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Os PR-SOCRTICOS
FRAGMENTOS, DOXOGRAFIA ECOMENTRIOS
Seleo de textos e superviso: Prof. Jos Cavalcante de Souza
Dados biogrficos: Remberto Francisco Kuhnen
Tradues: Jos Cavalcante de Souza, Arma Lia Amaral de Almeida Prado,sis Lana Borges, Maria Conceio Martins Cavalcante,
Remberto Francisco Kuhnen, Rubens Rodrigues Torres Filho,Carlos Ribeiro de Moura, Ernildo Stein, Arnildo Devegili,
Paulo Frederico Flor, Wilson Regis
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Os PR-SOCRTICOS
VIDA E OBRA
Consultoria: Jos Amrico Motta Pessanha
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Fundador
VICTOR CIVITA(1907 - 1990)
Editora Nova Cultural Ltda., uma diviso do Crculo do Livro Ltda.
Copyright desta edio, Editora Nova Cultural Ltda., So Paulo, 1996
Alameda Ministro Rocha Azevedo, 346 - 2 andar -CEP 01410-901 - So
Paulo, SP.
Texto publicado sob licena de The Macmillan Press Limited, Londres
(Filosofia Grega, cap. IV, "Leucipo")
Direitos exclusivos sobre todas as tradues deste volume, Editora Nova
Cultural Ltda., So Paulo.
Direitos exclusivos sobre Os Pr-Socrticos - Vida e Obra, Editora Nova
Cultural Ltda., So Paulo.
ISBN 85-351-0694-4
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I. Do MITO FILOSOFIA
QUE TER LEVADO o homem, a partir de determinado momento de suahistria, a fazer cincia terica e filosofia? Por que surge no Ocidente, mais
precisamente na Grcia do sculo VI a.C., uma nova mentalidade, que passa a
substituir as antigas construes mitolgicas pela aventura intelectual, expressa
atravs de investigaes cientficas e especulaes filosficas?
Durante muito tempo o problema do comeo histrico da filosofia e da
cincia foi colocado em termos de relao Oriente - Grcia. Desde a prpriaAntigidade confrontaram-se duas linhas de interpretao: a dos "orientalistas",
que reivindicavam para as antigas civilizaes orientais a criao de uma
sabedoria que os gregos teriam depois apenas herdado e desenvolvido; e a dos
"ocidentalistas", que viam na Grcia o bero da filosofia e da cincia terica.
Interessante observar que os prprios gregos dos sculos V e IV a.C., como
Plato e Herdoto, estavam ciosos da originalidade de sua civilizao no campocientfico-filosfico, embora reconhecessem que noutros setores,
particularmente na arte e na religio, os helenos tivessem assimilado elementos
orientais. Nos gregos do perodo alexandrino ou helenstico, porm, desaparece
essa pretenso de absoluta originalidade: a perda da liberdade poltica e a
incluso da Grcia nos amplos imprios macednio e romano alteram a viso
que os prprios gregos tm de sua cultura. J no se sentem como pretendia
Aristteles dotados de uma "essncia" prpria e completamente diferente da
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dos "brbaros" orientais. Assim que Digenes Larcio, em sua Vida dos
Filsofos,j se refere fabulosa antigidade da filosofia entre persas e egpcios.
Foi, porm, entre os neoplatnicos, os neopitagricos, com Filo, o Judeu, e com
os primeiros escritores cristos que surgiu, mais definida, a tese da filiao do pensamento grego ao oriental. Em nome de afirmaes nacionais ou
doutrinrias, passou-se a atribuir ao Oriente a condio de fonte originria da
tradio filosfica, que os gregos teriam apenas continuado e expandido.
Ainda no sculo XIX os historiadores se dividem a respeito do comeo
histrico da filosofia e da cincia terica. Ao orientalismo de Roth e de Gladisch
ope-se, por exemplo, o ocidentalismo de Zeller ou de Theodor Hopfener. Asdisputas continuariam indefinidamente em termos da relao "emprstimo" ou
"herana" entre Oriente e Grcia, examinada freqentemente com bases apenas
conjeturais, se dois fatores no viessem, a partir do final do sculo XIX, deslocar
o eixo da questo: a expanso das pesquisas arqueolgicas e o interesse pela
natureza da chamada mentalidade primitiva ou arcaica.
A arqueologia veio substituir muitas das elucubraes por indicaes bemmais seguras e convincentes, demolindo preconceitos e, s vezes, propondo
hipteses novas de trabalho. O interesse pela mentalidade arcaica veio, por sua
vez, mostrar que o principal aspecto da questo da origem histrica da filosofia
reside na compreenso de como se processa a passagem entre a mentalidade
mito-potica ("fazedora de mitos") e a mentalidade teorizante.
Embora a questo do incio histrico da filosofia e da cincia terica ainda
contenha pontos controversos e continue um "problema aberto" na
dependncia inclusive de novas descobertas arqueolgicas > a grande maioria
dos historiadores tende hoje a admitir que somente com os gregos comea a
audcia e a aventura expressas numa teoria. s conquistas esparsas e
assistemticas da cincia emprica e pragmtica dos orientais, os gregos do
sculo VI a.C. contrapem a busca de uma unidade de compreenso racional,
que organiza, integra e dinamiza os conhecimentos. Essa mentalidade, porm,
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resulta de longo processo de racionalizao da cultura, acelerado a partir da
demolio da antiga civilizao micnica. A partir da, a convergncia de vrios
fatores econmicos, sociais, polticos, geogrficos permite a ecloso do
"milagre grego", que teve na cincia terica e na filosofia sua mais grandiosa eimpressionante manifestao.
O NASCIMENTO DA EPOPIA
A chegada dos drios, no sculo XII a.C, s circunvizinhanas do mar
Egeu constitui momento decisivo na formao do povo e da cultura grega. Na
pennsula e nas ilhas cenrio natural da Grcia em gestao est ento
instalada a civilizao micnica ou aqueana, que se desenvolvera em estreita
ligao com a civilizao cretense e em contato com povos orientais.
A sociedade micnica apresenta-se composta por grande nmero de
famlias principescas, que reinam sobre pequenas comunidades. Essa
pluralidade, decorrente da originria diviso em cls, fortalecida pelas prpriascaractersticas fsicas da regio: o relevo, compartimentando o territrio, torna
alguns locais mais facilmente interligveis atravs do mar. Assim, muito antes
que as condies geogrficas contribuam para que as cidades-Estados venham a
se desenvolver como unidades autnomas, j so motivo para que, desde suas
razes micnicas, a cultura grega se constitua voltada para o mar: via de
comunicao e de comrcio com outros povos, de intercmbio e de confrontocom outras civilizaes, ao mesmo tempo que incentivo a aventuras reais e a
construes imaginrias.
Chegando em bandos sucessivos, vindos do norte, os drios dominam a
regio. Embora da mesma raiz tnica dos aqueus, apresentam ndice civilizatrio
mais baixo. Possuem, porm, uma incontestvel superioridade: o uso de
utenslios e armas de ferro, fator decisivo para a vitria sobre os micnicos, quepermaneciam na Idade do Bronze.
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As invases dricas acarretam migraes de grupos de aqueus, que se
transferem para as ilhas e as costas da sia Menor e a fundam colnias,
tentando preservar suas tradies, suas instituies e sua organizao social de
cunho patriarcal e gentlico.As novas condies de vida das colnias e a nova mentalidade delas
decorrente encontram sua primeira expresso atravs das epopias: em poesia o
homem grego canta o declnio das arcaicas formas de viver ou pensar, enquanto
prepara o futuro advento da era cientfica e filosfica que a Grcia conhecer a
partir do sculo VI a.C.
Resultantes da fuso de lendas elias e jnicas, as epopias incorporaramrelatos mais ou menos fabulosos sobre expedies martimas e elementos
provenientes do contato do mundo helnico, em sua fase de formao, com
culturas orientais. A lngua desses primeiros poemas da literatura ocidental
uma mistura dos dialetos elio e jnico, com predominncia do ltimo.
Entremeando lendas e ocorrncias histricas relatando particularmente os
acontecimentos referentes derrocada da sociedade micnica , surgem entocantos e sagas que os aedos (poetas e declamadores ambulantes) continuamente
foram enriquecendo. Constitudos por seqncias de episdios relativos a um
mesmo evento ou a um mesmo heri, surgem, assim, "ciclos" que cantam
principalmente as duas guerras de Tebas e a Guerra de Tria. Desses numerosos
poemas, apenas dois se conservaram: aIlada e a Odissia de Homero, escritos
entre o sculo X e o VIII a.C.
TEMPOS DE DEUSES E HERIS
Da vida de Homero praticamente nada se sabe com segurana, embora
dados semilendrios sobre ele fossem transmitidos desde a Antigidade. Sete
cidades gregas reivindicam a honra de ter sido sua terra natal. Homero freqentemente descrito como velho e cego, perambulando de cidade em cidade,
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a declamar seus versos. Chegou-se mesmo a duvidar de sua existncia e de que a
Ilada e a Odissia fossem obra de uma s pessoa. Poderiam ser coletneas de
cantos populares de antigos aedos e, ainda que tenha existido um poeta chamado
Homero que realizou a ordenao desse material e enriqueceu com contribuiesprprias, o certo que essas obras contm passagens procedentes de pocas
diversas.
Alm de informar sobre a organizao da polis arcaica, as epopias
homricas so a primeira expresso documentada da viso mito-potica dos
gregos. A interveno, benfica ou malfica, dos deuses est no mago da
psicologia dos heris de Homero e comanda suas aes. Com efeito, a Ilada e aOdissia apresentam-se marcadas pela presena constante de poderes superiores
que interferem no desenrolar da luta entre gregos e troianos (tema da Ilada) e
nas aventuras de Ulisses ou Odisseu (tema da Odissia).Na medida em que essa
interferncia permanece incerta ou obscura, ela designada por palavras vagas,
como "thos", "Zeus" e principalmente "dimon". Nas epopias homricas,
porm, essas formas populares de designao das potncias superiores emisteriosas tendem a assumir forma definida, abrindo caminho compreenso
da divindade e, conseqentemente, alijando do plano divino o carter de
inescrutabilidade e de misteriosa ameaa. Mesmo quando representam foras da
natureza os deuses homricos revestem-se de forma humana; esse
antropomorfismo atribui-lhes aspecto familiar e at certo ponto inteligvel,
afastando os terrores relativos a foras obscuras e incontrolveis. Sobrepondo-se
a arcaicas formas de religiosidade, Homero exclui do Olimpo, mundo dos
deuses, as formas monstruosas, da mesma maneira que exclui do culto as
prticas mgicas. Esses aspectos primitivos, quando excepcionalmente
despontam, servem justamente para comprovar o trabalho realizado pelas
epopias homricas no sentido de soterrar concepes sombrias e
aterrorizadoras, substituindo-as pela viso de um divino luminoso e acessvel, de
contornos definidos porque feito imagem do homem.
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A racionalizao do divino conduz a uma religiosidade "exterior", que
mais convm ao pblico a que se dirigem as epopias: polis aristocrtica. Essa
religiosidade "apolnea" permanecer como uma das linhas fundamentais da
religio grega: a de sentido poltico, que servir para justificar as tradies einstituies da cidade-Estado.
Os deuses homricos so fundamentalmente deuses da luz (de dos
provm tanto "deus" quanto "dia") e seu antropomorfismo no diz respeito
apenas forma exterior, semelhante dos mortais: os deuses so tambm
animados por sentimentos e paixes humanas. A humanizao do divino
aproxima-o da compreenso dos homens, mas, por outro lado, deixa o universo em cujo desenvolvimento os deuses podem intervir suspenso a
comportamentos passionais e a arbtrios capazes de alterar seu curso normal.
Isso limita o ndice de racionalizao contido nas epopias homricas: uma
formulao terica, filosfica ou cientfica exigir, mais tarde, o pressuposto de
uma legalidade universal, exercida impessoal e logicamente. Ento, abolindo-se
a atuao de vontades divinas divergentes, chegar-se- a um divino neutroimparcial: a divina arch das cosmogonias dos primeiros filsofos. bem
verdade, porm, que j na viso mitolgica expressa pelas epopias, a suserania
de Zeus introduz na famlia divina um princpio de ordem, que tende a unificar e
a neutralizar as preferncias discordantes dos vrios deuses. Do ponto de vista
tico, essa suserania estabelece uma diferena marcante entre aIlada (obra mais
antiga) e aOdissia:
nesta, a fidelidade de Penlope e os esforos de Ulisses
acabam premiados, a revelar, como pressuposto, um universo de valores morais
j hierarquizados, sob o controle e a garantia, em ltima instncia, de Zeus
soberano. Desse modo, imagem da sociedade patriarcal, Zeus fundamenta na
fora sua preeminncia e organiza finalmente o Olimpo como pai poderoso. O
politesmo homrico no exclui, portanto, a idia de uma ao ordenada por
parte dos deuses, chegando afinal a admitir certa unidade na ao divina.
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OS HOMENS E OS DIVINOS IMORTAIS
por oposio aos homens que os deuses homricos se definem: ao
contrrio dos humanos, seres terrenos, os deuses so princpios celestes;
diferena dos mortais, escapam velhice e morte. Escapam morte, mas no
so eternos nem esto fora do tempo: em princpio pode-se saber de quem cada
divindade filho ou filha. A imortalidade, esta sim, est indissoluvelmente
ligada aos deuses que, por oposio aos humanos mortais, so freqentemente
designados de "os imortais" e constituem, em sua organizao e em seu
comportamento, uma sociedade imortal de nobres celestes.
Em Homero, a noo de virtude (aret), ainda no atenuada por seu
posterior uso puramente moral, significava o mais alto ideal cavalheiresco aliado
a uma conduta cortes e ao herosmo guerreiro. Identificada a atributos da
nobreza, a aret, em seu mais amplo sentido, designava no apenas a excelncia
humana, como tambm a superioridade de seres no-humanos, como a fora dos
deuses ou a rapidez dos cavalos nobres. S algumas vezes, nos livros finais dasepopias, que Homero identifica aret com qualidades morais ou espirituais.
Em geral, significa fora e destreza dos guerreiros ou dos lutadores, valor
herico intimamente vinculado fora fsica. A virtude em Homero , portanto,
atributo dos nobres, os aristoi. Estreitamente associada s noes de honra e de
dever, representa um atributo que o indivduo possui desde seu nascimento, a
manifestar que descende de ilustres antepassados. Os heris, quando seapresentam, fazem questo, por isso mesmo, de revelar sua ascendncia
genealgica, garantia de seu valor pessoal. Os aristoi os possuidores de aret
so uma minoria que se eleva acima da multido de homens comuns: se so
dotados de virtudes legadas por seus ancestrais, por outro lado precisam dar
testemunho de sua excelncia, manifestando as mesmas qualidades valentia,
fora, habilidade que caracterizaram seus antepassados. Essa demonstraodo valor inato ocorria sobretudo nos combates singulares, nas justas
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cavalheirescas: as "aristias" dos grandes heris picos. Sculos mais tarde, o
pensamento tico e pedaggico de Plato e de Aristteles estar fundamentado,
em grande parte, na tica aristocrtica dessa Grcia arcaica expressa nas
epopias homricas. S que sinal de outros tempos naqueles pensadores aaristocracia de sangue ser substituda pela "aristocracia de esprito", baseada no
cultivo da investigao cientfica e filosfica.
Homero parece participar da crena, comum a vrias culturas primitivas,
de que o homem vivo abriga em si um "duplo", um outro eu. A existncia desse
"duplo" seria atestada pelos sonhos, quando o outro eu parece sair e realizar
peripcias, inclusive envolvendo outros "duplos". A essa concepo de umadupla existncia do homem como corporeidade perceptvel e como imagem a
se manifestar nos sonhos est ligada a interpretao homrica da morte e da
alma (psych). A morte no representaria um nada para o homem: a psych ou
"duplo" desprender-se-ia pela boca ou pela ferida do agonizante, descendo s
sombras subterrneas do Erebo. Desligada definitivamente do corpo (que se
decompe), a psych passa ento a integrar o sombrio cortejo de seres que povoam o reino de Hades. Permanece como uma imagem ou "dolo",
semelhante na aparncia ou corpo em que esteve abrigada; mas carece de
conscincia prpria, pois nem sequer conserva as "faculdades" espirituais
(inteligncia, sensibilidade etc.). Impotentes, as sombras vagantes do Hades no
interferem na vida dos homens; assim, no h por que lhes render culto ou
buscar seus favores.
Humanizando os deuses e afastando o temor dos mortos, as epopias
homricas descrevem um mundo luminoso no qual os valores da vida presente
so exaltados. Se isso corresponde aos ideais aristocrticos da poca, representa
tambm o avano de um processo de racionalizao e laicizao da cultura, que
conduzir viso filosfica e cientfica de um universo governado pela razo:
sculos mais tarde, o filsofo Herclito de feso far de Zeus um dos nomes do
Logos, a razo universal.
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Na verdade, a Homero os gregos antigos voltaro sempre, no apenas para
buscar modelos poticos: temas e personagens homricos sero freqentemente
utilizados pelos pensadores para servir de paradigmas ou de recursos
argumentativos. As aventuras e o priplo de Ulisses, por exemplo, serotomados, sobretudo a partir do socratismo dos cnicos, como smbolos morais. O
Ulisses que retorna ptria depois de arrostar e vencer inmeros perigos e
tentaes seria o prprio smbolo dos esforos que a alma humana teria de
realizar para voltar sua natureza originria, sua essencialidade essa ptria.
NO COMEO, O CAOS
O complexo processo de formao do povo e da cultura grega determinou
o aparecimento, dentro do mundo helnico, de reas bastante diferenciadas, no
s quanto s atividades econmicas e s instituies polticas, mas tambm
quanto prpria mentalidade e suas manifestaes nos campos da arte, da
religio, do pensamento. A Grcia continental, mais presa s tradies dapolisarcaica, contrapunham-se as colnias da sia Menor, situadas em regies mais
distantes pelo intercmbio comercial e cultural com outros povos. Da Jnia
surgem as epopias homricas e, a partir do sculo VI a.C, as primeiras
formulaes filosficas e cientficas dos pensadores de Mileto, de Samos, de
feso. Entre esses dois momentos de manifestao do processo de
racionalizao por que passava a cultura grega, situa-se a obra potica deHesodo voz que se eleva da Grcia continental, conjugando as conquistas da
nova mentalidade surgida nas colnias da sia Menor com os temas extrados
de sua gente e de sua terra, a Becia.
Tudo o que se sabe, com segurana, sobre a vida de Hesodo, narrado
por ele prprio em seus poemas. Seu pai habitava Cumes, na Elia, onde possua
uma pequena empresa de navegao. Arruinado, atravessou o mar Egeu eretornou Becia, bero de sua raa. A, em Ascra, dedicou-se s atividades
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campesinas e a nasceu, viveu e morreu Hesodo (meados do sc. VIII a.C). Ao
morrer, o pai deixou a Hesodo e a seu irmo Perses as terras que, devido ao
clima rude da regio, continuaram com esforo a cultivar. Na partilha dos bens,
Hesodo considerou-se lesado pelo irmo, que teria comprado os juzes venais.A polmica com Perses serve de tema para uma das duas grandes obras de
Hesodo: Os Trabalhos e os Dias. Pois, alm de cultivar os campos e apascentar
rebanhos, Hesodo tornou-se aedo sob inspirao das Musas, como relata na
outra grande obra, a Teogonia.
Com Hesodo como mostra o historiador do helenismo Werner Jaeger
d-se a apario do subjetivo na literatura. Na pica mais antiga, o poeta erao simples veculo annimo das Musas; j Hesodo "assina" sua obra, usando Os
Trabalhos e os Dias e o promio da Teogoniapara fazer histria pessoal. Logo
depois de exaltar as Musas inspiradoras, refere-se a si prprio no comeo da
Teogonia: "(...) Foram elas que, certo dia, ensinaram a Hesodo um belo canto,
quando ele apascentava suas ovelhas ao p do Hlicon divino".
O contedo desse "belo canto" o relato da origem dos deuses. Tomandocomo ponto de partida velhos mitos, que coordena e enriquece, Hesodo traa
uma genealogia sistemtica das divindades. Dele provm a idia de que os seres
individuais que constituem o universo do divino esto vinculados por sucessivas
procriaes, que os prendem aos mesmos antecedentes primordiais. Nessa
genealogia sistemtica percebe-se o esboo de um pensamento racional
sustentado pela exigncia de causalidade, a abrir caminho para as posteriores
cosmogonias filosficas.
O drama teognico tem incio, em Hesodo, com a apresentao das
entidades primordiais: adotando implicitamente o postulado de que tudo tem
origem, Hesodo mostra que primeiro teve origem o Caos abismo sem fundo
e, em seguida, a Terra e o Amor (Eros), "criador de toda vida". De Caos sair
a sombra, sob a forma de um par: Erebo e Noite. Da sombra sai, por sua vez, a
luz sob a forma de outro par: ter e Luz do Dia, ambos filhos da Noite. Terra
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dar nascimento ao cu, depois s montanhas e ao mar. Segue-se a apresentao
dos filhos da luz, dos filhos da sombra e da descendncia da Terra at o
momento do nascimento de Zeus, que triunfar sobre seu pai, Cronos. Comear
ento a era dos olmpicos.
NO TRABALHO, A VIRTUDE
A Teogonia de Hesodo enumera trs geraes de deuses: a de Cu, a de
Cronos e a de Zeus. A interpolao dos episdios de Prometeu e de Pandora na
seqncia da Teogonia episdios depois retomados em Os Trabalhos e os
Dias serve a Hesodo para justificar a condio humana: Prometeu rouba o
fogo de Zeus para d-lo aos homens e atrai para si e para os mortais a ira do
suserano do Olimpo. Zeus condena Prometeu tortura de ter o fgado
permanentemente devorado por uma guia. Aos mortais Zeus reserva no menor
castigo: determina a criao de um ser imagem das deusas imortais e entrega-
o, como presente de todos os habitantes do Olimpo, a Epimeteu, irmo dePrometeu. Pandora a mulher leva em suas mos uma jarra que,
destampada, deixa escapar e espalhar-se entre os mortais todos os males. Na
jarra, prisioneira, fica apenas a esperana. As duras condies de trabalho de sua
gente sugerem assim a Hesodo uma viso pessimista da humanidade,
perseguida pela animosidade dos deuses. E a mulher deixa de ser exaltada, como
na viso aristocrtica de Homero, para ser caracterizada por esse camponscomo mais uma boca a alimentar e a exigir sacrifcios: "Raa maldita de
mulheres, terrvel flagelo instalado no meio dos homens mortais".
O mesmo pessimismo transparece no mito das idades ou das raas, de Os
Trabalhos e os Dias. A histria a vista como a perda de uma idade primeira, a
da raa de ouro, que teria vivido livre de cuidados e sofrimentos. Essa primeira
raa foi transformada nos gnios bons, guardies dos mortais. Depois surge umaraa inferior, de prata, cujos indivduos vivem uma longa infncia de cem anos,
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mas, crescendo, entregam-se a excessos e recusam-se "a oferecer culto aos
imortais". Por isso, "quando o solo os recobriu", foram transformados em gnios
inferiores, os chamados bem-aventurados. Zeus cria ento uma "terceira raa de
homens perecveis, raa de bronze, bem diferente da raa de prata". Violentos efortes, munidos de armas de bronze, os indivduos dessa raa acabaram
sucumbindo nas mos uns dos outros e transportados para o Hades, "sem deixar
nome sobre a terra". Em seguida, surge a raa dos heris, que combateram em
Tebas e Tria; para eles Zeus reservou uma morada na Ilha dos Bem-
Aventurados, onde vivem felizes, distantes dos mortais. Finalmente advm o
duro tempo da raa de ferro o tempo do prprio Hesodo, tempo deincessantes fadigas, misrias e angstias, mas quando "ainda alguns bens esto
misturados aos males". A essa raa aguardam dias terrveis: "O pai no mais se
assemelhar ao filho, nem o filho ao pai; o hspede no ser mais caro a seu
hospedeiro, nem o amigo a seu amigo, nem o irmo a seu irmo".
Do mesmo modo que o mito de Prometeu ilustra a idia de trabalho, o
mito das idades ilustra a idia de justia: nenhum homem pode furtar-se lei dotrabalho, assim como nenhuma raa pode evitar a justia. Na verdade, esses dois
temas so complementares, segundo Hesodo: o homem da idade de ferro est
movido pelo instinto de luta (eris); se a luta se transforma em trabalho, torna-se
emulso fecunda e feliz; se, ao contrrio, manifesta-se por meio de violncia,
acaba sendo a perdio do prprio homem. Esse tipo de admoestao que
Hesodo lana a seu irmo Perses inaugura, depois da tica aristocrtica e
cavalheiresca de Homero, a outra grande corrente de pensamento moral que ir
alimentar, mais tarde, a meditao filosfica. Com Hesodo surge a noo de
que a virtude (areie) filha do esforo e a de que o trabalho o fundamento e a
salvaguarda da justia.
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II. Os PR-SOCRTICOS
O RESULTADODAS invases dricas, a partir do sculo XII a.C, a runa dos
reinos micnicos, com sua estrutura de base agrria, patriarcal e gentlica.
Fugindo aos invasores e tentando salvaguardar suas tradies, muitos aqueus so
forados a emigrar para as ilhas e as costas da sia Menor. A os jnios
fundaro cidades, como Mileto e Efeso, que se transformaro em grandes
centros econmicos e culturais. As principais atividades econmicas das
colnias gregas da sia Menor tornam-se, por fora mesma de sua localizao
geogrfica, a navegao, o comrcio e o artesanato. E, enquanto se intensificam
as relaes com outros povos, cada vez mais distantes vo ficando as velhas
tradies remanescentes da sociedade micnica. A acelerada dinmica social das
cidades-Estados jnicas corri as antigas instituies e os valores arcaicos,
fazendo emergir uma nova mentalidade, fruto da valorizao das
individualidades que se afirmam nas circunstncias e iniciativas presentes.
Durante o sculo VII a.C, as novas condies de vida das colnias gregas
da sia Menor acentuam-se devido revoluo econmica representada pela
adoo do regime monetrio. A moeda, facilitando as trocas, vem fortalecer
econmica e socialmente aqueles que vivem do comrcio, da navegao e do
artesanato, marcando definitivamente a decadncia da organizao social
baseada na aristocracia de sangue. A partir de ento e sobretudo no decorrer do
sculo VII a.C., a expanso das tcnicas j desvinculadas da primitivaconcepo que lhes atribua origem divina passa a oferecer ao homem
imagens explicativas dotadas de alta dose de racionalidade, conduzindo
progressiva rejeio e substituio da viso mtica da realidade. A tcnica que
o homem consegue compreender e dominar a ponto de realiz-la com suas
prprias mos, repeti-la e sobretudo ensin-la apresenta-se como um processo de
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transformao e de criao. Por que no seria semelhante quele, o processo que
teria produzido o universo atual e dentro dele continuaria a operar mudanas?
Natural, portanto, que ocorressem nas colnias gregas da sia Menor as
primeiras manifestaes de um pensamento dotado de tamanha exigncia ecompreenso racional que, depois de produzir as epopias homricas (entre os
sculos X e VIII a.C), eclodiu, no sculo VI a.C, sob a forma de cincia terica e
filosofia. bem verdade que, j no sculo VIII a.C, Hesodo expusera em suas
obras poticas uma sntese de relatos mticos tradicionais, vinculando-os pelo
nexo causai das genealogias que ligavam deuses e mortais. Mas, a partir do
sculo VI a.C, esse tipo de construo cedeu lugar a uma nova e mais radicalforma de pensamento racional, que no partia da tradio mtica, mas de
realidades apreendidas na experincia humana cotidiana. Fruto da progressiva
valorizao da "medida Humana" e da laicizao da cultura efetuada pelos
gregos, despontou, nas colnias da sia Menor, uma nova mentalidade, que
coordenou racionalmente os dados da experincia sensvel, buscando integr-los
numa viso compreensiva e globalizadora. Dentro desse esprito surgiram naJnia, as primeiras concepes cientficas e filosficas da cultura ocidental,
propostas pela escola de Mileto.
Procurando reduzir a multiplicidade percebida unidade exigida pela
razo, os pensadores de Mileto propuseram sucessivas verses de uma fsica e
de uma cosmologia constitudas em termos qualitativos: as qualidades sensveis
(como "frio", "quente", "leve", "pesado") eram entendidas como realidades em
si ("o frio", "o quente" etc.). O universo apresentava-se, assim, como um
conjunto ou um "campo" no qual se contrapunham pares de opostos.
Segundo uma tradio, que remonta aos prprios gregos antigos, o
primeiro filsofo teria sido Tales de Mileto. As datas a respeito de sua vida so
incertas, sabendo-se, porm, com segurana, que ele viveu no perodo
compreendido entre o final do sculo VII e meados do sculo VI a.C. Famoso
como matemtico, alguns historiadores consideram que sua colocao pelos
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antigos entre os "sete sbios da Grcia" deveu-se principalmente a sua atuao
poltica: teria tentado unir as cidades-Estados da sia Menor numa
confederao, no intuito de fortalecer o mundo helnico diante das ameaas de
invases de povos orientais.Para a histria da filosofia, a importncia de Tales advm sobretudo de ter
afirmado que a gua era a origem de todas as coisas. A gua seria a physis, que,
no vocabulrio da poca, abrangia tanto a acepo de "fonte originria" quanto a
de "processo de surgimento e de desenvolvimento", correspondendo
perfeitamente a "gnese". Segundo a interpretao que dar Aristteles sculos
mais tarde, teria tido incio com Tales a explicao do universo atravs da"causa material". Historiadores modernos, porm, rejeitam essa interpretao,
que "aristoteliza" Tales, atribuindo-lhe preocupao de cunho metafsico.
Assim, h quem afirme (Paul Tannery) que Tales foi importante apenas como
introdutor na Grcia de noes da matemtica oriental, que ele mesmo
desenvolveu e aperfeioou, e de mitos cosmognicos, particularmente egpcios,
que laicizou, dando-lhe sustentao racional. Noutra interpretao (Olof Gigon),"o surgir da gua" significaria um processo geolgico, sem acepo metafsica:
tudo estaria originariamente encoberto pela gua; sua evaporao permitiu que
as coisas aparecessem. Por outro lado, alguns intrpretes consideram que outra
sentena atribuda a Tales "tudo est cheio de deuses" representa no um
retorno a concepes mticas, mas simplesmente a idia de que o universo
dotado de animao, de que a matria viva (hilozosmo).
Um dos aspectos fundamentais da mentalidade cientfico-filosfica
inaugurada por Tales consistia na possibilidade de reformulao e correo das
teses propostas. A estabilidade dos mitos arcaicos e estagnao das esparsas e
assistemticas conquistas da cincia oriental, os gregos, a partir de Tales,
propem uma nova viso de mundo cuja base racional fica evidenciada na
medida mesma em que ela capaz de progredir, ser repensada e substituda.
Assim que, j nos meados do sculo VI a.C, a chefia da escola de Mileto passa
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a Anaximandro. Introdutor na Grcia e aperfeioador do relgio de sol
(gnomon), de origem babilnica, foi tambm o primeiro a traar um mapa
geogrfico.
Para Anaximandro, o universo teria resultado de modificaes ocorridasnum princpio originrio ou arch. Esse princpio seria o peiron, que se pode
traduzir por infinito e/ou ilimitado. Desde a Antigidade, discute-se se o
peiron pode ser interpretado como infinitude espacial, como indeterminao
qualitativa, ou se envolve os dois aspectos. Certo que, para Anaximandro, o
peiron estaria animado por um movimento eterno, que ocasionaria a separao
dos pares de opostos. No nico fragmento que restou de sua obra, Anaximandroafirma que, ao longo do tempo, os opostos pagam entre si as injustias
reciprocamente cometidas. Para alguns intrpretes isso significaria a afirmao
da lei do equilbrio universal, garantida atravs do processo de compensao dos
excessos (por exemplo, no inverno, o frio seria compensado dos excessos
cometidos pelo calor durante o vero).
O ltimo representante da escola milesiana foi Anaxmenes. Para ele, ouniverso resultaria das transformaes de um ar infinito (pneuma peiron).
Aproveitando segundo Farrington a sugesto oferecida pela tcnica de
fabricao de feltro (produzido por aglutinao de materiais dispersos), em
grande expanso na Mileto de sua poca, Anaxmenes afirmava que todas as
coisas seriam produzidas atravs do duplo processo mecnico de rarefao e
condensao do ar infinito. O pensamento milesiano adquiria, assim,
consistncia, pois, alm de se identificar qual aphysis, mostrava-se um processo
capaz de tornar compreensvel a passagem da unidade primordial
multiplicidade de coisas diferenciadas que constituem o universo.
Como Anaximandro, tambm a Anaxmenes os doxgrafos escritores
antigos que recolheram ou transcreveram as opinies dos primeiros filsofos
atribuem a doutrina da constituio, a partir da arch nica, de inumerveis
mundos, gerados de maneira sucessiva e/ou simultnea.
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A SALVAO PELA MATEMTICA
Durante o sculo VI a.C. verificou-se, em certas regies do mundo grego,uma revivescncia da vida religiosa, para a qual contribuiu, inclusive, a linha
poltica adotada em geral pelos tiranos: para enfraquecer a antiga aristocracia,
que se supunha descendente dos deuses protetores da polis, das divindades
"oficiais", os tiranos favoreciam a expanso de cultos populares ou estrangeiros.
Dentre as religies de mistrios, de carter inicitico, uma teve ento enorme
difuso: o culto de Dioniso, originrio da Trcia, e que passou a constituir o
ncleo da religiosidade rfica. O orfismo de Orfeu, que primeiro teria
recebido a revelao de certos mistrios e que os teria confiado a iniciados, sob
a forma de poemas musicais era uma religio essencialmente esotrica. Os
rficos acreditavam na imortalidade da alma e na metempsicose, ou seja, a
transmigrao da alma atravs de vrios corpos, a fim de efetivar sua
purificao. A alma aspiraria, por sua prpria natureza, a retornar a sua ptria
celeste, s estrelas; mas, para se libertar do ciclo das reencarnaes, o homem
necessitava da ajuda de Dioniso, deus libertador que completava a libertao
preparada pelas prticas catrticas.
Pitgoras de Samos, que se tornou figura legendria j na prpria
Antigidade, realizou uma modificao fundamental na religiosidade rfica,
transformando o sentido da "via de salvao": no lugar de Dioniso colocou a
matemtica. Da vida de Pitgoras quase nada pode ser afirmado com certeza, j
que ela foi objeto de uma srie de relatos fantasiosos, como os referentes a suas
viagens e a seus contatos com culturas orientais. Parece certo, contudo, que ele
teria deixado Samos (na Jnia), na segunda metade do sculo VI a.C, fugindo
tirania de Polcrates. Transferindo-se para Crotona, l fundou uma confraria
cientfico-religiosa. Criou um sistema global de doutrinas, cuja finalidade era a
de descobrir a harmonia que preside constituio do cosmo e traar, de acordo
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com ela, as regras da vida individual e do governo das cidades. Partindo de
idias rficas, o pitagorismo pressupunha uma identidade fundamental, de
natureza divina, entre todos os seres; essa similitude profunda entre os vrios
existentes era sentida pelo homem sob a forma de um "acordo com a natureza",que, sobretudo depois do pitagrico Filolau, ser qualificada como uma
"harmonia", garantida pela presena do divino em tudo. Natural que, dentro de
tal concepo, o mal seja sempre entendido como desarmonia.
A grande novidade introduzida, certamente pelo prprio Pitgoras, na
religiosidade rfica foi a transformao do processo de libertao da alma num
esforo inteiramente subjetivo e puramente humano. A purificao resultaria dotrabalho intelectual, que descobre a estrutura numrica das coisas e torna, assim,
a alma semelhante ao cosmo, em harmonia, proporo, beleza. Pitgoras teria
chegado concepo de que todas as coisas so nmeros atravs, inclusive, de
uma observao no campo musical: verifica, no monocrdio, que o som
produzido varia de acordo com a extenso da corda sonora. Ou seja, descobre
que h uma dependncia do som em relao extenso, da msica (toimportante como propiciadora de vivncias religiosas estticas) em relao
matemtica.
Pitgoras concebe a extenso como descontnua: constituda por unidades
invisveis e separadas por um "intervalo". Segundo a cosmologia pitagrica, esse
"intervalo" seria resultante da respirao do universo, que, vivo, inalaria o ar
infinito(pneuma peiron)
em que estaria imerso. Mnimo de extenso e mnimo
de corpo, as unidades comporiam os nmeros. Os nmeros no seriam, portanto
como viro a ser mais tarde , meros smbolos a exprimir o valor das
grandezas: para os pitagricos, eles so reais, so a prpria "alma das coisas",
so entidades corpreas constitudas pelas unidades contguas. Assim, quando os
pitagricos falam que as coisas imitam os nmeros estariam entendendo essa
imitao (mmesis) num sentido perfeitamente realista: as coisas manifestariam
externamente a estrutura numrica que lhes inerente.
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Os pitagricos adotaram uma representao figurada dos nmeros, que
permitia explicitar sua lei de composio. Os primeiros nmeros, representados
dessa forma, bastavam para justificar o que h de essencial no universo: o um
o ponto (.), mnimo do corpo, unidade de extenso; o dois determina a linha(._.); o trs gera a superfcie ./; enquanto o quatro produz o volume: .
Utilizando uma verso puramente geomtrica do gnomon introduzido na
Grcia por Anaximandro verso que o transforma esquematicamente em
esquadro , os pitagricos investigam as diferentes sries numricas. E
verificam que o crescimento gnomnico da srie dos nmeros pares determina
sempre uma figura oblonga retangular, enquanto a srie dos mpares crescecomo um quadrado, ou seja, como um quadriltero que conserva seus lados
sempre iguais, embora aumente de tamanho. Assim, o nmero par pode ser visto
como a expresso aritmo-geomtrica da alteridade, enquanto o mpar seria a
prpria manifestao bsica, na matemtica, da identidade. A partir desses
fundamentos matemticos, os pitagricos podem ento conceber todo o
universo, como um campo em que se contrapem o Mesmo e o Outro. E podemestabelecer, para os diferentes nveis da realidade, a tbua de opostos que
manifestam aquela oposio fundamental: 1) finito e infinito, 2) mpar e par, 3)
unidade e multiplicidade, 4) direita e esquerda, 5) macho e fmea, 6) repouso
e movimento, 7) reto e curvo, 8) luz e obscuridade, 9) bem e mal, 10) quadrado
e retngulo. Assim, categorias biolgicas (macho/fmea), oposies
cosmolgicas ( direita/ esquerda relativas ao movimento das "estrelas
fixas" e ao dos "astros errantes"), ticas (bem/mal) etc., seriam, na verdade,
variaes da oposio fundamental, que determinaria a prpria existncia das
unidades numricas: a oposio do limite (feras) e do ilimitado (peiron).
A primitiva concepo pitagrica de nmero apresentava limitaes que
logo exigiriam dos prprios pitagricos tentativas de reformulaes. O principal
impasse enfrentado por essa aritmo-geometria baseada em nmeros inteiros (j
que as unidades seriam indivisveis) foi a relativa aos irracionais. Tanto na
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relao entre certos valores musicais, expressos matematicamente, quanto na
base mesma da matemtica surgem grandezas inexprimveis naquela concepo
de nmero. Assim, a relao entre o lado e a diagonal do quadrado (que a da
hipotenusa do tringulo retngulo issceles com o cateto) tornava-se"irracional": aquelas linhas no apresentam "razo comum", o que se evidencia
pelo aparecimento, na traduo aritmtica da relao entre elas, de valores sem
possibilidade de determinao exaustiva, como o V2. O "escndalo" dos
irracionais manifestava-se no prprio "teorema de Pitgoras" (o quadrado
construdo sobre a hipotenusa igual soma dos quadrados construdos sobre os
catetos): desde que se atribusse valor 1 ao cateto de um tringulo issceles, ahipotenusa seria igual a 4% Ou ento, quando se pressupunha que os valores
correspondentes hipotenusa e aos catetos eram nmeros primos entre si,
acabava-se por se concluir pelo absurdo de que um deles no era nem par nem
mpar.
Apesar desses impasses e em grande parte por causa deles , o
pensamento pitagrico evoluiu e expandiu-se, influenciando praticamente todo odesenvolvimento da cincia e da filosofia gregas. Em parte a difuso do
pitagorismo deveu-se prpria destruio do ncleo primitivo de Crotona
(talvez por razes polticas). Os pitagricos se dispersaram e passaram a atuar
amplamente no mundo helnico, levando a todos os setores da cultura o ideal de
salvao do homem e dapolis atravs da proporo e da medida.
A UNIDADE DO DIVINO
As primeiras cosmogonias filosficas, propostas pelos milesianos e pelos
pitagricos, podem ser vistas como variaes do monismo corporalista: a
diversidade das coisas existentes provindo de uma nica physis corprea (seja
gua, ou ar, ou unidade numrica). Todavia, a prpria divergncia entre ospensadores cada qual apontando um tipo de arch e um tipo de processo
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capaz de transform-la em tantas e to diferenciadas coisas suscitou a
necessidade de se investigarem os recursos humanos de conhecimento,
buscando-se um caminho de certeza que superasse as opinies mltiplas e
discrepantes. Assim, o binmio unidade/pluridade deslocou-se da esferacosmolgica para reaparecer sob a forma de oposio entre verdade nica e
multiplicidade de opinies. Essa encruzilhada do pensamento que fecundou
toda a investigao filosfica posterior manifesta-se em Herclito de feso,
mas foi sobretudo marcada pela escola de Elia. O eleatismo, segundo a maioria
dos historiadores, que teria inaugurado explicitamente tanto a problemtica
lgica quanto a ontolgica: as especulaes sobre o conhecer e sobre o ser.Na Antigidade, Plato e Aristteles consideravam Parmnides, Zeno e
Melisso como os representantes do eleatismo. Outros autores antigos situavam
entre os eleatas tambm Xenfanes e Grgias, o famoso sofista. Chegou-se
mesmo a considerar Xenfanes como o fundador da escola, o que a crtica
moderna geralmente rejeita, atribuindo esse papel a Parmnides.
Nascido em Colofo, colnia grega da sia Menor, Xenfanes (c. 580-475 a.C.) foi para o sul da Itlia ento chamada Magna Grcia quando sua
terra natal caiu nas mos dos medas. A semelhana de Pitgoras, levou para essa
parte ocidental do mundo helnico os frutos da efervescncia intelectual que
caracterizava a Jnia, passando a difundir a nova concepo do universo forjada
pelas escolas filosficas. Durante muito tempo pensou-se que Xenfanes teria
escrito um poema(Sobre a Natureza),
expondo idias filosficas prprias.
Historiadores modernos como Werner Jaeger recusam essa verso,
afirmando que em seus poemas Xenfanes teria to-somente narrado fatos sobre
a invaso dos medas e sobre sua vida pessoal. Alm disso, teria deixado e
essa seria justamente a parte mais importante de sua obra poemas satricos, os
silloi, criticando, em nome das novas idias filosficas, a mentalidade vulgar,
particularmente quanto concepo do divino. Apoiado na viso do universo
como constitudo a partir de uma nica origem (a arch, que os pensadores
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jnicos j qualificavam de "divino"), Xenfanes proclama: "Um deus o
supremo entre os deuses e os homens; nem em sua forma, nem em seu
pensamento igual aos mortais". Comeava o combate aos deuses
antropomrficos, herdados da tradio homrica.
O QUE O QUE
No h segurana quanto s datas de nascimento e morte de Parmnides.
Sabe-se que viveu no final do sculo VI e comeo do sculo V a.C. e que foi
legislador em sua cidade natal, Elia. E que deixou um poema, apresentando
suas idias filosficas.
O poema de Parmnides divide-se em trs partes: o promio, rico em
metforas, descreve uma experincia de ascese e de revelao; a primeira parte
apresenta o contedo principal dessa revelao mostrando o que seria a "via da
verdade"; a segunda parte caracteriza a "via da opinio". A distino
fundamental entre os dois caminhos est em que, no primeiro, o homem se deixaconduzir apenas pela razo e ento levado evidncia de que "o que , e
no pode deixar de ser" (primeira formulao explcita do princpio lgico-
ontolgico de identidade). J na segunda via, "os mortais de duas cabeas", pelo
fato de atentarem para os dados empricos, as informaes dos sentidos, no
chegariam ao desvelamento da verdade (aletheia) e certeza, permanecendo no
nvel instvel das opinies e das convenes de linguagem.Historicamente, o que Parmnides faz extrair do fundo das primeiras
cosmogonias filosficas seu arcabouo lgico, centralizado na noo de
unidade. Ao mesmo tempo, tratando essa noo com estrito rigor racional,
mostra que ela parece incompatvel com a multiplicidade e o movimento
percebidos. "O que ", sendo "o que ", ter de ser nico: alm do "o que "
apenas poderia existir, diferente dele, "o que no " o que seria absurdo, poissignificaria atribuir existncia ao no-ser, impensvel e indivisvel. Pelo mesmo
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motivo simples desdobramento do princpio de identidade , o ser tem de
ser eterno, imvel, finito, imutvel, pleno, contnuo, homogneo e indivisvel. A
esses atributos Parmnides acrescenta o da corporeidade, exprimindo uma
constante na concepo da realidade at esse momento e que justamenteento comea a entrar em crise.
Particularmente os caracteres da imutabilidade, imobilidade e unidade
contrariavam frontalmente o depoimento dos sentidos, que percebem um mundo
de coisas diversas, mveis e mutveis. A verdade proclamada pela primeira
parte do poema de Parmnides era a manifestao de uma razo absoluta,
identificada por isso mesmo com o discurso de uma deusa. Contrapunha-se noapenas ao senso comum, como tambm a doutrinas filosficas correntes na
poca, como o pitagorismo. A recusa de que os sentidos pudessem conduzir
verdade e a rejeio da legitimidade racional da multiplicidade e do movimento
suscitaram crticas ao eleatismo. Aos adversrios da escola responde Zeno,
atravs de argumentos que constituem verdadeiras aporias (caminhos sem sada)
e procuram mostrar que as teses dos opositores do eleatismo, como os pitagricos, ocultavam contradies internas insuperveis, alm de estarem
tambm em desacordo com a experincia sensvel. Zeno sistematizou o mtodo
de demonstrao "pelo absurdo" e foi considerado por Aristteles o inventor da
dialtica, em sua acepo erstica, de argumentao combativa que parte das
premissas do prprio adversrio e delas extrai concluses insustentveis.
Cerca de quarenta anos mais jovem que seu mestre e conterrneo
Parmnides, Zeno teria deixado quarenta argumentos dos quais apenas nove
foram conservados pelos doxgrafos e por Aristteles. Alguns historiadores (A.
Rey, J. Zafiropulo) procuraram mostrar que aquela argumentao pode ser
disposta em torno de certos problemas fundamentais: o da grandeza ou o da
multiplicidade, o do espao, o do movimento, o da percepo sensvel. Atrs de
todas as aporias, contudo, poder-se-ia surpreender uma questo bsica, em todas
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elas glosada: a da multiplicidade, fonte dos equvocos que o eleatismo, em nome
da razo, denuncia e renega.
Dos argumentos de Zeno, tornaram-se mais famosos os que visam
diretamente ao problema do movimento. Nos quatro argumentos que restaramsobre o tema (o da dicotomia, o da flecha, o de Aquiles e a tartaruga e o do
estdio), Zeno mostra que quaisquer que sejam os pressupostos em que se
baseie uma concepo sobre o movimento, sempre se acaba diante de impasses
insuperveis. Assim, que se tenha por base uma noo de espao e tempo como
infinitamente divisveis, quer se concebam espao e tempo como divisveis
finitamente (dotados, portanto, de unidades ltimas, indecomponveis), sempre anoo de movimento conduzir a absurdos como o de Aquiles que jamais
alcana em sua corrida veloz a lenta tartaruga, ou da flecha que permanece
parada em todos os pontos de sua trajetria conseqentemente impossvel.
O FOGO ETERNAMENTE VIVO
"Este mundo, que o mesmo para todos, nenhum dos deuses ou dos
homens o fez; mas foi sempre, e ser um fogo eternamente vivo, que se acende
com medida e se apaga com medida" nessa frase muitos vem uma das
chaves para a decifrao do pensamento de Herclito de Efeso, que j na
Antigidade tornou-se conhecido como "o Obscuro".
De sua vida muito pouco se sabe com certeza. Nascido em Efeso, colniagrega da sia Menor, teria "florescido" (o que parece, significava para os gregos
atingir o auge de sua produtividade) por ocasio da 69a Olimpada (504/3-501
a.C). Pertencia famlia real de sua cidade e conta-se que teria renunciado
dignidade de se tornar rei em favor de seu irmo. A obra que deixou est
constituda por uma srie de frases isoladas, durante muito tempo consideradas
como fragmentos de um suposto texto original; posteriormente, a crticafilosfica reconheceu que se tratava, na verdade, de aforismos. Modernamente, a
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seqncia desses aforismos apresentada segundo duas numeraes: ou a
inglesa, devida a Bywater, ou a alem, de Diels (o que justifica a letra B ou D
que aparece comumente junto ao nmero do aforismo).
A apresentao aforismtica de seu pensamento e o estilointencionalmente sibiliano fazem de Herclito um dos pensadores pr-socrticos
de mais difcil interpretao. Natural, portanto, que a histria da filosofia
apresente uma sucesso de verses de seu pensamento dependentes sempre da
perspectiva assumida pelo prprio intrprete.
Para a soluo do "problema heracltico" dois pontos parecem oferecer
bases mais seguras: a) o confronto das proposies de Herclito com seucontexto cultural (o que o prprio filsofo parece indicar, na medida em que se
apresenta como crtico implacvel de idias e personagens de sua poca ou da
tradio cultural grega); b) o estilo de Herclito, a revelar um uso peculiar da
linguagem.
Se h aforismos de Herclito que no manifestam obscuridade so
justamente os de cunho crtico. Aristocrata, Herclito no afirma apenas que"um s dez mil para mim, se o melhor" (D 49), como tambm faz acerbas
acusaes mentalidade vulgar desses homens que "no sabem o que fazem
quando esto despertos, do mesmo modo que esquecem o que fazem durante o
sono" (D 1). A religiosidade popular tambm vergastada: "Os mistrios
praticados entre os homens so mistrios profanos" (D 14 b). E explica: "E em
vo que eles se purificam sujando-se de sangue, como um homem que tivesse
andado na lama e quisesse lavar os ps na lama..." (D 68/5). Mas nem alguns
dos nomes mais reverenciados na poca so poupados: "O fato de aprender
muitas coisas no instrui a inteligncia; do contrrio teria instrudo Hesodo e
Pitgoras, do mesmo modo que Xenfanes e Hecateu" (D 40). Noutro aforismo
Pitgoras acusado de possuir uma polimatia (conhecimento de muitas coisas)
que no passava de uma "arte de maldade" (D 129), enquanto Hesodo, "o
mestre da maioria dos homens, os homens pensam que ele sabia muitas coisas,
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ele que no conhecia o dia ou a noite" (D 57). Nem Homero escapa: "Homero
errou em dizer: 'Possa a discrdia se extinguir entre os deuses e os homens!' Ele
no via que suplicava pela destruio do universo; porque, se sua prece fosse
atendida, todas as coisas pereceriam..." (D 12 a 22).Em meio a tantas crticas, Herclito abre, entretanto, uma exceo: para a
Sibila, "que com seus lbios delirantes diz coisas sem alegria, sem ornatos e sem
perfume", mas que "atinge com sua voz para alm de mil anos, graas ao deus
que est nela" (D 92). Percebe-se, dessa maneira, que a adoo do estilo oracular
intencional em Herclito, que nele encontra a vida adequada indireta,
sugestiva para comunicar seu pensamento: "O mestre a que pertence oorculo de Delfos no exprime nem oculta seu pensamento, mas o faz ver
atravs de um sinal" (D 93). O exemplo do deus de Delfos e da Sibila parece
mostrar a Herclito a diferena que separa as palavras do pensamento (logos), a
mesma que distancia a inteligncia privada o "sono" em que est imersa a
mortalidade vulgar da inteligncia comum, a "viglia" daquele que se eleva
acima dos muitos conhecimentos e reconhece "que todas as coisas so Um" (D50).
A UNIDADE DOS OPOSTOS
O que diz oLogos, do qual Herclito se faz o anunciador e em nome do
qual condena o torpor da multido ou a polimatia dos supostos sbios, isto: aunidade fundamental de todas as coisas. Essa "a natureza que gosta de se
ocultar" (D 123). Mas a noo de unidade fundamental, subjacente
multiplicidade aparente, j estava expressa pelo menos desde Anaximandro de
Mileto. A novidade trazida por Herclito e que lhe permite julgar to
duramente seus antecessores e contemporneos est, na verdade, em
considerar aquela unidade como uma unidade de tenses opostas. Esta teria sidosua grande descoberta: existe uma harmonia oculta das foras opostas, "como a
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do arco e da lira" (D 51). A Razo (Logos) consistiria precisamente na unidade
profunda que as oposies aparentes ocultam e sugerem: os contrrios, em todos
os nveis da realidade, seriam aspectos inerentes a essa unidade. No se trata,
pois, de opor o Um ao Mltiplo, como Xenfanes e o eleatismo: o Um penetra oMltiplo e a multiplicidade apenas uma forma da unidade, ou melhor, a
prpria unidade. Da a insuficincia do uso corrente das palavras: somente o
logos (razo-discurso) do filsofo consegue apreender e formular no ao
ouvido mas ao esprito, no diretamente mas por via de sugestes sibilinas
aquela simultaneidade do mltiplo (mostrado pelos sentidos) e da unidade
fundamental (descortinada pela inteligncia desperta, em "viglia").Proclama Herclito: "E sbio escutar no a mim, mas a meu discurso
(logos), e confessar que todas as coisas so Um" (D 50). O Logos seria a
unidade nas mudanas e nas tenses a reger todos os planos da realidade: o
fsico, o biolgico, o psicolgico, o poltico, o moral. E a unidade nas
transformaes: "Deus dia-noite, inverno-vero, guerra-paz, superabundncia-
fome; mas ele assume formas variadas, do mesmo modo que o fogo, quandomisturado a armatas, denominado segundo os perfumes de cada um deles" (D
67). Por isso Homero errara em pedir que cessasse a discrdia entre os deuses e
os homens: "O que varia est de acordo consigo mesmo" (D 51). A harmonia
no aquela que Pitgoras propunha, de supremacia do Um, nem a verdadeira
justia a que Anaximandro havia concebido, ou seja, a extino dos conflitos e
das tenses atravs da compensao dos excessos de cada qualidade-substncia
em relao a seu oposto. A justia no significa apaziguamento: pelo contrrio,
"o conflito o pai de todas as coisas: de alguns faz homens; de alguns, escravos;
de alguns, homens livres" (D 53). Mas ver a realidade como fundamentalmente
uma tenso de opostos no significa necessariamente optar pela guerra, no plano
poltico, "guerra", neste ltimo sentido, apenas um dos plos de uma tenso
permanente ("Deus dia-noite, inverno-vero, guerra-paz..."). E essa tenso, que
constitui a verdadeira harmonia, necessita, para perdurar, de ambos os opostos.
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Numa srie de aforismos, Herclito enfatiza o carter mutvel da
realidade, repetindo uma tese que j surgira nos mitos arcaicos e, com dimenso
filosfica, desde os milesianos. Mas em Herclito a noo de fluxo universal
torna-se um mote insistentemente glosado: "Tu no podes descer duas vezes nomesmo rio, porque novas guas correm sempre sobre ti" (D 12). O imprio do
Logos em sua feio fsica aparece ento como as transformaes do fogo, que
so "em primeiro lugar, mar; e metade do mar terra e metade vento
turbilhonante" (D 31 a). O Logos-Fogo exerce uma funo de racionalizao nas
trocas substanciais anloga que a moeda vinha desempenhando na Grcia,
desde o sculo VII: "Todas as coisas so trocadas em fogo e o fogo se troca emtodas as coisas, como as mercadorias se trocam por ouro e o ouro trocado por
mercadorias" (D 90). Todavia, as transformaes que integram o fluxo universal
no significam desgoverno e desordem; pelo contrrio, o Logos-Fogo tambm
Razo universal e, por isso, impe medida ao fluxo: "Este mundo (...) foi
sempre, e ser sempre um fogo eternamente vivo, que se acende com medida e
se apaga com medida" (D 30). A regularidade e a medida so garantidas pelasimultaneidade dos dois caminhos de transformao que compem o fluxo
universal: ao mesmo tempo que ocorre a troca do fogo em todas as coisas e de
todas as coisas em fogo, pois "o caminho para o alto e o caminho para baixo so
um e o mesmo". Isso permite ento afirmar: "... e metade do mar terra e a
metade vento turbilhonante" (D 31). Assim, o que garante a tenso intrnseca s
coisas aquilo mesmo que as sustenta: a medida imposta peloLogos,
essa
"harmonia oculta" que "vale mais que harmonia aberta" (D 54).
A conscincia da fugacidade das coisas gera uma nota de pessimismo que
atravessa o pensamento de Herclito: "O homem acendido e apagado como
uma luz no meio da noite" (D 26). Mas o pessimismo advm, sobretudo, de
reconhecer o torpor em que vive a maioria dos homens, ignorantes da lei
universal que tudo rege. Por isso, o discurso (logos) do filsofo, embora
pretendendo ser a manifestao da Razo universal (Logos), exprime-se como
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um solitrio monlogos, acima dos homens comuns, "esses loucos que quando
ouvem so como surdos" (D 34).
AS QUATRO RAZES
O eleatismo e, em particular, as aporias de Zeno de Elia tinham
mostrado as conseqncias extremas a que conduzia o monismo corporalista.
Revalorizar a multiplicidade e o movimento, recusados pela razo eleatica,
exigia o abandono de uma das premissas sobre as quais vinham se construindo
as diferentes cosmogonias filosficas: ou o monismo ou o corporalismo. E como
no havia ainda possibilidade, naquele momento da cultura grega, de se
defender a tese da incorporeidade, a soluo para o impasse levantado pelo
eleatismo teve de provir da substituio do monismo pelo pluralismo. Ao
mesmo tempo, a instaurao do regime democrtico em algumas cidades-
Estados gregas ou a luta por sua instaurao oferecia novas sugestes ao
pensamento filosfico: ao universo tambm poder-se-ia aplicar o princpiolegalizador da multiplicidade poltica, a isonomia, ou igualdade perante a lei.
Concebido imagem da polis democrtica, o cosmo pode ento ser explicado
como o jogo regulado de "iguais": as quatro razes de Empdocles, o mltiplo
contido que racionaliza e explica a multiplicidade inumervel das coisas mveis
percebidas.
J na Antigidade a vida de Empdocles suscitou relatos diversos e, semelhana da de Pitgoras, foi envolvida numa atmosfera de lendas. O que se
sabe de mais seguro provm de Digenes Larcio (sculo III d.C), que afirma ter
Empdocles nascido em Agrigento, na Magna Grcia, em aproximadamente 490
a.C, e vivido cerca de sessenta anos. Mas a tradio conservou tambm notcia
de suas convices democrticas e fala de sua intensa participao na vida
poltica de Agrigento.
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Em dois poemas, Empdocles exps seu pensamento: em Sobre a
Natureza e nas Purificaes. O primeiro apresenta uma viso do processo
cosmognico que constitui um desenvolvimento e uma modificao da linha de
investigao iniciada pelos milesianos; o segundo um poema religioso,contendo uma das primeiras exposies da doutrina rfico-pitagrica.
O poema Sobre a Natureza exprime uma nova concepo de verdade e de
razo. O eleatismo havia identificado a via da verdade com o uso exclusivo da
razo, que, apresentada como deusa soberana e absoluta no poema de
Parmnides, afirmava a unidade do ser, e, conseqentemente, negava a
legitimidade racional da multiplicidade e do movimento.Empdocles altera essa concepo de verdade, declarando em seu poema
que pretende apresentar "apenas o que pode alcanar a compreenso de um
mortal". Para ele, a aletheia no mais a revelao de uma verdade absoluta,
porm uma verdade proporcional "medida humana". Isso significa que a
evidncia procurada no a do intelecto puro: a exigncia de clareza racional,
porm aplicada aos dados fornecidos pelos sentidos. Desaparece a monarquia darazo, o conhecimento se democratiza: todos os recursos de apreenso da
realidade so igualmente legtimos e devem ter sua parte na constituio da
verdade. Aconselha Empdocles: "Examina de todos os modos possveis de que
maneira cada coisa se torna evidente. No atribua mais crena a tua vista do que
a teu ouvido, a teu ouvido que ressoa mais do que s claras indicaes de tua
lngua. No recuses a teus outros membros a tua confiana, na medida em que
eles apresentam ainda um meio de conhecer; mas toma conhecimento de cada
coisa da maneira que a torna clara". Resultado dessa democratizao do
processo gnosiolgico tambm a natureza do logos de Empdocles: no mais o
solitrio e pessimista discurso heracltico, mas discurso dirigido a um ouvinte, a
uma outra conscincia: "Escuta, pois, Pausnias..." assim comea o poema
Sobre a Natureza. Abre-se o caminho para o socrtico dilogo, filho posterior da
democracia.
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A conciliao entre razo e sentidos, proposta por Empdocles, conduz
substituio do monismo corporalista pelo pluralismo: o universo pode ser
entendido ento como o resultado de quatro razes a gua, o ar, a terra, o
fogo. Essas razes esto governadas pela isonomia: so "iguais", nenhuma mais importante, nenhuma mais primitiva, todas eternas e imutveis. Nem h
mudana substancial: as razes permanecem idnticas a si mesmas. A
diversidade das coisas delas resultantes advm de sua mistura em diferentes
propores. Proclama Empdocles: "No h nascimento para nenhuma das
coisas mortais; no h fim pela morte funesta; h somente mistura e dissociao
dos componentes da mistura. Nascimento apenas um nome dado a esse fatopelos homens".
O AMOR E O DIO
Por exigncia da razo, as razes so concebidas por Empdocles como
imveis; mas, por exigncia dos sentidos, o movimento percebido no universono pode ser tido como mera iluso. Para resolver esse impasse gerado pelo
eleatsmo e conciliar democraticamente as duas exigncias, concebendo a cada
qual uma satisfao (limitada) de suas reivindicaes, Empdocles apela para
mais dois princpios cosmognicos: o Amor (Philia) e o dio (Neikos). O
primeiro age como fora de atrao entre os dessemelhantes (as razes),
enquanto o dio exerce ao contrria, afasta as razes. Empdocles estabeleceparidade entre Amor e dio e as quatro razes: so tambm corpreos (so
"fluidos-foras") e tm a mesma "idade" das razes (o que exclui qualquer
preeminncia por anterioridade). O princpio de igualdade, regendo a atuao do
Amor e do dio, resulta num processo cclico, que oscila entre um estado de
mxima juno (obra do Amor) e de mxima separao das razes (obra do
dio). O processo cosmognico repete-se indefinidamente e representa, assim,uma perene tenso entre o Um e o Mltiplo. Da alternncia da supremacia ora
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do Amor, ora do dio, surgem as quatro fases que Empdocles descreve em
Sobre a Natureza: a primeira, pleno domnio do Amor, determina a existncia
de um todo homogneo e contnuo, semelhana do ser de Parmnides, e
formado pela completa fuso das razes; na segunda, devido atuao crescentedo dio, as razes, j em parte distanciadas, constituem um todo onde se
defrontam foras antagnicas e equivalentes; a terceira fase a do domnio
pleno do dio, que estabelece quatro provncias perfeitamente distintas a da
gua, a do ar, a da terra e a do fogo; na quarta fase o Amor vai reconquistando a
supremacia que perdera e o conjunto volta a ser uma unidade em tenso (como a
concebida por Herclito).Do ponto de vista estritamente fsico, a concepo de Empdocles da
maior importncia. O princpio de isonomia, que impe a compensao cclica
das aes de Amor e dio, resulta na adoo da doutrina do eterno retorno
doutrina que contm em si a idia do equilbrio relativo entre as foras do
universo e a da conservao perfeita de sua energia. Alm disso, a formao do
universo atual como resultado da progressiva separao das razes levaEmpdocles a formular uma concepo evolucionista, na qual j aparece a noo
de "sobrevivncia dos mais aptos".
A constituio do universo sendo toda ela regida pelo princpio de
isonomia, tambm o organismo humano estaria sustentado pelo equilbrio entre
os opostos. Nesse ponto, Empdocles teria seguido a linha mdica de Alcmon
de Crotona, pitagrico, que explicava o organismo humano semelhana de um
Estado no qual a isonomia das foras em oposio corresponderia sade,
enquanto a doena seria devida preponderncia monrquica de um dos
elementos que integram o corpo. Mas Empdocles vai alm: para ele a igualdade
democrtica era o princpio que dirigia todo o cosmo, desde sua gnese. Por
isso, o principal papel do filsofo seria o de lutar por democratizar a polis,
integrando-a na lei universal.
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Relatos fantasiosos apresentam diferentes verses sobre a morte de
Empdocles. Um deles diz que o filsofo ter-se-ia lanado cratera do vulco
Etna. Mais provvel, porm, que, por motivos polticos, tenha sido banido de
sua cidade, indo acabar seus dias no Peloponeso.
EM TUDO UMA PORO DE TUDO
Fruto de uma ousadia intelectual que para existir requeria a libertao do
jugo da tradio para neg-la ou reinterpret-la racionalmente , a filosofia
despontara, na Grcia, primeiro nas regies perifricas, na Jnia ou na Magna
Grcia, nessas fronteiras polticas e culturais que separavam o mundo helnico
de outros povos e outras tradies. Ali, em cidades-Estados mais recentes e
dinmicas questiona-se a mentalidade arcaica. Enquanto isso, a pennsula grega
desenvolvia-se poltica e socialmente alicerada em valores que apenas
indiretamente recebiam o influxo da novidade filosfica nascida nas colnias:
Atenas chegou fase democrtica sem ter gerado um nico filsofo. E aindaperseguiu aquele que primeiro para l se transferiu: Anaxgoras.
Nascido em Clazmena, aproximadamente em 500-496 a.C., Anaxgoras
levou para Atenas as idias novas que estavam sendo produzidas na Jnia. Em
Atenas tornou-se amigo do grande lder poltico Pricles, mas nem essa amizade
livrou-o do processo que acabou por for-lo a abandonar a cidade. Aos olhos
dos atenienses, a novidade filosfica pareceu um escndalo e uma impiedade.Historicamente comeou com Anaxgoras o processo que Atenas moveu contra
a filosofia e que concluir, mais tarde, com a condenao morte de Scrates.
Reformulando a linha de pensamento jnico, Anaxgoras escreveu, em
prosa, uma obra que tentava, como j o fizera Empdocles, conciliar a doutrina
eletica de uma substncia corprea imutvel com a existncia de um mundo
que apresenta a aparncia do nascimento e da destruio. Para isso, logo nosprimeiros fragmentos que restaram de seu livro (segundo a ordenao dada por
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Diels), Anaxgoras introduz a noo do infinitamente pequeno: "Todas as coisas
estavam juntas, infinitas ao mesmo tempo em nmero e em pequenez, porque o
pequeno era tambm infinito". Essa idia, contrria concepo da extenso no
pitagorismo primitivo (que admitia a extenso como composta de unidadesindivisveis), torna-se fundamental na cosmogonia e na cosmologia de
Anaxgoras. A tese de que "em cada coisa existe uma poro de cada coisa"
(frag. 11) sustenta-se na divisibilidade infinita.
O universo atual constitui-se, segundo Anaxgoras, a partir de um todo
originrio no qual todas as coisas estavam juntas e "nenhuma delas podia ser
distinguida por causa de sua pequenez". O movimento e a diferenciao ssurgem nesse conjunto aparentemente homogneo devido interferncia do
Esprito (Nous). Mas, na verdade, oNous uma corporeidade sutil e sua ao
de natureza mecnica: move e separa os opostos (frio-quente, pesado-leve etc.)
que inicialmente estavam juntos. Devido a essa ao que surgem os seres
diferenciados. A ao doNous decorre de uma caracterstica que lhe peculiar:
a imiscibilidade, que lhe garante a pureza. Afirma Anaxgoras: "Em todas ascoisas h uma poro do Nous e h ainda certas coisas nas quais o Nous est
tambm" (11 D). Sobre uma matria divisvel ao infinito, o Nous exerce apenas
uma funo motora inicial (o que ser criticado pelo Scrates do Fdon de
Plato), produzindo na mistura original composta por todas as coisas juntas um
movimento rotatrio, que se expande por razes meramente mecnicas e
ocasiona o surgimento do universo. Todavia, "h coisas nas quais oNous
est
tambm" o que marcaria a distino, para Anaxgoras, entre seres animados
e seres inanimados. Dentre os seres animados, animais e vegetais, o homem se
destaca como o mais sbio. Mas sua forma de conhecer no pode depender do
Nous, que, sempre idntico a si mesmo, o mesmo em todos os seres animados.
A posio de Anaxgoras diante do problema do conhecimento revela ento
grande originalidade: os graus de inteligncia manifestados pelos seres
animados dependem no do Nous presente neles, mas da estrutura do corpo a
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que o Nous est ligado sem se misturar. Segundo o depoimento de Aristteles,
Anaxgoras teria afirmado que "o homem pensa porque tem mos", tese que
mais tarde ser combatida (inclusive pelo prprio Aristteles), quando se
intensificar, na sociedade grega, o preconceito contra o trabalho manual,geralmente atribudo a escravos.
TOMOS, VAZIO, MOVIMENTO
As concepes cosmolgica e matemtica do pitagorismo primitivo eram
dependentes da noo de nmero entendido como sucesso de unidades
descontnuas, discretas. Mas permanecia uma questo que comprometia a
coerncia da viso pitagrica e que Zeno de Elia assinalou: a do "intervalo"
que separaria as unidades. Esse intervalo s poderia ter, no mnimo, o tamanho
de uma unidade (mnimo de extenso e de corpo); assim, o nmero das unidades
de extenso "crescia" e cada coisa tendia a tornar-se infinita. Essa aporia que
Zeno formula ao pitagorismo parece sugerir que a coerncia que se buscavapara as cosmogonias, desde Tales, dependia no apenas da descoberta de um
processo racional de gerao das coisas, como tambm da modificao de certas
noes fundamentais, particularmente a de "intervalo" entre as coisas e entre as
unidades que as comporiam. Isto , estava a exigir a reformulao da noo de
espao. Essa reformulao foi, por certo, a principal contribuio da escola
atomista ao desenvolvimento do pensamento cientfico e filosfico. Segundo atradio, a escola teve incio com Leucipo (de Mileto ou de Elia), mas
conheceu a plena aplicao de seus postulados com Demcrito de Abdera. Mais
tarde, as teses atomistas iro ressurgir com Epicuro e Lucrcio, no perodo
helenstico da cultura grega.
Quase nada se sabe sobre a vida de Leucipo: alguns autores chegaram
mesmo a pr em dvida sua existncia. Todavia, uma tradio que remonta a
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Aristteles atribui a esse contemporneo de Empdocles e Anaxgoras (meados
do sculo V a.C) a criao da teoria atomista.
Partindo de colocaes do eleatismo particularmente de que a
afirmao do movimento pressupe o no-ser , Leucipo e Demcrito teriamconcludo que exatamente porque o movimento existe (como mostram os
sentidos), o no-ser (corpreo) existe. Afirma-se, assim, pela primeira vez, a
existncia do vazio. E nesse vazio que se moveriam os tomos, partculas
corpreas, insecveis (indivisveis fisicamente, embora divisveis
matematicamente). Os tomos apresentavam ainda outras caractersticas: seriam
plenos (sem vazio interno); em nmero infinito; invisveis (devido pequenez);mveis por si mesmos; sem nenhuma distino qualitativa; apenas distintos por
atributos geomtricos de forma, tamanho, posio (comoNse distingue de Z)
e, quando agrupados, distintos pelo arranjo (comoANse distingue deNA). Todo
o universo estaria, portanto, constitudo por dois princpios: o contnuo
incorpreo e infinito (o vazio), e o descontnuo corpreo (os tomos). Rompe-se,
desse modo, o monismo corporalista, que vinha sendo um pressuposto dasdiversas cosmogonias e cosmologias gregas.
Parece certo que Leucipo e Demcrito admitiam que o movimento
primrio dos tomos seria em todas as direes, como o da poeira que se v
flutuar no ar, se uma rstia penetra num ambiente escuro. E lgico que assim
fosse, j que, dispersos no vazio, os tomos no teriam nenhuma direo
preferencial.
A movimentao dos tomos no vazio faria com que os maiores ficassem
mais expostos aos impactos dos demais; alm disso, sendo dotados das mais
diversas formas, eles no apenas se chocariam como tambm poderiam se
engatar, produzindo agrupamentos. A continuao dos impactos poderia ento
ocasionar o aparecimento, em vrios pontos, de vrtices ou turbilhes,
semelhana de redemoinhos, nos quais os corpos maiores (tomos ou
agrupamentos de tomos) tenderiam para o centro. Seria esse o comeo de um
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universo. Outros poderiam ser produzidos sucessiva ou simultaneamente,
sempre devido a causas mecnicas.
A TICA DO MECANICISMO
Muito pouco se sabe sobre a vida de Demcrito. Seu nascimento em
Abdera situado em cerca de 470 a.C, e sua morte, aproximadamente, em 370
a.C. Vivia ainda, portanto, quando Plato fundou a Academia (c. 387 a.C). Sabe-
se, porm, que, alm de contribuir para a formulao do atomismo fsico,
aplicou-se principalmente soluo dos dois problemas que animavam a
filosofia de sua poca: o do conhecimento e o da tica.
Contemporneo de Scrates, Demcrito tambm busca uma resposta para
o relativismo dos sofistas, particularmente para o de seu conterrneo Protgoras,
que afirmava que "o homem a medida de todas as coisas". A defesa de um
conhecimento da physis e independente da "medida humana" feita, por
Demcrito, mediante a distino entre dois tipos de conhecimento: o "bastardo",que seria o conhecimento sensvel, a exprimir na verdade as disposies do
sujeito antes que a realidade objetiva; e o conhecimento "legtimo", que seria a
compreenso racional da organizao interna das coisas, ou seja, a compreenso
de que a physis do universo fragmentava-se na multido de tomos corpreos
que se moviam no vazio infinito. Da afirmar: "Por conveno (nomos) existe o
doce; por conveno h o quente e o frio. Mas na verdade h somente tomos evazio". Demcrito parece considerar, portanto, que o sujeito tem certa
autonomia no ato de conhecer, na medida em que "traduz" qualitativamente
(doce, amargo, frio, quente) o que no prprio objeto determinada constituio
atmica. Aquela autonomia, porm, seria restrita: a liberdade de convencionar
estaria limitada pelo tipo de tomo que compe o objeto.
Quanto tica, Demcrito, do mesmo modo que Scrates, considerava a"ignorncia do melhor" como a causa do erro. Guiado pelo prazer, o homem
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deveria saber distinguir o valor dos diferentes prazeres, buscando em sua
conduta a harmonia capaz de lhe conceder a calma do corpo que a sade
e a da alma que seria a felicidade.
Muitos intrpretes do pensamento de Demcrito indagam como odeterminismo mecanicista do atomismo pode pretender abrigar uma tica
normativa, que prescreve como deve sera conduta humana. Sculos mais tarde,
ao adotar a fsica atomista como sustentao para sua tica, Epicuro introduzir
certo arbtrio (o clinamen, o desvio nas trajetrias atmicas) no interior do jogo
das foras mecnicas. Em Demcrito isso, porm, no acontece: parece
simplesmente justapor a uma fsica estritamente mecanicista uma tica quepressupe valores norteadores da conduta humana. Em seu pensamento parecem
coexistir, assim, duas ordens de preocupaes, no necessariamente interligadas
e coesas: a do cientista que procura uma explicao racional para os fenmenos
fsicos e a do moralista, de ndole conservadora, que se empenha em traar
normas para a ao humana, tentando refrear a vaga de relativismo e de
individualismo que envolvia a sociedade grega, ameaando valores e instituiese a anunciar novos tempos e novas idias.
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PARA LER OSFRAGMENTOSDOSPR-SOCRTICOS
I Os primeiros filsofos gregos em geral escreveram pouco, e em
condies que a rigor nos so mal conhecidas. Por exemplo, no sabemos comointitularam seus escritos, ou mesmo se os intitularam, em circunstncias que
no eram certamente as de uma publicao regular. Foram eles que em parte
criaram essas circunstncias, pelas quais um livro naturalmente se apresenta
com o ttulo. O destes primeiros escritos, com as excees correspondentes a
uma incipiente variedade de produo, um s, talvez generalizado pela
tradio: "Peri Physeos", i. , "Sobre a Natureza". Isto , em lermos. Pois muito provvel que o que os gregos entendiam por "physis" absolutamente no
coincide com o que ns, com nossa cincia e nossa tradio, entendemos por
"natureza". E mesmo, sem exagerar, o nosso "sobre" que inadvertidamente
colamos a "natureza", conforme um velho hbito que em si abriga a
possibilidade da dissertao erudita, talvez no corresponda tambm ao "peri"
dos gregos, que concretamente um "em torno de", e portanto designa, comrelao ao escrito, e ao que est escrito, uma aproximao em crculo. Uma
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pequena diferena, que implica outra maior, a que abrange o nosso
comportamento e o dos gregos com a linguagem, com a fala.
II Os escritos desses primeiros filsofos na ntegra se perderam todos,
como a maior parte da riqussima literatura grega. O que sobrou deles forampequenos trechos, s vezes o correspondente a uma pgina, as vezes pedaos de
frases, s vezes uma palavra, inseridos em textos que sculos depois (IV sc.
a.C. - VI sc. d.C.) se escreveram e que, alguns por acaso, se salvaram.
Sobraram lambem muitas notcias sobre a vida e a doutrina deles. E sobretudo
sobrou, podemos dizer assim, uma interpretao que logo se tornou definitiva,
oficial, e que fixou a posio desses pensadores na histria da filosofia:enquanto primeiros filsofos, eles comearam um discurso racional, que
justamente por estar no incio forosamente no se desenvolveu em todos os
planos e articulaes, que ele s veio a alcanar numa poca de maturidade,
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