Afetar
Gostaria de trazer à memória de vocês um trecho muito bonito do livro Conversações
de Gilles Deleuze. Ali, ao ser indagado sobre como conheceu seu colega Michel
Foucault, o filósofo dá uma resposta muito singular, que de certa forma ilumina
minhas ideias sobre este escrito: “Não lembro de datas, e sim de olhares, sorrisos”.
Ora, é de afetos que Deleuze está falando. Pois é esta dimensão da relação que meu
trabalho de campo entre os Guarani do Mato Grosso do Sul trouxe à tona, a saber, que
a postulada divisão entre “eles” e “nós”, entre pesquisador e pesquisado, não existe:
posto que o antropólogo experiência seu objeto de estudo, põe em movimento uma
série de relações de afeto, que mais ou menos influenciarão seu horizonte de pesquisa.
Em outras palavras, o antropólogo AFETA ao mesmo tempo em que é AFETADO. E
é sobre a capacidade que temos de afetar nossos interlocutores que gostaria de me
ocupar neste momento, recuperando com isso, os afetos de Jeanne Favret-Saada em
seu texto Ser Afetado (1990).
Não pretendo seguir uma ordem cronológica de acontecimentos ou inscrever este
texto nos termos de uma análise teórico-antropológica( não explicar ou interpreter,
mas experimentar e sentir) é muita mais uma pretensa descrição de um fluxo de
afetos, um roteiro de afetos por assim dizer, que passam por mim, pelos Guarani ( e
outras etnias que tive o imenso prazer de me relacionar) e de certa maneira entre nós.
Antes de mais nada, é preciso dizer que minha estada em campo foi profundamente
afetada pela leitura de A invenção da Cultura de Roy Wagner. Na longa viagem até a
aldeia Pirajuí, foi este o meu “livro de cabeçeira”. A ideia de relação que encontrei
em Wagner foi muito impressionante para mim, nestes termos: “Como sugere a
repetição da raiz “relativo”, a compreensão de uma cultura envolve a relação entre
duas variedades do fenomeno humano; ela visa a criação de uma relação intelectual
entre elas, uma compreensão que inclua ambas. A ideia de relação é importante aqui,
pois é a mais apropriada à conciliação de duas entidades ou pontos de vista
equivalentes do que noções como “análise” ou “exame”, com suas pretensões de
objetividade absoluta.” (pag 40).
Roy Wagner faz seguir a essa informação uma bela e reveladora descrição do “ofício
do etnógrafo”, este sujeito que “a despeito de tudo o que possam ter-lhe ditto sobre o
trabalho de campo” parte para uma jornada angustiante de solidão e desamparo.
Com essa maxima em mente ( É preciso me relacionar) chegamos em Pirajuí em meio
do evento de abertura
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