O desejo do poder excessivo causou a queda dos anjos; o desejo de conhecimento causou a
queda dos homens.
— Francis Bacon
Rompimento Celestial
Clame, deliciosa tortura. Implore, exótica formosura. Chame em tua amargura. Grite na insana procura.
Clame, implore, chame e grite. Mas não jogue lágrimas ao léu.
Peque, quebre regras e promessas, Provoque o rompimento do céu.
Liberte-se dos teus medos, Revele teus planos insanos.
Rompimento Celestial, Maldições de todos os anjos.
Rompimento Celestial
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Introdução
Muitas histórias e lendas foram contadas sobre a criação do
mundo, sobre um filho rebelde que se desprendeu da família e se-
guiu seu caminho em meio às maldades. Muito foi contado sobre tais
fatos, contudo, ela não saberia dizer qual era o certo e o errado, pois
não estava lá, não testemunhou os ocorridos. Portanto, todas as his-
tórias se tornaram lendas... Ou teorias. Baseadas em ciências, religião
ou curiosidade, não importava. Livro algum, produzido por mãos
humanas, poderia descrever a realidade de tudo.
E quem poderia lhe explicar os fatos? Quem esteve presente,
talvez... Talvez um alado, um guardião...
Aqueles que ela chamou de amigos lhe disseram que o grande
Pai, cansado da solidão, criou companheiros alados que tratou como
filhos. Na verdade, não passavam de mensageiros, anjos. Apenas
cinco foram realmente tratados como prole legítima do Criador. Um
deles, por assumir sua posição de príncipe – o mais belo de todos –,
foi dado como rebelde quando se recusou a se prostrar diante de in-
feriores bonecos de barro. Enciumado com o amor que o Pai dedica-
va aos novos filhos humanos, revoltou-se e armou um levante com
seus aliados contra o próprio Criador. Então, partiu de sua morada
para praticar suas maldades contra o verdadeiro alvo do seu ciúme
doentio: os humanos.
E como convencer um filho perdido a retornar ao lar? O Pai
precisava de um bom motivo. Para o homem de barro, Adão, Deus
fez uma companheira. Por que não presentear o filho rebelde da
mesma forma? Uma fêmea com os mesmos poderes e dotes seria
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uma boa isca... E ela era mais que isso. Tinha os olhos de águia, o faro
de um animal selvagem, a velocidade de um lince, uma força intensa,
a beleza perfeita e as asas do mais poderoso soldado celestial. Ainda
mais, ela tinha a sabedoria suprema. Sendo assim, a fêmea não era
apenas uma isca, mas uma caçadora.
Então, tal como no projeto, assim foi na modelagem da criatu-
ra. Visão de longo alcance, mesmo no mais profundo breu. Mais rá-
pida que a luz. Forte. Perfeitamente moldada, com os cabelos tão ru-
bros quanto as chamas. Sua pele era leitosa e branca. Lábios rosados.
Olhos verdes como esmeraldas. Aquele corpo era diferente dos mo-
radores celestiais, pois tinha curvas sinuosas, ondulações sedutoras
que fariam o mais forte dos alados se derreter perdido de desejos. E
as asas blindadas completavam o pacote físico.
Sua mente foi programada para não sentir medo, ser exímia
ao matar e dotada de raciocínio rápido. Sábia, dentro dos limites que
o Criador permitia. Entretanto, muito mais perspicaz que os machos
já criados.
No peito, na altura do coração, duas saliências atrativas. Entre
suas pernas, uma fenda perfeita para o encaixe da masculinidade do
filho perdido. Criada para usar todas as armas para caçá-lo. Porém,
antes da caça, ela precisava aprender.
Aprender a manipular.
Aprender a enganar.
Aprender a verdade.
Esses foram os conhecimentos que obteve, mas não os que de-
veria ter. Devia ter aprendido sobre a humanidade, a lealdade e toda
a hierarquia a qual pertencia. Chamada de Arelli, ela conheceu a
verdade que a libertou...
Rompimento Celestial
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Fatos Celestiais
Recordações de Uma Vingança
(Apocalipse 20:7 e 8)
Lúcifer balançou a cabeça em negativa, hesitou e travou uma
batalha interna com os próprios sentimentos, orgulho e amor em
contraditória discussão. Por fim, tomou coragem e decidiu fazer o
pior acordo que jamais imaginou ser capaz, algo que o colocaria em
desvantagem enorme nessa guerra toda. Contudo, por ela, por Arelli,
Lúcifer rendeu-se e negou seus próprios conceitos. Voltou alguns
passos e entregou um rolo a Emanuel.
— O que é isso? - indagou o Príncipe Herdeiro.
— Um acordo. Leia. Se aceitares meus termos, um dia assina-
remos com nosso sangue, e este pacto será selado.
Emanuel sorriu. Não com malícia, mas com a esperança de que
ainda restasse algo de bom dentro de Lúcifer. Afinal, o querubim
fora criado pelas mãos de Deus, e Deus é amor. Sendo assim, todas
as criaturas carregavam consigo a essência do Pai, o amor.
Sozinho, o Príncipe Herdeiro tornou a ler a carta do querubim
caído, um fato inusitado e único vindo daquele que só conhecia uma
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lei: o pecado. E Emanuel tornou a sorrir diante das palavras de Lúci-
fer ali contidas...
†
Eu, Lúcifer, o querubim caído que um dia foi considerado filho de Iaweh e que ago-ra reina sobre a Terra e domina o submundo chamado de inferno, proponho ao futuro monarca do Novo Mundo, Emanuel, o Príncipe Herdeiro do trono do Pai, uma troca: a preciosa vida da leoa por várias almas. Sem mais procrastinar, declaro-me como escravo do amor daquela que foi escolhida para lutar ao meu lado, Arelli, a leoa dos céus, convocada para assumir o arnês do cavaleiro negro da fome apocalíptica. Amo-a mais que minha própria existência e meus sentimentos vis de maldades e transgressões. Sendo assim, abro mão das almas que seriam desencaminhadas após minha libertação no Paraíso do Novo Mundo para que essa alada tenha a oportunidade de viver por mais mil anos junto aos seus amados que lá estiverem. Que Arelli seja a troca. Que a leoa seja o prêmio e o objeto dessa barganha. Mil anos de existência em troca de incontáveis almas perdidas. Ao término do mi lênio, com a quebra dos meus grilhões, nenhuma transgressão será cometida e minha punição ao lado da minha amada Arelli, aceita. Ambos serão destruídos pelo fogo divino, esquecidos, aniquilados da existência. Caso tal acordo não seja viável, que Arelli não sofra ao morrer, mas apenas ador-meça, e que seu corpo venha a ser a névoa evanescente do seu fim. Entretanto, caro irmão, caso aceites minha oferta, que nosso sangue seja a assinatura e o selo do nosso pacto, a testemunha rubra da nossa fidelidade.
Sem mais, Lúcifer.
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†
Enquanto Lúcifer descia a Montanha Sagrada, o querubim
sentiu que Miguel o seguia. Assim que chegou aos pés de Hermon,
foi abordado pelo arcanjo, que não hesitou em lhe indagar:
— Aquela proposta ainda está de pé?
— Qual delas? – rebateu o rei do submundo.
— De fazer com que Arelli se apaixone por mim.
— Não tenho tempo a perder com essas bobagens agora, Mi-
guel – resmungou Lúcifer, irritado. – A leoa está a um passo da mor-
te, preciso salvá-la.
Passando pelo arcanjo para continuar seus passos e cumprir
sua missão, o querubim escutou a nova abordagem de Miguel:
— Esqueceste que tenho a chave do Salão dos Tesouros Sa-
grados? É lá que está a Roda do Tempo – declarou sugestivamente.
Lúcifer estancou seus passos e encarou o arcanjo com o cenho
franzido.
— O que queres dizer com isso? – indagou atônito.
— Que posso girar aquela roda e voltar o tempo. Posso destru-
ir Arelli antes mesmo que aquela criança seja gerada.
Com um sorriso torto, Lúcifer ponderou sobre a sugestão de
Miguel e armou um novo plano. Estreitando o olhar, o querubim sor-
riu com ironia e provocou:
— Com medo, irmãozinho? Tudo porque meu sangue no cor-
po da leoa a faria indestrutível...
— Sim, teu sangue podre correndo junto ao dela transformaria
Arelli em um monstro pior do que já é... Já paraste para pensar no
estrago que a serafim faria com tanto poder?
— Já – rebateu o querubim. – Não foi à toa que testei essa teo-
ria em Lillith. - Encurtando a distância entre ambos, Lúcifer encarou
Miguel e, sorrindo em ameaça, indagou: - Agora, te pergunto: Con-
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segues imaginar o que aconteceria com o sangue da leoa correndo
junto ao meu? Podes visualizar o estrago que faríamos?
Miguel estremeceu diante de tais questões. Tinha noção de to-
do o poder que Lúcifer e Arelli carregariam com tal junção. Entretan-
to, o arcanjo só vislumbrou os fatos após as indagações que o queru-
bim lhe fizera.
— Tenho novas condições para o nosso trato – declarou Lúci-
fer, ainda sorrindo vitoriosamente. – Gabriel continuará como guar-
dião de Arelli.
— Estou de acordo.
— E não quero que ela se apaixone por ti. Vamos tornar esse
jogo mais interessante... Quero que Arelli escolha entre Akhil e eu. A
leoa terá que dar uma importante prova de amor a um de nós. E tu,
meu caro, será apenas um mero espectador dos fatos.
— Temes que Arelli caia de amores por mim? – inquiriu Mi-
guel em tom jocoso.
— Não, porque sei que isso jamais acontecerá – rebateu Lúci-
fer, também em deboche. – Acontece que gosto de desafios intensos.
E, neste caso, Akhil é um grandioso oponente.
— Deixe-me ver se entendi – resmungou Miguel, com uma
das mãos no queixo e andando em curtos passos de um lado para o
outro. – Gabriel será o guardião de Arelli, enquanto você e Akhil
disputarão o amor da leoa em uma briga de foice...
— Exatamente.
— Se ela escolher Akhil, eu ganho a aposta.
— E eu mesmo a matarei – completou Lúcifer.
— Acrescente teu silêncio nesta lista, querubim. Nada revela-
rás, em momento algum, sobre a autoria do atentado contra a alada e
seu amante – sugeriu Miguel. Com o assentir de Lúcifer para essa
cláusula, indagou: - Caso Arelli te escolha, qual será teu prêmio?
— É ela quem decidirá.