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1SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
A evoluo criadora, de Henri
Bergson
Sua atualidade cem anos depois
EditorialNo ano em que se comemora o centenrio de publicao deA evoluo criadora(Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1971),
indiscutivelmente a obra de maior impacto do filsofo francs Henri Bergson (1859-1941), a IHU On-Lineprope-se a
discutir e analisar seu legado.
Ao examinar as idias de Bergson sobre o cinema, o argentino Adrin Cangi(Universidade de Buenos Aires) diz que, em
certo sentido, o mito da caverna exposto emA repblica, como tenso entre a idia e o simulacro, pensada como
projeo indireta, est no fundo da imagem dogmtica do pensamento que Bergson critica. No ponto de vista da filsofa
brasileira Dbora Morato, da Universidade Federal de So Carlos, emA evoluo criadora, Bergson defende que a
funo do intelecto adaptativa e assim naturaliza a inteligncia, e completa: Para viver, preciso recortar o real em
funo das nossas necessidades.
Na opinio do filsofo francs Eric Lecerf, da Universidade de Paris VIII, uma das proposies mais importantes contidas
emA evoluo criadora desvendar a conscincia que nos habita, o que nos conduz, desta forma, a atingir um
conhecimento verdadeiro do ser vivo. O tambm francs Pierre Montebelloda Universidade de Mirail, Toulouse, sada a
filosofia bergsoniana como uma filosofia do futuro: Bergson faz-nos entrever nossa participao num movimento criador
do universo, do qual ns no somos nem a origem nem o fim. Esta idia de um universo aberto, criador, que em nada
corresponde quele que a metafsica grega ou clssica descreveu, exerce hoje uma grande influncia. O bergsonismo
uma filosofia do futuro, do tempo, da transformao.
Completando as ponderaes de nosso tema de capa, colaboraram, ainda, as filsofas Paola Marrati, da UniversidadeJohn Hopkins, italiana de nascimento e radicada em Baltimore, EUA, e a brasileira Maria Cristina Franco Ferraz, da
Universidade Federal Fluminense (UFF).
Ana Maria Bianchi, professora da USP, discute o pensamento de Albert Hirschman. Ela apresentar e debater, nesta
semana, no IHU, o livroAs paixes e os interesses, de Hirschman. Por sua vez, Afonso Maria Ligorio Soares, presidente
da Sociedade de Teologia e Cincias da Religio (Soter), chefe do Departamento de Teologia e Cincias da Religio da
PUC-SP, debate os rumos da Teologia no Brasil, hoje.
Santiago, de Joo Moreira Salles, o filme da semana. A todas e todos uma tima semana e uma excelente leitura!
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2SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
Leia nesta edio
PGINA 02| Editorial
A.Tema de capa ENTREVISTAS
PGINA 06 | Eric Lecerf: Desvendar a conscincia que nos habita
PGINA 10 | Maria Cristina Franco Ferraz: Matria e memria, uma obra-prima
PGINA 13 | Paola Marrati: Uma teoria do conhecimento inseparvel de uma teoria da vida: o antikantismo de Bergson
PGINA 17 |Pierre Montebello: Bergsonismo, uma filosofia do futuro, do tempo, da transformao
PGINA 22 |Dbora Morato: Recortar o real em funo das nossas necessidades: condio para a vida
PGINA 28 |Adrin Cangi: A crtica bergsoniana ao cinema
B.Destaques da semana Entrevista da semana
PGINA 34 | Marco Antonio Trierveiler:Barragens: energia para qu e para quem?
Teologia Pblica
PGINA 38 | Afonso Maria Ligorio Soares:Para onde vamos? Os rumos da Teologia hoje
Filme da semana
PGINA 41 | Santiago, de Joo Moreira Salles Anlise de Conjuntura
PGINA 44 | Destaques On-Line
PGINA 46 | Frases da Semana
C.IHU em Revista EVENTOS
PGINA 50| Ana Maria Bianchi: Qual o potencial econmico da Amrica Latina? O pensamento de Albert Hirschman
PGINA 53| Jos Hildebrando Dacanal: Literatura e Histria: dois caminhos para contar a histria do Rio Grande do Sul
PERFIL POPULAR
PGINA 56| Snia Gomes Chaves
PGINA 59| Sala de Leitura
IHU REPRTER
PGINA 60| Maura Corcini Lopes
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Henri Bergson (1859-1941)
Henri Bergson (1859-1941)
nasceu em Paris, filho de
me inglesa e pai judeu-
polons, e cresceu tendo o
francs como lngua
materna. Passou sua vida
ativa como professor
universitrio de filosofia,
mas era um escritor tocativante que foi lido
amplamente e teve influncia fora das universidades. Em
1927, recebeu o Prmio Nobel de Literatura. Entre seus
livros mais conhecidos, esto Ensaio sobre os dados
imediatos da conscincia (1889),Matria e Memria
(1896) eA evoluo criadora (1907). Nos ltimos anos
de vida, seu pensamento tomou um rumo religioso, e
possvel que tenha sido recebido na Igreja Catlica
romana pouco antes de morrer; se assim foi, o ato foi
deliberadamente protelado e mantido em segredo,
porque no queria parecer estar abandonando os judeus
enquanto estavam sendo perseguidos pelos nazistas e
enquanto a Frana estava sob ocupao alem.
El vital
Bergson acreditava que os seres humanos devem ser
explicados primordialmente em termos do processo
evolutivo. Parecia-lhe que, desde o incio, a funo dos
sentidos nos organismos vivos tem sido no fornecer ao
organismo representaes de seu ambiente, mas
estimular reaes de carter preservador da vida. Em
primeiro lugar, os rgos sensoriais; em seguida, o
sistema nervoso central, e, depois, a mente
desenvolveram-se durante eras incontveis como parte
do equipamento do organismo para a sobrevivncia, e
sempre como auxiliares do comportamento; e at hoje
aquilo que nos fornecem no so pinturas objetivas do
nosso ambiente, mas mensagens que nos levam a nos
comportar de determinada maneira. Nossa concepo de
nosso ambiente no nada parecida com um conjunto de
fotografias detalhadas: ela altamente seletiva, sempre
pragmtica, e sempre a servio de si mesma. Damos
ateno quase exclusiva quilo que importa para ns, e a
concepo que formamos de nosso ambiente de constri
em termos de nossos interesses, sendo o mais prementedeles nossa prpria segurana. Apenas quando se
percebe isso que a verdadeira natureza do
conhecimento humano para ser entendida.
Quanto evoluo, Bergson acreditava que os
processos mecnicos de seleo aleatria so
inadequados para explicar o que acontece. Parece haver
algum tipo de impulso persistente rumo a uma maior
individualidade e todavia, ao mesmo tempo, maior
complexidade, apesar de ambas sempre implicarem uma
crescente vulnerabilidade e risco. A esse impulso Bergson
deu o nome de el vital, que podemos traduzir por
impulso vital.
Bergson acredita que, dado que tudo est mudando o
tempo todo, o fluxo do tempo fundamental a toda
realidade. Ns realmente vivenciamos esse fluxo dentro
de ns mesmos da maneira mais direta e imediata, no
por meio de conceitos, e no por meio de nossos
sentidos. Bergson chama esse tipo de conhecimento no-
mediado de intuio. Ele acredita que tambm temos
conhecimento intuitivo a respeito de nossas decises de
agir, portanto conhecimento imediato de nossa prpria
posse do livre-arbtrio. No entanto, esse conhecimento
imediato da natureza ntima das coisas bastante
diferente em carter do conhecimento que nosso
intelecto nos d do mundo externo a ns mesmos.
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A realidade flui
O que nosso intelecto nos fornece so sempre os
materiais exigidos para a ao, e o que queremos poder prever e controlar os eventos, por isso nosso
intelecto nos apresenta um mundo que podemos
apreender e usar, um mundo repartido em unidade
manejveis, objetos separados em medidas delimitadas
de espao e tambm em medidas delimitadas de tempo.
o mundo dos afazeres e negcios dirios, do senso
comum, e tambm da cincia. Sua extraordinria
utilidade para ns se exibe nos triunfos da moderna
tecnologia. Mas tudo isso um produto de nossa maneirade lidar com o mundo, exatamente da mesma maneira (e
pelo mesmo tipo de razo) como um cartgrafo
representar uma paisagem viva em termos de uma
grade geomtrica quadriculada. Isso inegavelmente
til, prodigiosamente til, e nos permite fazer toda sorte
de coisas prticas que queremos; mas no nos mostra a
realidade. A realidade um continuum. No tempo real
no existem instantes. O tempo real um fluxo
contnuo, sem unidades separveis, no delimitado por
extenses mensurveis. O mesmo com o espao: no
espao real no h pontos, nem lugares separados e
especficos. Tudo isso so mecanismos da mente.
Ser e tempo
Assim, vivemos simultaneamente em dois mundos. No
mundo ntimo de nosso conhecimento imediato tudo
continuum, tudo fluido, fluxo perptuo. No mundo
externo apresentado a ns por nossos intelectos h
objetos separados ocupando determinadas posies no
espao por perodos mensurveis de tempo. Mas, claro,
esse tempo externo, o tempo dos relgios e do clculo,
um construto intelectual, e no de modo algum o
mesmo tempo real de cujo fluxo contnuo temos
experincia ntima direta.
No ponto culminante de sua filosofia, Bergson
identifica esse fluxo de tempo vivenciado internamente
com a vida mesma e com o impulso vital, o el vital que
leva o processo da evoluo constantemente para a
frente. Lembraremos que a filosofia de Heideggertambm culminava na identificao de ser e tempo,
embora os dois filsofos tenham chegado mesma
concluso independentemente e de pontos de partida
completamente diferentes.
Em sua prpria poca, Bergson teve alguns crticos
eminentes entre seus contemporneos, como Bertrand
Russell1. A principal queixa deles era que Bergson,
embora tornasse suas idias atraentes com vvidas
analogias e metforas poticas, no as sustentava muitocom argumentos racionais. Confiava-os intuio dos
leitores. Alm disso, queixavam-se seus crticos, suas
idias no resistiam muito bem anlise lgica. Seus
defensores replicavam dizendo que ele possua todas
essas caractersticas em comum com os mais criativos
escritores, e assim era porque estava oferecendo
insights, mais do que argumentos lgicos. Em todo caso,
certo que seu pensamento teve apelo amplo e
permanece como um elemento distintivo da filosofia do
sculo XX.
Fonte: MAGEE, Bryan. Histria da filosofia. 3. ed. So
Paulo: Loyola, 2001.
1Bertrand Arthur William Russell(1872-1970): considerado um dos
mais influentes matemticos, filsofos e lgicos do sculo XX. (Nota da
IHU On-Line)
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Desvendar a conscincia que nos habita
ENTREVISTA COM ERIC LECERF
Na opinio do filsofo francs Eric Lecerf, uma das proposies mais importantes
contidas em A evoluo criadora, obra que neste ano completa um centenrio de
lanamento, o convite a desvendar a conscincia que nos habita Para Lecerf,
isso nos conduz, desta forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo,
pois nossa conscincia procede de uma inteno da vida, por ser da mesma um
desdobramento, da qual a intelectualidade nada saberia dizer pela simples razo
de que ela uma expresso da mesma entre outras, ou antes, para retomar
Bergson, uma orientao de uma tendncia. Trata-se de uma virada radical no seio
da filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento interior, uma experincia
de si que encontra na intimidade da percepo o que o absoluto de um movimento
incessante, no qual a vida encontra toda a sua substncia. Confira a seguir a
ntegra da entrevista concedida por e-mail IHU On-Line.
Lecerf professor de Filosofia na Universidade Paris VIII, Saint-Denis e autor de
inmeros livros, entre os quais Le sujet du chmage(Paris, Budapest, Torino:
Harmattan, 2002) e La famine des temps modernes: es sai sur le chmeur(Paris:
Harmattan, 1992). Obteve diploma em Histria Contempornea pela cole des
Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS) e foi diretor de programa no Collge
International de Philosophie (Colgio Internacional de Filosofia). Publicou vrios
artigos sobre o trabalho de filsofos como Henri Bergson, Simone Weil e Georges
Sorel. Lecerf concedeu entrevista, por e-mail, IHU On-Line, publicada nos Cadernos
IHU Em Formao, edio 13, intitulada Michel Foucault. Sua contribuio para a
educao, a poltica e a ticae encontra-se disponvel para download no site do
Instituto Humanitas Unisinos IHU, www.unisinos.br/ihu. O ttulo da entrevista
Foucault e a genealogia da modernidade.
IHU On-Line- No contexto da filosofia de Bergson,
como se explica a valorizao que ele deu intuio,
deixando a inteligncia em segundo plano? Qual a
explicao filosfica para esta opo?
Eric Lecerf - Em primeiro lugar, no me parece correto
dizer que Bergson teria colocado a inteligncia em
segundo plano em relao intuio. Na verdade, ele se
esforou em marcar os limites de uma inteligncia
implicada pela lgica num momento em que a filosofia
era compartilhada entre positivismo e irracionalismo.
Bergson explica que ele prprio hesitou por muito tempo
antes de utilizar o termo intuio. Em seu primeiro livro,
o Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia,
publicado em francs em 1889, a intuio como conceito
s aparece nos usos correntes da filosofia clssica. Ele
faz mesmo referncia, nesta obra, a uma intuio
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matemtica que no corresponde em nada intuio
bergsoniana. Portanto, o que Bergson chamar mais
tarde de intuio est no centro deste ensaio, mas sob aforma de um sentido particular totalmente voltado para
a percepo pura e a compreenso da durao. Em
Matria e memria, seu segundo livro, publicado sete
anos mais tarde, a intuio s aparece verdadeiramente
no terceiro captulo e deduzida da experincia de re-
apreenso colocada na introduo do livro (eu nada sei
da matria, nem do corpo e do esprito... o que que me
aparece: imagens). S realmente emA introduo
metafsica, artigo publicado em 1903, que Bergsonconjuga uma relao especfica entre intuio e mtodo,
cujos fundamentos ontolgicos ele retomar cerca de dez
anos mais tarde, numa conferncia intitulada A intuio
filosfica. Seu objetivo no o de condenar a
inteligncia nem mesmo rebaix-la, mas simplesmente o
de notar que a inteligncia, estando interessada pela
ao e levada por uma necessidade de espacializar sua
durao, no pode de forma alguma tocar na essncia da
vida que mvel. A inteligncia constri mundos, instrui
artfices, produz sistemas, ela uma potncia ativa. Mas
captar a vida implica, para Bergson, renunciar a esta
potncia e retomar aquele sentido ntimo, ao qual, por
no dispor de um termo novo, ele dar o nome de
intuio.
IHU On-Line - De que modo as esquerdas se
apropriaram do bergsonismo? Qual o uso que elas
fizeram do conceito de el vital?
Eric Lecerf - Para responder a esta questo, seria
preciso estar em condies de redimensionar o que
constitua, ento, a paisagem poltica no seio da qual
uma parte da esquerda apelaria ao bergsonismo. De que
se trata? De modo geral, de dissidentes ou de
intelectuais que levavam a peito fazer evoluir o
marxismo fora dos dogmas nos quais suas determinaes
cientficas o inscreveram. Para ser mais claro, no
momento em que uma maioria dos intelectuais de
esquerda aderia a um positivismo implicando uma srie
de determinismos histricos. Aqueles que se declaravamadeptos do bergsonismo procuravam precisamente
defender noes de virtualidade e espontaneidade para
explicar os movimentos revolucionrios. Os nomes que se
impem so os de Georges Sorel2, Edouard Berth3e
Charles Pguy4. Sorel ocupa efetivamente, nesta histria,
um lugar essencial. Autor dasReflexes sobre a
violncia (Petrpolis: Vozes, 1993), nelas ele faz
explicitamente referncia conexo bergsoniana entre
inteligncia e intuio, para opor o socialismo tericodas seitas marxistas ao sindicalismo revolucionrio.
Associando o nome de Bergson aos de Proudhon5e de
Vico6, ele explica que nesta percepo intuitiva da
2Georges Eugne Sorel(1847-1922): francs e terico do
sindicalismo revolucionrio, muito popular na Frana, Itlia e EUA. Sua
influncia comeou a decair depois de 1920. um autor controverso
quanto linha poltica a qual adere. Suas idias foram aceitas tanto
pelo fascismo italiano quanto pelos comunistas deste pas. Tambm
influenciou os anarco-sindicalistas. (Nota da IHU On-Line)3douard Berth(1875-1939): torico do sindicalismo revolucionrio
francs, discpulo de Georges Sorel. (Nota da IHU On-Line)4Charles Pguy(1873-1914): poeta, dramaturgo e ensasta francs,
considerado um dos principais escritores catlicos modernos. Foi o
fundador da revista Cahiers de La Quinzaine(1900-1914), na qual
colaboraram muitos dos principais escritores da poca. Grande defensor
da causa da justia social, foi um firme defensor do oficial francs
Alfred Dreyfus. Morreu na Batalha de Marne, durante a I Guerra
Mundial. (Nota da IHU On-Line)5Pierre Joseph Proudhon(1809-1865): socialista e reformador
francs. Publicou Ensaio de gramtica geral (1837), trabalho que lhe
valeu uma penso de trs anos da Academia de Besanon. Trs anos
depois, porm, seu livro Que a propriedade?f-lo perder a
aprovao da academia. Essa obra revelava suas idias socialistas e
afirmava que "a propriedade um roubo". Suas atividades literrias e
polticas o levaram, muitas vezes, a entrar em conflito com o governo
francs. Passou vrios anos na priso e no exlio. Em 15-03-2006 o Prof.
Dr. Alosio Teixeira(UFRJ) palestrou no II Ciclo de Estudos
Repensando os Clssicos da Economia, com o ttulo Pierre-Joseph
Proudhon (1809-1865) e o Socialismo utpico. (Nota da IHU On-Line)6Giambattista Vico(1668-1744): filsofo, historiador e jurista
italiano. (Nota da IHU On-Line)
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histria que se produz o novo. As teses de Sorel tero
influncia particularmente importante na Itlia. Antonio
Gramsci
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escrever, ento, um artigo em 1921, intituladobergsoniano!, onde ele reivindicar a participao
nesta herana. Na Frana, Bergson ser, no entanto,
objeto de crticas importantes da parte dos jovens
filsofos marxistas, e notadamente da parte de Politzer
(O bergsonismo, o fim de uma impostura) e de Paul
Nizan8(Os ces de guarda9). As posies patriticas
tomadas por Bergson durante a Primeira Guerra Mundial,
e depois a publicao dasAs duas fontes da moral e da
religio(Rio de Janeiro: Zahar, 1978), desempenharampapel determinante nessas crticas que explicam porque,
em 1947, Sartre10se creia em condies de dizer que o
bergsonismo era uma filosofia ultrapassada.
7Antonio Gramsci(1891-1937): escritor e poltico italiano. Com
Togliatti, criou o jornal L'Ordine Nuovo, em 1919. Secretrio do
Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em 1926 e s foi libertado
em 1937, dias antes de falecer. Nos seus Cadernos do crcere,
substituiu o conceito da ditadura do proletariado pela "hegemonia" do
proletariado, dando nfase direo intelectual e moral em
detrimento do domnio do Estado. Sobre esse pensador, confira a
edio 231 da IHU On-Line, de 13-08-2007, intitulada Gramsci, 70
anos depois. (Nota da IHU On-Line)8Paul Nizan(1905-1940): escritor, engajado no Partido Comunista,
autor de Os ces de guarda(um libelo contra os intelectuais que no
aceitavam o engajamento poltico ou se isolavam em suas torres de
marfim). Decepcionado com o pacto germano-sovitico, rompeu com o
partido. Foi acusado de espionagem pelos ex-camaradas. Paul Nizan
morreu na frente de combate: tinha apenas 35 anos de idade. (Nota da
IHU On-Line)9Les Chiens de guarde (Paris: Rieder, 1932). (Nota da IHU On-Line)10Jean-Paul Sartre(1905-1980): filsofo existencialista francs.
Escreveu obras tericas, romances, peas teatrais e contos. Seu
primeiro romance foiA nusea(1938), e seu principal trabalho
filosfico O ser e o nada(1943). Sartre define o existencialismo, em
seu ensaio O existencialismo um humanismo, como a doutrina na
qual, para o homem, "a existncia precede a essncia". Na Crtica da
razo dialtica(1964), Sartre apresenta suas teorias polticas e
sociolgicas. Aplicou suas teorias psicanalticas nas biografias
Baudelaire(1947) e Saint Genet(1953).As palavras(1963) a
primeira parte de sua autobiografia. Em 1964, foi escolhido para o
prmio Nobel de literatura, que recusou. (Nota da IHU On-Line)
IHU On-Line - No contexto da Filosofia
contempornea, qual o lugar ocupado por Bergson?Eric Lecerf - O nome de Gilles Deleuze11se impe
aqui, e eu poderia mesmo dizer que por vezes ele tende
a ocupar todo o espao, como se Bergson tivesse tido por
principal interesse ser um pr-deleuziano. Mais
seriamente, a leitura que fez Gilles Deleuze de Bergson
verdadeiramente muito forte. Desde 1956, ele publica
dois artigos (republicados em Iles desertes), que
permitem compreender o que Deleuze veio procurar em
Bergson, a saber, um mtodo implicando uma teoria doconhecimento que associasse o empirismo e a busca de
um absoluto. Desde esses artigos, Deleuze define a
filosofia como criao de conceitos e , no entanto, em
Bergson, que explica que convm para a filosofia pensar
por imagens antes do que por conceitos, que ele vem
procurar seus predicados tericos. De fato, o conceito
deleuziano primeiramente derivado da imagem
bergsoniana, desta imagem da qual Bergson dizia possuir
trs qualidades. Em primeiro lugar, ela induz uma
pluralidade de sentidos l onde o conceito procura
destacar uma univocidade; em segundo lugar, ela
concreta l onde o conceito por essncia abstrato; em
terceiro lugar, sua impreciso constrange a um exerccio
da ateno que se aproxima bastante da intuio, l
onde o conceito tende expresso de uma certeza. E so
estas qualidades que permitem a Deleuze situar a
inveno de um novo valor do conceito como foco de
indeterminao entre o que ele chama de articulaes do
real e de linhas de fatos; entre a coleo de qualidades
11Gilles Deleuze(1925-1995), filsofo francs. Assim como Foucault,
foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bergson, Nietzsche e
Espinosa poderosas interseces. Professor da Universidade de Paris
VIII, Vincennes, Deleuze atualizou idias como as de devir,
acontecimentos, singularidades, enfim conceitos que nos impelem a
transformar a ns mesmos, incitando-nos a produzir espaos de criao
e de produo de acontecimentos-outros. (Nota da IHU On-Line)
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que induz uma categoria e o nome etiqueta que se
desdobra numa multido de aventuras lingsticas.
Vinte e cinco anos mais tarde, Deleuze retomar aimagem bergsoniana para pensar, desta vez, no o
cinema12, mas antes as condies de possibilidade de
uma filosofia na era do cinema. E ento que, seguindo
um caminho inverso, Deleuze repensa uma imagem
bergsoniana, inteiramente enriquecida por jogos, nos
quais o conceito se desdobrou como virtualidade
gramatical e existencial.
IHU On-Line - Como pode a obraA evoluo criadoraajudar-nos a reler e compreender a ps-modernidade
em sua complexidade?
Eric Lecerf - Eu jamais compreendi o que se poderia
designar pelo termo de ps-modernidade. Basta, alis,
reler a introduo de La pense et le mouvant(O
pensamento e o movente13), notadamente a parte
intitulada a lgica retrospectiva do verdadeiro, para
constatar at que ponto este conceito vazio de sentido.
IHU On-Line - Quais so as proposies filosficas
desta obra que o senhor considera as mais
importantes?
Eric Lecerf -A evoluo criadora um livro
fascinante no seio do qual Bergson se dedica, no s a
defender uma tese, mas tambm a ilustrar e adaptar um
estilo de escritura suscetvel de trazer nele essas linhas
de virtualidades, pelas quais a vida se desenvolve sem
cessar. Eu retomaria, pois, uma tese que me parece
decisiva, isto , sem a qual a obra de Bergson seria
ilegvel. Bergson nos engaja, emA evoluo criadora,
num trabalho de recompreenso da vida em ns. De que
12Sobre o tema, confira nesta edio a entrevista com Adrin Cangi,
A crtica bergsoniana ao cinema. (Nota da IHU On-Line)13BERGSON, Henri; BACHELARD, Gaston. Cartas, conferencias e
outros escritos. So Paulo: Abril Cultural, 1974. 514 p. (Coleo Os
Pensadores). (Nota da IHU On-Line)
se trata? De um conhecimento psicolgico de nossa
personalidade? Absolutamente. Para Bergson, trata-se de
bem outra coisa do que do inconsciente. Pelo contrrio,o que ele nos engaja mesmo a redescobrir em ns
precisamente aquilo que ele chama de conscincia. Mas
de que conscincia se trata? De uma conscincia que
perpassa todo ser vivo, que est em cada um de ns em
ato e que, no mundo vegetal, permanece em posio de
torpor. De uma conscincia que a vida. Desvendar a
conscincia que nos habita, isso nos conduz, desta
forma, a atingir um conhecimento verdadeiro do ser vivo,
pois nossa conscincia procede de uma inteno da vida,por ser da mesma um desdobramento, da qual a
intelectualidade nada saberia dizer pela simples razo de
que ela uma expresso da mesma entre outras, ou
antes, para retomar Bergson, uma orientao de uma
tendncia. Trata-se de uma virada radical no seio da
filosofia: conhecer o vivente implica um conhecimento
interior, uma experincia de si que encontra na
intimidade da percepo o que o absoluto de um
movimento incessante, no qual a vida encontra toda a
sua substncia.
IHU On-Line - De que forma o ser humano consegue
mover-se na dicotomia dos dois mundos nos quais ele
vive: o do conhecimento imediato (onde tudo
continuum) combinado com o do tempo, concebido
como construo intelectual?
Eric Lecerf - A resposta a esta questo me parece
estar em parte respondida na precedente. A verdadeira
questo no a de saber como o humano consegue
mover-se, mas antes, como ele chega a crer que ele
construiu uma estabilidade. Assim, poder-se-ia dizer que
toda a histria intelectual se declina como uma
perseguio ao infinito desta busca de estabilidade. Isso
verdade na produo de instituies, bem como nesse
cuidado de ordem que, mesmo quando nos damos um
destino de revolucionrios, configura uma parte decisiva
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de nossos atos. A filosofia de Bergson no procura, de
nenhum modo, afastar-nos das formas graas s quais ns
tentamos congelar o movimento. Ele procurasimplesmente lembrar-nos que estas formas so apenas
iluses e que o conhecimento da vida, que deve fundar
toda metafsica, no saberia satisfazer-se com essas
formas. No menos verdade que h em Bergson uma
verdadeira anlise daquilo que o marxismo chamar de
coisificao. Em Bergson, tratar-se- antes de um tornar-
se autmato, do repetitivo que tende a rejeitar toda
intruso do indito. De fato, como o mostra Deleuze em
Diferena e repetio (2 ed.: So Paulo: Graal, 2006),mesmo l onde tudo parece congelado, o movimento se
insere na prpria repetio como elemento de
diferenciao. Em Bergson, encontra-se isso
efetivamente, mas sem esse otimismo desesperado quecaracteriza a filosofia de Deleuze. De fato, ningum
escapa vida, afora aquele que a teoriza. Dito de outra
forma, se h um autmato absoluto em Bergson, este no
o operrio que trabalha em srie, mas o filsofo que
cr que a vida seja uma questo de leis e de sistemas
lgicos.
Matria e memria,uma obra-primaENTREVISTA COM MARIA CRISTINA FRANCO FERRAZ
Matria e memria, publicado em 1896, corresponde, a meu ver, a uma obra-prima, no apenas por
conta da potncia dos conceitos criados, mas igualmente pelo vigor, inteligncia e generosidade de
um pensamento verdadeiramente em movimento, capaz de manter-se vivo e produtivo a cada nova
leitura, mesmo passado mais de um sculo. A opinio de Maria Cristina Franco Ferraz, em
entrevista concedida por e-mail, com exclusividade IHU On-Line. Diretamente de Berlim, Alemanha,
onde estava quando conversou com a equipe de nossa revista, Ferraz mencionou que uma das
grandes contribuies de Matria e memria para o pensamento contemporneo diz respeito ao
estatuto atribudo virtualidade. Ela docente na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Franco Ferraz graduada em Letras Portugus Literatura e em Didtica Especial de Lngua Inglesa
pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). mestre em Letras, pela Pontifcia
Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e em Filosofia, pela Sorbonne, Frana, com a
dissertao Ecce Homo, de Nietzsche: Autobiographie, le propre et les masques. Nessa mesma
instituio, cursou doutorado em Filosofia com a tese Ecce Homo (L'autobiographie de F. Nietzsche):
tragdie, parodie et sacrifice dionysiaque. ps-doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
pelo Instituto Max-Planck de Histria da Cincia e pelo Zentrum fr Literatur und Kulturforschung
Berlin, Alemanha. De sua produo bibliogrfica, citamos Nietzsche: o bufo dos deuses(Rio de
Janeiro: Ed. Relume Dumar, 1994); Nove variaes sobre temas nietzschianos(Rio de Janeiro: Relume
Dumar, 2002); e A psiquiatria no div: entre as cincias da vida e a medicalizao da existncia, de
Adriano Amaral de Aguiar(Rio de Janeiro: Editora Relume Dumar, 2004).
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IHU On-Line- Quais foram as maiores descobertas e
inovaes que Bergson prope em Matria e Memria?Maria Cristina Franco Ferraz Matria e memria,
publicado em 1896, corresponde, a meu ver, a uma obra-
prima, no apenas por conta da potncia dos conceitos
criados, mas igualmente pelo vigor, inteligncia e
generosidade de um pensamento verdadeiramente em
movimento, capaz de manter-se vivo e produtivo a cada
nova leitura, mesmo passado mais de um sculo. Na
brevidade de uma entrevista, a resposta pergunta
proposta pode ser no mximo alusiva. Nesse sentido,gostaria de chamar a ateno, inicialmente, no apenas
para a construo de conceitos radicalmente novos
(como o de imagem e de memria), em um duplo gesto
que envolve tambm a discusso precisa e aprofundada
das perspectivas das quais Bergson se afasta. Em
primeiro lugar, investigando as premissas comuns
presentes nas duas correntes aparentemente antagnicas
ento predominantes, no que diz respeito percepo
idealismo subjetivista e realismo materialista -, Bergson
perspicazmente mostra de que modo as duas de fato se
aproximam e, passando por trs de ambas, constitui
um novo solo a partir do qual no mais sero respondidas
as mesmas questes, mas o prprio problema da relao
interioridade/exterioridade ser recolocado (e
ultrapassado). De fato, ambas as correntes supem
certas visadas comuns: por exemplo, o vnculo entre
percepo, representao e especulao, bem como a
ciso (tornada irremedivel) entre eu e mundo.
Como Bergson demonstra, nas duas vises concorrentes,
tudo o que vemos no passaria de alucinaes
verdadeiras. Ao postular uma relao de grau, e no de
natureza, entre percepo e matria, Bergson j coloca
nossa percepo nas coisas, que nada mais seriam do que
imagens de nossa ao (e no contemplao) possvel.
Entre matria, entendida como um conjunto de imagens
interligadas e interdependentes, e percepo (certas
imagens que se revelam em funo de nossa ateno
vida, promessas e ameaas que nos cercam), haveriaassim uma diferena de grau, isto : perceberamos de
fato a matria, mas no em sua totalidade.
Perceberamos uma parte da matria, o que permite
afirmar que nossa percepo est nas coisas. Como se
pode observar, na contramo de uma longa tradio
filosfica, imagem passa a se confundir com o que ,
com a matria, o que tambm configura uma nova noo
de matria, afinada com certas visadas da fsica de sua
poca. Como Bergson enfatiza, a cincia seria capaz, talcomo o pensamento apto a se afastar das (bem-vindas e
necessrias) iluses que nos permitem agir no mundo, de
alcanar uma intuio imediata do real, para alm da
curva em que ele se inflete para constituir uma
experincia humana. Portanto, no so apenas os
conceitos de percepo, matria e memria que
emprestam grandeza obra (que pensa o movimento e
efetua um pensamento movente), mas a alterao do
prprio movimento do pensamento, para alm do
humano (demasiado humano), curiosamente aproximvel
de novas perspectivas cientficas sobre a matria bem
como do trabalho artstico sobre a percepo e a
memria que marca a o final do sculo XIX e o limiar do
sculo XX (de Czanne14 a Proust15).
IHU On-Line- No contexto da filosofia
contempornea, qual a importncia dessa obra?
Maria Cristina Franco Ferraz Uma das grandes
contribuies de Matria e memria para o pensamento
contemporneo me parece dizer respeito ao estatuto
atribudo virtualidade. A nfase no virtual tratado
como real sem ser atual-, de grandes implicaes
filosficas, existenciais e polticas, desfaz a crena em
14Paul Czanne (1839-1906): pintor francs. (Nota da IHU On-Line)15Valentin Louis Georges Eugne Marcel Proust (1871-1922):
escritor francs. (Nota da IHU On-Line)
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meros estados de coisas fixados, ressalta a movncia e
abertura de tudo o que h. O real deixa de se confundir
com o visvel e passa a ser pensado como contendouma grande parcela de virtualidade. Em meu trabalho
com a obra, tenho enfatizado, em geral, dois
desdobramentos do tema da virtualidade. Por um lado, a
partir das reflexes do filsofo portugus Jos Gil sobre
dana e corpo, retomando o tema bergsoniano do
movimento total do corpo, buscado e reativado, como
mostra Gil, em certas experincias coreogrficas
contemporneas. O movimento imparvel do corpo, suas
tenses mesmo para manter-se aparentementeparado, requerem o conceito de virtualidade para
revelar-se como tal. Ao mesmo tempo, a nfase na
realidade do virtual altera a prpria reflexo sobre a
comunicabilidade, uma vez que um corpo em movimento
se desdobra em espectros virtuais que nunca mentem.
Afinal, conforme afirma genialmente Bergson, ao
trabalhar o exemplo da aprendizagem por repetio de
um movimento, o corpo no comporta subentendidos.
Por outro lado, e em um sentido talvez mais evidente
na obra, a nfase bergsoniana na virtualidade permite
no apenas construir um novo sentido para memria
(ligada temporalidade, durao) como tambm
para redimensionar seu vnculo (hoje to enfatizado
pelas neurocincias) com o crebro, rgo no de
armazenamento de lembrancas, mas sobretudo de sua
suspenso na virtualidade, ou seja, seu
esquecimento. Em uma poca em que se disseminam,
nos diversos meios de comunicao de massa, novas
descobertas sobre o crebro e se tende a reduzir cada
vez mais amplamente o fenmeno da memria esfera
bioqumica do corpo (neurnios, sinapses, hormnios), a
reflexo bergsoniana sobre a memria no apenas
estabelece uma plataforma crtica para se pensar as
implicaes da consolidao dessas novas verdades
cientficas, mas permite igualmente tematizar tanto seu
papel crtico em sua poca quanto o sentido da atual
desespiritualizao do curioso e rico fenmeno humano
da memria.
IHU On-Line- Que pontos de proximidade e
distanciamento esse filsofo faz entre matria e
memria?
Maria Cristina Franco Ferraz Trata-se, nesse caso,
de uma distino forte, de natureza, estabelecida por
Bergson entre matria, de um lado, e memria/esprito
de outro. S a partir dessa distino de natureza que
Bergson pde ultrapassar as falaciosas e falsas questes
identificadas nas perspectivas presentes tanto natradio filosfica quanto implicadas nas concepes
cientficas de sua poca. Creio que essa questo pode ser
mais bem esclarecida se articulada que se segue.
IHU On-Line- At que ponto essas proposies da
filosofia bergsoniana aprofundam o dualismo corpo e
mente?
Maria Cristina Franco Ferraz Trata-se sim de
dualismo, mas Bergson nos leva a pensar que talvez nem
todo dualismo se equivalha. Curiosamente, creio que
essa questo mesma em toda a sua legitimidade e
inflexo contempornea no deixa de tambm sinalizar
uma suspeita cara contemporaneidade e por vezes
caricaturalmente expressa no horror ps-moderno a
toda e qualquer forma de dicotomizao. Nesse sentido,
aproximar-se de Bergson requer uma delicadeza e
sutileza maior do pensamento, aptas a nos tornar,
tambm ns leitores contemporneos, de algum modo
aproximados da extemporaneidade da obra. Como se
trata de um dualismo erigido em um novo solo, os plos
da oposio corpo/mente no me parecem poder ser
facilmente superponveis, redutveis ao dualismo
matria/memria introduzido por Bergson, que, de modo
explcito, procurou repensar exatamente o vnculo entre
matria e algo que, sendo de uma natureza diversa, ele
chamou de memria. Ora, o vnculo s poderia ser
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pensado mantendo-se a distino de natureza entre os
dois elementos. Mas esta seria apenas uma explicao
lgica, dizendo respeito mera (e impressionante)coerncia do pensamento de Bergson. Quando matria
passa a ser entendida como um conjunto de imagens
interligadas, a percepo como estando nas coisas, o
corpo como funcionando na tenso entre esquecimento e
memria pensadas atravs do mecanismo da
virtualizao/atualizao -, memria e matria pensadas
em termos de temporalidade, parece-me que o novo
dualismo introduzido, alm de no se reduzir a uma nova
roupagem para velhos dualismos, introduz vigorosas
novas abordagens. Mas, evidentemente (e isso est
expresso desde o subttulo da obra), Bergson est
dialogando com uma longa tradio, que renova, porassim dizer, por dentro o que est longe de ser
pouco. A meu ver, deixar-se levar pela averso
contempornea s dicotomias seria no um erro, mas,
pior do que isso, uma grande desvantagem, na medida
em que nos faria passar ao largo da riqueza da obra,
levando a que se deixe de integrar (gesto to
bergsoniano) o que Matria e memria nos permite
pensar e discutir hoje.
Uma teoria do conhecimento inseparvel de uma teoria da
vida: o antikantismo de BergsonENTREVISTA COM PAOLA MARRATI
Para a filsofa italiana Paola Marrati, ainda mais importante para nossos debates a idia-mestre
de Bergson de que no h vo, deixadas de lado quaisquer oposies, entre vida e conceitos, entre
processos biolgicos e processos congnitivos. A declarao pode ser conferida na ntegra na entrevista
a seguir, concedida por e-mail IHU On-Line.
Desde janeiro de 2003, Marrati professora no Centro de Humanidades do Departamento de Filosofia
na Universidade John Hopkins, em Baltimore, Estados Unidos. Imediatamente antes desse perodo,
lecionava Filosofia da Arte e Cultura no Departamento de Filosofia da Universidade de Amsterd. Na
John Hopkins dirige o programa para o estudo da mulher, gnero e sexualidade, e membro do
Advisory Board of the Film and Media Studies Program. , tambm, diretora do programa de pesquisa
do Colgio Internacional de Filosofia, de Paris.
mestre em Filosofia Moderna e Contempornea, pela Universit degli Studi di Pisa, Itlia. Recebeu
seu diploma d'Etudes Approfrondies na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS), Paris, e
seu PhD em Filosofia na Universidade Marc Bloch, em Estrassburgo, Frana. Escreveu, entre outras
obras, Gilles Deleuze. Cinma et philosophie(Presses Universitaires de France, 2003) e Genesis and trace.
Derrida reader of Husserl and Heidegger(Stanford: Stanford University Press, 2005). Est prestes a ser
publicado o livro The event and the ordinary: on the philosophy of Gilles Deleuze and Stanley Cavell.
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IHU On-Line- Qual a atualidade da obra A evoluo
criadora, 100 anos aps seu lanamento?Paola Marrati EmA evoluo criadora, como em
seus outros trabalhos, Henri Bergson (1859-1941) engaja-
se em uma sria e bem informada discusso sobre teorias
cientficas e descobertas de seu tempo e,
particularmente, seu conhecimento de diferentes
desenvolvimentos na teoria evolucionista depois de
Darwin16. No necessrio dizer que, um sculo mais
tarde, as idias de Darwin sobre evoluo foram
desenvolvidas e refinadas; particularmente, a descobertado DNA e mecanismos genticos de evoluo modificaram
profundamente nosso entendimento dos processos
evolutivos. Apesar disso, os principais insightsde Darwin
no foram desafiados e em considerao a isso muita da
anlise filosfica de Bergson pertinente ainda hoje.
Ainda mais importante para nossos debates, na minha
opinio, a idia-mestre de Bergson de que no h
vazio, deixadas de lado quaisquer oposies, entre vida e
conceitos, entre processos biolgicos e processos
cognitivos. Contrrio a uma longa tradio que ope os
misteriosos e irracionais poderes da vida razo e
conceitualidade, Bergson lembra-nos que todas as nossas
prticas cognitivas, no importa o quo abstratas,
originam-se na vida, e essa vida, o que quer que
seja ou signifique, , em primeiro lugar e em todas as
16Charles Robert Darwin(1809-1882): Naturalista britnico,
propositor da Teoria da Seleo natural e da base da Teoria da
Evoluo nolivroA origem das espcies. Teve suas principais idias
em uma visita ao arquiplago de Galpagos, quando percebeu que
pssaros da mesma espcie possuam caractersticas morfolgicas
diferentes, o que estava relacionado com o ambiente em que viviam.
Em 30 de novembro de 2005, a Prof. Dr. Anna Carolina Krebs Pereira
Regner apresentou a obra Sobre a origem das espcies atravs da
seleo natural ou a preservao de raas favorecidas na luta pela
vida, de Charles Darwin, no evento Abrindo o Livro, do Instituto
Humanitas Unisinos. A respeito do assunto ela concedeu entrevista
IHU On-Line166, de 28 de novembro de 2005. (Nota da IHU On-Line)
suas instncias, e no apenas em sua forma humana, uma
capacidade para ajustes e resoluo de problemas.
IHU On-Line- Como o conceito de el vital pode
nos ajudar a compreender a crescente complexidade
do mundo contemporneo?
Paola Marrati O conceito de el vital [impulso
vital] definido por Bergson como uma tendncia para a
mudana e diferenciao. As formas vitais, para Bergson,
esto constantemente envolvidas de novos e
imprevisveis jeitos, conseqentemente no podendo sercompreendidas em termos de conjuntos de propriedades
estveis e fixas. Devemos, pelo contrrio, compreender a
tendncia especfica que define uma forma de vida em
seu processo inacabado de transformao e diferenci-la
de outras formas de vida.
Bergson no nos d chaves prontas para interpretar as
complexidades de nosso mundo atual, mas sua convico
de que a vida no tem essncia fixa e que, pelo
contrrio, uma tendncia em andamento para a
mudana pode ajudar-nos na tarefa difcil de analisar os
desenvolvimentos contemporneos na biocincia e na
biotecnologia, e avaliar as promessas, e perigos que elas
nos guardam.
IHU On-Line- Em que aspectos Bergson conserva e
supera traos da teoria evolutiva de Darwin?
Paola Marrati Bergson est totalmente de acordo com
o principal insight da teoria de Darwin, de que a vida
um processo evolutivo que produz novas e imprevisveis
formas. Acredito que essa fundamental concordncia
mais significativa que a crtica de Bergson a Darwin e ao
neo-darwinismo em A evoluo criadora. E deve-se
observar que essas crticas objetivam destacar a essncia
temporal e mutante das formas de vida.
IHU On-Line- Partindo do pressuposto de que aquilo
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15SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
que nossos sentidos nos fornecem no so a realidade,
mas cpias seletivas desta, podemos perceber a uma
influncia platnica, como aquelas imagens refletidasno fundo da caverna?
Paola Marrati De acordo com Bergson, nossa
percepo consciente, assim como nossas ferramentas
cognitivas e linguagem, so pragmaticamente orientadas
para as necessidades de sustentar a vida e no para o
conhecimento puramente desinteressado e vazio.
Exatamente por essa razo, selecionamos e percebemos
do campo todo da realidade o que til para ns. Apesar
disso, isso no dizer que nos agarramos a cpias darealidade melhor que prpria realidade, sendo isso no
sentido platnico ou no. o oposto: para Bergson,
estamos em contato com a realidade como tal, mesmo se
percebemos e conceitualizamos apenas selees dela, e
isso sempre possvel. Essa a tarefa da filosofia e da
cincia: dar um passo atrs das necessidades presentes
no sentido de aumentar nossa experincia para alm dos
limites do que normalmente sabemos e percebemos dela.
IHU On-Line- Ainda nessa linha de raciocnio, qual
a influncia de Kant no pensamento bergsoniano,
tendo em vista que o filsofo de Knnigsberg afirmava
que a coisa em si incognoscvel?
Paola Marrati O projeto filosfico de Bergson
fortemente antikantiano. Como eu disse antes, Bergson
v a razo, como qualquer outra faculdade humana,
como tendo suas razes nos processos evolutivos da vida.
Como animais viventes, estamos em contato com a
realidade e at mesmo com o absoluto. Como ele escreve
na introduo de A evoluo criadora: A ao no pode
mover-se no irreal. Uma mente nasce para especular ou
para sonhar, admito, deve permanecer fora da realidade,
deve deformar ou transformar o real, talvez at cri-lo
como criamos figuras de homens e animais que nossa
imaginao recorta das nuvens que passam. Mas um
intelecto que dobra o ato a ser atuado e a reao que se
segue, sentindo seu objeto enquanto capta sua impresso
de movimento a cada instante, um intelecto que toca
algo do absoluto (p. 11). Melhor que a busca peloestabelecimento de condies a priori e limites do
conhecimento e razo, assumindo que a coisa como tal
eternamente no cognoscvel por ns, Bergson chama a
uma tarefa diferente. Ele acredita que uma teoria do
conhecimento inseparvel de uma teoria da vida:
precisamos substituir nossas ferramentas cognitivas no
contexto evolutivo da vida no sentido de
compreendermos como nossos esquemas conceituais
foram formados, como eles evoluram, e como eleseventualmente podem ser aumentados, abertos para
alm de seus limites atuais. Tal tarefa , ao mesmo
tempo, mais modesta e mais ambiciosa que a filosofia
transcendental de Kant: mais modesta porque a par de
que nenhuma resposta definitiva pode ser dada questo
das condies de possibilidade de conhecimento; mais
ambiciosa porque sustenta que, em princpio, no h
limites ao domnio daquilo que pode ser conhecido, que
no estamos condenados a uma forma de conhecimento
que paga suas certezas com o preo de ser um
conhecimento do fenmeno diferente do conhecimento
das coisas.
IHU On-Line- Como essa seleo natural de
informaes nos ajuda a compreender a singularidade
e irrepetibilidade das concepes do sujeito moderno?
Paola Marrati Bergson no pertence tradio da
filosofia dos sujeitos no modo cartesiano, kantiano ou
husserliano. O sujeito no o exemplo original e
organizado para o qual tudo aparece, o espectador para
quem o mundo dado como um objeto de contemplao.
Subjetividade, ou conscincia [de algo], se voc prefere,
constituda em um largo campo de experincia por um
processo de seleo. Como Bergson reconhecidamente
escreveu em Matria e memria (1896), a percepo se
torna conscincia pela seleo de todos os campos de
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16SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
[da] experincia que so relevantes em um dado tempo
para um dado propsito. William James, em seu Ensaios
sobre o empirismo radical(1912), experimenta umprojeto parecido de descrio da formao da
subjetividade em um largo campo de experincia no-
subjetiva. A subjetividade constituda em um campo de
experincia que a excede: a subjetividade no nem o
ponto de partida para a filosofia e nem sua meta.
IHU On-Line- De que forma as filosofias de Bergson e
Deleuze se cruzam? O que tm em comum e no que
diferem, principalmente?Paola Marrati Na minha opinio, Deleuze deve a
Bergson mais que a qualquer outro filsofo. A idia de
que a filosofia necessita de preciso e deve criar
conceitos singulares para objetos singulares, ao contrrio
de construir sistemas gerais que possam acomodar todo e
qualquer mundo, como Bergson escreve no incio de sua
Introduo metafsica, estabelece um padro para o
que Deleuze considera como tarefa da filosofia. Ele
repetidamente reivindica, em Diferena e repetio
(1969) e em algum outro lugar, que a filosofia visa a
agarrar as condies de possibilidade do real e no da
experincia possvel, sendo uma elaborao direta de
uma demanda de Bergson. Mas a importncia de Bergson
para Deleuze no apenas metodolgica: todo o projetode elaborao de uma filosofia das diferenas internas
como alternativa dialtica e fenomenologia
profundamente enraizada na interpretao deleuziana de
Bergson. O mesmo segue verdadeiro para a crtica da
negatividade e da iluso retrospectiva da categoria do
possvel, assim como para a concepo do tempo como
virtualidade. De forma mais geral, gostaria de dizer que
Deleuze leva extremamente a srio a idia de Bergson de
que a filosofia deve dirigir a si a questo da novidade, donovo no fazer, ao contrrio de se voltar para o eterno.
Para Deleuze, tal idia traz aproximadamente toda
transformao da filosofia e seu prprio trabalho
dedicado largamente a desdobrar as conseqncias dessa
transformao. Apesar disso, como todos os grandes
filsofos, Deleuze introduziu um novo conjunto de
problemas e conceitos que no podem ser remetidos
outra vez a Bergson somente. Deleuze tem sua prpria e
singular voz.
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Bergsonismo, uma filosofia do futuro, do tempo, da
transformaoENTREVISTA COM PIERRE MONTEBELLO
Bergson faz-nos entrever nossa participao num movimento criador do universo, do qual ns
no somos nem a origem, nem o fim. Esta idia de um universo aberto, criador, que em nada
corresponde quele que a metafsica grega ou clssica descreveu, exerce hoje uma grande
influncia. O bergsonismo uma filosofia do futuro, do tempo, da transformao, assegura o
filsofo francs Pierre Montebello, em entrevista exclusiva, concedida por e-mail IHU On-Line.
Outro dos aspectos atualssimos que Montebello aponta na filosofia bergsoniana a idia de
que a filosofia no deve abandonar a ontologia, de que ela no deve contentar-se com a
fenomenologia que s descreve o mundo a partir da conscincia humana, mas que preciso
tentar descrever o mundo tal como ele , preciso tentar captar de que modo matria, vida e
conscincia comunicam fora de ns. A respeito da obra A evoluo criadora, o entrevistado no
poupou palavras: um livro assombroso, um dos raros de filosofia contempornea que
retoma as grandes questes deixadas em suspenso aps a crtica kantiana da metafsica.
Felizmente, menciona Montebello, hoje A evoluo criadorarecebe seu devido valor e pode ser
comparado a O mundo como vontade e representao, de Schopenhauer, duas trovoadas no cu
das idias.
Montebello leciona Filosofia Moderna e Contempornea na Universidade de Toulouse-le-Mirail
e dirige o departamento de Filosofia dessa instituio. membro do Comit cientfico
internacional dos Anais Bergsonianos PUF Epimthe: trs tomos publicados (Annale I, 2002, 560
p., Annales II, 2004, 534 p., Annales III, 207, 540 p.) e da Sociedade Bergson, criada em 2006 na
base do comit cientfico internacional dos Anais Bergsonianos. Escreveu inmeras obras, das
quais citamos Vie et maladie chez Nietzsche(Paris: Ellipses, 2001); Nietzsche, La volont de
puissance(Paris: PUF, 2001); e Lautre mtaphysique(Paris: Descle de Brouwer, 2003).
IHU On-Line -Quais so os aspectos mais atuais da
filosofia bergsoniana?
Pierre Montebello- O melhor representante da
modernidade da filosofia de Bergson ter sido, sem
dvida, o filsofo francs Gilles Deleuze. Ele nos fez
redescobrir Bergson, de cuja filosofia tirou o mais
interessante e moderno: uma compreenso da relao
entre conscincia e universo, entre percepo subjetiva
e cosmo. Bergson faz-nos entrever nossa participao
num movimento criador do universo, do qual ns no
somos nem a origem nem o fim. Esta idia de um
universo aberto, criador, que em nada corresponde
quele que a metafsica grega ou clssica descreveu,
exerce hoje uma grande influncia. O bergsonismo uma
filosofia do futuro, do tempo, da transformao. A
segunda idia de que a filosofia no deve abandonar a
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18SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
ontologia, de que ela no deve contentar-se com a
fenomenologia, que s descreve o mundo a partir da
conscincia humana, mas que preciso tentar descrevero mundo tal como ele e tentar captar de que modo
matria, vida e conscincia se comunicam fora de ns.
IHU On-Line -Quanto obraA evoluo criadora,
qual sua representatividade na filosofia
contempornea, cem anos aps sua publicao?
Pierre Montebello- Cem anos aps sua publicao,A
evoluo criadoracontinua sendo um livro realmente
assombroso: ele hoje relido e estimado em seu justovalor. Este livro deslocou integralmente o
questionamento filosfico. Depois que a filosofia de
Husserl17e de Heidegger18dominaram o cenrio francs,
nos damos realmente conta de que este livro trouxe algo
totalmente novo. Ele um dos raros livros de filosofia
contempornea que retoma as grandes questes deixadas
em suspenso aps a crtica kantiana da metafsica: a
psicologia, a biologia, a cosmologia... Este livro no se
contenta em dizer que o eu, a vida, o cosmo so
17Edmund Husserl(1859-1938): filsofo alemo, principal
representante do movimento fenomenolgico. Marx e Nietzsche, at
ento ignorados, influenciaram profundamente Husserl, que era um
crtico do idealismo kantiano. Husserl apresenta como idia
fundamental de seu antipsicologismo a intencionalidade da
conscincia, desenvolvendo conceitos como o da intuio eidtica e
epoch. Pragmtico, Husserl teve como discpulos Martin Heidegger,
Sartre e outros. (Nota da IHU On-Line)18Martin Heidegger(1889-1976): filsofo alemo. Sua obra mxima
O ser e o tempo(1927). A problemtica heideggeriana ampliada em
Que metafsica?(1929), Cartas sobre o humanismo(1947),
Introduo metafsica(1953). Sobre Heidegger, a IHU On-Line
publicou na edio 139, de 2-05-2005, o artigo O pensamento
jurdico-poltico de Heidegger e Carl Schmitt. A fascinao por
noes fundadoras do nazismo. Sobre Heidegger, confira as edies
185, de 19-06-2006, intitulada O sculo de Heidegger, e 187, de 3-07-
2006, intitulada Ser e tempo. A desconstruo da metafsica,
disponveis para download no stio do IHU, www.unisinos.br/ihu.
Confira, ainda, o n 12 do Cadernos IHU Em Formaointitulado
Martin Heidegger. A desconstruo da metafsica. (Nota da IHU On-
Line)
incognoscveis. Esta filosofia traa um caminho, o mais
prximo possvel da experincia que temos de ns
mesmos e do conhecimento que as cincias nos trazem,para desenhar uma imagem plausvel do que querem
dizer conscincia, vida, matria, universo,
evoluo... um livro riqussimo. Deve-se comparar
esta obra ao grande livro de Schopenhauer19sobre O
mundo como vontade e como representao(5. ed. So
Paulo: Abril Cultural, 1991). So duas trovoadas no cu
das idias, dois questionamentos da viso demasiado
intelectualista que a filosofia nos deu do mundo.
IHU On-Line -Quanto ao conceito bergsoniano de
intuio, qual sua relevncia para que possamos
entender o livre arbtrio?
Pierre Montebello- A intuio bergsoniana um
mtodo: ela consiste em situar-nos no prprio movimento
das coisas, a pensar em durao quando temos tendncia
em forjar conceitos demasiado estticos.
A intuio ope-se inteligncia. No que a
inteligncia seja intil: ela serve para fabricar,
principalmente geomtrica, tcnica... O mundo
tecnolgico sua obra. Mas a intuio no serve para
agir, e sim para compreender. No se compreende nada
da vida quando se pensa atravs de conceitos que so
destinados a agir sobre a matria (conceitos matemtico-
fsicos...), preciso partir da intuio, da experincia
de ser vivos, do movimento da prpria vida. E isto vale
para todas as coisas. A intuio , pois, mtodo de
conhecimento, e ela tambm libertao, j que sem
ela somos condenados a viver apenas num mundo til.
19Arthur Schopenhauer(1788-1860): filsofo alemo. Sua obra
principal O mundo como vontade e representao, embora o seu
livro Parerga e Paraliponema(1815) seja o mais conhecido. Friedrich
Nietzsche foi grandemente influenciado por Schopenhauer, que
introduziu o budismo e a filosofia indiana na metafsica alem.
Schopenhauer, entretanto, ficou conhecido por seu pessimismo e
entendia o budismo como uma confirmao dessa viso. (Nota da IHU
On-Line)
5/28/2018 A evolu ao criadora de Bergson 100 anos depois
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19SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
Ora, a intuio nos desvela que o movimento das coisas
criador: o universo um movimento de expanso, a vida
uma evoluo criadora, a personalidade psquicaconsiste em produzir atos livres. este plano criador que
a intuio nos faz encontrar.
IHU On-Line -Como pode a filosofia deste pensador
ajudar-nos a repensar a liberdade e a eticidade no
mundo contemporneo?
Pierre Montebello- Repensar a liberdade e a tica
hoje em dia , e todo o mundo que se d conta disso, pr
o mundo ante o homem, e no o homem ante o mundo.Os desastres de nossos dias vm daquilo que Spinoza20
vira to bem: o homem se cr um imperador num
imprio. Mas o homem no o centro de nada: seu
passado e seu futuro so o prprio universo. A filosofia,
diz Bergson, deveria ser um esforo para superar a
condio humana. Bergson nos faz compreender que
pertencemos a um todo, e no este todo que nos
pertence. Esta tomada de conscincia fundamental, ela
deve convidar-nos a reconsiderar nosso lugar no seio do
todo, do universo e dos viventes. A filosofia de Jonas21
prolongar esta reflexo, sem, no entanto, conhecer ou
citar Bergson.
20Baruch de Espinosa(1632-1677): filsofo holands, pertencente a
uma famlia judia originria de Portugal. Publicou um Tratado Poltico
(Tractus Tehologico-Politicus), e a ticae deixa vrias obras
inditas, que so publicadas em 1677 com o ttulo de Opera Posthuma.
(Nota da IHU On-Line)21Hans Jonas(1902-1993): filsofo alemo, naturalizado
norte-americano, um dos primeiros pensadores a refletir sobre
as novas abordagens ticas do progresso tecnocientfico. A sua
obra principal intitula-se: Das Prinzip Verantwortung.
Versuch einer Ethik fr die technologische Zivilisation,
1979, publicada em portugus como O princpio
responsabilidade(Rio de Janeiro: Contraponto, 2006). (Nota
da IHU On-Line)
IHU On-Line -Se, como afirmava Bergson, o tempo
real no existe, mas um continuumde tempo num
fluxo constante, ento o que existe so mecanismosmentais que compartimentam nossas experincias
sensoriais? Ao tomar conscincia disto, como pode o
ser humano ter sua conscincia afetada?
Pierre Montebello- O tempo real existe para Bergson.
Sua filosofia uma filosofia da durao e, por
conseguinte, do tempo. Mas no o tempo da fsica, no
um tempo matematizado e dividido em instantes. um
movimento contnuo que traz o passado e gera o futuro
no presente. Todas as coisas so ritmos de durao,matria, vida, conscincia, maneiras de gerar um futuro
no presente recolhendo o passado. Mesmo a matria que
parece ser pura repetio um movimento contnuo de
expanso, uma transformao, uma evoluo csmica. Eu
creio que a fsica no pode contest-lo, ela que delineia
uma histria do cosmo a partir do Big Bang. O tempo ,
pois, a prpria realidade, o prprio estofo das coisas e do
mundo. A filosofia de Bergson, como a de Heidegger, faz
o tempo passar ao primeiro plano. Ela recusa o
substancialismo que define as coisas por uma essncia
estvel. A metafsica clssica, dir Bergson, no se deu
conta do tempo. O homem deve tomar conscincia que
ele tambm age no tempo, que a criao se faz no
tempo. No repetir, mas criar, tal o sentido do ser que
a existncia humana deve reencontrar. Caso contrrio,
ela se fecha em sociedades estticas, sociedades
fechadas, sem criao artstica, sem movimento
espiritual, sem exigncia de futuro.
IHU On-Line -H nestas idias influncias de
Herclito e de Kant, embora isso possa, de certa
maneira, soar de modo contraditrio, j que Herclito
foi inspirador de Plato e Kant foi um aristotlico?
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20SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
Pierre Montebello- H pouca influncia de Herclito22
sobre Bergson. Sua concepo do tempo moderna, ela
se apia nos conhecimentos modernos da fsica, emborase trate de separar-se dela, e sobretudo nas teorias da
evoluo (transformismo de Lamarck23e evolucionismo
de Darwin), que so to importantes no sculo XIX. No
se trata simplesmente de dizer que as coisas esto em
movimento. preciso mostrar como elas se movimenta,
e na filosofia moderna isso cruza com as questes que
conduzem sobre a matria (cincias fsicas), sobre a vida
(cincias biolgicas) e sobre a conscincia (cincias
psicolgicas). Herclito teve uma intuio. Bergson duma consistncia a esta intuio: ele trabalha com os
utenslios e os conhecimentos modernos.
A influncia de Kant24sobre a filosofia moderna
evidentemente essencial. No entanto, desde
22Herclito de feso(540 a. C. - 470 a. C.): filsofo pr-socrtico,
considerado o pai da dialtica. Problematiza a questo do devir
(mudana). (Nota da IHU On-Line)23Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet(Chevalier de Lamarck;
1744-1829): naturalista francs que desenvolveu a teoria dos caracteres
adquiridos, uma teoria da evoluo agora desacreditada. Lamarck
personificou as idias pr-darwinistas sobre a evoluo. Foi ele que, de
fato, introduziu o termo biologia. (Nota da IHU On-Line)24Immanuel Kant(1724-1804): filsofo prussiano, considerado como
o ltimo grande filsofo dos princpios da era moderna, representante
do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais
influentes da Filosofia. Kant teve um grande impacto no Romantismo
alemo e nas filosofias idealistas do sculo XIX, tendo esta faceta
idealista sido um ponto de partida para Hegel. A IHU On-Linenmero
93, de 22-03-2004, dedicou sua matria de capa vida e obra do
pensador. Tambm sobre Kant foram publicados os Cadernos IHU em
formaonmero 2, intitulados Emmanuel Kant - Razo, liberdade,
lgica e tica. Os Cadernos IHU em formaoesto disponveis para
download na pgina www.unisinos.br/ihudo Instituto Humanitas
Unisinos IHU. Kant estabeleceu uma distino entre os fenmenos e a
coisa-em-si (que chamou noumenon), isto , entre o que nos aparece e
o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si (noumenon) no poderia,
segundo Kant, ser objeto de conhecimento cientfico, como at ento
pretendera a metafsica clssica. A cincia se restringiria, assim, ao
mundo dos fenmenos, e seria constituda pelas formas a priori da
sensibilidade (espao e tempo) e pelas categorias do entendimento.
(Nota da IHU On-Line)
Schopenhauer aparece uma filosofia que encara Kant ao
reverso. Schopenhauer, Nietzsche25, Bergson, tornam
possvel uma nova filosofia da natureza como vontade,vontade de poder, durao. Eles constroem uma nova
imagem da natureza que no mais aquela das cincias
fsicas. A metafsica da natureza de Kant no seno a
fundamentao do mecanicismo nas categorias de
compreenso do sujeito transcendental. Estes trs
autores mostram, ao contrrio, que o mecanicismo
insuficiente para pensar a natureza. Alis, no basta
mais dizer que o eu, a alma e Deus so indeterminveis.
preciso compreender de que modo matria, vida,conscincia, universo comunicam e esto em relao.
IHU On-Line -Ainda nesta linha de raciocnio, qual
a influncia de Kant sobre o pensamento bergsoniano,
considerando que o filsofo de Knigsberg afirmava
que a coisa em si incognoscvel?
Pierre Montebello- A relao com Kant complexa:
ele censura Kant por ter crido que a metafsica
impossvel; ele quer, pois, restaurar a metafsica. Pois
Bergson est convencido que ns tocamos o absoluto nele
mesmo. Ele retoma mesmo a frase de So Paulo26emA
25Friedrich Nietzsche (1844-1900): filsofo alemo, conhecido por
seus conceitos alm-do-homem, transvalorao dos valores, niilismo,
vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as
mais importantesAssim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1998); O anticristo(Lisboa: Guimares, 1916); e
A genealogia da moral(5. ed. So Paulo: Centauro, 2004). Escreveu
at 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o
abandonou, at o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de
capa da edio nmero 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004. Sobre o
filsofo alemo, conferir ainda a entrevista exclusiva realizadapela
IHU On-Lineedio 175, de 10 de abril de 2006, com o jesuta cubano
Emilio Brito, docente na Universidade de Louvain-La-Neuve, intitulada
Nietzsche e Paulo. A edio 15 do Cadernos IHU Em Formao
intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche. (Nota da IHU On-
Line)26Paulo de Tarso(3 66 d. C.): nascido em Tarso, na Cilcia, hoje
Turquia, era originariamente chamado de Saulo. Entretanto, mais
conhecido como So Paulo, o Apstolo. considerado por muitos
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21SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
evoluo criadora: No absoluto so Paulo diz em Deus-,
ns estamos e ns nos movemos. Para Bergson, ns podemos
conhecer de modo absoluto, e por isso que sua filosofiaprope um conhecimento da matria, da vida, do
conhecimento. Enquanto somos entes materiais, vivos e
conscientes, como poderia escapar-nos tal conhecimento? Mas
preciso empregar o mtodo adequado, no se deve aplicar
realidade meios dos quais a inteligncia se serve para agir
sobre a matria. Kant permaneceu num conhecimento
demasiado intelectual. Ele no colocou o tempo nas coisas, e
sim as tornou incompreensveis. Ele acreditou, ento, que no
se podia conhec-las, que elas eram incognoscveis. Mas ainteligncia no feita para conhecer, segundo Bergson, e sim
para agir sobre a matria, fixando as coisas num espao e num
tempo matemticos. Em lugar do entendimento, foi preciso
colocar a intuio que nos situa na durao e no movimento
criador do universo. O projeto bergsoniano antikantiano
neste nvel: restituir vida possibilidade da metafsica.
IHU On-Line -De que modo a idia bergsoniana de seleo
natural de informaes nos ajuda a compreender a
singularidade das concepes do sujeito moderno?
Pierre Montebello- No h idias bergsonianas de seleo
da informao. Esta uma idia darwinista e Bergson contesta
o modelo darwiniano de seleo das pequenas diferenas.
cristos como o mais importante discpulo de Jesus e, depois de Jesus,
a figura mais importante no desenvolvimento do Cristianismo nascente.
Paulo de Tarso um apstolo diferente dos demais. Primeiro porque ao
contrrio dos outros, Paulo no conheceu Jesus pessoalmente. Era um
homem culto, frequentou uma escola em Jerusalm, fez carreira no
Tempo (era fariseu), onde foi sacerdote. Educado em duas culturas
(grega e judaica), Paulo fez muito pela difuso do Cristianismo entre os
gentios e considerado uma das principais fontes da doutrina da Igreja.
As suas Epstolas formam uma seo fundamental do Novo Testamento.
Afirma-se que ele foi quem verdadeiramente transformou o cristianismo
numa nova religio, e no mais numa seita do Judasmo. Sobre Paulo de
Tarso a IHU On-Line175, de 10 de abril de 2006, dedicou o tema de
capa Paulo de Tarso e a contemporaneidade. A verso encontra-se
disponvel para downloadno stio do IHU, www.unisinos.br/ihu. (Nota
da IHU On-Line)
um esquema que no toma em conta as tendncias da vida,
segundo ele. Mas h em Bergson uma teoria do sujeito
moderno reconciliado com o universo e com a natureza, e notranscendendo o universo e a natureza. mesmo o essencial
ao bergsonismo fazer-nos compreender que o sujeito no tem
valor em si, que ele faz parte de um todo, que aparentado a
este todo. Ele escrever, assim, que o eu da mesma
natureza que o todo. O bergsonismo luta contra esta idia de
uma superioridade da conscincia humana sobre o todo. O
sujeito apenas uma parte do todo que comunica com ele.
IHU On-Line -De que maneira as filosofias de Bergson eDeleuze se cruzam? O que tm elas em comum e,
sobretudo, em que elas diferem?
Pierre Montebello- A filosofia de Deleuze bastante
inspirada pela filosofia de Bergson. Ela mantm seus aspectos
essenciais: primado do universo sobre o sujeito, luta contra a
fenomenologia que separa o sujeito da natureza e postula sua
transcendncia, crtica dos falsos problemas e das iluses que
provm do fato de se fazer do homem um imprio num
imprio, pensar o movimento criador como o Aberto que no
cessa de criar e de transformar...
Deleuze faz passar Bergson para uma filosofia ainda mais
livre, a-subjetiva em seu fundo, reservatrio de hecceidades...
Ele se serve disso para fazer surgir o paradoxo de um Aparecer
EM SI, de uma luz/Universo que precede o sujeito. Para ele,
como para Bergson, a filosofia deve ser um efeito para
ultrapassar a condio humana (Bergson). O universo na
ausncia do homem, eis o que se deve pensar, e no o
universo visto pelo homem: pois o homem desfigura tudo
quanto ele reconduz a si. O que o universo quando se faz o
esforo de pens-lo sem preconceitos antropomorfos e sem
dogmas teolgicos, sem mim e sem Deus? Tal a questo que
Deleuze quer levantar e que se assemelha tambm ao
questionamento de Nietzsche. Que o homem no seja o centro
do todo, Deleuze o exprimir retendo esta frmula de Primo
Levi: A vergonha de ser um homem.
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22SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
Recortar o real em funo das nossas necessidades: condio
para a vidaENTREVISTA COM DEBORA MORATO
Em A evoluo criadora, Bergson defende que a funo do intelecto adaptativa e assim
naturaliza a inteligncia. A nossa ao somente se exerce sobre pontos fixos, agir dominar a
matria procurando, na pura mobilidade que o estofo da realidade, estabilidades cmodas.
Para viver, preciso recortar o real em funo das nossas necessidades, acentua a filsofa
Dbora Morato, em entrevista dada com exclusividade IHU On-Line. A pesquisadora, que
leciona na Universidade Federal de So Carlos (UFSCAR), em So Carlos, So Paulo, afirma que
A evoluo criadorah respostas a alguns desafios prprios ao pensamento contemporneo,
como o caso do problema do dualismo mente/corpo, das relaes entre instinto e
inteligncia, do papel do tempo na descrio dos fenmenos vitais, do sentido da evoluo,
entre outros. Destacam-se a crtica aos sistemas da tradio e a necessidade de compreender a
dimenso histrica do real e do homem.
Morato graduada, mestre e doutora em Filosofia pela Universidade de So Paulo (USP). Sua
dissertao intitulou-se Espao, percepo e inteligncia - Bergson e a formao da conscincia
emprica humanae sua tese, Conscincia e corpo como memria: subjetividade, ateno e vida
luz da filosofia da durao, ambas orientadas por Franklin Leopoldo e Silva. uma das
organizadoras das obras Subjetividade e linguagem(So Carlos; Curitiba: Universidade Federal
do Paran, Universidade Federal de So Carlos, 2006); Questes de Filosofia contempornea(So
Paulo; Curitiba: Discurso Editorial; UFPr, 2006) e A fenomenologia da experincia - Horizontes
filosficos da obra de Merleau-Ponty(Goinia: Ed. da UFG, 2006). Confira a ntegra da
entrevista, concedida por e-mail.
IHU On-Line - Cem anos aps sua publicao, qual aatualidade da obraA evoluo criadora?
Dbora Morato - Podemos apontar a atualidade deA
evoluo criadoraem duas vertentes: uma referida
histria da filosofia, e outra a um campo que podemos
delimitar como epistemolgico. Tratando de problemas
comuns ao horizonte do incio do sculo XX, o livro
apresenta respostas a alguns desafios prprios ao
pensamento contemporneo, como o caso do problema
do dualismo mente/corpo, das relaes entre instinto e
inteligncia, do papel do tempo na descrio dosfenmenos vitais, do sentido da evoluo, entre outros.
Destacam-se a crtica aos sistemas da tradio e a
necessidade de compreender a dimenso histrica do
real e do homem. importante ressaltar o papel do
ltimo captulo da obra, em que Bergson expe o
mecanismo cinematogrfico da inteligncia e mostra
como a racionalidade ocidental vtima da obsesso pela
imobilidade e pela repetio ela perde de vista a
mudana e o movimento que respondem pela essncia da
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23SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
realidade. Temos ali o desenvolvimento da crtica
endereada histria da metafsica racional, que
Bergson considera sustentada por uma iluso natural aoentendimento: a imagem ou a idia do Nada. Em relao
a essa famosa crtica do negativo, a obra de Bento Prado
Junior27Presena e campo transcendental(publicada
pela Edusp em 1989 e traduzida para o francs em 2002,
editora OLMS) tem uma importncia capital. Ela nos
apresenta uma interpretao original e instigante sobre a
filosofia de Bergson, mostrando como a discusso da
iluso do Nada explicita as direes mais fundamentais
de todas as anlises crticas do filsofo e ressaltando apertinncia da denncia do papel dessa iluso na histria
da filosofia. O livro tem hoje reconhecimento mundial, e
um de seus mritos foi ter percebido a importncia da
discusso do pressuposto do Nada para a filosofia do
sculo XX.
Uma articulao entre dados da cincia e construo
metafsica
A segunda vertente que atesta a atualidade da reflexo
deA evoluo criadora o modo pelo qual ela articula
dados da cincia e construo metafsica. Bergson leva
at o limite a capacidade de meditar sobre as
descobertas e inovaes da biologia evolutiva,
oferecendo hipteses especulativas guiadas pelos fatos
ou por sua leitura sem pressupostos. As discusses
pontuais com os cientistas da evoluo explicitam um dos
aspectos mais interessantes da filosofia bergsoniana,
precisamente a denncia de que existem conceitos
27Bento Prado Junior: filsofo brasileiro, graduado pela
Universidade de So Paulo (USP), ps-doutor pelo Centre National de la
Recherche Scientifique, CNRS, Frana e livre-docente pela Universidade
de So Paulo (USP). Docente na Universidade Federal de So Carlos,
Centro de Educao e Cincias Humanas, autor de Erro, iluso,
loucura(So Paulo: Editora 34, 2004) e Presena e campo
transcendental: conscincia e negatividade na filosofia de Bergson
(So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1989). (Nota da IHU
On-Line)
previamente inseridos no trabalho da cincia, isto ,
pressupostos latentes que dirigem a observao e a
interpretao dos dados do trabalho experimental. Todasas obras de Bergson reforam essa dificuldade: os dados
da cincia so observados e descritos por um trabalho
que , na verdade, pura interpretao, cujos princpios
os cientistas ignoram em outros termos, usam teses e
conceitos sem que o percebam. No caso das cincias
biolgicas, as conseqncias dessa reflexo crtica tm
especial importncia hoje, momento em que elas
ocupam papel de protagonistas do progresso cientfico e
dos dilemas que esse progresso impe humanidade.
IHU On-Line - Qual a contribuio de Bergson para
compreender a formao da conscincia emprica
humana?
Dbora Morato - Ao procurar compreender os
fenmenos vitais, Bergson considera a temporalidade ou
durao. E logo percebeu que a temporalidade est
essencialmente ligada conscincia. Nesse sentido, sua
filosofia desenvolve-se como um estudo progressivo e
profundo da conscincia em geral, dos processos em que
ela se manifesta. Ele procura superar a noo de
conscincia herdada das filosofias anteriores, que a
limitam sua dimenso de conscincia reflexiva e
intelectual, ou seja, constituinte, se quisermos usar o
termo prprio s filosofias transcendentais. Bergson
recupera o papel do estudo da conscincia psicolgica
numa tentativa de desenvolver um empirismo
verdadeiro. A conscincia originariamente uma
insero prtica no mundo, surge na prpria relao que
se estabelece entre os corpos vivos e os seus ambientes.
A reflexo sobre a conscincia necessita do estudo das
aes do corpo; pelo critrio da ao, alis, que
Bergson determina as diferenas entre as coisas e os
organismos, entre a matria e a conscincia, entre o em
si e o para si, os primeiros marcados pela ao necessria
e automtica, os segundos termos da oposio
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24SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
apresentando a capacidade de elaborar aes
indeterminadas. Se a conscincia originariamente ao
no mundo, essencialmenteele progresso contnua dopassado no presente invadindo o futuro ela durao.
Encontramos no segundo livro de Bergson,Matria e
memria: ensaio sobre a relao do corpo com o
esprito (So Paulo: Martins Fontes, 1990), uma hiptese
detalhada e complexa sobre a origem da conscincia
humana na percepo, a dimenso originria da
conscincia. Essa obra liga o estudo sobre a interioridade
e seus estados psicolgicos, o Ensaio sobre os dados
imediatos da conscincia (Montevideo: Cludio Garcia,1944), que d conta da dimenso profunda e essencial da
conscincia enquanto progresso qualitativa, ao estudo
da conscincia em geral, uma espcie de supra-
conscincia criadora que o centro da metafsica da
vida deA evoluo criadora. O trajeto que vai da
primeira terceira obra, integrando teoria do
conhecimento e teoria da vida, funda-se ento sobre um
estudo que circula entre psicologia, biologia e metafsica
e cujo centro a noo de conscincia a durao, idia
central de filosofia de Bergson, metafisicamente
compreendida atravs da anlise dos fenmenos
conscientes em sua temporalidade concreta.
IHU On-Line - Como o espao, a percepo e a
inteligncia se relacionam em sua obra e pensamento?
Dbora Morato - A teoria da inteligncia de Bergson foi
o primeiro aspecto de sua filosofia que chamou minha
ateno e dediquei a esse tema grande parte do meu
mestrado. Em linhas gerais, Bergson atribui inteligncia
uma forma, o espao, e uma origem, a percepo. A
inteligncia tem um funcionamento que pode ser
esclarecido pela metfora do mecanismo
cinematogrfico: ela recorta momentos ou partes fixas
dos fenmenos, como que congelando a dinamicidade
do real, e tenta recompor a realidade atravs da
justaposio desses instantes recortados de um todo no
qual ela est inserida. Em outros termos, tudo o que a
inteligncia pode conhecer se d por refrao num meio
homogneo e vazio, no qual so desdobradas partes ouunidades nitidamente separadas, e isso se deve
justamente ao fato de que ela uma faculdade de ao
e desenvolve-se na mesma medida do progresso da
linguagem. EmA evoluo criadora, Bergson defende
que a funo do intelecto adaptativa e assim naturaliza
a inteligncia. A nossa ao somente se exerce sobre
pontos fixos: agir dominar a matria procurando, na
pura mobilidade que o estofo da realidade,
estabilidades cmodas. Para viver, preciso recortar oreal em funo das nossas necessidades. Ao desenvolver-
se modelada por sua funo vital, a inteligncia
progressivamente leva ao extremo a forma pela qual
capaz de fixar e recortar o real o espao, um meio
vazio e homogneo. O espao o meio de conservao
das partes atualmente dadas por justaposio,
fundamento das figuras geomtricas e condio da
percepo e da concepo de objetos distintos e
determinados. Se o real pura dinamicidade ou
diferenciao (atributos da durao), evidente que a
viso intelectual dos fenmenos ser necessariamente
fragmentada e esttica, ou seja, distorcida e
equivocada, til para a vida, mas completamente
inadequada compreenso da verdadeira essncia dos
fenmenos, o que para Bergson ainda e sempre a
tarefa da filosofia.
IHU On-Line - Como a construo da metafsica
enquanto experincia integral - conhecimento interior
e imediato como atributos da intuio em Bergson -
pode ser explicada?
Dbora Morato - A defesa e proposta de refundao da
metafsica em novas bases um aspecto do pensamento
bergsoniano que provoca muito interesse e tambm
muita rejeio no ambiente filosfico atual. Afinal, falar
de metafsica em plena aurora do sculo XXI pode
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25SO LEOPOLDO, 24 DE SETEMBRO DE 2007 | EDIO 237
parecer provocao. Mas o fato que Bergson tem o
mrito de assumir aquilo que muitos pensadores
preferem ignorar: as diversas reas e os vrios temasfilosficos, ao se aprofundarem, encontram por seu
prprio desenvolvimento questes de ordem metafsica.
Desde logo, ele percebeu que a filosofia evolucionista
implica uma hiptese de fundo sobre a criao e o
tempo, passando, ento, a reformular o equacionamento
de temas filosficos pela crtica dos pressupostos
metafsicos herdados da tradio. O desafio que Bergson
procura enfrentar justamente o de refazer a
metafsica, agora pautada pela noo de experincia e,portanto, com apoio nos fatos. A ttulo de exemplo,
podemos citar o tratamento que ele confere ao problema
do dualismo, estudado emMatria e memria: a
discusso e reposio do problema consiste ali em traz-
lo para o terreno dos fatos da memria, mais
especificamente aos fatos da psicopatologia (os casos de
afasia que estavam na ordem do dia da pesquisa
cientfica na passagem do sculo XIX ao XX). As doenas
da memria mostram uma conservao de lembranas
que no se atualizam adequadamente, mas no so
destrudas no crtex porque se apresentam em situaes
inesperadas, reforando a tese bergsoniana de que leses
cerebrais impedem processos globais de organizao,
mas no suprimem as cenas ou as representaes
passadas. O que impressiona nessas anlises a
capacidade que Bergson tem de extrair conseqncias
filosficas cruciais de fenmenos simples e corriqueiros,
tais como o a aprendizado de uma lio decorada ou de
um exerccio fsico, descrevendo a formao de uma
memria do corpo em que reside uma das mais belas
passagens do livro.
Metafsica como experincia integral
A definio de metafsica como experincia integral
tem relao direta com o mtodo da intuio. A
experincia concreta dos seres humanos sempre uma
mistura entre a dimenso temporal e a espacial. O
domnio da vida por excelncia misto e, por no se
darem conta desse fato, os diversos filsofos daexperincia no souberam compreender e descrever a
experincia concreta. O mtodo da intuio trabalha em
primeiro lugar de modo analtico, procurando dissociar os
fenmenos em suas partes puras, seus limites. H uma
definio clebre do trabalho da intuio que explicita o
seu f