8/19/2019 A Sala Está Imóvel
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A sala está imóvel. Apenas a cortina esboça um roçar enfadado, desprentecioso. Lambe os
pés de uma mesa pequena com longas pernas. Tampo de mármore singelo erguido por belas
colunas de madeira escura, esculpidas em formas fluidas que dão um tom de importância
dita mesa. !as estes ares de pedestal logo se perdem quando percebemos que não leva nada
em cima de si. Aliás, pelo pó fino acumulado sobre o tampo se poderia supor que a muito
nada repousa sobre aquela superf"cie fosca. #ssa imagem sem bril$o compun$a com os
leves desgastes do sofá ao lado da pequena mesa. %m sofá gordo, a estourar de espuma sob
o tecido pu"do. &oluptuoso em seus braços roliços, dei'ava entrever naquela abundância
um ar de tédio e decrepitude vindoura. !au agouro e'pressado em suas manc$as de uso,
quase invis"veis, mas que l$e roubavam qualquer c$ance de viço e vigor. ( sofá parecia
cansado daquele estar perpétuo. )ansado de ser sentado pelas mesmas bundas dias a fio.
Ter as nádegas impressas em sua antiga macie* apenas atestava a crescente dure*a quetomava conta do que fora antes conforto. ( abandono e o esquecimento eram apenas uma
questão de tempo. %ma espera sentada na sala de estar. Toda sala de estar tediosa tem um
relógio que bate as $oras para lembrar+nos da insuportável sucessão dos instantes va*ios.
Tic+tac oco que ecoa no ar empoeirado. estas mesmas salas sempre $á algumas fileiras de
bibel-s amedrontadores. umbis de porcelana que apenas recordam fatos e pessoas
passadas. /e um mau gosto delicado, desfilam sua fragilidade afetiva em um corte0o
f1nebre. #nterram as lembranças dos seus donos em estantes atul$adas de remorsos.
#nterram no fundo de uma memória que então 0á não pode esquec2+los, ainda que se0am
apenas uma imagem esmaecida do que foram um dia. A estante com verni* riscado,
abarrotada com os restos de uma vida, mirava soberana o sofá condo"do pela espera
marcada no tecido pu"do. 3ofá gordo, estante abarrotada e a mesin$a avara, miserável e
infeli* em sua simplicidade seca.
#la estava sentada diante de toda aquela cena pensando que deveria trocar o sofá. (u quem
sabe mudar a cor das cortinas. Algo precisava ser feito para insuflar vida naquele mausoléu
precoce. ( pó dançando contra os raios de lu* pendentes do entardecer eram o má'imo de
movimento que aquela sala via nos 1ltimos tempos. Tempos secos e ocos. A campain$a não
tocava fa*ia 0á alguns meses. 4uncionaria ainda5 #ra mel$or testar, pois nunca se sabe
quando uma visita pode c$egar. 6avia que se lembrar de verificar a campain$a. !as não
agora, se sentia cansada.
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Tamborilou desa0eitadamente os dedos no encosto da cadeira, nunca tivera tino para ritmos,
quanto mais agora com suas 0untas grossas. (l$ou pela 0anela e teve um breve rego*i0o com
a lu* do fim do dia a envolver tudo em âmbar. #ra a cor das suas lembranças. 3e sentia bem
naquele tom. o telefone falava todos os dias. Afinal ninguém queria que ao morrer, ela lá
ficasse abandonada a apodrecer na sala até o dia em que os odores invadissem a casa do
vi*in$o. ão. ão se fa* isso com um vi*in$o, pensariam que eram ingratos, desnaturados,
sem dó pela vel$a sen$ora a apodrecer em meio ao pó. !el$or era ligar e averiguar se
estava tudo bem a cada nova man$ã. Terá ela sobrevivido a mais uma noite de sono5
#nquanto o tom de c$amada se repete a pergunta também retorna. Atendeu. As conversas
era rápidas e se repetiam muito, mas isso não l$e importava, pois queria apena falar, nem
que fosse sobre o tempo e por pouco tempo. 7or isso, ela fingia não perceber que repetia
sempre as mesmas $istórias todos os dias para suas duas fil$as. #stas duas fil$as 0á tin$am por certo que a matriarca começara a demenciar8 9está caducando:9 vacinavam assentindo
com as cabeças pesarosas. Ambas fingiam não perceber que a mãe repetia os mesmos
causos ao telefone todos os dias, para que ela não soubesse da sua própria loucura. !as era
antes a mãe que fingia não perceber as cansativas repetiç;es. Apenas queria falar. 7assava
os dias em sil2ncio a sós com seus pensamentos. ( sil2ncio compulsório l$e pesava o peito
e sufocava a respiração. 7or quanto tempo evitara todo tipo de conversa frugal e in1til. a
época, pensava que não tin$a tempo a gastar com aquelas bobagens de ti+ti+tis e di*+que+
me+di*+que. <á agora, se agarrava nestas frivolidades pueris como seu 1ltimo bastião de
sociabilidade. 3ua 1ltima 0anela para o mundo. !as não uma 0anela onde ela visse o
mundo, pois para isso tin$a tev2 e ol$os. 7recisava mesmo era de uma 0anela que a
enquadrasse ao centro8 uma 0anela que permitisse aos demais v2+la. %ma 0anela onde ela
seria vista e escutada. #ssa era a grande dificuldade8 poder lembrar que ela não $avia
morrido ainda ao ser vista e escutada por alguém. Ainda que muitos duvidassem, ela não
sentia triste*a alguma com sua solidão. =uando o dia aman$ecia sentia apenas o tormento
inc-modo de ver+se obrigada a suportar o passar daquelas $oras até poder dormir
novamente. Abria os ol$os e vaticinava8 9puta que pariu: não morri, mais um dia:9 >aiva e
ressentimento. Apenas isso. ada de triste*a. ão era dada a tal pieguice e
autocomplac2ncia. 3entia ódio de ter sido outorgada com uma vida tão longa. &iu um a um
seus con$ecidos pró'imos e distantes serem colocados em covas, espargidos ao vento,
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0ogados ao mar, desaparecerem por completo. <á não con$ecia mais sua cidade, se sentia
estran$a naquelas ruas tão diferentes das que ela percorreu tantos anos. ão cabia mais
naquele mundo. ão entendia seus termos, seus meios, ideias e valores.
+++++
7ong+ping+tuc. Toc. 7ong+ping+tuc. Toc. Tim. 7ong+ping+tuc. Toc. 7ong+ping+tuc. Toc.
7éin+tim. ( casal esta sentado em cadeiras de praia em plena co*in$a. )ada um com uma
lata de cerve0a morna nas mãos. =uando c$egaram em casa descobriram que a geladeira 0á
não fec$ava. ( gelo $avia ultrapassado os limites que possibilitavam qualquer vedação.
#les desligaram o refrigerador e se posicionaram diante do espetáculo do degelo. 7ong+
ping+tuc+péin. Toc. 7ong+ping+tuc. Toc+tuc. Tim. 7ong+ping+tuc+tac. Toc. 7ong+tec+tuc. Toc.
7éin+tim. ( sil2ncio retumba cada gota que abisma abismos entre o free*er e a gaveta delegumes. #ntre um gole e outro o casal aguarda. A porta da geladeira escancarada dei'a ver
suas partes "ntimas. A água gelada escorre por entre as latas de cerve0a dei'adas ao tempo.
A umidade toma conta de tudo. #le refresca as pontas dos pés na poça que se forma sobre
os a*ule0os do piso. =ue divertido, pensa preguiçoso depois de um gole quase morno. Tum+
tum+tum+toc+tum, tum+tum+toc+péin+toc+pum, tumtumtumtumtoctocpéin. As gotas vão
intensificando a percussão cotidiana. A dramaticidade do va*io cotidiano se intensifica.
Algo irrompera em breve. #m breve. A qualquer momento um bloco de gelo se desprendera
do free*er e arrebentará contra as grades da prateleira. 3erá incr"vel. Ambos ficam cada ve*
mais ansiosos pelo desfec$o. )ada gota pinga em um tempo levemente diferente, mas
formam um ritmo variante em con0unto. ( casal apenas admira o fim de sua pequena
geleira. Ton+ton+timtuncton+ton+ton+tintunctentonc+ton+ton+tictectontuc+ton+ton. =uando o
gelo irá ceder ao próprio peso e se despedaçar contra o metal abai'o dele5 =uantas gotas
são necessárias para a queda do bloco5 %m arroto. %ma coçada nas ancas. %m boce0o. #la
tamborila os dedos sobre a co'a arremedando o ritmo das gotas a escorrer cascata abai'o.
sempre é poss"vel encontrar uma ordem no caos. ?asta esquecer. 7oderá a gaveta dos
vegetais suportar a va*ão do free*er5 7or que as fam"lias se amam, ou mel$or, querem se
amar5 3erá proibido degelar a esta $ora da madrugada5 # o mofo, como evitar5 A qualquer
momento um bandido pode entrar por aquela 0anela. Temos que resolver isso. os precaver.
Tintuntuntunvrrssstontimtimtrentictoctuctintotntutmvrrsssstrectrintoctonton.
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A baunil$a tem uma alegria plácida no sabor. %m aconc$ego materno comparável apenas
ao tutti+frutti, mas sem o clima brega de circo do 1ltimo. 3oa mais a uma tarde dominical
de sol.
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