais. Procura dispensar a forma, porque ela não pertenceria ao contexto político, mas à sea
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ra jurídica, objeto então de estudo dos cultores do Direito (aos que, naquele momento, ele não se incluía).
Mas o curioso é perceber que, embora dispense a forma (jurídica) da discussão política, é pela forma (lingüística) que seu discurso se realça. Seus recursos, depois da leitura do texto, não necessitam ser em grande número apontados ao leitor: a seleção de palavras, os trechos hiperbólicos {a mais unânime unanimidade, o apotegma monstruoso, "é o caso de levarem as mão à cabeça os devotos supersticiosos da Carta" etc.), as imagens freqüentes (Himalaia, as névoas...), as citações (Courier, um poeta do centenário...), entre outros. Não se pode dizer que as idéias políticas de Rui Barbosa fossem todas inovadoras, nem que argumentos semelhantes aos seus não houvessem sido invocados com freqüência por seus pares, mas o modo, a forma pela qual aqueles argumentos são transmitidos é ímpar, daí a força do discurso da Águia de Haia, lembrada até hoje como símbolo da argumentação eficiente.
Difícil, assim, dissociar forma e conteúdo em argumentação, ao contrário do que fez Rui Barbosa em relação às eleições diretas. A forma do discurso argumentativo vem ligada a seu conteúdo de forma intrínseca, e só a podemos isolar para fins exclusivamente didáticos: as idéias de Rui têm fator persuasivo elevado porque partem de um discurso formalmente impecável, ao menos para os padrões lingüísticos de seu tempo.
Portanto, a boa retórica, a argumentação contundente não é apenas aquela que constrói bons raciocínios, mas também que os externaliza, enuncia-os de modo eficiente. Como essa enunciação também contribui para a persuasão, é argumento.
A linguagem adequada
Certa vez um vendedor de pneus nos disse, com muita propriedade, que não compensava o investimento em qualquer peça de um automóvel se não se cuidasse, antes, de
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comprar bons pneus. "Os pneus são a única parte do carro que toca no chão", dizia, e, como exclusivo ponto de contato, sempre representavam um bom investimento. De que adianta um motor potente se os pneus não o segurarem? Interessante a argüição, e efetivamente imagem muito per- suasiva.
Pois, em comparação bastante imperfeita, todo o nosso raciocínio é exteriorizado por palavras, e nelas qualquer investimento é bem recompensado. Um raciocínio perfeito que culmine com um vocabulário imperfeito ou com uma palavra mal empregada pode ser tão trágico quanto o carro potente de pneus carecas, cujo potencial ao desastre nosso zeloso vendedor procurava evitar.
Quando construímos um discurso jurídico, temos de selecionar palavras adequadas para exteriorizar nossas idéias e argumentos. Os vocábulos são vários, e muitos deles podem ser postos em uso para expressar um mesmo significado, ou, mais tecnicamente, significados muito próximos. O trabalho de seleção vocabular é, então, tarefa bastante importante do retor.
As boas palavras são aquelas que revelam competência, e mais atingirão ao interlocutor quanto mais próximas forem de sua compreensão. As palavras são o ponto de contato do raciocínio do autor do discurso com seu interlocutor e, para continuarmos nos aproveitando da imagem já formada, ao auditório devem aderir com grande propriedade. Para nos aprofundar, vejamos o texto abaixo, retirado de uma mensagem da internet, de autor anônimo, como tantos (bons) textos que por aquela rede vagueiam. Trata-se de questões de vestibular, supostamente para uma universidade do crime:
Questãos
1. Piolho tem uma A K -47 com pente pa 40 bala. Se ele per- dê seis de dez pipoco e atirar treze veiz em cada um dos mano da outra quebrada, quantos vão pro saco antes de recarregá a arma?
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2. Zoinho ganha 200 conto pra guindá uma BM, 250 por um Audi e 100 por uma Cheroki. Se ele tiver robado duas BM e treis Cheroki, quantos Audi ele tem que tungá pra com - pletá 800 conto?
3. M aninho cumpre seis ano de reclusão por homicídio. Pela encomenda, ele em bolso 10 mil mango. Se a velha dele torra 100 conto por mês, quanto vai sobrá quando ele saí do xadrez e quantos ano ele vai pegá por ter dado cabo da vaca que torrou a grana dele?
4. Alem ão Loco robô 10 real do filho dele pra com prá uma petequinha que dá pruns 5 tirinho. Se ele fizé uma pré- za de dois tirinho pro mano do bote, quantos tirinho ele vai dá?
O texto satiriza, com grande propriedade, a gíria da periferia paulistana, ligando-a ao universo do crime. Paia quem desconhece o vocabulário, as questões parecem ininteligíveis, mas certamente seriam muito próximas daqueles candidatos à vaga na fictícia universidade6. As questões são todas de matemática, simples, sem qualquer complexidade, mas a arte de enunciá-las, naquele texto, para sua finalidade de escárnio, reflete-se na seleção vocabular muito trabalhada, de excelente observação da linguagem vulgar.
O aludido texto, óbvio, nada nos significa no contexto jurídico, mas nos serve para uma importante noção preliminar: a de que nosso vocabulário, em língua portuguesa, assume variantes extremas. Ainda mais se compararmos o exemplo anterior ao texto de Rui Barbosa, notaremos como a comunicação é complexa, assumindo trocas de mensagens em níveis muito díspares. Cada qual, claro, adequado a seu meio: não se pode pretender que a mesma linguagem utilizada no início do século XIX por um discursante da Câmara dos Deputados seja a mesma do criminoso da periferia do grande centro urbano, duzentos anos mais tarde7.
6. "Balbum melius balbí verba cognoscere" - O gago entende melhor as palavras de outro gago.
7. Cabe ressaltar, como mera observação, que, embora a linguagem de um e de outro não seja a mesma, a língua ou idioma é o mesmo: o idioma por
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O vocabulário varia, dependendo de quem se pretende atingir, principalmente em nosso idioma, em que a diferença entre a linguagem culta e a popular é acentuada. No contexto jurídico, predomina a linguagem culta, de modo que ela é a única que, em regra, tem valor como argumento de competência lingüística.
O discurso jurídico
Em alguns aspectos, nosso mundo atual dá grande valor à linguagem. Do mesmo modo que se desvalorizam as regras do idioma e pouco se atende à precisão lingüística no discurso do dia-a-dia, a linguagem científica vai assumindo cada vez maior valor. Porque é grande a tecnologia, é vasta a linguagem técnica, pois, como frisamos logo de início, a cada nova descoberta, a cada novo conceito, surge um nome.
A observação é curiosa e útil para nosso estudo de argumentação: ainda que cada vez menos pessoas concedam importância às regras aprofundadas do idioma, a linguagem aparentemente técnica tem valido ouro nesta sociedade de informação: desconfiamos do médico que não utiliza o vocabulário médico, tal como o economista que fale com grande clareza pode ser entendido como pouco técnico; ou do jurista que não se utilize da linguagem específica de seu meio se tira a imagem de alguém que desconhece a matéria sobre a qual deveria comentar.
Com algum exagero, conhecer a técnica é conhecer sua linguagem específica. Conhecer a linguagem que deve ser utilizada em determinado discurso é, então, bom argumento, na medida em que o interlocutor sempre presume que
tuguês, que abarca todas as manifestações de linguagem da pátria que o utiliza. Por isso nunca concordamos com a denominação da matéria "português jurídico", que se vê por aí difundida, já que não nos parece que haja mais de uma língua portuguesa, como se houvesse um "português médico" ou "econômico". A língua é a mesma.
QUANDO A LINGUAGEM É ARGUMENTO 225
aquele que tem melhor linguagem, ou seja, que constitui melhor enunciação de suas idéias, conhece com mais profundidade a matéria sobre a qual disserta.
Essa presunção de que aquilo que assume melhor forma é o que tem mais conteúdo constitui a verdadeira força do argumento de competência lingüística. E está baseada em inequívoca observação do real: não se compra um livro pela capa, mas presume-se que o livro mais bem acabado, com edição mais cara, tenha merecido maior atenção da editora que investe em bom conteúdo. Do mesmo modo, aquele que melhor articula seus argumentos faz presumir ao interlocutor que conhece mais a matéria sobre a qual disserta, e isso é extremamente observável. Quem há de negar que, por mais culto e ilustrado que seja um expositor, se ele gagueja e tem pouca intimidade com a fala em público, desagrada em sua exposição? A razão desse desagrado por parte do público é evidente: ainda que todo o auditório saiba que a timidez e a tartamudez não guardam nenhuma relação com o conhecimento da matéria, o tímido gago parece inseguro em sua exposição, e essa insegurança é imediatamente transportada pelo ouvinte ao presumido (des)conhecimento da matéria que deve ser exposta.
Por isso dissemos, logo de início, que o vocabulário do discursante é objeto de imediata atenção do interlocutor, que o tem como cartão de visitas.
O vocabulário técnico-jurídico é, no discurso judiciário, então, o mais importante a ser dominado, embora não o único. Bem articulando a linguagem técnica do Direito, a denominada terminologia jurídica, o bom orador já traz em seu discurso, ainda que diluído em toda enunciação, um portentoso argumento, a presunção de bom conteúdo por meio da forma eficiente.
Mas (sempre existe um mas) confundem-se muito aqueles que especificam, como boa linguagem jurídica, o determinado jargão jurídico. Este não constitui argumento de competência lingüística, sendo, então, necessárias algumas poucas palavras para explicitar essa distinção.
226 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Linguagem técnica x jargão
Quando um interlocutor se impressiona com a capacidade de articulação de palavras técnicas de determinado orador, por certo não o está julgando pela habilidade em colecionar e repetir jargões.
Jargão é a gíria profissional, a linguagem que se desenvolve como meio distintivo de determinada classe. A gíria nós conhecemos, principalmente lembrando-nos do exemplo dos jovens: têm sempre uma linguagem específica de seu meio, como modo de diferenciar-se e, por vezes, de fazer com que os adultos, os estrangeiros a seu grupo em geral, não os compreendam. O jargão tem exatamente essas mesmas funções: de diferenciar aqueles que o conhecem daqueles que o ignoram e de evitar que estes últimos compreendam a mesma linguagem.
Exemplo simples de jargão jurídico:
A exordial ministerial assenta que o condutor da viatura dera voz de prisão ao meliante, o qual empreendeu fu ga do local dos fa tos, saindo em desabalada carreira, ingressando em um estabelecimento comercial de venda de roupas; ato contínuo, quando o meliante faz ia menção de entrar em em bate corporal com um popular, o condutor disparou a arma, alvejando a perna do meliante, que passou a claudicar, motivo pelo qual teve de ser imediatamente conduzido ao nosocômio mais próximo, onde o facultativo de plantão passou a fazer-lhe intervenção cirúrgica imediata.
O jargão jurídico é constituído por aquelas palavras que não possuem nenhum arcabouço técnico, apenas um meio específico de os profissionais de determinada área se expressarem. Talvez nem fosse necessário, ao leitor mais atento, mostrar que algumas substituições de linguagem seriam extremamente cabíveis para deixar o discurso mais claro sem prejudicar-lhe minimamente o sentido original, como:
QUANDO A LINGUAGEM É ARGUMENTO 227
Exordial ministerial = denúncia.Empreendeu fuga do local dos fa tos = fugiu dali.Enpreendeu fuga do local dos fa tos + saiu em desabalada carreira = fugiu dali correndo.Ingressando em um estabelecimento comercial de venda de roupas = entrando em uma loja de roupas.Fazia menção de entrar em em bate corporal com um popular = ia brigar com alguém.Passou a claudicar = passou a mancar.Facultativo de plantão = médico de plantão.Passou a fazer-lhe intervenção cirúrgica im ediata = submeteu-o a cirurgia.
Afinal, o que há de tecnicamente jurídico em chamar de exordial a denúncia? E de nosocômio o hospital? Evidentemente, a linguagem jurídica, como argumento que faz presumir o conhecimento da matéria, não se trata de jargão, mas sim de verdadeira linguagem técnica. Esta última é a linguagem que nasce na teoria, ou seja, que tem arcabouço teórico aprofundado porque seu uso invoca desde logo um conceito científico recheado de sentido.
Exemplo de linguagem técnica está no trecho abaixo:
O processo está contaminado por nulidade absoluta, pois o indeferimento da oitiva das testemunhas referidas violou a am pla defesa, e a ausência de intimação para manifestação sobre a quota do Ministério Público implicou ofensa ao contraditório.
A linguagem técnica é aquela carregada de sentido científico, em nosso caso avalizada pela doutrina jurídica. Nulidade absoluta pode parecer termo estranho ao leigo, mas é parte importante da doutrina jurídica, tendo assumido essa denominação. Quando se fala em nulidade absoluta, é invocado todo um sistema jurídico de garantias à formalidade dos atos e a inequívoca sanção a sua violação, que aqui não cabe aprofundar, mas que está contido naquele termo. Do mesmo modo, ampla defesa não é o mesmo que defesa ampla, porquanto se trata de expressão técnica, cheia de significado científico: a ampla defesa traz em si uma série
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de conseqüências que estão contidas nessa expressão, e, se assim não fosse, não seria letra da norma constitucional. E que dizer de contraditório? O que iria pensar um leitor leigo em letras jurídicas? Que algo contraditório é algo incoerente, sem sentido, como dizer que algo é e não é ao mesmo tempo. Claro, contraditório é termo técnico, e como tal sua invocação faz parte do bom argumento, pois se o leitor não utiliza sequer esse termo, desconhece todos os conceitos que lhe estão por detrás.
Linguagem técnica é aquela que vem recheada de sentido científico, de conceitos, e isso a autoriza a diferenciar-se, na argumentação, da linguagem corrente. O jargão, ao contrário, representa uma diferenciação da linguagem corrente sem nenhuma justificativa técnica, e por isso seu uso não aparece como competência lingüística, salvo nos casos em que o discursante o faça intencionalmente.
O que costuma ocorrer, como erro grave da argumentação, é utilizarem os jargões como se fossem linguagem técnica. Assim, em lugar de representarem argumento, prejudicam a expressividade e tomam-se enfadonhos, mais afastando o interlocutor do que trazendo-o para o necessário contato que deve haver com o argumentante8. 0 discurso recheado de jargões toma-se chato, pouco coeso e, pior, nada técnico.
Sobre o tema, (mais uma vez) é impossível deixar de lembrar a percepção que Machado de Assis, com seu talento inesgotável, faz sobre a importância da linguagem jurídica, quando o personagem Brás Cubas dedica-se a recordar o tempo de seu bacharelado. Acompanhe o texto, para dele retirar conclusões9:
8. O Dicionário Aurélio, ao definir uma das acepções de jargão como gíria profissional, traz como ilustração interessante o texto de Lima Barreto, retirado da obra Histórias e sonhos, de que aqui nos apropriamos: "Para eles [os doutores javaneses] é boa literatura a que é constituída por vastas compilações de cousas de sua profissão, escritas laboriosamente em um jargão enfadonho com fingimento de língua arcaica."
9. Memórias póstumas de Brás Cubas. Capítulo 24, p. 62.
QUANDO A LINGUAGEM É ARGUMENTO 229
Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a U niversidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei- lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dous de H orário, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a ju risprudência. Colhi de todas as cousas a fraseologia, a casca, a ornamentação... Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirto que a franqueza é a primeira virtude de um defunto.
Brás Cubas afirma mais de uma vez que estudou Direito muito mediocremente, e que recebera, como uma grande "nomeada de folião", o grau de bacharel "com a solenidade de estilo, após os anos da lei"10. E pôde retirar do Direito, mais do que sua ciência, "a fraseologia, a ornamentação". A possibilidade que Machado de Assis aponta, já a seu tempo, é a de que alguns elementos de linguagem, que nada mais representam que a casca de uma ciência, venham a ser utilizados como se ela fossem.
A crítica não é anacrônica. Ainda hoje o jargão jurídico aparece como conjunto de palavras desprovidas de conteúdo significativo, mas com aparência de cientificamente fundamentada. Nesse sentido, o jargão é algo que interessa muito pouco à boa argumentação.
Competência lingüística e linguagem corrente
Muito comum na linguagem jurídica é que se utilizem os denominados preciosismos, cuja espécie que se destaca é o arcaísmo. Preciosismo é a linguagem desnecessariamente rebuscada, que assume ares de culta, mas não o é.
Para ser claro, palavras difíceis não significam diretamente competência lingüística, pois a boa argumentação é
10. Idem, Capítulo 20, p. 56.
230 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
aquela que se transmite com fluência, com objetividade, e não, ao contrário, com palavras que dificultem a compreensão". Quem abusa das palavras difíceis não raro quebra a coerência do discurso: se pretendemos fazer um discurso em linguagem que demonstre excessiva erudição, pelo conhecimento de vasto vocabulário, temos de mantê-lo no mesmo nível durante todo o percurso; de nada adianta meia dúzia de palavras escolhidas a dedo no dicionário, com nebuloso significado ao interlocutor, em enunciação permeada de erros gramaticais e impropriedades lexicais.
No Direito, competência lingüística significa linguagem precisa, direta, culta e clara. O patamar da linguagem culta, entretanto, diferencia-se da linguagem preciosa, da falsamente pomposa. O vocabulário empregado deve ser rico, vasto, mas da linguagem corrente, que não cause confusão ou destoe do resto do discurso. Todo termo mais raro deve contar com sustentabilidade na enunciação, ou seja, deve-se inserir em contexto adequado. Isso é importante que seja ressaltado, pois muitos autores confundem linguagem culta com uso de termos inusitados, antigos, arcaicos e de significado pouco preciso para o leitor médio. Vejamos, para exemplificar, o texto abaixo, retirado da obra Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago:
Um estôm ago que trabalha em falso acorda cedo. Alguns dos cegos abriram os olhos quando a manhã ainda vinha longe, e no seu caso não foi tanto por culpa da fome, mas porque o relógio biológico, ou lá como se costuma chamar- lhe, já se lhes estava desregulando, supuseram eles que era dia claro, então pensaram, Deixem -m e dormir, e logo com preenderam que não, aí estava o ressonar dos com panheiros, que não dava lugar a equívocos. Ora, é dos livros, mas muito mais da experiência vivida, que quem madruga por gosto ou quem por necessidade teve de madrugar, tolera mal que outros, na sua presença, continuem a dormir à perna
11. "Proicit ampullas et sesquípedalia verba” - Rejeita o estilo empolado e as palavras de pé e meio.
QUANDO A LINGUAGEM É ARGUMENTO 231
solta, e com dobrada razão no caso de que estamos falando, porque há uma grande diferença entre um cego que esteja a dormir e um cego a quem não serviu de nada ter aberto os olhos12.
Perceba o leitor que as palavras utilizadas no texto, de autor português, são variadas e assumem sentido preciso e bastante claro, não obstante o estilo próprio de Saramago, de frases longas, com mescla de pensamentos distintos. Aqui não nos interessa o estilo literário dele, mas simplesmente a seguinte observação: existe alguma palavra, no texto recortado, arcaica, rebuscada ou de sentido obscuro? A toda evidência, não. Todos os vocábulos utilizados são de linguagem corrente.
Não se pode dizer que o autor se utiliza de linguagem pouco culta, coloquial, e muito menos que seu texto não é eficiente, pois não foi gratuitamente que o conjunto de sua obra mereceu o Nobel de literatura. Na verdade, o que determina a eficiência e o estilo do texto não é o emprego de algumas poucas palavras raras colhidas a dedo, mas sim a seleção constante de termos claros e precisos para enunciar a idéia que se quer transmitir ao interlocutor.
O que determina a boa seleção de vocábulos é sua coerência, não uma ou outra palavra rara. Estas estão afastadas da competência lingüística.
Ademais, a linguagem corrente implica certa flexibilização, até mesmo nas regras gramaticais extremamente rígidas. Se o leitor observar um texto de jornal, poderá ver, por exemplo, algumas colocações pronominais afastadas da norma culta, mas que respeitam a sonoridade e a proximidade da linguagem oral. No discurso jurídico não se deve afastar a gramaticalidade, mas a existência de uma norma culta que em muito se distancia do discurso coloquial é fator a ser considerado13.
12. Ensaio sobre a cegueira, p. 99.13. Sobre o tema é ilustrativo o conto "O colocador de pronomes", de
Monteiro Lobato. O protagonista, Aldrovando Cantagalo, que "veio ao mundo em virtude dum erro de gramática", acaba por morrer ao ver um erro de
232 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Carga semântica
Como vimos, a boa enunciaçâo significa também um argumento, pois o interlocutor é levado a presumir que idéia mais bem enunciada, mais bem transmitida, é a que conta com maior razão. Por isso, forma e conteúdo não são independentes no contexto argumentativo.
Mas há que se realçar, ainda, que na vastidão vocabular da língua portuguesa (como em qualquer idioma moderno) o conhecimento da força das palavras é fator também relevante àquele que argumenta. A cada vocábulo (conjunto de letras que representam sons) é acoplada uma idéia, certo significado. Esse vocábulo, jungido a seu significado, denomi- na-se termo. Os vocábulos que têm o mesmo significado são chamados de sinônimos, e o dicionário, conjunto ordenado de vocábulos de um idioma, é responsável por listá-los todos, ou ao menos indicar essa coincidência de significados.
Variar as palavras de mesmo significado (ou, mais tecnicamente, de significados parecidos) não implica apenas questão estilística. A carga de significado de cada termo tem sua importância argumentativa, da qual o discursante não pode descuidar.
Quando um ministro afirma que, com o aumento do preço do petróleo no contexto mundial, pode haver flexibilização dos valores das tarifas públicas em geral, certamente está se utilizando de um argumento de enunciaçâo, de competência lingüística. Ainda que flexibilizar possa significar tomar flexível, ou seja, aumentar ou diminuir, no caso está evidente que é impossível a diminuição das tarifas públicas; descartada essa hipótese, somente se pode entender que as tarifas públicas, conforme o discurso do ministro, irão aumentar.
colocação pronominal no livro que publicara porque o gráfico decidiu alterar uma frase, talvez em nome da sonoridade. Com ironia, Lobato descreve a cena como o momento em que "morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes". Crítica interessante à rigidez das normas gramaticais e o apego a elas, em nosso idioma.
QUANDO A LINGUAGEM É ARGUMENTO 233
Flexibilização e aumento têm o mesmo significado? Podem levar mensagem semelhante ao interlocutor, mas o discursante, ao utilizar o primeiro termo, não ignorava que seu discurso seria mais persuasivo (menos áspero, já que transmitia más notícias) ao evitar a qualquer custo a odiosa palavra aumento. Quando o defensor, no tribunal do júri, afirma que seu cliente transgrediu a lei, enquanto o promotor diz que o réu assassinou ou, ainda menos tecnicamente, chacinou três pessoas, referem-se ao mesmo ato, mas a carga de significado de cada uma das expressões acompanha seu contexto argumentativo.
Muitos nomes servem a pontos de vista argumentati- vos, e por isso devem ser utilizados adequadamente. São conteúdo do próprio argumento, em simbiose conteúdo/forma: certamente, se um historiador refere-se a determinada cruzada como "batalha contra os infiéis", com certeza demonstra seu ponto de vista apenas pelo vocabulário que utilizou para enunciar o fato, sem necessitar, para isso, revelar explicitamente, pelo conteúdo de sua tese, qual será seu posicionamento: contra ou a favor das batalhas de fundamento religioso. Do mesmo modo, o rico industrial dirá que sua atividade é a de gerar lucro, enquanto o sindicalista representante de seus empregados falará em acumular capital; alguém que é favorável ao aborto chama-o de "interrupção voluntária da gravidez", e assim evita aquele primeiro nome; em essência, é o mesmo, mas argumentativa- mente é bastante diverso.
Expressões latinas e brocardos jurídicos
Ao tratar de carga semântica, de força do significado das palavras, é importante cuidar, no contexto jurídico, dos chamados brocardos jurídicos e das expressões latinas. Qual seu verdadeiro sentido no contexto da argumentação?
Permita-nos uma digressão. Há algum tempo, recente, era corrente a recomendação de que, no exame de admis
234 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
são para a Ordem dos Advogados, o candidato fizesse uso de, no mínimo, três expressões latinas. Sem termos nenhum conhecimento do que envolve o exame da Ordem, tratávamos de desmentir - sem nenhuma autoridade para isso, já que ignorávamos seus métodos - aquela recomendação. Não se poderia medir a capacidade de redação jurídica (e muito menos de argumentação) pelo uso de uma língua morta. Na dúvida, e esse era o ponto mais interessante de toda a história, os candidatos que impropriamente nos consultavam, não querendo correr nenhum risco de serem reprovados, revelavam-nos a inteligente recomendação que haviam ouvido: que utilizassem três expressões latinas genéricas que cabem em qualquer peça. Geralmente, disse- me um deles, usamos data venia, ab ovo e ex positis; quando muito, um rebus sic stantibus.
Ora, o que os candidatos faziam, ao selecionar as expressões genéricas apenas para cumprir um hipotético requisito da prova, era enunciar expressões absolutamente vazias de sentido. O problema é que esse erro se repete no cotidiano do Direito: peças e sentenças permeadas de expressões latinas que nada acrescentam a seu equivalente em português, apenas tornando a linguagem pouco límpida e objetiva.
Como argumentação, as expressões latinas podem ter duas funções: como demonstração de competência lingüística, têm o efeito persuasivo de mostrar ao interlocutor determinado domínio da matéria jurídica que o faça presumir autoridade na enunciaçâo da tese. Esse efeito, entretanto, cai por terra quando essas expressões são genéricas e, antes de revelar qualquer conhecimento mais aprofundado da ciência jurídica ou, ainda menos, do latim, mostram apenas que o discursante usa algumas expressões latinas como cu- ringas na manga, na intenção de tornar mais culto um discurso que não sustenta o arcaísmo da língua morta.
A segunda função da expressão latina - essa sim mais freqüentemente usada com eficiência suasória - é a de revelar que determinado princípio é tão antigo e amplamente aceito que deve ser interpretado como senso comum. E
QUANDO A LINGUAGEM É ARGUMENTO 235
nesse sentido que apresentamos, em rodapé, algumas delas, quando pertinentes ao contexto. Grosso modo, a expressão latina carregada de sentido mostra que determinado princípio é tão antigo que se cristalizou em língua morta; a isso soma-se um mais claro argumento de competência lingüística, já que a expressão carregada de sentido revela erudição do discursante. As expressões carregadas de sentido são os denominados brocardos, os axiomas jurídicos, as máximas que revelam princípios amplamente aceitos, por isso sua proximidade com o argumento de senso comum. Essas expressões não são exclusivas da área jurídica, mas é no discurso judiciário que mais aparecem. Podem ser extremamente persuasivas, se bem encaixadas no contexto do discurso, sustentadas, sem que pareçam pedantes. Assim, se alguém, ao pedir o indeferimento da oitiva de uma testemunha, porque medida somente protelatória, já que todas as provas já estão no processo, argumenta que Ursi cum adsit vestigia quaeris ou que In silvam... ligna f e ras14, sem dúvida invoca para si a linguagem como meio de persuasão, já que as pequenas sentenças valem muito mais que longas explicações a respeito dos motivos pelos quais deve haver o indeferimento. Senão, no mínimo, reforçam com grande capacidade de adesão os argumentos já enunciados.
Conclusão
A criação do discurso é ato personalíssimo. Se construímos um texto, oral ou escrito, em determinado dia, ele é essencialmente diferente daquele que seria enunciado se deixássemos para fazê-lo no dia seguinte. Tratando-se de linguagem, os meios de enunciação são infinitos e influenciam muito na persuasão. Aqueles que defendem o raciocí
14. "Em presença da ursa, não procures suas pegadas", e "levarias lenha ao bosque". In: TOSI, Renzo. Dicionário de sentenças latinas e gregas, p. 222.
236 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
nio puramente lógico desprezam o resultado suasório de uma frase de efeito, de palavras bem colocadas, de um discurso fluente.
O argumento de competência lingüística é um dos modos de explicar o efeito suasório da expressividade, dos infinitos meios de enunciar uma mesma idéia. Importa em afirmar que qualquer investimento em linguagem é rentável em efeito persuasivo. Toda cultura, todo vocabulário, toda correção gramatical, todo cuidado na montagem de frases e parágrafos ou na construção sintática do discurso oral representam, em última análise, um meio de persuasão. A esse meio soma-se a idéia, inequívoca, de que a linguagem do indivíduo é freqüentemente medida pelo ouvinte, ainda que não tenha ele grande intimidade nessa matéria.
Os meios de expressividade do discurso são inúmeros, e amiúde estão a cargo dos bons manuais de redação, de gramática e de literatura, afora as construções enunciativas que se encontram recomendadas em livros de argumentação. Conhecer a linguagem e aperfeiçoá-la é tarefa para o resto da vida, na formação de um estilo enunciativo pessoal, que também é constantemente sujeito a ser aprimorado. Sem confundir linguagem culta com linguagem preciosa e arcaica, estudar os meios de enunciação sempre convergirá para um discurso mais convincente. Ainda que aparentemente em estreita medida, qualquer termo novo é útil15.
Lembrando novamente a ilustração do nobre vendedor, o discurso com grande conteúdo e pouca forma está menos para o bom livro com capa feia que para o carro de motor possante e pneus carecas.
A boa linguagem sempre é argumento.
15. "Etiam capillus unus habet umbram suam" - Até um fio de cabelo faz sombra.
Capítulo XIII
Honestidade da argumentação e ordem dos argumentos
O argumento seduz. Porém, trata-se de uma sedução intelectual: a progressão discursiva deve agradar o raciocínio lógico do interlocutor, e é nesse sentido que as falácias devem ser evitadas.
No capítulo anterior, com a competência lingüística, terminamos nossa exposição sobre os tipos de argumentos mais comuns. É importante que eles sejam sempre variados, pois, como veremos, serão maiores as probabilidades de persuasão.
Há, por certo, muitos outros tipos de argumento, mas julgamos que seria pouco útil simplesmente apresentar nomenclaturas e exemplos retirados de outros autores, pois o mais importante é refletir sobre a eficiência de cada um deles, ainda que por denominações menos específicas, como temos procurado fazer aqui.
Agora, superada essa visão panorâmica dos tipos de argumentos, voltamos ao estudo da argumentação mais genérica, para abordar a construção e a combinação de todos eles na organização do discurso.
Honestidade e falácia
Criar argumentos significa manejar os elementos lingüísticos aptos a persuadir. A melhor argumentação é aquela que mais convence, e uma das características da argumentação convincente é que seja honesta. Não existe nada pior ao interlocutor que perceber que o argumentante deliberadamente procura induzi-lo a erro.
238 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
O que é a argumentação honesta? Recorremos a Reboul1:
Ora, se uma argumentação é mais ou menos desonesta, não é porque seja mais ou menos retórica. Caso contrário Platão, cujos textos são infinitamente mais retóricos, pelo conteúdo oratório, que os de Aristóteles, seria m enos honesto que este! Então, segundo quais critérios avaliar a honestidade duma argumentação?
O primeiro que vem à mente é o da causa. Um a argumentação valeria pela causa a que serve. Mas como explicar que uma causa excelente seja às vezes defendida por uma má argumentação? E, principalmente, como sabem os que uma causa é boa? O critério supõe que o valor da causa seja conhecido antes da argumentação encarregada de estabelecê-lo: o que eqüivale a julgar antes do processo, a eleger antes da campanha eleitoral, a saber antes de aprender. Não existe dogmatismo pior.
Articular argumentos não significa qualquer forma de fugir à honestidade, porque, como comentamos largamente nos primeiros capítulos, a efetiva aplicação do Direito ocorre apenas por meio da argumentação, de modo que, se é ela a forma lícita de efetivar o Direito, não pode, ao mesmo tempo, ser a forma ilícita de expô-lo.
Não se mede a honestidade da argumentação, como bem observa o texto transcrito, pela causa que se defende. Existem seguidores que apóiam incondicionalmente o posicionamento de um líder, porque acreditam ser ele boa fonte de pensamentos, sejam religiosos, políticos etc. Mas isso não significa boa argumentação, pois esta somente é medida como boa ou má em seu percurso, e não previamente, o que no discurso judiciário implica prejulgamento.
A argumentação passa a ser desonesta quando tende à falácia, o erro2 que prejudica a verossimilhança, porquanto desvia o percurso argumentativo da razoabilidade lógica. Já
1. Introdução, cit., p. 98.2. Cf. WESTON, A. Las claves, cit., p. 123.
HONESTIDADE DA ARGUMENTAÇÃO 239
vimos, no decorrer da classificação de argumentos, as principais falácias, ou seja, o momento em que o argumento f a lha. Ele falha porque foge à percepção do discursante que a idéia que lança, em vez de colaborar para a condução do interlocutor à conclusão, afasta-o dela, porquanto o argumento, imperfeito que é, tende à desonestidade. Vale rever, muito brevemente, com alguma sistemática, as falácias já enunciadas:
Preconceito e generalização: o argumento de senso comum é muito eficiente quando enuncia um preceito que não pode ser contestado, como quando se diz que um ser humano que passa fome não pode dar importância a questões intelectuais. Entretanto, o argumento perde força quando enuncia generalização indevida, como quando se diz que os moradores da favela são todos voltados para o crime.
Reducionismo: outro tipo de falácia consiste no esquecimento de causas diversas, para argumentação, também denominada ignoratio elenchi. Aparece tanto nos casos em que se analisa um fenômeno de modo a retirar dele elementos importantes (por exemplo, quando o advogado diz que seu cliente está preso apenas por ter antecedentes criminais, quando deixa de dizer que existem contra o réu indícios fortes de autoria de um novo delito, motivo que verdadeiramente motivara seu encarceramento); ou ao deixar de responder às questões e aos argumentos daquele que tenta fazer vingar uma tese e que cobra manifestação legítima por parte daqueles que devem explicar seu posicionamento (como quando, em embargos de declaração, exige-se do julgador que se manifeste minuciosamente sobre os motivos que o fizeram deixar de acolher os argumentos articulados em momento oportuno3).
Falácia ad hominem consiste no indevido ataque à pessoa do argumentante ou da autoridade, sem que se enfrentem suas idéias, ou, neste último caso, suas qualificações. Já
3. Vide Capítulo XIV.
240 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
nos referimos a ela no Capítulo IX, quando cuidamos do argumento ad hominem.
Perelman denomina argumento ad personam a pura ofensa pessoal ao argumentante ex-adverso, e então é certo que esse tipo de recurso deve ser evitado, pois raramente conta com crédito do ouvinte ou do leitor, ao menos do mais criterioso. Entretanto, quando a parte contrária utiliza-se da autoridade de determinada pessoa como modo de valorizar seu raciocínio, não parece falacioso, como contra- argumentação, destituir a autoridade citada, encontrando-lhe histórico de contradição ou de pouca honestidade científica4.
Falácia ad misericordiam é aquela que apela à piedade5 como argumento em favor de uma causa, a exemplo do procurador que assume que seu cliente, pela lei, merece grave reprimenda penal, mas sua prisão deixará a família sem sustento.
O percurso estruturado de forma aparentemente lógica e que, por isso, conta com aparente validade, denomina- se sofisma. Ele ocorre pelo desvio de sentido no percurso lógico, quando uma proposição não leva necessariamente a uma conclusão. Exemplo desse tipo de construção já foi analisado no texto de Veríssimo, O gigolô das palavras, quando faz a afirmação: "A gramática é o esqueleto da língua. Só predomina em línguas mortas."
Esqueleto, na primeira proposição, sendo imagem de estrutura, passa a, na segunda proposição, representar imagem de morte, e esse desvio, proposital, leva o autor a concluir,
4. Comenta Eemeren: "In the third variant of argumentum ad hominem, na attempt is made to find a contradictiona in one's oponent's words or between his words and his deeds na to undermine heis credibility in doing so. Usually, such a discrepancy between a person's statemant or between his ideas and his actions in present and past is referred to by its Latin name tu quoque. Tu quoque, in its basic form, ocurs when someone casts doubt on a stand point of wich he himself is na adherent" (EEMEREN, F. H. e GROO- TENSDORST, Rob. Argumentation, cit., p. 81.
5. Cf. WESTON, A. Las claves, cit., p. 127. Ver, também, Argumento de fuga.
HONESTIDADE DA ARGUMENTAÇÃO 241
erroneamente, que a gramática só predomina em línguas mortas. Muitos raciocínios sofismáticos são encontrados na argumentação jurídica, como no exemplo abaixo:
O réu alega que é pobre e nunca teve envolvimento no crime de tráfico de drogas, pois se o fizesse teria melhor condição econômica. Entretanto, contratou para defendê-lo um dos melhores advogados do país, e, sabe-se, bons advogados são caros. Um profissional com o esse não seria contratado por um pobre e, por isso, não é verdade que o réu não te nha envolvimento com atividade criminosa, pois somente dela poderiam vir os proventos para os honorários do respeitável defensor.
A estrutura é aparentemente lógica, mas o excessivo reducionismo que se oculta em cada proposição lançada no discurso torna a conclusão inadequada às proposições iniciais. O discurso poderia ser resumido assim:
Um bom advogado é caro (exige dinheiro).O réu contratou um bom advogado.Logo, o réu tem dinheiro.Honestamente, o réu não pode ganhar muito dinheiro. Logo, o réu não vive honestam ente (é ligado ao crime de tráfico).
Proposições desvirtuadas fazem com que a argumentação seja logicamente falha. Seu resultado não é de todo inaceitável, pois não se trata de uma argumentação ab absurdum, mas há uma série de desvios que afastam o bom interlocutor da verossimilhança. Nem sempre o bom advogado exige dinheiro, pois pode trabalhar em algumas causas para fazer um trabalho social, para ajudar algum amigo, para ganhar notoriedade ou experiência, dispensando assim qualquer pagamento. Isso já desconstitui o primeiro silogismo. No segundo, as falhas são ainda mais evidentes: não se pode dizer que honestamente o réu não ganhe dinheiro, por mais desqualificado que seja em relação aos estudos, pois essa
242 ARG UMENTAÇÃO JURÍDICA
afirmação não passa de preconceito; além disso, pode contratar seu advogado com recursos de familiares que queiram vê-lo em liberdade por amor a seu ente, e para isso reúnam patrimônio razoável; ainda que pague seu defensor com dinheiro desonesto, não se autoriza afirmar que esse recurso provenha do tráfico de drogas, que seria a tese final a que o discurso quer conduzir.
Mesmo que o interlocutor não faça todo esse raciocínio para desqualificar o argumento lançado, o intui, e assim o ataque pessoal ao advogado, porque poroso, soa pouco honesto.
Não nos deteremos por demais nas construções falaciosas, pois a liberdade argumentativa, baseada na verossimilhança, é pressuposto que não se pode derrogar na argumentação, e por isso quase todo argumento pode ser apontado como arrimado em uma premissa de mera probabilidade, como já apontamos. É falha, e portanto inaceitável, a argumentação cuja conclusão não provenha de uma premissa seguramente provável, tal qual nos casos apresentados, em que a combinação de probabilidades fracas acaba por retirar do argumento a credibilidade mínima para o convencimento do interlocutor.
A honestidade na argumentação passa, então, pela construção do discurso apto a conduzir a uma conclusão aceitável, sem que se desvirtuem conscientemente de uma razoabilidade, uma probabilidade plausível, que faça com que o interlocutor deposite crédito no discurso, lembran- do-se sempre que uma informação propositadamente desvirtuada da verdade ou da verossimilhança pode pesar tanto ao interlocutor, que ele venha a rejeitar todo o discurso. Inevitavelmente, a desonestidade em um argumento contamina todos os demais.
Por fim, a boa argumentação é também aquela que não foge à defesa de uma tese clara, que sempre começa com um posicionamento bastante evidente. No discurso judiciário - ao contrário do que pode acontecer no epidíctico, de mera exaltação - não há espaço para muitas ambigüidades e
HONESTIDADE DA ARGUMENTAÇÃO 243
dissimulações: a falta de clareza e objetivo sempre afasta o interlocutor, a quem interessa conhecer qual é o pedido que faz o discursante, da conclusão a que se pretende levar.
No discurso político, em que são vigentes princípios bastante diversos daqueles dialéticos da argumentação forense, o pouco ético cardeal Mazarin, sucessor de Riche- lieu, recomendava: "Consulta com freqüência os tratados dos grandes retóricos: estes sabem não apenas provocar o ódio, mas também voltá-lo contra os que o provocaram; são capazes de excitá-lo ou de atenuá-lo. Eles te ensinarão igualmente como acusar ou te defender com maior eficácia. O mais importante é aprender a manejar a ambigüidade, a pronunciar discursos que possam ser interpretados tanto num sentido como no outro a fim de que ninguém possa decidir."6 A ambigüidade, no discurso judiciário, tem rara função, mas o discurso político, na aversão que tem a provocar qualquer desagrado, encontra maior serventia na argumentação baseada no senso comum, que, como já vimos, tem pouca capacidade suasória, mas é eficiente para os fins pretendidos nesse específico tipo discursivo.
Toda argumentação é válida, mas a fuga à verossimilhança ofende o leitor, quebra a coerência e põe fim à capacidade suasória do discurso.
Ordem dos argumentos
A disposição dos argumentos é questão de relevante interesse na prática do discurso judiciário. Em sala de aula, muitos alunos questionam por onde iniciar a argumentação, e não há nenhuma dúvida de que este é ponto crucial na análise do discurso.
Para responder a essa questão, entretanto, é preciso que esclareçamos alguns breves pontos que funcionam como premissa.
6. Breviário dos políticos, p. 117.
244 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Em primeiro lugar, é necessário frisar a diferença entre narrativa e argumentação. Como têm eixos de progressão distintos (temporal a primeira e lógica a segunda), não se podem misturar por longos trechos, como outrora se afirmou. Porque cuidamos da estrutura narrativa em sua lição específica, aqui trataremos apenas da ordem da argumentação em sentido estrito. Esta se inicia quando já houver informações suficientes no interlocutor que autorizem o argumentante a iniciar um percurso argumentativo claro, sem ter de proferir um discurso que se prolongue por demais na ação de personagens no decorrer do tempo, ou, em outras palavras (menos técnicas), quando puder diretamente argumentar em vez de informar. De maneira prática, o argumentante preocupa-se com a ordem da argumentação depois de expostos todos os fatos, embora já saibamos que essa distinção pura entre narrativa e argumentação seja algo ideal.
Em segundo lugar, é necessário nos lembrarmos da diferença entre demonstração formal e argumentação. Na argumentação não é necessária (e quase sempre é impossível) a construção de uma cadeia causa/conseqüência absolutamente linear, e isso leva a maior liberdade de construção de discursos, podendo-se iniciar com a exposição do posicionamento e da tese principal ("A defesa provará, nestes minutos de fala, que o réu agira em legítima defesa, e isso será indubitável aos senhores jurados quando mostrarmos todas as provas do processo sobre as quais ora passamos a dissertar...") ou reservar para o desfecho esse mesmo pedido ("A defesa, neste processo, tem visão bastante diversa daquela acusatória. Antes, entretanto, de adiantarmos aos senhores jurados qual será o pedido, é necessário que apresentemos provas que a acusação, atendendo a seus interesses, deixou de informar a Vossas Excelências"). Entretanto, qualquer que seja o raciocínio formulado, indutivo ou dedutivo, a combinação argumentativa não segue um percurso rígido como a demonstração, esta sempre linear, tal qual as exposições matemáticas.
HONESTIDADE DA ARGUMENTAÇÃO 245
O simples anagrama de Reboul7 ilustra muito bem as diferenças entre argumentação e demonstração:
Demonstração: A — B — C — D ...------► = Z
A ordem dos argumentos é de escolha do orador ou do autor do texto escrito. Depende dos momentos de ênfase que pretende estabelecer, da coerência em seus mais diversos níveis, do ritmo do texto, da estrutura lógica. Como já se afirmou no capítulo referente à coerência, o mais importante é que a estrutura seja planejada anteriormente, com o maior nível de consciência possível do transcorrer do texto.
Com a prática, o argumentante consegue prever mentalmente qual será a estrutura de seu discurso. Entretanto, enquanto a prática não vem, ou nos casos mais complexos, essencial se faz que se trace um esboço, um rascunho da estrutura argumentativa, ao menos em seus pontos mais importantes: os argumentos mais relevantes e sua ordem, sua extensão, as idéias menores que cada um deles comporta. As vezes até mesmo as piadas e as aparentes improvisações, nada escassas nos discursos de maior repercussão e profissionalismo, são planejadas com antecedência em um percurso intencional.
Momentos principais da argumentação
Fixamo-nos na segura asserção de que a ordem dos argumentos depende da coerência preestabelecida pelo discursante. Entretanto, alguém já disse que o discurso asse
B
Argumentação: A Z
' D
7. Introdução, cit., p. 97.
246 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
melha-se ao vôo do avião, que gasta a maior parte de suas energias no momento da decolagem e do pouso, sendo o transcorrer do vôo sempre mais econômico, calmo e seguro.
Verdade que o piloto que fez boa decolagem tem menor preocupação com a aeronave no transcorrer de sua rota. Assim é também na argumentação, oral ou escrita: seu exór- dio, seu início bem colocado economiza energia com esclarecimentos e recursos de manutenção de atenção posteriores. Todo interlocutor, seja leitor, seja espectador, guarda grandes expectativas para o início do discurso, como se guarda para qualquer texto. Aquele silêncio antes do início do discurso oral ou a margem e o cabeçalho do papel dele fazem parte, como bem ensina Platão Savioli8, e então funcionam como criadores de expectativa do interlocutor, da mesma forma que existe no começo de um filme: de que se trata? O que pretende transmitir-me?
Damos ênfase a essa noção de expectativa pelo exórdio porque, não raro, a prática dos discursos forenses a que assistimos, principalmente em sustentações orais - permita- nos dizer - , desperdiça essa oportunidade. Sustentações que se iniciam com longas saudações e nada realçam ao começo efetivo da argumentação, lançando-se mão de chavões, lugares-comuns insossos para essa introdução do discurso, acabam por não criar no interlocutor o menor interesse para ouvir o que se tem a dizer. Talvez por insegurança, talvez por falta de ousadia ou, pior, por sequer refletir a respeito, os textos (orais ou escritos) fazem pouco uso de boas construções introdutórias. Ora, um avião que queira pou
8. Vale a pena copiar sua lição: "A segunda característica de um texto é que ele é delimitado por dois brancos. Se um texto é um todo organizado de sentido, ele pode ser verbal (um conto, por exemplo), visual (um quadro), verbal e visual (um filme) etc. Mas, em todos esses casos, será delimitado por dois espaços de não-sentido, dois brancos, um antes de começar o texto e outro depois. É o espaço em branco no papel antes do início e depois do fim do texto; é o tempo de espera para que o filme comece e o que está depois da palavra Fim; é o momento antes que o maestro levante a batuta e o momento depois que ele a abaixa etc." (SAVIOLI, Francisco Platão e FIORIN, José Luiz. Lições de texto, p. 17).
HONESTIDADE DA ARGUMENTAÇÃO 247
par combustível na pista de decolagem por certo não sairá do chão1*.
Se é imprescindível (e efetivamente é) no discurso judiciário que se façam saudações extensas, por vezes surgidas de um exagerado protocolo, em texto oral ou escrito, o discursante pode, depois deles, estabelecer claros que delimitem o início efetivo do discurso original, apartado já do protocolo: um subtítulo no texto escrito, um breve intervalo de tempo entre as saudações de praxe e o início da argumentação propriamente dita, no texto oral (este último recurso bastante utilizado pelos advogados do tribunal do júri, mas, aparentemente, pouco explorado por aqueles que fazem as sustentações orais regimentais, de aproximadamente vinte minutos). Esse claro permite a criação de um início real do discurso, a introdução que prenda a atenção do interlocutor, esclarecendo os motivos que o convidam a atentar para o discurso.
Vários são os modos de prender a atenção ao discurso, aproveitando a expectativa que tem o interlocutor ao exór- dio, no texto escrito ou oral. As perguntas retóricas de Cícero, nas Catilinárias10, são exemplo irretorquível:
IX
Mas, por que falo? Q ue coisa nenhuma te dobra? Que tu te corrijas? Que tu meditas uma fuga? Que tu pensas de qualquer maneira em um exílio? Oh! Te inspirassem os deuses imortais um tal pensam ento! Ainda que eu preveja que terrível tempestade de ódio recairá sobre mim, embora não para o momento, quando é recente a lembrança dos teus crimes, certamente para o futuro, se tu, esmagado pela minha palavra, resolveres ir para o exílio. M as tanto faz: contanto que esta desventura recaia sobre ti e esteja livre de perigo para o Estado. (...) Tu não és homem, Catilina, que um senso de honra te impeça uma infâmia, ou o temor um perigo, ou a reflexão um ímpeto de loucura.
9. "Portam itineri dici longissimam esse" - Dizem que numa viagem o percurso mais longo é o da porta.
10. As catilinárias, p. 104.
1
A pergunta retórica - aquela questão cuja resposta é desnecessária, pois já vem determinada no contexto embora não exija a interação do interlocutor, é sempre recurso útil para mudar de ritmo o discurso e fomentar a atenção do ouvinte. Aqui, utilizada na introdução do trecho do discurso, chama a atenção para a indignação do autor, despertando no interlocutor a curiosidade dos motivos de tamanha revolta, ao mesmo tempo que anseia por saber a que ela conduzira e com que razões.
Mas nem sempre os recursos retóricos mais inusitados são imprescindíveis para a boa introdução do discurso, quer oral, quer escrito. Tomemos como exemplo o texto abaixo, fragmento inicial da réplica de Juarez Távora ao manifesto de Luís Carlos Prestes11:
Discordo do último manifesto revolucionário do G eneral Luís C. Prestes. Não julgo viáveis os meios de que pretende lançar mão, para executar um futuro movimento, nem aceito a solução social e política que preconiza para resolver, depois dele, o problema brasileiro.
Tem os tido - todos nós que hoje palmilhamos o cam inho da revolução - um mesmo ponto de partida: - a descrença na eficácia dos processos legais, para a solução da crise que asfixia a nacionalidade.
Depois, os rumos se abrem, as opiniões se desencontram, no lhe atribuírem as causas, no lhe prescreverem os remédios. Há os que de tudo criminam os homens, e há os que culpam, antes, o ambiente vicioso em que eles se agitam.
O exórdio do texto é muito convidativo: o autor já se posiciona quanto à questão que vai desenvolver: opõe-se ao manifesto de Prestes (àquela altura muito conhecido, bem utilizando o autor da intertextualidade) e diz não aceitar a solução social e política preconizada no discurso a que se opõe. Depois, mostra concordar com um ponto de partida:
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11. Em 31 de maio de 1930. In: FENELON, D. R. 50 textos de história do Brasil, p. 144.
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a revolução e a necessidade de mudanças. Assim, o leitor já tem como proposta, enfática e atraente, daquilo que forçosamente tem-se a desenvolver: as soluções sociais e políticas que o discursante deve propor, persuadindo a respeito de sua eficiência. Ao contrário do discurso político pouco incisivo que vimos no tópico anterior, este passa a ser atraente pelo fato de propor um posicionamento evidente e uma tese a ser defendida de imediato, aí então muito se assemelhando aos bons discursos judiciários.
O risco de fazer-se um exórdio incisivo, revelando o posicionamento e a tese, é o efeito deletério do discurso cujos argumentos não dão sustentabilidade devida à pretensão postulada: com uma introdução clara e enfática, o interlocutor cobra mais os bons argumentos, pois a eles estará mais atento. Se não os houver, o discurso perderá efeito.
E se muitos discursos pecam pela falta de ousadia em seu exórdio, o mesmo ocorre em se tratando do desfecho. Há poucas falhas piores na argumentação que terminar um discurso sem deixar claro ao interlocutor o que dele se pretende, e é esse o ponto principal da peroração argumentativa: fazer com que o interlocutor aceite a conclusão e compreenda o pedido, sem ter oportunidade de pensar que os argumentos expendidos não tenham contribuído para tal tese, sobre a qual havia controvérsia. Em curso de redação, proferimos uma aula somente sobre os pedidos finais: o magistrado deve sempre saber o que se lhe pede, com eficiência, até para facilitar sua decisão. Mas não é só do pedido que é construída a peroração, o desfecho do discurso: um desfecho bem enunciado, em que se alarga o espaço para a emotividade, eventualmente para a descontração, a ilustração ou a digressão sobre um tema mais relevante, desde que pertinente, traz a vantagem de atingir mais de modo mais próximo o interlocutor, e preservar-lhe o pedido na memória.
Da mesma forma que sua atenção cresce pela curiosidade ao início do discurso, também o ouvinte se atenta mais ao fim dele, quando percebe que está próximo, por saber
250 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
ser trecho importante. A última cena do filme, o último capítulo do livro ou as palavras finais da petição são sempre os mais lembrados, não sem motivo.
Aproveitar o início e o fim de cada discurso como fatores decisivos para a atividade suasória, e não apenas como "pontas" protocolares da argumentação, é dica importantíssima. Pois o que seria de Cícero se não dissesse "Quo us- que tandem abutere, Catilina, patientia nostra"?12
Criando argumentos
Em seis capítulos (VII a XII) vimos os tipos de argumento. Nosso objetivo, como esclarecido, foi apresentar os meios mais comuns da argumentação, seus fatores de persuasão e seus pontos fracos. A classificação serve para ampliar a gama daqueles argumentos de que já fazemos uso, e com uma sistemática fica mais prático lembrar idéias a serem lançadas a título de argumento: autoridade, senso comum, competência lingüística, exemplo...
São, entretanto, generalizações. É necessário conhecer cada caso, saber com profundidade cada um que se discute. A afirmação parece óbvia (ou é óbvia), mas relevante que seja frisada, se pretendemos responder a questão tantas vezes a nós repetida: como criar bons argumentos?
Aqui pedimos licença para observações pouco mais subjetivas, afastando-nos (mais) um pouco do rigor técnico para chegar à resposta objetiva da questão que levantamos, por nos parecer útil a este pequeno trabalho.
Dividiremos a consecução dos argumentos em duas fases: a primeira delas, o conhecimento amplo da matéria a ser discutida. O professor que não estuda a fundo aquilo que pretende ensinar pode ser o mais didático do planeta, e ainda assim dará uma péssima aula. Do mesmo modo, o tribuno do júri de mais brilhante erudição e oratória pode
12. Conhecido exórdio das Catilinárias.
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perder o plenário frente a um adversário gago, iniciante e pouco erudito, que se tenha dedicado horas intermináveis a conhecer cada letra do processo que iria a julgamento. Não há outra maneira de alcançar bons argumentos que não o estudo e o conhecimento da matéria principal que se deve discutir. Esse trabalho é imediato e deve ser feito caso a caso. Vale a pena ler o fragmento do discurso de Langdell, no fim do século XIX, citado por Vandevelde13:
Foi indispensável estabelecer pelo menos dois pontos: primeiro, que o Direito é uma ciência; segundo, que todo o material dessa ciência está disponível nos livros. [...] Temos insistido também na idéia de que a biblioteca constitui a oficina adequada de professores e estudantes; de que ela representa, para nós, o que os laboratórios da universidade representam para os químicos e físicos, o que o museu de h istória natural representa para os zoólogos e o que o jardim botânico representa para os botânicos.
Langdell, no Direito anglo-saxônico, defendia a idéia de que os casos jurisprudenciais, todos recolhidos e editados em livros, servem ao jurista para que deles pudesse aduzir as regras de Direito, em um método indutivo. Sem nos aprofundarmos no pensamento de sua escola e na propriedade de se inferirem regras jurídicas com base em princípios jurisprudenciais, o fragmento é correto ao afirmar que é a leitura o ponto de partida para o desenvolvimento de qualquer raciocínio, em nosso caso o argumentativo: sem a leitura (e a compreensão) exaustiva do caso e da matéria ju rídica a respeito, qualquer início de argumentação pode redundar em fracasso.
A segunda fase não pode ser feita imediatamente, e depende do acúmulo de conhecimento lento, mas importante. Da mesma forma que não há argumentação que possa ser feita sem o conhecimento aprofundado da matéria
13. Pensando como um advogado, p. 149.
252 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
específica, não há bom orador ou escritor que não seja dado à cultura geral, à erudição como um todo. Grandes questões da humanidade podem ser resolvidas não em discursos técnicos, mas em uma conversa sobre pintura, música, história, personalidades e outros temas mais genéricos, e isso é fato. Não cabe ao discurso judiciário analisar tais questões, mas pode-se dizer que a maior abrangência do argumento abre espaço no interlocutor para a persuasão: as ilustrações e os exemplos, que já foram estudados; se não o fizer, no mínimo contribuirá para o argumento de competência lingüística, pois a boa enunciação não vem da técnica jurídica, mas do trato com as matérias humanas em geral. Aliás, a grande vantagem do Direito, para os argumentantes, é que, como matéria humana, aceita em tese quase qualquer tema em seu discurso: filosofia, sociologia, antropologia, psicologia, história e... até mesmo a matemática já se encaixou tão bem em exemplos argumentativos que aqui analisamos. É a grande dinâmica de nosso discurso.
Ousamos repetir: para o argumentante, não há leitura que seja desperdiçada, pois é no acúmulo dela que se complementa essa segunda fase argumentativa: as digressões, ilustrações e exemplos que funcionam como embreagem dos argumentos mais rígidos, atingindo a adesão dos espíritos o contato com o interlocutor, até mesmo no discurso escrito. Novamente, é nos livros que se procuram os argumentos, como bem lembrou o velho Sousa, personagem de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha14:
Afonsinho - Não, Sousa, memorandum é pra lembrar e dem o- randum é quando demora muito... Entrementes, é assim... Queria viver na Roma Antiga... no Senado, formado pelos senectos, os velhos, os antigos... Aquela gente adorava a velhice, a velhice dava ibope...Sousa - E... mas veio o Gutenberg, inventou a imprensa, e a experiência agora está nos livros. Saímos de moda.
14. Nossa vida em fam ília, p. 90.
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Não é certo que a experiência seja substituível, como quer mostrar o personagem, mas é bem verdade que é deles que os indivíduos de leitura constante têm repertório argumentativo mais amplo. Por isso, conselho de ordem bem prática: uma biblioteca organizada e o interesse pelos livros em geral fazem o pano de fundo da argumentação. Daí basta estudar o processo argumentativo, dele tirar noções concretas como aqui se demonstra, e assim toda nova leitura, ainda que feita em mero momento de lazer, poderá ser dirigida à formação de uma argumentação posterior. Trabalho longo, mas sempre frutífero15.
Quanto à forma de estimular o raciocínio para a criação de argumentos, vale consultar o último capítulo, que cuida da criatividade.
Argumentar ou mostrar erudição?
No capítulo seguinte, trataremos um pouco dos excessos argumentativos, quando argumentar demais prejudica o interlocutor. Mas, já neste ponto, cabe uma dica específica: ainda que os bons argumentos venham da erudição, da leitura crítica do material que se dispõe, com vistas a transformar a informação em argumento, os excessos podem ter efeito deletério, como aliás todo excesso.
Essa observação parece-nos importante porque existe a tendência, entre os pseudo-eruditos", de construir argumentações com excessos de citações e referências, atendendo ao que diz o jargão: "Não ensine nada, apenas mostre que você sabe." Argumentações não são tablado para citações nem exercícios de reprodução de textos alheios: apenas mostrar pesquisa geralmente não é fator de persuasão,
15. "Litterarum radices amaras, fructus dulces” - As raízes da cultura são amargas, mas seus frutos são doces.
16. '‘Altíssima quaque flumina mínimo sono labi" - Quanto mais profundos os rios, menos ruidosa a correnteza.
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mas, não raro, de grande desinteresse do leitor. A informação, pois, é argumento na medida em que colabora para a tomada da decisão, e não apenas quando é matéria teórica relacionada ao tema sobre o qual se disserta. Por isso, a dica tão prática:
Seja interessante: não diga tudo o que sabe, mas apenas o que os leitores querem saber.17
Pois a argumentação é um constante equilíbrio.
Conclusão
Além dos tipos de argumento, a atividade suasória depende de outros fatores para seu sucesso. A coerência, a in- tertextualidade, que já havíamos estudado, e, aqui, a honestidade e a boa disposição dos argumentos. Pensar em ser leal com o interlocutor e com a parte contrária não é apenas um princípio ético, já que tem seu efeito pragmático: basta lembrar que não há mentira que se sustente por muito tempo ou que seja irredutível a uma mente mais crítica.
Quanto à ordem dos argumentos, o essencial é lembrar que ela depende de cada discurso, mas que seus momentos principais não podem ser desperdiçados. Utilizar um lugar-comum para o exórdio ou a conclusão do discurso apenas para ter como começar ou terminar pode representar o insucesso de um contexto de argumentos altamente persuasivos.
17. In: CONQUET, André. Como escrever para ser lido, p. 91.
Capítulo XIV
Espaço da argumentação jurídica: sentença e teses subsidiárias
A sentença judiciária também é lugar da argumentação. Como processo suasório, a ela não basta enunciar com coerência uma tese ganhadora, mas convencer a parte su- cumbente de que suas razões não foram aceitas por motivo razoável.
Depois de analisadas as técnicas argumentativas gerais, reservamos este capítulo para alguns breves comentários, sobre duas questões peculiares do discurso jurídico, que entendemos não poder deixar de lado, principalmente pelo quanto nos ensina, de maneira contínua, a efetiva operação nos procedimentos judiciais.
Mantendo, claro, o prisma de análise na argumentação jurídica, não queremos sequer tangenciar o Direito processual, pois isso demandaria um estudo diferenciado, afastando-nos de nossos objetivos. Se o fizermos, entretanto, será somente para não fugir à análise mais completa, ainda que sucinta, da problemática que se colocará em nosso contexto discursivo.
Sentença como espaço argumentativo
No Capítulo III, cuidamos da diferença entre fundamentação e argumentação. Grosso modo, lembramos que a fundamentação tem seu centro na pessoa que enuncia, enquanto a argumentação tem como cerne a pessoa a quem se enuncia. Quando o juiz fundamenta, explica seu próprio raciocínio segundo as provas apresentadas, os motivos que o levaram a decidir, ao passo que quem argumenta, além de constituir um raciocínio logicamente aceitável e persuasivo,
256 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
preocupa-se em enunciá-lo com elementos lingüísticos, de conteúdo e de forma, que facilitem a aceitação do interlocutor sobre a tese que procura fazer valer.
A sentença é, pois, discurso decisório. Quem julga decide, e decide pelo melhor. A fundamentação da sentença é, então, a justificativa arrazoada da decisão, e deve ser bem detalhada, para explicar às partes sobre sua razão, também manifestando aos jurisdicionados, como já se disse, que ela não é fruto de mero arbítrio, em nenhum de seus trechos, mas sim de um raciocínio lógico e justo de aplicação da lei ao caso concreto. O único limite para a decisão do juiz é, pois, sob o ponto de vista argumentativo, o uso do áesarra- zoado, pois qualquer teor decisório pode ser prolatado, desde que suas razões sejam efetivamente convincentes, em um percurso lógico.
Mas esse raciocínio, correto, de que o limite da decisão judicial é o uso do desarrazoado, ou seja, que ao julgador somente é defeso decidir aquilo que deixar de fundamentar, com - no mínimo - o ordenamento jurídico e as provas colhidas no processo, tem levado a uma interpretação que, a nosso ver, é fraca e errônea: a difundida falta de obrigação do julgador de responder, uma a uma, às alegações das partes.
Em nossos tribunais, ao menos por ora, tem-se fixado o posicionamento jurisprudencial de que o juiz, quando encontra um fundamento suficiente para a prolação de seu ato decisório, não necessita responder, uma a uma, às alegações das partes. Tal posicionamento, entendemos, merece interpretação absolutamente restrita.
Pouco adiantaria - e isso é pacífico em nossa doutrina- o ordenamento processual zelar tanto pela oportunidade de manifestação das partes, pela ampla defesa e contraditório efetivos se, em contrapartida, não houvesse garantia de que todas essas manifestações fossem efetivamente respondidas no provimento jurisdicional1. Mas não é apenas
1. Vide arts. 5o, XXXIV, LIV e LV, e 93, IX, da Constituição Federal; art. 165 e 458, II, e 381 do CPP.
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esse fundamento evidente, de cunho processual, que faz com que entendamos que a decisão judicial deve ter, como teor obrigatório, a explicação dos motivos por que não são aceitos os argumentos expendidos durante o curso de todo o procedimento submetido a exame.
É que o ato de decisão não é o mesmo que o de demonstração. A demonstração é própria do raciocínio exato2, tão afastado da realidade dialética das lides processuais. Quando um matemático demonstra que o resultado de uma equação é três, não precisa demonstrar por que não é quatro, cinco ou seis. Se o resultado é três, todos os demais algarismos, contrario sensu, estão obrigatoriamente afastados daquela resposta. Não existe resultado melhor ou pior no raciocínio demonstrativo, assim como não há um resultado mais justo para uma equação matemática, mas apenas um único, exato. Neste caso, exato, e somente neste, apontar um único fundamento (por exemplo, um único método de resolver uma equação) já é o suficiente para a demonstração, pois qualquer outro caminho aceitável para resolver o mesmo problema alcançará idêntico resultado.
Mas quando se submete uma controvérsia a uma decisão, a situação é muito diversa. Já vimos, no capítulo apropriado, que o discurso judiciário pode se desenvolver na disputa entre dois certos, ou seja, pode haver dois discursos completamente antagônicos, sem que qualquer um deles seja certo ou errado, sendo ambos verossímeis, cada um a seu modo, cada um com sua perfeita coerência. Cabe decidir qual é o melhor e em que condições.
Nesse contexto, seria simples o ato decisório se consistisse em apenas reproduzir os motivos de anuência com um dos discursos argümentativos das partes litigantes. Afinal, se o discurso de uma das partes não for contraditório (e essa contradição é muito rara), bastaria ao texto decisório parafraseá-lo, e então, só por isso, já nasceria uma decisão
2. Vide Capítulo III.
258 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
judicial perfeita. Não é assim: o grande trabalho do ato de decisão, fundamentada, a nosso ver, é a explicação à parte perdedora (ainda que ambas sejam sucumbentes) dos motivos pelos quais cada uma de suas alegações não foi aceita. Isto é decidir.
Portanto, entendemos que o juiz pode deixar de responder uma a uma as alegações da parte, nos trechos a que houver dado provimento ao pedido a que tais alegações houverem se direcionado. Todavia, os argumentos dirigidos a pedido não provido devem ser respondidos um a um, sob pena de grave falha na fundamentação do julgado, abrindo espaço ao arbítrio. Pois esse procedimento pode levar a total desconsideração das alegações de uma das partes.
Teses subsidiárias e efeito argumentativo
Certa vez, em sala de aula, provocamos com um exercício uma proveitosa discussão, que, se resultou em uma pesquisa com critérios tão imperfeitos que não nos autoriza a usar suas conclusões, ao menos fomentou boas reflexões a respeito de um tema com o qual os operadores do Direito amiúde se deparam, mas pouco comentam: a pertinência e os fatores persuasivos da tese subsidiária.
O exercício era um caso criminal, em que os alunos deveriam apresentar por escrito as alegações finais do artigo 500 do Código de Processo Penal. O réu, denunciado por latrocínio, queria participar de crime menos grave, o de roubo, e, pelo que a prova apontava, não podia prever a morte da vítima, executada por seu comparsa; aliás, sua participação, até no roubo, era de menor importância. Se as alegações conseguissem provar essa tese, a pena do acusado, em comparação com a pretendida na denúncia, seria amplamente minorada3.
3. Arts. 13, 129, §§ 1? e 2° 157, caput e § 3?, todos do CP.
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Entretanto, havia no processo provas seguras (embora não irrefutáveis) de que o mesmo réu não haveria participado do crime, pois, naquele caso fictício, nenhuma testemunha o reconhecia pessoalmente; existiam outros indícios que apontavam sua culpa, mas não vem ao caso mencioná-los. A negativa de autoria, se aceita, era, sem dúvida, mais favorável ao réu, todavia era difícil - mas não impossível - comprová-la.
O problema era evidente: dever-se-ia defender a negativa de autoria ou a participação de menor importância? Optar pela mais vantajosa ao réu (negativa de autoria), porém com menos provas, ou pela menos interessante (participação de menor importância), com maior conteúdo probatório? Ou ambas deveriam ser articuladas?
Neste último caso, nada incomum em nosso Direito, a evidente falta de coerência entre as teses: se o réu não cometeu o crime, porque não participou da cena criminosa, como dizer-se, depois, que sua participação era de menor importância? Não se trataria de uma argumentação autofá- gica, em que uma tese destruiria a outra, e daí a probabilidade de nenhuma delas sair vencedora?
Nesse contexto, a negativa de autoria seria a tese principal, mais vantajosa, e as demais, menos vantajosas, funcionariam como teses subsidiárias, ou seja, aquelas que apenas devem ser levadas em consideração no caso de a principal ser descartada. As perguntas, então, anteriormente articuladas, são comuns a todos os casos de tese subsidiária, até mesmo na enunciaçâo de questões preliminares antes de se adentrar no meritum causae.
No intuito de enfrentá-las, do ponto de vista argumentativo, algumas considerações devem ser feitas.
Argumentar é colocar em dúvida
Para iniciar a discussão, invoquemos um pronunciamento do intelectual Noam Chomsky, respondendo à im
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prensa sobre a política estadunidense haver ou não dado causa ao atentado no World Trade Center4:
Os EUA não pediram por esses atentados? Eles não são uma conseqüência da política americana?
Os atentados não são uma conseqüência direta da política americana. Mas, indiretamente, são: não há mínima controvérsia a esse respeito. Parece haver pouca dúvida quanto ao fato de os responsáveis virem de uma rede de terrorismo que tem suas raízes nos exércitos mercenários que foram organizados, treinados e armados pela CIA, Egito, Paquistão, pela inteligência francesa, pelos fundos provenientes da Arábia Saudita e similares. A história desse episódio permanece de alguma forma obscura. A organização dessas forças iniciou-se em 1979, se dermos crédito ao consultor de Segurança Nacional do governo Carter, Zbigniew Brze- zinski. Ele afirma, e pode não estar contando vantagem, que em m eados de 1979 estimulou um apoio secreto à luta dos mujahidin contra o governo do Afeganistão, de modo a atrair os russos para o que chamou de arapuca afegã, uma expressão que vale a pena retermos na memória. [...] Os EUA, juntam ente com seus aliados, reuniram um enorm e exército mercenário, composto talvez de mais de 100 mil homens, arregimentados dos setores mais radicais que puderam encontrar, que eram justam ente os islâmicos radicais, tam bém chamados de islâmicos fundamentalistas [...]. Bin Laden juntou-se a esse exército em algum m om ento dos anos 1980.
O discurso de Chomsky é bastante exemplificativo: afirma, primeiro, que não há nenhuma controvérsia a respeito de a política americana haver indiretamente sido responsável pelo ataque terrorista em território norte-americano; todavia, ao mesmo tempo que assenta de forma expressa não haver tal dúvida a respeito, disserta longamente sobre a política norte-americana de formação de um corpo mercenário, ao qual aquele apontado como principal res
4. 22 de setembro, p. 94.
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ponsável pelo atentado às torres gêmeas ter-se-ia juntado em 1980. Com qual intenção Chomsky desenvolve esse conteúdo informativo? Apenas para ensinar ou mostrar sua erudição? À evidência não, pois o intelectual não mais precisa desse recurso.
Chomsky disserta a respeito da política norte-americana porque, apesar de afirmar não haver controvérsia sobre a ligação entre ela e o atentado de 11 de setembro de 2001, quer comprovar essa mesma ligação a seu interlocutor. E então a conclusão é inevitável: se o discursante pretende mostrar essa ligação, persuadindo o interlocutor sobre sua existência, é porque ela, na realidade, não é incontroversa5. Sobre o que é incontroverso não são necessários argumentos, e todo interlocutor sabe bem disso.
A desvantagem de impor uma argumentação é o pressuposto, anteriormente enunciado, de que toda conclusão a que se pretende chegar é controversa, caso contrário a argumentação é despicienda, passa a ser mero discurso de exaltação. Por isso, toda a argumentação começa - queira ou não o argumentante - por mostrar uma dúvida a respeito daquilo que se pretende comprovar, e em certas ocasiões isso pode ter efeito deletério; assim, quando os argumentos não são mais fortes ou persuasivos que o pressuposto da dúvida de quem começou a defesa de determinada tese. Valemo-nos de Perelman, em explicação sucinta6:
Cabe lembrar que toda argumentação é o indício de uma dúvida, pois supõe que convém precisar ou reforçar o acordo sobre uma opinião determinada, que não estaria suficientemente clara ou não se imporia com força suficiente. A dúvida levantada pelo simples fato de argumentar a favor
5. No discurso, a afirmação de Chomsky de que "não há mínima controvérsia a esse respeito" significa "nenhuma controvérsia entre os especialistas", mas há controvérsia em relação ao ouvinte, caso contrário a argumentação seria absolutamente desnecessária.
6. Tratado, cit., p. 544.
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de uma tese será tanto maior quanto mais fracos parecerem os argumentos utilizados, pois a tese parecerá depender desses argumentos.
Quando Chomsky passou a argumentar a favor da tese que disse incontroversa, ela imediatamente passou a depender dos argumentos que ele expendia, e então já não podia adotá-la como premissa, mas apenas como fato a ser comprovado. Seus argumentos, claro, sustentaram bem sua tese, e era essa sua intenção, portanto nada há que criticar.
Mas o exemplo nos serve para mostrar o quanto a argumentação pode ser prejudicial quando a fazemos em excesso7. Pois é senso comum que o silêncio, em oportunidades apropriadas, pode ser muito mais persuasivo que muitos argumentos8.
Por cuidar-se de coerência - e aqui a temos abordado continuamente não se pode dizer que a abundância nunca é prejudicial. Argumentos supérfluos podem afetar a coerência e, o que é pior, implantar dúvida a respeito daquilo que já estava a caminho de parecer ao interlocutor premissa indiscutível.
Agora, sim, podemos voltar às teses subsidiárias.
Tese subsidiária e aceitabilidade em juízo
Pela teoria da argumentação já se percebe o posicionamento sobre as teses subsidiárias em juízo, ainda que implique pequeno raciocínio contrario sensu: por mais que se usem artifícios de enunciação como por amor ao argumento, "na absurda hipótese de não aceitação da tese principal (de negativa de autoria, de ilegitimidade de parte, de falta de justa causa, de exoneração da fiança, de inexistência de dívi
7. "Septem convivium, novem vero convicium" - Sete fazem um banquete; nove, uma balbúrdia.
8. "Non minus interdum oratorium esse tacere quam dicere" - Às vezes calar nâo é menos eloqüente do que falar.
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da...)", a mera enunciaçâo da tese e sua argumentação levam logicamente ao interlocutor a densa possibilidade de a tese subsidiária ser provável, e por vezes até mais forte que a principal: se esta valesse de todo, o enunciante não se daria ao trabalho de articular outra, sobressalente9.
Sem dúvida, a enunciaçâo da tese subsidiária enfraquece a principal, por passarem ambas a sustentar-se por argumentos diversos, competindo entre si, o que abre a possibilidade de a subsidiária aparecer como mais fundamentada e equilibrada.
Mas isso é muito diferente de afirmar que exista incompatibilidade lógico-jurídica entre tese principal e subsidiária, ainda que ambas apontem para caminhos distintos que não se coadunem. Todo magistrado conhece, ou deveria conhecer, o princípio de que o defensor tem por obrigação sustentar todas as alegações que sirvam aos interesses a que atende, dentro de princípios éticos. Assim, o que pode ser incompatível perante a impropriamente denominada lógica comum, no contexto jurídico deve ser aceito naturalmente, sem nenhum prejuízo. Em última análise, entendemos que pode ser ofensa ao artigo 5?, XXXV, da atual Constituição Federal, que trata do acesso ao Poder Judiciário e do direito de petição.
Em nosso caso comentado no início do presente capítulo, então, parece evidente que a tese de negativa de autoria e a participação de menor importância, à primeira vista incompatíveis, podem ser sustentadas em paralelismo, sem que isso importe enfraquecimento de nenhuma das duas teses. Ao menos ao magistrado técnico; no tribunal do júri, seria gravemente recomendável que o discursante sustentasse apenas uma delas e deixasse a outra de lado, como se não existisse, pois será difícil explicar todo o percurso da subsidiariedade ao jurado, com matéria de prova mais importante a ser discutida.
9. "Noli rogare, quotn impetrare nolueris" - Não peças quando não quise- res obter.
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A fundamentação do juiz: demonstrativa ou argumentativa?
Em relação à fundamentação da sentença, pode-se colocar questão relevante ao estudo argumentativo. Garantida a fundamentação de todos os julgados por força constitucional, e sabendo-se que essa fundamentação atende a princípios de construção de discurso, com língua natural, premissas verossímeis e percurso selecionado pelo argumentador, pode-se impor a questão: o texto motivador da sentença representa efetivamente o caminho que o magistrado criou para chegar a sua conclusão? Ou, por outro lado, trata-se de um discurso criado para dar arrimo a uma conclusão já formada, talvez por motivos que não coincidem com aqueles que serão expressos no texto fundamentador?
Miguel Reale Jr. defende, expressamente, que: "Por estas razões a justificação não é reconhecida como o 'iter for- mativo da decisão', mas um discurso fundamentador que o julgador realiza ex post, para demonstrar as razões de sua convicção, construindo e não reconstruindo o caminho racional que o levou a reconhecer que um determinado fato ocorreu de fato, e que se adapta a uma figura normativa, interpretada de uma determinada forma"10.
Para os limites deste capítulo, a polêmica mostra-se nuclear. Porque, caso se admita que o juiz, ao iniciar sua fundamentação, já tem formada sua convicção por outros fatores que não aqueles que aparecem ou aparecerão em seu texto, é certo que utiliza as técnicas de argumentação para construir um discurso que não é exatamente fiel a seu pensamento e suas convicções.
Não se pode negar que a persuasão do magistrado dá- se em um contexto repleto de subjetividade. Caso fizéssemos essa negativa, grande parte das técnicas aqui apresentadas desde logo cairia por terra, porque visa a essa mesma
10. "Razão e subjetividade". Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, p. 239.
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subjetividade. Por isso, correto é o autor citado ao asseverar que: "Há situações, portanto, psicológicas e sociológicas que condicionam a compreensão do fato e da norma, levando a valorações antecipadas, como decorrência da educação familiar, do círculo cultural a que se pertence, da posição social que se ocupa, da história de vida. Esse realismo psicológico, na expressão de Zaccaria, conduz, sem dúvida, a uma visão subjetiva e emocional de pré-compreensão, que se antepõe à busca de uma decisão não arbitrária, racionalmente fundada."
Nesse ponto, constrói-se a idéia do juiz como um argumentante comum. Com suas convicções pessoais, que não são puramente emocionais, mas também o são, construiria seu texto fundamentador como forma de justificar às partes a razão de seu decisório, no sentido de convencê-las (o que não significa agradá-las) de que ele, quem decide, está correto. Assim, o juiz está, em certa medida, também adstrito à regra de que os raciocínios que o levam a determinado convencimento não necessariamente coincidem com aqueles que levam o ouvinte ou leitor a aderir a esse mesmo convencimento, como expusemos no Capítulo III.
Chegar a essa convicção significa, na atividade forense, valorizar ainda mais as técnicas de convencimento, reconhecendo outra vez que elas não seguem um percurso único e exato, o que é apenas um mito. Aquele que decide é influenciado por posicionamentos morais, políticos11, por motivações psicológicas, ainda que elas possam não apare
11. Nesse sentido, a observação de Roberto Bergalli, da Universidade de Barcelona: "Como se sabe, con la demostración de la función política de la ju- risdicción ha caído el mito político dei apoliticismo de los jueces que es, sin duda, el principio más celosamente defendido por aquellos sectores de la magistratura que se refugian en él como reflejo de una precisa acción política. Ser apolítico es declararse tal para esos sectores de jueces no significa en efecto estar fuera o por encima de la política sino, al contrario, adherirse pasivamen- te a los valores políticos e ideológicos dominantes, consecuencia de los cuales el poder es siempre 'apolítico', mientras 'políticas' son sólo las fuerzas que ejercen la oposición" (in: Jueces y juristas en la ínterpretación y aplicación dei de- recho, p. 29).
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cer em seu discurso de fundamentação, ou ao menos não expressamente.
O fato de se entender que a decisão judicial é tomada por fatores ex ante e que, ao fundamentar, o juiz atende às mesmas regras de intertextualidade e de consideração do auditório que, por exemplo, o advogado, não desmerece a devida fundamentação, exaustiva. Afinal, a fundamentação da decisão continua a ser um dos fatores que pode permitir sua reforma, já que não se pode obrigar a sociedade a ater- se a idiossincrasias do julgador, mesmo que as tolere, por constituir fator do ser humano.
Ainda assim, a questão não aparece resolvida. Porque se entendemos que a fundamentação do magistrado acaba por recair nas técnicas de argumentação em sentido estrito, nossa distinção entre uma e outra cai por terra (vide Capítulo III). De fato, a distinção subsiste.
A fundamentação da sentença assume técnicas de argumentação visando convencer as partes, mas não o faz explicitamente. Porque, se o fizer, acabará por retirar algo da segurança da decisão judicial. Portanto, ainda que na sentença apareçam as técnicas de argumentação, o discurso que ali surge deve ao menos simular reproduzir um percurso de raciocínio feito pelo próprio magistrado, as razões fundamentadas de sua convicção segundo o que lhe é alegado e comprovado. O que recai, mais uma vez, em uma atividade intencional de construção de texto, muito argumentativa. Novamente o papel das técnicas de argumentação é valorizado.
Conclusão
No filme Os bons companheiros, um clássico de Scorse- se, Robert de Niro, interpretando um gângster famoso, chefia um assalto muito bem-sucedido. A toda sua equipe de ladrões paga o combinado: grande soma em dinheiro e outras recompensas pelo sucesso da operação criminosa, me
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nos a um deles, que insiste a todo momento em receber sua parte. De Niro não verbaliza, mas deixa claro que o outro personagem não recebe seu dinheiro apenas porque o pede com excesso de obstinação. Talvez o fato de tanto insistir revele que, no fundo, o personagem não se ache tão merecedor de sua satisfação. Se não insistisse tanto, teria sua paga. Coisas de gângsteres. Todo interlocutor consegue perceber quando o excesso de argumentação prejudica, mas o bom operador do Direito não pode agir como o personagem do cinema, desprezando aquele que, por excesso de zelo, excede-se no pedido.
Quando se trata de argumentação jurídica, deve-se levar em conta o interlocutor principal, juiz de Direito. Como juiz, conhece seu dever de provimento jurisdicional. Por isso, exige dos responsáveis pelo julgamento atenção à argumentação expendida, e isso se faz por meio da fundamentação, com a apreciação de todas as teses articuladas. As subsidiárias, ainda que possam tender ao excesso, não representam elementos aptos a prejudicar teses principais, mesmo que logicamente incompatíveis. Ao menos no contexto jurídico.
Capítulo XV
Peculiaridades do discurso oral
O recurso aos gestos e ao movimento, em aspecto visual mais presente, somado ao uso do som - a voz conferem ao discurso oral distinções relevantes, objeto de estudo da oratória.
Discurso oral e discurso escrito
A argumentação pode ser transmitida, como já tratamos neste livro, de diversas formas. Raro o discurso que não tenha primordialmente o escopo suasório, a vontade do dis- cursante de convencer o interlocutor.
Mas as formas de comunicar-se são bastante diversas. Aliás, qualquer ação humana tem um sentido comunicativo, desde que transmitida em um comportamento social; até a omissão humana, a inércia, também pode ser encarada como um omitir comunicativo, o "silêncio eloqüente" de muitos discursos.
Variando os meios de comunicação, as formas de comu- nicar-se, diversificam-se também os argumentos, já que estes, como anteriormente definidos1, são elementos lingüísticos destinados à persuasão do ouvinte. No discurso judiciário muito se questiona a respeito da forma que os argumentos assumem, do modo como são transmitidos. Ainda que entre nós esteja vigente o princípio da oralidade nos processos2, é certo que a praxe leve a que a maioria das razões expostas no discurso judiciário apareça em texto escrito. Sobre a téc
1. Vide Capítulo II.2. Cf. arts. 474, 554, 538, § 2o, 610, 613, III, do CPP, e c. 1.657 e 1.658 do
Código Canônico, entre outros.
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nica da produção do texto escrito se falará no capítulo posterior. Quanto ao discurso oral, representa também matéria atinente à oratória, uma das vertentes do estudo da argumentação.
Não se pode definir qual seja o melhor meio para a exposição da argumentação. Cada qual tem seus próprios recursos e suas próprias limitações. Por exemplo: se, de um lado, na argumentação escrita há a grande desvantagem de o leitor poder ser convidado a uma leitura menos atenta, "pulando" muitos trechos a serem lidos, por outro há a vantagem de que a predisposição do interlocutor é maior, na medida em que ele mesmo está propulsivo à leitura, coloca-se diante do texto escrito e regula sua própria concentração. Entretanto, a impossibilidade de o discursante acompanhar as reações do interlocutor faz com que seu discurso não possa variar de acordo com a aceitabilidade de cada argumento; por outro lado, ao não agir de improviso, o texto escrito permite muito maior pesquisa, completitude e perfeição.
Para cada meio, sua forma peculiar. O diretor de cinema pode achar impossível realizar uma boa peça de teatro pela ausência de recurso aos efeitos especiais; o diretor de teatro pode achar dificílimo gravar um filme pela impossibilidade de contato do ator com a platéia, com a frieza do telão, pela ausência física dos atores. E evidente, entretanto, que a forma influencia o conteúdo, e o argumentante deve sempre planejar seu conteúdo, os fundamentos e principalmente os argumentos, considerando a mídia, o meio de que se utilizará.
Discurso oral, papel e evidência
Toda vez que discursamos, constituímos uma relação interpessoal. Nessa relação, travamos discussões que são regidas por normas de condutas sociais, pois a sociedade aguarda de cada um de seus componentes certo tipo de com
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portamento, ao qual o homem toma-se adequado, sob pena de fugir às normas sociais, o que representaria, na maioria das situações, uma atitude comunicativa não desejada.
A ação humana, no contexto social, tem qualidades dra- matúrgicas, representações que determinam situações-pa- drão aos ouvintes. Por exemplo, o vestir branco do médico, o terno e a gravata sóbrios do parlamentar ou até mesmo o sotaque regional de um candidato a governo que pretende com ele a identificação de sua origem, idêntica a muitos de seus eleitores etc. Quando o discursante busca a aceitação de seu discurso e de sua imagem, pretende não apenas ser aceito, mas ser aceito de determinada maneira, que infere das regras sociais, ou, no mínimo, de seu próprio auditório.
Em qualquer ação, em virtude da necessária adequação social, encontram-se certos padrões de estilo que aproximam - é lícito dizer - a ação humana da representação teatral3; essa representação está presente em nosso comportamento, na medida em que a todo momento representamos determinado papel social, advogado, juiz, pai, aluno, professor, vendedor, comprador, cliente, visitante, anfitrião etc.
Grosso modo, diante das convenções sociais, e conscientes de sua existência e seus limites, representamos a todo momento, não como forma de fingimento, mas sim de adequação a normas de convívio social, em um agir conforme o que a sociedade espera. Ora, se o objetivo da argumentação é o de que o interlocutor aceite nossas idéias e opiniões, a regra (que, como tal, tem exceções) é que o argumentante busque o cumprimento dessas mesmas normas, facilitan
3. "Para ciertos proósotis las personas controlan ele estilo de sus accio- nes (...) y lo sobreponen a otras actividades. Por ejemplo, el trabajo puede ser realizado de um modo que se ajuste a los princípios de una representación dramática con el fin de proyectar una cierta impresión de la gente que está trabajando a um ispector o a um directivo (...) em realidad lo que la gente está haciendo rara vez queda adecuadamente descrito como solamente comoe o solamente trabajar, siempre tiende ciertos rasgos estilísticos que poseen significados convencionales asociados com tipos reconocidos de papeles dramáticos" (GOFFMAN. In: HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa I: Racionalidad de la acción y racionalización social, pp. 131-2).
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do a permeabilidade da mente do interlocutor às idéias e opiniões que profere.
O cumprimento dessas normas aparece no texto escrito: desde a boa linguagem, o cumprimento das regras gramaticais, o texto que procura fazer cômoda sua leitura, até o tamanho quase padronizado do papel, a boa impressão, a limpeza. Porém é no discurso oral que o cumprimento, por vezes dramático, dessas normas de adequação social torna-se mais claro, porquanto o discursante é colocado em evidência.
Observadas todas as regras relativas à argumentação aqui já expendidas, na exposição do discurso oral deve o discursante, como primeiro ponto, levar em consideração que será colocado em evidência, ou seja, à observação livre de todos os seus interlocutores. Se o discursante pretende fazer com que os ouvintes assumam seus pensamentos, deve desejar despertar a atenção de todos eles, e é essa atenção (o colocar-se em evidência) que traz peculiaridades a seu discurso.
Ter para si direcionados olhares atentos importa, então, em grandes diferenças entre o fa lar comum e o discursar oralmente, ao menos se se pretende um discurso fecundo. Quando a figura, a imagem do corpo transforma-se em objeto de análise visual do interlocutor, este principia a observar formas em que antes jamais houvera reparado: uma pessoa que tem a coluna torta, uma postura pouco adequada, quando discursando, colocada à apreciação pública pode, se não cuidar de endireitá-la, transmitir a seu público a imagem de pessoa fraca, quando não de uma deficiência física grave, que sequer existe. Um pequeno gaguejar, uma roupa pouco limpa ou apertada demais, tudo transforma- se em objeto de apreciação do espectador, já que assiste a um discursante colocado em evidência. Quantas vezes não reparamos, ao vermos pela televisão um entrevistado, que o nó de sua gravata está torto, que ele tem determinada dificuldade de fala, que repete sobremaneira uma palavra em cacoete? Várias! Quantas vezes reparamos nesses mesmos detalhes em uma simples conversa de negócios, em um al
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moço ou reunião com alguém? Muito poucas, com certeza.O discurso oral do argumentante deve ser muito mais
cuidadoso e alerta quando este se coloca à apreciação pública, ou seja, em evidência. Sem que o espectador possa perceber, ele se torna muito mais crítico à imagem que lhe é colocada em evidência, e isso deve fomentar transformações graves no discursante, no orador. O advogado, quando se coloca diante dos jurados, pretende prender-lhes a atenção durante, no mínimo, o tempo de sua primeira fala, de aproximadamente duas horas. Durante esse lapso, colocar- se-á à observação pública, e será, gesto a gesto - assim é o que pretende - atentamente acompanhado pelos olhos do seu público. Tendo consciência disso, deve atentar para detalhes que, em razão da magnitude da atenção que passa a ter de seus ouvintes, constituem elementos relevantes: apresentação, dicção, gestos, expressão facial.
A magnitude da atenção permite também expressividade mais exacerbada4: os gestos maiores, mais firmes como os de um político acostumado a inflados discursos podem parecer, diante de uma platéia diminuta, como a reunião de uma empresa ou uma audiência em pequena sala no fórum, ato de absoluto desequilíbrio. E, contrario sensu, exigem do orador maior compenetração e cálculo (intenção) em seus gestos e suas palavras: um discurso pouco inflamado, adequado a uma calma exposição a uma banca ou a poucos ouvintes, pode parecer, em uma platéia mais extensa, falta de segurança, de coragem ou de personalidade do ouvinte; talvez, timidez.
Quando o orador coloca-se diante da platéia, supre, então, a expectativa desta. Deve, em primeiro lugar, ter consciência que o fato de ser observado com atenção fermenta todas as suas qualidades e os seus defeitos, e portanto zelar
4. Como ensina Reinaldo Polito: "Uma boa regra a ser observada para os gestos é que quanto maior a platéia e mais inculta, maiores e mais abrangentes deverão ser os gestos, e quanto menor e mais bem preparado intelectualmente for o público, menor e mais moderada deve ser a gesticulação" (www.polito.br/artigos) .
274 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
pela imagem nunca é exagero. Em segundo lugar, deve levar em conta que a platéia exige a representação de um papel social, o que implica um conjunto de comportamentos que são essenciais no momento da enunciação do discurso.
Predisposição à argumentação no discurso oral
Em relação ao texto escrito, costuma-se apontar a vantagem do discurso oral, por ser ele mais estritamente dialógico. Isto significa dizer que aquele que argumenta tem como direcionar seu discurso à platéia, fazê-lo de acordo com suas reações, em uma estrita interatividade. Essa idéia, entretanto, nem sempre corresponde à realidade, pois existem muitos auditórios hostis, que não se encontram em nada predispostos a sequer escutar o orador, quanto mais a alterar determinado posicionamento que já tenham assumido, por conta de argumentos que lhe sejam lançados oralmente.
Conquistar um auditório apenas com palavras não é tarefa fácil e depende muito do fator ilocucionário do discurso, ou seja, daquilo que não é expresso: o poder do orador e o interesse que cada ouvinte possa ter no tema desenvolvido. Certamente, um deputado terá maior facilidade em conquistar a atenção dos ouvintes quando a matéria sobre a qual discursar for controversa, assim como o advogado consegue maior atenção dos desembargadores para quem sustenta razões se sua tese trouxer alguma novidade, ou se a causa que defende contar com grande interesse público ou acadêmico. São todas questões com as quais deve contar o orador, e que não se apresentam necessariamente no texto escrito, de modo tão dinâmico.
O interesse na matéria objeto da sustentação deve ser fomentado pelo orador5. Rara tanto, lança mão não apenas da entonação de voz e da gesticulação, mas de argumentos
5. Winston Churchill bem enunciou a dificuldade de prender a atenção da platéia com palavras: "Dez mil pessoas na platéia? Dez vezes mais viriam a meu enforcamento." Citado na revista Veja, 14/8/2002, p. 82.
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que procuram realçar ao leitor a necessidade de ouvi-lo com atenção, o fato de que aquele discurso traz, em si, alguma novidade, esta que prende o intelecto do leitor.
Se o orador partir apenas do pressuposto de que seus ouvintes são passivos e merecem tão-somente idéias prontas, fáceis de entender, porque assim não gerará nenhuma dúvida ou questão e poupará seus ouvintes do exercício de raciocínio (e muitos defendem esse tipo de construção, em uma utópica defesa da clareza do discurso oral), poderá estar utilizando técnica equivocada ou mesmo deletéria, em virtude do maior caráter dialógico do texto oral: diante da possibilidade de interagir, ou ao menos de perceber a presença física do orador, o ouvinte encontra-se sujeito a maiores estímulos a seu próprio raciocínio. Sem sentir-se estimulado, o ouvinte tende a imaginar como óbvias ou repetitivas as palavras do discursante, o que lhe reduz a atenção.
Por isso, no tribunal do júri, o defensor que sabe contar, no início de sua fala, em geral com pouca atenção dos jurados - pois a expectativa pelo conhecimento dos fatos relativos ao processo já se esvaiu com toda a produção probatória em plenário, seguida da exposição da acusação - , sempre procura trazer elementos novos a seu discurso, expondo expressamente ao jurado que fatos serão narrados de forma diversa daqueles revelados durante toda a instrução e exposição anteriores. Assim, estimula o jurado à interação dia- lógica, e, ainda que este não possa se manifestar sobre o mérito da causa, expressa concordância ou dissentimento em relação ao discurso da defesa, o que é melhor que demonstrar apatia ou desatenção.
Para o tribunal do júri, o problema da falta de atenção ao debate não é novo. Bettyruth Walter, estudiosa norte- americana, elaborou pesquisa a respeito da influência dos debates nos jurados, desejando saber, em suma, se estes re- tiravam-se para a sala secreta para votar tendo estado atentos à produção probatória e aos debates ou apenas àquela primeira fase, seguida da acusação. A intenção da pesquisadora, se assim fosse possível, seria produzir, em um caso
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real, dois tipos de julgamentos: um em que os jurados fossem apresentados às provas do processo, assistissem a todos os atos do plenário, exceto aos debates, e outro ouvindo todos os debates, na íntegra, como acontece normalmente, para que se comparasse a divergência de resultados. Um caso real desse tipo de pesquisa seria impossível, mas, por outros métodos (grosso modo, perguntando aos jurados o que acreditavam que os debates de acusação e defesa representavam), trouxe conclusões bastante significativas6, e talvez nada animadoras ao argumentante.
Das várias conclusões importantes que a pesquisa alcança, aqui vale destacar esta última. Foi perguntado aos jurados: "Você mudou sua opinião após ouvir os debates de promotor e advogado?". Responderam:
Promotor Defensor
Sim 14% 11%
Não 82% 85%
Não me lembro 4% 4%
Esmagadora maioria, então, dos mais de 250 jurados ouvidos, apontou não haver mudado de opinião após ouvir as razões dos discursantes. Claro que dois fatores devem contar para orientar qualquer tomada de conclusões dos números acima: a primeira, a de que isso é o que os jurados julgam haver acontecido, e a segunda, a de que o fato de não haverem mudado de opinião não significa, necessariamente, que não tenham estado atentos.
Não é tarefa fácil influenciar ouvintes, mesmo no discurso oral. Entretanto, pode-se aproveitar da interatividade, do diálogo travado à presença do ouvinte para se lhe
6. Vide WALTER, Bettyruth. The Jury Summation as Speech Genre; Mea- ning o f the Summation to Jurors, pp. 193-9.
PECULIARIDADES DO DISCURSO ORAL 277
testar as reações e estabelecer a coerência do discurso, que já estudamos, de acordo com o que mais lhe provoca interesse. Diante das conclusões daquela pesquisa, está claro que menos influenciado será o ouvinte que for comodamente deixado em sua passividade, enquanto será fonte de atenção aquele que for convidado, estimulado à participação, pois, ainda que não possa se manifestar, criará ao menos a expectativa de ser levado a uma conclusão diferente.
Nesse ponto, o de levar ao estímulo, muito do conteúdo argumentativo do discurso oral pode inovar. O bom orador passa a saber que o núcleo de seu discurso não é o de transmitir sua tese em uma ordem lógica impecável, como se faz na redação de uma dissertação científica; o orador sabe que, se não despender seus esforços para a captação da atenção, argumentos brilhantes poderão cair no vazio. O professor que dá aula apenas expositiva vai percebendo que, por mais perfeita que seja a matéria exposta em seu discurso, não logra motivar seus alunos, os quais, salvo raras exceções, desconcentram-se com grande facilidade. Por isso, para todos os oradores, a necessidade de pausas calibradas, gestos diferentes, movimentação (quando possível) comedida mas presente, entonação de voz intencional, e não monocórdica. Mas não só: a necessidade, também, de um conteúdo que estimule a participação, o raciocínio: as perguntas retóricas, a leitura de textos, a demonstração de imagens e de figuras, com vistas a estimular, ainda que não seja esse propriamente o melhor caminho lógico do discurso.
Exemplos dessa interatividade não são raros7: o promotor que percebe um jurado menos atento em plenário não
7. Em sala de aula, trabalhamos com os alunos um trecho da obra Pol- lyana, de E. Porter, traduzida por Monteiro Lobato. Em um curto diálogo, a protagonista, com seu famoso comportamento simpático, chama à discussão, ainda que irritando-o, um ancião que com ninguém falava. Fomentado a falar de si próprio, o homem acaba abrindo sua atenção para a interlocutora, e assim, como ocorre repetidas vezes na obra, mais um ouvinte acaba concordando com as idéias da protagonista. Trata-se de interessante ilustração, que procura deixar gravado no aluno que a participação, a interação com o ouvinte é
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pode lhe pedir que leia uma peça do processo, mas entrega os autos às mãos desse desatento, rogando-lhe que acompanhe sua leitura; o professor, diante do aluno menos interessado, utiliza-o como exemplo, faz-lhe uma pergunta fácil, mas estimulante, cuja resposta ele conheça, encaminhado à ilusão de estar demonstrando grande conhecimento à classe, ou então desvia-se rapidamente o assunto para algo que seja de interesse do ouvinte específico; o advogado, diante do desembargador menos atento, cita trecho de seu livro ou seu acórdão, para que ele motive-se à participação; ou até mesmo (acontece) aquele advogado ou promotor que simula um tropeço ou a queda de uma caneta ao chão, fazendo uma pausa importante para a retomada de seu discurso, agora já com maior atenção dos ouvintes. São os modos de explorar os recursos do discurso oral que, obviamente, acabam por alterar o conteúdo planejado de alguns pronunciamentos.
Para compensar a falta de atenção do ouvinte, esses recursos são válidos e, desde que intencionais e respeitosos, podem aumentar, e muito, as possibilidades de efetivos resultados no discurso oral.
Carisma e empatia: uma difícil definição
Se nos dedicamos ao discurso especificamente dialógi- co, em que o ouvinte interage muito mais com o orador, não nos permitimos deixar de tecer algumas breves considerações a respeito de uma questão que, embora não possamos dominar completamente, não pode faltar à persuasão na oratória: o carisma, a simpatia.
Para ilustrar, vejamos um trecho da biografia do eminente jornalista e político Carlos Lacerda, em passagem impor -
grande argumento no discurso oral. Para tanto, o interlocutor deve se sentir encorajado a aproximar suas próprias experiências ou (quando possível) compartilhar opiniões, caso contrário não é estimulado à participação.
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tante de nossa história. Narra a eleição para a sucessão ao governo da Guanabara, cujo titular era Lacerda, em setembro de 1965. Carlos Flexa Ribeiro era, então, o candidato:
As pesquisas de opinião pública, no início da segunda quinzena de setembro, indicavam que Negrão estava à frente de Flexa, figura inexpressiva na campanha. Flexa e outros pediram a Raphael de Almeida Magalhães que fizesse L acerda participar mais ativamente, discursando ao lado de Flexa nos comícios. O governador concordou; o resultado, porém, foi o constrangim ento das relações entre o candidato e o governador.
O candidato se irritou porque, quando estavam juntos em comícios, o governador quase não o deixava falar. Em uma dessas ocasiões, quando Flexa estava preparado para seguir Lacerda com um discurso, para sua surpresa o governador voltou-se para padre Godinho, convidando-o a tomar a palavra.
Posteriormente, Lacerda observou: "Tem sujeito que é bom de uma, tem sujeito que é ruim de urna, em matéria de eleição. O Raphael, por exemplo, seria bom de urna. O Flexa era ruim de um a, não era simpático pessoalm ente."8
Lacerda, com inequívoca autoridade para fazer observações sobre procedência e a técnica de discursos orais, assentara que a falta de simpatia de Flexa Ribeiro recomendava que ele simplesmente não discursasse, como demonstra o trecho transcrito. A falta de simpatia do candidato tanto era notória e expressiva que sua derrota nas urnas para Negrão de Lima foi um fato, levando o jornalista a retrucar ao ex-candidato: "[...] eu conhecia as razões pelas quais toda essa gente forçou sua candidatura e só você não percebeu. Eu sabia que você ia ser derrotado e sabia que, quando fosse derrotado, iam acabar com as eleições no Brasil"9.
8. DULLES, John W. F. Carlos Lacerda: a vida de um lutador, p. 395.9. Idem, p. 406.
280 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Mas, afinal, como definir essa "simpatia" da qual o candidato era desprovido?
Sem dúvida, ser simpático não pode significar ser agradável o tempo todo, integralmente. Se assim fosse, Lacerda não poderia tomar para si essa característica, pois suas frases duras, como a anteriormente recortada, retiram-lhe a faculdade de agradar. Mas é certo que há, no discurso oral, algo sempre muito subjetivo, de atração pela figura que discursa, pelo ser humano que, presente à enunciaçâo, busca coerência entre as palavras que profere e toda a sua imagem (timbre e entonação de voz, gestos, aparência, idade, vestuário).
Não há como definir exatamente os requisitos do carisma, porque existem figuras carismáticas há muito imitadas, sem absoluto sucesso. Entretanto, para a argumentação, pode-se voltar à representação de um papel social. A sociedade e os ouvintes aguardam de cada orador determinado tipo de comportamento, a que deve corresponder ou, ao menos, deve procurar impor. Aguarda-se do juiz a sobriedade da justiça, do promotor a energia da acusação, do advogado a serenidade daquele que se põe a defender a parte mais fraca. Fugindo dessa expectativa, o orador até pode impor a seu auditório imagem diversa, também simpática, mas terá contra si o trabalho de quebrar uma expectativa: um padre falastrão, um advogado muito nervoso, um acusador calmo demais.
Por diversas vezes temos definido que a argumentação é o trabalho com o provável, com o verossímil. E, se todo discurso é formado de elementos lingüísticos, que são argumentos quando têm a finalidade de convencer, a simpatia, como correspondência às expectativas do ouvinte, é também argumento. Os argumentos que são proferidos pela pessoa carismática parecem mais verdadeiros que outros, de quem tem menor aproximação com o ouvinte, aqueles cujas idéias repelem pela própria fonte. Estudiosos desenvolvem grandes análises sobre personalidades protótipos de imagens carismáticas10, pois são figuras que despertam,
10. Cf. O Estado espetáculo, de Roger-Gérard Schwatzenberg.
PECULIARIDADES DO DISCURSO ORAL 281
cada qual, determinado sentimento no ouvinte: o ancião que fala com a voz da experiência, o jovem que parece arrojado, o rico que dá ares de bem-sucedido, o obeso que aparenta bonachão e acolhedor, a mulher que parece libertária. São esses protótipos uma maneira de aproximar eventuais candidatos à simpatia dos padrões ansiados pelos próprios ouvintes, em determinadas situações específicas.
De maneira análoga, um discurso de uma pessoa que treme, que está insegura ao falar pode parecer menos verdadeiro que o de um orador de larga experiência, pois o ouvinte é levado a presumir que aquele que fala bem domina (e conhece) a matéria que desenvolve, enquanto daquele que se mostra inseguro (talvez apenas por vergonha de aparecer em público) presume-se a falta de conhecimento sobre o que diz. Em outro extremo, aquele que fala muito pode aparecer mais apto a mentir, pois sua verborragia pode aparentar ser um modo de não deixar pausas para o raciocínio do ouvinte.
Mas a redução a protótipos não constrói carisma.Definir o comportamento simpático ou carismático não
é tarefa fácil, mas pode-se afirmar que a melhor maneira de encontrá-lo é perceber, com a experiência, qual é o comportamento que mais identifica o ouvinte com a figura do orador e seu papel social. Essa descoberta pode levar muito tempo, mas faz parte da adequação do discurso, da boa oratória. Vale, nesse ponto mais efêmero que é a empatia, lembrar a lição de Cortright, ao apontar que o ouvinte pode distorcer idéias com sua percepção, já que "não vemos somente com os olhos, porém igualmente com as nossas emoções. Até certo ponto, vemos aquilo que efetivamente queremos estar vendo, e ouvimos o que estamos desejando ouvir. Todas as nossas percepções podem sofrer alguma pequena distorção pelo nosso estado d'alma, nossas passadas experiências e nossos preconceitos"11. O trabalho com a
11. Técnicas construtivas de argumentação e debate, p. 179.
282 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
emoção do ouvinte, para quem profere discursos orais, é tarefa obrigatória, haja ou não distorções no percurso.
Observações de especialistas ou a própria experiência podem fazer encontrar o caminho mais fácil para o carisma. Este nunca operará erga omnes, mas pode, indiscutivelmente, tomar algumas idéias, nos discurso oral, mais facilmente aceitas pelo ouvinte. E isso é argumento.
Discurso parlamentar
Porque falamos em política e em discurso oral, cabem algumas considerações sobre o discurso parlamentar.
Os discursos parlamentares têm por natureza o discurso epidíctico ou deliberativo. Se comparados aos da sustentação inicial do tribunal do júri, que dura duas horas12, os discursos parlamentares são geralmente curtos, tendo, via de regra, duração entre cinco e vinte minutos13, em que se discutem questões de livre escolha de cada parlamentar ou discursa-se sobre assuntos predeterminados na ordem do dia.
Ao manter-se diante de seus pares para discursar, o parlamentar sabe que dividirá a atenção de seu pronunciamento com outros elementos que possam retirar a atenção de seus ouvintes: outros trabalhos, conversas paralelas, desatenção eventual. Portanto, deve tornar seu discurso interessante ao ouvinte, seja pelo conteúdo (a matéria sobre a
12. Art. 474 do CPP.13. Vide, por exemplo, no Regimento Interno da Câmara dos Deputa
dos do Estado de São Paulo, a sustentação de cinco minutos do Pequeno Expediente (art. 113, § 5?) e de quinze do Grande Expediente (art. 116), sobre assunto de livre escolha, ou, no Regimento do Senado, o artigo 158, aqui transcrito: "Art. 158. O tempo que se seguir à leitura do expediente será destinado aos oradores da Hora do Expediente, podendo cada um dos inscritos usar da palavra pelo prazo máximo de vinte minutos. § 1? A Hora do Expediente poderá ser prorrogada pelo Presidente, uma única vez, pelo prazo máximo de quinze minutos, para que o orador conclua seu discurso, caso não tenha esgotado o tempo de que disponha, ou para atendimento do disposto no § 2° após o que a Ordem do Dia terá início impreterivelmente.''
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qual deve se pronunciar), seja pela forma - a enunciaçâo que busca a atenção maior do leitor.
Para seus pares, o parlamentar deve buscar a postura coerente com a imagem que firmara: o jovem empreendedor, o representante das classes mais baixas, o elitista progressista etc. Para o eleitor, o argumentante busca o discurso coerente - além de sua imagem já formada em relação à
representatividade que anseia - com a capacidade para a função públicau. Implica afirmar que o anseio pela função pública impõe ao político um discurso coeso à imagem que o leitor faz do ideal do poder público: honestidade, serenidade, higidez. Para isso, muito mais que o discurso e as promessas - que são cada vez mais amplas e de menor valor - cabem cuidados com construção de protótipos de empatia, anteriormente analisados, mais afetos ao trabalho do publicitário e do assessor de imprensa do que propriamente do argumento jurídico.
Aquele que constrói discurso parlamentar deve levar em consideração a distinção que existe entre o discurso escrito e o oral. Assim como um bom livro não resulta necessariamente um bom roteiro para filme no cinema, um discurso escrito interessante pode não importar em uma fala brilhante do parlamentar, mesmo que não o leia. Se o ler diretamente, ainda pior. As diferenças circunstanciais entre a expressão escrita e a oral15 devem contaminar o conteúdo do texto. Um discurso feito na formal linguagem escrita, com seus fatores de coesão e coerência, pode soar artificial e pedante quando recitado sob as características de um orador. Do mesmo modo, um excelente discurso oral, que emociona multidões, e assim extremamente eficiente, pode parecer bobo e piegas quando reduzido a termo, no papel.
O autor dos discursos parlamentares deve pesquisar muito bem as caracterísiticas do orador que, pode-se dizer, interpretará seu texto. Novamente, há que se levar em conta
14. Cf. OSAKABE, Haquira. Argumentação e discurso político, p. 72.15. Vide Capítulos XVI e XVII.
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que não existe um bom texto erga omnes e, portanto, o discurso deve adaptar-se a elementos relevantes, como a imagem do orador, suas intenções e o contexto a que se dirige.
Discurso no tribunal do júri
A instituição do júri representa o auge da argumentação e da oratória. Deveríamos dedicar a ele capítulos inteiros, mas decidimos permear seus exemplos no decorrer da obra, diluí-los em nossas lições. Justificamos esse comportamento, aqui, com poucas palavras, de cunho pessoal, em exposição mais livre.
Temos nos especializado na atuação com o Direito penal, como o leitor pode perceber, já que a maioria dos exemplos aqui prolatados tangencia essa área do conhecimento. Portanto, entendemos que discorrer puramente sobre a argumentação no júri sem despender o vínculo estreito com as teses ali defendidas, que são todas pertencentes ao Direito penal, seria repetir as lições aqui já ditas, apenas sob um novo nome.
Dessa maneira, reservamo-nos o direito de, oportunamente, aplicar estas lições ao discurso específico das teses de defesa e acusação dos crimes contra a vida, o que demanda exposição aprofundada de matéria atinente apenas à seara criminal.
Mas isso não significa que as lições aqui apresentadas, principalmente as referentes à intertextualidade e à oratória, não sejam de todo proveitosas para o discursante no tribunal do júri. Diante do julgador leigo e do vasto tempo (em relação ao reservado a outros discursos) disponível para a argumentação, o tribuno depara-se com alguns pontos a considerar sobre a matéria.
O primeiro deles, já aqui tratado, é a pouca atenção reservada ao discurso. Ouvindo, ainda que aparentemente com atenção, as palavras dos debatedores, poucos jurados crêem ser influenciados efetivamente por seus discursos.
PECULIARIDADES DO DISCURSO ORAL 285
Essa reação é natural: (re)produzidas todas as provas possíveis em sua presença, é certo que os jurados tendem a dispensar comentários sobre o que já conhecem, sobre o que já sabem. Mais ainda isso acontece na fala do defensor, subseqüente a uma longa e detalhada exposição dos fatos, delineados pela parte acusadora. Assim, são necessárias as técnicas já aqui apresentadas: a inovação, ainda que por vezes tênue, dos fatos, enunciada inequivocamente ao jurado. Se não pensar tratar-se as considerações do discursante de idéias novas, que estimularão seu raciocínio, a reação natural é a desatenção e a percepção do discurso repetitivo apenas como uma fala longa e cansativa.
O segundo ponto é o menor critério do jurado na valo- ração da prova, o que nos parece indiscutível. Levado por outros elementos de convicção, os jurados tendem a valorizar argumentos distintos daqueles sopesados e considerados pelo julgador togado. Imagens, frases de efeito, pequenos enlaces e desenlaces de discussões atravessadas no meio do debate, aparência de testemunhas e do próprio réu são mais valorizados pelo julgador leigo, desabituado ao critério de valoração da prova e à necessidade de persuasão racional de seu convencimento, até por ser desobrigado de qualquer fundamentação a respeito dele. Esses fatores não transformam o júri em um teatro, como dizem aqueles que pretendem desfazer-se de tão democrática instituição, mas, sem nenhuma sombra de dúvida, fazem com que o orador repense toda a sua estrutura argumentativa para trilhar aquela que consegue aproximar-se do jurado, com seu raciocínio, seus sentimentos e idiossincrasias.
Não, o júri não é teatro. Mas a visão técnica que aqui se apresentou a respeito da argumentação dá-nos a faculdade de poder dizer que seus meios argumentativos e seus métodos de atribuir presença na mente do interlocutor têm que ser planejados bem diversamente do que se faz quando se trata de direcionar um discurso a um julgador não leigo. Outro discurso, outro raciocínio.
286 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Conclusão
O discurso oral tem seu estilo próprio, atinente ao estudo da oratória. Quando nos propomos a estudá-lo, temos de aceitar suas peculiaridades, que são diversas e abrem campo para outra série de conhecimentos. Procuramos apresentar algumas delas apenas respondendo ao anseio de alguns leitores que, com razão, cobraram considerações a respeito da argumentação na fala.
E importante não esquecer que, quando o discursante coloca sua imagem em evidência, está sujeito à observação constante do ouvinte, e isso lhe traz uma série de responsabilidades, de cuidados, que devem ser desenvolvidos ao longo da experiência. Aos grandes oradores jamais faltou treino.
Capítulo XVI
Peculiaridades do texto escrito
A escrita tem inúmeros diferenciais e técnicas, mas realça-se um: o argumentante nunca pode obter garantia de que seu texto será lido. Por isso, deve construir uma redação coesa, que constantemente estimule o interlocutor à leitura.
Um capítulo não é o bastante para abordar o que a escrita traz de peculiar e relevante para o tema da argumentação.
Todavia, esta obra não tem como tema central a redação, de modo que se limita a expor ao estudante alguns elementos diferenciais do discurso escrito, que, se aprimorados, muito contribuirão para a capacidade argumentativa. Cabe a ressalva, logo de início, que todos os temas aqui expostos podem ser aprofundados - se for do interesse do estudante - consultando-se livros específicos de redação e construção de texto escrito.
Se nos for permitida, rapidamente, uma consideração pessoal, procuraremos demonstrar desde logo o gosto pelo tema. Há anos dedicamo-nos, tanto quanto possível, a estudar o tema redação e, durante considerável tempo, lecionamos esse tema especificamente no ambiente jurídico. E deparamos, não raras vezes, com alunos que, bons operadores do Direito, tinham dificuldades extremas quando se tratava de construção do texto escrito.
São então comuns assertivas neste estilo: "Sou ótimo para argumentar. Em discurso oral, disserto longamente sobre minha tese, convenço meus ouvintes com facilidade. No entanto, quando vou escrever... minhas idéias parecem travar! Meu discurso não progride!" Não é nosso intento, aqui, trabalhar com essas dificuldades específicas, mas elas ser
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vem para ilustrar que, de fato, as técnicas do discurso escrito têm suas peculiaridades, porque este apresenta diferencial: a ausência dos recursos de sons e gestos do argumentante, e o extremado valor da construção das frases e parágrafos.
Trataremos agora essencialmente dessas características.
Uma premissa: quem lê o que escrevemos?
Correndo o risco de parecermos grosseiros - porque a arte da escrita revela muito mais do que o quanto adiante se dirá - , fixamos como premissa, para a argumentação, esta característica, generalizante, sobre o texto escrito: o de que nunca aquele que argumenta redigindo terá a garantia de que seu texto será lido, ao menos com atenção.
Explica-se: quando se constrói um discurso oral, quando se está na presença do ouvinte, pode-se exigir dele que ouça o que lhe é proferido. Diante dos jurados, o advogado ou o promotor têm certeza de que aqueles ouvem seu discurso. Vá lá que talvez não lhe concedam a devida atenção, abstraiam-se em seus próprios pensamentos, mas o escutam. Sua distração pode, por outro lado, ser notada pelo ar- güente, que cuidará de repetir parte importante de sua fala, dessa vez com recursos argumentativos que lhes roubem a atenção.
Mas o mesmo não ocorre no discurso escrito. Nunca se pode garantir que um leitor verá com devido tento o que lhe é redigido, por mais que se possam garantir meios para que ele venha a comprovar a realização da leitura. Tratando a respeito da argumentação, não nos alcança a assertiva de que o juiz, para o devido provimento jurisdicional, tenha a obrigação de ler integralmente o que lhe argumentam as partes em uma lide. Está-se aqui em patamar discursivo, superior: mesmo diante de excelentes razões de recurso, ninguém obsta que, muitas vezes sem perceber, o leitor "pule"
PECULIARIDADES DO TEXTO ESCRITO 289
trechos de texto ou evite conceder atenção a uma frase muito longa, a um texto com pontuação confusa, com repetições constantes, com estrutura frasal ruim. Teste, leitor, consigo mesmo: quantas vezes, em seu estudo, acelerou a leitura em trechos que menos lhe pareciam importantes? Quantas vezes não observou, nesta obra, subtítulos dos capítulos, para saber se lhe interessava ou não a leitura do trecho do texto? Pois então... essa realidade é comum a todos, e o argumentante que redige deve estar preparado para lidar com ela e disso tirar proveito.
Tal alerta é necessário por dois motivos principais. O primeiro deles é que o estilo da argumentação jurídica difere do estilo literário. Não teríamos nenhuma autoridade para desprezar este último porque somos muito ligados a ele. Mas deve-se observar que quem constrói literatura goza de um grande interesse do leitor, o que não ocorre com aquele que tece argumentação jurídica. James Joyce estende-se por dezenas de páginas em apenas uma frase, Garcia Márquez e Camilo José Cela confundem o leitor com uma miríade de personagens com pouca intervenção no enredo, Olavo Bilac utiliza palavras difíceis, que forçam a consulta ao dicionário, e todos produziram ou produzem - cada um a seu tempo, estilo e com seus objetivos - excelente escrita. Todos, entretanto - lembre-se da intertextualidade - , assim o fazem porque direcionam seu texto a um público cujas características conhecem: o leitor literário, que se dispõe a experimentações e, ao ler a obra, nutre por ela natural interesse. Não pode haver nenhuma dúvida de que aquele que muito lê, que melhor aprecia a literatura, acaba naturalmente, por imitação, tendo maior facilidade na escrita. Porém muitos recursos, tão adequados à literatura, tornam-se exagerados ou equivocados no texto argumentativo, porque este não tem como premissa o mesmo interesse do leitor.
Tal consideração conduz à segunda parte de nosso alerta: se o leitor da argumentação não tem tamanha disposi
290 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
ção e interesse, é natural que o argüente-redator sempre considere que deve, ao redigir, estar convidando o interlocutor a essa leitura. Um capítulo muito extenso, uma frase longa e muito entrecortada, uma cópia desnecessária de artigo de lei, uma remissão fora de espaço podem estar corretos, ao mesmo tempo que funcionam como grande desestímulo à leitura, porque proporcionam dificuldade de intelecção. E de que adianta o bom argumento se sequer for considerado pelo leitor?
Pode-se ilustrar com um exemplo simples: um estilo de fonte muito pequeno em uma petição pode ser um grande incentivo ao leitor para que observe o texto com menor atenção possível, porque a leitura dos caracteres minúsculos cansa-lhe a vista. Que fazer, senão considerar tais questões?
Vejamos algumas delas.
Escrita e coesão textual
No discurso escrito, introduz-se com maior ênfase uma qualidade que é sua, a chamada coesão textual.
Todo texto, mas com muito maior ênfase o escrito, deve ser dotado de coesão. Ela é o nível de ligação entre as palavras que compõem um texto.
A coesão textual é, então, o nível de ligação entre as palavras de um texto. Quando se constrói um texto escrito, ao contrário do quanto possa parecer, as palavras não se encontram preenchidas de sentido e dependem das outras para que se aperfeiçoem como elementos de significação, ou seja, como fator de comunicação.
Para exemplificar, leia com atenção o texto que segue, publicado no Jornal da Tarde (de 22/10/1998), e faça o breve exercício de leitura que se propõe:
Presos matam policial de escolta, fogem e fazem cinco reféns
Um investigador morto, outro baleado em um carro daPolícia Civil e cinco pessoas mantidas como reféns em umsobrado. Esse é o balanço da tentativa de fuga de dois presos
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do 14? Distrito Policial, ontem, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, quando retornavam, sob escolta, de uma consulta médica. Após três horas e meia de negociação, eles se entregaram. A arma usada no crime era de um dos policiais e foi tomada pelos detentos, que estavam no banco traseiro, algemados.
O transporte dos presos para tratamento do Pronto- Socorro da Lapa começou às l lh . Dois carros do 14? Distrito Policial, um Gol e um Santana, saíram com quatro detentos para levá-los ao médico. Os presos tinham inflamações na pele. Em cada um dos veículos, dois investigadores e dois detentos.
O Gol foi o primeiro carro a voltar. Logo atrás veio o Santana, com os presos Paulo M endes das Neves, de 20 anos, e Mauro Borges da Silva, de 36. Na esquina das Ruas Simão Alvares e Inácio Pereira da Rocha, Neves aproveitou um descuido do investigador Willian Ruy Teixeira, de 38, e tomou sua pistola calibre 380.
Foram pelo menos dois disparos: um na cabeça de Teixeira e outro na nuca do investigador Mauro Aparecido G omes, de 35, que morreu. Além de estar com as mãos algemadas para frente, Neves tinha os braços entrelaçados com os de Silva. Os dois saíram do carro e correram cerca de 100 metros pela Rua Simão Álvares, onde invadiram uma sede da Associação Comercial de São Paulo.
M endes dominou três funcionários que estavam no térreo do sobrado. Todos subiram para o piso superior, onde mais dois funcionários foram tomados como reféns. O s policiais baleados foram levados ao Hospital das Clínicas.
Mais de 100 policiais cercaram o sobrado. A negociação começou com M endes exigindo um carro e munição para fugir. Como a fuga foi negada, exigiu a presença da imprensa, do ju iz corregedor M aurício Lemos Porto Alves e de seu pai, Osias Hermes Alves. A todo momento, aparecia na janela com a arma apontada para a cabeça de um refém.
Por volta das 13h20, fez um disparo em direção à parede da sala. Dez minutos depois, com a chegada do juiz, o primeiro refém foi solto. Às 14h, ao ver o pai, soltou uma refém. O delegado Carlos Eduardo Duarte de Carvalho, do Grupo Especial de Resgate (GER), negociou a rendição do detento, que tirou o pente da arma e o jogou para o delegado.
292 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
O leitor, ao interpretar o texto acima, que vem com destaques nossos, entende já que ele conta com unidade de sentido, narrando um evento criminoso, retomando elementos anteriores que permitem ao interlocutor entender o que se passara com os presos que eram transportados nas viaturas policiais.
Diante da leitura da matéria jornalística, procure responder com certeza: quem é “o pai" cuja presença o criminoso Paulo Mendes das Neves exigiu para que os reféns fossem libertados?
A resposta, ao contrário do que parece, não é evidente. A origem da confusão está na frase: "Como a fuga fo i negada, exigiu a presença da imprensa, do juiz corregedor Maurício Lemos Porto Alves e de seu pai, Osias Hermes Alves."
Reveja o texto, no excerto recortado. Do modo como foi escrito, a frase traz uma ambigüidade. Perceba que não é possível identificar se Osias é pai do preso ou pai do juiz corregedor. O pronome seu, no caso, pode fazer referência tanto ao fugitivo quanto ao juiz corregedor, termo este que lhe é imediatamente anterior.
Essa falta de clareza prejudica a intelecção do texto, porquanto a ligação entre os elementos que o compõem, como se vê, não é clara. O leitor pode argüir, em discordância com o apontado, que a ambigüidade da oração destacada (fator interno) não contamina todo o texto, pois outros elementos, externos, dão-lhe unidade de sentido. Nesse caso, então, o autor teria contado com um mínimo de conhecimento de mundo do leitor, sendo lógico que o fugitivo, ao ser cercado pela polícia, não teria nenhuma razão para chamar a presença do pai do juiz corregedor, mas sim de seu próprio pai, o que é muito mais razoável.
Mas quem tentar sanar a dúvida sem recorrer a esse elemento exterior, caçando no texto outros fatores internos que façam essa identificação, pode chegar a conclusão diversa. Seria fácil determinar a relação familiar se comparados os nomes das pessoas envolvidas. Assim, se o homem chamado pelo fugitivo fosse pai deste, deveriam ambos ter
PECULIARIDADES DO TEXTO ESCRITO 293
sobrenomes relacionados. Se o leitor fizer essa comparação, mudará de idéia: Osias Hermes Alves é o nome do "pai", Paulo Mendes das Neves é o nome do fugitivo e Maurício Lemos Porto Alves é o nome do juiz corregedor. Portanto, também tendo em conta um elemento exterior ao texto, a possível coincidência de sobrenomes que pode haver entre pai e filho, o leitor será levado a convencer-se de que Osias, o homem que foi chamado a comparecer à cena do crime, é pai do juiz corregedor, pois somente entre esses dois personagens há identidade de nomes.
Então, se seria razoável que o detento chamasse a sua presença o próprio pai, também seria razoável que seu pai tivesse com ele um sobrenome em comum, o que não ocorre, se considerado o filho como sendo o fugitivo. Permanece a ambigüidade, não sendo possível dar ao texto sentido único, na leitura daquela frase.
O autor teve outra oportunidade de desfazer o equívoco: no último parágrafo, escreve: Dez minutos depois, com a chegada do juiz, o primeiro refém foi solto. Às 14h, ao ver o pai, soltou uma refém.
Desperdiçou essa oportunidade. Na frase, já no fim da matéria, a ambigüidade (duplicidade de sentido) permanece: "ver o pai" significa "ver o próprio pai", ou "ver o pai do juiz", retomando a palavra juiz, imediatamente anterior a essa oração?
Reveja, no corpo do texto citado, e note também esse excerto.
Tratou-se, claro, de uma infelicidade momentânea, que pode ocorrer a qualquer um que redige, mas nos serve como peculiar exemplo de escrita. Quando vemos tal exemplo, percebemos algo que, no contexto da construção do discurso escrito, muito nos interessa: as palavras não assumem sentido sozinhas.
Veja: todos sabemos o que significa a palavra "pai", não? Todavia, quando incluída em um texto, ela somente ganha sentido na dependência de outro elemento, outra palavra:
294 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
no caso, a indicação do "filho". Enquanto não aparecer o filho, a palavra "pai" é vazia de sentido. Pai de quem? Pai somente em relação a um filho, que deve vir determinado no texto.
Da mesma forma, um verbo transitivo (fazer) apenas assume sentido na frase se lhe aparece um complemento (fazer o quê?), com um sujeito (quem fez?). Se escrevo o nome "João", ele só adquire sentido se atribuo, no mais das vezes, uma ação (verbo) a ele (João comeu a maçã).
O texto coeso é aquele que permite leitura rápida, porque as relações de sentido formuladas entre as palavras na frase estão sempre evidentes ao leitor. Em frases curtas, a relação de sentido é clara, mas em construções frasais mais complexas (de que necessitamos para argumentar), essa imediaticidade passa a ser mais difícil. Um texto escrito com ambigüidade, com frases longas, com erros de pontuação, com uso equivocado de pronomes tende a não ser coeso, e assim tomar a leitura menos fluente, mais difícil e confusa.
Não nos aprofundaremos no tema, mas nos serve de reflexão: a coesão é uma qualidade do texto escrito intimamente ligada à estrutura da frase. O texto é um tecido, um emaranhado de relações de significado, em que as palavras estão em constante interdependência de sentido.
E o texto coeso é aquele que permite a leitura fluente porque o significado das palavras é diretamente identificado pelo leitor. O texto que tem pouca coesão traz um prejuízo enorme à argumentação: enquanto o leitor tem de es- forçar-se para desvendar o sentido de uma frase, retira sua atenção do conteúdo de fundo, da profundidade dos argumentos, ao mesmo tempo que sofre grave desestímulo à continuidade de sua leitura.
Portanto, aquele que escreve deve estar muito atento à coesão de seu texto. E para se atribuir essa qualidade à redação, permitindo a leitura fluente, inequívoca, agradável, não existe outra saída: deve-se iniciar pela gramatica- lidade.
PECULIARIDADES DO TEXTO ESCRITO 295
Gramaticalidade e pontuação
Para atribuir a um texto escrito a qualidade da coesão, permitindo a leitura fluente, várias condições devem ser notadas. Não nos aprofundaremos em todas elas, mas podemos ilustrar, por exemplo, com a boa seleção vocabular. Quem diz que "A colheita do que fora plantado pelos agricultores não esteve a contento dos mesmos porque caiu uma geada muito forte" tem uma frase menos coesa do que aquele que enuncia que "A colheita não fo i satisfatória porque geou", apenas por falta de seleção vocabular adequada. Ém um discurso oral talvez as falhas passassem despercebidas, mas no escrito foi imperdoável: se houve colheita é porque se plantou; se existe geada, ela só pode cair, porque não se há de imaginá-la subindo.
Todavia, ainda que outros fatores de redação importem em boa ou má coesão textual, um deles aqui merece realce: a pontuação. Consideramo-la especialmente por pura experiência, pois muitos alunos julgam ser o uso da vírgula o grande fator de dificuldade da escrita.
E, no intuito de aperfeiçoar a pontuação, procuram-se na gramática várias regras de uso da vírgula, como se assim solvessem seus problemas. Encontram, surpreendentemente, poucas regras a esse respeito, estudam-nas, memorizam- nas, mas ainda têm dificuldade. Por quê?
Porque as regras de vírgula são realmente muito parcas e, se estudadas isoladamente, de nada adiantam. Elas dependem do conhecimento e efetivo uso de outras noções gramaticais, em especial das estruturas sintáticas. Não nos aprofundaremos nelas aqui, mas talvez caiba uma noção - cuidando da peculiaridade do discurso escrito - a título de estímulo ao estudo.
Intimamente ligada à coesão, a vírgula é uma pausa, como todos sabem. Todavia, não é uma pausa "para respirar", como afirmavam, à nossa época, algumas professoras de primeiro grau. É uma pausa de pensamento. E uma pausa para marcar ao leitor que uma estrutura a que ele está acostumado está sendo quebrada.
296 ARGUMENTAÇÃO jURÍDICA
Quando lecionávamos especificamente o tema, preferíamos dizer que a vírgula é como um degrau. Um degrau existente, por exemplo, entre a sala e a cozinha de um apartamento não surge por si só: ele foi colocado ali porque, entre aqueles dois cômodos, existe uma descontinuidade do piso. Assim, estudar a vírgula como mera separação entre pequenas palavras é tão míope quanto procurar entender a presença de um degrau sem considerar qual o intervalo de piso que ele separa.
A vírgula marca, via de regra, o rompimento de uma estrutura que o leitor espera. E essa estrutura é a ordem direta da oração ou do período, a qual tem natureza, antes de tudo, gramatical.
E, assim, na estrutura sintática da oração e dos períodos que estão os principais pontos que levam à boa pontuação e, conseqüentemente, a um dos grandes fatores de coesão textual. Não se vai afirmar que o ponto mais importante de todo um processo comunicativo é a correção gramatical; todavia, aquele que pretende boa construção de frases não deve se iludir: ela é o primeiro fator da pontuação. Porque aqui não vamos nos estender em tema de gramática normativa (impossível concorrer com cursos tão bons no mercado, além de não ser mais essa nossa especialidade). Fica apenas a dica tão importante: não se deve tentar começar a construção da casa pelo telhado. Falseia a verdade quem diz ter boa construção de frases e pontuação perfeita sem fazer uso do conhecimento de temas de gramática normativa, alguns deles abaixo nominados, somente para trazer à memória do estudante:
a) frase, oração (conjunto de palavras em torno de um verbo), período (conjunto de orações);
b) termos essenciais da oração (sujeito e predicado);c) ordem direta da oração (sujeito - verbo - comple
mento verbal - adjunto adverbial);d) relação de coordenação e de subordinação entre as
orações do período;
PECULIARIDADES DO TEXTO ESCRITO 297
e) orações subordinadas com função de substantivo (subjetivas, objetivas diretas e indiretas, predicativas, completivas nominais e apositivas);
f) orações com função de adjetivo e sua distinção (restritivas e explicativas);
g) orações com função de advérbio (temporais, causais, consecutivas, condicionais, comparativas, conforma- tivas, concessivas, proporcionais e finais);
h) orações reduzidas de particípio, gerúndio e infinitivo;
i) orações coordenadas sem conjunção;j) orações coordenadas sindéticas (aditivas, adversati-
vas, conclusivas, explicativas e alternativas);1) uso de uma conjunção por outra etc.
O estilo e as intenções, o ritmo, os casos facultativos, todos podem ocasionalmente determinar o uso da vírgula. Entretanto, o alicerce da pausa no discurso escrito, ao contrário do discurso oral, não é o ritmo da fala, mas sim, a princípio, a estrutura gramatical da oração e do período. Depois dela, o resto é acréscimo.
Assim se mostra em grande medida a diferença entre a argumentação oral e a escrita. Nesta, o ritmo é, em suma, determinado por uma estrutura sintática, a qual, embora esteja presente no discurso oral, não é lá tão determinante em sua fluência, em sua progressão concebida pelas estruturas menores, as palavras.
A fluência da leitura, pelo interlocutor, depende, em grande medida, da noção de gramaticalidade da frase pelo autor do texto escrito. Identificar, ao escrever, as estruturas sintáticas que se está introduzindo é o único meio de determinar com segurança a existência da pontuação, lembrando-se sempre que, para o leitor, uma pontuação mal elaborada é sempre fator de confusão, ainda que ele quase nada se lembre das regras do uso da vírgula.
298 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Algumas dicas de construção
Tendo consciência da estrutura gramatical que forma o período (conjunto de orações - estende-se da letra maiúscula ao ponto final) e a oração (palavras ligadas a um núcleo verbal), podem ser enumeradas algumas pequenas dicas, muito didáticas, sobre questões da enunciação escrita. É interessante que o estudante acompanhe essa enunciação, mesmo que somente para ter a ciência de como o estudo da redação traz matérias peculiares que devem ser revistas por aquele que pretende boa argumentação. Veja algumas dicas em relação ao período:
a) Procure colocar a idéia principal do período como oração principal.
Compare os dois períodos:
O juiz Tício, que é muito honesto, deferiu a nossa liminar.O juiz Tício, que deferiu a nossa liminar, é muito honesto.
Ambos os períodos trazem ao leitor duas informaçõesdistintas:- que o juiz Tício é muito honesto;- que o juiz Tício deferiu a liminar.
Todavia, embora os períodos tragam exatamente as mesmas informações, é certo que as expressam de maneira diversa. Nesse período composto por apenas duas orações, a diferença de expressão pode até não ser muito relevante, mas ela se torna maior quanto mais complexo for o período.
Na primeira frase, a idéia de que "o juiz Tício deferiu a liminar", por constituir a oração principal, tem maior realce que a idéia de que "Tício é honesto", uma vez que essa apresenta-se como oração subordinada (adjetiva explicativa). Na segunda frase, ao contrário, a idéia de que "Tício é muito honesto" assume maior realce por ser oração principal. Assim, o conhecimento das relações de subordinação é essencial para atribuir sentido e coesão ao texto.
PECULIARIDADES DO TEXTO ESCRITO 299
Veja, nos exemplos abaixo, como as idéias que constam das orações principais (em negrito) assumem, para o leitor, maior relevo.
Porque chovia muito, não consegui chegar ao fórum.Chovia tanto que não consegui chegar ao fórum.
Quando a vítima morreu, o acusado encontrava-se em viagem ao exterior.A vítim a m orreu quando o acusado encontrava-se em viagem ao exterior.
Portanto, ao construir períodos compostos, procure estabelecer, em primeiro lugar, a oração principal, formada pela idéia central. A partir dela, seu sentido complementar pode ser conferido pelas orações subordinadas.
b) Evite, em regra, as inversões nos termos da oração. As inversões são muito comuns no discurso forense. En
tretanto, nem sempre elas trazem um resultado eficiente em relação à coesão. Sem intenção determinada, apenas prejudicam a fluência da leitura, a exemplo de:
Pede o perito sejam elaborados quesitos mais claros.Disse a promotora de justiça que não cabe suspensão
do processo no presente caso.Antecipa o requerente sua falta de disposição para fir
mar acordo.
Nota 1: A colocação das palavras deve observar a clareza. Não raro a colocação pouco criteriosa traz ambigüidades. Vejamos:
O policial efetuou a prisão do fugitivo portando uma metralhadora.
Quem portava metralhadora? O policial ou o fugitivo? Para evitar ambigüidade, deve-se preferir colocação diversa.
300 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
O policial, portando uma metralhadora, efetuou a prisão do fugitivo.
O policial efetuou a prisão do fugitivo, o qual portava uma metralhadora.
Veja outro exemplo:
A apelação da sentença de primeiro grau, que está quase ilegível nos autos, foi protocolada a destempo.
Afinal, o que está ilegível: a sentença ou a apelação? Note-se, entretanto, que a ordem das palavras na ora
ção pode implicar significado ou expressividade distinta, como no exemplo abaixo:
O velho advogado sustentou sua tese.O advogado velho sustentou sua tese.
Portanto, a colocação de palavras deve observar, no mínimo, a clareza e o significado dos termos da oração. Via de regra, as inversões da ordem direta da oração são pouco recomendáveis, pois tendem a trazer menor clareza ao período. Quando feitas tais inversões, devem seguir uma intenção clara.
c) Evite os ecos na escrita.O poeta pode rimar. O texto poético permite a repetição
de sons que tornam belo o ouvir das palavras em combinação. Mas no texto em prosa, no texto técnico, a repetição de sons é pobreza de estilo, porque não intencional, e torna a leitura estranha. Faz parte do trabalho de selecionar palavras, também, a seleção de sons que não se repitam, de modo a evitar os chamados ecos, ou seja, a rima no texto em prosa. Então, evite construções como:
Juridicamente, não há fom ento para o aum ento da verba honorária.
Sua cliente, astuciosamente, buscava outros meios para a solução da questão.
PECULIARIDADES DO TEXTO ESCRITO 301
Mal alfabetizada, a empregada foi encorajada a freqüentar uma escola especializada em ensino básico a adultos.
Não pode haver verdade maior que essa.
Nesses casos, sempre há um modo ou outro de evitar inconveniente rima:
Juridicamente, não há razão para a majoração da verba honorária.
Com astúcia, sua cliente buscava outros meios para so lucionar a questão
Com parca alfabetização, a empregada motivou-se [ou m otivaram a empregada] a freqüentar uma escola especial para ensino básico a adultos.
Não pode existir verdade maior que essa.
d) Evite o excesso de informações em um só período. Este ponto merece atenção especial. Quando construí
mos um texto, temos várias informações a passar. Na argumentação em sentido estrito ou na narração procuramos organizar uma série de elementos, figurativos ou temáticos, que têm de ser incluídos no texto. Na frase, cabe apenas parte dessas idéias. Mas qual parte? Ou, em outras palavras, quando é hora de iniciar e quando é hora de terminar um período?
A resposta para tal questão não é simples, mas subsiste em todo aquele que escreve. Como toda questão atinen- te à redação, não se lhe pode dar uma solução segura, mas há como desenvolver algumas diretrizes para a adoção de um estilo claro quanto à extensão dos períodos. A princípio, deve-se refletir sobre um fator: a leitura.
Se me proponho a ler um texto em voz alta e nele há uma interrogação, dou acento específico de pergunta à frase. Mas impõe-se uma questão: se leio aquele texto pela primeira vez, como entonarei a pergunta, se tenho de iniciar o processo no meio da frase e o ponto de interrogação somente aparece em seu fim? Porque, mesmo sem perceber, eu, leitor, ao iniciar a leitura de uma frase, procuro seu fim. Já o vimos em ritmo de texto, quando tratamos de coerência.
302 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Assim como um praticante de atletismo, ao iniciar a corrida, quer saber o tamanho do percurso que deve enfrentar, para poder calcular seu ritmo de passadas, o leitor mede seu ritmo de leitura de acordo com os intervalos que lhe são impostos.
Isto significa afirmar que, via de regra, impõe-se a frases mais longas menor esforço de intelecção, e às frases mais curtas, maior atenção.
Em resumo, pode-se construir frases mais longas quando o assunto é de fácil entendimento pelo leitor; ele até as prefere porque tomam a leitura mais fluente, sem grandes ou freqüentes interrupções.
Mas deve-se construir frases mais curtas quando se tratar de temas mais complexos, pois, caso não o faça, o leitor, no esforço de compreender o período que se lhe coloca, terá de criar por si pausas que não estão demarcadas no texto, o que lhe será grande fator de confusão.
Novamente, como em todo tema de argumentação, não há regras seguras, mas um grande sopesar que depende do conhecimento do auditório - do leitor ou conjunto de leitores - a que se direciona o discurso.
Escrita como fator argumentativo
Quando, anteriormente, tratou-se de argumento de competência lingüística, frisou-se que, em nosso tema, é impossível dissociar conteúdo e forma.
A competência lingüística serve ao argumentante para a adesão dos espíritos, e não se pode negar que um texto mal escrito, por mais idéias de fundo, pertinentes, que possa conter, não persuade.
Aqui não vamos cuidar de todos os temas tão interessantes da redação, mas cabe lembrar que o texto escrito tem suas peculiaridades. Elas passam principalmente pela exigência de uso mais estrito da coesão e da gramaticalida- de, para que, para muito além de enunciar corretamente o texto, este faça um constante convite à leitura. Fator, claro, que o argumentante não pode desprezar.
Capítulo XVII
Argumentação, estilo e subjetividade
Fase avançada da argumentação é imprimir-se ao discurso traços de personalidade; mas isso não pode ser confundido com centrar o discurso em si mesmo, na pessoa do argüente. A argumentação jamais é construída para si, mas para o outro.
Para iniciar este capítulo, os textos abaixo devem ser lidos. O primeiro é fragmento do livro Momo e o senhor do tempo, de Michael Ende'. Na narrativa, Momo é uma menina que vive sozinha, isolada em uma pequena praça, na cercania de uma cidade da Europa. Os moradores da cidade aproximam-se dela e, procurando saber de sua vida, travam este diálogo:
- Quer dizer, você não precisa voltar para casa?- Minha casa é aqui - respondeu ela, prontamente.- Mas de onde é que você veio, menina?M omo fez um gesto vago na direção do horizonte.- Então, quem são seus pais? - insistiu o homem.A menina olhou para cada um deles, com ar perplexo, e
encolheu os ombros.Todos se entreolharam, suspirando.- Não precisa ter medo - continuou o homem. - Não
vamos mandá-la embora. Queremos ajudá-la.Momo meneou a cabeça, calada, sem muita convicção.- Você disse que seu nom e é Momo, não é?- É .- É um nome bonito, mas que eu nunca tinha ouvido
antes. Quem lhe deu esse nom e?- Eu mesma.
1. Momo e o senhor do tempo, pp. 6-7.
304 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
-V o c ê mesma?...- É .
- Quando você nasceu?M omo pensou um pouco e, finalmente, disse:- Tanto que eu me lembre, sempre existi.
O segundo fragmento é o "Soneto de Natal", de Machado de Assis2:
Um homem, - era aquela noite amiga,Noite cristã, berço no Nazareno, - Ao relembrar os dias de pequeno,E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno As sensações da sua idade antiga,Naquela m esm a velha noite amiga,Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto... A folha branca Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,Só lhe saiu este pequeno verso:"Mudaria o Natal ou mudei eu?"
Ambos ilustram uma realidade que, se bem aproveitada, em muito pode contribuir ao argüente, já nesta fase final do estudo. Trata-se da subjetividade e seu efeito na enunciação do discurso.
Perceba como a menina Momo, que vivia isolada de seus pares, quando questionada sobre sua idade, responde: "Tanto que eu me lembre, sempre existi." Um pensamento e tanto, não? Efetivamente, de seu ponto de vista, ela existe desde sempre. Antes de seu nascimento, impossível a ela aquilatar se havia existência: de seu ponto de vista, o mundo nasceu a partir dela, e não o inverso.
Algo semelhante ocorre com o soneto de Machado de Assis, conquanto de modo oposto. O poeta, já avançando
2. "Soneto de Natal". In: Poesias Completas, p. 376.
ARGUMENTAÇÃO, ESTILO E SUBJETIVIDADE 305
em anos, percebe que o Natal não mais lhe inspira como outrora. Reflete, entretanto, com maior maturidade que, antes de afirmar que o Natal já não é mais o mesmo ("a viva dança e a lépida cantiga"), tem de colocar-se à reflexão: não seria ele, poeta, que estaria vendo a realidade de modo diverso? "Mudaria o Natal ou mudei eu?"
Pois toda vez que descrevemos uma realidade, transformando-a em ponto de partida de um discurso, imprimimos nossas impressões pessoais, queiramos ou não. Quando enunciamos um texto argumentativo, é de má técnica utilizar enunciações de subjetividade, a exemplo de "na minha opinião", "eu acho", "sob meu ponto de vista", mas é certo que qualquer enunciaçâo ou construção discursiva, porque são frutos do raciocínio de um sujeito, sempre refratam sua opinião, seus anseios, preconceitos e experiências.
Não é apenas na literatura. Onde um juiz, em julgado seu, afirma que "a doutrina diz que essa é a interpretação válida do texto legal", deve-se ler, à evidência, "a doutrina que eu conheço (ou que eu li) diz que essa é a interpretação válida do texto legal". Por mais objetivo que pretenda ser o julgado, ele trabalha com as informações e experiências que têm uma mente humana determinada, com seus sentimentos e seu conhecimento de mundo tão pequeno, se comparado ao todo do saber humano.
É bem verdade, então, que o argumentante não deve enunciar-se diretamente no texto, revelando seu eu, com suas limitações e defeitos, pois o ideal é sempre que a argumentação alcance a maior objetividade possível. Entretanto, já em nosso nível de estudo do tema, podemos claramente afirmar que o fato de essa subjetividade não aparecer enunciada não significa que não deva ser considerada, em qualquer exercício discursivo, pelo argumentante.
Pois é do caráter subjetivo da argumentação - e do alerta para que o argumentante se aperceba dele - que trazemos duas conseqüências diversas, como instrumento de reflexão em nosso estudo: a construção do estilo e a humildade do argumentante.
306 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Os dois pontos que seguem podem, então, parecer contraditórios, se o estudante não lhes conceder o devido valor. Sopesar - como em toda matéria humana - as vantagens e desvantagens do quanto será exposto para seu nível atual de trato com a construção do discurso é responsabilidade, obviamente, de cada estudante.
Construir um estilo, edificar uma imagem
A primeira conseqüência da subjetividade é o evidente fato de a imagem do argumentante ser indissociável de seus argumentos. Mesmo que o interlocutor jamais tenha refletido especificamente acerca deste tema, certo é que associa o conteúdo das idéias que lhe são lançadas àquele que as profere, como se notou ao trabalhar-se com a argumentação ad hominem e, de certa maneira, com o argumento de autoridade.
O interlocutor concebe essa associação indivíduo-idéia porque busca coerência no todo da construção discursiva. É, portanto, obrigação do argüente preocupado com a eficácia de seu discurso estabelecer tal coerência, que vem de sua própria imagem que ele constrói para si.
Observe, a título de ilustração, o pertinente comentário de Schwartzenberg3:
O hom em político vem procurando cada vez mais im por uma imagem de si mesmo que capte e fixe a atenção do público.
Essa im agem é uma reprodução mais ou m enos fiel dele m esm o. E o conjunto de traços que ele preferiu apresentar à observação pública. É um a seleção, um a recom posição.
Esta maquete reduzida constitui portanto uma representação figurada da realidade. E, ao mesmo tempo, uma reconstrução da realidade.
3. O Estado espetáculo, p. 3.
ARGUMENTAÇÃO, ESTILO E SUBJETIVIDADE 307
Essa reconstrução lembra o trabalho do artista. Mas desta vez o artista toma a si mesmo como material de trabalho - como na autobiografia, no auto-retrato. Mas, desta vez, o escultor esculpe sua própria estátua. Amassa a sua própria argila. É ao mesmo tempo artista e modelo, criador e criação.
Não se prega aqui o narcisismo e o culto da personalidade, própria dos políticos e estadistas. Mas é certo que, ao longo do tempo, a construção de uma imagem que pareça coerente ao interlocutor é fator de persuasão complementar, a que um estudo aprofundado não pode deixar de fazer menção. Se um argumentante se faz suficientemente conhecido porque muitas vezes escreve textos ou faz discursos orais defendendo determinadas idéias, o interlocutor passa, em sua intertextualidade, a contar com aqueles outros discursos para complementar o sentido daquele que lhe é proferido.
Certa vez um advogado do tribunal do júri, de larga competência, sentindo que os jurados estavam comovidos com seu discurso, percebeu que poderia enunciar tese de legítima defesa em favor de seu cliente, sendo que houvera planejado pedir o benefício da violenta emoção. Demoveu- se da idéia, apesar da possibilidade de, com alguma justiça, absolver seu cliente. Depois, explicou: "Correria grande risco se o fizesse. Não apenas de sair perdedor, mas de firmar minha imagem como advogado que faz pedidos inverossímeis. Isso me seria altamente prejudicial." Verdade: o advogado considerou que um dos jurados que o assistisse, em próxima defesa sua, poderia usar do pedido desarrazoado de legítima defesa para constituir uma má predisposição para o novo discurso: a imagem do argumentante como fal- seador da razoabilidade, que, indissociável de seu novo discurso, não se renova com facilidade.
Mais uma faceta da coerência.Pois o nível de intencionalidade na construção da ima
gem do argumentante também é parte de seu discurso e da técnica argumentativa. Como é impossível deixar de gravar traços de personalidade em todo discurso que constrói, ele
308 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
utiliza esses mesmos traços como fator de coerência, demonstrando, intencionalmente - ainda que de modo não explícito - , que tais marcas pessoais seguem no mesmo sentido que os argumentos efetivamente enunciados. E de tempos passados que nasceu a máxima "A mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta".
A tarefa de constituir uma imagem coerente nada tem, no Direito, de criticável: na publicidade, o gordo não será chamado para fazer comercial de adoçante, nem o careca para anunciar tônicos capilares.
A subjetividade aparece também na construção do estilo. Ao longo do tempo, as convicções, idiossincrasias, a seleção vocabular e a própria imagem constituem traços de pessoalidade discursiva, que podem ser identificadas pelos interlocutores. Esse estilo, quando bem utilizado, é marca característica que funciona como fator de persuasão, na medida em que representa um diferencial com o qual o destinatário pode identificar-se e que pode servir de fator complementar de sentido a um texto.
De qualquer modo, o importante é que esse fator seja trabalhado com intencionalidade e consciência. A coerência em relação à formação da imagem e do estilo pode ser fator de excelente persuasão, se consideradas todas as circunstâncias que envolvem essa técnica. Veremos mais adiante.
O segredo final: a humildade
No início do capítulo vimos como as impressões pessoais daquele que constrói o discurso são indeclináveis. Elas aparecem para aquele que é bom observador, queira ou não o argüente. O que se proclama, como técnica argu- mentativa, é que o argumentante tenha consciência desses traços pessoais que imprime em seu discurso e deles se utilize como fator de coerência. Para imprimir sentido a seu discurso, o interlocutor pode estar conjugando uma miríade de fatores em relação àquele que argumenta: seu currículo, seus pronunciamentos anteriores, suas citações, sua lin
ARGUMENTAÇÃO, ESTILO E SUBJETIVIDADE 309
guagem, sua aparência, seu tom de voz, seus gestos, sua segurança...
Mas construir uma imagem não significa falseá-la e, muito menos, ter soberba de si mesmo, erguendo em torno da personalidade um personagem sólido e inflexível. Ao contrário.
Se já tratamos do tema em relação à intertextualidade, aqui o abordamos sob outro prisma: o bom argumentante sabe, antes de tudo, ser humilde. Não humilde por fraqueza de caráter ou timidez, mas para saber que o centro de todas as atenções, no discurso, é o ouvinte.
Sem pensar no interlocutor - e não em si mesmo - como centro do discurso, o argüente faz construções prolixas, recheadas de informações, desnecessárias, mas corretas, e torna seu percurso complexo e ininteligível.
Imaginando-se o centro da argumentação, o argüente (quantas vezes!) lembra-se da correção gramatical, mas esquece-se das regras de coesão, desestimulando a leitura e assim lançando a ninguém seus argumentos.
Julgando-se o centro da argumentação, o argüente crê criar um estilo pessoal, introduzindo diferenciais em seu discurso, enquanto aos olhos do interlocutor só faz acumular vícios e manias, construindo um percurso repetitivo e de enunciação pobre.
Crendo ser o centro da argumentação, o argüente crê demonstrar sua erudição - e o faz - sem calcular o prejuízo que causa ao ouvinte, interessado na objetividade.
Faz-se, portanto, seguro afirmar que aquele que estuda argumentação para demonstrar argumentar bem está a um passo de construir um discurso nada persuasivo. Como naquela historinha - conta-se com bastante liberdade - do violinista que adentrou no palco e encontrou a platéia cheia de espectadores para assistir-lhe. Resolveu, então, à sorrel- fa do maestro, entonar um longo solo, fechando os olhos para concentrar-se. Seus dedos passaram a voar pelo violino, as notas saíam-lhe com perfeição e rapidez, a velocidade inacreditável; mostrava ser o mais habilidoso dos instrumentistas, quiçá do continente inteiro. Quando abriu os
310 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
olhos, a platéia estava vazia. O violinista não percebeu o que o maestro tão bem sabia: que o público não viera para ver exibição de habilidade, mas para ouvir música.
Pois assim é que argumentar passa a significar a transformação das capacidades pessoais (trato com a linguagem, erudição, raciocínio, conhecimento jurídico etc.) em recursos que atraiam o próprio interlocutor, o auditório. Nesse sentido, o operador do Direito deve se ver como um profissional da comunicação exercendo uma atividade comunicativa, de transferência de mensagem: agir como age o escritor, como age o publicitário, como faz o vendedor - com a vista centrada no auditório. Constituir uma imagem e um discurso coerentes com toda a argumentação que se profere não pode significar, de modo algum, deixar de estar sempre pronto para alcançar novas técnicas discursivas, que podem implicar mudanças verdadeiras na forma de enunciação ou até mesmo na forma ou na capacidade de construção de raciocínio. E um aspecto que, no contexto jurídico, não é demais insistir.
Conclusão
A construção do estilo é questão importante para aquele que pretende um aprimoramento completo e contínuo de sua capacidade argumentativa. Ao lado da imagem define-se a coerência entre o discurso e diversos outros fatores- entre eles, outros discursos - que vão se sedimentando para a atribuição de sentido pelo interlocutor. Trata-se de um fator para ser pensado mais a longo prazo, em exercício também constante.
Mas imaginar a definição do estilo e da imagem não pode implicar soberba. O estilo define-se se tiver sempre como foco principal o interlocutor. Ele é quem deve ser atingido pelo argumento e é para ele que se constrói o discurso suasório. Rememorando, quem elabora um texto tendo como foco o próprio raciocínio está a um passo de fazer um belo exercício, mas uma péssima argumentação.
Capítulo XVIII
Argumentação e criatividade
Até o argumentante mais experiente pode cair no erro de cristalizar argumentos e formas de enunciação, que farão repetitivo seu discurso. E a repetição não é suasória. Buscar a constante renovação do discurso é um fomento à construção dos meios pessoais de criatividade.
Se compreendemos a argumentação como atividade comunicativa dentro do Direito, e a forma de argumentar como aquela que envolve técnicas de persuasão, sujeitas a alguns aspectos que tangenciam a subjetividade, como a competência lingüística, o estilo e a intertextualidade, certo é que o tema da criatividade pode aparecer, senão como fundamental, ao menos como muito pertinente.
Nossa função, nesta obra, talvez seja transportar para o campo da atividade jurídica algo que, nas demais áreas da comunicação, é corriqueiro. O tema da criatividade permeia o marketing, a propaganda, a administração de empresas, a gestão de pessoal, a literatura e, sobretudo, as artes. No Direito, uma herança que o aproxima das ciências exatas, acerca do que muito aqui já se discutiu, além do conservadorismo natural de uma ciência, que, por suas próprias condições, segue as mudanças sociais sempre com largo retardo, talvez não se abra devido espaço para discutir o tema do processo criativo.
Mas é sempre tempo de pensar de modo diverso, ao menos quando tratamos de argumentação. Ao largo destas reflexões foram pinceladas idéias que estimulam o processo criativo, os exemplos literários, as frases com efeito suasório reconhecido, as ilustrações. Nosso ponto de partida é acreditar que discurso deve sempre se renovar e que a mente humana pode ser estimulada de determinadas maneiras,
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sendo que esse estímulo tem efeitos inequívocos nos argumentos.
Entretanto, antes de estudá-lo é necessário que sejam afastados todos os eventuais obstáculos que se impõem no processo criativo, caso contrário o estimular da criatividade não passará de semeadura em terreno infértil. Por isso é imprescindível que sejam realçados dois elementos distintos que já foram afirmados em nosso estudo. O primeiro é o de que a argumentação tem limites éticos, por isso é pacífico que nem toda grande idéia cabe no contexto argumentativo jurídico. O segundo é o de que níveis de discurso distintos assumem graus de liberdade criativa também distintos. Assim, um percurso científico é menos aberto a inovações criativas que a persuasão no tribunal do júri ou na redação de razões de apelação. Mas nos três casos, como fruto da mente humana, a criatividade está presente, e em larga medida. O operador do Direito, em especial o advogado, são baluartes, bandeiras da atividade criativa. Seu cotidiano impõe que sempre sejam alimentadas novas idéias, novos campos de argumentação, novos modos de encarar antigas situações ou até mesmo as situações inusitadas, que não contam com previsão legal ou não reverberam na, por assim dizer, remansosa jurisprudência.
Nesse sentido, reflexões sobre criatividade no Direito são necessárias, ainda que representem novidade. Trata-se até mesmo de atividade metalingüística: é necessário ser criativo para falar e refletir a respeito da criatividade. Desta forma, ela não pode ser um estudo estanque, travado em regras, pois estas contradiriam a própria natureza daquela.
Vamos, portanto, às mudanças.
Medo de mudanças ou medo de que as coisas não mudem?
O criativo é diferente.Mas parece instinto natural do ser humano a repulsa
ao que é diferente, porque gera insegurança. Um instinto
ARGUMENTAÇÃO E CRIATIVIDADE 313
de preservação indica que o desconhecido é sempre perigoso. O ser humano tem a tendência de preservar costumes e tradições porque eles, comprovadamente, mantêm-se dentro de padrões que importam o afastamento de riscos.
Mas o mundo moderno - ou pós-moderno, como preferem alguns - trouxe como uma de suas conseqüências a volatilização das relações humanas. Nesse processo, como em qualquer processo humano, há vantagens e desvantagens, sobre o que cabe refletir, brevemente, nos estreitos limites que interessam à argumentação.
"Tudo que é sólido desmancha no ar." A frase, conhecida, é do Manifesto Comunista. Ideologias à parte, em 1848 Marx e Engels bem descreviam o que representaria a modernidade, quais seriam seus valores principais. Marx destacava que a revolução incessante, a constante transformação era regra da sociedade que então se instalava:
A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação sem alterações do antigo modo de produção constituía, pelo contrário, a condição primeira da existência de todas as classes empreendedoras anteriores. Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. (...) Tudo o que era sólido e estável evapora-se, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são, finalmente, obrigados a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.1
As relações sociais "tornam-se antiquadas antes de terem um esqueleto que as sustente" - essa era a afirmação de Marx, já a seu tempo.
No ano de 1981, Marshall Berman, em sua obra Tudo que é sólido desmancha no ar, recupera a frase de Marx. Ob
1. MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, p. 79.
314 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
serva o niilismo da sociedade moderna em sua busca por desenvolvimento, e o faz a partir da análise de obras literárias. Em sua famosa leitura de Fausto, de Goethe, comenta, em palavras que aqui entendemos muito próprias:
A força vital que anima o Fausto goethiano, que o distingue dos seus antecessores e gera muito de sua riqueza e dinamismo, é um impulso que vou designar com o desejo de desenvolvimento. Fausto tenta explicar esse desejo ao diabo, porém não é fácil fazê-lo. Nas suas primitivas encarnações, Fausto vendia sua alma em troca de determ inados bens, claram ente definidos e universalmente desejados: dinheiro, sexo, poder sobre os outros, fama e glória. O Fausto de G oethe diz a M efistófeles que, sim, ele deseja todas essas coisas, mas não pelo que elas representam em si mesmas. O que esse Fausto deseja para si m esm o é um processo dinâm ico que incluiria toda sorte de experiências humanas, alegria e desgraça juntas, assim ilando-as todas ao seu interminável crescim ento interior; até m esm o a destruição do próprio eu seria parte integrante de seu desenvolvim ento.2
Na observação de Berman, a falta de segurança de Fausto é a grande metáfora da sociedade moderna, motivo pelo qual a utiliza na observação da sua leitura sobre o pós-modernismo. Assim, lembra:
Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. É sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e freqüentem ente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu mundo, transformando-o em nosso mundo. É ser ao m esmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas con
2. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade, p. 47.
ARGUMENTAÇÃO E CRIATIVIDADE 315
duzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz.3
O mundo pós-moderno permite maior criação, ainda que daí surja um paradoxo. A vontade do ser humano de criar e de experimentar, que aparece em Fausto, é a mesma que gera uma sensação de insegurança4, em virtude do contínuo encarar com o novo.
Vantajoso ou não, o que aqui importa é que o processo criativo, no mundo pós-moderno, acaba por ser sobrevalo- rizado, não sem razão. A capacidade de adaptar-se ao novo, a velocidade do raciocínio, o encontrar de novas soluções e novas linguagens aparecem como critérios seletivos daquele que atua com o intelecto. E na seara jurídica não poderia ser diferente.
A linguagem moderna mais dinâmica, os exemplos mais persuasivos, a capacidade de adaptar-se ao tempo progressivamente exíguo e ao raciocínio imediatista são valores a ser consagrados na atividade do ser humano. Não poderia ser diferente na argumentação jurídica: a capacidade de criar novas soluções para novos ou antigos problemas é digna de valor e, portanto, cultivá-la significa preparar-se melhor para a capacidade suasória.
A premissa da criatividade significa, nesse primeiro plano, desvincular-se dos bloqueios que possam existir para as novidades. Parece repetição bastante próxima do lugar-co- mum, mas não é: muitos profissionais criativos têm como principal obstáculo a falta de confiança em relação à aceitabilidade de suas soluções. Como, por exemplo (caso real), a insegurança que gerou em certo advogado a possibilidade de ilustrar sua petição inicial com fotografias altamente per- suasivas, mescladas ao texto, por representar um inovar na linguagem que - entendia - não seria bem-aceito pelo julgador. Padrão da modernidade: o computador agora lhe
3. Idem, p. 12.4. É a idéia da sociedade de risco, de Ulrich Beck, que data da segunda
metade da década de 1980.
316 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
permite editar um texto com fotografias de altíssima resolução, mas seu padrão de produção escrita, jurídica, atém- se a um costume formado em época ainda recente, em queo amálgama entre a imagem e o texto era quase impossível para aquele que não dispusesse de um aparato gráfico quase industrial.
Sobre o tema, é impossível deixarmos de citar a reflexão idiossincrática, porém tão ilustrativa, do narrador-per- sonagem de Clarice Lispector.
E não me esquecer, ao começar o trabalho, de me preparar para errar. Não esquecer que o erro muitas vezes se havia tomado o meu caminho. Todas as vezes em que não dava certo o que eu pensava ou sentia - é que se fazia enfim uma brecha, e, se antes eu tivesse tido coragem, já teria entrado por ela. Mas eu sempre tivera medo de delírio e erro. Meu erro, no entanto, devia ser o caminho de uma verdade: pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo. Se a "verdade" fosse aquilo que posso entender - terminaria sendo apenas uma verdade pequena, do meu tamanho.5
Sem dúvida, a criatividade, na argumentação jurídica, encontra o entrave do medo de enfrentar o erro, o exagero. Mas não seria demais dizer que na pesquisa que promovemos já há tempos lecionando esta matéria, os argumentos mais persuasivos são inusitados, criativos. A novidade tem maior poder de atração, e isto talvez compense a repulsa natural que tem o operador do Direito a raciocínios ainda não consolidados, a argumentos não cristalizados em doutrina e jurisprudência.
Daí que a ousadia e a criatividade, em certa medida, caminham juntas. As reflexões sobre a modernidade, que aqui são feitas a título de introdução, no mínimo fomentam a questão: não seria imprescindível, mesmo no Direito, um esforço constante do profissional atualizado em alterar sua realidade e rever formas e argumentos? Disto tratar-se-á adiante.
5. A paixão segundo G. H., p. 183.
ARGUMENTAÇÃO E CRIATIVIDADE 317
Criatividade e informação
Estudar a criatividade importa liberdade no trato com o tema. Acompanhe os dois textos abaixo transcritos e note como ambos, escritos em tempos e contextos diversos, aproximam-se em relação ao fundo temático: o primeiro, um fragmento de 1984, de Orwell, e o segundo um trecho de A história sem fim, de Michael Ende:
IQuando a boca da mulher não estava ocupada por pre
gadores e roupa, cantava com poderosa voz de contralto:
Era apenas uma ilusão sem esperança que passou como um dia de abril; mas aquele olhar, aquela palavra e os sonhos que atiçaram me roubaram o coração.
Essa canção era mania em Londres havia várias sem anas. Era uma das produções da subseção do Departamento de Música, destinada aos proles. A letra dessas canções se compunha sem qualquer intervenção humana, utilizando-se um aparelho chamado "versificador". Mas a mulher a cantava com tão bom gosto que o horrível ritmo convertia-se em sons quase agradáveis.6
IIHavia ali um grande grupo de pessoas, homens e m u
lheres, novos e velhos, todos vestidos das maneiras mais estranhas, mas sem falar. No chão havia um montão de grandes dados, que tinham letras nas seis faces. Aquelas pessoas jogavam continuamente os dados e depois observavam-nos fixamente durante muito tempo.
- Que estão fazendo?, murmurou Bastian. Que jogo é aquele? Como se chama?
- É o jogo do acaso, respondeu Argax. Acenou aos jo gadores e gritou: Muito bem, meus filhos! Continuem! Não desistam!
6. Orwell, G. 1984, p. 141 (tradução livre).
318 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Depois voltou-se outra vez para Bastian e murmurou- lhe ao ouvido:
- Já não são capazes de contar histórias. Esqueceram a fala. Por isso lhes inventei esse jogo. Para passar o tempo, como você vê. E é muito simples. Pensando bem, tem os de concordar que, no fundo, todas as histórias do mundo se com põem de apenas vinte e seis letras. As letras são sempre as mesmas, só a sua combinação varia. Com as letras formam- se palavras, com as palavras frases, com as frases capítulos e com os capítulos histórias. Olhe o que aquilo deu:
Bastian leu:H G I K L O P F M W E Y V X QY X C V B N M A S D F G H J K L O A
[...]- Sim, gargalhou Argax, é quase sempre assim. Mas
quando se joga este jogo sem parar durante muito tempo, durante anos, algumas vezes formam-se palavras por acaso. Podem não ser muito significativas, mas são palavras. Por exemplo, "espinafre amarelo" ou "salsicha-escova" ou "p in- ta-pescoços". Porém, se se continua a jogar este jogo durante centenas, milhares ou centenas de milhares de anos, é provável que alguma vez, por acaso, se obtenha um poema. E se se jogar eternamente, terão de surgir todas as poesias e to das as histórias do mundo, e também todas as histórias das histórias, e até m esm o esta história em que estamos os dois conversando. É lógico, não acha?
- É horrível, disse Bastian.7
Ambos os textos trazem como tema central a aguda crítica à falta de criatividade. O romance de Orwell, clássico na descrição do totalitarismo e da homogeneização de pensamentos, relata como o regime do Grande Irmão cuidou de deixar a cargo da sorte a criação das letras das canções, que raras vezes faziam sentido, aproveitando-se da ausência de questionamentos na mente dos comandados. Em A história sem fim, Bastian depara-se com aqueles que "já não são capazes de contar histórias"; logo, não são cria
7. A história sem fim , pp. 338-9.
ARGUMENTAÇÃO E CRIATIVIDADE 319
tivos. Sua capacidade criadora é aqui também deixada à sorte, nos dados com letras em suas faces. Na história de Ende, em perfeita harmonia com o título da obra, a lógica exata do número infinito é quem recebe o encargo da atividade criadora coerente.
A crítica que está por trás dos fragmentos é evidente. A capacidade criadora, diferencial do intelecto humano, surge da combinação de elementos, como matéria bruta para uma escultura, tijolos para um muro. Não há nenhuma idéia que possa brotar do nada. Até o mundo, na descrição do Gênese, teve início no Verbo.
Mas o excesso de material informativo, como os dados lançados exaustivamente no "jogo do acaso", não criam por si só as grandes idéias. Pode afigurar-se como um paradoxo, mas também pode ser extremamente coerente o fato de o excesso de informação funcionar mais como um fator de confusão que como uma catálise à criação, caso a capacidade criadora não progrida. Nesse sentido, a crítica que aparece nos dois fragmentos ilustra bem o fenômeno do mundo moderno: muitos elementos à disposição do ser humano (como os dados lançados ou as informações do versificador), que configuram evolução tecnológica constante, mas não necessariamente ativam o intelecto e a criação. Ao contrário. Basta exemplificar que Aristóteles sequer deveria saber que o sangue corre dentro de veias ou que a Terra era redonda, assim como, em outra seara, Sófocles ou Esquilo, e os três foram capazes de criações que até hoje inovam e emocionam.
A informação é fator de criatividade, mas não isoladamente. A mente humana cabe o uso dos elementos informativos para seu aproveitamento no discurso. As formas de adquirir a informação, bem como os meios mentais de adaptar, na linguagem, o aprendizado contínuo, são sem dúvida infinitos. A impressão de que, na construção de um texto persuasivo, os argumentos acabaram não é mais que ilusória8.
8. Os artistas, em metalinguagem, não raro relatam crises de criatividade de artistas: Camões pede que não lhe ajudem o engenho e a arte na redação dos Lusíadas; o poeta do "Soneto de Natal", de Machado de Assis (vide
320 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Acompanhe este fragmento de Manuel Bandeira, redigido na década de 19309:
Poema tirado de uma notícia de jornal João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no
[morro da Babilônia num barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou DançouDepois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
O fragmento serve para dele retirarmos dois princípios distintos, ainda que bastante próximos. O primeiro importa na renovação da linguagem. Autor modernista, Bandeira segue a tendência da negação à métrica clássica, à criação que aparecia travada nos anseios da beleza da forma, da aparência. O texto não tem rimas, muito menos a métrica de um soneto. Mesmo assim, conta com sonoridade e ritmo. Questões literárias de lado, o fato é que o mundo moderno (isso em texto de décadas atrás) implica alterações na linguagem, no modo de comunicar, qualquer que seja ele. Essas alterações seguem a tendência, cada vez mais salientada, de permitir maior fluxo criativo.
Mas essa questão é secundária, ainda que relevante. O que o texto melhor nos mostra é que o autor inspirou-se, para seu poema, em uma notícia do cotidiano. Claro está que aquele poema surgiu de um relato, muito mais denso e certamente menos artístico, publicado no jornal. A atividade do poeta consistiu em tornar o relato sucinto, recheando as palavras de maior significado, colocando-as em uma métrica ritmada, ainda que moderna. E assim comunicou.
capítulo anterior), também se coloca em crise diante da folha branca; o protagonista de M ala cducacíón, de Almodóvar, é um roteirista de cinema que não consegue inspiração para iniciar um novo roteiro, entre tantos outros exemplos que dão conta, pela arte, de que a capacidade de inovação é um fator perseguido por aqueles que devem criar.
9. In: CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura brasileira, p. 50.
ARGUMENTAÇÃO E CRIATIVIDADE 321
Bons argumentos são retirados das informações do dia- a-dia, tal qual o poema surgiu do recorte de jornal. No contexto jurídico, a citação da jurisprudência e da doutrina especializada, como já abordamos nesta obra, representa argumento extremamente persuasivo, mas a análise dos bons discursos, também jurídicos, mostra que eles vêm permeados de conteúdos significativamente mais amplos: exemplos históricos, ilustrações com atualidades, comparações inusitadas.
Todos esses argumentos, que em grande medida tendem à figurativização, foram aqui analisados, ainda que em parte. Mas importa, neste capítulo, ressaltar que é necessário, para a argumentação criativa, a efetiva utilização dessas informações como elementos incorporados ao conteúdo do texto.
A valorização de elementos que, isolados, são simples e sem valor persuasivo é uma das grandes características do percurso argumentativo intencional. O texto, como combinação de palavras e idéias, permite que elementos discursivos adquiram, progressivamente, significado e força quando enumerados para tanto.
O fato de a argumentação ter, como características, a língua natural e o percurso que depende do orador, implica dupla conseqüência: se, de um lado, impõe algumas dificuldades no que tange à escolha de palavras e do norte dos argumentos, de outro permite que se adapte uma infinidade de idéias que, a rigor, não seriam cabíveis a um discurso meramente demonstrativo. Trabalhando com discursos políticos, muitas vezes somos forçados a encaixar em trilhas argumentativas alguns elementos, figurativos ou temáticos, que devem sobressair no discurso (em especial no gênero epidíctico: as belezas naturais de uma região, as conquistas de determinado cidadão local, o resultado das últimas pesquisas). Não é trabalho impossível: o discurso fle- xibiliza-se para amoldar-se às suas necessidades. Assim alcança-se a almejada valorização dos elementos lingüísticos enunciados.
322 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Por isso ao argumentante nunca é demais alertar: havendo o necessário zelo pela coerência, em seus diversos níveis, os argumentos novos, em conteúdo e forma, raríssi- mas vezes são pouco bem-vindos. A impressão de que a inserção de uma notícia da atualidade ou de um elemento figurativo é totalmente descabida é, na maioria das vezes, realmente apenas uma impressão, mera insegurança. In- serta com intencionalidade, a informação inusitada, típica da atividade criativa, confere ao discurso o caráter de novidade que o retira do lugar-comum e o transforma em agradável e persuasivo, conforme veremos a seguir.
Novidade e persuasão
A capacidade da mente humana é inesgotável.Mas o ser humano muitas vezes sente bloqueio em sua
criatividade. Percebe o momento em que deve ter uma idéia original, porém ela não vem. No contexto jurídico, a comodidade, a falta de tempo e o esgotamento da criatividade constituem grave incentivo para a repetição de novas teses. É certo, então, que a criação mental vem, antes de outro momento, de um esforço. Um esforço, poderíamos dizer, como o de um músculo, e isso aparece em quase todos os manuais, que agora se tornaram conhecidos, de criatividade.
Contra o pensamento criativo, a maior mazela é então a tão enunciada lei do menor esforço. O não-criativo é cômodo, pois não impõe o trabalho de rever, de pesquisar, de reconstruir. Desse modo, o livro de doutrina que, em lugar de pesquisar o posicionamento divergente, reproduz o texto da jurisprudência dominante, tem menor força para criar o Direito, fazê-lo evoluir, pois a reflexão ali aparece restrita, ao menos no sentido de originalidade. Do mesmo modo, a doutrina que cita sempre o mesmo livro, este que já era cópia de jurisprudência, não apenas esgota a criação original como remonta a um círculo de alta perniciosidade, a cristalizar situações estanques.
ARGUMENTAÇÃO E CRIATIVIDADE 323
O caminho inverso pode ser altamente aproveitado para a argumentação. Aquilo que exige esforço é em regra criativo, pois motiva o raciocínio. Veja como esse fenômeno ocorre no fragmento abaixo, recortado de Guimarães Rosa10.
Aquele mundo de fazenda, sumindo nos sussurros, os trastes grandes, o conforto das arcas de roupa, a cal nas paredes idosas, o bolor. Aí o que pasmava era a paz. Pensei por que seria tudo alheio demais: um sujo velho respeitável, e a picumã nos altos. Pensei bobagens. Até que escutei assovia- ção e ritos, tropear de cavalaria. "Ah, os cavalos na madrugada, os cavalos!..." - de repente me lembrei, antiqüíssimo, aquilo eu carecia de rever. Afoito, corri, comparei numa ja nela - era o dia clareando, as barras quebradas. O pessoal chegava com os cavalos. O s cavalos enchiam o curralão, pra- zentes. Respirar é que era bom tomar todos os cheiros. Respirar a alma daqueles campos e lugares. E deram um tiro.
Deram um tiro, de rifle, mais longe. O que e eu soube. Sempre sei quando um tiro é tiro - isto é - quando outros vão ser. Deram muitos tiros. Apertei minha correia na cintura. Apertei minha correia na cintura, o seguinte emendado: que nem sei como foi. Antes de saber o que foi, me fiz nas minhas armas. O que eu tinha é fome. O que eu tinha era fome, e já estava embalado, aprontado.
Às tantas o senhor assistisse àquilo: uma confusão sem confusão. Saí da janela, um hom em esbarrou em mim, em carreira, outros bramaram. Outros? Só Zé Bebelo - as ordens, de sobrevoz. Aonde, o quê? Todos eram mais ligeiros do que eu? Mas ouvi: - "... Mataram o Sim ião..." Simião? Perguntei: - "E o Doristino". -"Ã ã? Homem, não sei..." - Alguém me respondendo [...] Atiravam nas construções da casa. Diadorim sacripante se riu, encolheu um ombro só. Para ele olhei, o tanto, o tanto, até ele anoitecer em meus olhos. Eu não era eu. Respirei os pesos.
O leitor vê, no texto acima, a descrição de uma matança de cavalos. Pode sentir, no ritmo da descrição, de que se recortou apenas fragmento, todo o desespero e o cli
10. Grande sertão: veredas, pp. 283-4.
324 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
ma de ação e velocidade que se instaura, alterando o status quo ante, de calma e tranqüilidade daquele "mundo de fazenda".
A comparação não é perfeita, mas cabe neste estudo amplo: Guimarães Rosa, nessa obra, atreveu-se a criar. Sua criatividade atingiu níveis tão elevados que os neologismos não foram raros. Porém seu trabalho seguiu critérios: perceba o leitor como, mesmo diante de palavras novas e métrica aparentemente confusa, consegue-se depreender quase sempre o sentido da descrição dos personagens. Enquanto a enunciaçâo inusitada deixa mais confusa a leitura, prende o leitor, que procura despertar sua sensibilidade e, principalmente, seu intelecto, na interpretação daquele trecho. Além, é claro, do evidente efeito de aproximação do pensamento rústico do personagem, que é outra intenção dentro da narrativa.
Quando o autor da obra literária ousa escrever de modo diverso daquele que é comumente empregado, com enun- ciação ousada, sabe que desperta a atenção do leitor. Ele é estimulado quando necessita produzir sentido ao inusitado.
Pois é possível, no contexto do discurso forense, utilizar o mesmo princípio. Basta adaptá-lo, com bom senso, às peculiaridades do meio jurídico, em que a liberdade de forma não alcança fronteiras tão amplas. Todo argumento novo, criativo, apenas por sua novidade já é fator suficiente de persuasão, e o bom argumentante sabe disso.
O discurso repetitivo, ainda que formalmente correto, não desperta interesse no interlocutor. Nas causas mais complexas, nos discursos que têm a forte tendência de levar o ouvinte ao cansaço e ao desinteresse, os modos subjetivos de atrair a atenção devem ser criados pelo discursante. Para tanto, deve-se abandonar os tipos de argumentos corriqueiros, que podem passar a impressão ao interlocutor de que as idéias lhe vêm repetidas. E idéias repetidas não alteram o processo decisório, e menos ainda estimulam a atenção.
ARGUMENTAÇÃO E CRIATIVIDADE 325
Renovando o discurso
Capacidade argumentativa todo ser humano tem. Momento a momento é chamado a debater, a transformar a opinião de alguém, a defender seu ponto de vista, sua atitude, seus planos.
Rara quem deseja aprimorar-se na capacidade argumentativa, todo debate, desde os mais corriqueiros, é um treino perfeito. É impossível preparar-se apenas para os grandes discursos sem fazer de toda construção textual um exercício de aprimoramento.
Mas o treino pode ser ainda mais eficaz quando elaborado e direcionado para a criatividade específica. Para os professores de criatividade em geral, várias são as técnicas, individuais ou coletivas, que fazem despertar a capacidade criadora. Muitas delas aparecem em livros especializados, que expõem métodos diversificados de estímulo à criação e combinação de idéias, com inspiração na propaganda ou nos princípios psicológicos ou neurolingüísti- cos em geral.
Aqui nos atemos a um discurso específico.Para o discursante forense, um método antigo tem ex
tremo valor: a paráfrase. O exercício da paráfrase é a tradução, na mesma língua, de um texto argumentativo. Aqueles que estudam argumentação em níveis mais aprofundados, o exercício é corriqueiro.
O método é simples: ao aluno propõe-se determinado texto a ser parafraseado. O aluno deve lê-lo e transcrevê-lo com suas próprias palavras. Mas essa transcrição tem suas peculiaridades: ela deve preservar ao máximo as idéias do texto original, ao mesmo tempo que deve evitar repetir suas palavras. No primeiro momento, a paráfrase serve como modo de aquisição de vocabulário ativo e estímulo à busca de recursos mais variados para a enunciação. Em um segundo momento, estimula a própria criação de idéias.
Veja, no exemplo a seguir, como isso ocorre:
326 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Texto-propostaOs médicos também estão envolvidos em muitos crimes
desse mesmo tipo. Embora seja extremamente difícil com provar fraudes em casos individuais, existem evidências conclusivas de que eles recebem bastante dinheiro ao realizar procedimentos desnecessários. Muito mais claros são os casos em que esses profissionais apresentam solicitações de seguro médico fraudulentas. Em alguns acontecimentos, os médicos cobram por procedimentos que nunca foram realizados; em outros, apresentam várias contas pelos mesmos serviços. Outro crime comum entre anestesistas, psiquiatras e outros profissionais da área de saúde que cobram por hora consiste em apresentar as contas com número de horas aumentado.
Texto parafraseadoOs profissionais da medicina também fazem parte de
muitos delitos da mesma natureza. Ainda que não seja sim ples demonstrar fraudes em casos particulares, há provas cabais de que eles ganham altas quantias por fazerem tratamentos supérfluos. Mais evidentes são os fatos em que esses médicos exibem pedidos de seguro médico falsos. Há ocorrências de médicos que exigem pagamento por serviços que nunca foram prestados; em outros casos, exibem várias faturas pelos m esm os procedimentos. Outro delito comum entre anestesistas, psiquiatras e outros facultativos que recebem por hora consiste em mostrar contas com número de horas exacerbado.
No exercício da paráfrase, o aluno treina seu processo criativo porque o texto-proposta representa-lhe forte tendência à repetição. O texto-proposta, que na verdade é apenas uma entre as quase infinitas impossibilidades de enunciar uma idéia, exerce grande força para que a enunciaçâo do autor da paráfrase gravite em tomo dele. Da mesma forma, quando estamos habituados a repetir argumentos não nos damos conta de que eles são apenas uma entre várias formas de defender uma idéia, de enunciar um pensamento.
A paráfrase então estimula a variação das idéias e faz com que aquele que a pratica reconheça seus próprios mé
ARGUMENTAÇÃO E CRIATIVIDADE 32 7
todos criativos, sua própria forma de encontrar novas alternativas para uma enunciação que, por si só, já vinha resolvida no texto-proposta. Do modo como apresentado aqui, ela estimula principalmente o vocabulário, agregando maior vocabulário ativo àquele que a pratica. Assim, o aluno descobre a importância do uso do dicionário ou da leitura em geral para a aquisição de novas formas enunciativas.
Mas a paráfrase pode servir não apenas no plano da forma, como também no conteúdo. Em sala de aula, em classes de Direito, fornecemos a alunos textos argumentativos jurídicos que devem seguir uma paráfrase mais criativa. Preservando-se a estrutura e o posicionamento do texto original, deve-se criar outro, mas desta vez ainda mais inédito: os argumentos também devem ser substituídos, sem se revelarem influenciados pela idéia primeira. Ao construir essa paráfrase de conteúdo, o exercitante descobre seus próprios métodos de criação de novas idéias, na obrigatoriedade de fugir a idéias que já lhe vêm cristalizadas.
Com o tempo, o objetivo é que aquele que se exercita em argumentação perceba que deve parafrasear seu próprio discurso. Em outras palavras, renová-lo, tanto em conteúdo como em forma. A consciência do esforço necessário para renovar o discurso com certeza estimula alternativas para a criatividade, quando cada argumentante se dá conta do processo que melhor lhe permite criar os meios e instrumentos necessários para a renovação.
Mais um exercício que se impõe, com resultados proveitosos.
Conclusão
A possibilidade de construções de discurso é infinita, inesgotável. Por isso aquele que argumenta não tem nenhuma escusa para deixar de fazer, a cada discurso, uma construção nova e criativa, por mais rígidos que sejam os padrões sociais do auditório ou do leitor a quem apresenta
328 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
suas idéias. Sempre cabe um novo argumento, um pensamento mais exato em substituição a um antigo que outrora parecia intocável. Argumentar não significa repetir idéias; transformar, porém, pensamentos em valorosos elementos lingüísticos é arte do discursante.
Cada qual deve, então, descobrir suas próprias maneiras de, utilizando as técnicas apresentadas em toda esta obra, criar novas formas pessoais de persuasão, adaptando a seus objetivos e suas características.
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