A TEORIA DO GLOBALISMO JURÍDICO E SEUS REFLEXOS NA SOBERANIA
DOS ESTADOS
Fernando Joaquim Ferreira Maia
Sumário: Introdução; 1. Os fundamentos do capitalismo financeiro, o neoliberalismo e nova
ordem internacional sob a “Doutrina Bush”; 2. A teoria do globalismo jurídico; 2.1. A
Escola Racional do Direito e o precursor do globalismo jurídico: Immanuel Kant; 2.2. O
globalismo kelseniano; 2.3. A radicalização habermasiana do globalismo: a legitimidade da
política intervencionista e a retomada da idéia do Estado universal; 2.4. Bobbio: a superação
do sistema de Vestfalia e a defesa de um “super” Estado universal; 3. A crítica de Zolo ao
globalismo jurídico, a alternativa zoloniana e a preservação da soberania estatal; 4.
Conclusões. Referências bibliográficas.
RESUMO
A opção por este tema se deu por ser o globalismo jurídico uma teoria original, de base
kantiana, continuada por Kelsen e revigorada à luz da nova ordem mundial, tentando
construir um direito cosmopolita, garantido por órgãos supra-nacionais jurisdicionais,
existindo poucos trabalhos que a analisem, considerando os condicionantes históricos, o
quadro internacional e a soberania dos Estados. Norteiam este trabalho as teses de Kelsen,
Habermas e Bobbio, a crítica de Danilo Zolo a essas teses e o estudo dos aspectos jurídicos
do capitalismo contemporâneo. Seu objetivo é analisar o globalismo jurídico sob a nova
ordem internacional e seus reflexos na soberania dos Estados. Outrossim, demonstrar-se-á,
com este estudo, que a tese globalista pode conduzir a uma legitimação da soberania das
grandes potências em detrimento da soberania dos demais Estados e que a construção de um
direito cosmopolita deve partir da preservação da soberania dos Estados e atender às suas
condicionantes históricas. Kant, universalizando o direito, define-o como o conjunto das
condições pelas quais a liberdade de cada um co-existe com a liberdade dos demais,
segundo uma lei universal de liberdade, e que o objetivo da humanidade é o Estado único.
Kelsen, partindo de Kant, defende a existência de uma única ordem jurídica, pela qual o
ordenamento dos Estados é parte do ordenamento internacional, devendo o direito
internacional prevalecer para garantir o respeito aos valores humanos. Habermas entende o
direito cosmopolita como o desenvolvimento do Estado de direito, cabendo aos órgãos
internacionais assegurar a paz mundial. Bobbio defende o pacifismo jurídico, criando-se um
Estado universal, com autoridade supra-nacional. Zolo opõe a essas posições a diversidade
político-econômica mundial, a hierarquia da ONU e sua monopolização pelas grandes
potências, além da ausência de uma sociedade civil internacional. A metodologia adotada
neste artigo será a pesquisa bibliográfica, dando-se atenção às experiências de
cosmopolitização do direito na Europa. De início, enfocar-se-á o capitalismo atual e o
neoliberalismo, pois, como o pensamento jurídico ocidental nasce na economia de mercado,
deve-se partir do entendimento sobre o capitalismo e a nova ordem internacional. Depois,
será revisitado o direito de Kant e analisado o globalismo de Kelsen, Habermas e Bobbio.
Analisar-se-ão, também, as teses críticas do globalismo jurídico. Por fim, abordar-se-ão as
especificidades e a soberania dos Estados, enfocando as relações entre estes e o impacto do
globalismo jurídico.
Palavras-chave: GLOBALISMO JURÍDICO – NOVA ORDEM MUNDIAL – DIREITO
INTERNACIONAL
ABSTRACT
This subject was chosen due to the fact that juridical globalism is an original theory, based
on Kantianism, carried on by Kelsen and invigorated by the new world order, that is, it is
trying to build up a cosmopolitan Law, guaranteed by juridical public agencies. Then, there
are few researches and analysis studying it, above all, taking into account historical
variables, international outlook and the sovereignty of States. The present article is based on
Kelsen, Habermas and Bobbio´s thesis, besides, Danilo Zolo´s critics to them, and a study
on the juridical aspects of contemporary capitalism. The main aim is to analyze the juridical
globalism under the new international order and its reflections on the sovereignty of States.
On the other hand, this article shows that the globalist thesis can lead to the legitimacy of
powerful countries’ sovereignty in detriment to the sovereignty of others. Also, building a
cosmopolitan Law should start by preserving the sovereignty of States and attending their
historical aspects and variables. Kant, by universalizing Law, defines it as a set of conditions
by which one’s freedom co-exists together with others, according to a universal law of
freedom, and the main purpose of mankind is the supreme civil power, State. Kelsen, based
on Kant, defends the existence of one and only juridical order, by which the State order is
part of an international one as well, however, the international law should prevail in order to
guarantee the respect to human values. Habermas sees the cosmopolitan Law as the
development of Law status; as a result, the international public agencies should maintain and
guarantee world peace. Bobbio defends juridical pacifism, by creating a universal State,
under supra national authority. Zolo is against these positions for world economical and
political diversity, UN and its monopolization by powerful countries, besides, the absence
of an international civil society. The methodology adopted in this article will be the
bibliographic research, eliciting those experiences of cosmopolitism of Law in Europe. First
of all, this article will focus on the present capitalism and the neoliberalism, since the East
juridical thought comes from market economy, so we should take into account the
understanding on capitalism and the new international order. Later on, we should revise
Kant´s Law and analyze Kelsen, Habermas and Bobbio´s globalism. In addition, we will
analyze the criticism on thesis about juridical globalism. Last, but not least, we will see into
specificities and sovereignty of States, focusing on the relationship between them and the
juridical globalism impact.
Keywords: JURIDICAL GLOBALISM – NEW WORD ORDER – INTERNATIONAL
LAW
Introdução
A opção pelo tema deste trabalho se deu por ser a teoria do globalismo jurídico uma
linha de pensamento original, dotada de princípios e valores kantianos, formulada no
período kelsenista, porém reinterpretada à luz do contexto social, econômico, político e
histórico em que o mundo está inserido dentro do quadro internacional de correlação de
forças. Contribuiu também para a opção deste tema o fato de o globalismo jurídico
representar uma tentativa de construção de um direito cosmopolita, materializado pela
universalização dos valores, sobrepondo estes aos ordenamentos dos Estados Nacionais,
através de órgãos centrais supranacionais com força jurisdicional plena. Outrossim, existem
poucos trabalhos dedicados ao tema que o analisem fora dos padrões kantianos, através de
uma visão dialética, contextualizada, tendo em conta a nova ordem internacional, a
soberania dos Estados e os condicionantes históricos em que estes estão inseridos, o que
justifica, também, o interesse na matéria.
Este trabalho está norteado pelas teses dos principais teóricos globalistas (Kelsen,
Habermas e Bobbio), que se inspiravam direta ou indiretamente nas formulações de
Immanuel Kant, pela crítica ao globalismo jurídico, sobretudo de Danilo Zolo (autor que
cunhou a expressão “globalismo jurídico”1), bem como pela análise do capitalismo
contemporâneo e o atual contexto em que este está inserido, tecendo, ainda, referências às
teses de outros pensadores globalistas e anti-globalistas aplicáveis ao tema em questão.
Aqui, buscou-se analisar o globalismo jurídico sob a nova ordem internacional e seus
reflexos na soberania dos Estados, demonstrando que a tese globalista pode conduzir a uma
legitimação da soberania das grandes potências em detrimento da soberania dos demais
Estados, com grave componente intervencionista, bem como que qualquer tentativa de
construção de um direito cosmopolita não pode partir de critérios universalizadores, mas sim
de critérios relativos, que preservem a soberania dos Estados e atendam ao contexto em que
estes estão inseridos.
Ademais, objetivou-se avaliar as linhas críticas fundamentais destas posições,
expressadas por Danilo Zolo, discutindo-se, por exemplo, as relações do globalismo jurídico
com a diversidade político-econômico-social e cultural no mundo, a estrutura hierarquizada
da ONU e sua monopolização pelas grandes potências, bem como a ausência de uma
sociedade civil internacional apta a absorver a criação de um organismo supranacional.
Optou-se por enfocar a teoria do globalismo jurídico nesta perspectiva em função, em
primeiro lugar, da escassez de trabalhos doutrinários acerca da nova rearrumação de forças
no mundo, sob o capitalismo financeiro, como fator determinante da tese globalista jurídica;
em segundo lugar, por ter o globalismo jurídico repercussão no processo de integração
latino-americana, o que por si só dá ao seu estudo jurídico certo destaque. Em terceiro lugar,
pelo fato de a teoria do globalismo jurídico ser majoritária entre os pensadores dos países
industrializados, sobretudo europeus.
1. Os fundamentos do capitalismo financeiro, o neoliberalismo e nova ordem
internacional sob a “Doutrina Bush”
1 ZOLO, Danilo. Uma critica realista del globalismo jurídico desde Kant a Kelsen y Habermas. Disponível em: www.ugr.es/~filode/pdf/contenido36_81.pdf. Acesso em: 08 jun. 2006.
O breve estudo, e em linhas gerais, do capitalismo financeiro faz-se necessário para
uma melhor compreensão do globalismo jurídico, visto que esta teoria tem caráter ocidental,
refletindo o processo histórico de evolução das leis objetivas de desenvolvimento do
capitalismo.
As leis do desenvolvimento econômico são leis objetivas, que refletem os processos do
desenvolvimento econômico, que se realizam independentemente da vontade dos homens.
Logo, as leis econômicas do capitalismo não só determinam aspectos ou processos isolados
do desenvolvimento da produção capitalista, mas todos os aspectos e processos mais
importantes desse desenvolvimento, determinando, além dos fatores mais gerais da
produção capitalista, a sua própria essência2.
A gênese do capitalismo financeiro está na grande acumulação de riqueza ocorrida no
capitalismo industrial, somada a uma saturação do mercado nas principais nações
industrializadas no mundo e a uma relativa elevação do custo da mão-de-obra nesses países,
verificada na segunda metade do século XVIII e consolidada como processo irreversível em
meados do século XIX.
De certo, tal situação impedia um reinvestimento do capital na economia, forçando
uma expansão desse mesmo capital além das fronteiras dos grandes centros industrializados
no mundo, pela qual o capital investido se fixava em determinada região, expropriava a
riqueza existente nesta e o reenviava às suas matrizes sediadas nos países industrializados
em forma de capital. A grande quantidade de capital acumulada por este processo pelas
principais centros capitalistas, possibilitava a estes, por sua vez, amenizar as contradições
sociais existentes, promover seu desenvolvimento e, em função da saturação dos mercados e
alto custo da força de trabalho, ter capital para reexportar.
É justamente esse ciclo que se denomina capitalismo financeiro. As características
básicas dessa etapa do capitalismo são as seguintes: 1) fusão do capital bancário com o
industrial, formando o capital financeiro; 2) livre comércio; 3) conversibilidade monetária;
4) propriedade privada dos meios de produção e livre iniciativa privada; 5) acumulação
privada da riqueza; 6) exploração do homem pelo homem; 7) leis econômicas do lucro
máximo, da livre concorrência e anarquia na produção e da mais-valia; 8) processo de
2 STÁLIN, Josef. Problemas econômicos do socialismo na URSS. São Paulo: Anita Garibaldi, 1990, pp. 3, 33-34.
acumulação de capital tendo por base a fixação de capitais dos centros industrializados nas
zonas periféricas3.
O capitalismo financeiro aparece como nova etapa do desenvolvimento do
capitalismo, consolidando as grandes formas de manifestação deste sistema (holding,
monopólio, oligopólio, trustes, cartéis, dumping), permitindo que os capitais investidos (seja
diretamente na economia, seja através da especulação de valores mobiliários) em
determinados países, expropriem o capital ali auferido para as suas matrizes localizadas nos
países ricos, gerando uma dependência econômica cada vez maior dos países periféricos em
relação aos países industrializados4. O capitalismo financeiro acaba, desta forma, por
mostrar que a lógica do capital, o lucro, conduz ao parasitismo ao elevar a exploração do
homem pelo homem e a mais-valia à escala internacional, nunca antes vista5.
Aqui, a autoproclamada globalização dos processos sociais, fenômeno recente do
capitalismo financeiro, ao liberar os mercados globais, contribui para o enfraquecimento da
soberania dos Estados mais débeis e pobres na cadeia capitalista, favorecendo a legitimação
dos interesses das grandes potências e das demais nações ricas e industrializadas no mercado
mundial.
Nos dias atuais o capitalismo financeiro experimenta um novo fenômeno, decorrente
diretamente da redefinição do quadro de correlação de forças internacional, chamado de
(neo) liberalismo.
A ideologia neoliberal funda-se no liberalismo clássico do século XVIII, que pregava o
livre mercado, com a dissociação mercado, capital e Estado, negando ao Estado qualquer
competência regulatória ou interventiva sobre a economia. O que diferencia o novo
liberalismo daquele do século XVIII é que o neoliberalismo admite uma competência estatal
regulatória mínima sobre o mercado, colocando-se como gestor em tudo aquilo que não
afete a livre concorrência e iniciativa privada.
Vale, aqui, para que se evitem equívocos, diferenciar neoliberalismo de globalização.
A globalização é um processo objetivo e irreversível de integração econômica, que não
altera a essência do capitalismo financeiro, impulsionado pela expansão do capital
planetário, materializada em nova revolução das técnicas de produção capitalistas,
atingindo, por exemplo, os transportes e comunicações, rotas de comércio e as técnicas de 3LÊNIN, V. I. O imperialismo, fase superior do capitalismo. Disponível em: http://www.vermelho.org.br/img/obras/imperialismo.doc. Acesso em: 07 jun. 2006. 4 GOMES, Luiz Marcos. O imperialismo, fase superior do capitalismo. Revista Princípios, São Paulo, nº 25, maio/jun./jul. 1992, p. 47. 5 MARTINS, Umberto. Lógica do capital leva ao parasitismo. Revista Princípios, São Paulo, nº 19, nov. 1990, pp. 58-60.
produção agrícolas6. Já o neoliberalismo se diferencia da globalização por ser não só
ideologia, mas, sobretudo, estratégia das grandes potências capitalistas industrializadas,
lideradas pelos Estados Unidos, com a intenção de intensificar a apropriação indébita da
riqueza produzida na periferia do capitalismo7.
O neoliberalismo, assim, como ideologia/estratégia, em síntese, aparece melhor
representado nos seguintes fundamentos: 1) redução da intervenção estatal na produção,
com a limitação do Estado a um mero gestor do mercado; 2) transferência do lastro da
moeda dos países de terceiro mundo para a captação de divisas via reservas cambiais8; 3)
internacionalização/desnacionalização da economia dos países periféricos, mediante
inserção geral do capital estrangeiro no processo de produção; 4) livre comércio total,
mediante a redução, ou eliminação, de tarifas alfandegárias e sobrevalorização da moeda
local9; 5) criação de zonas de livre comércio que garantam o acesso das mercadorias
produzidas nos centros industrializados.
O “Consenso de Washington”, realizado em 1991, ao inaugurar a nova estratégia dos
Estados Unidos, sob os auspícios do neoliberalismo, nada mais fez que possibilitar que esta
expropriação de capital se operasse, também, através do capital especulativo. Este sistema
possibilita uma colossal transferência de riqueza das nações periféricas para as potências
financeiras, sem contudo alterar a essência da atual ordem mundial, aumentando, assim, os
já agudos males sociais do sistema, tornando inócua a tese globalista da pretensa resolução
de contendas entre os Estados, através de órgãos supranacionais jurisdicionais.
A nova orientação adotada pelos Estados Unidos em 1991, corroborada após a tragédia
de 11 de setembro de 2001 pela “Doutrina Bush”10, aproveitando a alteração no quadro de
correlação de forças a nível mundial, provocada pela queda da URSS e dos demais regimes
do leste europeu, redefiniu a estratégia dos Estados Unidos da América.
O fundamento desta estratégia é a intensificação da expropriação das riquezas dos
países pobres pelo capital financeiro norte-americano, orientada ideologicamente pela
doutrina neoliberal, procurando obter máximo proveito da supremacia militar americana
6 SCHLEE, Paula Christine. Política e globalização econômica: o relacionamento Estado-empresas transnacionais. In: CAUBET, Christian G. (Org.). A força e o direito nas relações internacionais: as repolarizações do mundo. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 55. 7 BELUZZO, Luiz Gonzaga. A economia do império e o império da economia no limiar do século XXI. Revista Princípios, São Paulo, nº 75, out./nov. 2004, p. 36. 8 Idem, 2004, pp. 33, 35. 9 JAKOBSEN, Kjeld. Notas sobre a política comercial dos EUA. In: BORGES, Altamiro (org.). Para entender e combater a ALÇA. São Paulo: Anita Garibaldi, 2002, pp. 99-101. 10 CORNELI, Alessandro. La dottrina Bush, l`ONU e l`ordine internazionale. Rivista Affari Esteri, Roma, nº 137, gennaio/febbraio/marzo, 2003, pp. 144, 146-147.
com o objetivo de superar a crise de superprodução em curso nos EUA, alimentada pelas
disputas econômicas com os outros países desenvolvidos, e retomar mercados estratégicos
perdidos para a União Européia. Constituem os eixos principais desta estratégia a criação de
zonas aduaneiras ou de livre comércio; a transferência do lastro da moeda dos países de
terceiro mundo para a captação de divisas via reservas cambiais11; o desmonte das empresas
nacionais dos países periféricos; a redução da intervenção estatal direta na atividade
produtiva dos países pobres12; a concentração de efetivos militares e ampliação das bases
militares americanas em regiões estratégicas do globo.
Nos aspectos acima levantados se destaca a “Doutrina Bush”. De fato, a “Doutrina
Bush” surge como consolidação das linhas básicas do “Consenso de Washington”, mas
também como reação concreta do capital americano à expansão político-econômica dos
demais centros financeiros internacionais no mercado global, tendo como marco inicial os
acontecimentos de 11 de setembro de 200113.
A par da necessidade de se intensificar a expropriação de riquezas das nações
periféricas pelas nações ricas, tendo por base a ação do grande capital internacional na
economia destes países e, como parâmetros, a estratégia posta no “Consenso de
Washington”, a “Doutrina Bush” se orienta pelos seguintes eixos: 1) unificação das políticas
interna e externa americanas, com a defesa clara de um mundo unipolar, com centro
decisório em Washington14; 2) equiparação do interesse nacional com a ordem
internacional15; 3) legitimidade da política intervencionista americana, preventiva ou não,
além dos limites da jurisdição do Estado nacional americano, com a finalidade de garantir os
interesses deste Estado16; 4) defesa de uma ordem internacional calcada nos valores
ocidentais17, bem como nos fundamentos do capitalismo18; 4) exploração de todas as
possibilidades do uso da superioridade militar americana para efetivar os interesses dos
Estados Unidos além de suas fronteiras.
11 SOUZA, Renildo de. A Ásia na crise do capitalismo contemporâneo. Revista Princípios, São Paulo, n º 48, fev./mar./abr. 1998, pp. 21-23. 12 LIMA, Haroldo.Sobre as privatizações no Brasil. Revista Princípios, São Paulo, n º 48, fev./mar./abr. 1998, pp.10-12. 13 MONAL, Isabel. Terrorismo y amenazas imperialistas. In: CACHI, Camilo Valqui; GRIMALDO, José Gilberto Garza; ORTEGA, Jorge Alberto Sánchez (Org.). 11 de setembro: las caras de la globalización. Disponível em: http://gaiaxxi.trota-mundos.com/libro11s.pdf. Acesso em: 09 jun. 2006. 14 CORNELI, op. cit.., 2003, p. 144. 15 Idem,ibidem, p. 146. 16 BUSH, George W. La nuova strategia degli Stati Uniti. Rivista Affari Esteri, Roma, nº 137, gennaio/febbraio/marzo 2003, p. 21. 17 Idem, ibidem, pp. 20, 22. 18 BUSH, George W. Gli Stati Uniti e la democrazia in Iraq, in medio oriente e nel mondo. Rivista Affari Esteri, Roma, nº 141, gennaio/febbraio/marzo 2004, pp. 60-61, 64, 66, 68-69.
Por fim, entende-se que o globalismo jurídico se adequa aos fins da orientação da
“Doutrina Bush” no cenário internacional. De fato, o pensamento globalístico jurídico se
liga por proposições e fundamentos com o pensamento e raízes do novo liberalismo dentro
da lógica do capitalismo financeiro. O certo é que a nova ordem internacional cria impasses
para a efetivação do globalismo jurídico, tornando ilusórias suas propostas e, ao mesmo
tempo, havendo perigo de estas degenerarem em fortalecimento da soberania das grandes
potências ocidentais, particularmente os Estados Unidos, e intervenção destas nos demais
Estados, independentemente do nível de desenvolvimento destes.
2. A teoria do globalismo jurídico
2.1. A Escola Racional do Direito e o precursor do globalismo jurídico: Immanuel
Kant
A idéia de um direito universal, supranacional, imperativo sobre o direito dos Estados,
garantidor de uma paz duradoura entre as nações é antiga. Desde Platão, passando por
Grócio, Crucé, indo até Saint-Pierre, já se colocava o problema da necessidade de um direito
universal legitimador da paz entre os Estados. Porém, foi na Escola Racional do Direito, de
base jusnaturalista, que a tese de um direito cosmopolita, fundamento do globalismo
jurídico, encontrou grande desenvolvimento.
A Escola Racional do Direito defendia a preservação dos direitos naturais do homem,
sobretudo os direitos de liberdade e igualdade, preconizando que o Estado fosse concebido e
constituído na ordem jurídica para garantir estes direitos. Aqui, o Estado deveria obedecer
ao preceito do reinado dos fins, que considerava o homem como um fim em si mesmo e que
a vontade não está submetida a nenhuma lei, sendo autolegisladora.
Immanuel Kant oferece as bases de um direito universal válido e exigível para todos os
Estados ao definir o direito como o conjunto das condições pelas quais a liberdade de cada
qual pode co-existir com a liberdade dos demais, segundo uma lei universal de liberdade, e a
idéia de que o objetivo da humanidade é a constituição de um Estado único.19 Observa-se o
valor que Kant dá ao homem, entendendo que os atos humanos são determinados a título de
acontecimentos históricos, mas, criticamente, são fenômenos da liberdade, abrangendo uma
significação conclusiva no conjunto da humanidade.
19 AFTALIÓN, Enrique R.;VILANOVA, José. Introducción al derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995, pp.247-248.
Por isto, a idéia da paz, assegurada pela constituição do Estado universal, só pode ser
alcançada plenamente mediante a forma estatal da República, ou seja, através de um sistema
representativo do povo instituído para proteger os direitos próprios em seu nome, isto é, em
nome de todos os cidadãos reunidos e por meio de seus representantes. A divisão das
funções do Estado – executiva, judiciária e legislativa – e a unidade de ação dessas funções
são a base vital do organismo do Estado20, coibindo-se a intromissão de um no outro,
admitindo-se a existência de Constituição com divisão de funções do Estado. Esta
Constituição republicana deve assegurar a liberdade dos membros da sociedade, bem como
a submissão de todos à jurisdição estatal e a igualdade de todos sob a base do contrato
social21.
Para Kant, o fim natural da história é reunir todas as raças e as variedades da família
humana em instituição única de direito, o Estado, na qual os indivíduos poderão atingir a
máxima perfeição do seu destino próprio, sendo requisito para uma paz duradoura e
universal22.
O legado kantiano permeia hoje o moderno direito internacional. Princípios geralmente
aceitos como, por exemplo, a inexistência de artigos secretos capciosos nos tratados
internacionais, a proibição de contrair dívidas nacionais com o objetivo de interesses bélicos
exteriores e a não intromissão de um país nos assuntos internos do outro tem nítida origem
kantiana23.
Desta forma, Kant, ao defender a necessidade de um Estado único, introduz a raiz do
globalismo jurídico: a constituição de um direito universal garantido por órgãos
supranacionais, circunscrevendo o direito nacional dos Estados.
2.2. O globalismo kelseniano
Danilo Zolo afirma que Hans Kelsen, tendo formulações kantianas como base, defende
a existência de um único ordenamento jurídico, pelo qual o ordenamento dos Estados
Nacionais é apenas parte do ordenamento internacional. Sendo assim, o direito internacional
20 KANT, Emmanuel. A paz perpétua. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1936, p. 17. 21 Idem, ibidem, pp. 49-50. 22 Idem, ibidem, p. 11. 23 Idem, ibidem, p. 18.
deve prevalecer para garantir o respeito aos valores humanos, suprimindo a soberania dos
Estados24.
Kelsen sustenta que o ordenamento interno dos Estados dá juridicidade e validade ao
direito internacional, ao mesmo tempo recebendo deste também validade. É uma espécie de
validação mútua, unificada num único ordenamento jurídico cosmopolita. Por isto, as
normas de direito interno dos Estados Nacionais não podem estar em contradição com o
ordenamento internacional25.
A doutrina kelseniana justifica a obrigatoriedade de seguir o direito internacional
através de uma perspectiva metafísica: o direito internacional deve ser obedecido como
forma de se garantir a moral e a unidade do mundo, procurando alcançar uma comunidade
jurídica universal dos homens. A validade deste preceito é a ética que garante a unidade
jurídica, a chamada civitas maxima. É com base nisto que Kelsen liga o fundamento do
direito internacional, à comunidade jurídica universal, ao pacifismo e a uma espécie de
antiimperialismo, opondo-se às idéias individualistas-estatais e relativistas26.
Para Kelsen, a juridicidade do direito internacional está calcada na complexidade do
exercício ou ameaça da força. Por esta, a perfeição do sistema jurídico é medida pela
concentração do uso da força nos aparelhos estatais. Neste sentido, o Estado Nacional é um
sistema perfeito, pois suas relações intersubjetivas são garantidas pela força. Desta forma,
considerando que todo ordenamento estatal é parcial em relação à ordem internacional, o
ordenamento internacional só é jurídico quando suas normas emanam do uso da força27.
A noção de guerra justa está ligada à idéia jusnaturalista da ética, esta legitimando a
guerra no direito internacional, configurando-se como um instrumento coercitivo
introduzido pela ordem jurídica mundial contra quem viola suas normas. Assim sendo, a
guerra só é considerada justa se for ato de defesa ou reação diante de um ilícito
internacional, sendo conduzida pelo Estado ofendido ou por outros Estados que assistam
este. Tudo com base no ordenamento jurídico internacional. É a hipótese da justa causa
belli. Fora destes casos a guerra é considerada injusta28.
A igualdade formal dos Estados é requisito para a unidade do ordenamento jurídico
internacional, bem como do primado do direito internacional sobre o direito nacional. Para
Kelsen, a igualdade formal dos Estados só pode ser alcançada mediante um sistema jurídico 24 ZOLO, Danilo. I signori della pace: una critica del globalismo giuridico. Roma: Carocci, 1998, pp. 21-23. 25 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 374-377. 26 Idem, ibidem, pp. 359-360, 364-366. 27 Idem, ibidem, pp. 355, 359-361. 28 Idem, ibidem, pp. 357-358.
supranacional que delimite os âmbitos de validade das competências dos Estados,
impedindo ingerências de um na esfera do outro, ou regulando estas ingerências a certos
princípios universais e igualitários29.
Desta forma, é necessário fixar normas jurídicas que regulem os direitos e deveres dos
Estados, equiparando-os na comunidade jurídica. Só assim, à base do primado do direito
internacional, os Estados estarão no mesmo plano jurídico e poderão ser submetidos, como
entes autônomos, ao ordenamento internacional.
Por fim, a igualdade formal dos Estados é incompatível com a idéia de soberania
nacional. Os Estados como entes da comunidade jurídica devem ser titulares de direitos
iguais, equiparados na comunidade jurídica, na qual a liberdade estatal vem limitada pela
igualdade jurídica.
Em relação à subjetividade jurídica internacional, Kelsen sustenta que esta se estende
não só aos Estados, mas aos súditos destes, devendo o direito internacional regular as
atividades dos indivíduos. A extensão da subjetividade jurídica internacional aos cidadãos só
é possível pela negação da soberania dos Estados e pelo reconhecimento da unidade jurídica
e moral da humanidade. Desta forma, todos os indivíduos humanos devem obedecer as
normas internacionais, tendo o direito internacional, por isto, competência sobre as relações
dos Estados com seus cidadãos30.
O kelsenismo sustenta que a única forma de assegurar a paz é a união dos Estados em
um Estado mundial federal, dotado de poder de polícia, constituído com forças armadas dos
Estados Nacionais e submetido a um Parlamento mundial. Entende-se que este processo é
longo e deve ser feito por etapas, através de tratados contínuos entre os Estados, passando
pela constituição de organismos supranacionais solucionadores das contendas entre Estados
e garantidores da paz, do que é exemplo a União Européia e o Mercosul. A criação de uma
Corte Judicial permanente e de regras que estabeleçam a responsabilidade individual de
quem viole o direito internacional é fundamental para isto31.
Portanto, o globalismo jurídico kelseniano baseia-se em dois eixos: a paz universal,
garantida por um sistema jurídico internacional, este centralizado em alguns órgãos
supranacionais, e a resolução das contendas entre os Estados por uma corte judiciária
permanente dotada de força coercitiva.
29 KELSEN, Hans. Juízo sobre a tese de Umberto Campagnolo. In: KELSEN, Hans; CAMPAGNOLO, Umberto. Direito internacional e Estado soberano. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 134-135. 30 KELSEN, op. cit., 2003, pp. 355-356, 361, 363-364, 369-370. 31 Idem, ibidem, pp. 357, 364, 382, 385-386.
2.3. A radicalização habermasiana do globalismo: a legitimidade da política
intervencionista e a retomada da idéia do Estado universal
Habermas também entende que a idéia de um direito cosmopolita é o desenvolvimento
coerente do Estado de direito. Para ele, os organismos internacionais são responsáveis pela
paz mundial, devendo ser reforçados, ganhando força jurisdicional plena, sendo dotados
com força policial. A soberania dos Estados fica restringida naquilo que for regulado por
estes órgãos32.
De fato, a Habermas radicaliza em relação a Kelsen acerca da manutenção da paz,
entendendo que uma ordem cosmopolita justa e pacífica só pode ser aquela calcada nos
valores ocidentais universalizados, cabendo às grandes potências, particularmente aos EUA,
assumirem a garantia e defesa destes valores. Aqui, a criação de uma força policial junto à
ONU, que não só trate as contendas entre os Estados, mas procure garantir a democracia
nestes, é imprescindível. Diante da complexidade da sociedade ocidental, considera-se o
direito como dimensão normativa integradora social, distinto da política e da moral.
A teoria habermasiana, buscando a reintegração da política no cenário de debate de
grandes problemas coletivos, parte da defesa total do Estado Democrático de Direito,
centrando-se no problema da paz, dos direitos humanos, da cidadania universal e das tarefas
das instituições internacionais.
A questão dos direitos humanos integra a posição jurídica internacionalista
habermasiana. Aqui, defende-se uma política intervencionista. Os direitos humanos devem
ser assegurados por organismos supranacionais executivos e judiciários no âmbito da ONU,
punindo os Estados que os violem33. Na visão habermasiana, a universalização ocidental dos
direitos humanos, de cunho liberal e individualista, é justificada indiretamente pelo processo
histórico de colonização e dominação político-econômica e cultural da civilização cristã-
ocidental no mundo, disseminando a ideologia européia na periferia do planeta, bem como
criando condicionantes de legitimação e universalização do pensamento europeu nos demais
Estados. Ademais, o habermasianismo considera que à base do direito internacional
também deve estar a igualdade dos direitos individuais subjetivos, pela qual a criação de um
Tribunal Penal Internacional permanente é fundamental.
A doutrina habermasiana entende que só a criação de um Estado mundial, abarcando
as prerrogativas soberanas dos Estados Nacionais, dotado de uma ordem jurídica universal e
32 ZOLO, op. cit., 1998, pp. 49, 51-53. 33 HABERMAS, J. Más allá del Estado nacional. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1998, p. 169.
unitária, pode assegurar a paz e os direitos humanos. Aqui, a construção do Estado mundial
seria acompanhada pela compreensão latu sensu da cidadania, tornando-a cosmopolita,
também universal, unindo-a à cidadania nacional num todo social e político34.
Por fim, para Habermas, a garantia de uma ordem internacional justa e pacífica e a
proteção dos direitos fundamentais só podem ser asseguradas através de uma centralização
política internacional, da qual o Estado mundial é a expressão mais clara disto, e de um
ordenamento jurídico unitário e universal que inclua como sujeitos todos os homens
enquanto pessoas morais e englobe, em si, todos os outros ordenamentos.
2.4. Bobbio: a superação do sistema de Vestfalia e a defesa de um “super” Estado
universal
O globalismo jurídico de Norberto Bobbio é marcado pelo combate à idéia da guerra
moderna35. Para Bobbio, a guerra moderna é um fenômeno irracional e destrutivo, além de
injustificável moralmente. A guerra é inaceitável, seja como fator de progresso, seja como
fator de evolução técnico-científica.
Neste sentido, Bobbio critica a doutrina do justum bellum, ou da guerra justa, que
procura submeter a guerra a regras éticas. Para Bobbio, a guerra justa nega o pacifismo ao
admitir as finalidades éticas da guerra, além de conduzir a dubiedade diante da fragilidade
em se determinar o que vem a ser uma guerra de defesa e uma guerra de ataque36.
A teoria bobbiana guia-se na busca de um pacifismo jurídico, calcado na perspectiva
de uma reforma do direito e das instituições internacionais com base no princípio da
monopolização da força nas relações entre os Estados Nacionais.
Ressalte-se que o pacifismo jurídico de Bobbio tem base kantiana e hobbesiana,
procurando desenvolver o contratualismo numa perspectiva universalista e cosmopolita,
almejando a superação da soberania dos Estados e a constituição de um Estado mundial.
Aqui, usam-se as idéias de pactum societatis e de pactum subjectionis, sustentando que para
ultrapassar uma situação de anarquia e de guerra em direção a um sistema político ordenado
e pacífico é necessário que os Estados subscrevam um pacto conferindo a um terceiro a
função de regular coativamente as suas relações e contendas, garantindo a paz entre as
nações. A solução apresentada seria a criação de um Estado mundial, único e universal, de 34 ZOLO, op. cit., 2006. 35 BOBBIO, Norberto. Il problema della guerra e le vie della pace. Bologna: Mulino, 1979, pp. 31-35, 43-49, 65-70. 36 Idem,ibidem, pp. 55-56.
uma autoridade superior aos Estados, com competência para decidir as contendas entre estes
e de impor a sua decisão através da força. Esta autoridade mundial deve estar assentada em
princípios republicanos37, como condição para a realização do Estado de Direito e da
democracia, garantindo os valores supremos da liberdade dos cidadãos. Este Estado mundial
não pode ter um poder opressivo, devendo garantir que o sistema internacional seja uma
democracia mundial capaz de proteger os direitos humanos além das fronteiras dos Estados
e contra qualquer tentativa de se impor uma soberania absoluta.
Uma questão que Bobbio enfrenta é o problema da soberania dos Estados. O pacifismo
jurídico de Bobbio objetiva a superação do sistema dos Estados soberanos, materializado no
sistema de Vestfalia (segundo o modelo vestfaliano, a igualdade jurídica e a autonomia
normativa dos Estados são princípios incondicionados, impedindo o direito internacional de
regular os assuntos internos dos Estados e de proporcionar uma intervenção de um Estado
nos assuntos do outro38), atribuindo funções intervencionistas político-militares a um órgão
supranacional centralizado. Para Bobbio, a Organização das Nações Unidas representa a
ante-sala deste órgão supranacional centralizado. Aqui, a democracia deverá ser realizada no
interior das organizações internacionais, convivendo temporariamente com o princípio da
soberania dos Estados.
Para Bobbio, o problema da paz só pode ser assegurado pelo pacifismo jurídico, sendo
indispensável a criação de um super Estado mundial universal, submetendo os Estados já
existentes à sua autoridade.39 Neste sentido, só a concentração do poder militar em uma
suprema autoridade internacional pode assegurar a construção de um sistema internacional
mais seguro, ordenado e pacífico.
Desta forma, o pensamento bobbiano sustenta a necessidade de se atribuir um poder de
intervenção político-militar a um órgão supranacional como condição para a garantia das
resoluções das contendas entre os Estados nacionais, fundamental para o asseguramento de
uma paz estável e duradoura. Para Bobbio, é neste projeto de constituição de uma “super”
autoridade supranacional que está a raiz da superação da soberania estatal e da construção
do Estado mundial.
3. A crítica de Zolo ao globalismo jurídico, a alternativa zoloniana e a preservação da
soberania estatal
37 BOBBIO, Norberto. Il terzo assente. Torino: Edizioni Sonda, 1989, p. 9. 38 ZOLO, op. cit., 1998, p.113. 39 BOBBIO, N, op. cit., 1979, p. 80.
Danilo Zolo opõe-se ao globalismo jurídico, entendendo que a tese globalista tem
como pilar fundamental a hegemonia político-militar do ocidente, bem como assenta-se na
influência do processo de globalização político-econômica, de cunho liberal, em escala
mundial.
É justamente da redefinição do quadro de correlação de forças internacional, pelo qual
os Estados Unidos consolidam sua hegemonia no mundo e redefinem sua estratégia no pós-
guerra fria, assim como os demais centros financeiros capitalistas do mundo se consolidam
como potências político-econômicas emergentes, ameaçando e disputando o controle do
mercado global com os EUA, que se relança a velha teoria do globalismo jurídico40.
De fato, o fenômeno da globalização planetária é um vetor de transformação das
relações internacionais e põe em “xeque” a questão da soberania nacional, visto que dilata a
nível internacional as experiências, as comunicações e as interações culturais, expondo, ao
mesmo tempo, a política mundial à influência das forças produtivas capitalistas. Desta
forma, segundo Zolo, com a globalização, a economia política das nações está mais
influenciada pelas relações internacionais, o que compromete a solução adequada dos
problemas nacionais, face à prevalência dos interesses dos grandes centros financeiros do
capitalismo41.
Outrossim, a proteção das diversidades culturais e dos direitos subjetivos, bem como a
legitimação dos Estados como sujeitos de direito internacional fica comprometida com a
teoria globalista, pois estas questões exigem relações de soberania42.
Danilo Zolo, ao opor-se ao globalismo jurídico, sustenta que a influência da tese
globalista assenta-se no fato de que é uma filosofia do direito orientada a legitimar as
instituições ocidentais, não servindo de base a uma universalização de valores, pois não leva
em consideração os condicionantes materiais e históricos que determinam a formação e
desenvolvimento das diversas sociedades do globo43.
A filosofia do globalismo jurídico é dominada pela idéia kantiana, essencialmente
ocidental, de que o progresso da humanidade só é possível se alguns princípios éticos forem
colocados para todos os homens e forem impostos por uma autoridade supranacional que
transceda a pluralidade da ética e dos ordenamentos existentes. O pensamento zoloniano
40 ZOLO, Danilo. El espacio jurídico global. Disponível em: www.globalizacion.org/globalizacion/ ZoloEspacioJuridicoGlobal.htm. Acesso em: 30 dez. 2005. 41 Idem, ibidem. 42 Idem, op. cit., 1998, p. 124. 43 Idem, ibidem, pp. 133-134,
entende que a debilidade do globalismo jurídico consiste em que ele está ancorado no
jusnaturalismo clássico-cristão, associado a um teologismo metafísico, colocando o
fundamento da ordem jurídica na ética44.
De fato, a teoria do globalismo jurídico coloca o fundamento da comunidade jurídica
internacional na crença da qualidade moral do homem e na unidade moral do gênero
humano, desconsiderando a infraestrutura social em que as diversas nações estão inseridas,
dentro do quadro de correlação de forças mundial45.
Zolo busca construir uma teoria do direito internacional alternativa ao kantismo-
kelseniano e àquelas idéias assentadas na garantia da paz através da concentração do uso da
força em órgãos supranacionais e na perspectiva da guerra justa, propondo um esquema de
interpretação dos fenômenos a nível internacional, calcado numa compreensão dos
problemas mais relevantes e numa mínima capacidade de previsão dos seus
desenvolvimentos.
Desta forma, Zolo parte dos seguintes pontos de partida: 1) a defesa de uma teoria
impura do direito internacional; 2) a diferenciação estrutural dos ordenamentos jurídicos; 3)
uma generalização da teoria dos regimes jurídicos; 4) o combate a qualquer noção de guerra
justa; 5) a defesa de um direito supranacional mínimo46.
O pensamento zoloniano, ao se contrapor ao globalismo jurídico, busca a preservação
da soberania estatal, optando por uma linha de pesquisa etológica e antropológica,
considerando que, dentro da teoria geral dos sistemas, em situação de elevada complexidade
e de turbulência internacional é preferível conviver com um elevado nível de desordem do
que tentar impor uma ordem universal e perfeita47.
A doutrina zoloniana considera que, no âmbito internacional, a impuridade da teoria
jurídica se impõe face às características do seu objeto. No plano internacional as relações
entre os Estados são complexas, envolvendo variantes políticas, econômicas, sociais e
culturais marcadas por contradições com conjunções e interdependências normativas,
contidas nas prescrições jurídicas, de forma que uma filosofia do direito internacional tem
que colocar no seu centro estas múltiplas variáveis, fugindo de qualquer universalização.
Neste sentido, Zolo afirma que falta uma filosofia do direito internacional capaz de se opor à
hegemonia do pensamento kantiano e às suas interpretações. Desta forma, o pensamento
zoloniano defende uma filosofia do direito que construa as próprias categorias a partir da 44 Idem, ibidem, p. 134 45 Idem, op. cit., 2006. 46 Idem, op. cit., 1998, pp. 136-147. 47 Idem, ibidem, p. 137.
análise do contexto social, econômico, político e histórico em que as relações internacionais
estão inseridas dentro do atual quadro de correlação de forças, levando em consideração as
diversas ordens político-sócio-econômicas existentes no planeta, amparando a validade do
direito internacional em critérios relativos de verdade e de efetividade normativa48. Ressalte-
se que essa parece ser também a direção de alguns juristas brasileiros, a exemplo de João
Maurício Adeodato49. Além disto, esta filosofia deveria definir as relações entre as funções
da ordem internacional e a ordem dos Estados, estabelecendo uma técnica normativa que
tolere e concilie as diversas organizações sociais. Conseqüentemente, a teoria do direito
internacional não pode ser separada da política e da sociologia, devendo ser entendida como
multidisciplinar, tematizando as relações entre direito e poder e entre este e violência.
Danilo Zolo contesta as posições de cunho kelseniano, habermasiano e bobbiano, ao
defender a tese da pluralidade e da diferenciação estrutural dos ordenamentos jurídicos, pela
qual a qualidade jurídica do ordenamento internacional deve ser valorada pelas suas
funções, isto é, pela sua capacidade de efetivar sua pretensão normativa em relação aos
escopos que lhe são coletivamente assinalados50.
O zolonismo entende que se deve atribuir à ordem jurídica internacional uma tarefa
mais ampla do que aquela de concentração do uso da força e de obrigatoriedade da
jurisdição penal, consistindo na segurança coletiva, mas, sobretudo na ritualização do
exercício da força, sendo neste parâmetro que se deve medir a efetividade e a juridicidade do
ordenamento. Para Zolo, a estrutura hierarquizada da ONU, centralizada no Conselho de
Segurança, impede isto, visto que garante na realidade as decisões às poucas potências que
têm o direito de veto no referido Conselho51.
A doutrina zoloniana também enfrenta o problema das fontes do direito internacional,
defendendo que se deva considerar o direito em geral como um fenômeno de natureza
sistêmica, dando-se atenção à função que os processos costumeiros, consensuais e pactuados
desenvolvem na formação do direito internacional. Desta forma, uma teoria do direito
internacional deve generalizar a teoria dos regimes jurídicos, esta afirmando que muitas
questões são disciplinadas e sancionadas unitariamente pela maioria dos atores
internacionais sem o uso da força militar.
48 Idem, op. cit., 1998, p. 138. 49 ADEODATO, João Mauricio. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 63-64. 50 ZOLO, op. cit., 2006. 51 Idem, op. cit., 2005.
Danilo Zolo rechaça a teoria da guerra justa, afirmando ser ela incompatível com o
direito e a ética, bem como questiona a capacidade dos Tribunais penais internacionais de
cumprir sua função imparcialmente e com resultados satisfatórios, em face da
hegemonização das grandes potências e a ausência de uma filosofia da pena que ultrapasse a
visão de sacrifício do condenado.
A posição zoloniana entende que a guerra moderna não pode ser interpretada como
uma sanção jurídica de direito internacional, sendo evento incompatível com qualquer plano
ético ou jurídico. A função primária do direito internacional é a de sobrepor o exercício do
poder internacional ao respeito de regras gerais e de critérios proporcionais,
discriminatórios e de dosagem no uso da força. Assim sendo, a guerra deve ser considerada
como um fenômeno incompatível com o direito, devendo qualquer filosofia moderna e
realística do direito internacional rejeitar qualquer idéia ou proposição que tome como
fundamento qualquer doutrina que advogue o uso da guerra52.
O pensamento zoloniano aponta à necessidade do direito internacional objetivar à
construção de uma sociedade jurídica que tenha como função coordenar os sujeitos da
política internacional segundo uma lógica de subsidiariedade normativa relativa às
competências dos ordenamentos estatais. Ou seja, Zolo defende um direito supranacional
mínimo, consistindo na concessão de pequenos poderes a órgãos centralizados
supranacionais, consentindo um recurso mínimo às intervenções coercitivas, autorizadas
excepcionalmente, com base no princípio da igual soberania de todos os seus membros53.
Por este sistema, seguindo uma lógica federalista aplicada às relações entre
competências normativas nacionais e internacionais, haveria um amplo espaço às funções
jurisdicionais nacionais, sem o objetivo de substituí-las ou restringi-las através de órgãos
supranacionais.
Por fim, na prática, este direito supranacional mínimo, tal qual sustentado por Zolo,
conduziria a uma ordem internacional fundada numa regionalização multilateral,
preservando a soberania estatal, visto que atenderia aos condicionantes históricos e materiais
dos diversos Estados do globo.
4. Conclusões
52 Idem, op. cit., 1998, p. 143. 53 Idem, op. cit., 2006.
O globalismo jurídico é importante para os brasileiros, visto que esta tese tem grave e
profunda repercussão nas relações internacionais, sobretudo em relação à autodeterminação
nacional. Neste sentido, entende-se que, dentro do atual quadro de correlação de forças, as
posições de Danilo Zolo são as mais favoráveis à legitimação da política externa brasileira.
Isto se deve ao fato de que o internacionalismo zoloniano advoga um direito internacional,
não totalmente ocidentalizado, calcado num pluralismo jurídico internacional, que leve em
consideração as particularidades dos sistemas nacionais e a sua preservação, o repúdio a
qualquer forma desregrada de intervencionismo e de emprego da força militar, abstendo-se
de juízos acerca de categorias universalizantes.
Desta forma, surgem condicionantes de legitimação dos objetivos geopolíticos do
Brasil, criando-se amplas possibilidades de exploração das contradições entre as nações
desenvolvidas, favorecendo alianças com parceiros estratégicos, como por exemplo, entre o
Mercosul e a União Européia e outros blocos, objetivando obter vantagem real no quadro de
forças mundial, efetivando os interesses nacionais na economia global e contribuindo para a
preservação da soberania brasileira.
Por fim, hoje, compreender o moderno pensamento ocidental, aqui, materializado na
teoria do globalismo jurídico, é condição sine qua non para uma correta orientação da
política externa brasileira e da defesa objetiva, habilidosa e conseqüente da soberania
nacional.
Referências bibliográficas ADEODATO, João Mauricio. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. AFTALIÓN, Enrique R.;VILANOVA, José. Introducción al derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995. BELUZZO, Luiz Gonzaga. A economia do império e o império da economia no limiar do século XXI. Revista Princípios, São Paulo, nº 75, pp. 31-37, out./nov. 2004. BOBBIO, N. Il problema della guerra e le vie della pace. Bologna: Mulino, 1979. _______. Il terzo assente. Torino: Edizioni Sonda, 1989. BUSH, George W. “Gli Stati Uniti e la democrazia in Iraq, in medio oriente e nel mondo”. Rivista Affari Esteri, Roma, nº 141, pp. 58-69, gennaio/febbraio/marzo 2004. _______. “La nuova strategia degli Stati Uniti”. Rivista Affari Esteri, Roma, nº 137, p. 20-24, gennaio/febbraio/marzo 2003.
CORNELI, Alessandro. “La dottrina Bush, l`ONU e l`ordine internazionale”. Rivista Affari Esteri, Roma, nº 137, pp. 144-150, gennaio/febbraio/marzo 2003. GOMES, Luiz Marcos. "O imperialismo, fase superior do capitalismo". Revista Princípios, São Paulo, nº 25, pp. 46-53, maio/jun./jul. 1992. HABERMAS, J. Más allá del Estado nacional. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1998. JAKOBSEN, Kjeld. Notas sobre a política comercial dos EUA. In: BORGES, Altamiro (org.). Para entender e combater a ALÇA. São Paulo: Anita Garibaldi, 2002, pp. 99-118. KANT, Emmanuel. A paz perpétua. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1936. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _______. Juízo sobre a tese de Umberto Campagnolo. In: KELSEN, Hans; CAMPAGNOLO, Umberto. Direito internacional e Estado soberano. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 111-137. LÊNIN, V. I. O imperialismo, fase superior do capitalismo. Disponível em: http://www.vermelho.org.br/img/obras/imperialismo.doc. Acesso em: 07 jun. 2006. LIMA, Haroldo."Sobre as privatizações no Brasil". Revista Princípios, São Paulo, n º 48, pp.10-16, fev./mar./abr. 1998. MARTINS, Umberto. "Lógica do capital leva ao parasitismo". Revista Princípios, São Paulo, nº 19, pp. 58-65, nov. 1990. MONAL, Isabel. Terrorismo y amenazas imperialistas. In: CACHI, Camilo Valqui; GRIMALDO, José Gilberto Garza; ORTEGA, Jorge Alberto Sánchez (Org.). 11 de setembro: las caras de la globalización. Disponível em: http://gaiaxxi.trota-mundos.com/libro11s.pdf. Acesso em: 09 jun. 2006. SCHLEE, Paula Christine. Política e globalização econômica: o relacionamento Estado-empresas transnacionais. In: CAUBET, Christian G. (Org.) A força e o direito nas relações internacionais: as repolarizações do mundo.Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, pp. 53-70. SOUZA, Renildo de. "A Ásia na crise do capitalismo contemporâneo". Revista Princípios, São Paulo, n º 48, pp. 21-26, fev./mar./abr. 1998. STÁLIN, Josef. Problemas econômicos do socialismo na URSS. São Paulo: Anita Garibaldi, 1990. ZOLO, Danilo. El espacio juridico global. Disponível em: www.globalizacion.org/globalizacion/ZoloEspacioJuridicoGlobal.htm. Acesso em: 30 dez. 2005. _______. I signori della pace: una critica del globalismo giuridico. Roma: Carocci, 1998.
_______. Uma critica realista del globalismo jurídico desde Kant a Kelsen y Habermas. Disponível em: www.ugr.es/~filode/pdf/contenido36_81.pdf. Acesso em: 08 jun. 2006.
Top Related