Aula 3 . 18 de março
A montagem
Bibliografia requisitada:
AUMONT, Jacques. A montagem. In: AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995. p. 53-88.
Filmografia para exercício prático:
O dia em que Dorival encarou a guarda; Jorge Furtado e José Pedro Goulart; roteiro de Giba Assis Brasil, José Pedro Goulart, Jorge Furtado e
Ana Luiza Azevedo; 35 mm, 14 min, cor, 1986 (Brasil).
Cinema, a linguagem das imagens
O cinema não era pensado em termos de linguagem até a década
de 20, quando, compreendendo o filme como algo que
comunica um sentido e, logo, o cinema como um meio de
comunicação, chegou-se à idéia de que o cinema era uma
linguagem. Uma idéia ainda muito vaga, que começou a ser
desenvolvida com o formalismo soviético, movimento teórico-
prático que teve como nome mais conhecido Sergei Mikhailovitch
Eisenstein. No centro desse pensar sobre o cinema, e desse
experimentar e fazer cinema, estava a montagem.
Segundo MARTIN (2003), “[...] a montagem é a organização dos
planos de um filme em certas condições de ordem e de
duração” (p. 132). A partir dessa definição, usada quase que
universalmente pelos teóricos modernos, AUMONT (1995) pensa
no(s) objeto(s) da montagem – o plano é uma “'unidade (empírica)
de montagem'” (p. 55) –, e suas modalidades – a justaposição
(de elementos hetero ou homogêneos), a organização
(sucessibilidade ou contigüidade) e duração. A montagem, para
esse autor, “[...] trata do relacionamento de dois ou muitos
elementos (da mesma natureza ou não), esse relacionamento
produzindo este ou aquele efeito particular não contido em
nenhum dos elementos iniciais tomados isoladamente” (p. 61,
grifo meu).
Uma “definição ampliada da montagem”, então, para AUMONT
(1995) é “[...] o princípio que rege a organização de elementos
fílmicos visuais e sonoros, ou de agrupamentos de tais
elementos, justapondo-os, encadeando-os e/ou organizando
sua duração” (p. 62, grifo meu).
Narrativa e expressão
A grande maioria dos autores irá concordar em diferenciar as
funções narrativas e expressivas da montagem. A primeira, dada
como principal, diz respeito à natureza narrativa da montagem. Os
elementos da ação são encadeados pela montagem por relação
de causalidade ou temporalidade diegética (AUMONT, 1995). É
a montagem narrativa, portanto, que vai garantir ao filme sua
vocação de contar histórias, e pode ser reduzida até o mínimo
necessário para que o drama seja compreendido pelo espectador
(ex.: Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock, 1948)1. Já a
montagem expressiva tem como principal objetivo exprimir
sentimento ou idéia por uma operação simples de justaposição
de planos em conflito. A isso se dá o nome de montagem de
choque ou, como queria Eisenstein, montagem dialética2. Mais
além dessas duas funções de montagem, AUMONT (1995) define
o que seria a “montagem produtiva”, a partir do teórico Béla
1 Ao mesmo tempo que faz um filme virtualmente em plano seqüência (Festim Diabólico), Hitchcock também é capaz de virtuosismos de outro extremo, como quando faz apenas uma cena, a famosa cena do chuveiro de Psicose (1960), a qual tem nada menos que 90 planos e 70 posições diferentes de câmera orquestrados em ínfimos 45 segundos.
2 Denominação que tem profundo sentido político, uma vez que o cinema dos formalistas soviéticos estava estreitamente vinculado a sua luta socialista, com base marxista muito forte e, portanto, herdeira do materialismo dialético de Karl Marx. Um interessante resumo sobre isso pode ser encontrado em <http://www.ceismael.com.br/filosofia/filosofia025.htm>.
Balázs, como sendo aquela de onde o sentido é apreendido
apesar de as imagens não o mostrarem isoladamente. Três
funções específicas podem delinear o que seria a montagem:
1. a função Sintática (ligação/disjunção;
alternância/linearidade);
2. a função Semântica (que diz respeito à produção de
sentidos, sejam denotativos ou conotativos);
3. a função Rítmica (rítmos plásticos ou temporais).
Figura 1: Festim Diabólico (Hitchcock, 1958): "plano-seqüência", narratividade e expressão
Figura 2: Psicose (Hitchcock, 1960): a famosa cena do chuveiro, seus 90 planos, 70 posições de câmera e 45 segundos
Figura 3: Set de filmagem de Festim Diabólico
Tipos de montagem
Vários teóricos e mesmo cineastas pensaram a montagem de
forma sistemática e profunda. MARTIN (2003) e AUMONT (1995)
utilizam principalmente as sistematizações de Balázs, de
Eisenstein e de Vsevolod Pudovkin.
Para Balázs (ver MARTIN, 2003, p. 147), a montagem pode ser
dividida em:
Ideológica (aquela que cria uma idéia);
Metafórica;
Poética;
Alegórica;
Intelectual;
Rítmica (musical);
Formal (que opõe formas visuais);
Subjetiva (câmera subjetiva).
Já Pudovkin (ainda segundo MARTIN, 2003, p. 147) a definia por
suas funções de:
Contraste/Antítese;
Paralelismo;
Simbolismo/Analogia;
Sincronismo;
Leitmotiv (tema, algo recorrente na duração do filme e que
objetiva criar efeito ou produzir sentido afetivo em suas inserções).
Eisenstein, no entanto, é quem sintetiza e sistematiza de forma
mais precisa e abrangente a montagem, na opinião de MARTIN:
Métrica (baseada na duração dos planos);
Rítmica (baseada no movimento da cena e também na duração
dos planos, e tem relação com a atenção);
Tonal (baseada no “tom” do plano, em sua tonalidade emocional);
Harmônica (harmônica de acordo com a dominante afetiva do
filme em sua totalidade);
Intelectual (aquela que combina tonalidades e afetos, bem como
idéias, para produzir efeito de reflexão na consciência do
espectador – esta modalidade é potencializada em seus usos
políticos).
A opacidade e a transparência
A montagem dividiu teóricos e críticos principalmente entre duas
tendências principais. Aqueles que, como Eisenstein,
consideravam-na essencial em um filme serão os que levantarão a
bandeira da opacidade. Por outro lado, a tendência da
transparência, da qual o nome forte é André Bazin, tem por base
uma crítica à montagem (“montagem proibida!”), a qual deveria, no
máximo, ficar restrita a sua função narrativa. Segundo Bazin, a
montagem deveria ser usada apenas com o objetivo de
representar realisticamente o mundo. Ambos os sistemas teóricos,
antagônicos, possuem uma lógica interna extremamente coesa na
qual a montagem é o centro. Vejamos:
O cinema transparente de André Bazin – dois pressupostos
perpassam esse sistema teórico: 1. o real é ambíguo por natureza
e portanto nenhum sentido a priori lhe deve ser imputado (pela
montagem); 2. o cinema deve reproduzir o real (essa é sua
vocação), ou seja, um filme deve conter representações tão
ambúguas quanto o real ou, quando isso não for possível, fazer
todos os esforços para aproximar-se disso. Assim, ao falar da
“montagem proibida”, Bazin diz que é específico do cinema o
respeito fotográfico da unidade da imagem.
Destaco aqui dois eixos que, segundo AUMONT (1995),
descrevem a concepção baziniana do cinema com relação à
montagem: a) a montagem é proibida (interdita) quando a
essência de um evento depender da simultaneidade de duas ou
mais ações; b) a montagem, nos outros casos, deverá ser tão
escondida quanto possível, mostrando apenas os eventos como o
são na realidade (aqui temos a famosa noção de transparência
do discurso fílmico e, atrelada a ela, a idéia do filme como uma
janela aberta para o mundo), ou seja, os eventos reais em sua
continuidade. Para a teoria baziniana, a montagem deve existir
apenas na passagem de um plano ao outro. Quando mais longo
for o plano, mais da realidade será mostrado naquele pedaço de
filme. Mais realidade em menos planos seria a idéia de respeito ao
real que o cinema deveria manter como norte. A profundidade de
campo maior também serviria aos propósitos desse cinema sobre
o qual Bazin teorizou. Cidadão Kane (Orson Welles, 1941) acaba
se tornando, por isso, um filme-chave para suas teorizações, a
despeito de a profundidade de campo ser usada por Welles para
produzir efeitos de montagem.
Figura 4: Kane velho e a repetição nos espelhos
Figura 5: profundidade de campo grande em Cidadão Kane: efeito de montagem
Figura 6: truque garante um efeito de montagem em apenas um plano (Cidadão Kane)
O cinema opaco de Eisenstein e a cine-dialética – Eisenstein
recusa a idéia de que possa existir um real no qual um único
sentido exista e que seja intocável. AUMONT (1995) dirá que para
esse cineasta e teórico, o real simplesmente não interessava se
dele não se pudesse produzir sentido (ou se a ele não se pudesse
atribuir um sentido). Não é a reprodução do real que interessa a
Eisenstein, mas uma reconstrução dele, uma reflexão do (e sobre
o) real sobre a qual se atribua juízo ideológico. O critério de
Eisenstein para definir a verdade era a conformidade do discurso
fílmico com o materialismo dialético e histórico. “Se existe para
Bazin um critério de verdade, ele está incluído no próprio real: isto
é, ele baseia-se, em última instância, na existência de
Deus” (AUMONT, 1995, p. 79). O filme, para o teórico soviético, é
um discurso articulado e a montagem serve a isso.
Eisenstein define a unidade fílmica como um fragmento (Bazin a
definia como o plano). Muitas vezes esse fragmento
corresponderá ao plano, mas não necessariamente. Esse
fragmento é uma unidade de discurso e, portanto, o que o define é
uma idéia no sentido mais amplo do termo, e não somente o
espaço físico e técnico do plano. A produção de sentido no
sistema teórico eisensteiniano se dá pelo encadeamento dos
fragmentos pelo conflito (ou choque). A montagem, nesse
sentido, não funciona pela colagem de fragmentos em seqüência.
O sentido nasce do choque entre fragmentos. Segundo o sistema
eisensteiniano, os conflitos podem ser, por exemplo, gráficos, de
volume, espaciais, de iluminação, rítmo, entre objeto e
enquadramento, entre evento e temporalidade, etc.
O som, para a teoria da montagem de Eisenstein, está em pé de
igualdade com a imagem, e seu discurso pode reforçar,
contradizer ou simplesmente ser paralelo com relação ao discurso
da imagem. A isso se dá o nome de contraponto audiovisual.
Tudo isso é considerado por Eisenstein como parte de uma tarefa
maior do cinema, que é a de modelar o espectador. A
“opacidade”, conceito usado para definir o sistema desse cineasta
e teórico, é explicada pelo fato de que Eisenstein nega a idéia de
janela para o mundo e acredita na interferência ideológica do
realizador na imagem para que ela produza um sentido e, acima
de tudo, para que ela articule um discurso. Ao contrário de
Bazin, que acreditava na realidade, Eisenstein acreditava na
imagem.
Figura 7: em Outubro (Sergei Eisenstein, 1927-8), a montagem que cria o sentido de coroação
Figura 8: Kerenski e o pavão: Soberba!
Figura 9: Kerenski comparado a Napoleão
Figura 10: Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936) e os trabalhadores como gado
* A montagem ideológica ou intelectual e a narrativa
Evidenciando e criando relações entre eventos, personagens ou objetos, a montagem pode ser
intelectual. Cinco aspectos podem ser articulados nesse tipo de montagem, segundo MARTIN (2003, p.
153):
1. O tempo – construindo as noções de anterioridade, simultaneidade e posterioridade;
2. Lugar – situação da imagem em um espaço específico;
3. Causa;
4. Conseqüência;
5. Paralelismo – aproximação simbólica entre idéias por meio de analogia ou contraste e, dentro
dessas possibilidades, de metáforas por aproximação gráfica entre fragmentos paralelos.
Já a montagem narrativa
serve para relatar o
desenrolar de
acontecimentos. Pode ser
de quatro tipos, para
MARTIN (2003, p. 155-9):
linear (ordem lógica e
cronológica); montagem
invertida (como a
“subversão” do tempo em
Pulp Fiction, de Quentin
Tarantino, 1994); alternada;
paralela.
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