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2012
ESPECIAL CHINA
A REVOLUÇÃO VIRÁ DO CAMPO
A REVOLUÇÃO VIRÁ DO CAMPO
A maioria dos 180 mil protestos de massas que todos os anos re-bentam na China ocorre nos campos. Os camponeses foram as principais vítimas do maoísmo, apesar de a revolução ter sido feita por eles e para eles. Quando as reformas de Deng Xiaoping abriram o país à economia de mercado, foi nos campos que sur-giu a revolução capitalista. A iniciativa dos camponeses criou a riqueza que levou ao desenvolvimento das cidades. Agora que este crescimento está a roubar as terras aos camponeses, é do mundo rural, mais uma vez, que sopram os ventos da revolução
PAULO MOURA
JASO
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EUTE
RS
14 | Domingo 4 Novembro 2012 | 2
Havia medo nos olhos dela. A mu-
lher examinou o passaporte de
todos os ângulos, evitando tocar-
lhe. “Ela está a dizer que tem de
chamar a polícia”, traduziu Zhan.
O hotel era pequeno e muito ve-
lho, com quartos a 13 yuan (cerca
de um euro e meio). Havia um
disponível, sem casa de banho
nem janela, mas a mulher recu-
sava-se a dar a chave. Ia chamando outras
pessoas para se aconselhar, acabou por pegar
no telefone. Um passaporte parecia-lhe um
documento demasiado estranho, suspeito e
perigoso, que merecia decerto a atenção das
autoridades locais.
“Está a ligar para a polícia”, informou Zhan
num tom pretensamente neutro, mas onde
reverberava fascínio. Zhan Yang é um jovem
estudante de Medicina em Wuhan, a capital da
província de Hubei. Estava de férias em casa
dos pais, em Linquan, um pequeno concelho
da província de Anhui, onde poucas pessoas
falam inglês. Ele sim, embora mal, e estava
radiante por poder dar utilidade aos seus co-
nhecimentos.
“Isto não é uma boa ideia”, disse eu a
Zhan, olhando-o intencionalmente. Na ver-
dade, podia ser o fi m da reportagem. A polí-
cia desataria a fazer perguntas. Que fazia em
Linquan um cidadão português, jornalista
de profi ssão? Logo num dos concelhos onde
nos últimos anos rebentaram várias revoltas
camponesas contra as autoridades. Não, se
a polícia me encontrasse, a missão que me
levara ali estaria irremediavelmente compro-
metida. Nunca mais conseguiria falar com
Wang Xiangdong, na aldeia de Baimiao. “Não
é boa ideia.”
“Not a good idea?”, perguntou Zhan. “Not a
good ideia”, repeti, enquanto discretamente
nos aproximávamos da porta. A recepcionista
estava ao telefone, com um magote de gente à
volta discutindo a gravidade da conjuntura, e
nós, no meio da confusão, fugimos.
“Para minha casa”, disse Zhan, cheio de
vontade de colaborar, embora não percebes-
se bem de que fugíamos. Atravessámos em
passo apressado as ruas apinhadas da vila,
pejadas de bicicletas e vendedores ambulan-
tes. Linquan, um dos concelhos da cidade de
Fuyang, tem mais de dois milhões de habitan-
tes e situa-se na extremo ocidental de Anhui,
uma província pobre e rural do interior leste
da China, entre os rios Yangtze e Huai. À ex-
cepção de Hebei (9 milhões de habitantes), a
capital da província, as grandes indústrias ain-
da não chegaram a Anhui. A população vive da
agricultura ou emigra para as grandes cidades,
principalmente as do Sul, como Guangzhou ou
Shenzhen. Tal como faziam, quando as más
colheitas levavam à fome, as personagens de
Terra Abençoada, o livro de Pearl S. Buck cuja
acção decorre exactamente aqui.
O pai de Zhang nunca ouviu falar da No-
bel americana Pearl S. Buck. Mas foi buscar
um velho livro em inglês com fotografi as de
Mao Tsetung. É uma relíquia dos fi ns dos anos
1960, retratando as façanhas da Revolução
Cultural. Ele usa aquelas imagens nas suas
aulas de História, aos alunos da escola pri-
mária de Linquan.
Como professor, o pai de Zhang tem direito
àquele apartamento, num bairro de prédios
miseráveis e degradados, embora cercados
por campos de basquete e ténis, comunitá-
rios. É um quinto andar sem elevador, com
escadas exteriores, pejadas de lixo. Tem sala,
dois quartos, cozinha e uma casa de banho
que não funciona há anos. Para tratar da mi-
nha higiene, foi-me, com embaraço, indicada
a banca da cozinha. E para dormir foi-me atri-
buída a cama sem colchão (apenas com uma
tábua coberta com uma manta) do quarto do
casal, que por isso teve de pernoitar em casa
do outro fi lho, já casado. Tudo isto adivinhei
eu pelas movimentações familiares, porque,
por vergonha, nada me foi explicado.
À noite, em minha homenagem, fomos
jantar fora. Nas bancas ambulantes da rua
principal comprámos várias carnes (princi-
palmente orelhas, unhas de porco, cartila-
gens e intestinos) e vegetais, que levámos em
sacos de plástico para o restaurante, como é
hábito na China. A família Yang encomendou
massa, para combinar com as iguarias que já
levávamos, e escolheu uma mesa numa sala
privada, para não dar nas vistas. A presença
de um estrangeiro é sempre motivo de pasmo,
e não queriam que eu me sentisse incomoda-
do. Na sua maioria, os habitantes de Linquan,
ou outras regiões do interior, nunca viram
um não-chinês.
Nas cidades e vilas de Anhui ou Hubei, era
normal as pessoas pararem na rua a olhar
para mim, ou quererem ser fotografadas co-
migo. Num restaurante em Wanzhou, uma
cidade de quase dois milhões no distrito de
JIANAN YU/REUTERS
Desde 2003, as autoridades locais não cobram quaisquer impostos aos camponeses. Agora, descobriram outra forma de lhes extorquir dinheiro”, diz Wang Xiangdong
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Um agricultor e a filha, em Hefei, na província de Anhui. Ao lado, uma plantação na província de Gansu
Chongqing, foram buscar para mim uma mesa
especial, que colocaram no centro da sala,
para que todos pudessem postar-se à minha
volta, a observar. Enquanto eu esgrimia com
difi culdade os pauzinhos entre as inúmeras e
enormes taças de estranhos vegetais e carnes,
a assistência gargalhava e expedia comentá-
rios. Não só quem estava no restaurante, mas
outros que foram chamar a casa, sobretudo
crianças e idosos, a quem se considerou que
a bizarria do evento devia interessar, como
cultura geral.
Também por isso fi quei aliviado quando
a família Yang optou por uma sala privada.
Mas principalmente porque pressentia que
a polícia andava à minha procura e de que
havia informadores por todo o lado.
Sentámo-nos e pouco depois chegou o ir-
mão de Zhang, com a mulher e o fi lho bebé,
os três numa moto. A cunhada de Zhang é
professora de Inglês, mas não conseguiu ar-
ticular uma única frase, o que me pareceu
consentâneo com o paradoxo de a língua in-
glesa ser obrigatória nas escolas da China,
mas quase ninguém a entender.
No fi m, o pai Yang insistiu em pagar a con-
ta. Como professor numa zona rural, o seu
salário não chega a 100 euros por mês, e a mu-
lher, garantiram, não trabalha, tendo optado
por fi car em casa a tomar conta dos fi lhos, e
agora do neto. No dia seguinte, porém, vi-a
na rua, com uma pequena banca, a apregoar
e vender doses de massa cozida, que retirava
de um panelão negro e fumegante.
É a época das colheitas, e à beira da estrada
espalhavam-se as manchas de milho colhido,
amarelas como fogo. Mulheres, velhos e crian-
ças sentavam-se à porta de casa a debulhar as
espigas, à mão. Viam-se, em todo o caminho
de Linquan até à aldeia de Baimiao, mulheres
a semear, homens a lavrar a terra com trac-
tores, outros a carregar cebolas, abóboras,
couves ou trigo. Mas o milho dominava. Em
todas as aldeias, era preciso fazer rapidamen-
te a desfolhada, para pôr o cereal no mercado
ao melhor preço. Agora que os camponeses já
não são obrigados a entregar ao estado toda a
produção, competem em mercado livre, pelo
que a efi ciência é crucial.
Wang Xiangdong tem o pátio de casa cheio
de milho, por entre tractores velhos, pneus,
peças e outra maquinaria em segunda mão.
Os amigos do neto vieram para ajudar na des-
folhada. Há alturas do ano em que ninguém
pode fi car sem trabalhar.
Ele próprio, Wang, ajuda a debulhar o mi-
lho, embora hoje em dia a actividade principal
sejam os negócios: compra tractores usados e
aluga-os aos agricultores. Além disso, cultiva
as suas próprias terras, mediante o pagamen-
to de uma renda ao Estado.
Não é pobre. Há quem esteja melhor, na
aldeia, mas a maioria vive bem pior. A casa de
Wang é grande e de construção recente, em-
bora não tenha casa de banho nem esgotos.
Nenhuma tem, em toda a aldeia, à semelhan-
ça do que acontece na maior parte das zonas
rurais da segunda maior potência económica
mundial. Wang não se preocupa. “A tradição
é fazer as necessidades nos campos.”
Wang tem 55 anos, baixa estatura, saúde de
ferro e boa aparência. A aldeia respeita-o e
o seu êxito no negócio dos tractores deve-se
em grande medida à reputação de coragem
e integridade que demonstrou quando foi
necessário insurgir-se contra os abusos dos
funcionários locais.
Aquele que foi chamado, nas instâncias do
partido, o Incidente de Baimiao, teve início
em 1993. Nessa altura, os camponeses viviam
asfi xiados pelo excesso de impostos cobrados
pelos funcionários locais. Já estava em vigor a
reforma realizada por Deng Xiaoping, a partir
de 1978. Antes disso, lembra Wang, “passava-
se fome nas aldeias, tínhamos de entregar
toda a produção, os camponeses fi cavam sem
nada. Aqui, nesta zona, que sempre foi pobre,
as pessoas morriam de fome. Eu ainda me
lembro disso”.
Com a reforma, os camponeses puderam
arrendar um pedaço de terra e vender a pro-
dução. Muitos deles iniciaram negócios, co-
mo foi o caso de Wang Hongchao, que vendia
veneno para ratos.
O problema foi que os funcionários locais,
da administração e do partido, vendo-se dis-
criminados na distribuição orçamental em re-
lação ao poder central, resolveram extorquir
dinheiro aos camponeses, através da criação
de toda a espécie de impostos ilícitos. Foi uma
dessas taxas que acendeu o rastilho.
O líder do Partido Comunista de Baimiao,
Gao Jianjun, foi a casa de Hongchao, o vende-
dor de raticida, cobrar um imposto especial
de 6 yuan (8 cêntimos). Como a mãe do visado
não tivesse dinheiro algum para lhe entregar,
ele levou a televisão da família. Depois, foi lá
de novo, buscar uma bicicleta.
SHENG LI/REUTERS
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Furioso, Wang Hongchao convocou uma
reunião da aldeia. Como todos tinham queixas
dos funcionários locais, recolheram o má-
ximo de provas dos abusos e elegeram um
grupo para ir apresentar queixa aos líderes
concelhios do partido, em Linquan. Além de
Hongchao, foram escolhidos Wang Junbin e
Wang Xiangdong.
Zhang Xide, o chefe do partido em Lin-
quan, era um homem muito conhecido da
televisão. Aparecia frequentemente nas cam-
panhas para promover a Lei do Filho Único,
que proíbe cada família de ter mais de um
fi lho, para atenuar o problema demográfi -
co do país. Xide dizia coisas como: “Prefi ro
ver sete sepulturas frescas do que um fi lho a
mais”, e todos sabiam que estava a encorajar
o aborto e mesmo o infanticídio, largamente
praticado no concelho, com o beneplácito
das autoridades.
“Precisamos de falar com o camarada Zhang
Xide”, disseram os três amigos à entrada da
sede do Partido Comunista em Linquan.
“O secretário do partido não recebe gente
como vocês”, foi a resposta do recepcionista,
antes de chamar reforços para os expulsar
do edifício.
Decepcionados, os três Wang, depois de
consultarem a assembleia da aldeia, decidi-
ram-se pela atitude extrema: ir a Pequim, com
todas as provas, apresentar a queixa contra
os funcionários locais. Recolheram dinheiro
para a viagem de comboio e, na capital, onde
nunca tinham estado, dirigiram-se ao Gabi-
nete de Apelos e Petições do Comité Central.
A seguir foram ao Ministério da Agricultura.
a investigação, supervisionada pelo comité
disciplinar do partido, foi detectado um ex-
cesso de centenas de milhares de yuan em
cobrança de impostos.
Mas a reacção não tardou. Wang Xiangdong
e os amigos foram chamados à sede adminis-
trativa da aldeia. À porta, foram apanhados
por um bando de rufi as, que os encheram de
pancada. O mesmo aconteceu a todos aqueles
que ousavam pedir a restituição dos impostos
cobrados indevidamente. Dias depois chegou
à aldeia, durante a noite, uma carrinha com
cinco homens. Dois polícias e três seguran-
ças contratados. Atacados pelos campone-
ses, confessaram estar ali para prender os
representantes do povo, responsáveis pela
petição. Furiosos, os aldeões destruíram a
carrinha.
Era o pretexto de que Zhang Xide precisava
para lançar uma ofensiva em grande escala
contra a aldeia. De manhã cedo, uma força
de 100 polícias armados com metralhado-
ras, escudos, capacetes e vestuário à prova
de bala entrou em Baimiao, ao som de sire-
nes. Espancaram toda a população, incluindo
velhos, mulheres e crianças, e roubaram o
que puderam. A Xiangdong desapareceu a
sua poupança de 700 yuan e um gramofone.
Hongchao fi cou sem o seu stock de raticida.
Muitas pessoas foram presas e torturadas na
prisão, embora nenhuma das que protagoni-
zaram a petição, que conseguiram fugir para a
província de Henan, já que Baimiao fi ca muito
próxima da fronteira.
Foi o caso de Wang Xiangdong e os seus
dois amigos. Exilados desde então na provín-
Em ambos os lugares se sentiram esmagados
pela arquitectura colossal dos edifícios e ti-
veram um acolhimento respeitoso e solícito.
Os camaradas da administração central do
partido reconheceram a justiça das suas pe-
tições e dirigiram cartas aos funcionários de
nível concelhio apelando a que resolvessem o
problema, eliminando os impostos indevidos
e compensando os prejudicados.
O sistema das petições é muito anti-
go na China. Remonta ao tempo
dos imperadores, que gostavam
de se apresentar como amigos
do povo e último reduto da jus-
tiça contra os funcionários inter-
médios corruptos. O PC reciclou
a tradição, dando aos cidadãos,
em teoria, um instrumento de
defesa contra os eventuais abu-
sos do poder local.
Contentes com a sua diligência, os três
Wang regressaram à província de Anhui. De-
sembarcaram na capital, Hefei, para entre-
gar as cartas no Gabinete de Protecção dos
Camponeses do Partido. Aqui, foi redigida
uma outra carta, para a entidade homónima
no concelho, pedindo uma investigação à
eventual cobrança excessiva de impostos e
compensações. Quando esta carta chegou às
mãos de Xide, o defensor dos infanticídios,
ele era todo sorrisos. Já fora contactado por
Pequim e escreveu por sua vez uma carta às
autoridades da aldeia.
Tudo correu bem, os três amigos estavam
satisfeitos. Ia ser feita justiça. E, mal começou
Obrigaram--me a vender a minha terra, por 10 mil yuhan (1200 euros). Fiquei sem fonte de rendimento. Disseram que a terra não era minha”, conta Shen Changping
REUTERS
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bem ameaças de perder os empregos, se não
pagarem subornos.”
Além disso, os funcionários locais torna-
ram-se intermediários especuladores nos
negócios de expropriações de terras. Shen
Changping vivia na aldeia de Linhuaiguan,
no concelho de Fengyang. Agora veio para
casa da irmã, que casou com um homem da-
qui. Estava a ajudá-los na colheita do milho,
porque perdeu a sua terra, em Linhuaiguan.
“Obrigaram-me a vender a minha terra, por
10 mil yuan (1200 euros). Fiquei sem fonte de
rendimento”, contou Shen. “Disseram que a
terra não era minha.”
Shen, a mulher e o fi lho partilham agora
a casa (que não tem esgotos) com a irmã, o
cunhado e a fi lha deles. Têm uma motorizada
com atrelado, as crianças vão à escola, mas se
precisarem de médico têm de se deslocar a
Linquan e pagar, disse Shen. E o que ganham
difi cilmente dá para isso.
Shao, a irmã de Shen, vem ter connosco,
sorridente. Traz uma camisa suja e uns sapa-
tos de pano rotos. Nunca nos seus 32 anos de
vida saiu da província de Anhui. Um mundo
de pobreza, sujidade, conservadorismo so-
cial, discriminação da mulher, baixa escola-
ridade, obscurantismo, isolamento.
Vê-se, pelo vestuário, os hábitos pessoais,
os pormenores de comportamento, que não
há qualquer contacto com o mundo exterior
ou o Ocidente. As vilas e aldeias são feias,
incaracterísticas. As casas são todas iguais,
rudimentares e muitas vezes inacabadas, com
dois andares, paredes de tijolo e telhados de
zinco.
cia vizinha, decidiram ir de novo a Pequim.
Mas ao desembarcarem na estação da capi-
tal foram detidos por um grupo de polícias à
paisana da sua própria província, de Anhui.
Encarcerados, foram mantidos sob tortura
ininterrupta durante dois meses.
Na aldeia, a assembleia popular reuniu-se
de novo e decidiu enviar outro grupo a Pe-
quim, para relatar o que sucedia. Informado
destes planos, o secretário Xide enviou de
novo uma força armada de 100 homens para
a aldeia. Depois outra de 200, em 30 carros
blindados, para criar um clima de medo, or-
ganizando comícios com slogans da Revolu-
ção Cultural.
Sob os protestos populares, Xiangdong,
considerado o líder da rebelião, foi julgado e
condenado a dois anos de prisão. A popula-
ção voltou a reunir-se e decidiu enviar uma
delegação de peso: 73 pessoas, chefi adas por
Wang Hongchao, o comerciante de raticida
com que tudo começara. Em resposta, Xi-
de enviou para a aldeia uma força de 300
homens, alegadamente para inspeccionar e
fazer cumprir a Lei do Filho Único, mas o
braço-de-ferro pendia fi nalmente para o ou-
tro lado.
Os 74 camponeses de Anhui entraram na
Praça Tiananmen e ajoelharam-se. Aldeões de
outras regiões pobres do país chegavam ao
mesmo tempo à capital. Alguns suicidaram-
se, num gesto desesperado para chamar a
atenção. E fi nalmente o comité central repa-
rou. Três anos tinham passado. Era impossível
continuar a ignorar o movimento de protesto.
Foi decidida uma investigação séria ao “inci-
Uma mulher tenta impedir a demolição de uma casa em Zuoling (Hubei). As expropriações e a poluição (em cima uma fábrica de Shanxi) são grandes focos de protesto. Wang Xiangdong aponta para outro grande factor de revolta: a corrupção
dente de Baimiao” que levaria à demissão de
Zhang Xide e muitos outros funcionários cor-
ruptos. O sistema de impostos aos campone-
ses foi revisto. Wang Xiangdong foi libertado
e eleito novo chefe da aldeia.
“O nosso movimento levou a que a lei fosse
alterada”, disse ele agora. “Desde 2003, as
autoridades locais não cobram quaisquer im-
postos aos camponeses. Agora, descobriram
outra forma de lhes extorquir dinheiro.”
Nos anos 90, o confl ito surgiu porque os
camponeses começaram a ganhar dinheiro.
Com a reforma de Deng Xiaoping, surgiu, ao
longo dos anos 80, uma miríade de peque-
nos negócios por todo o mundo rural chinês.
“Pela primeira vez na vida, os camponeses
tinham dinheiro e os funcionários e quadros
do partido acharam que tinham de se apro-
priar dessa riqueza”, explicou Wang.
Ao contrário do que muitas vezes se pensa,
a revolução capitalista na China começou nos
campos, não nas cidades. É por isso que a luta
da linha conservadora do partido contra os
novos empreendedores começou por se tra-
var aí. E é aí que as tensões hoje continuam
mais agudas.
Agora que, por decisão governamental, o
pólo do desenvolvimento económico se orien-
tou para as cidades, a maioria dos confl itos
continua a provir dos campos. Segundo Wang,
“o problema agora não são os impostos, mas
a corrupção”. Os funcionários aceitam subor-
nos para fechar os olhos ao incumprimento
da Lei do Filho Único, explica. “As famílias
que querem ter dois fi lhos levam as mulheres
a dar à luz na cidade. Quando voltam, rece-
DR
REUTERS
18 | Domingo 4 Novembro 2012 | 2
Numa das sociedades mais ricas,
industrializadas e mecanizadas
do mundo, o trabalho braçal é a
norma, por todo o lado. Por vezes
do tipo mais violento e desuma-
no. Nas vilas e aldeias, os carre-
gamentos de produtos agrícolas e
industriais são feitos de bicicleta
ou riquexó, mas muitas vezes pe-
los pitorescos “bangbang”, ho-
mens ou mulheres (por vezes muito jovens ou
muito velhos) que, com passinhos rápidos e
certos de corrida, carregam aos ombros dois
pesos equilibrados numa vara de bambu.
Muitas vezes uma região é defi nida pela
qualidade dos seus “bangbang”. Por exemplo
em Chongqing, um município com 32 milhões
de habitantes, cheio de arranha-céus e cen-
tros comerciais de luxo, diz-se que carregam
facilmente pesos superiores ao seu próprio,
por um salário de 30 yuan (4 euros) por dia.
São aos milhares, nos enormes portos fl uviais
do Yangtze, ou nas estações de comboio, on-
de correm para as composições modernas,
de alta velocidade, para carregar as malas às
costas, com os seus bambus.
Shao já pensou emigrar para a cidade. Tê-lo-
ia feito se não tivesse uma fi lha. Já Wang nunca
o faria. Foi a Pequim na altura da revolta “por-
que era a única maneira. As autoridades da-
qui nunca nos dariam ouvidos. Mas gosto da
aldeia. Aqui, quem tem vontade de trabalhar
não passa fome. Só os preguiçosos, que não
se adaptaram, é que não têm para comer”.
Wang tem dois fi lhos. Um rapaz, que comprou
um autocarro e faz uma carreira do campo
para as cidades do Sul, e uma rapariga, que
estuda design urbanístico em Suzhou. Duas
profi ssões de sucesso nos novos tempos.
Para Wang, os principais problemas da Chi-
na são as desigualdades sociais e a corrupção.
A falta de liberdade de expressão e o partido
único não são um problema. “Desde que o
Governo seja bom para o povo, fi camos sa-
tisfeitos. Não precisamos de mais nada. Mas
a corrupção é um problema grave. E estamos
a lutar. Agora, em vez de ir a Pequim, é mais
útil pôr a queixa na Internet.”
Ambas as tácticas são usadas. E várias ou-
tras. A Internet é acessível a muita gente, e
mais segura do que dar a cara numa manifes-
tação, apesar dos métodos das autoridades
para identifi car os autores das mensagens. O
Facebook e o Tweeter são interditos na China
e as pesquisas no Google são controladas. Bas-
ta introduzir uma palavra como “liberdade”
ou “democracia”, em qualquer língua, para
o browser cair. Mas foi criado um site de mi-
croblogging, o Weibo, que se tornou no maior
veículo de protesto e crítica do país. Ali tudo
pode ser discutido, com um grande grau de
tolerância por parte da polícia. Dir-se-ia que
o Governo não abdica do controlo dos cida-
dãos, nem da oportunidade de saber o que
eles realmente pensam.
Mas as formas mais convencionais de pro-
testo não diminuíram devido à Internet. Antes
se multiplicaram. Segundo várias instituições,
ocorrem cerca de 600 mil acções de protesto
por ano em todo o território chinês. Dessas,
180 mil são “acções de massas”, que incluem
manifestações, marchas, greves, confrontos
com a polícia, boicotes, acções de petição co-
lectiva ou motins violentos. Este número de
protestos, que tem vindo a aumentar todos
os anos, desde a década de 90, não é negado
pelo Governo.
Quanto às petições, individuais ou sobre
casos particulares, o seu número ascende a
10 milhões por ano. Na maioria dos casos, não
são atendidas. A quantidade de pessoas que
está permanentemente em Pequim à espera
de entregar a sua petição ou da resposta é tal,
que o Governo criou abrigos especiais para
elas. Segundo a Human Rights Watch e ou-
tras organizações internacionais de Direitos
Humanos, esses abrigos transformaram-se de
facto em prisões, muitas delas de localização
secreta (chamadas “prisões negras”), onde os
peticionários são mantidos e torturados, até
que se convençam a regressar às suas terras,
ou sejam para lá levados à força. Em certas
regiões onde avultam os motivos de protesto,
tenta-se que as petições não cheguem a sair
de lá, à semelhança do que fazia o secretário
comunista Xide na aldeia de Baimiao. É o caso
de Xangai, onde são tantas as queixas devi-
do às expropriações de terras para construir
arranha-céus, que a polícia destacou pique-
tes especiais para a estação de caminho-de-
ferro.
Na gigantesca estação principal de Xangai,
de onde saem os comboios para Pequim, há
entre as multidões polícias à paisana encarre-
gados de detectar os grupos de peticionários
para os assediar ou prender, impedindo-os de
embarcarem para a capital.
As petições e os protestos são quase sempre
ED JONES/AFP
“Haverá uma revolução. Mas desta vez não será encabeçada pelos estudantes, como em 1989. Desta vez será feita pelos camponeses e os trabalhadores migrantes das fábricas”, diz o escritor Chen Guidi
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O Centro de Detenção n.º1, em Pequim. Os peticionários são frequentemente alvo de detenções ilegais. Ao lado, estação de comboios da capital. Nos últimos 20 anos, 250 milhões de pessoas mudaram-se dos campos para as cidades para trabalhar
“Pequim é o único lugar onde nos senti-
mos relativamente seguros. Há mais gente
como nós aqui, há os media internacionais
e, acima de tudo, há muitas embaixadas…”
Wu vai fazer 50 anos e o marido, Chen, tem
70. Profi ssionalmente, não fazem mais nada
além de investigar os problemas dos campo-
neses. Compraram uma casa nos arredores
de Pequim, têm um fi lho, levam uma vida
perigosa. “Mas vale a pena. É uma vida com
sentido. Não vamos mudar.”
Têm feito viagens a Xiaogangcun, um con-
celho na província de Hubei onde milhares de
camponeses perderam as terras. “Cinco mil
mu [335 hectares] de terra foram vendidos
ao governo local, ao preço de 12.500 yuan
[1500 euros] por mu”, disse Chen. “Era terra
óptima para a produção de arroz. Agora está
vazia e abandonada, sem produzir nada. E os
camponeses não têm como ganhar a vida. São
obrigados a emigrar para a cidade, porque
perderam as suas terras. Em Hubei, 20 mil
camponeses foram obrigados a vender as ter-
ras aos funcionários locais. Nos últimos anos,
houve uma redução de duas mil toneladas na
produção de arroz, por este motivo.”
Os bancos são obrigados pelo Governo a
emprestar dinheiro aos especuladores imo-
biliários; estes compram as terras aos fun-
cionários locais do partido; que por sua vez
obrigam os camponeses a venderem-lhes as
terras, por preços irrisórios. “Se se recusam,
entram-lhes pela propriedade com a polícia
e bulldozers.”
O problema, explicou Chen Guidi, começou
em 2006, quando o Governo decidiu criar
contra os governos locais, não o central, e
têm como motivo questões de discriminação
étnica ou religiosa (designadamente entre as
populações do Tibete e do Xinjiang, muçulma-
nas, ou da parte de grupos religiosos persegui-
dos, como o Falun Gong), falta de liberdade
de expressão, problemas ambientais, corrup-
ção, salários baixos, falta de pagamento ou
más condições de trabalho nas fábricas (nas
pequenas ofi cinas ou nos gigantes industriais
com a Foxconn), violações de direitos huma-
nos. Mais de 60% dos casos, porém, referem-
se a injustiças nas expropriações de terras,
no mundo rural. Todos os anos, 4 milhões de
cidadãos rurais são expropriados das suas ter-
ras, que são compradas a preços baixos pelos
funcionários locais, que as vendem depois a
empresas do ramo imobiliários por valores
40 vezes mais altos, em média.
Chen Guidi e Wu Chintao não são
um casal normal. Apesar da sua
aparência de camponeses sim-
ples e recatados, tornaram-se dos
intelectuais contestatários mais
temidos pelo Governo chinês.
Sempre viveram em Hefei, a capi-
tal da província rural de Anhui, e
consideravam-se escritores. Mas
um sentido de responsabilidade
social e cultural levou-os a viajar pelas aldeias,
durante vários anos, para investigar as dramá-
ticas condições de vida dos camponeses. Em
2003 publicaram um livro intitulado A Vida
dos Camponeses da China, em que relatavam a
corrupção dos funcionários locais e os abusos
DAVID GRAY/REUTERS
fi scais sobre os aldeãos. O livro vendeu 150
mil cópias num mês e depois foi proibido e
retirado das livrarias. Os autores produziram
uma edição clandestina, em fotocópias, que
vendeu, por distribuição nas ruas da China,
7 milhões de exemplares.
Foi publicado em várias línguas (na versão
inglesa: Will the Boat Sink the Water?), ganhou
prémios e cobertura mediática internacio-
nais. É tido como certo que foi este livro que
alertou as autoridades para a gravidade dos
problemas e as fez alterar as leis. O Presidente
e secretário-geral do partido, Hu Jintao, re-
conheceu em várias ocasiões tê-lo lido e terá
mesmo confessado a amigos que o mantinha
na sua mesa de cabeceira.
Chen e Wu foram expulsos da Associação
de Escritores da China, ameaçados e persegui-
dos, mas também convocados para reuniões
com membros destacados do partido, que
queriam ouvir os seus relatos e opiniões.
Agora, o casal está a investigar a questão
das expropriações de terras nas zonas rurais,
embora viva em Pequim. Foi lá que os encon-
trei, a mais de mil quilómetros da sua terra.
“Arrombaram a porta da nossa casa e des-
truíram tudo o que lá tínhamos”, contou Wu
Chintao. “Todos os dias alguém atirava pedras
para o quintal. Todos os dias recebíamos tele-
fonemas anónimos com insultos e ameaças de
morte.” Mudaram-se para Jiangxi, onde vive-
ram cinco anos. Mas a polícia não os largava.
Todos os seus movimentos eram vigiados,
os contactos monitorizados. Recebiam uma
ameaça de prisão sempre que falavam com
um jornalista estrangeiro.
20 | Domingo 4 Novembro 2012 | 2
regras que facilitam as expropriações de ter-
ras, para investir na construção de fábricas
e zona habitacional urbana, para a qual os
bancos eram obrigados a conceder créditos.
Começou por ser uma política experimental,
aplicada apenas em algumas regiões, mas em
2008 alargou-se a todo o país.
Esse facto conjugado com o início da crise
internacional criou a situação que existe hoje
e o correspondente movimento de protestos.
“O problema é que os governos locais não têm
direito a cobrar impostos sobre a actividade
económica das cidades, que são canalizados
para o Governo central. Por isso, os funcio-
nários locais têm de atacar os camponeses”,
explicou Chen. “Primeiro faziam-no com im-
postos, agora com as terras. A crise interna-
cional fez baixar os lucros das fábricas, onde
os funcionários iam buscar as suas percen-
tagens. Então voltaram-se de novo para os
camponeses, aproveitando-se da nova política
governamental das expropriações.”
Na base desta prática está a ambiguidade
quanto ao conceito de propriedade. As auto-
ridades locais fi xam o preço que querem para
a expropriação, alegando que as terras são
“do Estado” ou “do povo”. O que o camponês
recebe não é um pagamento pela venda, mas
antes uma indemnização, defi nida pelos re-
presentantes do Estado (os funcionários).
Na Lei, o conceito de propriedade não está
defi nido com clareza. Quando lançou a sua
reforma, Deng Xiaoping atribuiu terras aos
camponeses para exploração privada por um
período de dez anos. O Presidente seguinte,
Jiang Zemin, fi xou em 30 anos o período de
usufruto das terras. Hu Jintao declarou num
discurso que a propriedade era para sempre.
Mas fê-lo de forma vaga e fi losófi ca, e não o
escreveu em lado nenhum, pelo que é difícil
usar essa norma num libelo judicial.
Já quando se trata de vender a propriedade
a uma empresa de construção, ninguém se
lembra de invocar o lirismo de que as terras
são do povo.
De certa forma, é a ambiguidade sistémi-
ca do regime “socialista-capitalista” que tem
feito crescer a economia do país a um ritmo
nunca visto na História humana. As injustiças
nos campos obrigam as pessoas a fugir para
as cidades, cujo crescimento faz parte dos
propósitos políticos do Governo de Pequim.
Nos últimos 20 anos, 250 milhões de pesso-
as mudaram-se dos campos para as cidades,
para trabalhar. É o maior movimento migra-
tório da História do mundo. Um número de
seres humanos oito vezes superior ao dos
que há um século migraram da Europa para
a América.
Hoje em dia, as populações rural e urba-
na na China quase se equivalem em número
(650 milhões nas cidades, 700 milhões nos
campos). Mas estima-se que, nos próximos
dez anos, mais 250 milhões se desloquem do
campo para as zonas urbanas. Esta evolução
retirou centenas de milhões de pessoas do
limiar da pobreza, criando uma nova classe
média entre populações que durante milénios
só conheceram a miséria. Mas originou tam-
bém enormes e insustentáveis desigualdades
sociais. Entre as populações urbanas e rurais,
a diferença de rendimento é de cinco para
um, e os privilégios de acesso à educação e
saúde são incomparáveis.
Chen Guidi está convencido de que, se não
houver uma reforma profunda nas políticas,
que permita atenuar as desigualdades, com-
bater a corrupção e dar mais liberdade às
pessoas, o regime não aguentará. “Haverá
uma revolução. Mas desta vez não será en-
cabeçada pelos estudantes, como em 1989.
Desta vez será feita pelos camponeses e os
trabalhadores migrantes das fábricas.” Nos
últimos meses, Chen e Wu têm sido convida-
dos para reuniões de altas comissões do par-
tido encarregadas de estudar o problema dos
protestos nos campos. Mais uma vez, querem
ouvir a sua opinião.
Foi uma semana inteira de feriados,
começando no Dia Nacional da Chi-
na. Chamam-lhe a Semana de Ouro
e é o mais parecido com férias que
os trabalhadores chineses podem
gozar. Os migrantes vão passá-la
às suas terras, aos milhões. É uma
das novas realidades da China mo-
derna: as viagens. De comboio ou
de autocarro, em percursos de mi-
lhares de quilómetros durante dezenas de
horas, os trabalhadores chineses movem-se.
Há alguns anos, isso era proibido e altamente
reprimido.
Fiz algumas dessas viagens, durante a Sema-
na de Ouro e depois. Comecei por ir de Xan-
gai a Chongqing, 32 horas de comboio, para
percorrer 1722 quilómetros. Como sempre,
as carruagens estavam cheias. Tudo esgota-
do. Na China, está sempre tudo esgotado. Há
multidões em qualquer lugar, seja numa loja,
num restaurante ou numa bilheteira. É sempre
preciso enfrentar a confusão, a algazarra, a
agressividade, a claustrofobia. Enfrentar os
outros. Mas as coisas funcionam. Tudo é pla-
neado, tudo está feito em função das neces-
sidades das pessoas.
Consegue-se fazer o que se pretende, che-
gar onde se quer, mas é difícil e demora mui-
to tempo. E não sem luta. No comboio para
Chongqing, há beliches de seis pessoas por
compartimento, minúsculo. Mas muita gen-
te compra bilhete de pé e deita-se pelos cor-
redores, ou onde pode. Vão todos em cima
uns dos outros, mas ninguém se queixa. Há
cabeças a dormir em ombros desconhecidos,
cotovelos e pés irrompendo pelas cabeça do
vizinho ou derrubando o recipiente de massa
com carne de porco de confecção instantâ-
nea. Vendedores vêm às janelas trazer estes
pacotes de refeição a que basta juntar água
quente. E em todas as carruagens (como em
todos os cantos do território da China) há uma
torneira de água quente para preparar estas
refeições e o chá. Dir-se-ia que de propósito
para aumentar a confusão, as pessoas passam
a interminável viagem a comer e a deslocar-se
de um lado para o outro. Há dezenas de fun-
cionários no comboio e os passageiros ajudam-
nos em todas as tarefas, como se fosse uma
grande família.
Chegámos à noite a Chongqing, a gigantesca
cidade do interior da China. A estação é enor-
me, escura e velha, e tinha o chão alagado de
água, a dar pelos tornozelos. Chovia lá fora,
apesar do calor. À saída do comboio há uma
grade de ferro por trás da qual se amontoam
centenas de pessoas, agitando cartazes e car-
tões escritos, à espera dos que chegam, não
por serem familiares ou amigos, mas para lhes
vender alguma coisa. Designadamente trans-
porte, eu logo entenderia porquê.
Transpostas as grades, desatou tudo a cor-
rer. Não percebi logo para onde iam porque
ninguém me disse nada e todos os sinais são
escritos em chinês. Depois vi: era a fi la dos
táxis. Tentei contar. Eram mais de duas mil
pessoas na fi la, o que é uma forma de dizer
— na China não há fi las. Há multidões que se
empurram para conseguir os objectivos. Era
isso que acontecia até uma zona circunscrita
por grades onde polícias obrigavam, a partir
dali, a respeitar a ordem de chegada. Até lá,
era preciso aguentar os empurrões, os murros,
os pontapés, a gritaria. Nada mau, depois de
32 horas de viagem. Esperaria mais duas até
chegar a minha vez. Quanto mais à frente na
fi la, maior era o aperto. A certa altura, quan-
do já ia quase no ar, transportado pela horda,
senti sob os pés uma massa mole e compacta,
que parecia mover-se e chiar como um rato.
Era um mendigo, sem braços, de tronco nu,
que decidiu meter-se ali como única forma
de chamar a atenção. Quase gritei, mas mais
ninguém pareceu surpreendido. Só eu não
estava familiarizado com a aguerrida compe-
tição entre os pedintes chineses e a sua per-
manente procura dos lugares onde possam
ser espezinhados.
Ao longo da fi la, mulheres correndo de um
lado para o outro, agitando na mão a chave
de um carro, tentavam vender, aos gritos, o
serviço de um táxi especial, a preços exorbi-
tantes. Pedem 600 yuan (70 euros) a quem
está no fi m da fi la e vão baixando à medida que
avançamos. No fi m, já pedem 200. O táxi que
fi nalmente apanhei para o hotel custaria 30.
Em Linquan, decidi fazer a viagem de au-
tocarro para o Sul, com os trabalhadores que
vieram passar os feriados à aldeia e regressa-
vam ao trabalho nas fábricas de Guangzhou
e Shenzhen, a 1500 quilómetros de distância.
Duração prevista da viagem: 21 horas. Na rea-
lidade, seriam 27.
Era um autocarro velho, com bancos muito
desconfortáveis, cor-de-rosa gasto, sujos. Os
bilhetes sentados esgotaram rapidamente e
foram vendidos mais umas dezenas de pé.
Antes da partida, houve discussões e gritos,
até todos estarem nos seus lugares e as ba-
gagens arrumadas. Mal arrancámos, come-
çou a saga dos vomitados. A maioria destas
pessoas não está habituada a andar de carro
e fi ca enjoada à primeira curva. E a estrada
tem muitas curvas. Nalguns troços, seguimos
por caminhos de terra. Noutros, a estrada era
tão estreita que era preciso sair da via para
dar passagem a outro autocarro que vinha em
sentido oposto.
No meio do corredor, havia um balde para
os vómitos e os escarros. Na China escarrar é
um hábito nacional. É um sinal de virilidade
para os homens fazê-lo com muito ruído e es-
palhafato, principalmente no mundo rural. O
balde tinha grande solicitação e cedo deixou
de chegar para as encomendas. Dois homens
escarraram de seguida, uma mulher pôs o fi -
lho a urinar no balde e quando uma outra veio
vomitar já não havia tempo. Foi mesmo no
chão. A partir daí, acabaram os escrúpulos. O
balde estava cheio e dançava de um lado para
o outro, mas a maior parte da expectoração e
do vomitado ia parar ao tapete.
Durante toda a noite, as pessoas andaram
descalças no autocarro. Dormiram umas por
cima das outras, chapinharam nos dejectos.
De três em três horas, parávamos numa es-
pécie de estação de serviço na estrada, para
comer e ir à casa de banho. As latrinas eram
colectivas e imundas, os restaurantes serviam
um prato único, geralmente massa com carne,
ou melhor, alguns ossos mergulhados no mo-
lho. As pessoas chupam os ossos e atiram-nos
para o chão ou para cima da mesa. O cliente
seguinte senta-se e coloca o seu prato entre os
ossos cuspidos pelo cliente anterior.
Os funcionários do autocarro chamam,
para seguir viagem. Há o condutor, um revi-
sor e uma espécie de capataz. Todos gritam
para os passageiros, ralham com eles, dão
ordens como se lidassem, não com clientes,
mas com escravos. Estamos num navio ne-
greiro. As pessoas são tratadas como gado,
mas não protestam, seguem de olhos assus-
tados, a caminho do Sul. Exactamente como
os camponeses do livro de Pearl Buck, nos
anos de fome.
Amanheceu, passou mais um dia. Quando
anoiteceu de novo iluminaram-se os arranha-
céus de Guangzhou. Finalmente, a cidade.
2 | Domingo 4 Novembro 2012 | 21
CÁT
IA M
END
ON
ÇA
UM MÊS E 8851 QUILÓMETROS
Mar da China Meridional
Mar da China Oriental
Mar Amarelo
CHINA
Guangzhou
Xangai
Pequim
Chongqing
Wanzhou
Badong
Wuhu, Anhui
FuyangLinquan
Baimiao
Sandouping
Yichang
Shenzhen
Dongwang
HONG KONGMACAU
Chongqing-Wanzhou
272 km de autocarro5 horas
2
Badong-Sandouping-Three Gorges
130 km de barco5 horas
4
Linquan-Baimiao-Linquan
30 km de carro 1 hora
9Linquan-Guangzhou
1383 km de autocarro27 horas
10
Guangzhou-Shenzhen
134 km de comboio rápido1 hora
11
Shenzhen-Dongwang-Shenzhen
148 km de comboio1 hora
12
Rio Yang Tse
Yichang-Wuhu, Anhui
823 km de autocarro25 horas
6
Wuhu-Fuyang
379 km de autocarro6 horas
7
PLANALTO DO TIBETE
3
4 5 6
7
18
14
910
2
1112
13
Pequim-Xangai
FIM DA VIAGEM20 de Outubro
1268 km de comboio13 horas
14
Xangai-Chongqing
INÍCIO DA VIAGEM20 de Setembro
1722 km de comboio32 horas de viagem
1
Shenzhen-Pequim
2165 km de comboio31 horas
13
Fuyang-Linquan
57 km de autocarro1 hora
8
Wanzhou-Badong
317 km de barco, pelo rio Yang Tse16 horas
3
Sandouping-Yichang, Hubei
53 km de autocarro 2 horas
5
Total de km 8851
22 | Domingo 4 Novembro 2012 | 2
O NOVO PROLETARIADO JÁ NASCEU BURGUÊS
Depois de deixar a aldeia, não há volta atrás. Por muito duro que seja o tra-balho na fábrica, o regresso é uma der-rota. A população rural foi encorajada a migrar para as cidades, mas continua a ser discriminada no acesso à educa-ção, à saúde e à habitação. A mobili-dade social é possível, mas não é fácil
PAULO MOURA, EM SHENZHEN
REU
TERS
24 | Domingo 4 Novembro 2012 | 2
A limusina preta Audi A8 parou à
porta do meu hotel em Shenzhen.
O condutor de fato e óculos es-
curos veio abrir a porta de trás.
Sentei-me ao lado de Amy Yan,
uma jovem alta e atraente, de
saia-casaco, depois de ela me ter
dado um salvo-conduto onde se
lia VIP. Deslizámos em direcção
ao quartel-general. Na portagem
da auto-estrada, havia fi las de carros nas várias
entradas abertas com sinal verde. Nós passá-
mos, sem parar, pela que estava fechada com
sinal vermelho.
Já no distrito de Longhua, nos arredores de
Shenzhen, percorremos vários quilómetros de
estrada junto aos muros altos, encimados por
arame farpado, da Foxconn. Voltámos à direita
para entrar no complexo contíguo, igualmente
fechado a pessoas estranhas, da Huawei. No
interior, cruzámos todos os checkpoints sem
parar. Atravessámos áreas residenciais, res-
taurantes e cafés, um ginásio, uma piscina,
um hotel e um hospital. O motorista voltou a
abrir a porta quando chegámos ao edifício da
exposição de produtos de telecomunicações.
Esperavam-nos.
“Uma em cada três pessoas no mundo usa
produtos Huawei”, disse Vic Guyang, um dos
porta-vozes da empresa, pouco depois de ter-
mos entrado nas imensas galerias da exposi-
ção. Tudo o que de mais importante a Huawei
alguma vez produziu está ali apresentado e
explicado, com painéis electrónicos, simula-
ções, maquetes e gráfi cos cheios de monito-
res, botões e luzes. Telemóveis, smartphones
“muito superiores ao iPhone”, tablets, routers,
modems, gateways, terminais wireless, antenas,
sistemas de vigilância, sistemas de comunica-
ção remota e videoconferência para bancos,
escolas, hospitais, governos municipais.
Neste momento, a Huawei Technologies
Co Ltd é o maior fabricante mundial de equi-
pamentos de telecomunicações, depois de
ter ultrapassado a Sony-Eriksson. Fornece 45
operadoras mundiais de telecomunicações
(entre as quais a TMN, Vodafone e Optimus,
em Portugal), que representam 80% do merca-
do. Tem mais de 140 mil empregados, centros
de investigação e desenvolvimento nos EUA,
Alemanha, Suécia, Índia, Rússia e Turquia,
além da China, nos quais investiu, em 2011,
quase 4 mil milhões de dólares, número sen-
sivelmente equivalente ao dos lucros obtidos
pela empresa no ano anterior.
É uma das maiores e mais bem-sucedidas
empresas da China e do mundo. Tudo isto
continuando a ser relativamente desconhe-
cida, como marca.
A explicação, segundo os responsáveis pelo
departamento de Relações Públicas (onde tra-
balham mais de 30 pessoas, em Shenzhen), é
que a empresa se tem concentrado, até aqui,
em produtos dirigidos a outras empresas, ou
instituições, e não aos consumidores fi nais.
Só recentemente a Huawei se tem dedicado
aos telemóveis e tablets. Daí a marca não ser
muito conhecida, apesar de ser usada por tan-
ta gente no mundo inteiro.
No esforço por obter reconhecimento, a
Huawei tenta imputar uma fi losofi a a toda a
sua actividade. A Apple, por exemplo, tem
valores facilmente identifi cáveis — o design
dos produtos, a facilidade de utilização, a sua
vocação para as áreas profi ssionais mais cria-
tivas. Daí ser uma das marcas mais reconhecí-
veis no mundo. Mas a Huawei tem o quê?
Como toda a gente, e todas as instituições,
tem uma história, um progenitor, uma pátria.
E isso, fatalmente, defi ne a sua personalidade.
A Huawei nasceu na China em 1987, fundada
por um engenheiro ofi cial do Exército de Li-
bertação Popular, e iniciou a sua actividade no
mundo rural. Semelhanças com a Apple?
Ter nascido no campo marcou para sempre
o carácter da empresa.
Eric, ajudado por uma série de técnicos,
explica-me o funcionamento das várias esta-
ções de telecomunicações concebidas para
funcionar em zonas onde o abastecimento
eléctrico é irregular, onde os terminais de re-
cepção são rudimentares e até onde há pro-
blemas com a chuva e o vento, ou mesmo os
ratos, que roem os cabos.
Ter desenvolvido esse tipo de equipamentos
e soluções dá agora vantagem à Huawei nos
mercados de países pequenos ou pobres, quer
se trate de comunidades pouco populosas da
Escandinávia, quer das regiões isoladas e sem
infra-estruturas de África.
É um valor que pode ser associado à marca,
e divulgado, mas não deixa de ter um carácter
dúbio: ao ser a marca de telecomunicações
dos pequeninos e dos pobres, surge também
aos olhos de muitos como uma etiqueta sub-
versiva. Principalmente por se ter tornado rica
e poderosa. No fundo, o problema de imagem
da própria China.
Eric mostra-me os sistemas de câmaras de
vigilância para cidades, os planos de arma-
zenamento e processamento de informação,
monitorização, comunicações e controlo elec-
trónico para governos e bancos. E adivinha o
que estou a pensar. “Essas perguntas fi cam
para mais tarde”, diz ele. “Roland Sladek ex-
plicará tudo.”
Uma comissão do Congresso dos EUA aca-
bara de emitir um parecer segundo o qual a
Huawei não era uma empresa de confi ança,
porque podia estar a ser usada para activida-
des de espionagem pelo Governo chinês. “A
China tem os meios, a oportunidade e o moti-
vo para usar as empresas de telecomunicações
com propósitos maliciosos”, diz o relatório
da comissão da Câmara dos Representantes.
“Com base na informação disponível, clas-
sifi cada e não-classifi cada, concluímos que
não se pode confi ar que a Huawei e a ZTE
estejam livres da infl uência governamental, e
portanto constituem uma ameaça à segurança
dos EUA.” Segundo os investigadores ameri-
canos, os equipamentos Huawei podem ser
usados para interceptar comunicações, ouvir
conversas ou aceder a informação secreta.
Qualquer aparelho Huawei, disse ainda um
comentador americano, pode ter um dispo-
sitivo que permite ser desligado perante uma
ordem do Governo central chinês. Em caso
de uma guerra, Pequim poderia bloquear as
comunicações em todo o mundo, ou num de-
terminado país ou região.
Todas estas suspeitas e acusações alucina-
das são possíveis porque a Huawei tem uma
vulnerabilidade radical: como tudo na China,
não se sabe a quem pertence.
De novo no Audi A8, avançámos
para a zona da administração e
direcção. Jardins, avenidas com
árvores, um lago, casas luxuosas,
com paredes de xisto. Entrámos
no Centro de Educação e Treino,
um edifício ultramoderno, com
enormes átrios em vidro, mármo-
re e madeira, jardins interiores,
salas de aula com ecrãs enormes
nas paredes, uma cantina colossal e quase lu-
xuosa. Era isto o miserável e sinistro mundo
industrial da China?
Num pequeno restaurante de Luohu, a zona
de Shenzhen mais próxima da fronteira com
Hong Kong, Sheng Long e Xiang Ning conver-
savam sobre o trabalho. “Não devia ter muda-
do de emprego”, admitia Xiang. “Agora quero
voltar e é impossível.”
Sheng consolava-o: “Eu estou bem pior.
Ando há meses à espera de um lugar onde
ganhe mais do que a tipografi a, mas não sur-
ge nada.”
Xiang trabalhou numa fábrica da Huawei,
e agora é operário da Foxconn, a gigantesca
empresa vizinha, de origem taiwanesa. É da
província de Hebei e vive há seis anos em
Shenzhen. Sheng é de Anhui, de onde acaba
de regressar, após umas curtas férias (vários
feriados seguidos chamados a Semana de Ou-
ro). Conheci Sheng no autocarro, na viagem
desde Linquan, em Anhui. É um rapaz magro
e tímido, de enormes óculos e dentes negros.
Arranjou emprego na tipografi a através de
uma amiga da namorada, uma rapariga da
terra dele que trabalha numa fábrica de sa-
patos desportivos em Dongguan.
A tipografi a raramente permite fazer horas
extraordinárias. Oito rapazes fechados numa
cave malcheirosa trabalham dez horas por dia
com um salário mensal de três mil yuan (370
euros). Folga um dia por semana e feriados.
Sem alojamento.
Na Foxconn o salário é um pouco mais al-
to, mas a grande vantagem não é essa. São as
horas extraordinárias, que permitem fazer
outro tanto, ou mais. Ou melhor, permitiam.
Agora, com a crise internacional, há menos
encomendas e as horas extra são só para os
amigos dos encarregados. Os trabalhadores
sentem-se defraudados. Muitos deles, foi pe-
la possibilidade de trabalharem 16 horas por
dia que entraram na empresa. O esforço era
enorme, mas permitia um salário quase equi-
valente a mil euros.
Mas não é por isso que entraram em greve,
explicou Xiang. É por causa da discrimina-
ção. “Uns têm direito a horas extraordinárias,
outros não.”
Eu estava pasmado. Nada daquilo vinha nas
notícias. “Os trabalhadores da Foxconn estão
em greve?”
“Nem todos. Mas tem havido protestos den-
tro da fábrica.”
O complexo da Foxconn em Longhua, Shen-
zhen, ao lado do da Huawei, integra várias
fábricas, com um total de mais de 350 mil tra-
balhadores. O recinto é cercado com muros
altos e vigiado por guardas armados. Na sua
maioria, os trabalhadores vivem lá dentro.
Utilizam os refeitórios, os supermercados, as
lojas, bem como o ginásio, piscinas ou o hos-
pital. É uma autêntica cidade, auto-sufi ciente,
e estranhos não podem entrar. O controlo é
rigoroso.
Na Foxconn são produzidos a quase totali-
dade dos iPhone e outros equipamentos da
Apple, mas também os telemóveis Nokia, Sony
e Eriksson, os computadores Dell e de muitas
outras marcas. Os próprios telemóveis Huawei
são fabricados lá, embora vários componen-
tes de equipamentos montados na Foxconn
sejam fabricados pela Huawei. A colaboração
é intensa entre os dois vizinhos.
Para Xiang, que trabalhou nas linhas de
montagem da Huawei antes de entrar para a
Foxconn, não há muitas diferenças. “Na Fo-
xconn, o trabalho é mais rápido e mais repe-
titivo. Ganhava-se mais, por causa das horas
extraordinárias, mas os trabalhadores pro-
A MAIOR PARTE CONSEGUE TER UM NÍVEL DE VIDA COMO NUNCA TEVE, NEM VIU NINGUÉM TER NA FAMÍLIA. O PROBLEMA NÃO É O DINHEIRO. É NÃO SABER O QUE FAZER À VIDA. SÓ TRABALHO, MAIS NADA”Xiang, trabalhador da Foxconn
Em cima, trabalhadores migrantes à espera do comboio na estação de Dongguan Leste. Em baixo, estação de Hongqiao, em Xangai. O Festival de Outono e o Dia Nacional levam milhares de pessoas a deslocar-se.No plano anterior, uma fábrica têxtil em Suining, na província de Sichuan
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26 | Domingo 4 Novembro 2012 | 2
testam mais. Na Huawei, as pessoas gostam
da empresa.”
Na Foxconn, uma das formas de protesto
é o suicídio. Chegou a assumir números tão
elevados (dezenas por ano), que a empresa
mandou erguer redes sob as janelas das torres-
dormitório. No entanto, os salários na Fox-
conn, a par com os da Huawei, são dos mais
elevados da região. “A maior parte das pessoas
ali consegue ter um nível de vida como nunca
teve, nem viu ninguém ter na família, nas al-
deias de onde vêm”, disse Xiang. “Todos têm
telemóvel, compram roupa e enviam dinheiro
todos os meses para a família. O problema não
é o dinheiro. É não se saber o que fazer à vida.
Só trabalho, mais nada.”
Longe das famílias e dos ambientes
culturais onde sempre viveram, os
trabalhadores de Shenzhen vivem
num vazio difícil de preencher. A ci-
dade nada mais tem para oferecer
além dos gigantescos centros comer-
ciais. Eles são o entretenimento, o
espectáculo, a realização pessoal e
o sonho. São a cultura, para popu-
lações cujo único desígnio é aban-
donar o círculo da pobreza. Estar aqui, na
cidade, é viver. Seja lá o que isso signifi que.
É preciso chegar a este patamar. O resto não
é urgente.
Saímos do restaurante e avançámos por uma
das ruas paralelas ao enorme mercado coberto
de Luohu, o grande centro da contrafacção e
produtos de luxo falsos, à mistura com massa-
gens, salas de chá e balcões de electrónica. À
volta cintilam arranha-céus de cem andares,
mas aqui predominam prédios velhos, de 20
andares, que albergam escritórios manhosos
e hotéis, muitos hotéis com nomes chineses e
sem qualquer anúncio à entrada.
“Miss, miss”, diziam mulheres que se apro-
ximavam, ao ver três homens sozinhos. “Ve-
nham! Lindas misses. Venham ver e escolham
a vossa preferida. Custa 300 yuan (37 euros).
Custa 200…” São geralmente mulheres de
meia-idade, ou homens, que vêm tentar an-
gariar os clientes para os inúmeros pequenos
bordéis clandestinos da zona. Mas muitas ve-
zes são as próprias prostitutas que se aproxi-
mam, fornecendo logo dados precisos, acom-
panhados de ilustração gestual ou onomato-
paica, sobre os serviços que prestam.
Dias mais tarde, decidi voltar ali ao cair da
noite, e aceitar a sugestão de um homem sem
uma perna que me abordou na rua com a fo-
tografi a de um quarto de hotel. Segui-o por
ruelas atafulhadas de mercados de legumes,
ofi cinas, salas de massagem e bordéis, até um
hotel decadente e fétido no 17.º andar de um
prédio degradado. Dormi lá, num quarto mi-
núsculo e interior, por cerca de três euros.
Paguei, recolhi ao meu aposento, e logo depois
começou a dança. Durante toda a noite, mu-
lheres de idades variadas vieram bater à minha
porta oferecendo sexo. O preço oscilava entre
500 e 100 yuan (12 euros), sem contar com a
própria empregada da limpeza, sexagenária,
que aos primeiros raios da manhã também
veio fazer a sua oferta: 50 yuan.
Logo após as primeiras candidatas, foi o em-
pregado da recepção que me bateu à porta,
com uma enorme calculadora na mão. En-
quanto fazia um gesto que pretendia signifi -
car cópula, digitou: 200+50. Apontava para
o 50 e para ele, querendo dizer que era a sua
comissão.
Tsian, que aceitou falar comigo, contou que
trabalhou em várias fábricas antes de come-
çar a prostituir-se num salão KTV, ou seja, de
karaoke. Queria ganhar mais dinheiro, e nas
fábricas o salário nunca ia acima dos três mil
yuan. Um dos patrões deu-lhe a oportunidade.
No KTV atendia clientes ricos por 800 ou mil
yuan. “Finalmente podia ser livre. Comprava
o que queria. E fi z muitos amigos empresários,
com bons carros, que me levavam a jantar.”
Durou até Tsian ter 30 anos. Trabalhou em
salas de karaoke, em cabeleireiros, em centros
de massagens, sempre como prostituta e sem-
pre em Donggwan. É ali que se concentra a
maior parte das raparigas do campo que vêm
trabalhar nas fábricas, de têxteis ou calçado, e
por isso os clientes sabem que é ali o centro da
prostituição. Para as raparigas é fácil, e muitas
vezes necessária, ou óbvia, a deslocação de
um emprego para o outro, embora sempre
no mesmo sentido.
“Voltar para as fábricas é muito difícil. Nun-
ca mais nos habituamos de novo àquela vida”,
disse Tsian, que agora tem 35 anos. “Muitas
raparigas gostariam de se prostituir, para se
libertarem daqueles horários de 14 horas nas
fábricas. Falta-lhes a coragem porque têm ami-
gas aqui que são da mesma terra e podem ir
contar às famílias. Mas eu não conhecia nin-
guém. Não fazia qualquer diferença o tipo de
trabalho a que me dedicasse. Agora já não me
querem no KTV, venho aos hotéis.”
No mundo das fábricas vai-se mudando de
emprego, sempre para melhor, até chegar a
um limite, impossível de ultrapassar. No mun-
do da prostituição começa-se geralmente pelo
topo, e vai-se mudando sempre para pior. E
não há limite de sordidez que não possa ser
ultrapassado.
Liu, a namorada de Sheng Long, tem
22 anos e trabalha numa fábrica em
Dongguan. Esteve noutras onde ga-
nhava mais, mas esta proporciona-
lhe a segurança de um emprego es-
tável. Fabrica solas de borracha para
sapatilhas Nike. Ganha 2500 yuan,
mas tem alojamento gratuito, nas
instalações da fábrica. Partilha um
quarto com outras cinco raparigas,
em beliches. Encontrei-a num centro comer-
cial em Dongguan.
“Quando vim para Shenzhen, a única coisa
que queria era comprar um telemóvel. Traba-
lhei em sítios onde nem podíamos ir à casa de
banho, trabalhávamos à noite e aos fi ns-de-
semana, e só pagavam ao fi m de três meses.
Mas quando consegui comprar o telemóvel,
fi quei feliz.”
Liu sentiu que era fi nalmente uma rapari-
ga da cidade. A partir daí, não se pode vol-
tar atrás. “Passei momentos muito maus. Fui
assediada por um patrão, que me atacou e
agrediu. Fiquei sem emprego. Mas não podia
desistir. Que fazia? Voltava para a aldeia? Que
iria fazer lá? Eu nunca trabalhei no campo. As
pessoas da minha idade que estão na cidade
vieram directamente da escola. Nunca traba-
lharam na agricultura. Isso é coisa da geração
dos nossos pais. Para mim, regressar à aldeia
é uma derrota.”
Para muitas raparigas que vêm para a ci-
dade, não há caminho de retorno, porque,
segundo a tradição chinesa, só podem dei-
xar a casa dos pais para casar. Os rapazes têm
sempre o seu lugar na casa onde nasceram,
as raparigas não. E é difícil arranjar marido
quando se volta à aldeia. Os rapazes que fi ca-
ram desdenham das raparigas que adquiriram
hábitos citadinos; e às raparigas não agradam
os rapazes do campo, que consideram de ní-
vel inferior.
É também na cidade que é preciso encon-
trar o amor. Essa é uma das razões que tornam
o telemóvel tão importante. A outra é a neces-
sidade de estabelecer muitos contactos, para
encontrar empregos e subir na “carreira”. O
telemóvel é por isso um símbolo da nova vida
nas cidades.
E isso é ainda mais evidente na cidade onde
se produz a maior parte dos telemóveis do
mundo. Huaqiangbei é a zona de Shenzhen
consagrada à electrónica. É uma avenida e
muitas ruas perpendiculares onde só há lojas
de telemóveis, computadores, câmaras. As
mais populares são uma espécie de armazéns,
com muitos andares e centenas, ou milhares,
de bancas onde se vende toda a espécie de
equipamentos e de serviços. Telemóveis, ta-
blets e computadores ocupam a maior parte
dos andares, com todos os modelos e todas as
marcas, verdadeiras e falsas, mas depois há
andares inteiros só com carregadores, outros
especializados em teclados, modems, pens,
chips electrónicos.
Cada “loja” destes centros consiste em ape-
nas um balcão com uma montra, e um número
indeterminado de empregados muito jovens,
de dois a dez, rapazes e raparigas, que nunca
dizem “não” a um cliente. Têm sempre tudo,
e se não têm fazem um telefonema e mandam
buscar, em poucos minutos. São milhares de
lojas, e milhares de clientes, são imensas a
oferta e a procura, e diz-se que alguns dos
proprietários destes minúsculos estabeleci-
mentos são multimilionários.
Armazéns inteiros não são de vendas, mas
de reparações. Empregados adolescentes, de
ambos os sexos, debruçam-se sobre circuitos
integrados, ou computadores abertos e estri-
pados, enquanto os clientes esperam sentados
num banquinho.
Song tem 19 anos, usa cabelo pintado de
louro e minissaia e estava a desmontar, uma
a uma, as peças do teclado de um Mac Power-
book. Veio de uma aldeia como toda a gente
em Shenzhen (a cidade, com 14 milhões de
habitantes, tem praticamente 30 anos) e co-
meçou por trabalhar numa loja. Mas gostava
de computadores e tentou aprender com os
colegas sobre o seu funcionamento. “Passei
noites e noites acordada, a estudar, a mexer
nas peças de um computador velho, a montar
e a desmontar”, contou Song que ao lado do
teclado espalhado sobre o balcão tinha um
pedaço de pizza e um prato de sopa de massa
instantânea. “Para mim é fácil. A minha cabe-
ça funciona como um computador. Olho para
os circuitos e percebo logo tudo.”
É o outro lado do mundo das fábricas. A
possibilidade de subir na vida. Para muitos
jovens, não basta comprar um telemóvel e
passear no centro comercial. Querem apren-
der, adquirir capacidades que lhes permitam
conquistar empregos melhores nas empresas,
ou aceder a empresas mais prestigiadas e pro-
missoras, como a Huawei. Há uma hierarquia,
nas fábricas, nas empresas, tal como entre
os trabalhadores. E para ascender é preciso
lutar. A ascensão social, em si mesma, é todo
um mundo, todo um mercado.
Pululam os cursos de informática, de ven-
das, de gestão, de inglês, de técnicas de falar
em público, de como responder a entrevistas
ou simplesmente de autoconfi ança e desen-
volvimento pessoal. Circula também toda uma
literatura de auto-ajuda e autopromoção.
Alguns cursos e personal coaches tornam-
se populares e prestigiados e podem custar
OS DA MINHA IDADE VIERAM DIRECTAMENTE DA ESCOLA. NUNCA TRABALHARAM NA AGRICULTURA. ISSO É DA GERAÇÃO DOS NOSSOS PAIS. REGRESSAR À ALDEIA É UMA DERROTA”Liu, operária em Dongguan
Uma fábrica de têxteis em Huaibei (na província de Anhui). Em baixo, os dormitórios para os trabalhadores de uma fábrica de sapatos em Shenzhen. Alugar casa é muito caro, e há quem passe anos sem sair dos recintos por ter de dedicar todo o seu tempo à fábrica, para conseguir enviar dinheiro para as aldeias
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28 | Domingo 4 Novembro 2012 | 2
fortunas. Para lhes aceder, é necessário já um
certo estatuto.
A mobilidade social é possível, mas
não fácil. A maior parte dos tra-
balhadores industriais da cidade
vieram das aldeias e não têm di-
reito a nenhum apoio estatal pa-
ra a sua formação porque são…
ilegais.
Na China, desde uma lei recu-
perada em 1958, os cidadãos têm
bilhetes de identidade diferencia-
dos consoante vivem nas cidades ou nas zonas
rurais. Aos cidadãos urbanos são concedidos
direitos privilegiados aos cuidados de saúde
e à educação. Quem vem do campo para a
cidade, apesar de o fazer, hoje, com o encora-
jamento do Governo, não consegue alterar o
seu estatuto, continuando a ser, teoricamente,
e muitas vezes uma vida inteira, cidadão ru-
ral. É um sistema, designado por hukou, que
se tornou hoje numa das principais fontes de
discriminação e protestos entre os trabalha-
dores das fábricas.
Conseguir um bilhete de identifi cação urba-
no é um processo burocrático muito difícil, que
implica, entre outras exigências, que o candi-
dato possua uma casa na zona urbana. Ora o
preço das casas nas cidades subiu de tal forma
nos últimos anos, que a única alternativa para
os trabalhadores migrantes é arrendar uma, ou
um quarto. Grande parte deles, aliás, vive nas
instalações fornecidas pela própria fábrica.
Em muitas cidades, há uma rivalidade laten-
te, que muitas vezes resulta em violência, entre
os trabalhadores urbanos e os migrantes, de
origem rural, designados por nongmingong e
considerados de segunda classe. Não é o caso
de Shenzhen, onde quase toda a gente é mi-
grante. Aqui, todos os cidadãos são de segunda
classe. Nongmingong.
Shenzhen é uma Zona Económica Especial
(ZEE), a primeira estabelecida na China, após a
reforma de Deng Xiaoping, em 1978. Enormes
outdoors com a imagem de Deng distribuem-se
aliás pela cidade, numa homenagem ao ho-
mem que a transformou na mais rica da China.
A criação da ZEE, com inúmeros incentivos,
atraiu o investimento estrangeiro e misto,
trazendo para a cidade fábricas gigantescas
que revolucionariam a economia chinesa e
mundial. Shenzhen foi o motor do crescimen-
to económico da China. O modelo foi depois
aplicado a outras cidades.
Nos primeiros anos, a multidão de migran-
tes que veio dos campos para trabalhar nas
fábricas formou um lumpen miserável que en-
vergonhou o país. Até então, a pobreza esta-
va escondida no imenso e inacessível mundo
rural. Agora surgia exposta, como uma chaga
digna da revolução industrial novecentista, um
escândalo do mundo moderno. Era a época
dos têxteis, do trabalho escravo.
Mas essas massas migrantes seriam uma
imensa fonte de enriquecimento, e hoje trans-
formaram-se na nova classe média da China. Os
salários já não são de 20 euros, mas de 400, as
pessoas acederam a uma panóplia de bens de
consumo e catapultaram o país para a primeira
linha da economia mundial.
Empresas como a Huawei são hoje o rosto
da China. As condições de trabalho nas suas
fábricas podem ainda parecer degradantes,
mas para os padrões chineses representam
uma emancipação.
O complexo de produção da Huawei situa-
se em Dongguan. É outro campus de acesso
restrito, com as suas fábricas, os seus restau-
rantes e lojas, os seus dormitórios. Estaciona-
dos perto dos portões de entrada contam-se
várias dezenas de autocarros, que todos os
dias levam os trabalhadores para as suas zo-
nas de residência. Porque nem todos podem
viver nos bairros da empresa, no interior do
campus.
Visitei uma das fábricas, uma linha de pro-
dução de circuitos integrados, onde trabalham
cerca de 13 mil pessoas. Toda a maquinaria é ul-
tramoderna, bem como os sistemas de contro-
lo de qualidade, de higiene ou de manutenção
de temperaturas e de níveis de esterilização
nas unidades produtivas. Sistemas de incentivo
à disciplina e produtividade, explicaram-me,
foram aplicados por especialistas japoneses
contratados para o efeito.
À entrada da linha de montagem, há um qua-
dro onde cada trabalhador coloca, no início do
dia, um ícone com um smile, uma expressão
triste ou neutra. Deverá fazê-lo de acordo com
o estado de espírito que o anima quando vai
trabalhar. Supervisores examinam mais tarde
o quadro, para prevenir atempadamente situ-
ações de depressão, com consequente baixa
de produtividade e eventual suicídio. Outro
quadro, noutra zona da fábrica, anuncia os
prémios de produtividade.
A um operário que desempenhava uma fun-
ção repetitiva de inspecção de circuitos numa
placa perguntei quanto ganhava. Com isso
criei um momento de embaraço entre todos os
presentes. “É uma regra da empresa não falar
de dinheiro”, explicaram. “Ninguém pergunta
a um colega quanto ganha. Não sabemos os
salários uns dos outros.”
Mais tarde visitei os dormitórios. Situam-se
em bairros cercados onde só se entra ou sai
com um cartão próprio. Mais uma vez, na nos-
sa limusina preta circulámos por todo o lado,
atravessámos checkpoints de guardas armados
sem que ninguém nos perguntasse nada.
Desrespeitando as ordens de Amy
Yan, bati à porta de um dos apar-
tamentos. Depois outro e outro.
Os prédios são de construção
pobre, e em cada um dos seis
ou oito andares há mais de 60
quartos, de portas alinhadas em
corredores escuros, como num
hotel. Em muitos dos prédios, os
quartos têm oito camas, em beli-
che, para oito trabalhadores. Cada um paga 50
yuan (seis euros) por mês, à empresa. Noutros
prédios há pequenos apartamentos para famí-
lias. Uma sala, um quarto, cozinha e casa de
banho sem sanita.
“Vivemos aqui há quatro anos”, disse, num
destes apartamentos, Guiten Meng, de 23 anos.
Veio de Chongqing, trabalha na linha de mon-
tagem, ganha quatro mil yuan por mês, com
as horas extraordinárias. Aqui, sem a pressão
dos supervisores, não tem problemas em falar
dos salários. Agora teve um bebé e trabalha
menos horas. A mãe veio de Chongqing pa-
ra tomar conta do menino de quatro meses.
Dorme no sofá. O marido de Guifen também
trabalha na fábrica. Tem o mesmo salário. Des-
de que chegaram, nunca foram a Shenzhen.
“Há um centro comercial aqui em Dongguan”,
explicou Guifen, sempre com o telemóvel na
mão. “Fomos lá algumas vezes. Não é preciso
ir mais longe.” Mas estão fartos de viver no
dormitório, querem encontrar uma casa fora
do campus.
Vivendo aqui, raramente há oportunidade
de sair, porque tudo fi ca longe e é preciso dar
muitas horas de trabalho à empresa. Mas a de-
dicação não signifi ca necessariamente promo-
ções, quando se trata das camadas mais baixas
da mão-de-obra. Nenhum dos trabalhadores
das linhas de montagem com quem falei tinha
sequer ouvido falar do sistema de acções em
vigor na Huawei. Segundo a informação ofi cial,
contudo, 65% dos trabalhadores são donos de
uma parte da empresa.
Quando se tem mais de dois anos de serviço
e se é cidadão chinês, obtém-se o direito de
possuir acções. É isso que defi ne o estatuto
da empresa, explicou-me Roland Sladek, pre-
sidente do departamento de media internacio-
nais: trata-se de uma cooperativa.
Todas as acções pertencem aos trabalhado-
res, segundo um sistema de regras de antigui-
dade e promoções. As acções não são transac-
cionáveis, nem sujeitas a especulação. Ainda
segundo Roland, um alemão cuja função é
promover internacionalmente a boa imagem
da Huawei, o líder e fundador da empresa,
Ren Zhengfei, detém a maior parte dessas ac-
ções: 1,4%.
O board de directores e toda a estrutura de
gestão são conhecidos, disse Roland, pelo que
são absurdas as alegações de que o Governo
controla a Huawei.
Há no entanto uma célula do Partido Comu-
nista na empresa. Até que ponto o seu papel
é determinante, não se sabe. Sabe-se que a
Huawei é uma empresa de imensa importância
estratégica no desenvolvimento da China e na
sua posição internacional.
Precisamente por isso, seria estúpido com-
prometer o seu êxito usando-a como instru-
mento de espionagem, argumenta Roland. Tec-
nicamente, aliás, as acusações são absurdas. “É
preciso não ter nenhum conhecimento deste
mercado, nem do funcionamento das coisas,
sob o ponto de vista científi co.”
Faz sentido. Se a Huawei incorpora chips
de espionagem nos seus dispositivos, como
interpretar o facto de, nas suas linhas de mon-
tagem, se fabricarem componentes usados pe-
la Foxconn? Na fábrica de circuitos integrados
da Huawei pude ver, alinhados numa unidade
de armazenamento, centenas de enormes cai-
xotes negros com letras gravadas a branco:
Foxconn. A mesma onde são fabricados os
iPhone, os Nokia e os Eriksson.
Ren Zhengfei trabalhou no Exército de Liber-
tação Popular porque eram os tempos da Revo-
lução Cultural e não era possível desenvolver
investigação científi ca noutro lugar, explicou
Roland. Isso não signifi ca que a Huawei esteja
hoje ao serviço das Forças Armadas chinesas.
Só muito recentemente a Huawei afi rma ser
uma empresa privada. Defi nia-se como “co-
lectiva”, um estatuto incompreensível para
os seus parceiros internacionais.
Quem observa de perto a evolução da em-
presa, porém, reconhece a infl uência governa-
mental nas suas decisões estratégicas. Quando
se apresenta a concursos internacionais, pode
ter preços abaixo dos do mercado, porque tem
apoio incondicional, nomeadamente dos ban-
cos chineses (todos estatais), que têm ordens
claras do Governo para sustentar a Huawei.
Não seria possível ser de outra forma. Ne-
nhuma empresa privada desta dimensão pode-
ria ser independente num regime de partido
único. Se estivesse sujeita e abandonada às
contingências e crises dos mercados interna-
cionais, estaria a colocar em perigo a recente
prosperidade dos seus milhares de trabalha-
dores. E eles não o permitiriam. Ou revoltar-
se-iam contra o próprio regime. Tal como as
terras, na China as fábricas “são do povo”.
MUITAS RAPARIGAS GOSTARIAM DE SE PROSTITUIR PARA SE LIBERTAREM DOS HORÁRIOS DE 14 HORAS NAS FÁBRICAS. FALTA--LHES CORAGEM PORQUE TÊM AMIGAS QUE SÃO DA MESMA TERRA”Tsian, prostituta
Vista do porto de Xangai. Em cima, trabalhadores migrantes da fábrica de sensores Measurement Specialties Ltd., em Shenzhen. As centenas de milhões de chineses que deixaram o campo para trabalhar nas cidades foram o motor da transformação social da China
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AS ORGULHOSAS CIDADES DO FUTURO
PAULO MOURA , NA CHINA
Na China, a ideia de cidade está ligada à de utopia, como na Europa acontecia na Renascença. No entanto, nessas imensas metrópoles de sonho, nunca se vê o céu. Aqueles que foram os grandes erros ur-banísticos do Ocidente parecem estar a ser repetidos, com consciência e orgulho
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PEZ/
AFP
32 | Domingo 4 Novembro 2012 | 2
Cada cidade da China tem um mu-
seu do orgulho. Hoje, em todo
o mundo desenvolvido, há um
mal-estar em relação às grandes
cidades. Uma má consciência que
resulta da fraca qualidade de vida
que os grande centros urbanos
proporcionam. A poluição, a de-
sumanização dos relacionamen-
tos, a criminalidade, tudo parece
ser mau nas cidades modernas. A tendência
no mundo desenvolvido, pensava-se, era fugir
das cidades. A vida no campo, os meios pe-
quenos, as comunidades de dimensão familiar,
onde se pode andar de bicicleta e estar em
contacto com a Natureza, isso é que é o ideal
de vida dos bem-pensantes do Ocidente. Nos
EUA, os ricos mudam-se para os subúrbios,
onde há melhor qualidade de vida. Na Euro-
pa retira-se o trânsito automóvel dos centros
e zonas históricas, promove-se o jogging e o
uso da bicicleta. As cidades tal como (ainda)
existem são um pesadelo histórico, uma ver-
gonha civilizacional herdada dos tempos da
revolução industrial…
Nada disto faz sentido na China. Cada cidade
tem o museu da cidade, para mostrar orgu-
lhosamente o património que se construiu, a
magnifi cência do meio ambiente concebido
e criado pelo ser humano. E os planos para
construir mais, no futuro.
O maior de todos esses museus é o de Xan-
gai, que é também a maior cidade da China, e
do mundo. Intitula-se Centro de Exposição e
de Planeamento Urbano de Xangai e situa-se
num edifício enorme e ultramoderno, todo
em cristal, em forma de pagode, no centro
da cidade.
No hall principal há uma maqueta gigante,
com 600 metros quadrados, a uma escala de
1:500, da cidade. A que existe hoje e alguns
elementos que ainda estão a ser construídos,
ou estão planeados. As alterações na cidade re-
al vão sendo introduzidas na maqueta-modelo,
mas a mudança é tão rápida que se considerou
melhor incluir já o futuro na maqueta.
Em todo o restante espaço do museu, há
elementos sobre a história de Xangai, sobre
teorias urbanísticas, sobre planos antigos que
não chegaram a ser levados à prática. O andar
subterrâneo do museu é constituído por ruas,
praças e casas réplicas em dimensão real da
Xangai dos anos de 1930. Há lojas e cafés aber-
tos nessas ruas, por onde se pode caminhar,
e que se prolongam para fora do perímetro
do museu, ligando-se com os subterrâneos
do metro, e mais à frente com as ruas ver-
dadeiras da cidade, numa transição que vai
avançando no tempo e na arquitectura. Ou
seja: as réplicas das ruas antigas tornaram-se
parte da cidade moderna, emprestando-lhe
sentido e legitimidade.
O boom urbano da China tem 30 anos. As
reformas económicas dos anos 80 levaram,
com a multiplicação da iniciativa privada, a
um aumento de produção e riqueza nos cam-
pos, que fez crescer as cidades. A fase seguinte
foi o desenvolvimento das indústrias, com as
criação de Zonas Económicas Especiais, que
acabaria por levar a um êxodo imenso de po-
pulações das zonas rurais para as urbanas. Em
pouco mais de 20 anos, mais de 250 milhões
de pessoas mudaram-se para as cidades, no
maior movimento migratório jamais registado
na história humana.
De país tradicionalmente rural, até ao fi nal
do século XX, a China está a transformar-se
numa sociedade urbana. Aproximadamente
metade da população (650 milhões de pes-
soas) já vive nas cidades. Mais do que isso: a
China quer transformar-se numa sociedade
urbana.
Aqui, viver nas cidades é símbolo de de-
senvolvimento, de emancipação. Apesar dos
imensos problemas, desigualdades e injus-
tiças, o êxodo para as cidades representa a
grande libertação.
Em Xangai vivem hoje mais de 24 milhões
de pessoas, em Pequim 19 milhões, 16 milhões
em Guangzhou, 14 milhões em Shenzhen, ou-
tro tanto em Shengdu, 12 milhões em Tianjin,
11 milhões em Harbin, 10 milhões em Wuhan.
Mais de 100 cidades têm mais de um milhão de
habitantes. E o crescimento continua. Prevê-
se que mais 400 milhões possam entrar nas
cidades até 2025.
E ninguém vai fazer nada para o impedir.
Pelo contrário. O Governo quer que isso acon-
teça. As pessoas querem que isso aconteça.
O que é preciso é preparar as cidades para
a chegada dos novos milhões. Com as suas
famílias, os seus telemóveis e os seus carros.
As cidades chinesas já são as mais poluídas do
mundo, mas prevê-se a entrada de mais uns
milhões de automóveis nos próximos anos.
Pois há que abrir avenidas, criar parques de
estacionamento para os receber.
Na China, as cidades são a grande euforia co-
lectiva, o grande triunfo. São o futuro. Não está
na moda viver no campo, morar perto do em-
prego, andar de bicicleta ou reencontrar a paz
e a autenticidade das pequenas comunidades.
Não é romântico falar de grilos e passarinhos,
ninguém quer cultivar uma horta ou respirar
ar puro. O que está na ordem do dia é a cidade,
a confusão, o barulho, a fumarada.
Na China de hoje, a cidade não é um mal
necessário: é um ideal. Só uma coisa está er-
rada com elas: são ainda demasiado peque-
nas. Deveriam crescer mais e vão crescer mais.
Xangai, por exemplo, espera a entrada de mais
cinco milhões de pessoas nos próximos cin-
co anos, ou menos. Por isso está a construir
habitação para elas. E também edifícios para
elas trabalharem. A rapidez do crescimento
é tal que não se compadece com os ritmos
convencionais de construção. Novos métodos
estão a ser desenvolvidos por construtoras,
baseados na montagem por módulos, previa-
mente construídos em fábricas. Um hotel de
20 andares já foi construído em 15 dias e a
mesma empresa propõe-se erguer um arra-
nha-céus de 220 andares, que será o mais alto
do mundo, em apenas 90 dias, na cidade de
Changsha, no Sul do país.
As cidades crescem ao ritmo e de acordo
com as previsões das necessidades, porque na
China tudo é planeado. Num país de economia
livre, é difícil fazer cumprir planos e regras
Neste plano: Pequim, uma cidade com 19 milhões de habitantes. No plano anterior, a Xangai colonial
Na Europa e nos EUA as pessoas têm carros há cem anos. Os chineses só têm há 20. Estão felizes por terem um carro e querem trazê-lo para a cidade. Não os podemos impedir”
STRINGER SHANGHAI/REUTERS
2 | Domingo 4 Novembro 2012 | 33
urbanísticas. Na China, pode conceber-se uma
cidade e depois construí-la.
Lio Bo é o director do Centro de Planea-
mento da cidade de Xangai. Faz parte de uma
equipa que estuda as tendências e a evolução
e planeia a construção na cidade. Isso pare-
ce-lhe natural. Nem vê como poderia ser de
outra forma.
Na sua imensidão e aparente caos,
Xangai sempre foi planeada. “Os
primeiros planos da cidade datam
das décadas de 1920 e 1930. Em
1949, depois da revolução, cria-se
o terceiro grande plano urbanís-
tico para Xangai.”
Há alturas, porém, em que o
desenvolvimento é muito rápido
e ultrapassa o próprio plano. É
então necessário fazer ajustamentos. Agora,
com o crescimento da economia privada, não
é tão fácil fazer cumprir os planos, admite Liu.
“Mas o Estado continua a ter as decisões im-
portantes. A propriedade dos terrenos e dos
edifícios ainda não é completamente privada.
Pertence ao Estado. Os privados têm apenas
direito ao seu usufruto. Segundo a última re-
forma, as pessoas têm direito à propriedade
durante 70 anos. Depois não se sabe o que
acontecerá. Ainda não passaram 70 anos des-
de a reforma.”
Na zona de Pudong, na margem esquerda
do rio, onde há 20 anos apenas havia quintas e
fl orestas, foram construídos em pouco tempo
dezenas de arranha-céus, para albergarem
empresas, hotéis, centros comerciais, cen-
tros fi nanceiros. As expropriações dos terre-
nos foram feitas à força, sem indemnizações
razoáveis, o que levou a um movimento de
protestos e petições junto do Governo central.
Os terrenos foram considerados propriedade
do povo, necessários ao desenvolvimento da
cidade, pelo que puderam ser confi scados
sem restrições.
Os novos edifícios formam o que hoje é o
famoso em todo o mundo skyline de Xangai.
As imagens que surgem nos folhetos turísti-
cos e nos postais ilustrados são as fotografi as
tiradas das esplanadas do outro lado do rio, na
zona chamada Bund. É nesta área da cidade
que se situam os edifícios monumentais his-
tóricos, do período colonial de Xangai. Foram
construídos quando, após a Guerra do Ópio,
que os chineses consideram uma das maio-
res humilhações da sua História, a cidade foi
dividida em concessões entregues às várias
potências ocidentais.
Agora, os novos arranha-céus de Pudong
foram construídos segundo um alinhamento
que permitisse vê-los todos, do outro lado do
rio. Segundo o planeamento dos líderes da
cidade, foram construídos assim como uma
bofetada, de propósito para formarem aque-
le skyline, observável da Bund, o coração da
Xangai colonial.
No meio dos edifícios novos, onde há sem-
pre mais um em construção, circulam excur-
sões de turistas chineses, vindos de zonas ru-
rais ou de cidades mais pequenas. Fotografam
e fi lmam os arranha-céus, como se fossem mo-
numentos, fazem piqueniques nas esplanadas,
junto às passagens e viadutos. O movimento
de turistas é tão intenso que há fotógrafos
profi ssionais com bancas nas avenidas, para
fazerem o retrato dos excursionistas com os
arranha-céus em fundo, por 15 yuan.
Olhando em redor, do alto de uma destas
passagens para peões, com escadas rolantes
e miradouros, a paisagem é de facto impres-
sionante, com os arranha-céus, o rio, os bar-
cos, a cidade a perder de vista. Em qualquer
direcção para onde se olhe há edifícios e
construções que parecem fazer sentido, que
foram planeadas, imaginadas por seres huma-
nos. Para qualquer direcção em que se olhe
há uma sensação de conforto. É a cidade. A
maior cidade do mundo. Uma sensação de
nos sentirmos em casa.
Mas se em Xangai a dinâmica histórica da
cidade não permite o planeamento total e
absoluto, em comunidades como Shenzhen
é possível pôr em prática os sonhos mais ou-
sados. Há 30 anos, Shenzhen era uma aldeia.
Desde as reformas de Deng Xiaoping, cresceu
a um ritmo alucinante, até aos 14 milhões de
habitantes que tem hoje. Tudo na cidade é
novo, planeou-se e construiu-se a partir do
zero.
Numa das placas do museu da cidade de
Shenzhen conta-se a história da construção:
“A Comissão Militar central instalou 20 enge-
nheiros civis na cidade, para apoiar a cons-
trução da Zona Económica Especial de Shen-
zhen. Trabalhadores de todo o país vieram
para construir a cidade. Durante vários anos
de trabalho árduo, a infra-estrutura urbana
começou a ganhar forma. Shenzhen foi bap-
tizada como ‘A cidade que nasceu de um dia
para o outro’. Foi criada a expressão ‘velo-
cidade Shenzhen’, que é bem conhecida em
todo o país.”
Como não havia ali nada, a cidade foi con-
cebida de acordo com um ideal, uma utopia.
Há zonas residenciais, zonas comerciais, zonas
de cultura e lazer. Há passagens aéreas para
peões, sobre as avenidas, elevadores, espaços
para dança ou prática de Tai Chi. Os arranha-
céus ligam-se uns aos outros, há passagens
NICOLAS ASFOURI/AFP
JASON LEE/REUTERS
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36 | Domingo 4 Novembro 2012 | 2
para os centros comerciais e para o metro.
Tudo foi concebido em grande, imaginando
um futuro radioso. Tudo foi pensado para ci-
dadãos ricos, cultos e felizes.
Certos edifícios parecem sobredimensiona-
dos, mas isso deve-se sem dúvida ao seu ca-
rácter de vanguarda. Estão à frente do tempo.
As instalações do Centro Cívico, por exemplo,
com os seus toldos infi nitos em rendilhado de
aço, as suas galerias colossais, numa cadeia
de edifícios a perder de vista… estão vazias.
Não há ninguém em todo o espaço, visitan-
do os museus ou organizando e assistindo
a conferências e espectáculos. Tudo parece
estar à espera de um futuro, que ainda não
começou.
Os centros comerciais do centro da cida-
de, como aliás de todas as outras que visitei
na China, estão ocupados com as lojas mais
caras e exclusivas da indústria ocidental do
luxo. Entra-se e ergue-se em frente a Cartier,
do lado direito está a Hermés, do esquerdo
a Louis Vuitton, Mont Blanc em cima, Dior e
Channel em baixo. Nestas lojas, os preços são
duas ou três vezes mais altos do que noutras
equivalentes de Paris ou Nova Iorque. Preços
a que obviamente a nova classe média chinesa
não tem acesso.
Por vezes, o fausto exagerado de certas zo-
nas das cidades faz lembrar os países do Golfo
Pérsico. O desperdício, o esbanjamento, a os-
tentação que no Dubai ou Qatar se devem aos
proventos desmesurados do petróleo, ema-
nam aqui da riqueza estrambólica da produ-
ção industrial, da força da natureza que é a
mão-de-obra desses milhões de trabalhadores
imigrados dos campos.
Em Chongqing, um município de 32 milhões
de habitantes no centro da China, o centro da
cidade é ocupado por arranha-céus e cada um
deles tem as fachadas cobertas por anúncios
publicitários. Em cada um dos edifícios há um
centro comercial só com lojas luxuosas. Na
rua, à volta dos prédios, milhares de pessoas
circulam, comem espetadas de carne compra-
das aos vendedores ambulantes ou assistem a
espectáculos de rua. Ninguém entra nos cen-
tros comerciais, que estão vazios. São espa-
ços interiores imensos, forrados a materiais
sofi sticados, cheios de lojas com empregados
bem vestidos e ar compenetrado, mas sem
ninguém, como grutas de vácuo.
Chongqing também cresceu a partir do na-
da. Era uma pequena cidade portuária nas
margens do rio Yangtze, cercada de comu-
nidades rurais muito pobres. Mas o Governo
elegeu-a como capital do desenvolvimento da
China interior. A construção da barragem das
Three Gorges, a maior do mundo, destinou-se
a abastecer energeticamente o novo centro
urbano. Novas indústrias foram levadas pa-
ra a região. É hoje o lugar no mundo onde
é construída a maior parte dos motores de
motociclos.
A cidade, eternamente envolvida numa né-
voa cinzenta e densa, parece uma Nova Iorque
construída de um dia para o outro no meio de
uma montanha. Os modernos arranha-céus
são circundados por um anel de edifícios
degradados, esburacados, meio-destruídos.
Ruas estreitas estão cheias de ofi cinas sujas
e negras, restaurantes gordurosos, baratos,
mercados de vegetais e carne cheia de mos-
cas. É como se duas cidades, de dois mundos
diferentes, se tivessem encaixado à força uma
na outra.
Em Pequim, o novo conceito de cidade mes-
cla-se nas ruas da cidade antiga. Surgem bair-
ros inteiros de arquitectura futurista enxerta-
dos entre os conjuntos monumentais de tipo
soviético. Pequim é desde sempre uma cidade
grande. Foi durante séculos a maior cidade do
planeta. A sua vocação seria dar o exemplo a
seguir, como modelo, no centro do império,
mas acaba por sucumbir à nova dinâmica do
urbanismo comercial, mercantil.
Na China, a ideia de cidade está li-
gada à de utopia, como na Europa
acontecia na Renascença. No en-
tanto, nessas imensas metrópoles
de sonho, nunca se vê o céu. A
poluição das fábricas e do trânsito
automóvel forma uma carapaça
cinzenta, espessa e asfi xiante so-
bre as grandes comunidades da
nova China.
Aqueles que foram os grandes erros urba-
nísticos do Ocidente parecem estar a ser re-
petidos na China, com consciência e orgulho.
As cidades, mesmo as construídas quase de
raiz, são concebidas para os automóveis, não
para as pessoas. Não se podia evitar isto? Não
se podia ter aprendido com os erros das cida-
des mais antigas?
Liu Bo acha que não. “Na Europa e nos EUA
as pessoas têm carros há cem anos. Os chine-
ses só têm há 20. As pessoas estão felizes por
terem um carro, e querem trazê-lo para a ci-
dade. Não as podemos impedir, para já.”
Para o futuro, diz Liu, estão previstas medi-
das, como a limitação da entrada de carros na
cidade, através de um controlo das matrículas,
a divulgação dos carros eléctricos. Em Xangai
já há centenas de milhares de motos eléctricas,
e noutras cidades estão previstos autocarros
e comboios eléctricos para transportarem a
maioria dos cidadãos aos empregos. Até ao
2 | Domingo 4 Novembro 2012 | 37
As reportagens na China são financiadas no âmbito do projecto Público Mais publico.pt/publicomais
ano de 2015, o Governo chinês prevê a intro-
dução de 500 mil veículos eléctricos nas estra-
das do país. A maioria deles será usada pelas
empresas de táxis.
Em Shenzhen, está previsto que 24 mil veí-
culos eléctricos comecem a circular nas ruas
da cidade, abastecidos por 12.750 postos de
abastecimento.
Também em Shenzhen vai ser in-
troduzida uma espécie de com-
boio gigante, cujos carris seguem
de ambos os lados das auto-estra-
das. O veículo, desenvolvido pela
Shenzhen Huashi Future Parking
Equipment, apoia cada série de
rodas em cada margem, e circula
imperturbável sobre o trânsito de
automóveis. Terá uma capacidade,
em cada carruagem, para 1200 passageiros.
Segundo a empresa que o concebeu, vai re-
duzir o tráfego nas horas de ponta em 30% e
fi cará 90% mais barato do que construir um
novo túnel de metro. Além disso, o novo veí-
culo vai gerar electricidade, através de grandes
painéis solares instalados no tejadilho.
Entre as várias cidades, circulam já, na Chi-
na, os comboios mais rápidos do mundo. Mas
as linhas estão a ser preparadas para receber
outros ainda mais rápidos, com velocidades
próximas dos 500 km/h. De Pequim a Xangai,
poderá fazer-se a viagem em menos de três
horas. Alguns comboios rápidos poderão no
futuro circular de uma grande cidade a outra
sem ter de parar nas estações intermédias,
porque, através de um sistema de platafor-
mas deslizantes que se agarram ao tejadilho
do comboio, os passageiros poderão entrar
e sair da carruagem com o comboio em an-
damento.
As ligações aéreas entre as várias cidades
também estão a desenvolver-se a grande ve-
locidade. Entre 2005 e 2010, foram constru-
ídos na China 33 novos aeroportos. Outros
33 foram aumentados ou renovados. Mas nos
próximos três anos está prevista a construção
de mais 70.
O crescimento das cidades implica uma
necessidade imensa de novas fontes de ener-
gia, novos sistemas de reciclagem de lixo. Nos
centros de investigação das cidades chinesas
estão ser desenvolvidos novos modelos para
centrais nucleares e planeada a construção
de gigantescos parques de energia solar. A re-
ciclagem de lixo é objecto de um projecto da
empresa Goldenway Bio-tech, de Pequim, que
As zonas financeiras de Xangai (ao lado) e de Pequim (em cima e no plano anterior). À direita, um eclipse em Taiyuan (província de Shanxi)
permitirá transformar, por dia, 400 toneladas
de detritos em fertilizantes.
Toda a investigação, com apoio estatal, está
centrada na produção de mais energia e mais
efi ciência de transportes produzindo menos
poluição e menos desperdício.
Mas, para já, é preciso deixar circular os
carros. “As pessoas têm necessidade de pos-
suir alguma coisa. De ter o seu próprio carro
e usá-lo. O Governo está atento ao problema
da poluição e aberto a soluções já experimen-
tadas em países do Ocidente, mais avançados
do que nós nestas coisas. Temos planos de
sensibilização e informação dos cidadãos para
os problemas da poluição e outros problemas
urbanos. Porque as pessoas não sabem estas
coisas e por isso não colaboram nas soluções.
Para nós, a vida moderna é algo ainda muito
novo. Temos de aprender. Já fi zemos alguns
progressos. Em Xangai, por exemplo, os ca-
miões de carga já não entram.”
Liu tem a convicção de que através do pla-
neamento todos os problemas se podem resol-
ver. Nunca será demasiado tarde. Enquanto o
Estado tiver todo o poder de decisão e capaci-
dade de aplicar e fazer cumprir as decisões, é
como se os problemas não existissem.
“Na China, até há poucos anos, as pessoas
sobreviviam com muitas difi culdades. Havia
fome, séculos de miséria, não havia esperan-
ça. Agora, a vida nas cidades representa um
novo limiar. Signifi ca a existência de recursos,
de segurança, de ajuda, de partilha. É todo
um mundo novo que começa. Cidade é sinó-
nimo de desenvolvimento. As pessoas estão
felizes por viverem nas cidades. Não querem
voltar atrás e todos os problemas serão re-
solvidos.”
Perante a euforia do discurso, tento con-
trapor os argumentos clássicos de que uma
cidade tem de ser mais do que um aglomera-
do de pessoas. Que não basta haver avenidas
e automóveis para que surja uma existência
urbana. Que é preciso saber viver na cidade.
Que há uma cultura urbana que se aprende
e desenvolve, ao longo dos séculos. Que uma
cidade tem de ter qualidade de vida. E vida
cultural. Espaços de convívio, de comunhão.
De participação.
Acrescento ainda que as grandes cidades
dão origem a um tipo de vida cheio de solidão.
As pessoas vivem juntas no mesmo prédio e
não comunicam, não se conhecem, não se
interessam umas pelas outras. Viver sozinho
no meio da multidão…, continuo, embalado,
delirando na crista da onda dos mitos ociden-
tais.
Liu olha-me com genuíno espanto e alguma
comiseração. “Solidão na cidade? Nas aldeias
é que há solidão. Na cidade, as pessoas estão
juntas. Os chineses gostam de estar juntos.
Sempre gostaram. Agora, na cidade, podem
estar uns com os outros. Encontram-se nos
restaurantes e cafés, nas casas de chá, nas
lojas, nas ruas. Não vejo onde é que há so-
lidão. Quanto à vida cultural, isso também
é planeado. Construímos teatros, cinemas,
centros desportivos, escolas, centros cultu-
rais comunitários, centros de convívio para
os jovens, ou para os mais velhos. Tudo isso
pode ser planeado e construído, e as pessoas
vão usufruir. Não me parece que as pessoas
se sintam sozinhas na cidade. Na aldeia sim,
onde há pouca gente”.
Solidão na cidade? Nas aldeias é que há solidão. Na cidade as pessoas estão juntas. Os chineses gostam de estar juntos. Sempre gostaram”
JASON LEE/REUTERS
REUTERSCARLOS BARRIA/REUTERS
4 | DESTAQUE | PÚBLICO, DOM 11 NOV 2012
CHINA
Mal aqui chegou, Mao
Tsetung fez um poema.
“Estou a nadar no grande
Yangtse. Barcos movem-se
com o vento. Tartarugas
e cobras fi cam quietas…
Uma ponte voará para ligar norte e
sul... Muros de pedra erguer-se-ão
corrente acima, para o Ocidente,
para deter as nuvens e a chuva de
Wushan, até que um lago suave
nasça nas estreitas gargantas”.
Estávamos em 1956, e o Grande
Timoneiro não tinha tempo nem di-
nheiro para iniciar o projecto. Quis,
primeiro, transformar a China num
país rico, através do Grande Passo
em Frente, que levou milhões à fome
e à morte. Depois ocupou-se com a
Revolução Cultural, obrigando as
multidões urbanas a trabalhar nos
campos, para purifi car a ideologia.
Mas a ideia de construir uma barra-
gem no Yangtse nunca se apagou no
seu espírito. Quando um grupo de
engenheiros elaborou um parecer
questionando o projecto, mandou-
os prender.
O Yangtse é o maior rio da Ásia, o
terceiro do mundo. Nasce nas mon-
tanhas do Tibete, corre até Chong-
qing, e depois Xangai, desaguando
num imenso delta no mar da China
Oriental. Nos 6300 quilómetros do
seu percurso, irriga as terras mais
férteis do país, e tem sido responsá-
vel, durante milénios, pelo fl orescer
dos mais importantes focos da civi-
lização chinesa. A região das Três
Gargantas, na província de Hubei e
distrito de Chongqing, é a mais rica
em vestígios arqueológicos, templos
e cidades históricas. Além disso, é
um dos locais mais deslumbrantes
da China. Acresce ainda que é ho-
je o cenário onde se ergue a maior
barragem do mundo. Tudo motivos
Hoje é evidente que as consequências da grande barragem Three Gorges, a nova accionista da EDP, estão fora de controlo. Os ecossistemas da região foram destruídos, por todo o lado, há desabamentos de terras, sismos e inundações
Three GorgesO futuro construído sobre um pântano
LIU SHUSONG/XINHUA PRESS/CORBI
Paulo Moura, Chongqing
PÚBLICO, DOM 11 NOV 2012 | DESTAQUE | 5
23mil milhões de euros foi o custo da obra, segundo dados oficiais, mas há indicações de que possa ter custado quase o dobro
1,3milhões de pessoas foram deslocadas das suas cidades e aldeias e realojadas na região
para que milhões de chineses sejam
atraídos ao local. As Três Gargantas
é uma espécie de templo natural,
um local de peregrinação.
Do porto de Chongqing partem
cruzeiros de luxo que descem o
Yangtse, até à cidade de Yitchan,
atravessando os íngremes desfi ladei-
ros envoltos em neblinas azuladas.
Custam fortunas e destinam-se aos
turistas estrangeiros, que chegam
de avião a Chongqing e partem de
Yitchan. Mas depois há outro mun-
do, o dos barcos para passageiros e
turistas locais.
Estávamos numa semana com vá-
rios feriados, em que muita gente
conseguiu gozar umas miniférias. E,
quando isso acontece, os chineses
têm um passatempo predilecto: via-
jar. Metem-se em comboios e auto-
carros, e partem. Fazem milhares de
quilómetros para visitar familiares,
ou simplesmente conhecer o país.
Alguns juntam algum dinheiro e
esgotos. Mas o pior é que não têm
vida. “As pessoas não sabem o que
fazer. Não há empregos.” São cente-
nas de quilómetros de prédios par-
dacentos, que ninguém sabe a que
cidade pertencem, e onde vivem
milhares de desconhecidos. Os ha-
bitantes de várias aldeias dispersas
foram alojados num mesmo bairro,
aleatoriamente.
No caso da família de Gong, nem
sequer receberam indemnização,
porque lhes foi dito que as terras
onde estavam não lhes pertenciam.
Eram terrenos públicos. As compen-
sações atribuídas a cada pessoa fo-
ram decididas pelos funcionários lo-
cais, e tanto podiam ser de mil euros
como de 20. “E não havia lugar para
protestos. A polícia chegava e levava
as pessoas.”
Em toda a região, por causa da
barragem, foram desalojadas e rea-
lojadas um milhão e 300 mil pesso-
as, nos 17 anos que duraram
KEREN SU/CORBISpartem à aventura, durante meses.
É frequente ver nas cidades jovens
de mochila e bordão de caminhante,
pedindo dinheiro na rua, com um
cartaz explicando o seu percurso e
porque decidiram partir.
Para não perder muito tempo, de-
cidi viajar de autocarro de Chong-
qing para Wanzhou, a cerca de 300
quilómetros, e aí apanhar o barco
para Yitchang e as Três Gargantas.
Mas na China nada acontece como
previsto e quando cheguei já o barco
tinha partido. Foi preciso procurar
um hotel em Wanzhou.
É uma cidade de dois milhões,
constituída por sequências inter-
mináveis de edifícios de habitação
todos iguais, cinzentos, com mui-
tos andares. As urbanizações estão
construídas em promontórios à vol-
ta do rio, de que parecem fugir.
Hoje em dia, Wanzhou não é
exactamente uma cidade. Em 1997,
mudou de nome (chamava-se Wan-
PUBLICIDADE
A construção da barragem fez nascer quilómetros de arquipélagos de lixo, que flutuam sem controlo (à esq.)
Segundo as previsões oficiais, a subida dos níveis de água iriaresolver os velhos problemas de inundações na região, mas os ecologistas e populações locais queixam-se de que as inundações aumentaram nos últimos anos
xian) e foi integrada no município de
Chongqing. Cerca de 50% da cida-
de desapareceu. Com a subida das
águas resultante do enchimento do
reservatório da barragem, toda a zo-
na mais baixa fi cou submersa.
“Eu morava ali”, aponta Gong
Zong para um ponto no meio do rio.
“Agora estamos numa linda cidade
do outro lado do monte.” Gong tem
25 anos e é técnico de informática.
Tem de ajudar os pais, que, acaba
ele por dizer, nunca mais trabalha-
ram desde a mudança. “Eles tinham
uma pequena terra. Agora não sa-
bem o que fazer, no meio dos pré-
dios.”
A zona de Wanzhou, por ter vas-
tas áreas elevadas, é onde se con-
centra grande parte das novas ci-
dades, construídas para realojar os
que viviam em zonas que fi caram
inundadas. São urbanizações inca-
racterísticas, sem infra-estruturas,
contou Gong. A maior parte não tem c
18 Novembro
Amadou & Mariam
MUSICA.GULBENKIAN.PT
domingo , 19:00h — Grande Auditório
Eclipse
O espetáculo Eclipse decorre na total escuridão.
músicas do mundo
amad
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6 | DESTAQUE | PÚBLICO, DOM 11 NOV 2012
CHINA
CARLOS BARRIA / REUTERS
CARLOS BARRIA / REUTERS
as várias fases da constru-
ção. Mais de mil cidades e aldeias
foram inundadas e desapareceram
completamente. Em muitos casos,
as indemnizações foram irrisórias,
quer porque não foi reconhecida a
propriedade das terras a quem as
habitava, quer porque uma grande
percentagem dos desalojados esta-
va ilegal. Eram pessoas que tinham
ido viver para zonas urbanas, onde
havia trabalho, mas não tinham con-
seguido alterar o bilhete de identi-
dade, que continuava a afectá-las às
zonas rurais. Legalmente, portanto,
não viviam onde viviam, e por isso
não foram expulsas e não tiveram
direito a qualquer compensação.
A partida do barco estava previs-
ta para as 3 da tarde, mas só saiu
à meia-noite, o que foi uma sorte.
Ao contrário dos cruzeiros de luxo,
estes barcos chineses, velhos e de
bilhetes baratos, atravessam as zo-
nas mais interessantes do percurso
durante a noite. Geralmente só se
consegue ver a última garganta, a de
Xiling, que surge de madrugada.
Iniciando a viagem à meia-noite,
estaríamos a atravessar a primeira
das Três Gargantas, a de Qutang, às
primeiras horas da manhã. Seguir-
se-ia Wu e depois Xiling, onde se
situa a barragem.
Durante as nove horas de espera
no cais de Wanzhou, barcos iam che-
gando, outros partindo, numa enor-
me confusão de destinos e horários,
as pessoas corriam de um lado para
o outro, sem saber que navio era o
seu. Na extensão do grande lago que
o Yangtse forma aos pés da cidade,
eram visíveis manchas de sujidade,
óleos nauseabundos e lamas esver-
deadas. O rio, explicar-me-ia depois,
em Yitchang, Lu Renjing, um enge-
nheiro que trabalha para uma orga-
nização ambientalista local, cobriu
inúmeras fábricas, minas, armazéns
de produtos tóxicos, lixeiras. “Por
isso tornou-se altamente poluído,
matando peixes e várias espécies ve-
getais, e contaminando, com altas
concentrações de arsénico, mercú-
rio, cianeto, os reservatórios de água
que abastecem muitas povoações.
Estes problemas são agravados pelo
facto de, onde outrora havia fortes
correntes, existirem agora águas es-
tagnadas, que não se renovam.”
Os bilhetes para o barco estavam
esgotados, e só consegui um lugar
de pé, tal como aconteceu com
muitas dezenas de outras pessoas.
Deitadas no chão dos lobbies que
dão acesso aos camarotes, con-
versaram até altas horas da noite,
contando as respectivas viagens.
Dar Mina, por exemplo, tinha ido
buscar os pais e tios à aldeia onde
vivem para os levar por uma via-
gem de sete dias pelas províncias de
Hubei e Anhui. Alugou um carro e
fi zeram-se à estrada até Chongqing.
Depois das Three Gorges, de barco,
tencionavam apanhar um autocarro
de Yitchang para Wuhu. Lu Han, um
estudante de 19 anos, decidiu ir visi-
tar uns amigos a Badong. Song e Li,
duas estudantes de design urbano
em Wuhan, tinham como destino a
grande barragem. “É considerada a
maior obra de engenharia de toda
a China, por isso quero ir lá”, expli-
cou Song, de 22 anos. “Quero tentar
perceber se são verdade muitas das
coisas que dizem.”
Antes de amanhecer, fui acorda-
do por uma gritaria ensurdecedora,
vinda do lado do rio. Era uma es-
pécie de lengalenga berrada numa
voz fanhosa e estridente a plenos
pulmões. Avancei no escuro até à
porta de estibordo. Ao lado do bar-
co, navegando à mesma velocida-
de, colava-se uma canoa comprida,
A barragem Three Gorges, a maior do mundo, é capaz de produzir 18,2 mil megawatts de energia eléctrica, o equivalente à capacidade de 18 centrais nucleares, e gera por ano 84 mil milhões de kilowatts-hora, ou seja, quase uma vez e meia do consumo total de Portugal
c
PÚBLICO, DOM 11 NOV 2012 | DESTAQUE | 7
PUBLICIDADE
uma espécie de gôndola onde duas
mulheres em pé apregoavam doses
de massa com carne, que retiravam
com uma concha de um panelão a
fumegar. Depois afastavam-se, dan-
do lugar a outra canoa, numa azáfa-
ma contínua e barulhenta. Do lado
bombordo, era a mesma confusão.
Isto passou-se às cinco da manhã,
e pouco depois o sol nascia por de-
trás de montanhas escarpadas e
negras, formando muralhas, arcos
e colossos em ambas as margens.
Eram as Gargantas, fi nalmente, en-
voltas em brumas e clarões de fogo.
O rio estreitou e ziguezagueava entre
as barreiras de Qutang, às primeiras
horas da manhã. As pessoas saíam
das cabinas, ou dos cantos onde dor-
miam, para afl uir ao convés, com
máquinas fotográfi cas e binóculos,
deslumbradas com aquele mundo
de estranheza e mistério.
Foi assim durante horas, desli-
zando entre as montanhas, numa
dança silenciosa sob as arcadas ver-
des, de ângulos impossíveis, da Wu,
também conhecida como Garganta
das Bruxas, com os seus 12 picos ao
longo de 40 quilómetros — o Pico da
Deusa, o Pico dos Imortais, o Dragão
Trepador, a Fénix voadora. E depois
a Xiling, 80 quilómetros de rocha
azulada, em recortes ora afi lados ora
amenos como ondas.
Antes de entrar na última secção
da Xiling, que segue até à cidade
de Yitchang, há uma paragem em
Sandouping. É daqui que partem as
excursões de autocarro até à Grande
Barragem Three Gorges. Era o ob-
jectivo da maioria dos passageiros.
Compram-se bilhetes, organizam-se
os grupos.
Song e Li estavam desconfi adas.
Queriam visitar a barragem, mas
não no grupo organizado. “Isto não
é autêntico. É uma acção de propa-
ganda”, disse Song. “Não nos vão
mostrar tudo. Queremos ir lá sozi-
nhas.” Mas não era possível. À saída
do barco, esperavam-nos já cinco
autocarros ultramodernos, com as
letras Three Gorges Project gravadas
na carroçaria. Tivemos de entrar pa-
ra um deles e ouvir o discurso da
guia durante a meia hora de viagem,
bem como durante a visita.
A sensação é de controlo abso-
luto. O barco pertence ao Estado,
e à saída somos obrigados a entrar
num autocarro que pertence à em-
presa China Three Gorges Project
Corporation.
Quando chegámos, havia multi-
dões por todo o lado. A visita inclui
três pontos de paragem: lugares
de onde se avistava a barragem, o
CARLOS BARRIA / REUTERS
museu, as lojas e zonas de venda
de recordações. Tudo está minu-
ciosamente organizado para rece-
ber os visitantes, como se uma das
funções do empreendimento fosse
a própria divulgação das suas razões
e objectivos.
Há enormes lanços de escadas ro-
lantes para levar os visitantes aos
pontos mais altos, de onde se vê
o rio, o reservatório e as colossais
barreiras de betão; há parques onde
estão expostos os guindastes, buldo-
zers e camiões que participaram na
construção; há maquetas, modelos
de turbinas, fotografi as e mapas.
O museu conta a história do pro-
jecto, desde a sua concepção até às
últimas construções, ainda este ano.
Num tom ostensivamente propagan-
dístico, são enumeradas as vanta-
gens do projecto, para a economia
da China e o bem-estar das popu-
lações locais. Num outro museu,
intitulado Three Gorges Museum,
em Chongqing, são exibidos fi lmes,
modelos em tamanho real das per-
sonagens relevantes nas várias fases
do projecto, em reuniões, visitas aos
locais, etc. Uma secção mostra foto-
grafi as e depoimentos gravados de
pessoas que foram realojadas, con-
tando como estão felizes e próspe-
ras, em zonas com mais recursos e
melhores infra-estruturas.
À saída do museu da zona da bar-
ragem, passando pela loja onde há
de tudo, desde livros de engenharia
civil até estatuetas de Mao, chega-
se à zona de feira. São ruas e ruas
com vendedores de ambos os la-
dos. As bancas têm comida típica
das várias regiões abrangidas pelo
projecto, vegetais, peixe frito, bo-
los, mas também roupas, sapatos,
bonecos, brinquedos, candeeiros,
vassouras, relógios, telemóveis. São
milhares de vendedores, que gritam
desesperados agitando os produtos,
claramente não conseguindo vender
o sufi ciente, entre a desmesurada
concorrência. “Todas estas pesso-
as são deslocados das zonas inun-
dadas, que encontraram trabalho
aqui”, diz a guia.
“Tudo isto é uma farsa, sinto-me
enganada”, diz Song. “O que eu que-
ria era recolher dados concretos. O
Governo disse que esta barragem
iria fornecer electricidade para toda
a China. Mas não é verdade. Só abas-
tece a região de Chongqing. Tenho
muitas dúvidas de que o preço do
desastre ecológico que isto provo-
cou seja compensado pelos bene-
fícios.”
No seu discurso para promover
e justifi car a barragem, o Governo
Além disso, a barragem teria o
efeito de impedir as cheias regulares
do rio Yangtse, e de fazer com que
ele passasse a ser navegável para na-
vios de grande porte, de Chongqing,
que tem o maior porto fl uvial da Chi-
na, a Xangai, onde existe o maior
porto de mar do mundo.
A par destas vantagens, a constru-
ção da barragem implicava também
riscos graves. Cientistas chineses e
estrangeiros alertaram para o peri-
go de um desequilíbrio ecológico de
proporções incontroláveis. O Gover-
no de Pequim sempre se mostrou
sensível a estes estudos. O projecto
foi, aliás, desde o início, acompa-
nhado por técnicos e organismos
estrangeiros, designadamente dos
EUA e Canadá. Uma dessas insti-
tuições foi a canadiana PROBE In-
ternational, que começou as suas
investigações sob o patrocínio das
autoridades chinesas.
Mas quando se criou um
O impacto geológico é profundo. Segundo a Academia Chinesa de Engenharia, em 2006, nos sete meses a seguir à subida de água no reservatório, houve 822 sismos
diz que a sua construção era essen-
cial para o desenvolvimento do pa-
ís. Após o crescimento das cidades
costeiras, como Shenzhen ou Xan-
gai, era necessário dar um impulso
ao interior. Sem isso, a China nun-
ca poderia tornar-se numa grande
potência, estando condenada a ser
um imenso país pobre, com alguns
focos de riqueza nas suas zonas es-
peciais.
O impulso decisivo consistiu na
construção da barragem Three
Gorges e a criação do município
especial de Chongqing, governado
directamente pelo Governo central.
A barragem, a maior do mundo, ca-
paz de produzir 18,2 mil megawatts
de energia eléctrica (equivalente à
capacidade de 18 centrais nucleares)
e que representou um investimento
de 24 mil milhões de dólares, foi con-
cebida para alimentar uma enorme
quantidade de indústrias em toda a
região, desde motores de automóveis
e motos a dispositivos electrónicos. c
Número Nacional/Chamada Local
8 | DESTAQUE | PÚBLICO, DOM 11 NOV 2012
CHINA
consenso, entre a comunida-
de científi ca, de que a construção
de uma barragem desta dimensão
era demasiado perigosa, Pequim de-
cidiu ignorar os conselhos. Estava
em jogo o desenvolvimento decisivo
do país. A opção foi correr o risco.
Construir um futuro assente num
pântano.
Agora, é evidente para todos que
as consequências estão fora de con-
trolo. Os ecossistemas da região fo-
ram destruídos. Por todo o lado, há
desabamentos de terras, sismos,
inundações. A barragem foi cons-
truída numa zona de falhas sísmicas
(a falha de Jiuwanxi e a de Zigui-Ba-
dong), o que, segundo os especia-
listas, pode provocar alterações nos
movimentos geológicos que levem
à ocorrência de terramotos, alguns
de grande magnitude.
Segundo a Academia Chinesa de
Engenharia, nos sete meses seguin-
tes à subida de água no reservatório
de 2006, foram registados 822 tre-
mores de terra na região.
Segundo a PROBE International,
o sismo que ocorreu em 2008, em
Wenchuan, deve-se, com toda a pro-
babilidade, aos efeitos da barragem
Three Gorges.
A pressão das águas está a provo-
car deslizamentos de terras. Áreas
em locais elevados têm-se quebra-
do, e caído no rio. Abrem-se fendas
no solo, estradas, pontes e edifícios
têm-se desmoronado, provocando a
morte de dezenas de pessoas. Mui-
tas das novas cidades construídas
para os desalojados estão em peri-
go. Os habitantes vão ser levados
para outros locais, novas cidades
em zonas mais seguras estão a ser
construídas.
“Uma das vantagens da barragem
deveria ser a de evitar as cheias”,
disse Lu Renjing, membro da organi-
zação ambientalista Rio Vivo, de Yit-
chang. “Mas a verdade é que passou
a haver muito mais. Todos os anos
há inundações, que obrigam milha-
res de pessoas a fugirem das suas
casas. E em muitas regiões surgiram
novas doenças, provocadas pelo sur-
gimento de faunas estranhas, em zo-
nas de águas estagnadas. Por outro
lado, algumas das espécies animais
endógenas da região estão em peri-
go, ou já foram extintas.”
O próprio Governo chinês reco-
nhece hoje a gravidade dos pro-
blemas. Num documento assina-
do pelo primeiro-ministro, Wen
Jiabao, são referidos “problemas
urgentes” e os “efeitos negativos
da barragem”. “Se não forem to-
madas medidas, podemos estar à
beira de uma catástrofe ambiental.”
Sempre houve dúvidas, no seio do
Governo chinês, sobre a construção
da barragem. Nos anos 1980, um for-
te movimento cívico, com alguma
infl uência nos corredores do poder,
contestava o projecto. Na altura das
manifestações pró-democracia na
Praça Tiananmen, em 1989, um dos
grupos presentes era esse, contra as
Three Gorges. Na repressão que se
seguiu, esses elementos foram pre-
sos ou mortos. Desde então, as vo-
zes dissidentes quanto ao projecto
desapareceram, e ele acabaria por
ser aprovado, por uma maioria sim-
ples, na Comissão Permanente do
Politburo. A construção começaria
em 1994.
CARLOS BARRIA / REUTERS
CARLOS BARRIA / REUTERS
A construção da barragem terminou este Verão, depois de 20 anos de trabalhos. Hoje é um destino turístico para ricos e pobres
Milhares de pessoas continuam a ser deslocadas para fugir aos solos instáveis, aqui para Badong, uma nova cidade a 100 quilómetros da barragem
As reportagens na China sãofinanciadasno âmbitodo projecto Público Mais publico.pt/publicomais
c
10 | DESTAQUE | PÚBLICO, DOM 11 NOV 2012
CHINA
Tsian Mengdi está sentada na
sua sala com duas cadeiras
e uma mesa, com ar
inexpressivo. “Não consegui
trazer a minha mãe”, diz ela.
“Prometeram que poderia
trasladar o corpo, para um cemitério
aqui em Badong, mas depois não
houve tempo. Tivemos de sair à
pressa, e ela fi cou lá.”
Tsian, de 52 anos, vivia na aldeia
de Tchensi, na margem do rio, nos
arrabaldes de Xinling. Em 1999 a al-
deia desapareceu por completo, sob
as águas do rio Yangtse, após con-
cluída a segunda fase da construção
da barragem Three Gorges.
Tsian e mais 20 mil pessoas foram
trazidas para aqui, para a povoação
de Huangti, situada numa zona ele-
vada, perto de Badong. “Todos pen-
savam que aqui se estava bem”, diz
Zhong, o marido de Tsian. “Badong
é uma região muito alta. Não foi afec-
tada pela subida das águas. Bading e
Xinling são das poucas cidades que
resistiram e se mantiveram intactas.
Ninguém pensou que toda esta terra
começasse a desmoronar-se.”
Nos últimos meses, desabamen-
tos de terras têm ocorrido em várias
povoações do concelho de Badong.
“Um conjunto de mais de dez casas
caiu ao rio”, conta Tsian. “Foi aqui
muito perto, há uns meses. Pelo me-
nos cinco pessoas morreram. Desde
essa altura, vivemos cheios de me-
do. Pode acontecer em qualquer
lugar, a qualquer pessoa.”
Tema tabuNo local onde Tsian diz que as casas
caíram, não há já qualquer vestígio
do desmoronamento. As autorida-
des limparam os destroços, e foi
construída uma barreira de betão
na encosta. Mas várias pessoas con-
fi rmaram que houve ali uma tragé-
dia, embora notoriamente se mos-
trassem relutantes em falar com um
estrangeiro.
A atmosfera é muito tensa em
Huangti, e em toda a região de Ba-
dong as pessoas não querem falar
dos desabamentos. Mas confi rma-
ram que estão a ser construídas vá-
rias povoações, para realojar quem Fonte: PÚBLICO
Three Gorges, a barragem que é um local de per
Pequim
Xangai
Chongqing
Yichang
CHINARio Yangtse
Chongqing
Fengdu
Wanzhou
Qutang Wu
Paulo Moura, Badong
Em Badongé preciso mudarde casa outra vez
Nas aldeias dos arredores de Badong não páram os sismos, os desabamentos, as inundações, desde que começou a construção da barragem. Populações que já tinham sido desalojadas terão de se mudar outra vez
está a viver nos locais considerados
perigosos.
“Na aldeia onde vivíamos, tínha-
mos um terreno e plantávamos cou-
ves”, conta Tsian. “Sempre vivemos
lá, e os meus pais e os meus avós
também viveram lá. Não queríamos
sair. Mas a polícia disse: ou saem já,
ou fi cam debaixo de água. Foi en-
tão que eu perguntei pelos mortos.
Que ia acontecer aos nossos familia-
res que estavam no cemitério? Eu
queria levar a minha mãe comigo.
O polícia disse que sim, que esta-
va previsto levar os mortos. Disse-
me que esperasse, que depois daria
notícias. Mas nunca mais disseram
nada. Eu não queria vir sem a mi-
nha mãe.”
Tsian, Zhong e todos os habitan-
tes de Huangti deverão ser movidos
de novo ainda este ano. Sabem que
está a ser construída uma nova ur-
banização, mas não lhes disseram
onde era. Esperam com impaciên-
cia, porque têm sentido sismos e
movimentos estranhos, principal-
mente durante a noite. “Por ve-
zes, ouvimos um ruído horrível,
que parece vir de baixo do chão.
É uma espécie de estrondo, como
se fossem rochas a quebrar. Temos
muito medo.”
As autoridades reconhecem que to-
da esta zona se tornou altamente ins-
tável, principalmente nos períodos
em que há alterações nos níveis dos
reservatórios. Mas têm optado por
esconder os acidentes mais graves,
para não espalhar o pânico, enquan-
to não são encontradas soluções.
Nesta região, como noutras à volta
do vale do Yangtse, têm ocorrido sis-
mos, desabamentos e inundações,
que têm provocado a morte de de-
zenas de pessoas.
Em Novembro do ano passado, o
chão cedeu, à entrada de um túnel
do caminho-de-ferro, na cidade de
Badong. Três mil metros cúbicos de
pedras e terra caíram sobre uma
auto-estrada. Um autocarro fi cou
PÚBLICO, DOM 11 NOV 2012 | DESTAQUE | 11
nos resta procurar trabalho numa
fábrica. Mas é impossível, porque
não sabemos onde vamos morar.
Toda esta região está em perigo.
Eles não dizem, mas a situação es-
tá completamente fora de contro-
lo. As pessoas têm medo de falar.
Eu não, porque já não tenho nada
a perder. A minha vida perdeu todo
o valor. Não me importa o que me
possa acontecer.”
Hui já se tinha mudado para a
região de Wanzhou, antes de co-
meçar a construção da barragem.
Tinha encontrado trabalho num
armazém, quando recebeu ordem
para partir. Como não era ofi cial-
mente residente naquela zona, não
recebeu qualquer indemnização.
Também não teve direito a com-
pensação quando o mudaram de
Xinling para Huangti. E agora vai
sair outra vez sem nada. “Dantes as
pessoas deslocavam-se para tentar
melhores condições de vida. Ago-
ra, quanto mais avançamos, mais
pobres fi camos. Sinto-me como se
andasse a ser expulso de todo o la-
do, consecutivamente. Para terras
cada vez mais distantes. Para lugar
nenhum.”
Tsian e o marido também não
receberam indemnização. Antes
têm direito a uma pensão mensal
de 20 yuhan (menos de 3 euros),
para compensar a perda das suas
fontes de rendimento, na aldeia.
“Não vale a pena protestar”, diz
Tsian. “Se dizemos alguma coisa,
ainda nos tiram tudo. Conheço uma
família que não concordou e escre-
veu uma carta, fez uma petição ao
Governo.
O resultado foi a polícia ir lá a
casa, e o pai e o fi lho mais velho
foram presos durante dois meses.
Depois retiraram-lhes o subsídio
inteiro. Disseram que eles preten-
dem prejudicar o país, que são
traidores, porque não pertencem
ao partido, e só queriam provocar
problemas.”
Em Badong, o governo local pro-
meteu criar sistemas de alarme pa-
ra avisar em caso de derrocadas ou
outros perigos. Noticiou também
projectos para reforçar os terrenos
nas imediações do rio, bem como
outros para purifi car as águas. Pro-
meteu também criar um programa
de compensações para os desaloja-
dos, que, segundo um relatório de
peritos da região, se contarão por
centenas de milhares de pessoas nos
próximos anos.
Um outro relatório publicado pe-
lo Governo admite que ainda não
estão totalmente quantifi cados os
problemas ecológicos provocados
pela barragem. “Há muitos perigos
escondidos, ecológicos e ambien-
tais, novos e antigos, relacionados
com a barragem Three Gorges”,
dizia o relatório. “Se medidas pre-
ventivas não forem tomadas, o
projecto pode desembocar numa
catástrofe.”
Na cidade de Yitchang, onde se
situa, pelo menos teoricamente, o
quartel-general da China Three Gor-
ges Project Corporation, na sede da
empresa em Pequim, e também em
Lisboa, através da EDP, onde a em-
presa chinesa detém uma importan-
te participação, o PÚBLICO tentou
obter depoimentos sobre a situação
ambiental na região. Mas nunca ob-
teve resposta a telefonemas e emails.
No departamento de comunicação
da EDP foi-nos dito que não seria
possível fazer uma reportagem so-
bre a Three Gorges.
Império Three GorgesA China Three Gorges Project Cor-
poration (CTGPC) é uma empresa
estatal. Foi fundada em 1983, com
o propósito de explorar os recur-
sos hidro-energéticos do vale do
rio Yangtse, mas com a ambição
de se tornar um “conglomerado
moderno, de nível mundial, com
a sua principal área de negócio no
desenvolvimento e operação de
gigantescos recursos hidroeléctri-
cos”.
A CTGPC criou também uma
empresa fi nanceira, a Three Gor-
ges Financial Company, e mais oi-
to empresas-satélites, que operam
nas áreas do turismo, consultoria
de projectos, tecnologia energética,
gestão de propriedades, etc., na Chi-
na e noutros países, onde a empresa
tem alargado os seus interesses.
Dos princípios da empresa, ex-
postos nos textos do seu website,
fazem parte ainda uma “perspecti-
va científi ca do desenvolvimento,
que signifi ca um desenvolvimento
de uma forma harmoniosa e sus-
tentável”.
No ano passado, no âmbito da po-
lítica de privatizações do Governo
português, a China Three Gorges
Project Corporation adquiriu 21,35%
da EDP, a empresa de electricidade
portuguesa, por 2,7 mil milhões de
euros. Com este investimento, alia-
do à entrada da State Grid no capi-
tal da REN e a compra pela Sinopec
de 30% da subsidiária da Galp para
exploração petrolífera no Brasil, a
China tornou-se no maior investi-
dor estrangeiro em empresas por-
tuguesas.
egrinação
XangaiYichang
Wuhan
Rio Yangtse
Xiling
Barragem Three Gorges
Badong
CARLOS BARRIA / REUTERS
Em 2007, 48 pessoas morreram
em consequência de desabamentos,
na zona de Badong, segundo os jor-
nais locais.
“Eu já não sei em quem posso
confi ar”, diz Tsian. “Quem me ga-
rante que nessa nova casa, onde me
vão pôr, há segurança? Eu acho que
já ninguém sabe quais são os luga-
res seguros. Estamos em perigo em
qualquer parte.”
Três vezes deslocadosHui Guotao, vizinho de Tsian e
Zhong, já foi deslocado duas vezes.
Primeiro para um bairro de Xinling,
onde houve desabamentos, e depois
para aqui. “Ando de um lado para o
outro. Já não tenho trabalho, já não
tenho amigos. Vamos para onde nos
mandam. Dizem que isto é para a
riqueza da China. Pois eu posso di-
zer que as populações de toda esta
região fi caram mais pobres. Eles di-
zem que as pessoas foram para luga-
res melhores, de terras mais férteis,
mas é mentira. As melhores terras
fi caram debaixo de água. Toda es-
ta região era óptima para a agricul-
tura. Agora, tudo desapareceu. Só
soterrado, matando os 30 passa-
geiros.
Em Miaohe, a terra por baixo de um
conjunto de casas deslizou para uma
fenda com 200 metros de profundi-
dade, depois de o nível da água do re-
servatório ter sido baixado, para evi-
tar as cheias de Verão. Os 99 campo-
neses tiveram de ser deslocados para
um túnel na montanha, onde fi ca-
ram acampados durante três meses.
As reportagens na China sãofinanciadasno âmbitodo projecto Público Mais publico.pt/publicomais
Hui Guotao, vizinho de Tsian e Zhong, já foi deslocado duas vezes. Primeiro para um bairro de Xinling, onde houve desabamentos, e depois para aqui. “Ando de um lado para o outro. Vamos para onde nos mandam. Dizem que isto é para a riqueza da China. Mas as populações daqui ficaram mais pobres”
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