Fernanda de Oliveira Botelho
A MEMRIA COMO RECURSO PARA AS POLTICAS PBLICAS CULTURAIS:
A experincia da Casinha da Memria de Ourinhos-SP
CELACC/ ECA-USP
2012
Fernanda de Oliveira Botelho
A MEMRIA COMO RECURSO PARA AS POLTICAS PBLICAS CULTURAIS:
A experincia da Casinha da Memria de Ourinhos-SP
CELACC/ ECA-USP
2012
Trabalho de concluso do curso de ps-
graduao em Gesto de Projetos Culturais
e Organizao de Eventos produzido sob
orientao do Prof. Dr. Silas Nogueira.
Agradeo primeiramente a minha famlia pela
compreenso e apoio durante todo o curso.
Agradeo especialmente a todos os amigos da
Turma B que me motivaram de alguma forma,
permitindo que minhas viagens a So Paulo
fossem menos cansativas e mais prazerosas.
Agradeo a todos os professores e ao pessoal
da secretaria por serem, acima de tudo,
parceiros.
Quando ouvimos uma histria, seja ela do nosso
colega de escritrio, do taxista ou de algum que
conhecemos em uma festa, ela pode ser
transformadora. Pode ser surpreendente, apenas
bela ou pode tornar o nosso olhar para o
cotidiano, um pouco mais mgico, um pouco mais
rico, um mais transcendente. E, neste momento,
que est o seu poder de transformao.
Karen Worcman Museu da Pessoa
Sumrio
INTRODUO--------------------------------------------------------------------------------------01
CAPTULO I - MEMRIA INDIVIDUAL E MEMRIA SOCIAL-------------------------03
CAPTULO II - POLTICAS PBLICAS DE CULTURA E MEMRIA SOCIAL-------07
CAPTULO III - A ATUAO DA CASINHA DA MEMRIA COMO RECURSO
SOCIOPOLTICO PARA A CIDADE DE OURINHOS-SP-----------------------------------12
CAPTULO IV - PROJETO ARQUIVO DE LEMBRANAS MEMRIA DOS FERROVIRIOS------------------------------------------------------------------------------------14
CONSIDERAES FINAIS-----------------------------------------------------------------------20
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS-----------------------------------------------------------21
ANEXOS---------------------------------------------------------------------------------------------23
A MEMRIA COMO RECURSO PARA AS POLTICAS PBLICAS CULTURAIS:
A experincia da Casinha da Memria de Ourinhos-SP
FERNANDA DE OLIVEIRA BOTELHO
Resumo
Este artigo visa analisar o uso da memria como recurso nas prticas de polticas pblicas da cidade de Ourinhos, por meio do contexto do projeto Arquivo de Lembranas,
realizado pela Casinha da Memria, equipamento cultural dirigido pela Associao de
Amigos da Biblioteca Pblica (AABIP) e Secretaria Municipal de Cultura. A memria
observada seguindo o pressuposto de como a ao de compartilh-la proporciona
transformao da conscincia das pessoas nela envolvidas, direta ou indiretamente, no que
diz respeito prpria documentao histrica, compreendendo seu valor na vida local,
maneiras de recuper-las e conserv-la. Contudo as aes da Casinha da Memria podem
ser consideradas como recursos sociopolticos da cidade de Ourinhos por fortalecer a
cidadania e as identidades sociais.
Palavras-chave: Memria Social, Poltica Cultural.
MEMORY AS A RESOURCE FOR PUBLIC POLICY CULTURAL: The experience of
Casinha da Memria de Ourinhos-SP
Abstract
This article aims to analyze the memory usage as a resource practices in public policy
Ourinhos through the context of the project Arquivo de Lembranas, conducted by Casinha
da Memria, facilities managed by the Association of Friends of the Public Library (AABIP)
and Municipal Secretary of Culture. Memory is observed following the assumption of how
the action of sharing it gives the transformation of consciousness of the people involved,
directly or indirectly, with respect to their own historical documents, includingits value in
local life, ways to get them and save it. But the actions of Cottage Mamorycan be considered
as resources of sociopolitical Ouirnhos to get them and save it. But the actions of Cottage
Mamorycan be considered as resources of sociopolitical Ourinhos to strengthen citizenship
and social identities.
Keywords: Social Memory, Cultural Policy.
MEMORIA COMO RECURSO PARA LA POLITICA PUBLICA CULTURAL: La
experiencia de la Casinha da Memria de Ourinhos-SP.
Resumen
En este artculo se pretende analizar el uso de memoria como recursos en las prcticas de
polticas pblicas en Ourinhos a travs del contexto de la proyecto Arquivo de Lembranas,
realizacin de la Casinha da Memria, equipamientos culturales gestionados por la
Asociacin de Amigos de la Biblioteca Pblica (AABIP) y Secretario Municipal de Cultura.
La memoria se observo despus de la Asuncin de la forma en que la accin de compartir se
da la transformacin de la conscincia de las personas involucradas, directa o indirectamente,
com respecto a sus propios documentos histricos, incluyendo su valor en la vida local, la
manera de recuperarlos y guardarlos. Concluy que las acciones de la Casinha da Memria se
pueden considerar como recursos scio-polticas de Ourinhos, para fortalecer la cidadana y
las identidades sociales.
Palavras clave: Memoria Social, Poltica Cultural.
1
INTRODUO
No incio da modernidade tudo girava em torno do futuro, da tecnologia e do
progresso, mas na atualidade, em um espao-tempo ocidental impregnado de efeitos da
modernidade surge o interesse pela memria. Este fato foi apontado por Andreas Huyssen
(2000) como globalizao da memria. Esse interesse se deu com acontecimentos como a
queda do Muro de Berlim, o fim das ditaduras latino-americanas, o colapso da Unio
Sovitica e o fim do apartheid na frica do Sul, e tambm pelo fortalecimento dos
movimentos sociais que discutiam uma nova forma de registro da histria e polticas de
identidade.
Na dcada de 1980 houve maiores preocupaes relativas memria na esfera pblica
por meio da explorao pela indstria cultural em torno das lembranas traumticas, como por
exemplo, do Holocausto (HUYSSEN, 2000).
Na Amrica Latina acredita-se que este interesse pela cultura e memria tenha se
destacado devido aos movimentos de memria da violncia poltica nascidos em perodos
ps- ditatoriais, quando ocorre um processo de releitura sobre o passado ao procurar
definies para dar sentido s disputas pela memria. Deste modo, se insere a discusso sobre
a necessidade de aes de reforma e justia. Esse processo articula narrativas e memrias
anteriormente reprimidas, e que se tornam conflitantes, pois alguns grupos procuram impor
hegemonicamente suas verses sobre outros, e ainda por meio de programas pblicos de
aes afirmativas com nfase no multiculturalismo, com destaque a comunidades indgenas e
negras, incluindo os quilombolas.
Nessa conjuntura poltica difundiram-se disputas e lutas por redefinies da memria
em vrios pases. Seus objetivos eram de justia social, reconhecimento pblico de memrias
de grupos tnicos, de gnero, religiosos e de reparao de danos historicamente causados por
explorao, guerras e regimes de exceo. Esses grupos buscam um espao na vida pblica
por meio da propagao de suas histrias, nas quais existiam elementos fundamentais para o
sentimento de pertencimento a um grupo, com o objetivo de reconhecimento perante os
demais grupos sociais e rgos oficiais.
Michael Pollack (1989, 1992) atribui a esses fatos o surgimento de movimentos para
que suas memrias sejam relativizadas em suas condies marginais, adquirindo espao e
visibilidade, silenciados por um trabalho de enquadramento da memria com a finalidade
de consolidar e legitimar Estados e identidades nacionais.
2
Em relao a essa mobilizao, com o incidente de uma cultura e poltica de memria,
Andreas Huyssen destaca:
No cenrio mais favorvel, as culturas de memria esto intimamente
ligadas em muitas partes do mundo a processos de democratizao e luta por
direitos humanos e expanso e fortalecimento das esferas pblicas da
sociedade civil. Desacelerar em vez de acelerar, expandir a natureza do
debate pblico, tentando curar as feridas provocadas pelo passado, alimentar
e expandir o espao habitvel em vez de destru-lo em funo de alguma
promessa futura, garantindo o tempo de qualidade estas parecem ser necessidades culturais ainda no alcanadas num mundo globalizado, e as
memrias locais esto intimamente ligadas s suas articulaes.
(HUYSSEN, 2000, p. 34-35)
Segundo Stuart Hall (2000), os reflexos causados pela globalizao so vistos por
alguns pesquisadores como uma ameaa, enfraquecendo as chamadas culturas nacionais, mas
permanecem fortes no que diz respeito a direitos legais e cidadania. Sobretudo, destacam as
identidades locais, regionais e comunitrias como as mais importantes. Assim as
identificaes globais passam a desarticular, ou at mesmo extinguir as chamadas culturas
nacionais.
A cultura e poltica de memria so alimentadas pela construo das memrias
relativas s identidades e aos espaos dos grupos sociais. Apresenta elementos importantes ao
utilizarem a memria como recurso em busca do reconhecimento e direitos perante o Estado
por meio das prticas de polticas pblicas.
nessa conjuntura que este trabalho visa analisar a memria como recurso
sociopoltico na cidade de Ourinhos SP, por meio das aes da Casinha da Memria,
equipamento cultural dirigido pela Associao de Amigos da Biblioteca Pblica (AABIP) e
Secretaria Municipal de Cultura. Fortalece a cidadania e as identidades sociais ao realizar seu
projeto principal, o Arquivo de Lembranas.
O projeto Arquivo de Lembranas consiste na formao de um acervo audiovisual
com relatos de histrias de vida. Um dos temas abordados a memria dos ferrovirios,
proporcionando populao o direito de conhecer parte da memria de sua cidade, e, aos
antigos ferrovirios, o direito enquanto cidados de terem sua memria registrada, divulgada e
valorizada.
3
1. MEMRIA INDIVIDUAL E MEMRIA SOCIAL
O conceito de memria vem sendo estudado h sculos por filsofos e cientistas,
modificando-se e adequando-se s funes, s utilizaes sociais e sua importncia em
diferentes sociedades humanas. A memria era explicada de acordo com os conhecimentos e
acontecimentos de cada momento da histria.
Segundo Jacques Le Goff (1996), os gregos concebiam a memria como algo divino,
um dom a ser praticado. Nesse contexto, o poeta tinha um papel social importante, o de
transmitir lembranas do passado aos mortais, reveladas pela deusa Mnemosine, me das
Musas, protetoras das artes e da histria. Possua a condio de memria viva de um grupo.
De mesma origem, a memria e a imaginao (lembrar e inventar) tm intensas
ligaes, quando os registros eram transferidos para fora do corpo, era como se houvesse um
enfraquecimento da memria. Portanto os gregos desenvolveram muitas tcnicas para
preservar as lembranas sem abrir mo do registro escrito.
Para os romanos, a memria era transmitida pela arte retrica. O orador seguia a regra
de no utilizar registros escritos.
A idade mdia marcada pela memria litrgica. O cristianismo e o judasmo
organizam o tempo presente com lembranas de acontecimentos de milagres e datas precisas,
principalmente dos santos, articulando o ensino da memria oral e escrita. Assim surgem os
tratados de memria (artes memoriae).
A imprensa revoluciona com seus tipos mveis e proporciona entre os mais cultos
tratados cientficos e tcnicos que anteciparam e abriram a memorizao do saber.
A urbanizao, a transformao na organizao e relaes sociais, as atividades,
papis e percepes do indivduo, trouxeram mudanas importantes para a memria
individual e coletiva.
De uma sociedade baseada na tradio oral dos saberes necessrios ao trabalho e
vida em grupo, novas ocupaes relacionadas ao comrcio e vida nas cidades demandam
registros e operaes, de listas, de transaes. Deste modo, desenvolvem-se artifcios cada vez
mais sofisticados para guardar e disseminar a memria em textos e imagens.
Com a tecnologia da informao foi possvel guardar e organizar grandes quantidades
de registros e abranger os meios inventados anteriormente.
Maurice Halbwachs (1990) colaborou com seus estudos na concepo das
representaes sociais que compem a memria. Para ele as lembranas dos indivduos so
estabelecidas a partir da relao a um grupo. Portanto a memria individual pode ser
4
compreendida como um ponto onde convergem diversas influncias sociais e como uma
forma singular de articulao dessas extenses. A memria social construda por um grupo
por meio de articulao e localizao de lembranas em quadros sociais comuns. Essas
lembranas so organizadas em um acervo e compartilhadas resultando na memria social.
Ao apontar e relacionar memria individual e coletiva, Maurice Halbwachs enfatiza os
termos usados:
[...] impossvel conceber o problema da evocao e da localizao das
lembranas se no tomamos para ponto de aplicao os quadros sociais reais
que servem de pontos de referncia nessa reconstruo que chamamos
memria. (DUVIGNAUD Apud HALBWACHS, 1990, p. 9-10)
Entretanto, a lembrana pessoal deve ser destacada como uma forma de confrontar as
interferncias coletivas. Franco Cardini (1993) explica:
[...] a lembrana no se constri sem a memria coletiva, mas, ao mesmo
tempo, a recordao pessoal uma forma de testemunho que impe limites
tirania ou ditadura das imagens coletivas. (CARDINI, 1993, p. 326)
No interior do trabalho com a memria este limite deve ser reconhecido, pois, as
lembranas so compostas pelas experincias comuns dos indivduos, mas seus contedos no
so arbitrrios. Em contrapartida, as lembranas pessoais passam pela tirania das imagens
coletivas enquanto possibilita que um elemento de carter pessoal possa ser ouvido por cima
da memria coletiva. Para Maurice Halbwachs (apud CARDINI, 1993) a conscincia
individual um medidor de influncias sociais, porm, ao mesmo tempo, um limite, algo
que pode salvar da ditadura.
A memria sublinha momentos histricos significativos, preserva o valor do passado
fortalecendo os grupos sociais. um objeto de busca pelo poder, pois o que deve ser
lembrado ou esquecido determinado pelos grupos como uma forma de autoridade sobre os
outros.
Michael Pollak (em entrevista concedida ao CPDOC - Centro de Pesquisa e
Documentao de Histria Contempornea do Brasil, 1987) destaca elementos constitutivos
da memria, como os acontecimentos, personagens e lugares. Todos podem ser vividos
pessoalmente ou indiretamente, ou seja, com a participao em um grupo. Essa memria
tambm pode ser real ou transferida em projees de outros eventos:
5
O que ocorre nesses casos so, portanto, transferncias, projees. Numa
srie de entrevistas que fizemos sobre a guerra na Normandia, que foi
invadida em 1940 pelas tropas alems e foi a primeira a ser libertada,
encontramos pessoas que, na poca do fato, deviam ter por volta de 5, 16, 17
anos, e se lembravam dos soldados alemes com capacetes pontudos
(casques pointe). Ora, os capacetes pontudos so tipicamente prussianos,
do tempo da Primeira Guerra Mundial, e foram usados at 1916, 1917. Era,
portanto, uma transferncia caracterstica a partir da memria dos pais, da
ocupao alem da Alscia e Lorena na Primeira Guerra, quando os soldados
alemes eram apelidados de "capacetes pontudos" para a Segunda Guerra.
Uma transferncia por herana, por assim dizer. (Entrevista concedida ao
CPDOC em dezembro de 1987)
Michael Pollak (em entrevista concedida ao CPDOC, 1987) ainda apresenta os
resqucios datados da memria, ou seja, aquilo que fica gravado como data precisa de um
acontecimento. possvel se deparar com a reconstituio poltica da histria e as datas
pblicas podem se tornar privadas. Ou, unicamente, a autntica importncia histrica das
respectivas datas para determinada regio. Deste modo, a memria pode "vencer" a
cronologia oficial. O que implica saber qual a relao disso com a constituio da
personagem. Pollak tambm constata:
[...] se possvel o confronto entre a memria individual e a memria dos
outros, isso mostra que a memria e a identidade so valores disputados em
conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opem
grupos polticos diversos. (Entrevista concedida ao CPDOC em dezembro de
1987)
Portanto a memria poltica pode ser movedor de diferenas entre diversas
organizaes. Para caracterizar essa memria conveniente colocar o conceito de trabalho de
enquadramento da memria, que pode ser ponderado em termos de investimentos. Uma
histria social da vida seria a anlise desse trabalho de enquadramento da memria e poderia
ser cometida em organizaes polticas, sindicais, na Igreja, por fim, em tudo aquilo que leva
os grupos a consolidarem o social.
Todavia outro trabalho seria necessrio introduzir, da prpria memria, uma
conservao, de consistncia, de unidade, de continuidade da organizao. Michael Pollak
exemplifica:
6
[...] a partir do momento em que o Partido Comunista amarrou bem a sua
histria e a sua memria, essa mesma memria passou a trabalhar por si s, a
influir na organizao, nas geraes futuras de quadros; os investimentos do
passado, por assim dizer, renderam juros. Esse fenmeno torna-se bem claro
em momentos em que, em funo da percepo por outras organizaes,
preciso realizar o trabalho de rearrumao da memria do prprio grupo.
(Entrevista concedida ao CPDOC em dezembro de 1987)
Portanto, ao reorganizar a histria do partido, sua memria reescrita. Esta memria
e identidade estando suficientemente constitudas, os questionamentos vindos de outros
grupos externos da organizao, no chegam a provocar a necessidade de reorganizao, nem
em nvel da identidade individual, nem em nvel da identidade coletiva. As memrias
individuais sustentam-se da memria coletiva e histrica, e buscam elementos mais
abrangentes do que a memria construda pelo individuo e seu grupo.
Um dos elementos mais importantes na construo e afirmao no carter social da
memria a linguagem. As trocas entre os membros de grupo se fazem por meio dela. Como
afirma Eclia Bosi (1994), a linguagem a ferramenta socializadora da memria, pois
restringe, conecta e aproxima no mesmo espao histrico e cultural experincias to variadas
como o sonho s lembranas e s experincias atuais.
Contudo foi por meio dos processos metodolgicos da memria coletiva, como no
caso de trabalhos sustentados pela histria oral, que foi possvel reconhecer a histria dos
negros, mulheres e trabalhadores. A histria ao invs de se configurar em uma ampla
narrativa, mencionando apenas a histria dos povos dominantes, passou a abrigar e dar
visibilidades a todas as narrativas.
Memria individual e coletiva (social) se sustenta da memria histrica e so
socialmente trabalhadas. Possuem registros e informaes importantes a serem transmitidas,
essencialmente, com a funo de garantir o sentimento de pertinncia entre os membros do
grupo. Diferente da memria histrica que possui como principal meio de preservao e
comunicao, a escrita, a memria individual e coletiva tem a oralidade como veculo
fundamental, porm no especfico. Memrias individuais, coletivas e histricas se adentram
mutuamente. Memrias individuais e coletivas almejam a coexistncia e a afirmao como
memria histrica.
7
2. POLTICAS PBLICAS DE CULTURA E MEMRIA SOCIAL
Atualmente vem aumentando o interesse por estudos sobre polticas pblicas pelos
pesquisadores, profissionais e instituies. Alexandre Barbalho (2005. p. 37) aponta que
embora exista uma extensa bibliografia sobre o tema Poltica Cultural, ainda aparente a
dificuldade em encontrar trabalhos preocupados em trazer uma discusso mais conceitual.
Para o autor, necessrio que haja uma definio com a prtica e com a pesquisa, em
se tratando de polticas culturais nos dias de hoje.
Entre outras verses que comeam a surgir na dcada de 1960, destaca-se a
importncia da UNESCO em torno das reflexes e debates sobre assuntos relacionados
cultura. No ano de 1969, a instituio publicou o documento Cultural policy: A preliminary
study, que fez parte da coleo Studies and Documents on Cultural Policies, divulgado na
dcada de 1970, sobre a situao da poltica cultural dos pases membros em todos os
continentes. Determina:
Poltica cultural entendida como um conjunto de princpios operacionais,
prticas administrativas e oramentrias e os procedimentos que fornecem
uma base para a ao cultural do Estado. (...) Poltica cultural deve ser
entendida como a soma dos usos conscientes e deliberada, de ao ou falta
de ao na sociedade, visando atender a determinadas necessidades culturais
por meio da utilizao ptima de todos os recursos materiais e humanos
disponveis em uma sociedade em um momento determinado. (UNESCO,
1969, p. 4 e 10)
perceptvel que a UNESCO, ao elaborar este conceito, considerou o momento e a
influncia pelo direcionamento do contedo a agentes governamentais, pois contrariou a
realidade contempornea, restringindo as polticas pblicas a uma ferramenta de atuao
estatal ao ignorar a participao de empresas e organizaes comunitrias na conduo do
campo cultural.
Para Jurgen Habermas as polticas pblicas envolvem atores pblicos e privados,
podendo, inclusive, atuar em conjunto em projetos planejados, sistematizados como
pensamentos e atividades estratgicas que coliguem o antes, o durante e o depois da ao
proposta. Por ser uma ao interventiva no mbito coletivo, importante refletir sobre
polticas pblicas de cultura acerca do que o autor apresenta como a noo de esfera pblica:
8
A esfera pblica pode ser descrita como uma rede adequada para a
comunicao de contedos, tomadas de posio e opinies; nela os fluxos
comunicacionais so filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em
opinies pblicas enfeixadas em temas especficos. Do mesmo modo que o
mundo da vida tomado globalmente, a esfera pblica se reproduz atravs do
agir comunicativo, implicando apenas o domnio de uma linguagem natural;
ela est em sintonia com a compreensibilidade geral da prtica comunicativa
cotidiana. (HABERMAS, 1997, p. 92)
Nesse sentido, a esfera pblica um espao onde agentes e instituies, de domnio
coletivo, reivindicam qualidade de vida, participao nas polticas pblicas j adotadas e em
novas polticas que atendam a populao em geral na rea cultural. Deste modo, necessidades
de grupos locais intensificadas por meio da memria, podero ser articuladas, ouvidas e
ponderadas.
Para Antnio Gramsci (1982) cada grupo social concebe um intelectual orgnico,
acepo dada aos sujeitos que se ocupam em pensar a realidade social, servindo de
mediadores entre a sociedade civil e a sociedade poltica, no papel de deciso na produo e
nas prticas de polticas pblicas por meio de processo de articulao de estratgias para criar
hegemonia da classe trabalhadora.
Uma das mais marcantes caractersticas de todo grupo social que se
desenvolve no sentido do domnio sua luta pela assimilao e pela
conquista "ideolgica" dos intelectuais tradicionais, assimilao e conquista
que so to mais rpidas e eficazes quanto mais o grupo em questo elaborar
simultaneamente seus prprios intelectuais orgnicos. (GRAMSCI, 1982, p.
9)
Gramsci apoia a ideia de sociedade civil, ou classe poltica para o controle do Estado,
para tanto, as classes tem que se servir das mesmas oportunidades e condies. Porm,
historicamente, existem muitas desigualdades entre os detentores do poder e as classes
trabalhadoras. O Estado est a servio das classes proprietrias, por isso Gramsci sugere o
fortalecimento das classes sociais organizadas em sociedade civil, ou classe poltica, para
negociarem a diviso de recursos. Mas, para isso seria fundamental que os intelectuais
orgnicos assumissem a responsabilidade de organizar o movimento e permitir que os
trabalhadores assumissem o poder, equilibrando foras e suas aes opressivas.
A Segunda Guerra Mundial se diferenciou das anteriores por ter maior cobertura da
mdia, causando comoo e reflexo por parte da sociedade. A sociedade civil internacional
ficou perplexa perante a destruio promovida pela guerra, assim como pelas suas estatsticas
escatolgicas. A cincia pr-guerra, os campos de concentrao nazistas, as bombas sobre
9
Hiroshima e Nagasaki, dentre outros exemplos bizarros de barbrie, serviram de modelo da
capacidade destrutiva do ser humano, levantando novas discusses sobre o futuro da
humanidade. De repente, tudo aquilo que remetia guerra tornou-se repugnante. A Europa,
ento em runas, assim como outros cenrios da guerra, buscaram se reconstruir sobre novos
valores. Com a ajuda da mdia internacional, causou ressonncia, cuja repercusso culminou
na criao de rgos para a conservao de tudo aquilo que fora ameaado: as culturas, os
patrimnios histricos e a dignidade humana.
Deste modo, surgem movimentos que buscam evitar novos confrontos blicos. Em
1945, criou-se a Organizao das Naes Unidas (ONU) a favor de estabelecer e manter a paz
no mundo. Por meio da Carta das Naes Unidas, assinada em 20 de Junho de 1945, os povos
manifestaram a sua determinao.
[...] a preservar as geraes vindouras do flagelo da guerra, que por duas
vezes, no espao da nossa vida, trouxe sofrimentos indizveis humanidade,
e a reafirmar a f nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no
valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres,
assim como das naes grandes e pequenas, e a estabelecer condies sob as
quais a justia e o respeito s obrigaes decorrentes de tratados e de outras
fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o
progresso social e melhores condies de vida dentro de uma liberdade
ampla. (Disponvel em <
http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf>)
Alexandre Barbalho (2005, p. 35) afirma que no perodo ps - Guerra mundial que a
cultura passa a receber maior ateno do Estado. Entre 1970 e 1988, a UNESCO promove
uma srie de reunies e conferncias buscando unir os Estados nacionais. Destaca:
Conferncia Intergovernamental sobre Aspectos Institucionais, Administrativos e Financeiros da Poltica Cultural (1970); Promoo da Dcada Mundial do Desenvolvimento Cultural (1988-1997);
Comisso Mundial de Cultura e Desenvolvimento, criada junto com as Naes Unidas, em 1992; e
Conferncia Mundial de Polticas Culturais (1988).
Para Martin Cezar Feij (1983, p. 75), todas as iniciativas da UNESCO para situar
normas de convivncia entre culturas alheias, durante a dcada de 1970, so mobilizadas pela
10
contribuio da contracultura1. As mudanas comportamentais trazidas pela contracultura e o
surgimento dos movimentos sociais, refletiram em transformaes nas reas sociais, culturais
e tecnolgicas, na dcada de 1980. Tais mudanas, que almejavam reconstruir a estrutura das
instituies no sentido de flexibilizar hierarquias e ampliar papis, por fim, acabaram por
discutir projetos de ao cultural e o interesse pblico pela cultura. Levando em considerao
a relao entre memria, histria e legislao, Luciana Heymann assegura:
O que se observa, ento, em linhas gerais, a busca de reconhecimento e
legitimidade por parte de grupos que, destacando-se da comunidade nacional, passam a definir-se a partir de novas categorias, sejam elas tnicas, religiosas, de gnero, etc. Nesse processo esto em jogo novas
formas de auto-identificao, a valorizao de uma histria particular, a
demanda por incluso sem homogeneizao, a luta pelo reconhecimento
pblico de sua existncia e significado para a nao, por representao
poltica e, finalmente por direitos. No apenas os direitos universais, mas
tambm novos direitos, associados especificidade histrica ou cultural
desses grupos, fenmeno que vem provocando a rediscusso de conceitos
como cidadania e democracia. (HEYMANN, in GOMES 2007, p. 17)
Para Antnio Rubim (2007), atualmente h uma descentralizao, agentes estatais e
no-estatais que desenvolvem aes e projetos sistemticos no campo da cultura so inseridos
nas polticas culturais ao lado dos Estados nacionais. Deste modo as polticas pblicas
culturais so compostas pelos organismos supranacionais (organizaes entre naes,
organismos multilaterais, blocos econmicos, etc.), os estados subnacionais (as provncias e
os municpios), entre outros.
A descentralizao do Estado-nao em relao s polticas pblicas culturais
proporciona tambm sociedade civil a oportunidade de reconhecimento pblico de outras
memrias, e no somente a nacional. Lia Calabre aponta em sua pesquisa sobre polticas
pblicas de cultura no Brasil:
1 Surgida nos Estados Unidos na dcada de 1960, a contracultura pode ser entendida como um movimento de
contestao de carter social e cultural. Nasceu e ganhou fora, principalmente entre os jovens desta dcada,
seguindo pelas dcadas posteriores at os dias atuais. Ver O que contracultura, Pereira, Carlos A. M., 1984.
11
Durante muito tempo a ao do Estado ficou restrita a preservao daquilo
que comporia o conjunto dos smbolos formadores da nacionalidade, tais
como o patrimnio edificado e as obras artsticas ligadas cultura erudita
(composies, escritos, pinturas, esculturas, etc.). O papel de guardio da
memria nacional englobava atribuies de manuteno de um conjunto
restrito de manifestaes artsticas. As manifestaes culturais deveriam ser
registradas e resgatadas dentro do que poderia ser classificado como o
folclore nacional. (CALABRE, 2007, p. 96)
Diante dessa superao da atuao restrita do Estado, as organizaes no-
governamentais e as movimentaes da sociedade civil esto desenvolvendo aes
acrescentando novos caminhos para as polticas pblicas de cultura. Sem deixar de lado os
fluxos transnacionais do processo de globalizao e as relaes internacionais, decisivos para
a ampliao da aplicao do Estado rea cultural.
Lia Calabre (2010) destaca como marco inaugural das polticas de cultura no Brasil, a
implantao do Departamento de Cultura da prefeitura da cidade de So Paulo, sob o
comando de Mrio de Andrade, de 1935 a 1938, e a criao dos Ministrios da Educao e
Sade em 1930, sob direo de Gustavo Capanema.
Nas reflexes de Cristina De Carvalho (2009) sobre apresentao de lutas e conflitos
na histria das polticas pblicas de cultura no Brasil, de 1977 at os dias atuais, ou seja,
desde a poca do Estado Novo, existe um processo de aes e demandas sociais reivindicando
seus espaos na formulao de polticas pblicas de cultura no Brasil. Segundo a autora, esta
participao se intensificou a partir de 1980, quando se transfere as aes estratgicas na rea
por meio das leis de incentivo e renncia fiscal. Cristina De Carvalho avalia que no
contraponto, est a participao conquistada:
[...] que fomente um processo de emancipao e de auto-organizao
expresse-se na formao do Sistema Nacional de Cultura e, em particular, no
programa Cultura Viva, do Ministrio da Cultura do governo Lula. (DE
CARVALHO, 2009, p. 19-20)
Criado em junho de 2004, o Cultura Viva o Programa Nacional de Cultura,
Educao e Cidadania, formado por Pontos de Cultura, dirigidos com a participao do
Estado em conjunto com a sociedade.
Segundo Antnio Rubim (2007b) e Cristina De Carvalho (2009) foi nas polticas
pblicas de cultura do governo Lula (2003-2010), que o entendimento de incentivos e maior
informao difundida foi mais presente por acrescentar uma noo de cultura mais
abrangente.
12
Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura, na I Conferncia Nacional de Cultura aponta
aes que fortalecem perspectivas cidads e democrticas do desempenho do Estado neste
campo. Como Antnio Rubim lana:
Em conseqncia, o pblico privilegiado no sero os criadores, mas a
sociedade brasileira. A outra nfase dos discursos programticos ser a
retomada do papel ativo do Estado nas polticas culturais. (RUBIM, 2007b,
p. 29).
Contudo, por meio da compreenso de cultura adotada por uma gesto pblica, fica
perceptvel a intensidade de seu desempenho. Como resumo das observaes apresentadas
sobre polticas pblicas de cultura e memria social pode-se analisar alguns procedimentos de
descentralizaes na formulao de polticas que vm sendo realizados a nvel nacional e
regional: a difuso de informaes sobre cultura admitindo que suas mais variadas
manifestaes sejam promovidas; a consistncia da sociedade civil, o mercado e as entidades
internacionais com o Estado na formulao de polticas pblicas; a democratizao das
polticas pblicas acerca da memria social e enquanto recurso sociopoltico; a distribuio
descentralizada de equipamentos culturais com a inteno de adequar cidadania cultural.
3. A ATUAO DA CASINHA DA MEMRIA COMO RECURSO
SOCIOPOLTICO PARA A CIDADE DE OURINHOS - SP
A partir do momento em que a memria desperta interesse e apresenta retorno, torna-
se recurso que transcorrem em diferentes reas. George Ydice ao citar Michael Young e
Jeremy Riftkin:
(...) a cultura est sendo crescentemente dirigida como um recurso para a
melhoria sciopoltica e econmica, ou seja, para aumentar sua participao
nessa era de envolvimento poltico decadente de conflitos acerca da
cidadania (YOUNG, 2000, pgs. 81-120), e do surgimento daquilo que
Jeremy Riftkin (2000) chamou de capitalismo cultural. (YUDICE, 2004, 25)
Com essa observao, o autor demonstra que os usos da cultura no mundo globalizado
servem tambm para ponderar as justificativas das manifestaes de mote da memria social
no momento atual. Deste modo, possvel afirmar que os trabalhos de construo,
transmisso e divulgao de memrias so cada vez mais de interesse para incentivos, apoio
polticos e fomentao, pois ofertam retorno sociopoltico e econmico sociedade. A
13
memria, como recurso, pode ser articulada para resolues de problemas que desde ento
eram exclusivamente relacionadas a reas como a poltica e economia.
apropriado deixar claro que nessa presente pesquisa a abordagem para memria-
recurso e no memria-mercadoria. A inteno no limitar a memria pela memria, como
afirma Santana (Apud YUDICE, 2004, p.32) em relao cultura, mas sim a conscincia do
que a memria social capaz de oferecer ao compensar os investimentos que ampliam as
aes nessa rea.
O Plano Nacional de Cultura, previsto desde a aprovao da emenda 48, em 2005,
recentemente est em fase de implementao de suas diretrizes formuladas pelo Estado em
conjunto com a sociedade, atravs de pesquisas e encontros realizados como as Conferncias
Nacionais de Cultura, Cmaras Setoriais, Fruns e Seminrios.
Criada no ano de 2010, a lei 12.343/10, que regulamenta o plano, est contida no
Artigo 215 da Constituio Federal. O PNC para o Ministrio da Cultura (MinC):
[...] tem por finalidade o planejamento e implementao de polticas pblicas
de longo prazo voltadas proteo e promoo da diversidade cultural
brasileira. Diversidade que se expressa em prticas, servios e bens
artsticos e culturais determinantes para o exerccio da cidadania, a expresso
simblica e o desenvolvimento socioeconmico do Pas. (MinC, disponvel
em www.cultura.gov.br/site/categoria/politicas/plano-nacional-de-cultura/.
Acesso em 08 de maro de 2012)
A memria est presente no contedo do PNC. Comeando por seus princpios, cujo
captulo VI atenta ao direito memria e s tradies. No Captulo II, uma de suas estratgias
e aes :
2.3.1. Promover aes de educao para o patrimnio, voltadas para a
compreenso e o significado do patrimnio e da memria coletiva, em suas
diversas manifestaes como fundamento da cidadania, da identidade e da
diversidade cultural. (MinC. Disponvel em
www.cultura.gov.br/site/categoria/politicas/plano-nacional-de-cultura/
Acesso em 08 de maro de 2010)
Seguindo esses preceitos a Secretaria de Cultura de Ourinhos, em parceria com a
Associao de Amigos da Biblioteca Pblica vem praticando aes de preservao da
memria da formao da cidade e de educao patrimonial, tais como: Memria Postal
Apresentando Imagens do Passado; Oficina de Educao Patrimonial; Oficina Aes
Educativas em Museus; publicaes e a implantao da Casinha da Memria.
14
A Casinha da Memria um equipamento cultural vinculado ao Museu Municipal de
Ourinhos, criado em 15 de dezembro de 2010, para abrigar acervos relacionados memria
ourinhense e disponibiliz-los aos pesquisadores e s pessoas interessadas em conhecer um
pouco mais a histria da cidade por meio de um acervo formado por livros, colees de fotos
e de antigas publicaes. Sua sede justamente uma das casas do conjunto ferrovirio
construdo no incio do sculo passado, que representa uma parte significativa da histria da
cidade.
Desde o incio do ano de 2011, a Casinha da Memria vem desenvolvendo seu
principal projeto, o Arquivo de Lembranas, cuja finalidade criar um acervo audiovisual,
formado por relatos de histrias de vida, onde qualquer pessoa pode deixar registrada sua
histria.
A organizao do acervo se d por temas, como Memria dos Nordestinos, Memria
do Rdio, Memria da Msica, dentre outros. No momento, o projeto est voltado Memria
dos Ferrovirios.
4. PROJETO ARQUIVO DE LEMBRANAS MEMRIA DOS
FERROVIRIOS
Ourinhos uma cidade com densidade histrico-cultural. Destaca-se a sua importncia
com o entroncamento ferrovirio, fundamental na economia cafeeira desde o incio do sculo
XX, passando por toda a sua ampliao.
Formado como Municpio em 1918, Ourinhos tornou-se ponto de partida da
Companhia Ferroviria So Paulo - Paran em 1923, com o incio da construo do trecho
entre Cambar e Ourinhos. A ferrovia fez parte da colonizao do norte paranaense e do
desenvolvimento da economia cafeeira, englobando So Paulo e Paran, atravs dela o caf
chegava ao porto de Santos. Muitas vidas se movimentavam, formando uma cidade cuja
riqueza humana tem a oportunidade de ser recriada e difundida por meio de aes acerca da
memria.
O projeto Arquivo de Lembranas tem a misso de contribuir com o desenvolvimento
humano e social ao valorizar, organizar e socializar a histria de vida das pessoas.
Durante o ano de 2011 foram colhidos depoimentos de antigos ferrovirios de
Ourinhos por uma equipe composta por Neusa Fleury Morais, Secretria de Cultura de
Ourinhos, Marco Aurlio Gomes, Diretor da Assessoria de Imprensa da Secretaria de Cultura,
Tatiana de Oliveira, Agente Cultural e fotgrafa, Jos Luiz Martins, Diretor de Audiovisual e
15
Edio, e Fernanda de Oliveira Botelho, agente cultural responsvel pelas transcries,
pesquisa e registro dos documentos dos entrevistados.
A ferrovia foi grande responsvel pela formao e ampliao do espao social2 de
Ourinhos. Muitas casas foram construdas em um loteamento prximo ao ptio da estao
ferroviria para abrigar pessoas que vinham de outras regies do pas ou que trocaram o
campo para trabalhar na ferrovia. Assim formou-se a Vila Margarida, um dos bairros da
cidade.
Domingos ngelo Filho morava na Fazenda Lageadinho, rea rural de Ourinhos, e
mudou-se para a rea urbana, na Vila Margarida, para trabalhar na ferrovia.
Cheguei a Ourinhos mocinho ainda, em 10 de setembro de 1949. Vim para
trabalhar na ferrovia. Na Sorocabana trabalhei noventa dias, foi mais na
Rede de Viao Paran Santa Catarina. Era o fim do tempo dos ingleses.
Trabalhar na ferrovia era um luxo, porque ningum queria trocar o trabalho
do campo pela ferrovia, pois na Fazenda Lageadinho, por exemplo, tinha de
tudo. Tinha campo de futebol iluminado, eu jogava bola a noite inteira,
campo de aviao, farmcia, mdico, escola, rdio, gua encanada e turbina
de energia prpria. Quando vim para Ourinhos j era casado e morei na Vila
Margarida, em frente ao relgio da Rede. As casas da Rede eram oferecidas
ao pessoal que trabalhava na Via Permanente, na soca. Conforme o trecho
que cuidavam, tinha as casinhas para morarem. (Entrevista concedida em
02/02/2011).
Segundo BOSI (1994, p. 281) cada classe, cada pessoa vive diferentemente o seu
tempo. A sociedade industrial racionalizou as horas de vida dos trabalhadores, encurtando o
tempo da amizade, familiar e religioso. Porm, por ser um trabalho sobre o tempo, conotado
pela cultura e pelo indivduo, a memria tambm envolve esse tempo perdido nas atividades
mercantilistas. Deste modo, ao construir sua histria de vida, o indivduo busca subsdios na
memria de seu grupo e do local onde viveu suas experincias.
O trabalho na ferrovia era dividido em turnos, porm se ocorresse algum imprevisto
como acidentes na linha ou problemas na comunicao, no importava o horrio, o ferrovirio
deveria apresentar-se na funo imediatamente. O ferrovirio aposentado Marcial Fandaruff
2 O espao social aquele que percebido entre os indivduos que participam de um coletivo. de natureza
imaterial, refere-se aos vnculos que traam as relaes entre os indivduos e a sociedade, e, que formam o tecido
social. Que se representam atravs de fios invisveis, de natureza comunicativa que fazem a coeso social, o elo
que rene os homens em lugar comum. Podem-se ler diferentes esferas do tecido social, onde se realizam
coletivos especficos, cujo objeto de ao a produo econmica, a organizao poltica e a vida social
(EGLER, 2003b).
16
tinha a funo de supervisionar cem quilmetros de linha de telefonia da Rede de Viao
Paran - Santa Catarina e expe situaes em que trocou momentos de lazer para socorrer
defeitos na comunicao da estrada de ferro:
[...] um servio que dava muito trabalho. s vezes para ir matin em
Jacarezinho eu tinha que deixar o meu nome na portaria, se eles precisassem
chamar, tinham que me tirar na matin pra socorrer telefonia l na Rede. Era
apurado o negcio! Era sozinho e tomava conta de cem quilmetros todo dia.
No era brincadeira! [...] no podia sair. Uma vez, no meu aniversrio,
aquele pessoal l em casa, os parentes, dava um defeito de linha, eu tinha
que largar tudo e sair feito doido. , tinha que atender. [...] Era o meu
servio. (Entrevista concedida em 20/03/2011)
Ldia Batista ngelo, esposa do ferrovirio aposentado Domingos ngelo Filho, da
Rede de Viao Paran - Santa Catarina exemplifica com o nascimento de seu segundo filho
como era ser casada com um ferrovirio.
[...] O menino nasceu ele no estava em casa. o segundo filho. Ele foi
prestar socorro e ficou vinte e dois dias l, levantando mquina e vago no
brejo. A ele voltou pra casa. Mas ele chegou de uma linha e j foi chamado
pra ir a outro socorro. (Entrevista concedida em 02/02/2011)
Muitos chegavam a Ourinhos para trabalhar na ferrovia com suas famlias, porm
outros constituam famlia depois de estabelecidos na cidade, deste modo, mulheres e filhos
tambm participaram da construo dessa histria. possvel observar essa participao nas
lembranas de Leda Maria Souza Silva, filha do ferrovirio aposentado Edvaldo Csar Silva
que trabalhava na guarita do ptio da Rede de Viao Paran - Santa Catarina.
[...] Eu me lembro de quando ia levar janta pra ele, noite. Porque l fazia
uma escala. A gente ficava brincando. A ele vinha, sentava, jantava e ns
ficvamos correndo [...] s vezes ele falava assim: D uma volta com ela. A a gente andava (de trem). Ento, sabe assim? Tem muita recordao. s
vezes quando ele saa para alguma cidade aqui perto, falava assim pra ela
(Nomia, esposa do ferrovirio): Olha, na hora que tiver chegando aqui, eu vou mandar dar trs apitos, que voc sabe que estou chegando. A ela j ficava naquela expectativa. Na hora que dessem trs apitos, ele estava
chegando. Ento logo, logo ele estava em casa. [...] , voc v! Nossa! Era
muito bom. (Entrevista concedida em 03/09/2011)
Havia em Ourinhos uma cooperativa que fornecia produtos para os ferrovirios em
troca de pagamento descontado em folha. O ferrovirio aposentado Domingos ngelo Filho
conta:
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[...] Aqui, ns tnhamos uma cooperativa na Rua Vinte e Seis de Outubro,
abastecia todos os ferrovirios, vinha tudo de Ponta Grossa. Enquanto no
entrou espertalho dentro dela, era muito boa para os ferrovirios, no
faltava nada. A gente mandava uma lista, ainda tem a caderneta guardada.
Na caderneta estava tudo escrito o que eles tinham, a a gente marcava a
quantia e mandava pra l. Eles empacotavam tudo e mandavam pela
carrocinha. Tinha saco de arroz, batatinha, cebola, alho, bacalhau, carne
seca, carne de sol, carne de porco salgada, linguia, linguia rosa e salame.
Depois ela fechou, assim meio de repente, e um tal de Augustinho era o
gerente, ele morava aqui na Vila Margarida. Dizem que ele deu um rombo na Cooperativa e ela fechou assim, de repente. (Entrevista concedida em
02/02/2011).
Nivaldo ngelo, filho de Domingos ngelo, acrescenta com suas lembranas de
criana:
[...] Vinha tudo do sul. Naquele tempo a molecada no tinha tnis, ns j
tnhamos Makerliera, uma marca excelente de Ponta Grossa. Alfaiates de
Ponta Grossa vinham de trem, tiravam medida da gente e faziam os casacos,
descontava do holerite. Eu tinha um casaco daqueles longos, parecido com
os da Guerra Mundial, durou uma eternidade, dei para meu sobrinho, est
por a rodando, no sei pra onde foi. No acaba nunca, de l pura, batida
mesmo. (Entrevista concedida em 02/02/2011).
Leda Maria Souza Silva, filha do ferrovirio Edvaldo Cesar Silva, tambm expe suas
lembranas de menina, em uma casa com onze irmos, como era a chegada da compra mensal
feita na Cooperativa.
[...] Vinha uma carroa s aqui pra nossa casa. Era uma delcia! [...] Nossa!
Leite condensado. Tinha umas latas de goiabada enormes. Sabe? Lata de
banha. s vezes ela (me) trocava com as vizinhas. Vinha saco de arroz,
meio de feijo. Nossa! Era uma delcia a hora que parava a charrete na frente
e a gente ia correndo pra descarregar! Nossa! uma lembrana, assim, que
no tem. Muito emocionante. Eram duas compras por ano. Uma de inverno e
outra de vero. (Entrevista concedida em 03/09/2011)
Eclia Bosi (1994) em suas pesquisas observa a memria como um trabalho e no
como um sonho. Olga Von Simson (2000) acrescenta:
18
[...] que o ato de relembrar em conjunto, isto , o ato de compartilhar a
memria, um trabalho que constri slidas pontes de relacionamento entre
os indivduos - porque aliceradas numa bagagem cultural comum - e, talvez
por isso, conduza a ao. Portanto, a memria compartilhada tanto forma
de domar o tempo, vivendo-o plenamente, como empuxo que nos leva a
ao, constituindo uma estratgia muito valiosa nestes tempos em que tudo
transformado em mercadoria, tudo possui valor de troca. Essa memria
compartilhada, enquanto desejo latente do homem ps-moderno, que,
entretanto se realiza numa relao no inserida na lgica de mercado, nos
leva a construir redes de relacionamentos nas quais possvel focalizar em
conjunto aspectos do passado, envolvendo participantes de diferentes
geraes de um mesmo grupo social. Nesse processo, utiliza os "culos do
presente" para reconstruir vivncias e experincias pretritas o que nos
propicia pensar em bases mais slidas e realistas nossas futuras aes (VON
SIMSON, 2000, p.66).
Essa ao de compartilhar a memria proporciona maior conscincia quanto aos
problemas atuais da vida da comunidade ourinhense, e espontaneamente a conduz a aes
conjuntas e politicamente conscientes apontando resolues. Acredita-se que a memria
constitui-se um recurso tanto para a gesto da Casinha da Memria, quanto para o pblico e a
comunidade relacionados. Por ser um espao de construo de narrativas de memria, torna-
se capaz de atingir a proximidade com o entorno, aumentando o nmero de seus visitantes.
Para a Secretria de Cultura de Ourinhos Neusa Fleury Moraes:
O projeto importante por deixar registrada a trajetria dos ferrovirios em
Ourinhos, e tambm porque essas informaes estaro acessveis para
pesquisadores sobre o tema ou pessoas que queiram conhecer mais sobre o
assunto. Alm de preservar a memria dos trabalhadores da ferrovia, meio
de transporte quase esquecido no pas, o projeto tambm valoriza a histria
de vida de pessoas comuns, que tiveram suas experincias lembradas e
valorizadas. Por ltimo, um projeto como esse que visa preservar a histria
da ferrovia tambm colabora no cuidado com a memria da prpria cidade,
que teve seu crescimento atrelado poca urea do transporte ferrovirio.
(Entrevista concedida em 01/08/2012)
A Casinha da Memria instrumento para reconhecimento da identidade social do
pblico e da comunidade, de fortalecimento de laos sociais, bem como a evocao
memria social da cidade por parte de seus moradores.
Para Marco Aurlio Gomes, um dos responsveis por colher os depoimentos dos
ferrovirios:
A importncia do Arquivo de Lembranas est na valorizao das histrias
pessoais, contribuindo para uma nova compreenso do passado, alm da
criao de um arquivo audiovisual disponibilizado a toda comunidade e que
permanece aberto para o registro de novas histrias de vida. (Entrevista
concedida em 25/07/2012)
19
Alm de valorizar as histrias pessoais, dando voz a diferentes segmentos da
sociedade, o projeto Arquivo de Lembranas permite a criao de um novo tipo de acervo que
servir de fonte de pesquisa, tanto para estudantes das sries iniciais como para pesquisas
mais avanadas. Proporciona a populao o direito de conhecer parte da memria de sua
cidade, e aos antigos ferrovirios, o direito enquanto cidados de terem sua memria
registrada, divulgada e valorizada. Segundo Chau (2006, p. 125) a memria como direito
do cidado, portanto como ao de todos os sujeitos sociais e no como uma produo oficial
da Histria.
Quando questionada sobre a importncia do projeto Arquivo de Lembranas, a
professora da Rede Pblica Municipal e Estadual, Nilza de Ftima Volpe Nbile,
frequentadora da Casinha da Memria e moradora da Vila Margarida, disse:
Achei interessante o projeto por valorizar as pessoas atravs do resgate de
suas histrias. Simples cidados que revelam a sua importncia para a
sociedade. A ferrovia um marco social para cidade. Em junho, viajei a
Perube com um casal de amigos, passeando pela praia, ficamos
impressionados com a disposio de uma senhora que passou correndo por
ns. Fizemos comentrios e um casal que estava caminhando atrs de ns
disse que aquela senhora corria na praia todos os dias. Assim comeamos a
conversar e a mulher perguntou de onde ramos. Quando respondi que
morava em Ourinhos ela, surpresa, contou que viveu at os sete anos aqui
(Ourinhos) e que seu pai era ferrovirio. Lembrou-se da casa que morou
(uma das casas construdas pela Estrada de Ferro Sorocabana e que foram
recuperadas). Depois dessa conversa, lembrei-me do projeto da Casinha da
Memria e de como essa memria est sendo valorizada em nossa cidade. O
resumo de tudo o valor que esse trabalho proporciona ao cidado
ourinhense. (Entrevista concedida em 25/07/2012)
Logo, entende-se que a Casinha da Memria por meio do projeto Arquivo de
Lembranas contribui como um recurso sociopoltico cidade de Ourinhos por fortalecer a
cidadania e as identidades sociais. Deste modo, a Secretaria Municipal de Cultura atende s
diretrizes do Plano Nacional de Cultura no mbito da temtica memria social.
20
Consideraes Finais
Ao longo deste trabalho foi possvel notar que a construo da memria vem
conquistando seu espao como recurso em busca do reconhecimento e direitos perante o
Estado por meio das prticas de polticas pblicas, pois apresentam elementos importantes no
fortalecimento das identidades e dos espaos dos grupos sociais.
As polticas pblicas foram compreendidas em aes e interferncias que no so
somente do Estado, como algo impositivo, mas que unem o processo de consensos e disputas
dos diferentes grupos. Ora atendendo demandas de uns, ora negociando diferenas. So
compostas por conflitos e perspectivas tanto de ao quanto de ausncia, compreendendo
consenso, harmonia e oposies.
Constatou-se, a partir da anlise realizada junto a Casinha da Memria, em
Ourinhos, que o trabalho de suas aes culturais est no fortalecimento da identidade da
cultura local e da formao de cidadania. De tal modo possvel notar que a memria dos
antigos ferrovirios e de seus familiares, obtidos por meio do projeto Arquivo de Lembranas,
no aprisiona o indivduo no passado, mas o incentiva com maior segurana a enfrentar os
problemas da atualidade.
Ao reconstruir e compartilhar os aspectos do passado recente, o trabalho com a
memria permite uma transformao da conscincia das pessoas nele envolvidas direta ou
indiretamente no que diz respeito prpria documentao histrica compreendendo seu valor
na vida local, maneiras de recuper-las e conserv-la.
Contudo, o projeto Arquivo de Lembranas proporciona populao o direito de
conhecer parte da memria de sua cidade, e aos antigos ferrovirios, o direito enquanto
cidados de terem sua memria registrada, divulgada e valorizada. As aes da Casinha da
Memria, por fortalecer a cidadania e as identidades sociais, so consideradas recursos para as
possveis polticas pblicas de cultura da cidade de Ourinhos.
21
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