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chega de saudade
OFICINA LITERÁRIA DO CLUB ATHLETICO PAULISTANO OFICINA LITERÁRIA DO CLUB ATHL
E TICO PAULISTANO LITERÁRIA DO CLUB ATHLETICO PAULISTA
NO --QUINTO CADERNO DE LITERATURA
QUIN
TO CAD
ERNO DE LITERATURA
CHEGA DE SAUDADETributo a Vinicius de MoraesTributo a Vinicius de MoraesTributo a Vinicius de Moraes
Lembrando do que fizeram lá no Centro Cultural Brasil-Peru, em Lima (aquele Diálogo Poético), me dou conta de que este Caderno Literário é também um diálogo, porém amplo, geral e irrestrito. O grupo do Paulistano conseguiu uma façanha: textos que ressuscitam, dão vida, retomam o poeta em prosa e verso. Aí reaparecem seus sambas, seus poemas, suas crônicas, seu teatro; aí está o experimentalismo visual e até o facebook.
Autores em potencial que escrevem por prazer e alguma esperança secreta de comunicação se acercam da obra daquele que despedaçou sua vida em versos, canções e amores desesperados. Ele viveu o mito de Dionísio entregue ao prazer da carne. Mas foi também esse Orfeu tropical em busca de uma Eurídice impossível.
Affonso Romano de Sant´Anna
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Tributo a Vinicius de Moraes CHEGA DE SAUDADE
Quinto Caderno de Literatura
Club Athletico Paulistano
outubro 2013
Agonia
No teu grande corpo branco depois eu fiquei. Tinha os olhos lívidos e tive medo. Já não havia sombra em ti - eras como um grande deserto de areia Onde eu houvesse tombado após uma longa caminhada sem noites. Na minha angústia eu buscava a paisagem calma Que me havias dado tanto tempo Mas tudo era estéril e mostruoso e sem vida E teus seios eram dunas desfeitas pelo vendaval que passara. Eu estremecia agonizando e procurava me erguer Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos. Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.
Depois foi o sono, o escuro, a morte.
Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente Vinha cheio do pavor das tuas entranhas.
Vinicius de Moraes
Esse Caderno sobre Vinicius me pegou de várias maneiras em vários
aeroportos. Vinha eu de Lima, onde conheci, de corpo presente, a cantora
Maria Creuza no II Festival Internacional de Poesia. Lá estavam mais de
cem poetas de todo o mundo e Vinicius sendo homenageado pela voz
sedutora daquela baiana que se apresentava ao grande público do Teatro
de Las Naciones. Ela ia cantando e a plateia ia ecoando versos e ritmos
do poetinha. Depois, estivemos juntos do Centro Cultural Brasil-Peru. Eu
não cantei, é claro. Ela, sim. Apenas li poemas de antologia minha que
estava sendo lançada enquanto se inaugurava a exposição Diálogo poético:
Vinicius e Affonso. E almoçando com Maria Creuza, ela me atualizou o
folclore sobre o bardo de Ipanema. Dali ela saiu para cantar Vinicius
em Madrid.
E dá-lhe Vinicius.
Ora eu havia feito, há pouco, uma palestra na Universidade de Brasília
sobre Vinicius. Havia também feito uma conferência na Sociedade
Psicanalítica de Brasília sobre a complicada relação de Vinicius com
E POR FALAR EM VINICIUS...
Affonso Romano de Sant’Anna
as mulheres. Chego em casa e Marina Colasanti, minha mulher, me
diz que acabou de julgar prêmios de um concurso de reescritura de
poemas de Vinicius por meninos de escolas de periferia. No mesmo
dia converso com a Casa do Saber/Rio sobre uma conferência sobre
Vinicius onde retomaria coisas ousadas que disse em Canibalismo Amoroso.
Abro o computador e a TV Escola quer uma entrevista sobre Vinicius.
Vinicius em todas as partes. Até nome de rua, a dois passos do meu
apartamento em Ipanema. Esse poeta é uma fatalidade nas nossas
vidas. Emprestou-nos seu eu, sua dor, sua solidão, suas despassaradas
relações amorosas. Foi um amante de utilidade pública. Não há como
evitar Vinicius. Vinicius, um talento desgovernado, intutelável. Um
João Cabral às avessas. Vital. Do personagem Vinicius até Drummond
tinha inveja.
E vou lendo os criativos textos deste Caderno com vontade de
também contar coisas, inventar coisas, pois a vida de um poeta é uma
invenção em que os outros creem. Outro dia em Belém assisti a um
show de Toquinho onde ele recontou mais histórias do poeta. Afinal de
contas, esse poeta é um folclore (que continua vivo). E vejam que coisa,
que coincidência paradoxal, sincretismo puro: outro dia me dei conta
que comecei a escrever um quase diário anotar coisas da vida, depois de
regressar do enterro de Vinicius, em 1980, ali no São João Batista.
Morte e vida. E a poesia.
E, de repente, ele faz cem anos. As pessoas deram para fazer cem
anos. De minha cobertura olho a cobertura de Rubem Braga ao
lado. O cronista de Cachoeiro de Itapemirim está fazendo cem anos.
Drummond, exagerou, já fez 110 anos. Pois naquele enterro do Vinicius
havia não sei quantas viúvas. Somos todos órfãos e viúvas de Vinicius.
Tanto os homens, de gravata e indo aos escritórios, lamentando não
terem tido aquela vida desregrada, quanto as mulheres sonhando com
um poeta que diga aquelas coisas no seu ouvido - o verdadeiro ponto G.
A primeira vez que estive ao lado dele, eu não existia. Continuo não
existindo. Mas naquele tempo existia menos. Era um rapaz do interior de
Minas, que fora à UNE, no Rio para autografar, oh, ousadia! a antologia
Violão de Rua, ao lado de Vinicius, Paulo Mendes Campos, Ferreira Gullar
e outros. Ele autografou o livro sem ter a menor ideia quem era aquele
provinciano ao lado.
Lembrando do que fizeram lá no Centro Cultural Brasil-Peru, em
Lima (aquele Diálogo Poético), me dou conta de que este Caderno Literário
é também um diálogo, porém amplo, geral e irrestrito. O grupo do
Paulistano conseguiu uma façanha: textos que ressuscitam, dão vida,
retomam o poeta em prosa e verso. Aí reaparecem seus sambas, seus
poemas, suas crônicas, seu teatro; aí está o experimentalismo visual e
até o facebook.
Autores em potencial que escrevem por prazer e alguma esperança
secreta de comunicação se acercam da obra daquele que despedaçou
sua vida em versos, canções e amores desesperados. Ele viveu o mito
de Dionísio entregue ao prazer da carne. Mas foi também esse Orfeu
tropical em busca de uma Eurídice impossível.
Affonso Romano de Sant´Anna – poeta, ensaísta e cronista brasileiro da geração de 60, professor
em diversas universidades no Brasil e no exterior, foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional.
O LEITOR
O autor é leitor de si próprio, é um crítico impiedoso que não se
cansa em aperfeiçoar a sua obra na procura da perfeição.
Corta, emenda, subtrai e acrescenta até dá-la por terminada e fazer
a última leitura, desta vez em voz alta.
Que prazer! Como é delicioso ouvir o nosso escrito ainda que lido só
por nós mesmos.
Mas é o nosso escrito, a nossa obra, que contém o sopro de nossa
alma impresso e registrado para sempre.
Sabedor desse prazer maior, visceral, comum a quem escreve, é que
venho exaltar os artistas que afloram nestas páginas, externando-lhes a
admiração que tenho pelos criadores, os mágicos que nos entretém e
nos levam a viver suas histórias.
O leitor agradecido,
José Manuel Castro Santos
Presidente
SUMÁRIO
15 — O ATO DA CRIAÇÃO Carlos Eduardo Cornacchione21 — SONETO DA INFIDELIDADE Giselda Penteado Di Guglielmo22 — PARA A MOÇA NA JANELA Maria Helena Nogueira de Almeida23 — O ESPELHO DE NARA Ricardo Lahud25 — SAMBA E BÊNÇÃO Suzana Montoro27 — ASTRONAVE Danielle Martins Cardoso29 — SONHOS DE ANJO Renata Julianelli31 — DEDICATÓRIA Rogério Matarazzo33 — DA VARANDA Lilian Gattaz34 — TRAINEIRA Luiz Antonio de Queiroz35 — SE VOLTASSES PARA MIM Heloisa de Queiroz Telles Arrobas Martins38 — CARTA A VINICIUS Hans Freudenthal40 — PARA VIVER UM GRANDE AMOR Maria Helena F. Vieira42 — CAPOEIRA Maria Lúcia Perrone Passos43 — BIS Betty Wey46 — CANÇÃO DE ENGANAR TRISTEZA Bia de Castro Oliveira48 — NO REINO DA ALFACE Maria Júlia Kovács50 — QUEM CALA CONSENTE Christina Tibiriçá53 — NEM UM MINUTO Angela Guimarães54 — EXCÊNTRICOS DO 152 Ignez Matarazzo56 — ABSTINÊNCIA Lisa Kahuna58 — O SAMBA É MAIS FORTE DO QUE EU Carlos de Faro Passos60— VINICIUS Angélica Royo63 — POETAS Guilherme Hernandez Filho65 — SARAVÁ Danielle Martins Cardoso67 — RECADO DO ZÉ Gilda Pasqua Barros de Almeida68 — SEGUNDA EDIÇÃO Vicente Rággio70 — O BEIJO Giselda Penteado Di Guglielmo72 — DIAPASÃO Teresinha Taumaturgo Policastro73 — A COPACABANA DE VINICIUS Lygia Pistelli
75 — AMOR EM PAZ Lygia Pistelli76 — MUDANÇA Guta Rezende Soares78 — QUE EU NÃO SOU NINGUÉM DE IR EM CONVERSA DE ESQUECER Mariza Baur81 — DA SOLIDÃO May Parreira e Ferreira83 — NINGUÉM MORRE NO FACEBOOK Ricardo Lahud85 — PORQUE HOJE É DIA DOS NAMORADOS Mariza Baur87 —A ESPERA Guilherme Hernandez Filho89 — ECOS DO PASSADO Maria Helena Nogueira de Almeida93 — O CONVITE Maria Lúcia Rizzo94 — O GAROTO E A GAROTA DE IPANEMA Jairo Navarro de Magalhães97 — SAUDADES DE UMA ÉPOCA QUE EU NÃO VIVI Gisella Prado98 — VINICIUS MUSICAL Luiz Tarcisio B. Filomeno100 — BRAZILIAN GIRL Tânia Nogueira de Melo Franco102 — HORA DE PENSAR VINICIUS Maria Luiza Galli103 — NÃO TER CONTENTAMENTO Agda Del Cioppo104 — EU SEI Agda Del Cioppo105 — DESATINOS DO AMOR Maria Angela de Azevedo Antunes107 — O SAPATO Maria Luiza Galli109 — O POVO FELIZ DO PORÃO Carlos de Faro Passos112 — DIAS DE ORFEU Carlos Eduardo Cornacchione114 — TORMENTO INFINITO Carlos Eduardo Cornacchione116 — DUETO HelÔ Bello BarrosIconografia — 124
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chega de saudade
Macho e fêmea os criou. Bíblia: Gênese, 1, 27
I
Hoje é sábado, amanhã é domingo
A edição vem em capa colorida, como a vida
O conteúdo revela o destino escolhido por cada autor
E nosso Vinicius de Moraes ressuscitou nas epígrafes para inspirar.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como escrever esse tributo
Foi muito esforço da nossa Oficina Literária
Mas por via das dúvidas livrai-nos Vinicius de todo mau estilo.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ninguém escrever bem
Hoje é que é o dia do Caderno Literário
O dia é sábado.
Impossível fugir desta homenagem centenária
Neste momento toda merecida honra está concedida
Todos os autores agradecem entrelaçados
Todas as páginas estão impressas regularmente
Todos os leitores estão atentos
Porque hoje é sábado.
O ATO DA CRIAÇÃO
Carlos Eduardo Cornacchione
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
II
Neste momento há uma antologia
Porque hoje é sábado.
Há um boa-vida vazio
Porque hoje é sábado.
Há um ranger de corpos
Porque hoje é sábado.
Há um clamor pela vida
Porque hoje é sábado.
Há um passado angustiante
Porque hoje é sábado.
Há uma dedicação ao flerte
Porque hoje é sábado.
Há um renovar de sonho
Porque hoje é sábado.
Há um único beijo
Porque hoje é sábado.
Há um horizonte na varanda
Porque hoje é sábado.
Há um ciúme estrangeiro
Porque hoje é sábado.
Há um casal que se ama
Porque hoje é sábado.
Há dietas de alface
Porque hoje é sábado.
Há uma batucada no bistrô
Porque hoje é sábado.
Há um poeta inspirado
Porque hoje é sábado.
Há uma perdição de excêntricos
Porque hoje é sábado.
Há uma cantar de prelúdio
Porque hoje é sábado.
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chega de saudade
Há uma morte no facebook
Porque hoje é sábado.
Há um homem sem sombra
Porque hoje é sábado.
Há um anjo acordado
Porque hoje é sábado.
Há um viciado em amor
Porque hoje é sábado.
Há um passado não vivido
Porque hoje é sábado.
Há um dilema existencial
Porque hoje é sábado.
Há infidelidades em verso
Porque hoje é sábado.
Há um show no Paulistano
Porque hoje é sábado.
Há uma viúva descolada
Porque hoje é sábado.
Há uma moça solitária
Porque hoje é sábado.
Há uma ligação para o Além
Porque hoje é sábado.
Há um esperar da morte
Porque hoje é sábado.
Há um garoto na praia
Porque hoje é sábado.
Há uma adolescente viajando
Porque hoje é sábado.
Há um passeio em Copacabana
Porque hoje é sábado.
Há um poeta mendigo
Porque hoje é sábado.
Há uma exposição de bicos de pena
Porque hoje é sábado.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.
III
Por todas essas razões foste gerado na biblioteca circulante,
Ó Caderno Literário.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da simbiose do popular e erudito
E depois, do documentário da Susana Moraes,
e depois, do filme Orfeu Negro
E depois, da gênese da bossa nova e do sarau em casa de Amália
Melhor que Vinicius fosse homenageado.
Na verdade, o Caderno era necessário
Mesmo nós, autores, seres sonhadores, malabaristas das letras, que queremos
como os imortais, esforçadamente e nunca saciados
Nós que carregamos nas palavras o vórtice supremo da paixão.
Bem procedeu a Oficina Literária em não descansar durante
os seis últimos meses
Um ano lutou a Diretoria pela semana viniciana
Descansasse Vinicius e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez letras infinitamente pequenas de partículas subjetivas
em queda invisível no porão do clube.
Não beberíamos das águas que acariciam Ipanema e das elegias ao amor
Não teríamos parido em dor nem suaríamos o escrito nosso de cada dia
Não sofreríamos males de criatividade nem desejaríamos
o linguajar do próximo
Não teríamos leituras, reuniões, releituras, gravuras, editoração
e uísque no lançamento.
Esta é a indizível beleza e harmonia do homenageado
e do Club Athletico Paulistano em núpcias
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chega de saudade
A paz e o poder maior do poetinha e dos associados em colóquio
A pureza maior do artista e dos apreciadores em comunhão.
Ao revés, precisamos ser racionais, frequentemente dogmáticos
Precisamos respeitar as situações morais e estéticas de cada autor
Ser sociais, receber com humildade a crítica, rir sem vontade
e até elogiar sem vontade
Tudo isso porque Vinicius cismou em não descansar
depois de um século
E para não ficar a data esquecida
Resolveu o Cultural fazer este Caderno Literário
à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.
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chega de saudade
SONETO DA INFIDELIDADE
Giselda Penteado Di Guglielmo
De tudo, ao meu amor serei atentoAntes, e com tal zelo, e sempre, e tanto…
Não posso ser atento ao teu amor
Se não me doas esse teu encanto
Que susta em meus olhos todo o pranto
Com o puro perfume de tua flor.
Não posso ser fiel se não desejas
Que em teu louvor eu cante o meu canto
Ria meu riso mesmo em desencanto
Por sentir que não sou quem mais almejas.
Mas se um dia pensares no adeus
Verás que fui infiel por muito amá-la
E voltarás então aos braços meus.
Para que eu possa dizer em verdade
O meu amor virá sim resgatá-la
Sem a marca da infidelidade.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
PARA A MOÇA NA JANELA
Maria Helena Nogueira de Almeida
Que o sofrimento vem, essa saudadeDe estar perto, se longe, ou estar mais pertoSe perto,...
Uma casinha branca no alto da ladeira com gerânios no jardim. Do prédio
em frente eu admiro a moça na janela. Feições orientais, cabelos compridos de
não se enxergar o fim, beleza feita para o deleite dos humanos. Junto dela uma
gata persa com olhos de um azul noturno. Rivais na formosura, na languidez dos
gestos. A moça imita a gata e a gata imita a moça. Duas imagens da melancolia.
Rapazes passam debaixo da janela e olham a jovem. Querem flertar, pedir
namoro. Ela os ignora. E eu me apaixono à distância, menino tímido. Meu
coração é uma pira à espera de uma tocha, um toque para acender. É o meu
amor juvenil despertando para a vida.
Lanço o meu voo nas asas de um condor imaginário que me faz sonhar.
Em meus devaneios a moça convida-me para sua casa. Entro, ela veste túnica
branca esvoaçante, nos pés sandálias com enfeites de pedrarias. Na sala a melodia
de um samba-canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Convido-a para dançar.
Estamos enlaçados, ela canta a primeira linha da música em meus ouvidos: A insensatez que você fez coração mais sem cuidado. De seus cabelos desprende-se um aroma
de jasmim. Depois sentamos num sofá de veludo azul, oferece-me champanhe
numa taça translúcida como asas de borboleta. Coloca a cabeça em meu ombro,
a gata aninha-se enrolada aos meus pés. Quero falar de amor. Dizer que ouço
estrelas com Bilac. Ela põe os dedos em meus lábios, pede silêncio.
Adormeço e assim eu navego ancorando meus sonhos em cada porto onde
descanso. E vou perseguindo ora a moça, ora a gata. E elas se escondem nas
sombras e voltam e somem até que tudo se desfaz nas brumas da madrugada.
Abro os olhos, a moça sorri para mim, recolhe a gata e fecha a janela.
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chega de saudade
O ESPELHO DE NARA
Ricardo Lahud
Quem és tu Quem és Serás a sombra que me espera Ou és a breve primavera A mariposa que se pousa E que se vai
O besante celestial, indo-se, alonga-lhe a sombra. De pé, afugenta os grãos
de areia da pele em brasa e faz dançar os cabelos lisos, acobreados. Os olhos,
de qualquer tom que sejam, permanecem camuflados por lentes escuras.
Amarrada à sua cintura, a canga, quadrado de tecido fluo e translúcido,
revela mais do que esconde do corpo esculturado em tardes menos gloriosas.
Sorri apenas para si mesma, dando a impressão de flertar com todo o gentio.
Da brisa que sopra do mar empresta o balanço e a velocidade no caminhar.
No botequim, vislumbrando o oceano, jovens desfrutam o poente da
irresponsabilidade. O chope é sorvido devagar, o dinheiro é contado. Sobre
a mesa, fria flácida abandonada, uma última batata frita. Com um meneio
de cabeça um macho avisa ao outro – Olha – que responde com um assovio
mudo – Que coisa mais linda – e enquanto ela vem e passa, cheia de graça,
cervizes são torcidas e contorcidas. Uma morena estapeia o par, tal qual uma
professora do passado usaria a palmatória, interrompendo a epifania. Ela,
a namorada traída pelo imaginário, resolve pedir para si uma outra tulipa
gelada, economizara na erva, seu amigo traficante está escondido com medo
de morrer.
Pipocam aplausos e vivas aos exóticos tons violáceos do arrebol com
os quais a divina paleta encerra o dia. Entre os que aprovam o espetáculo
três senhoras, que poderiam ser versões femininas dos anões da Branca de
Neve, interrompem a caminhada no sentido do Leblon para comentários
encomiásticos. A de mais idade, chapéu cabano protegendo as sardas, sonhou
na adolescência ser cantora lírica e, até hoje, gorjeia árias em família. Um
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
par de ciclistas em trajes extraordinários, androginia marcada pela magreza,
desliza em sentido contrário. Os carros são ultrapassados em velocidade por
um senhor bronzeado e barrigudo vestindo uma minúscula sunga amarela.
Um menino esquálido de dez anos que não aparenta mais do que sete dribla
catimbeiro os automóveis da Avenida Vieira Souto. Dorso nu, calção velho,
chinelo de dedo, cabelo cortado à maquina, foge, mas ninguém o persegue.
Num andar acima, em tempos outros, no terraço de onde se enxerga a
rebentação e além, um João não percebe o barco que vai, hipnotizado pelo
ritmo das vigorosas braçadas do nadador. O sol, em bemol, lança ao mar as
sombras das montanhas, mas Lobo tem olhos presos no laranja da lua. Leão
se apressa em trazer os aperitivos. O melhor amigo do homem, devidamente
engarrafado, se joga, em cachoeiras, sobre rochas translúcidas. O Tom correto
ao piano enche o ar de poesia. Vinicius escapa do convite da cangorça para
o tango – je ne danse que la samba – de olho na gata no cio esparramada no sofá
sobre o jovem melenudo. Entre mim e esse reflexo há muitas diferenças, sou
mais alto, mais magro, mais belo, mais jovem, o espelho está com defeito.
Chega de saudade, na realidade, isso é que é vida, poetinha, boa música,
bebida estrangeira, mulheres de todos os tipos. Luxo e luxúria, que tudo mais
vá pro inferno.
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chega de saudade
SAMBA E BÊNÇÃO
Suzana Montoro
Há um renovar-se de esperançasPorque hoje é sábado.
para Ricardo Lahud
Abre os olhos e se vê desperto. Consulta o relógio na mesa de cabeceira,
espreguiça braços e pernas como uma saudação e, apesar do adiantado das
horas, contenta-se em fazer um pouco de cera antes de sair da cama. Uma
preparação para o dia que será pleno. Refaz mentalmente os passos rotineiros,
o banho, o desjejum, a escolha da roupa antes da ducha. Meticuloso. Um ritual
familiar que se desencadeia quase que por conta própria. Até o momento de
sair. Quando põe os pés na rua, abre-se em possibilidades. Hoje o trabalho é
outro. Porque o dia é sábado. Dia de caça e de caçador.
Ao fechar o portão e deixar a casa, para de raciocinar. Vai aonde pés e faro
o arrastam. Olhos atentos, sensações à flor da pele. Tudo lhe causa alguma
impressão e é por essa veia sensorial que se deixa conduzir. Apalpa as calças na
região do baixo ventre, tudo nos conformes. O movimento de gente aglomerada
o detém. É a entrada de uma espécie de galpão. Lugar novo. Fecha os olhos,
respira profundamente e se encharca do odor peculiar que lhe dá por instantes a
sensação de derretimento. Como se a barriga se desmanchasse. Prazer é o nome
que dá a isso. Porque o dia é hoje.
O interior é amplo, um salão com bancos, algumas mesas e cadeiras e
muita gente de pé por enquanto. Ainda o burburinho da espera. Num palco
improvisado aos fundos, os músicos ocupam seus lugares, ajeitam instrumentos.
A cerimônia começará em poucos minutos. Primeiro vem a preleção do pastor,
o rito das oferendas e agradecimentos, o recolhimento do dízimo, depois os
cânticos e danças ensaiadas, mas é só quando o cadenciado dos corpos vai
repetindo-se de maneira automática que o momento da catarse chega e aí a
folia toma conta. Os ritmistas embalam o tom e tudo é permitido. Porque o dia
é para isso. É sábado.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Escolhe a mulata mais farta de ginga e carnes e vai embolando passos junto
a ela. Tudo é samba e oração. Em meio à algazarra, o pastor clamoroso segue
a pregação em altos brados, também ele inebriado da batida do tamborim e
dos gemidos da cuíca. Porque é sábado e porque os corpos suam e porque a
consagração é coletiva, as pessoas vão juntando-se como se quisessem formar
um só corpo, pernas e braços confundidos e amalgamados, ele então reconhece
o momento, enrosca-se na mulata abundante e em meio ao frenesi de coxas e
quadris rebolantes, tira do bolso a pequena navalha e abençoa certeiro a virilha
da mulher, os dois estatelam olhos em êxtase, ele encharcado de leitoso prazer,
ela banhada de escarlate e surpresa.
Sai silencioso como entrara, o casaco na frente do corpo para esconder a
marca dos humores derramados. De volta ao lar e com a sensação de dever
cumprido, delicia-se ao ritmo do samba que segue ecoando no corpo, misturado
à fadiga do prazer. Porque o dia é sábado e a dor é nenhuma. E não há mais nada
a fazer, apenas aguardar a perspectiva do domingo que anunciará o próximo
sábado, dia de samba e de bênção.
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chega de saudade
ASTRONAVE
Danielle Martins Cardoso
E o futuro é uma astronaveque tentamos pilotarNão tem tempo, nem piedade,Nem tem hora de chegar.
Tio Vinicius, meu nome é Alice. Adoro a música Aquarela. O sol
amarelo, o castelo com seis linhas, dois riscos e o guarda-chuva, desenho
tudo enquanto mamãe canta. Colori minha luva de vermelho e pinguei tinta
preta no papel. Filha, sua gaivota virou urubu, ela falou. Ficou borrado,
sem cabeça. Mesmo assim voou bem alto e encontrou o avião rosa-grená.
Foram para a terra das ondas gigantes. Não quero que o avião pouse, tio. E
o menino pulou o muro, desenhei uma escada grandona. O barco a vela eu
não sei fazer, mas o mundo é fácil. Peguei a laranja na cozinha e embrulhei
nela papel azul.
Tio, tenho um montão de apelido. Cada hora inventam um diferente.
Come-come, cuca, gule-gule, futrika, maria-vampira, sharapova – esse eu
gosto – ninguém fala Alice. E piorou depois que comecei a andar. Carlitos,
ficam apontando. Mas eu sou menina! E quer saber o último? Mão-de-obra.
Vamos com a mão-de-obra? Vovô pergunta, rindo.
Poetinha é apelido bonito. E ontem mamãe te chamou de cachorro. O
Fred é branco e gorducho, tem cara de bravo, mas brinca comigo. Seu Jubi,
o moço que passeia com ele, falou que o Fred balança o rabo quando ouve
samba, bebe cerveja e só gosta de mulher. Mamãe mandou seu Jubi dar
uísque pro Fred e ficou chamando: Vinicius, Vinicius, Vinicius. O Fred latiu
e seu Jubi não entendeu nada.
Acabei de chupar minha laranja, é pra comer o mundo inteiro, mamãe?
Ela me prometeu Canto do Batuque depois do café. Lá toco violão, tambor,
xilofone e flauta. É muito legal. No final a gente deita para ver as bolas de
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
sabão. Tia Clara sopra uma varinha e aparecem mais de vinte. Verde, rosa,
azul, corro pra lá, pra cá, tento pegar todas. Não consigo. Elas somem. Fico
rindo, mas no final choro. Ah, tio Vinicius, você que é um poeta mágico e
pilota a astronave tem que me contar: para onde vão as bolinhas de sabão?
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chega de saudade
Dormir é chato quando a mãe diz estar na hora
Pegar no sono, tem dia que demora
Descanso é obrigação sagrada
Mas aventura mesmo acontece de madrugada
Não tem ninguém no mundo
Com insônia ou sono profundo
Sem viagens de arrepiar
Depois que vai se deitar
Sou um colchão fofoqueiro
Conto os sonhos do meu companheiro
Bravo acho que não fica
Só se eu der a dica
De quem passou o dedo no doce
Ou fingiu que não fosse
O autor do plic no vidro do vizinho
Vinicius é menino leve, anjinho que flutua
Entre minha maciez e o mundo da lua
Não sabe que sei tudo
Ainda por cima acredita que sou mudo
SONHOS DE ANJO
Renata Julianelli
Giro um simples compassoe num círculo eu façoo mundo que descolorirá
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Os lugares e pessoas com quem brinca
São segredos debaixo do lençol
Mas como não aguento, jogo o anzol
Conversa com São Jorge, São Pedro e São Longuinho
Até de ET é amiguinho
Apronta, fica feliz
Conhece a foca que põe a bola no nariz
Não falta pra ele namorada
É o rei da garotada
Vai e vem como nave espacial
Famoso, é visto em rede nacional
Sai voando pela janela
Em arco-íris de aquarela
Tem lista de prêmios por seus afazeres
Parece possuir superpoderes
Ganhou tanto troféu que não caberia no céu
Já deu de astronauta, cantor e poeta
Ser alegre e não ser triste é sua meta
Duro para mim, é aguentar o travesseiro
Aquele traiçoeiro
Disputa comigo o posto
De confidente preferido, o tal metido
Mas tudo que conto, tenho direito
É no meu aconchego seu sono perfeito
Cada história sonhada me seduz
Quem não gostou, sai de fininho e apaga a luz.
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chega de saudade
DEDICATÓRIA
Rogério Matarazzo
É claro que a vida é boaE a alegria, a única e indizível emoção
— Vi-ni-ci-us.
— Como?
— Vinicius, porra! Meu nome é Vinicius.
— Não me interessa o seu nome, o que sei é que o senhor é muito malcriado.
— Lamento, eu não quis ofendê-la, mas já faz mais de um minuto que
estou a repetir o meu nome, e a senhora só conseguiu entender na hora em
que eu disse porra.
— De novo? Queira se afastar do interfone, senão eu chamo a polícia.
— Não... não. Por favor, não faça isso. Sou apenas um pequeno poeta que,
embora etilicamente alterado, tem nas mãos algo para a linda mocinha que
acabou de entrar aí.
— O senhor é mesmo um tarado, o que quer com a minha neta? Saiba que
ela é menor de idade.
— Nada, nada. Acontece que ela é maravilhosa, e toda vez que passa lá no
Veloso ficamos todos enfeitiçados.
— Veloso, quem é esse?
— Veloso é um bar, bastante discreto, que eu e um grande amigo
frequentamos aqui em Ipanema.
— Minha neta também frequenta esse bar?
— Não, ela vai para a praia e passa por nós cheia de beleza, esbanjando
alegria por toda a Montenegro.
— Quer dizer que ela anda flertando com marmanjos? Ah, ela vai ver só!
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
— Fique tranquila, ela não dá a menor pelota.
— Ainda bem, pois levaria uns bons petelecos.
— Por favor, nem pensar, eu não aguentaria tamanha culpa. Aliás, vou
saindo antes que isso tome proporções bíblicas.
— Mas, o senhor disse que tinha algo nas mãos.
— Tenho sim, é um poema que escrevi. A propósito, como ela se chama?
Gostaria de colocar uma dedicatória.
— Ora bolas! Se ao menos viesse com uma caixa de bombons. Poesia,
quem quer saber disso?
— Está bem, vou embora, mas... o nome dela, só para guardar num
cantinho macio da minha memória.
— Nem pensar.
— Mas eu preciso de um nome a quem dedicar meu poema.
— Quer o meu?
— Não, quero o dela, da garota.
— Isso mesmo.
— Isso mesmo o quê?
— Garota.
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chega de saudade
DA VARANDA
Lilian Gattaz
... eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos... e todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas, serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
, ainda que a chuva anunciada se recolha em branco e o veleiro das 6 não
aporte pontual e a onda retardada não se cumpra na arrebentação e a carta
dos ventos não estime um noroeste a invadir canais e a lua nem goze ao excitar
marés e a preamar não for prenúncio de castelos derretidos e o vento se curve
renitente frente à envergadura irritante da palmeira e o sol se imponha no mar
pra que gaivotas entendam que brincadeira tem limite e a cotovia testemunhe
a colheita de sonhos matinais e a palavra teime absoluta pulsando em binário
até furar meu cérebro e um poema seja expulso pelo o que há de fórceps em
toda e qualquer pena, ainda assim eu estarei aqui, paralisada frente a cínica
obviedade das esperas.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
inundo de esperança a madrugada
salpico de sonhos a espuma
derramo toda a minha fé
no marulho da calmaria
(toctoctoctoctoc)
mesmo na lua vazia
ajoelho nessa imensidão
porque não há dia que não me tarde
se não balaio cheio
um sorriso perolado
num retalho de fazenda
numa concha de saudade
TRAINEIRA
Luiz Antonio de Queiroz
Quando lanças tua rede lanças teu coração com ela, pescador!
37
chega de saudade
SE VOLTASSES PARA MIM
Heloisa de Queiroz Telles Arrobas Martins
O tempo... sombras de perto e sombras na distância—vem, o tempo quer a vida!
Se voltasses para mim
Apoiaria minha cabeça em teu colo
Com olhos fechados de entrega
Não sentirias o peso de minha dor
Pois ela se esvairia
Como rio que se funde ao mar
Se voltasses para mim
Tremeria inebriada pelo cheiro de tua pele
Que inundaria meu cérebro de calor
Não nos perturbaria o alvoroço do tempo perdido
Pois o substituiria
A serenidade do reencontro
Se voltasses para mim
Enlaçarias a minha mão
E sorriríamos simplesmente
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Não sentirias o peso de meu corpo
Pois eu o abandonaria
Dentro do teu abraço
Se voltasses para mim
Seria fugaz o longo interlúdio
Como estrela cadente atrás da montanha
Não nos machucaria a densidade da separação
Pois dançaríamos em uníssono
Muito além da música parar
Se voltasses para mim
Teu afago me tingiria de rubro
E aqueceria minha carne e sangue
Não teríamos mais fronteiras
Pois como canto gregoriano
Soariam nossos planos
Se voltasses para mim
Tua presença transbordaria minha alma de riso
E me afogaria na plenitude de tua cumplicidade
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chega de saudade
Não nos perturbaria nenhum ruído
Pois habitaríamos uma estrela
De magia e realização
Quando voltares para mim
Será para sempre
E nosso tempo
Infinito
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Caro Vinicius
Quando você foi escolhido como tema deste livro do grupo literário do
Paulistano, fiquei surpreso. O quê, o poetinha, o Vinicius amoral, o Vinicius
dos vícios, ao lado de Camões, Dante, Cervantes? Seu nome me pareceu
deslocado. Eu teria preferido Shakespeare, Thomas Mann, ou o nosso
inigualável Machado de Assis. Resolvi: não participarei.
Muitos colegas gostaram da indicação do seu nome, lembrando que sua
memória lhes traz agradáveis recordações. Não é o meu caso, pois só cheguei
ao Brasil aos onze anos de idade, fugindo do nazismo e sem jamais ter ouvido
falar de você. Daí, talvez, o preconceito.
Seu nome significa boemia, bares, poesia, música, cigarros. Doses
oceânicas de uísque, o seu cachorro engarrafado. Mas sua vida, Vinicius, foi bem
desengarrafada. E, mais que tudo, havia as mulheres – muitas mulheres. Amigas,
esposas, ex-esposas, amantes, ex-amantes. Um boa-vida. Está certo, um boa-
vida que estudou literatura em Oxford, foi diplomata do Itamaraty em Los
Angeles, Roma, Paris, Montevidéu, mas um irresponsável. Nunca pensou nas
consequências dos seus atos, gastando dinheiro a rodo e namorando as mulheres
sem se importar com as esposas. Autor de uma obra gigantesca em verso, prosa
e dramaturgia, você foi uma pessoa plena de criatividade e vivência.
Tudo que eu gostaria de ter sido e não fui. Estudei sua vida e sua obra.
Admiráveis. Você casou nove vezes, e eu, uma – e fracassei. Teve um monte de
filhos, e eu, um. Foi o homem certo na época certa, pois nos dias de hoje sua
CARTA A VINICIUS
Hans Freudenthal
Tristeza não tem fim,Felicidade sim.
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chega de saudade
existência teria sido menos afortunada – talvez apoiaria o funk, como presumiu
nosso amigo Carlos Eduardo. Milhões de conhecidos, milhares de amigos.
Amou centenas de mulheres, e eu, tão poucas – e a maioria nem ficou sabendo
da minha paixão.
Inveja? Com certeza. E agora, relendo suas obras mais famosas, sou
tomado por sentimentos que prefiro esquecer, de tantas coisas que poderia ter
feito mas não fiz. Vá embora, Vinicius, você me emociona, faz chorar.
E não vou escrever sobre você.
Sinceramente,
Hans
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Para começar a viver um grande amor é preciso que ele tenha dezoito
anos. Ela, uns quinze.
É bom esclarecer que os dois já tinham se percebido antes, muito antes, na
rua principal, e prestaram atenção um no outro. Ela ainda se recorda, foi num
daqueles dias que antecedem o Carnaval. Quase certo que passaram, se viram
e olharam para trás.
Quando, anos mais tarde, se fitaram com olhos interessados, ela se lembrou
que naquela primeira vez teve ciúmes dele, assim por nada. E desde então
ficou com sua imagem estampada na memória.
Ele deve ser alto como convém a um moço bonito e ter maneiras educadas.
Se parecer um pouco tímido e arredio, isso nem tem importância.
Sendo alto e bonito como um príncipe, e ainda carismático e gentil, ela irá
gostar dele antes mesmo de saber exatamente como ele é. E gostando dele,
quer ser sua namorada.
Um dia, ele irá confessar que quando a viu, teve vontade de cantar, como
se fosse sua a música, – Se você quer ser minha namorada, ai que linda namorada...Pode ser que a moça seja bonitinha também. Pode ser. Se até então ela não
souber, vai ouvir dele o elogio e se convencer disso.
É natural que eles queiram se conhecer melhor, conversando e gostando de
estar juntos. Cada vez mais. E se conhecendo e ficando juntos, se encantam
um com o outro. Já vivendo um grande amor.
Para viver o grande amor é preciso saber que não existe amor sem fidelidade; ter
como propósito agradar, ser verdadeiro e romântico.
PARA VIVER UM GRANDE AMOR
Maria Helena F. Vieira
Quando a luz dos olhos meus eA luz dos olhos teus resolvem se encontrar
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chega de saudade
Contando e ouvindo os acontecimentos relevantes um do outro, e também
todos os outros, ela se surpreende ao saber que ele é louco por esportes e sabe
jogar futebol.
Para viver um grande amor é preciso que sejam de bem com a vida e
queiram se ver a cada momento. A essa altura ele já deve ter alforriado alguns
fantasmas dela e inaugurado um tempo de otimismo. Ela se aquieta, deixando
ao longo do caminho as armas e a munição. Porque para viver um grande
amor é preciso ser contente.
Com toda a atenção dele, ela se sente o centro do mundo.
Trocam presentes e palavras carinhosas e ela lhe dá o disco, – Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar. Maysa canta Vinicius e eles pensam
neles mesmos.
Ouvindo outras músicas, – concordam que todo grande amor só é bem grande se for triste, – não combina em nada com o romance que vivem.
Ela, insone, pensa nele espiando no fundo da noite.Ele pensa nela como praia, mar, neve, nuvem e o céu naquela hora em que ainda não
escureceu de tudo.Juntos fazem planos surpreendentes, com a certeza de que se cumprirão.
E eles se casam numa manhã chuvosa, num dos últimos dias de dezembro,
pois querem começar o ano juntos. Numa terça-feira que parece todos os sábados do mundo. Com pouca pompa e alegria pura.
E presenteados com a graça maior de ter seus filhos, brincam de inventar cirandas e contar histórias de bichos.
Suas datas principais vão passando rápido como os natais antigos da
infância.
E enquanto assistem mais um pôr-do-sol, caminham com passos não tão
lépidos por sua rua, que ao longo dos anos, mandaram ladrilhar com pedrinhas
de brilhante.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
CAPOEIRA
Maria Lúcia Perrone Passos
Quem diz muito que vai, não vaiE assim como não vai, não vemQuem de dentro de si não saiVai morrer sem amar ninguém.
Aquele que diz vou, não vai.
Não vai, não virá, não vem.
Aquele que diz dou, não dá.
Se der, só daquilo que já
não tem.
Quem jamais diz um não,
meu bem, é pro sim não dizer.
Jamais dirá sim. Alguém
um sim há de ouvir?
Ninguém.
Aquele que diz ter, não tem.
Aquele que diz sou, não é.
Não vai, não vem,
não dá, não tem,
não é ninguém.
45
chega de saudade
Nessa linha Horácio começa a nos falar de música. MPB nos bate-papos
culturais de terças, no clube. Brasil, país multicolorido, terreno fértil que
adapta ritmos africanos em outros cantos, explica ele. É o samba, que surge
no começo do séc. XX e passa a fazer parte de nossa identidade nacional.
No Carnaval encontra pontos de verdadeira glória com sambas-marchinhas
a levar o povo às ruas. Pelo Telefone do compositor Donga, é o primeiro deles.
Gravado por Pixinguinha, ganha sucesso e exporta o novo e polêmico gênero
musical mundo afora, a partir de 1917. Letras e refrões simples retratam
a natureza mestiça do povo sedento de alegria em sambas populares, pela
facilidade de assimilação musical: O chefe da polícia pelo telefone manda lhe avisar, que a Carioca tem uma roleta para se brincar ai, ai, ai...
Em 1928, a primeira Escola de Samba organizada: a Deixa Falar, na Estácio.
Os desfiles de rua só acontecem quatro anos depois, na Praça Onze, com o
apoio de Mario Filho, dono do jornal Mundo Esportivo. Ele foi o grande
patrocinador das escolas, premiando a Estação Primeira de Mangueira, já em
verde e rosa, como grande vencedora do carnaval de 1932.
— Ruas em Cores, nos fala Horácio. Nunca se viu tantos tons em um
movimento social que identificasse seus grupos, cor a cor. Verde e Rosa,
Azul e Prata, Vermelho e Branco, Amarelos que não param de crescer ano
a ano.
A história não para aí, a partir de 1957, um grupo de músicos e poetas
influenciados pelo jazz americano remodela o samba com uma batida
sincopada, a da Bossa Nova, encontrando ferrenha oposição da velha guarda.
Betty Wey
O seu balanço é mais que um poemaé a coisa mais linda que eu já vi passar.
BIS
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes encabeçam o time. Difícil
adaptação. Confusões de elitistas que não reconhecem a nova música, como
MPB.
— Toda mudança causa reação. E essa foge às regras da tradição, nos
diz Horácio. Ele nos fala que a nova música desenvolve-se em quatro vozes
e tons dissonantes harmonizam-se em acordes independentes à melodia que
corre solta na primeira voz. Frases melódicas são tão claras que se identificam
com a técnica dos prelúdios sofisticados de Bach. Os sons causam estranheza
e desagradam no início. Eles insistem. A Tom e Vinicius segue o time: Baden
Powel, Carlos Lyra, Menescal, Bôscoli, Nara Leão, Chico Buarque, Edu Lobo,
cada um a acrescentar um pouco mais de bossa a algo que sabiam fazer bem:
Música. Eis aqui esse sambinha, samba de uma nota só...Nessa época, década de 50, bossa era gíria dos cariocas que queria dizer:
ginga, jeito, maneira, modo. Se alguém destacava-se em alguma coisa original,
fácil e simples de se fazer, dizia-se que tinha bossa: bossa de diretor, bossa de
modelo, bossa de paquerador, e assim por diante. Mas a que ficou eternizada
foi a Bossa Nova, que nasceu em oposição a tudo que estava superado e velho
na música popular brasileira. Letras melancólicas, ritmos a la bolero, valsas e
serestas em pleno século XX? Cadê a bossa, diziam? E ela chega toda cheia de
graça, menina leve, solta e encanta!
— E qual é a sua? pergunta Horácio.
— A Bossa Nova também é nossa! Fala o conselheiro Marcelo Ória. Em
1975, o clube acendeu para recebê-la. Salões lotados, mulheres lindas a espera
do Poeta e sua bossa, conta.
— Vinicius de Moraes veio ao clube?
— Pois é, a convite do nosso presidente Luiz Ferraz do Amaral, fez o maior
sucesso por aqui. Querem ver fotos dos arquivos?
Retratos esmaecidos mostram Vinicius e Toquinho no palco do
Paulistano acompanhados por um grupo de músicos e três cantoras, para
ele desconhecidas. Pedimos mais e nos conta que Vinicius inicia a vida
profissional como advogado, já diplomata viaja a Paris onde encontra
inspiração para suas poesias. De poeta a músico com alma de filósofo, um
pulo. Rio de Janeiro o cativa, Ipanema o seduz.
— Incrível ele aceitar o convite do clube. Vocês não acham contraditório
47
chega de saudade
com a sua maneira displicente de ser, cantar para uma plateia tão elitizada na
época? diz Horácio.
— Acreditem: ele aceitou, apesar de achar que aqui só encontraria reaças,
nos fala Marcelo.
Vinicius saudou amigos com Saravás, encantou a todos com cantos, contos
e prosas, aproveitou o bom uísque CAP, rótulo preto, e deixou todos com um
gosto de quero mais: Vai minha tristeza, e diz a ela, que sem ela não pode ser...— Parece que foi ontem, continua o decano Marcelo.
Ele chegou acompanhado de Mariana, jovem senhora que poderia ter sido
sua décima esposa! Aparentando uns 40, trinta os separam em contrastes: tão
longe, tão perto; primavera, outono; nostalgia, esperança no vaivém melódico
do romance eterno. Não deu tempo, ele se foi um ano depois.
— Não, Marcelo, o poeta continua vivo entre nós, com sua música eterna!
É o grande responsável pela mudança radical da poesia na MPB.
Personagens evoluem: a mulher traidora, vulgar, vilã e vagabunda dá
lugar à garota bonita, cheia de graça, a caminho do mar. A mulher amada e
linda rejuvenesce e ecos de juventude radiosa recheiam os novos tempos que
acompanham 50 anos de sonhos com a garota de Ipanema.
— Bis, Vinicius. Bis!
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Hoje tentei fazer uma ligação para o céu.
Preciso trocar umas ideias, ouvir sua voz. Hábitos que, como sombras,
marcam nossas almas; afinal falávamos todos os dias só para jogar conversa
fora. Tudo começava cedo. Você ou eu nos ligávamos e dizíamos:
— Bom dia. Pensei no que falamos ontem e achei uma saída para aquela
situação que você comentou. O que vai fazer mais tarde?
Coisas de rotina, pois quando somos amigos tudo é pouco urgente e sempre
muito importante. Na última vez que nos encontramos, percebi com tristeza
que nosso diálogo era agora um monólogo. Acho que a mudança me atingiu
mais que a você. Como saber.
Depois tudo ficou silencioso. Os dias esticam-se longos e a todo momento
são desapontados pela sua ausência. A falta dos pequenos gestos é dolorosa
demais e a rotina pede que minha criatividade seja mais rápida do que a
sombra da tristeza. Esqueça meu choro. Ele sempre acontece quando algo faz
com que eu me lembre de nós. Sei que vai passar. A compreensão faz parte
das lições aprendidas enquanto perambulo sozinha pelos labirintos abissais
da alma.
Vivemos como eternos e não o somos. Há momentos em que inconformada
com o ciclo da vida transgrido a aceitação do inevitável e, como uma viciada,
anseio pela sua voz. Anos passam e como autistas criamos distância e optamos
por não aprofundar assuntos de difícil solução. Por vezes, sua presença é
tão forte que esbarro no seu perfume e me delicio na lembrança das nossas
histórias. No contraste, tropeço em momentos onde tudo é distante e nem
CANÇÃO DE ENGANAR TRISTEZA
Bia de Castro Oliveira
Se a tristeza um dia Te encontrar triste sozinho Trata dela bem Porque a tristeza quer carinho
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chega de saudade
mais me lembro de que um dia existimos juntos. Tudo parece um sonho.
Complicado é explicar essa dor tão real que me pega sem aviso. Dizem que
me vê de onde está. Será que tem vontade de estar comigo ou já me esqueceu?
Só sei de mim e tenho saudades, longas e indefinidas saudades.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
NO REINO DA ALFACE
Maria Júlia Kovács
Não comerei da alface a verde pétalaNem da cenoura as hóstias desbotadasDeixarei as pastagens às manadasE a quem mais aprouver fazer dieta.
A beleza é fundamental escreve e canta Vinicius. Vale para as redondinhas?
Nasci na época errada. Se Rubens tivesse me conhecido, seria sua musa. Minhas
formas arredondadas o teriam encantado, muito mais do que a Modigliani.
Vivo no reino da alface. Ainda bem que gosto deste verde com bastante
azeite, sal e complementos. Nada como um delicioso Gorgonzola. Procuro em
vão nos manuais de dieta esse complemento.
São curiosos esses manuais. Propõem praticamente a mesma coisa. Coma
de tudo um pouco, menos gordura, açúcar e carboidratos. Você não deverá ter
fome, só fominha, como dizia minha querida irmã Verônica, sempre magra.
Coma de três em três horas, não chocolate ou pão com queijo. Encha seu
tupperware de acelga, alface, abacaxi, tudo com A. E nem pense em não comer,
você come... só estas coisas e emagrece.
Carne, ótimo! Agora vou conseguir comer algo substancioso. Bela ilusão. O
bife frito em zero gordura tem que ter o tamanho de sua mão, fechada. Com os
dedos abertos só alface. O ovo foi ressuscitado, que bom. Uma boa omelete, ou
mesmo ovo cozido. Cai no estomago vazio e preenche. Aí leio a reportagem que
os atores e atrizes para emagrecer comem apenas a clara, dispensam as gemas.
Aí só a Deborah Secco, o seu sobrenome vem a calhar, magérrima.
Terminada a Páscoa penso em ovos, de chocolate como a mente rotunda
logo conclui. Merece o prêmio Nobel quem inventar um chocolate de
alface. Não é tão difícil, cacau, leite, açúcar – acho que a alface não deve
atrapalhar. Se coelho come alface e bota ovo de chocolate alguma química
especial ocorre.
51
chega de saudade
Para finalizar esta choradeira, recorro à máxima bancária ao contrário –
gaste mais do que ganha. Não sei por que uso a máxima dietética no banco e
a máxima bancária na dieta.
Escrever emagrece. Quando a inspiração travar, mastigue alface e não
engula.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
QUEM CALA CONSENTE
Christina Tibiriçá
Voltou a esperançaÉ o povo que dançaContente da vidaFeliz a cantar
O Bloco de Ipanema já seguia pela Vieira Souto, em direção à Visconde
de Pirajá. Os foliões ondulavam tal serpente lenta e sensual encobrindo ruas e
calçadas com sua pele multicolorida. Piratas, bailarinas, ciganas e malandros
gingavam irreverentes. Suas vozes entoavam marchinhas dos anos 70,
entrecortando o som dos pandeiros, bumbos e trompetes.
Encharcada de suor, eu tentava me desfazer de pedaços da fantasia
de colombina grudados na minha pele. Neste momento, eu a vi. Braços
musculosos envolviam seu vestido prateado e, ainda que a peruca loira e
os longos cílios postiços a rejuvenescessem, era evidente: o rapaz a seu lado
estava saindo da maternidade, à época em que se casou com Tio Osório.
Sepultado há menos de um mês com toda a glória e pompa destinada
aos diplomatas aposentados, Tio Osório, irmão mais velho de mamãe, foi o
tio mais odiado. Ficou órfão na adolescência e se tornou o esteio da casa. A
sobrecarga de responsabilidades na juventude o transformou em um homem
severo e amargo. Nunca o vi sorrir. Tapinhas na cabeça eram os únicos
gestos de carinho com os sobrinhos, recebidos sem qualquer reclamação
pelo medo que nos infundia.
Na família, sempre se comentou furtivamente que ele tinha sido o mentor da
ideia de pedir aos militares que expulsassem Vinicius de Moraes do Itamaraty.
Limpamos a carreira livrando-nos dos alcoólatras, pederastas e subversivos,
dizia envaidecido, coçando o bigode, que lhe dava um ar de ditador nazista.
Tia Zulmira era sua sombra, ficava sempre atrás dele, guardando uma
distância comedida. Ria de suas piadas e movia a cabeça afirmativamente
53
chega de saudade
quando ele vociferava contra os comunistas. As ordens dele eram dadas pelo
olhar. Havia olhares para todos os momentos: quando deveria servi-lo à
mesa, ficar calada ou se despedir e ir embora.
No enterro, coberta de negro, agarrada ao caixão, chorava com desespero
e murmurava para o defunto: Minha vida acabou, amor. Lembro-me de ficar
impressionada com seu aspecto transtornado e as profundas olheiras que
marcavam seu rosto.
Meus sentimentos com relação à Tia Zulmira foram se alterando ao longo
do tempo. O desprezo que eu sentia na minha adolescência, em razão da
obediência incondicional ao marido, se transformou em compaixão e depois
em assombro. Eu podia entender a submissão e o respeito, mas jamais o
amor. Até aquela terça-feira de Carnaval.
Apressei o passo, tentando me afastar de Tia Zulmira. Acreditava que
encontrá-la naquele momento seria como desnudá-la no meio da multidão,
o desmascaramento da esposa fiel e apaixonada, o fim de uma encenação
teatral que havia durado uma vida. Mas a multidão enlouquecida com o final
do refrão de Máscara Negra impediu minha passagem e quando percebi estava
ao lado do casal folião, de quem eu procurava escapar.
Como era impossível fingir que não nos havíamos visto Tia Zulmira se
aproximou e abruptamente, antes que eu pudesse sequer cumprimentá-
la, me explicou que estava ali porque o marido morto a havia autorizado.
Em quase trinta anos de casamento eu jamais o desobedeci, afirmou com
orgulho.
Ante meu olhar incrédulo, contou que fez um trato com o finado: se
Tio Osório não permitia que ela desfilasse na Banda de Ipanema deveria
mandar uma mensagem. Qualquer sinal seria suficiente.
Semanas a fio, sentada ao lado do túmulo, aguentei o sol e as tempestades
de verão, por dias inteiros, esperando ouvir a voz de Osório vinda do Além,
ela me contou com ar compungido. Visitei médiuns. Um deles até dizia ser
especialista em encarnar maridos que precisavam contatar suas mulheres
para tratar de assuntos que, em vida, não puderam ser resolvidos. Tudo em
vão, nem uma palavra, uma linha psicografada ou um prenúncio. Então,
depois de muito rezar, senti uma premonição: o silêncio de Osório era um
consentimento e aqui estou.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Ela sorriu matreira e se afastou rebolando, enlaçada em seu jovem
companheiro, sob o refrão da Marcha de Quarta-Feira de Cinzas. A Banda passava pelo antigo Bar Veloso e, por um átimo, eu tive a certeza
de ter visto o Poeta rindo e se deliciando com a cena da viúva do homem que
o afastou da carreira de diplomata.
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chega de saudade
ombros
torneados pelo sol
voluptuosa energia
sensuais senhores
imóveis na areia
dorso
longo de suor
intocado de brisa ousada
tempestade anunciada
curvo mar revolto
pernas
firmes penugens douradas
vida lasciva
encantadas de desejos
credoras
beijo
manto vermelho
molhado quente
teso desejo incontido
a mim, nesse minuto foi dado
NEM UM MINUTO
Angela Guimarães
Um minuto o nosso beijo Um só minuto; no entanto Nesse minuto de beijo Quantos segundos de espanto!
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
EXCÊNTRICOS DO 152
Ignez Matarazzo
Eu cá por mim,odeio paradoxos...
Tolinhos irritantes.
A luz entrevada de quem não queria amanhecer já era o prenúncio. Tempos
duvidosos na mudança do casal Federico e Gabrielli para o apartamento
nos Jardins, em São Paulo. Pelo jeito, mestres na contramão dos costumes.
Decoração clean, família reduzida, amigos alegres, e Cookie, pequinês de
estimação, antipático e rebelde.
Comportamentos indescritíveis e horários nada convencionais tornaram
estressante o cotidiano dos demais moradores. Muitas reclamações. Total
dissonância com todos.
Paixão antes inabalável, caminhou para discussões, brigas, até a separação
em grande estilo: roupas, objetos pessoais indecorosos, sonhos, tudo voando
do 15º andar na Oscar Freire. O acontecimento resultou em ocorrência aos
inquilinos. A proprietária acharia muito divertido esse universo peculiar,
entretanto já havia passado desta para melhor, e nada soube do destino
inglório dos articulados moradores, reduzidos a crisálidas.
Com a reconciliação dos dois, a paz temporária durou até a festinha
decadente-bizarra. Casais exóticos, anões, atletas e famosos. Muita bebida,
shows ao vivo, som altíssimo.
Ante o mal-estar, provocado pela quebra das boas normas de convívio em
condomínio, chamei a polícia. Tensão dramática em plena madrugada. Sob
meu olhar de espanto e constrangimento dos vizinhos, retiraram Federico,
Gabrielli, seu cão e convivas felinianos do apartamento. Espalhados pelas
escadarias e elevadores, sombras de humanos descompostos, bêbados, que
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chega de saudade
numa cadência desequilibrada, passavam por uma fileira de policiais, direto
para o camburão. As matérias e fotos sobre o affair não fizeram referências
à celebridade no meio da confusão e gritaria. Nenhum detalhe flagrava o
irreverente poeta-músico, bem diplomata, tranquilo no local. Ele estava sim.
Ali. Celebrando a vida e o amor, a seu modo. Muito bem acompanhado,
cigarro e copo de uísque aguado nas mãos, Vinicius, com um sorriso entre
fascinado e irônico, de quem saía da tonga da mironga do kabuletê.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Das grades vejo muro
Não consigo ir além
Fruta verde cai na terra
Amora é de ninguém
Bom seria eu maduro
Dissolver-me em sua boca
Renasceria da sombra
Carregando um tesouro
De feitiço embriagado
Olhos meus a suplicar
Libertar minha doença
Teu amor o meu altar
Viciado em abstinência
Danço bossa sem meu par
O remédio num refrão
Tem canção em seu olhar
Já brinquei de fugitivo
De Paris ao Rio amigo
Me vejo agora preso
Na grandeza do pequeno
ABSTINÊNCIA
Lisa Kahuna
Sem pedir licença muda nossa vida,depois convida a rir ou chorar
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chega de saudade
Palavras e acordes
Lavam nuvens ao redor
Lustram pensamento
De quem se sente só
Por que dessa barreira
Em dois, tudo é melhor
O relógio está passando
E a vida dá um nó
Desfazer o emaranhado
No amor jogo de dados
Sorte joguei na mesa
Vivo a dor da incerteza
Coragem já não nego
Ao ver tolo e cego
Amarrados pelo medo
Sufocando mil desejos
Redenção é o estado
Minha carne nesta Terra
Sou teu anjo inebriado
Anunciando outra esfera
Antes incompreendido
Hoje, homenagem
Atirei flecha certeira
Em corações capazes.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
O SAMBA É MAIS FORTE DO QUE EU
Carlos de Faro Passos
Pra que chorar, Se o sol já vai raiar, Se o dia vai amanhecer,
Convidei minha mulher para tomar café da manhã num bistrô da Vila
Madalena. Gostamos de lembrar os anos felizes de Paris, no início dos anos 70,
quando estudamos na Sorbonne e moramos na Cidade Universitária. Sempre
pedimos croissants e café crème, lembrando o simpático garçom português que
trabalhava no L’Ecritoire, na praça em frente à universidade.
Chegamos a Paris em setembro de 69, e nos hospedamos no hotel Saint
Michel no Quartier Latin, onde viveram estudantes e intelectuais brasileiros.
Madame Savage, a bizarra dona do hotel, sempre falava do seu amigo Jorge
Amado, que lá esteve durante os anos da ditadura Vargas. Simpatizou conosco,
emprestando o ferro elétrico à minha companheira, e tendo muita paciência
com meu francês limitado.
Fizemos logo vários amigos na colônia brasileira, composta de diversos
exilados, forçados ou voluntários, como nós. Iniciamos amizades duradouras
com o Sebastião e a Lélia, até hoje residentes em Paris, o Cristovam e a
Gladys, que exercem agora atividade política em Brasília e o Guilherme, que
trabalhou na ONU apoiando refugiados políticos em várias partes do mundo.
Viviam também em Paris outros líderes políticos, brasileiros e portugueses,
como o meu cunhado Fernando, deputado paulista cassado pela ditadura, o
Aluísio, hoje senador, os professores Celso Furtado e Barradas de Carvalho,
português, professor da minha mulher, além do seu amigo Mario Soares, com
importante carreira política em Portugal após a queda do Salazarismo.
Prestigiávamos os espetáculos musicais de Caetano e Gil, exilados em
Londres, Geraldo Vandré, Toquinho e Vinicius, e outros, além dos irmãos
Parra, filhos da cantora e compositora chilena Violeta Parra. Em meio à
61
chega de saudade
efervescente vida cultural parisiense, acompanhamos com tristeza o desenrolar
da ditadura Médici com suas prisões, torturas e desaparecimento de opositores.
Vivia-se um período negro e lamentável da história; vários intelectuais e
artistas fugiram do Brasil e de outros regimes militares latino-americanos.
O dinamismo cultural parisiense me lembrou o desenvolvimento da MPB e
a obra de artistas como o Vinicius de Moraes. Eu ainda não havia ingressado
na Poli-USP quando ouvi com admiração e prazer o long play Canção do Amor Demais gravado por Eliseth Cardoso, com músicas do Tom e Vinicius,
importante marco de lançamento da Bossa Nova. E não parei aí. Assisti a uma
palestra do poetinha na Poli, descrita na sua crônica Os Politécnicos, atuei na
peça musical do Vinicius Pobre Menina Rica, com o Grupo Teatral Politécnico,
que formou vários atores brasileiros. Mais tarde tive a felicidade de conversar
e assistir à apresentação do poeta no João Sebastião Bar, da Rua Dona
Veridiana, com a participação da Elis Regina. E a vivência com a música do
compositor continuou: recital da Simone e Toquinho em Santiago do Chile,
show do Stan Getz na boate Blues Alley em Washington DC, apresentação
do Baden Powell no Sheraton da Praia do Vidigal-RJ. Mais recentemente, em
Portugal, ouvimos pela primeira vez, numa tasca da Alfama, a gravação do
sarau em homenagem a Vinicius na casa de Amália Rodrigues. Foi quando o
poeta narrou a irresistível inspiração para compor o samba Pra Que Chorar, na
Clínica São Vicente, em Ipanema.
Envolvidos com nossas lembranças, saboreando os croissants, minha mulher
e eu percebemos a passagem de alguns jovens fantasiados. Minutos depois,
surgiram mais fantasias. Uma longínqua batucada de samba cresceu até
chegar a um pico de som apoteótico. Então, parodiando o Vinicius e pensando
no seu depoimento na casa de Amália, falei: O samba é mais forte do que eu!
E saímos dançando pelas ruas da Vila Madalena, cantando: Pra que chorar, Se o sol já vai raiar, Se o dia vai amanhecer. Pra que sofrer, Se a lua vai nascer, É só o sol se pôr. Pra que chorar, Se existe amor. A questão é só de dar, A questão é só de dor.
Apesar da ausência de Sebastião e Lélia, Cristovam e Gladys, e de outros
amigos, encontramos as filhas e os netinhos alegres já sambando no bloco carioca
Bangalafumenga. Foi um dia feliz, como naqueles velhos tempos de Paris.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
VINICIUS
Angélica Royo
Canta, cantaCanta, vai, vaiSegue cantando em paz
Vou compor um samba, alguma coisa que ninguém fez. Você teve tantas
musas e veja só que diferente, minha inspiração aqui é você. O texto, não será
lírico, tampouco vulgar, simples como você meu poeta popular. Garçom traga
um uisquinho, nesta mesa não pode faltar. Fazer parte de seu grupo quem não
haveria de querer? Para os amigos, tudo. Este sempre foi seu lema.
No embalo de seus olhos, digo: me inspire Vinicius, me inspire. E você,
com voz melodiosa, diz: tome um gole, estou pronto para compor contigo.
Quero que seja minha parceira. Vamos cantar o meu mais recente amor.
LETRA:
Parece fácil, juro que não é.
Além de sofrer de amor, quem é você?
Vejo no teu olhar a procura de algo. O que Vinicius, o quê?
Queria te fazer
Uma canção
Que falasse do amor
Da mais pura atração
Do sorriso, da flor,
Dos amigos, da dor
E a falta que faz a amada.
De conquistas você também é um mestre
As letras não têm quem as crie melhor
Todas rimam com belas e doces mulheres
Tempos felizes, juras de amor e paixão.
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chega de saudade
Parece fácil juro que não
é Além de sofrer de amor quem é vo ------------------------
cê Vejo no teu olhar a procura de algo
O que Vinicius o que Queria te fazer
Uma canção Que falasse de
amor A mais pura atração Do sorriso e da
flor Dos amigos da dor E a falta que faz
a amada De conquistas você também é
MÚSICA:
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
é um mestre As letras não têm quem as crie
melhor Todas rimam com belas e doces
mulheres Tempos felizes jura de amor
e paixão
arranjo: Daniel Silveira
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chega de saudade
POETAS
Guilherme Hernandez Filho
Mas sabia vibrar em presença da folha branca que me pedia versos, viva como uma epiderme que pede carinho.
Verdadeiros poetas vivem como poetas, Drummond disse isto de Vinicius e
ele tinha razão. Talvez por isto nunca naveguei em tais águas.
Não me entendam mal, por favor. Nem de longe estou me comparando
a alguém. Seria parvo se o fizesse. Mas é uma simples constatação: jamais
escrevi poemas. Só tenho coragem, e um pouco de técnica, para perpetrar
minhas fortuitas crônicas.
São apaixonados, não uma, mas muitas vezes. Apaixonam-se não só
por outros humanos, por viventes e inanimados. A pedra do caminho de
Drummond que o diga. Paixões irresistíveis; irrefreadas; intensas; eternas, até
efêmeras; infinitas enquanto durem e sempre inspiradoras. Fascinam-se por
ideias; causas; filosofias; pensamentos... Vinicius foi um eterno apaixonado. E
pelas mulheres, sempre, não se sabe quantas.
Veem a vida num colorido diferente dos demais. Nosso espectro tem
sete cores, suas combinações e intermediárias. Eles enxergam cores cujas
frequências de vibração não são alcançadas pelos olhos dos comuns.
Também seus ângulos de visão e de percepção são comparáveis aos de um
auditor experiente, capazes de observar e registrar as mais tênues diferenças,
as quais aos nossos passam despercebidas. Enxergam as palmeiras onde
cantam os sabiás; areias sáfias e lagadiças; a gente ordinária e suja; as
Terezas; Marias; o corvo; o sapo-cururu; os mares e rios; a garota de
Ipanema e o que mais seja.
Seus narizes recebem aromas que os nossos não tomam conhecimento.
Aqueles que diferem lavandas, de rosas; grama molhada pelo orvalho da
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
manhã, de capim-limão às margens de uma estrada. O cheiro do café fresco
matinal, o sabor nos nossos lábios, mesmo sem tocá-lo.
E os sons? Para qualquer um o zumbido de um inseto é nada. O latir de um
cachorro, o riso de uma criança, um apito da fábrica de tecidos, os gorjeios dos
pássaros que não gorjeiam como lá, um trenzinho caipira, os sinos, cada som
é parte de uma sinfonia cheia de harmonia. Eles os traduzem em vocábulos
capazes de comover seus leitores.
Eles vão transmitir com seus versos os efeitos dessa sensibilidade, pintar
com palavras o ardor que conseguem ver diferentemente de nós e alertar-nos
para a existência de um mundo paralelo ao que frequentamos no dia-a-dia.
Viver como um poeta é possuir a capacidade, a perspicácia, de sentir o
essencial e muito mais. É estar livre, descompromissado, ter a vida pulsando
nas veias, vontade de exercitar novas experiências, condições, novidades. E
colocar tudo isto no papel.
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chega de saudade
SARAVÁ
Danielle Martins Cardoso
Já não havia sombra em ti – eras como um grande deserto de areia.
Quando Vinicius acordou e descobriu que tinha perdido a própria sombra,
permaneceu alguns minutos enrodilhado na cama, em rememórias, onde ela?
Pensou no ontem, refez caminhos, pesquisou lugares reais e imaginários, fechou
os olhos em sonho. Pista alguma lhe encheu a testa. Deixou o travesseiro,
cabeça ressentida da fanfarra da vida, encontrou gel e espelho.
Um passeio em Ipanema, talvez ali encontre a ingrata. Num doce balanço
a caminho do mar, ela! Acreditou, apertou o passo, tirou os óculos. Não.
Apenas – como apenas? – uma garota cheia de graça, dançando com as ondas,
que coisa mais linda.
Em terra firme, bar em bar, copo em copo, noites seguidas insistiu.
Interminável escuridão.
Devo tê-la deixado na Rua São José, quem sabe com Marcus Vinitius. Mas
desde os nove anos se esqueceu do menino que tinha cruz e mel como nomes.
Insistiu na Lopes Quintas, nadou em Cocotá para esfriar a cabeça, percorreu
a Voluntários da Pátria, Lygia, me mostre os bolsos, gritou. Mistério.
Amigos, ligou para todos. Dentro do piano não, respondeu Tom. O menino
Chico vasculhou a construção ao lado de sua casa, Baden sugeriu perguntar a
Ossanha, dedilhou Samba em Bênção e tocou Berimbau, quem sabe a danada
não aparece? Nó em manga de camisa também funciona, parceirinho, sugeriu
Carlos Lyra. Toquinho prometeu Aquarela, na tonga da mironga do kabuletê,
papai, vai lá, sorriram Georgiana e Suzana.
Vinicius deu três pulinhos, pintou as Cores de Abril, colheu a Rosa de
Hiroshima e montou a Arca de Noé. Tudo para seduzir a fulana. Chegou a
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
pensar que tivesse migrado para Buenos Aires, porque não podia entrar numa
tangueria que se arrepiava. Mas se lembrou de ouvi-la sussurrar: só danço
samba, só danço samba...
Muito alegre a sombra, já havia pensado em amarrá-la ao corpo, porque
de uma alegria rebelde, sem dar caso a convenções, Maria vai com as outras,
bandida. Ficou com pena, sombra amarrada murcha, morre. E a sombra
ensaiava voo, de brincadeira, para logo voltar a ciscar o chão, enjoadinha que
era.
Sombra-samba-sombra. Zunzum no peito, artérias! As mulheres,
sabichonas, irão me guiar. Acreditou, com fé, que se escondia sob saias e
decotes. Cada verbo, dobra, letra, ponto, curva beijou, avidamente. Intuiu, em
dado momento, que repousava nos olhos da amada. Secou lágrimas, pinçou
cílios, púbis, bias, reginas, lilas, marias, nellitas, cristinas, gesses, martas, gildas,
cantou amor demais.
Orfeu é negro, João Cabral contou três sombras, eu de uma insustentável
transluscência, Ariana, me ajude. Insensatez essa coisa de sombra sem corpo,
pele sem carne. Fui eu o grande íntimo da noite, meus dedos enlaçaram a
névoa, desordenado abandono, deserto sou. Mas, na areia, sou oásis. Chega
de Saudade.
Vinicius, em assobio sem som, sorriu. Regra três: é melhor ser alegre que
ser triste, alegria é a melhor coisa que existe. Por toda a minha vida, inda hei
de procurá-la, em seu louvor espalhar meu canto, rir meu riso, derramar meu
pranto, a fecundaria com um simples pensamento. Vida de poeta, desdita, vai.
E não encoste sua face em outra, vai. Talvez encontre um grande amor, vai.
Amar, chorar, sofrer. Vai viver!
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chega de saudade
RECADO DO ZÉ
Gilda Pasqua Barros de Almeida
O amigo: um ser que a vida não explicaQue só se vai ao ver outro nascer
Você bem dizia que eu levava jeito. Nunca dei atenção. Depois, deixou o
botequim de Ipanema, me abandonou pelo scotch bem refinado, rótulos que
nem de longe eu sonhava ver na prateleira, lembra? Sem dizer do chiquê dos
convites que recebia, sem pensar nos versos de amor que arranjava em tom
menor... maior... com redondilha pra cá e soneto pra lá. Eu só ouvia, e tudo era
estranho, nada pro meu entender, mas veja bem, presto carregava seu copo.
Isso aí, amigo. Custou, mas o boteco virou bar muito bem frequentado, a
rua mudou de nome, lógico, o seu. Vem gente de longe se sentar onde passava
mil horas escrevendo, rabiscando. Catei muitos amassados – você nem via! É,
as coisas, a vida, todo mundo muda, até eu que guardei bem dentro de mim o
leva jeito, Zé; alguns desamassei, lia no amanhecer, daí a decisão: bati à porta
da Candinha. Sabe, ela me mostrou os dós maiores, os rés menores, fez da
minha mão uma clave, calejaram os dedos e agora o dedilhado sai limpinho,
os acordes vão no tempo da bossa nova: vai então uma frase, sua cria, que eu
imito muito devoto e canto com uma baita paixão: O morro não tem vez e o que ele fez já foi demais...
E pra finalizar, voltei pro meu Ceará, onde encanto até cobra tocando a
viola no baile de São João. Moça bonita de saia rodada, com pinta no rosto
e flor nos cabelos roda roda pelo salão, conquista moço apeado, faz casório
marcado e eu canto seu canto pagão. É Zé, cê leva jeito. Vai aqui o agradecido
ao amigo que me deu profissão.
Zé da Bossa
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
SEGUNDA EDIÇÃO
Vicente Rággio
Quem virá despetalar pétalas no meu túmulo de poeta?
Quando eu morrer quero voltar a viver
Quero voltar Vinicius de Moraes
Não exatamente o mesmo
Mas um pouco diferente
Menos plural menos intenso mais poeta mais casual
Certamente não serei diplomata
Não me faz falta
Não quero andar por aí pelo mundo à toa
Vou passear mais pelo Rio por Ipanema
Mergulhar na mansidão perene da Bahia
Onde serei menino e de Caymmi irmão
Mais amigo de Jorge Amado amante de suas Tietas
Viajante do agreste
Protegido por seus orixás
Farei mais versos e menos canções
Não terei tantos parceiros
Só os verdadeiros
Nem muitos casamentos de papel passado
Menos mulheres formais
Preciso de mais tempo para as extraoficiais
Deixarei de lado os excessos
As noites maldormidas
O exagero nas bebidas
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chega de saudade
Ao que se deve quem sabe
Algumas ideias descabidas
Quanto ao dinheiro
Metade vou gastar com amigos champanhe e caviar
A outra metade desperdiçar
Quanto ao amor
Com algum pudor vou confessar
Que Nelson Rodrigues tinha razão
Quando me disse
Com aquele jeitão professoral
Vinicius devagar com o andor
Se não é eterno não é amor
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
O BEIJO
Giselda Penteado Di Guglielmo
Um minuto nosso beijoUm só minuto; no entantoNesse minuto de beijoQuantos beijos derradeiros.
O poeta dizia que o amor é infinito enquanto dura, mas eu só conseguia pensar
no meu amor que findara de repente. As palavras e os acordes da canção que eu
ouvia eram como uma mensagem e me faziam recordar os momentos de paixão
ainda não esquecidos, as ausências e os retornos, o muito amor, as despedidas. E
meu encontro casual com o poeta, que iluminou por um instante minha vida sem
amor com sua poesia, sua música e sua presença.
Naquele começo de noite em volta da mesa do bar, trocando confidências,
ouvindo poemas e canções de Vinicius de Moraes enquanto bebia umas e
outras, fui convidada para um almoço festivo no sábado seguinte, na casa
de Zequinha, irmão de nosso companheiro Américo Marques da Costa,
dois grandes amigos de Vinicius. Sabia ter sido convidada por fazer parte da
turma do Bar do Museu e isso me dava a certeza de que iria encontrar pessoas
ligadas à literatura e à música, o que me deixou feliz e ansiosa. Na época eu
já fazia as primeiras incursões no universo da poesia e para mim era muito
importante ter esse tipo de contato, minha cabeça vivia cheia de Baudelaire,
Verlaine, Fernando Pessoa, Drummond e Vinicius de Moraes.
No dia do almoço meus amigos deveriam sair do bar por volta de uma hora da
tarde e consegui chegar a tempo de acompanhá-los. Havia caprichado no visual,
sabia que eles gostavam de me ver charmosa. Vesti a blusa mais bonita, me esmerei
na maquiagem e no cabelo. Além de agradar meus amigos, queria impressionar os
outros convidados e esquecer, por alguns momentos, as carências afetivas.
Ao chegarmos à casa de Zequinha no Morumbi, cercada de árvores e jardins,
a maioria dos convidados já estava lá. No meio deles Vinicius, com o indefectível
73
chega de saudade
uisquinho na mão. Ao seu lado, violão em punho, Toquinho. E, cheia de cuidados,
sua mulher Gilda Matoso.
O almoço transcorria sobre carretéis, como diria o cronista social mais
badalado na época. Com várias celebridades presentes, fui colocada ao lado de
Sérgio Buarque de Holanda. Ele, usando de muito savoir faire e elegante modéstia,
se apresentou:
— Sou o Sérgio Buarque de Holanda, pai do Chico.
Falei de minha admiração por Chico. Como o descobrira ao ouvir pela primeira
vez Com Açúcar, Com Afeto, num programa de rádio, desconhecendo ainda quem era
o dono daquela voz tão peculiar. Disse mais, que só então fiquei sabendo pertencer
essa voz a Chico Buarque, o compositor daquela linda canção. E como, a partir
desse momento, seu filho me cativara para sempre.
Conversei com todos, ouvi o que tinham a dizer, mas meu foco era Vinicius.
Conhecia de cor alguns de seus poemas e sempre que podia dizia o Soneto da Fidelidade, em meio à canção Eu Sei Que Vou Te Amar, que fazia parte de meu incipiente
repertório musical, sempre fiel às canções de amor criadas pelo poeta.
Todo mundo queria falar com Vinicius. Consegui trocar algumas palavras com
ele, dizendo de minha admiração pelo poeta, cronista e compositor. E pelo seu bom
gosto em saber apreciar um fine scotch como eu. Tive a impressão de que ele havia
achado alguma graça em meu papo de admiradora convicta e boêmia eventual,
solidária com suas preferências etílicas. E vi a possibilidade de me aproximar dele
um pouco mais.
Terminado o almoço, os convidados foram para outra sala, onde haveria um
pequeno show com Vinicius e Toquinho. A roda se fez, os dois começaram a cantar
e a plateia junto com eles, todos conheciam as letras das canções apresentadas. E
eu mal pude me conter ao ouvir a minha Eu Sei Que Vou Te Amar na voz de Vinicius
acompanhado por Toquinho, finalizando com sua interpretação única do Soneto da Fidelidade.
No final do show, não resisti e dei um jeito de me aproximar um pouco mais de
Vinicius, afastar dele os sempre presentes Toquinho e Gilda, para lhe dizer num
sussurro:
— Posso lhe dar um beijo?
E ele, com sua voz grave e sedutora:
— Claro, mulher bonita não precisa pedir licença pra me beijar.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
DIAPASÃO
Teresinha Taumaturgo Policastro
Chega de saudade
horas mortas vivas vozes reflexos vontades
acordes excêntricos acordes simples liberdade de descobrir prisão do erudito popular quinta dissonante
o silêncio o ruído o confronto o silêncio o ruído inspiração na bossa nossa bossa nova viva
bemol sustenido sustenido bemol vinicius violão vinicius violão vinicius violão vi
fina bossa bossa nova nossa
vida música sexo poesia carioca universal estratégia sonora acordes perfeitos
democracia do som marcas do tempotormentosmelancolia
memória sutileza esquecimentoinfernos circulares virtudes poéticas vivas vozes saudades
uísque tom sonho
atonal acústico ouvidos gingauísque
p o e s i ap o e t a
Vinicius de Moraes
ginga
sonho
atonal
carioca
acústico
memória
coloratura
amoramor
75
chega de saudade
A COPACABANA DE VINICIUS
Lygia Pistelli
A história das praias cariocas ou dos cariocas na praia está completando
seu centenário. Copacabana era uma praia deserta. Apesar de o calor ser
o mesmo dos dias de hoje, no passado os cariocas evitavam ir à praia para
não perder o branco europeu, que tanto os diferenciava. E Copacabana
permaneceu deserta por longo tempo.
Mas um dia Sarah Bernhardt apareceu, banhou-se nas águas do mar,
sentou-se por horas em suas areias. Desde esse dia liberaram-se os preconceitos
da sociedade que sai de seus palacetes à beira-mar, para usufruir as delícias do
mar e o agrado do sol.
Aqui meus braços discursaram à luaSobre o banco de pedras que ali tens Nasceu uma canção.Aqui encontrarás minhas pegadasE pedaços de mim em cada cantoPara gozo da aurora pervertida.
A praia é desconfortável e monótona. As pessoas só entram nas águas do
mar e sentam-se nas areias. A classe média senta-se sobre jornais, os ricos
sobre revistas estrangeiras. A toalha é o primeiro objeto que o carioca leva à
praia e o vento as carrega para longe.
Foi no Leme que vi nascer o ventoCerta manhã, na praia. Uma mulher Toda de negro, no horizonte extremo
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Entre muitos fantasmas me esperava:O abismo embaixoNo espaço em torno, e o vento me chamandoMe convidando a voar. Ah muitas mortes Morri entre essas máquinas erguidas contra o tempo.
Aparecem outras novidades na praia. A barraca que não passa de um
modesto guarda-chuva, as boias de pneus de carro, as pranchas de madeira
para correr sobre as ondas, os radinhos de pilha. Para se diferenciarem, as
mulheres ricas da sociedade começam a usar joias na praia e, para alegrar
os frequentadores, aparecem os vendedores ambulantes, oferecendo batidas
de limão e cachaça. Para proteção do sol os óculos escuros com lentes de
má qualidade, que dificultavam a visão nítida, mas insubstituíveis por serem
chiques; os bronzeadores, de banha de cozinha, de cheiro desagradável, logo
trocada pela gordura de coco.
Por toda a orla da praia, enfeitam a Princesinha do Mar. Desenham
na calçada litorânea, um diagrama em pedras pretas e brancas imitando o
vai e vem das ondas. Os arranha-céus proliferam e toda uma estrutura de
apartamentos aparece, num aglomerado gigantesco.
Ali estou eu. Tu vês essa estrutura De apartamentos como uma colmeiaGigantesca? Em muitos penetreiTendo a guiar-me apenas o perfume De um corpo de mulher a palpitar
Mais que nenhuma outra foste a arenaOnde o poeta lutou contra o invisívelE onde encontrou enfim sua poesia.Talvez pequena, mas suficientePara justificar uma existênciaQue sem ela seria incompreensível.
Ah Copacabana! Quem imaginaria que esse cenário nascido frio e
desértico seria o centro de paixões alucinantes e de poetas inspirados?
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chega de saudade
AMOR EM PAZ
Lygia Pistelli
Eu amei Eu amei, ai de mim, muito maisDo que devia amarE chorei Ao sentir que iria sofrerE me desesperar
Perto de você me calo. Tenho medo de chorar. Por isso te escrevo.
Viajo. Estou num lugar que nem correio tem, senão te mandaria um
telegrama, em vez de te escrever esse bilhete. A paisagem é monótona,
nostálgica e nem sei por que a sombra não baixa aqui. A única coisa que
me faz feliz são as lembranças que tenho de ti. Sonhei que estava doente. O
médico abriu meu cérebro e tirou pedacinhos de você. Assim eu poderia te
esquecer. Conheci moçoilas com quem gostei de estar nos motéis da estrada.
Fiquei horas sem pensar no meu passado. Todas queriam largar aquela vida
e ter um único amor, razão para viver, não na solidão. Eu quis amar outra
vez, mas tive medo. Procurar uma nova ilusão, não sei ainda. É triste a pessoa
gostar de ser gostada. Sinto amores e ódios por você. Até o amor se acaba.
Não volto para casa, porque te amo. Estou cansado de sofrer. Não quero que
essa viagem acabe nunca mais!
Nosso amor que eu não esqueço e que teve um feliz começo, hoje se desfaz.
Manhã do 42o dia da nossa separação.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
MUDANÇA
Guta Rezende Soares
Filhos... Filhos?Melhor não tê-losMas se não os temosComo sabê-los?
Mãe, quero falar com você.
Gelei. Coisa boa não é.
Então mãe...
Piorou! Quando começa com então, vem bomba na certa.
Então mãe, quero morar sozinha.
Sabia que era bomba.
Morar sozinha por quê, pra quê? Você só tem 28 anos, é um bebê, minha
Pitipiti.
Acho que está na hora, mãe, cortar o cordão umbilical.
Que cordão umbilical, menina? Sabe o que vai acontecer? O cordão vai
arrebentar e voar na minha cara, me machucar, estraçalhar meu coração.
Mãe, não faz drama. Minhas amigas estão morando sozinhas.
E que eu tenho a ver com suas amigas? São minhas filhas, por acaso? São
temporonas?
Não é outro país, só outra casa.
Te conheço minha filha, vai se enfiar na Vila Madalena e nunca mais vou
te ver.
Ah, isso é verdade, sabe que sou desligada. Mas eu te ligo, prometo. Todos
os dias.
Filha, não promete o que você não vai cumprir. E foi para a balada. Pior,
se matando de rir. E eu fiquei lá, pensando no que fazer. Cortar os pulsos,
quem sabe. Levanto e vou até a cozinha escolher a arma. No caminho tropeço
num par de tênis de corrida largado no meio da sala. Mancando, alcanço a
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chega de saudade
cozinha. Requeijão com faca suja se equilibrando em cima do copo, leite fora
da geladeira, pacote de pão aberto, lata de achocolatado de um lado, tampa
de outro. Desanimo e ainda com os tênis na mão, vou até o quarto. Janelas
hermeticamente fechadas, luz acesa. Apago. Cama desarrumada. Arrumo.
Roupas, jogadas, pijama no chão. Recolho. No criado-mudo abajur aceso.
Apago. Quatro copos, dois com água e dois vazios. Recolho. Mais um copo,
resto de leite. Recolho. Passo pelo closet, luz acesa. Apago. Entro no banheiro,
luz acesa. Apago. Maquiagens espalhadas pela pia. Largo lá. Fecho a porta
do quarto e volto para minha primeira ideia, cortar os pulsos. Como viver
sem a minha pequenina, minha caçulinha. Sem o tênis na sala, a luz acesa,
o copo de requeijão, a cama desarrumada, as roupas no chão, o leite fora da
geladeira? Pego o jornal, imóveis, Vila Madalena, aluguel. Começo a sonhar
com a minha liberdade!
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
QUE EU NÃO SOU NINGUÉM DE IR EM CONVERSA DE ESQUECERMariza Baur
louco meu amor que, quando toca, fereque quando vibra, mas prefereferir a fenecer – e vive a esmofiel à sua lei de cada instantedesassombrado, doido, delirantenuma paixão de tudo e de si mesmo
Hoje é sábado, amanhã é domingo, não há nada como o tempo para
passar. O tempo passou e quero me emocionar com a saudade. Você não
se lembra, meu amor? do tempo em que eu tentava domar o coração e dizia
toma jeito, bate mais devagar em meu peito. O coração nem me ouvia, batia
forte quando a luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus resolviam se encontrar
nos bailes do clube. Ah! eu me sentia incendiar e escrevia no diário: que bom
que isso é, meu Deus, que frio que me dá o encontro desse olhar. Um dia você
me olhou dum jeito diferente do que sempre costumava olhar, convidou-me
pra dançar, e cheios de ternura e graça fomos para a pista. Ali dançamos
tanta dança que os amigos todos aplaudiram, e foi tanta felicidade que a
noite enfim se iluminou, e você confessou que viver sem meu amor não
era viver. Eu sei que vou te amar por toda a minha vida, você me disse e
perguntou: quer ser minha namorada? Eu quis e fiz um juramento de só ter
um pensamento ser só tua até morrer. Eu sabia que teu amor seria atento
antes e com tal zelo e sempre e tanto. E ouvi os mais belos elogios que há
muito tempo não se ousava ouvir. Que eu era linda, as feias que te perdoassem
porque beleza é fundamental. Que minhas pálpebras cerradas lembravam um
verso de Eluard. Que acariciar meus braços era tocá-los como ao âmbar de
uma tarde. Que meus olhos eram grandes e de rotação tão lenta quanto à da
Terra. Que eu exalava um impossível perfume. E o nosso amor era assim, eu
pra você, você pra mim. Em poucos meses nos casamos de papel passado.
Pra te agradar, eu fazia comidinhas pra depois do amor. Você continuava
tecendo galanteios, e as faces coravam de prazer. Pois minhas coxas não
81
chega de saudade
eram lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem? Meus seios uma
expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca? Com tanto amor, nem
me importei quando moramos naquela casa que não tinha teto, não tinha
nada, e ninguém podia entrar porque na casa não tinha chão. Foi lá que
aprendi que a coisa mais divina que há no mundo é viver cada segundo como
nunca mais. Compramos uma cachorrinha, mais que amor de cachorrinha,
e quando veio um entardecer, você disse que tinha dado pra sonhar. Via um
berço e debruçado nele você cantava: dorme, meu pequenininho, dorme que
a noite já vem. O nosso bebê veio, um menino, depois uma menina e mais
outro menino. Você dizia filhos... filhos são o demo, melhor não tê-los! Mas
se não os temos, como sabê-lo? Como saber que macieza nos seus cabelos,
que cheiro morno na sua carne, que gosto doce na sua boca! Chupam gilete,
bebem shampoo, ateiam fogo no quarteirão. Porém, que coisa louca, que
coisa linda que os filhos são! E você se encantava quando as crianças, numa
folha qualquer, desenhavam um sol amarelo e com cinco ou seis retas faziam
um castelo e corriam o lápis em torno das mãozinhas e te davam uma luva. Ai
tempo distante! Tinha aquela rua, aquela lua tão amiga, tinha a nossa nova
casa, e o jardim tão lindo e você e eu cuidando do nosso amor e da família.
Então percebi: você tinha amor por outras. E não quis permitir que nada
nesse mundo levasse você de mim. Nem os flertes com a linda pernambucana,
a bela cearense, a capixaba bonita. Nem o deslumbramento pela fibra da
gaúcha, pelo encanto da mineira, nem a paixão avassaladora pela baiana.
Nem a garota de Ipanema, que era a coisa linda, mais cheia de graça, no doce
balanço a caminho do mar. Tantas você fez que cansei porque você abusou
da regra três. Da primeira vez, eu chorei, mas resolvi ficar, é que os momentos
felizes tinham deixado raízes no meu pensar. Depois perdi a esperança porque
o perdão também cansa de perdoar. Tem sempre o dia em que a casa cai.
Você não se conformou, me procurou, se arrependeu e suplicou: ah! meu
amor não vá embora, ah! minha amada me perdoa. Dedicou-me um soneto
de fidelidade. Compôs uma canção: ah! insensatez que você fez, coração mais
sem cuidado, fez chorar de dor o meu amor, um amor tão delicado. Não cedi.
E veio outra canção: vai, meu coração, pede perdão, perdão apaixonado, vai,
porque quem não pede perdão, não é nunca perdoado. Só perdoei quando
você reconheceu que, para viver um grande amor, é preciso ser um homem
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
de uma só mulher. E compenetrou-se da verdade de que não existe amor sem
fieldade. Continuei não permitindo que nada nesse mundo levasse você de
mim. Nem mesmo, na temporada de exílio voluntário em Paris, a distância
existiu. De lá, você me escreveu: estou no nosso bar mais uma vez, e escrevo
pra dizer que é a mesma taça e a mesma luz, e a realidade é que sem você
não há paz, não há beleza, é só tristeza. Chega de saudade! eu respondi. Volta
querido, os meus braços precisam dos teus, teus abraços precisam dos meus,
estou tão sozinha. E você voltou, meu amor. A alegria que me deu, quando a
porta abriu, você me olhou, você sorriu. Ah! você se derreteu e se atirou, me
envolveu, me brincou, conferiu o que era seu, e disse que eu era a Rosa pra
dormir, Rosa pra acordar, Rosa pra sorrir, Rosa pra chorar, Rosa pra partir,
Rosa pra ficar. E eu disse que não quero mais esse negócio de você longe
de mim. Porque eu sem você sou chama sem luz, jardim sem luar, luar sem
amor, sou só desamor, um barco sem mar, um campo sem flor, sem você, meu
amor, eu não sou ninguém. Nossa antiga história, de repente, não mais que de
repente, não vai terminar num soneto de separação. Você nunca será apenas
uma lembrança feito tantas outras. Porque hoje é sábado de abril e pássaros
mil, nas flores de abril, voam e fazem amor. E todos os namorados estão de
mãos entrelaçadas. E a vida vem em ondas como o mar. E os bondes andam
em cima dos trilhos. E eu entoo um canto pras cores de abril, pros ares de abril
e o mundo se abre em flor. Escuta, meu amor, hoje é que é o dia do presente,
o dia é sábado, e há uma impassível lua cheia, você não se lembra?
(Vinicius soprou nos meus ouvidos e este texto escorreu-me pelas mãos)
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chega de saudade
DA SOLIDÃO
May Parreira e Ferreira
sabe, parceirinho? eu quero é desencarnar!
Vinicius de Moraes pergunta, Solidão inenarrável, quem sabe povoada de beleza. Mas será ela, também, a maior solidão?
Meu devaneio se lança, pensamento longe, distante no tempo, perseguindo
a memória. Eu, jovem, sentada nas pedras, beira de praia, pés banhados pela
água do outono, ouço a história do velho pescador.
Quando o mundo não era mundo, quando existiam apenas os animais
gigantescos, seres humanos ainda nem desenhados, vivia uma imensa
mariposa, tão grande que cobria todo esse céu, começou o velho e, com a
mão levantada, delimitou um semicírculo no horizonte.
Colorida, continuou, todas as cores em suas asas, arco-íris luminescente. A
descomunal mariposa voava de terras em terras, e mares entre terras. Voava de
uma margem a outra dos oceanos, à procura do amor.
O sentimento de ser sozinho no mundo, por menor que seja o mundo, é
muito doído. O velho apoiado nos calcanhares, falava manso, olhar perdido no
mar liso. Nós dois, na praia deserta de final de tarde, a conversar sobre ser só.
Dia-traz-dia a borboleta foi se entristecendo, minguava porque quanto mais
voava mais se distanciava de seu desejo. Tinha ânsia pelo encontro e angústia
pela ausência. Um dia, cansada, desiludida, recostou-se num pedaço de terra e
mar e deixou-se morrer de amor. O velho falava pausado. Dizem que suas cores
ficaram impregnadas na cores da água, das montanhas, nas nuanças do pores-
do-sol. E o sentimento de amor despronunciado, ficou pairado no ar. Dizem que
se alguém vem para esses lados fica inebriado, sente o amor, sem nem mesmo
saber onde ele está. É o que dizem, repetiu o pescador com o fiapo de voz.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
O velho se levantou lento, bateu as mãos nas calças amassadas, tirou o
chapéu num aceno cortês e foi-se. Fiquei imóvel, para não espantar aquela
lindeza tamanha. Vi a simpática figura desaparecer no final da praia. Fiquei
só. Eu e toda a beleza do mundo.
A mariposa não era solitária... a maior solidão é a do ser que não ama... é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha; o maior solitário é o que tem medo de amar, palavras do Poetinha.
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chega de saudade
NINGUÉM MORRE NO FACEBOOK
Ricardo Lahud
Deixa pensar que pra amar é preciso fingir
Vinicius de Moraes me adicionou como amigo. É preciso esclarecer que
não foi a mim, um cronista idoso, barrigudo, enterrado no túmulo do samba,
que ele solicitou amizade. Nesta conta do Face, sou uma atraente secundarista,
prestes a completar 16 anos, morando em frente ao mar, no Leblon. Uso o nome
de Mariana Moraes, sem a intenção de ser homônima da filha do poetinha,
mas porque as iniciais MM, como em Marilyn Monroe, me agradam.
Fui visitar sua página antes de aceitar, não é porque minhas fotos sugerem
uma biscate, que me comporto assim. Sou fake de família.
Em destaque, a foto do casamento com sua mais nova esposa, em Bali. Ele
está bem mais magro, depois da operação bariátrica, e com uma expressão
extraterrestre, causada pelo implante de cabelos mal resolvido. As outras
cicatrizes sugerem uma cirurgia cardíaca e um transplante de fígado.
Exploro suas últimas postagens. Uma foto de perfil da esposa, de biquíni e
chapéu de palha, tendo ao fundo o mar de Itapoã, com a legenda: Meu maior
encanto. Um vira-latas abanando o rabo com a legenda: Chega de saudade.
Compartilhou uma famosa crônica do coetâneo Rubem Braga, assinada por
Pedro Bial. Curtiu a página do Pedaço de Sol, onde o terceiro chopp é grátis.
Em algumas fotos ainda se vê o cigarro, agora eletrônico, e o copo com duas
pedras de gelo.
No post mais movimentado, discute os filmes candidatos ao Oscar. Elis
Regina e Tom Jobim publicam elogios à técnica e à fantasia de The Life of Pi, João Gilberto comenta que gostaria de aprender a cantar em 3D; Vinicius
defende a poética de Amour, mesmo sendo falado em idioma tão pontudo e
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
ameaçador. Elvis e Sinatra argumentam que o prêmio deve ir para Argo ou
Lincoln, afinal o cinema foi inventado pelos americanos.
Tem uma rua com seu nome aqui perto. Vc foi governador?
Não querida, sou músico e poeta. Você conhece a Garota de Ipanema?
A Mariza? Vc é parente dela?
Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, que vem e que passa
Vc é paquera dela?
Sua mãe me conhece, pergunte a ela quem sou.
Vovó me disse q vc já morreu.
Amada menina, do corpo dourado, ninguém morre no Facebook.
Faz uma poesia pra mim?
Menina, case comigo/Que eu sou bom trabalhador/De dia durmo
consigo/De noite morro de amor.
E me cutucou.
Optei por bloqueá-lo, vai que ele resolve me seduzir.
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chega de saudade
PORQUE HOJE É DIA DOS NAMORADOS
Mariza Baur
Amo-te tanto, meu amor... não canteO humano coração com mais verdade...
Porque hoje é dia dos namorados, no ar, um frisson de borboletas inquietas.
Corações vermelhos pulsam nas vitrines misturados aos vestidos, sapatos, joias,
fragrâncias. Corações de todos os tamanhos cheios de amor para dar, rubros
de paixão. Porque hoje é dia dos namorados Cupido dispara suas flechas
sem descanso e doem-lhe os braços. Os floristas, desde a véspera, trabalham
perdidos entre celofanes e laços coloridos; o aroma das flores sufocando-os.
Quero ser o primeiro, diz um apaixonado, a namorada tem outro pretendente.
E as rosas vermelhas, duas dúzias, levam seu beijo até ela. Porque hoje é dia
dos namorados esgotaram-se as reservas nos restaurantes e a noite será de
morangos com champanhe à luz de velas, especiarias, juras de amor e carícias
de mãos entrelaçadas. Nenhum beijo será proibido. Porque hoje é dia dos
namorados não há vagas nos motéis. Nas livrarias, zerou-se o estoque dos
livros de versos prometendo amor eterno. Nas lojas de chocolates, quase faltou
açúcar e cacau. As linhas dos telefones estão ocupadas. Nos cabeleireiros, as
mulheres querem se fazer mais belas porque hoje é o dia dos namorados e os
homens sonham com musas e deusas. Porque hoje é dia dos namorados eu me
lembro de tantos dias dos namorados. Das rosas brancas, das rosas vermelhas,
das orquídeas, do buquê de flores do campo com a fita amarela. Do dia em
que o presente foi beijo. Lembro da pulseira de prata – o primeiro regalo que
recebi de um homem. Lembro da mordida no gosto de amor do bombom de
cereja, e eu nem liguei pro licor escorrendo pelos cantos da boca, manchando
a seda verde-água do vestido novo. Porque hoje é dia dos namorados eu
escuto os acordes do piano me pedindo em namoro. E as notas, uma por uma,
me dizendo em tom maior: se você quer ser minha namorada, ai que linda
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
namorada você poderia ser, se quiser ser somente minha. Eu quis, e foram
tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais. Porque hoje
é dia dos namorados eu quero ler o teu e-mail já em sépia, e mastigar as
sílabas do elogio: foste maravilhosa desde o primeiro instante. Eu sei que fui;
maravilhosamente fomos. Porque hoje é dia dos namorados remexo minha
caixa de ternuras e, sobre o veludo, lá está o cartão bege do tempo e nele
gravadas as palavras mais bonitas que uma mulher pode almejar. Te quiero!,
você sussurra, o timbre da tua voz me penetrando os poros. Os pensamentos
se perdem no farfalhar das pétalas de rosas desbotadas, secas porque o amor
acabou. Os dedos esbarram na cortiça das rolhas de champanhe esfarelando-
se, com quem brindei? Abro um bilhete dobrado, o papel é simples, folha
arrancada de um caderno. O peito arfa, a boca treme, tua letra dança nos
meus olhos, as lágrimas a teimar. Com a minha emoção à flor da tua pele – eu
leio a dedicatória ao final do poema. Como te amei! devagar e urgentemente.
E prometi querer-te até o amor cair doente e preferi, então, partir, a tempo
de poder a gente se desvencilhar da gente. Porque hoje é dia dos namorados
meu coração perde a cadência e galopa e dispara quando batem à porta e
eu vejo o buquê nas mãos do florista. É no vermelho do perfume das rosas
que reconheço teu cheiro e o sonho. E sei que vou te encontrar no tempo da
delicadeza, onde não diremos nada, nada aconteceu, apenas seguirei como
encantada ao lado teu.
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chega de saudade
A ESPERA
Guilherme Hernandez Filho
Chega impressentidaNunca inesperadaEla que é na vidaA grande esperada!
Não há pressa, mas também não se pode demorar. Quando se fala disso
todos tremem. Não há quem não a tema e não deveria ser assim. É natural. É
o caminho. É o fim.
Para alguns, talvez muitos, há o segundo capítulo e até mais. Não sou
desses. Aqui estamos e aqui encerramos. Façamos o que queremos e devemos
agora. Não vejo outras oportunidades.
As vibrações são nossas. Somos a interferência no Universo. Nosso plano é
aqui. A interação é a geradora da energia positiva que nos move. Entes puros,
básicos, múltiplos ou simples, nulos, etéreos, concretos, axiais, fantasiosos e,
por que não, reais.
Firmada e confirmada existência: cogito ergo sum. Então se deixe levar,
enquanto espera, sem receio. Aqui e ali, sempre há o que fazer. A atividade
corpórea e cerebral é necessária. Sem ela só o vegetativo obscuro do qual nada
se sabe. Ou pouco.
Que pavor assolará a hora do enfrentamento. Aguardar o momento que é
uma certeza na vida. Dizem que se consegue rever tudo num átimo. O bem e
o mal realizado. Os momentos felizes e as dores que se suportou com coragem.
E agora?
Esperança que vem do pensamento positivo: tomara demore a chegar.
Mas demorará? Os que pretensamente se dizem capazes de antecipar o futuro
também estão sujeitos a esta regra única.
Eu ouso ir mais longe. Eu ouso dizer que são duas as certezas universais,
e não uma: a morte, e se pagar impostos. A segunda assusta e nos faz
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
preocupados, mas a primeira é o temor de todos os seres pensantes.
A passagem deve ser doce, inebriante e efêmera. Para o nada, o atemporal,
o imaterial. Então, por que temê-la? O sofrimento só existe na jornada; no
chegar até lá. Aguardemos, pois.
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chega de saudade
ECOS DO PASSADO
Maria Helena Nogueira de Almeida
As feias que me perdoemMas beleza é fundamental
Fecho os olhos para o marulho e a maresia. Quando os reabro vejo a Praia
de Ipanema aos meus pés. Um privilégio esta vista do meu apartamento no
quarto andar da Avenida Vieira Souto. Com a idade estou cada vez mais
saudosista, antigamente tudo me parecia melhor, não havia violência, as
pessoas eram mais solidárias, até o Rio de Janeiro era mais alegre. Voltar no
tempo é apaziguar o coração.
Nossa turma de amigos durou entre os anos 1950 até 62, conhecidos como
os rapazes da alta roda. Queríamos nos divertir. Se Paris era uma festa para
Hemingway, o Rio era uma festa para nós. Tardes de sábado bebericando ao
redor da piscina na pérgula do Copacabana Palace e noitadas no Golden Room.
Soirées dançantes no Hotel Miramar. Aos domingos almoço no Lucas, o melhor
camarão da cidade. Gostávamos de beber uísque e cerveja, naquele tempo as
drogas não rolavam. Os rapazes e moças solteiros ainda moravam com os
pais. Os homens tinham as suas garçonnières para onde levavam as damas. Nós
dividíamos o aluguel dos pequenos apartamentos e fazíamos rodízio duas ou
três vezes por semana.
Meu maior amigo e confidente era o Beto Topete, os rapazes daquela
época gostavam de imitar o cabelo do Elvis Presley e para segurar o topete
usavam um creme de nome Glostora. Só o Beto e o Carvalhinho tinham carros
conversíveis. Fazíamos o corso pela Avenida Atlântica, jogávamos beijos
apenas para as meninas bonitas as uvas, as feias chamávamos de canhão.
Muito divertido, o Topete, dizia conhecer todas as pessoas importantes
do Rio de Janeiro. Seu avô tinha uma casa no Cosme Velho, seus serões
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
frequentados por intelectuais, políticos e artistas. Na época faziam sucesso
Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Íamos assistir a seus shows no Antonio’s
para ouvir os sambas-canções e a Bossa Nova que havia estreado.
Nosso ponto de encontro acontecia na Praia de Ipanema, onde as cariocas
desfilavam sua formosura. Nossas idades iam dos vinte até os vinte oito anos.
Certo domingo falávamos sobre beleza quando passou por nós uma
mocinha magricela. Usava uma saída de banho bem comprida para esconder
as formas. Comentamos que aquela não tinha jeito, seria sempre feia. Beto
discordou, a menina tinha um certo quê, belos olhos, nariz bem feito, mas sem
graça, não sabia ser bonita. Propôs uma aposta, transformá-la em uma linda
mulher. A sugestão foi aceita.
— Não pensem que vai ser aposta barata, não. Uma rodada de champanhe
Veuve Clicquot na pérgula do Copa. Em seis meses transformo essa mulher.
Aposta combinada. Em cinco minutos ele estava ao lado da moça
ajudando-a a fixar o guarda-sol na areia. Ela pareceu surpresa, não devia estar
acostumada à atenção masculina. O Beto era galã, um pão, como diziam as
moças, contou-me como foi a abordagem.
— Você fala?
— Falo, por quê?
— As rosas não falam.
— É um deboche?
— Foi dito como elogio. Mas, vem cá, porque você usa esse cabelo preso
num rabo de cavalo, solte-os, eles são bonitos, sedosos, precisam receber o ar
marítimo. De perto você é bem bonitinha.
— Sou não.
— Você não gosta de se arrumar. Posso fazer uma sugestão?
— Pode.
— Primeiro, posso sentar ao seu lado?
— Pode.
— Já sei que mora em Ipanema, eu a vejo sempre nesta praia. Vou me
apresentar. Meu nome é Roberto Xavier da Silveira, estudante de Arquitetura.
Beto para os amigos. E você?
— Meu nome é Simone de Alencar.
— Bonito. Parece nome de romance. Você estuda ou trabalha?
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chega de saudade
— Os dois. Estou no último ano de Direito. Quero ser juíza como a minha
mãe. Trabalho no escritório de advocacia do Dr. Flamínio Consorte.
— Já ouvi falar, é famoso.
— Você criticou meu cabelo. Gosto de ser natural.
— Você pode parecer natural e mais bonita. Posso dar uns conselhos? Já
somos grandes amigos.
E tornou-se íntimo da garota. Vinham para a praia todo fim de semana. E
não é que a moça foi se transformando? Ele gostava de me contar as etapas.
Fez a Simone tingir os cabelos de loiro. Ela até entrou para a conhecida escola
de modelos dirigida por Maria Augusta. O Beto dizia, Simone, pare de andar
com esse passinho espremido. Jogue os quadris. Rebole o corpo para chamar
a atenção. Mostre ao mundo a mulher sensual que você é.
— Eu não sou sensual.
— Toda mulher tem a sua sensualidade. Precisa mostrar, provocar os
homens.
E assim foi doutrinando a moça, acabou obcecado pela ideia de
transformá-la numa mulher bonita.
Eu o aconselhei, Tome cuidado. Lembre-se da história de Pigmalião. Você
pode se apaixonar.
— Qual nada. As mulheres é que se apaixonam por mim.
Simone tinha um ídolo, Vinicius de Moraes. Sonhava em assistir a um
de seus shows. Beto prometeu levá-la. Certa noite foram ao Antonio’s. No
intervalo ele se aproximou de Vinicius e disse, Gostaria de apresentar minha
amiga Simone.
Vinicius era um sujeito amável. Todos se diziam seus amigos e ele
concordava. Pode ser que ele tenha conhecido mesmo o Beto, na casa de seu
avô, mas não tenho certeza. Simone ficou encantada.
O próximo passo para o nosso amigo era seduzir Simone. Ela passou a
frequentar sua garçonnière.Fiquei apreensivo, Simone era uma boa moça, ingênua, ele poderia magoá-la.
As aulas continuaram e não é que Simone foi embelezando?
As moças daquele tempo usavam um biquíni discreto, parecia mais um
maiô duas peças.
Certo sábado passou por nós uma loira espetacular num traje de banho
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
audacioso. A turma se alvoroçou para saber sua identidade. Atrás dela vinha
um Beto triunfante, era a Simone. Ficamos boquiabertos. A aposta estava
ganha. Fomos comemorar no Copa, tudo regado a Veuve Clicquot. O mestre
estava orgulhoso de sua proeza. Aposta conquistada. O jogo havia terminado.
No entanto o Beto continuou com a Simone. Agora namoro de verdade.
Certa vez confidenciou-me:
— Estou desconfiado da Simone. Ela me parece muito sabidinha. Faz
coisas que eu não ensinei. Você acha que ela tem outro?
O que eu temia aconteceu. Ele estava apaixonado, morria de ciúme e
voltou a me procurar. Disse que tinha certeza. Simone confessou:
— Você fez uma aposta com seus amigos. Fiquei sabendo. Minha vizinha é
namorada de seu amigo, o Carvalhinho. Ele contou para ela e ela contou para
mim. Então também resolvi fazer uma aposta. Apostei com as minhas colegas
de escritório que eu ia conquistar o patrão. Todas estavam apaixonadas por
ele. Ganhei a aposta e vou me casar no começo do ano. Joguei com as armas
de sedução que você me ensinou.
Beto ficou inconsolável. No dia 31 de dezembro levou um barquinho cheio
de flores para Iemanjá. Depositou no mar pedindo para Simone voltar para
ele. Foi em vão. Simone casou e o ex-namorado ficou desiludido.
Preocupei-me, mas o Beto era o Beto. Depois de alguns meses ele foi à
minha casa com um convite de bodas. Ia casar com a Miss Clube Fluminense,
não fazia por menos. Para ele beleza era fundamental.
Hoje somos todos senhores casados, às vezes nossa antiga turma se encontra
para uma caminhada na praia ou um jogo de xadrez, relembramos fatos da
juventude e os ecos do passado voltam a nos enternecer.
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chega de saudade
O CONVITE
Maria Lúcia Rizzo
Crê apenas no amorE em mais nada
O altar estava todo enfeitado de tulipas brancas e amarelas. Os convidados
eram recepcionados por um grupo bossa nova.
Tia Olga aguardava a cerimônia de terço na mão, girava as contas como
se rezasse a ladainha, distribuía um sorriso forçado, consultava o relógio a
cada dois minutos e media da cabeça aos pés cada jovem de vestido mais
curto ou decotado. Permaneceu assim até a entrada de Luiza, vestida toda de
branco, véu de rendas e buquê de flores do campo, ao som de Só Tinha Que Ser Com Você de Antônio Carlos Jobim. Acompanhou cada passo da nubente
até o noivo nitidamente mais idoso, enquanto tentava disfarçar a ponta do
pé direito acompanhando a música. Rezou, prestou atenção a cada palavra
da cerimônia, e só não comungou porque hóstia não havia. De início, parava
de menear a cabeça nas intervenções musicais cada vez que notava alguém
olhando; depois se soltou e até arriscava uma cantarolada.
Terminada a bênção nupcial, tia Olga me confidenciou – Osvaldo, isso
é amor total, sem preconceito, sem cobrança, o sentimento mais profundo
que um pode ter pelo outro, uma joia – e correu para tentar pegar o buquê;
desconfio que na esperança de ser a próxima do poeta.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
O GAROTO E A GAROTA DE IPANEMA
Jairo Navarro de Magalhães
Tu me beijaste, coisa tristeJusto durante a elevaçãoDepois impávida partisteA receber a comunhão
Marcos Vinicius da Cruz e Mello Moraes nasceu nas beiradas de Ipanema.
Cresceu vendo o deslumbramento das ondas, buriladas pela luz solar, em valsa
sobre o azul do oceano. Essas visões fizeram bem à sua alma, e o acompanharam
vida afora. Nesses versos à namorada mostra seu espírito galhofeiro. Menino,
lia Bilac, Raimundo Correa, Castro Alves, mas o pai Clodoaldo de Moraes,
de quem roubava sonetos para presentear namoradas, foi de fato seu mestre.
Virou rapaz, virou poeta, virou compositor, virou diplomata, virou
homem, virou lobisomem, não que tenha se transformado em lobo, mas sim,
por ter sido atacado de divina inspiração. Com apenas quinze anos compõe
sua primeira música: Laura ou Morena, um foxtrote gravado em 32.
Na faculdade de Direito, sofre influência de Otávio Farias, vive uma
etapa místico-cristã. Com o poema Ariana, a Mulher, termina esta primeira
fase poética. Mas quem o estimula a rever seu estilo é Manoel Bandeira. Já
maduro passou a se encontrar, quase diariamente, com os companheiros nos
bares de Ipanema. Tomando umas e outras, diziam — As feias que nos perdoem, mas beleza é fundamental. Por aí iam tarde adentro poetando.
Nessa altura da vida já havia publicado: O Caminho Para a Distância, Forma e Exegese, Antologia Poética e outros mais, todos oferecidos por ele aos amigos
cronistas Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e aos
poetas Murilo Mendes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt. Também
havia iniciado a trajetória de nove casamentos, sem contar as escapulidas.
A primeira eleita foi Tati, mulher intelectualizada que, juntamente com o
americano Waldo Frank, levaram o já diplomata Vinicius ao rompimento com
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chega de saudade
sua formação de direita. Na companhia da esposa Tati escreveu Cinco Elegias, um de seus mais belos trabalhos. A segunda esposa, Regina Pederneira, foi a
união mais meteórica. A terceira surgiu de uma armação de seus amigos Otto
Lara Resende e Rubem Braga; estes conheciam Lila Bôscoli, irmã de Ronaldo
Bôscoli, e sabiam da sua beleza — Ele não vai resistir, apostavam — o que de
fato se deu, paixão à primeira vista. Durante esse casamento publicou Orfeu da Conceição. Durante o casamento com Lila conheceu Tom Jobim que musicou
a peça, posteriormente transformada no filme Orfeu Negro. Nesta fase de vida
o poeta se dedicou à carreira de jornalista na Última Hora. Partindo para a
quarta escolhida, Lucinha Proença, lançou Para Viver um Grande Amor. À Nelita
Abreu Rocha, o quinto enlace, dedicou Para uma Menina com uma Flor.Na caminhada dessa narrativa vamos abrir um parêntese para falar
a respeito de Waldo Frank e Pablo Neruda, que tiveram em comum a
perseguição de governos de exceção. O primeiro, Waldo Frank, chegou a ser
escorraçado da Argentina, refugiou-se no Brasil e caminhou com Vinicius
pelos sertões brasileiros. O segundo, Prêmio Nobel, o chileno Pablo Neruda,
muito embora Senador na sua pátria, teve que fugir atravessando os Andes
em lombo de burro, chegando doente ao México. Vinicius, diplomata nos
Estados Unidos, sabendo do fato saiu de carro e foi visitá-lo.
Vinicius de Moraes perdeu o posto diplomático, mas nada o deixou
frustrado ou triste, a alegria de viver não esmoreceu, pelo contrário, além de
versejar e compor, passou a cantar em shows e casas noturnas; na Boite Ups,
a badalada dos jovens na época, tive o prazer de conhecê-lo.
Continuando com os matrimônios do escritor, a sexta união foi curta e
conturbada com Cristina Gurjão. A sétima escolhida, a atriz Gessy Gesse,
deu-se numa fase hippie. Residindo na Bahia, casaram-se numa cerimônia
cigana. Foram seus padrinhos, Jorge Amado e Zélia Gattai. Viajando em
turnê com Toquinho para a Argentina, Vinicius conheceu Marta Rodrigues,
sua mulher dos pampas. Marta era uma menina, poderia ser sua neta. E,
finalmente, Gilda Mattoso, com quem viveu seus últimos dez anos de vida.
De volta ao correr normal do seu viver, temos Vinicius num feliz momento,
quando viu passar bela garota a caminho das quentes areias banhadas pelo
mar, não se contentou em admirá-la. Entre goles de gin-fizz, foi tomado de
vontade lobisômica de descrevê-la. E foi assim que o poetinha comentou com
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
o outro companheiro de mesa, o Jobim — Olha que coisa mais linda. E nasceu a
Garota de Ipanema.
Hoje, não se encontra mais nesse nosso universo, o poeta, o músico, o
cantor, o cronista, e também diplomata. Mas quando ela, a inspiradora
da canção, passa, ainda cheia de graça, por aquela famosa praça, todos se
recordam do Garoto de Ipanema — Vinicius de Moraes — que teve a alma
tocada por sentimentos indescritíveis e, acompanhado de seu amigo Jobim,
deixou imortalizada em nossos corações A Garota de Ipanema. Ah! Que coisa
mais linda, quando ela passa, cheia de graça.
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chega de saudade
SAUDADES DE UMA ÉPOCA QUE EU NÃO VIVI
Gisella Prado
Lembra que tempo feliz Ah, que saudade Ipanema era só felicidade Era como se o amor doesse em paz
Acordo de manhã, pão sem manteiga.
Desço a Rua Nascimento Silva, em Ipanema. Olho para os lados, para
não ser pega desprevenida pelo pivete, não moro aqui, não posso alcançar o
elevador.
Construção antiga, sem garagem, espremida entre seus vizinhos mais altos.
Deve ter sido há muito que alguma dessas janelas permitia ver o Redentor ou
qualquer outra paisagem que não fosse o concreto dos demais prédios.
Meu olhar saudoso percorre a rua, as esquinas. Também quero aprender
as canções de canção do amor demais.
Será que algum cachorro foi (des)engarrafado aqui?
Noites de boemia, enfumaçadas de nicotina, cachaça de rolha, kabuletê,
um beijo azul, a garota ainda não sabia. Cinco ou seis retas para um castelo.
Chega de saudade, já não há tantos peixinhos a nadar no mar.
Talvez seja melhor ir passar a tarde em Itapoã.
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VINICIUS MUSICAL
Luiz Tarcisio B. Filomeno
Samba em Prelúdio
Em 1956 Vinicius estava de volta ao Brasil vindo de Paris onde trabalhara
em nossa embaixada. Trazia na bagagem uma peça que escrevera, o Orpheo da Conceição, baseada na mitológica história de Orpheo e Eurídice, só que
ambientada num morro carioca e protagonizada somente por atores negros.
Mas lhe faltava a parte musical que deveria ser composta. Procurou sem
sucesso por um compositor até que Lúcio Rangel lhe falou de um rapazinho
novo que estava despontando e que merecia uma chance. O rapazinho era
Antônio Carlos Jobim, que fazia arranjos na gravadora Odeon, tocava nas
boates do Beco das Garrafas e compunha bem. Já tinha um sucesso nas
paradas, a Tereza da Praia, gravada por Dick Farney e Lúcio Alves, e muitas
outras composições à espera de intérpretes.
Promovido o encontro Jobim ouviu atenta e respeitosamente o projeto de
Vinicius e ao final perguntou se tinha um dinheirinho aí. Explica-se: Jobim era
casado e tinha um filho de seis anos para sustentar, e vivia atormentado com
o dinheiro do aluguel do apartamento. Reassegurado por Vinicius iniciaram a
parceria. As primeiras composições desapontaram a ambos, até que surgiu a
eterna Se Todos Fossem Iguais a Você, e aí a trilha sonora ganhou vida. Orpheo da Conceição estreou no dia 25 de julho de 1956 no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, com cenários de Oscar Niemayer e a orquestra sinfônica regida pelo
maestro Leo Peracchi. A peça ficou apenas seis dias no Municipal, indo em
seguida para o Teatro República, sem poder ser considerada um sucesso, mas
consolidou a parceria entre Jobim e Vinicius que nos brindaram com músicas
que se tornaram clássicas em nosso cancioneiro.
101
chega de saudade
Anos depois Vinicius conheceu o violonista Baden Powell e o convidou
para uma nova parceria. Baden, que era bem mais jovem que Vinicius,
praticamente passou a morar com o poeta e diplomata enquanto compunham.
Foi assim que nasceram os Afrossambas (Berimbau, Canto de Ossanha, Consolação etc.) e outras canções de sucesso. Certa noite, embalados pelo combustível
uísque Baden disse que tinha uma nova composição para Vinicius botar letra,
era o Samba em Prelúdio. Tocou-a num maravilhoso solo de violão, mas o poeta
desconversou. Alguns copos mais tarde tocou de novo e o poeta disse que
não botaria letra naquela música porque ela era um plágio de um prelúdio
de Chopin. Baden estarreceu e reafirmou ao parceiro que não, que a havia
composto de início ao fim. Vinicius não se deu por vencido e foi acordar sua
esposa de então, que era pianista e especializada em Chopin, para que ela
comprovasse o plágio. Apesar de envolta em profundo sono ela acedeu e
ouviu atentamente a melodia. Ao final disse que não era prelúdio de Chopin
coisa nenhuma e voltou a dormir. Vinicius então não se deu por vencido e
finalmente disse que está certo, esse aí não é do Chopin, mas é que ele se
esqueceu de fazer esse.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
BRAZILIAN GIRL
Tânia Nogueira de Melo Franco
Olha que coisa mais linda,mais cheia de graça...
1967, efervescente 1967. Acabava de chegar naquele mundo novo, língua
nova, mal sabia o que me esperava quando, aos 17 anos, fui escolhida como
embaixadora mirim – como éramos chamados pela American Field Service –
com a enorme responsabilidade de apresentar o Brasil a um país que mal
nos conhecia. Achavam que éramos meio macacos, andando quase pelados,
comendo bananas pelas ruas, com cobras enroladas pelo pescoço tal era a
quantidade de peçonhentas, e que nossa capital era Buenos Aires!
Mas enfim, lá estava eu, diante de uma plateia, em um lugar desconhecido,
sendo vista como exótica e precisando reagir ao meu próprio nervosismo.
Ah, e com um detalhe que agora me parece ainda mais importante do que à
época, quando penso no nosso Vinicius de Moraes e relembro o dia que ele
me salvou: não falava inglês.
Nada. No máximo, um good morning, olhe lá.
Palco iluminado. Plateia no escuro. Auditório repleto.
As pernas tremiam. A cabeça rodava. Mas chegou a hora e lá fui eu,
arrastando um amigo, Mário, estudante brasileiro que eu sabia que tocava
violão e que morava numa cidade próxima. Tinha tido uma ideia e foi ela que
me iluminou quando, aos primeiros acordes do violão de Mário, soltei minha
voz ainda insegura e fraquinha:
Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela menina que vem e que passa. Pareceu mágica e eu me senti aquela menina cheia de graça. Eu era a própria.
A voz foi ficando mais segura, a postura também. Não lembro de mais nada a
não ser quando acabei.
103
chega de saudade
Não acreditei: estava sendo ovacionada! Palmas para mim. Eram para
mim aquelas palmas!
Era a Bossa Nova que chegava aos americanos que deliravam – como
fazem até hoje – ao ouvir aquele ritmo, um novo ritmo que conquistaria o
mundo, ali na voz de uma menina brasileira.
Minha obrigação estava sendo cumprida. Estava quebrada qualquer
resistência. Após os aplausos, consegui apresentar os slides do Brasil,
cuidadosamente separados, e desfilar para todos o nosso Brasil, o Brasil de
Vinicius, à época um dos diplomatas mais controvertidos. A Brasília, de
Niemeyer, o Rio de Janeiro, protegido pelo Cristo Redentor, braços abertos
para o mundo, a São Paulo industrial, as praias nordestinas, os pampas
gaúchos.
Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela menina que vem e que passa, no doce balanço a caminho do mar.
Vinicius foi minha salvação! Sempre pensei em encontrá-lo – um dia
contaria a ele essa história. Mas não deu. Conto aqui.
Vou adiante. Por muito tempo essa memorável noite me ajudou ali nos
EUA. Tinha sido um sucesso tão grande que fui chamada em muitos outros
locais, muitas outras cidades. A pequena cidade de New England estava
encantada e queria que mais americanos também vissem o Brasil; ouvissem a
brazilian girl, que logo perdeu a timidez, e em pouco tempo aprendeu a falar
inglês, e fluentemente.
Fui capa de jornais, notícia nas escolas, e meu prestígio se estendeu aos meus
agora maravilhados anfitriões que acompanhavam orgulhosos os convites do
Rotary, Lions, onde eu apresentava esse país de Vinicius.
E tudo isto graças aos acordes que ainda soam em todo o mundo, criados
pelo nosso diplomata-mor.
Obrigada Vinicius, você salvou minha vida. E nós dois, juntos, apresentamos
o Brasil.
A coisa mais linda que já vi passar.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
HORA DE PENSAR VINICIUS
Maria Luiza Galli
Não sei bem se é casase é torre ou se é templo:(um templo sem Deus).
Sedução
o seu nome é Vinicius
arquiteto das palavras
retira da pedra bruta
a ternura adormecida
e com o cinzel
esculpe sua poesia
e lapida sua música
mestre do contraponto
transita com facilidade entre
vida e morte
alegria e tristeza
solidão e amor
encanto e desencanto
riso e pranto
pesar e contentamento
surpreendente
entende a tristeza
e festeja a vida.
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chega de saudade
NÃO TER CONTENTAMENTO
Agda Del Cioppo
Sem saudade. Não ter contentamentoSer simples como o grão de poesiaE íntimo como a melancolia.
Se sentes uma dor que te vai n’alma
Se choraram saudade os olhos teus
É porque com certeza a tua calma
Não suportou a pronunciação do adeus.
Reza! Pedir e orar é um consolo
Chora! Que todo pranto é uma oração
E pensa no eterno abandono
Que a despedida deixou em teu coração
Mas não viva somente no passado
Tempo é breve pra ser desperdiçado
Nem te aconchegues na melancolia
Se houver amor, por certo em tua vida
Restou lembrança doce e dolorida
Brasa escondida em muita poesia.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
EU SEI
Agda Del Cioppo
eu sei que vou te amar
Eu sei que te amarei
Da maneira mais querida:
No arfar do beijo
No tocar de minha mão
No doce olhar
Na presença ou solidão
No carinho demorado
Na delicadeza
No pulsar do coração
Na renúncia ao que te causar tristeza
No pudor ou na ousadia
Tenho certeza
Mil anos vão passar
E nem teremos tempo de sentir saudade
Meu homem, eu sei que vou te amar
Não por toda a minha vida
Mas por toda a eternidade.
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chega de saudade
DESATINOS DO AMOR
Maria Angela de Azevedo Antunes
Eu possa me dizer do amor (que tive):Que não seja imortal, posto que é chamaMas que seja infinito enquanto dure.
Salto alto, saia justa e curta. Blusa de seda estampada sob um blazer
bem talhado. Cabelos longos e cacheados. Semblante cheio de ansiedade e
preocupação. A atraente moça entra no consultório pela primeira vez.
Recusa a água oferecida, senta-se e cruza as pernas bem torneadas.
— Acho que não devia ter vindo. Uma amiga me recomendou. Eu estava
cheia de coragem e agora não sei por onde começar.
— O que está acontecendo? Posso ajudar?
— Sabe, sempre me achei bonita, alegre, extrovertida, cheia de confiança,
essas coisas.
Aperta as mãos, mexe nos cabelos, descruza e cruza as pernas, vira-se de
um lado para o outro em movimentos rápidos.
— De uns tempos para cá, nem eu mesma me reconheço. Tenho medo,
choro, ando insegura. Tremo. Falo sozinha.
— Continue. Fale sobre isso.
— Tenho tido uns pensamentos tristes. As coisas ficam indo e voltando na
minha cabeça. Remoendo. Não consigo viver o presente. Não dá pra curtir os
bons momentos. Bons momentos... Tenho medo de tudo acabar de repente.
— Você consegue identificar algum motivo real que possa ter desencadeado
tais sentimentos e sensações? Desde quando vêm acontecendo?
— Bom, na verdade, de uns tempos pra cá. Foi uma paquera relâmpago que
acabou virando relacionamento sério. Cara bacana, sedutor, cheio de amigos,
festas, me envolveu. No início, era um jogo gostoso, alegre, me falava das suas
viagens, a gente cantava junto, até escreveu um poema pra mim. Eu achava
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
que aquilo era paixão, que ia durar pra sempre. Havia uma cumplicidade.
Fixa o olhar no infinito, esboça um sorriso, suspira, e continua.
— É isso. Eu me sentia amada, e agora não sei o que está acontecendo. É
uma sensação horrível de abandono. Não sou mais interessante pra ele. Uma
a mais. Falta aquele abraço, aquele beijo, aquele olhar de te quero. Noite
passada, com uns amigos, ele ficou o tempo inteiro olhando pra outra. Pô,
a gente estava junto. Sei que não fui a primeira dele. Aliás, ele teve muitas.
O pessoal falou. Mas, não. Eu achei que ia segurar a onda. Comigo vai ser
diferente. A culpa é minha. Não devia ter entrado nessa. Eu sou uma burra!
Começa a chorar convulsivamente. Parece sofrer, sua fisionomia
transparece arrependimento. E entre soluços continua:
— Um dia ele me disse o amor é eterno enquanto dura e eu, tão na dele,
apaixonada, não percebi o recado. Gente, como é que pode? Sabe, é uma
mistura de ódio, amor, raiva, saudade, tristeza. Ah! Se eu pudesse voltar...
— Viveria tudo de novo?
109
chega de saudade
O SAPATO
Maria Luiza Galli
Só danço sambaSó danço sambaVai, vai, vai, vai, vai
O furor da festa, filmado e fotografado o tempo todo. À socapa
comentavam: Versace, Ferragamo, Manolo Blahnik, não é um Louboutin,
não tem sola vermelha.
Pulga, cinegrafista contratado, filmou-o desfilando de um lado para o
outro, dançando. Fez questão de fotografar todos os outros presentes à festa,
mas meu sapato era o Rei.
De onde vem esse encantamento de homens e mulheres por sapatos?
Talvez das histórias da carochinha contadas por nossos pais. Mil e
uma Noites, Cinderela, Gato de Botas e tantas outras nos embalavam e
sonhávamos com príncipes e princesas.
De Imelda Marcos? Fascinada por eles. Gastou a fortuna de uma nação.
As chinesas eram enfaixadas para ficarem com os pés pequenos. Seus
sapatos são usados tal como armadura com a mesma função de cinto de
castidade, para que, quando adultas, não se aventurassem fora do lar.
Volto à história do sapato que encantou o cinegrafista. Encontrei-o entre
as prateleiras de uma loja especializada. Assaltou-me o desejo. Magnetizada
fui a seu encontro. Ficou perfeito, exatamente o meu número. Senti-me
poderosa. Saí da loja realizada com a sacola debaixo dos braços. Pura
compulsão.
Em casa, no armário, a relíquia.
Neste sábado ensolarado, convidada para comemorar o aniversário de
um amigo, coloquei um vestido básico e para melhorar a produção, tirei o
sapato de seu lugar cativo. Foi o sucesso do evento.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Bem que ele poderia ter frequentado as festas do poeta e diplomata
Vinicius de Moraes, com muita música, regada a uisquinho. E teria dançado
o jazz-samba:
Só danço sambaVai, vai, vai, vai, vai.
111
chega de saudade
Confesso que hesitei antes de decidir trabalhar, e viver com minha família,
nos Estados Unidos, naquele outono dos anos setenta. Tinha forte restrição
ao apoio do governo às ditaduras do Brasil, Uruguai, Argentina e Chile, e
também à guerra do Vietnã. Tantos jovens americanos mortos, ou forçados a
lutar, contra a própria vontade. E, acima de tudo, a destruição da bela e rica
nação asiática, como relatam, ainda hoje, vários dos amigos norte-americanos,
contrários à participação de seu governo. Além disso, o presidente do Banco
Mundial, onde eu iria trabalhar, tinha sido feroz Ministro da Defesa dos
governos Kennedy e Johnson, responsáveis pela intensificação daquela guerra
inglória.
Após trocar ideias com parentes e amigos, porém, tomei consciência de que
não devia confundir decisões governamentais com a cultura, tradição e qualidade
da população de um país. Um amigo, favorável à viagem, me provocou: Será
melhor continuar no Brasil controlado por generais que tomaram o poder com
um golpe, que apóiam a tortura e o desaparecimento de opositores políticos, e
onde não há mais eleições – ou viver uma rica experiência humana e profissional
nos Estados Unidos e nos países africanos e latino-americanos, com os quais
você irá trabalhar?
Escolhemos um simpático sobrado em Georgetown, bairro antigo de
Washington, com suas casas de tijolos vermelhos que lembram Londres. E
próximo ao Glover Park, onde era ótimo passear. Com o que pagávamos
de aluguel, poderíamos alugar uma cinematográfica casa suburbana em
Bethesda, Maryland, ou na Virgínia, a no mínimo uma hora de viagem da
O POVO FELIZ DO PORÃO
Carlos de Faro Passos
O cachorro é o melhor amigo do homem. O uisquinho, é o cachorro engarrafado!
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
cidade, em dia sem congestionamento de tráfego. Optamos pela proximidade
do trabalho, dos cinemas e teatros, e da universidade de Georgetown, onde
minha mulher lecionou português e cultura brasileira. Para ir ao trabalho, eu
tomava meu confortável ônibus a uma quadra de casa, e em vinte minutos
estava no prédio do Banco, nas proximidades da Casa Branca.
Optamos por uma escola pública para nossas filhas, a cem metros de casa,
e não nos arrependemos. A diretora logo notou a presença das menininhas
brasileiras, que necessitavam de apoio especial para aprender inglês. Nossa
filha menor, após ficar muda durante três meses, começou a falar inglês com
fluência e pronúncia melhores do que as nossas.
Washington é uma cidade verde, onde fizemos amigos com facilidade.
Muitos, distantes das famílias e propensos a fazer novas amizades, vinham
de outros estados acompanhando políticos, ministros e congressistas; os
estrangeiros trabalhavam em embaixadas, ou organismos internacionais,
como o Banco Mundial, o Banco Interamericano, a OEA, a Organização
Mundial da Saúde, entre outros.
Assim que chegamos, fomos convidados a participar de uma block party, a festa anual do bairro. As famílias eram estimuladas a levar seu
animal doméstico, roupas e comidas típicas. O delicioso pastel brasileiro
foi rapidamente consumido, e facilitou nosso entrosamento. Ocorreram
competições de cachorros cantores, de papagaios que falavam mais de um
idioma, disputas esportivas e musicais. Para não ficar em desvantagem,
entoamos a Garota de Ipanema, do Vinicius.
Um simpático casal de vizinhos havia requisitado um terreno no Glover
Park, cedido pela prefeitura, para plantio de verduras e legumes. Entre o parque
e sua casa passavam pela nossa, e de vez em quando éramos presenteados com
maços de cenouras, hortaliças recém-colhidas. Acabavam de chegar do Vietnã
com o filho pequeno, onde o marido, advogado que dirige até hoje uma ONG
defensora de veteranos de guerra, assessorava jovens soldados recrutados
compulsoriamente pelo draft militar. Eles rejeitavam a guerra; muitos tinham
ido para o campo de batalha heroicamente desarmados, e moviam ações
contra o governo.
No final do ano, fomos convidados para passar o réveillon na casa do casal,
com o compromisso de levar música do Vinicius. Tanta gente simpática,
113
chega de saudade
ótimos papos e repousantes doses de cachorro engarrafado. Outro vizinho, um
jovem solteiro, logo aceito por nossas meninas por ensiná-las a caçar lightening bugs – os vagalumes que guardavam em vidros para uso noturno – contava
sua experiência em Saigon, onde teve a sorte de ficar na administração do
aeroporto militar. Música americana e brasileira, uísque de boa qualidade.
— Há um happy people downstairs, dizia-me, de vez em quando, o anfitrião.
E eu respondia – Thanks, estou muito feliz aqui mesmo. Mas ele tanto insistiu
para que eu me juntasse ao povo feliz do porão que acabei aceitando o convite,
e desci com os donos da casa.
O happy people estava muito alegre mesmo. Sentados em almofadas à volta de
uma mesinha central, fumavam um cigarro que circulava entre todos. Nunca
fumei na minha vida; sempre que o pito passava, dizia: – No, thanks. Depois da
enésima negação, disse-lhes que não era contra a fumegante comemoração,
só que não apreciava o baseado, jamais tinha dado uma baforada na vida. A
dona da casa, boa anfitriã, subiu então para a cozinha e voltou logo com uma
bebida estimulante, segundo ela: um forte chá de marijuana. Isto mesmo, uma
bebida preparada com a nossa popular maconha que, intimidado, acabei por
ingerir. Somada ao uísque que eu já havia tomado, no dia seguinte comecei o
ano novo numa penosa convivência com ervas e destilados.
O réveillon, aquele chá, e a experiência com o povo feliz do porão levaram-me
a duas descobertas: que nossos simpáticos vizinhos cultivavam maconha entre
as inocentes cenouras, e que o cachorro engarrafado do Vinicius era mil vezes
melhor do que aquele intragável chá de erva.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
DIAS DE ORFEU
Carlos Eduardo Cornacchione
Agora que não estás,deixa que rompa o meu peito em soluços!
O amor morreu. Esse pensamento nebuloso relampejou na leitura de Orfeu
da Conceição, transposição para os morros cariocas da mitológica história de
Orfeu e Eurídice por Vinicius de Moraes.
Vejam que situação. O filho de Apolo casou-se com Eurídice em núpcias
mal agouradas. Dias depois, ela foi assediada num bosque, pisou numa serpente
e morreu. Orfeu convenceu o Reino dos Mortos a devolvê-la sob condição de
não a olhar durante a viagem. Adivinhem, olhou, e ela morreu pela segunda vez.
Viúvo tão distinto, despertou o desejo das donzelas. Desprezou todas, em memória
à finada, e foi fulminado pelo ódio. As musas tiveram que juntar os pedaços do
seu corpo para enterrá-lo. Desencarnado, baixou ao Tártaro e sabemos o final:
encontrou Eurídice e os dois fantasmas viveram mortos felizes para sempre.
Nenhum deus grego, nem Vinicius, que transformou lira em violão e
música celestial em sambinha, esclarecem a moral da história. Pelo andar
da biga na urbe carioca, a garota da Tijuca teria ficado com o pastor que a
seduzia, e o viúvo, a exemplo de Vinicius, se casado com nove. Não o filho de
Apolo, nem Eurídice, que resistiram à tentação efêmera e ganharam o etéreo.
Tenho ou não razão? Se o amor não morreu, matou. O Orfeu grego cantou
– O Amor aqui me trouxe, o Amor, um deus todo-poderoso... E o da Conceição – Sem ti sou nada, sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada... A mitologia está longe de
ser leitura diária, mas Cupido continua disparando suas setas, e as colunas
policiais estão repletas das suas feridas; o assédio em lotações e paróquias, e
os julgamentos de repercussão nacional de goleiros e doutores são refrões sem
bossa.
115
chega de saudade
Calma, Orfeu ensinou-me que um olhar descuidado pode matar o leitor.
Vinicius, se não foi moralista franciscano, cantou o amor à sua maneira, e
amor é vida aqui e no Além. Fecho a crônica fazendo meu o pedido de Orfeu
a Plutão – Imploro-vos: uni de novo os fios da vida de Eurídice.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
TORMENTO INFINITO
Carlos Eduardo Cornacchione
Minha desventura é ter perdido teu amor.
Alguém conhece um terreno baldio na Avenida Viera Souto? Vinicius, sim,
refúgio de mendigos. Esqueça a violência, gente desprovida de conta bancária,
mas cheia de dignidade. Um, inclusive, é poeta, e faz dos seus versos o seu cartão
de visitas. Do pó viemos e ao pó retornaremos, se pó de arenito de Ipanema não
faz diferença – somos iguais, e o canto do poeta-mendigo desperta um broto triste
que o contempla do seu apartamento de luxo à beira-mar. A primavera, sabe
você, faz milagres, e a garota se cobre de flores para o trovador da comunidade
descamisada, não da praia, do terreno.
Foi no Au Bom Gourmet que Pobre Menina Rica estreou em 1963 na voz de
Nara Leão, e exatos cinquenta anos depois, ouço as canções do nada original e
sempre atual conto de fadas. Dizem que os tempos são outros, mas desde Adão
e Eva um par de olhos verdes pode brilhar mais que duas esmeraldas.
No mesmo prédio da pobre garota rica vive um casal, desses de arremessar
vaso e o que mais aparecer à mão. Coisas de carência afetiva. Solfejamos
o refrão de cabeça, o homem trabalha para subir na vida, o dinheiro é
base da felicidade, sempre cansado e com dor de cabeça. A vingança felina
é implacável – Você acha que isso é importante para mim? – e dá-lhe joia
voando pela janela do condomínio para aleluia de um mendigo que louva as
dádivas do céu no lote contíguo.
O mendigo, porém, é um penitente convicto, profissional da mendicância,
incorruptível, entesoura tudo sem usufruir até a morte. O poeta-mendigo é
seu herdeiro universal e, agora endinheirado, perde o amor da garota e chora
– minha desventura:
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chega de saudade
Ah, meu tormento infinito que me vais matar de dorOnde estão teus olhosCheios de ternuraTua face puraCheia de esperançaMinha desventura é ter perdido teu amor
As joias só podem ser azaradas e de mau gosto com certeza. Seja como
for, poesia e riqueza não rimam. As fábulas versejam que o amor floresce nas
carteiras baldias e fenece nos bolsos opulentos. Esse é o meu drama de pobre
cronista remediado, sou um personagem sem papel nos contos. Solidarizo-me
com o poeta, as fadas não gostam de nós, querem-nos passando o chapéu pela
esmola do afeto ou abastados solitários. Solto um grito de reivindicação – Viva
o amor-classe-média! E agora peço licença para arrematar, o meu broto está
me lembrando: eu ainda não terminei de lavar a louça. Alguém tem varinha
de condão?
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
DUETO
HelÔ Bello Barros
Eu sem você não tenho porqueporque sem você não sei nem chorarSou chama sem luzjardim sem luar
Estamos os cinco no carro. Dois irmãos menores, meus pais e eu. Fim de
tarde, passando pela represa, naquele ponto onde se vê água dos dois lados.
E o edifício da Sabesp. O sol entra oblíquo e a música toca no rádio. Meu pai
acompanha com voz potente, o prelúdio. Eu sem você não tenho porque...
Esta imagem descrevo como menina, sentada no banco de trás do DKW azul
e cantando Samba em Prelúdio com meu pai. Deste lugar, onde a cena acontece,
me desconecto. Uma bruma se interpõe à minha vontade. Algo diz: chega, pare
de ser refém do amor e das relações. Não que eu queira a solidão, longe disto,
mas esta coisa pastosa que afugenta os nãos da minha boca e o dom de ter ganas.
Fica tudo parado ali, naquele carro, rumo à praia. Minha mãe está quieta, meu
pai cúmplice. Eu apenas criança, sentindo que algo vai acontecer, olhos cansados
de olhar para o além. Sobra um peito esquálido e fugidio. E a melancolia.
Andei fazendo perguntas a pessoas com traumatismos na infância. O tempo
que precede a tragédia fica vivo e tem tanto ou mais poder que o presente. O
colorido das cenas se fixa e não há o que enterneça as imagens.
Mais uma vez repito, tento contar a história a partir da infância, quando
tinha 11 anos e cantava Samba em Prelúdio com meu pai. Estou sentada no
banco de trás de um carro, sem saber ainda que aquele seria o último final de
semana antes do acidente. Acidente que deixou a mãe sem falar por mais de
um ano. Mãe perdeu a voz e levou a minha. A noite se tornou orelha escura,
alerta a todos os sons.
Como o conjunto, o ritmo e uma escolha de palavras podem acordar seres.
Pois bem, quero acordar a menina e a dor que ela sente por antecipação. Pra que
119
chega de saudade
deste lado, da maturidade, se abra um túnel onde o perfume dela se desprenda e
eu possa ser fiel ao que houve. A vida na cidade era de certa forma recente, e os
baldios apenas começavam a se perder de naturezas. E vem o gosto da resiliência
que eu sofria por minha mãe, sufocada na própria juventude com a fumaça da
Rhodia. O avental e os cabelos em lenços, apesar dos brasões monografados nos
lençóis. Eram dela as mãos vermelhas empunhando a colher de pau em panela
de polenta. Ou minhas? O amor era a crença, e meus pais, tolamente felizes.
Eu sem você não tenho porque...Vejo a menina, no impulso de responder,
de cantar e dizer ao pai que tudo é pra sempre. Volta querido, os meus braços
precisam dos teus. E a luz da tarde foi perdendo o lilás e o dueto aconteceu numa
felicidade de maçã.
Se o acidente não tivesse se cumprido, com certeza este episódio se perderia,
mas o silêncio que se seguiu, foi indelével. Naquele instante, os cabelos anelados
de minha mãe, foram iguais aos meus. Três cirurgias e arames e olhos infinitos
e caderninhos com seu quereres e acordar gritando o silêncio encravado na
garganta e o dueto ali, mudo e presente. O tempo era de submissão. Silêncios.
Ah que saudade, que vontade de ver renascer nossas vidas.
E o lirismo cobriu as cozinhas com fórmicas estreladas e de pinguins soberanos
as geladeiras.
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chega de saudade
CHEGA DE SAUDADETributo a Vinicius de Moraes
Copyright © by autores
Projeto com o apoio da Diretoria Cultural do Club Athletico Paulistano
obra atualizada conforme o Novo Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa
Carlos Eduardo Cornacchione
HelÔ Bello Barros
HelÔ Bello Barros
Loelia van Rooy
Cassio Manga
Coordenadores
Capa e projeto gráfico
Ilustrações
Charge
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Praia de Ipanema
Bondinho Pão de Açúcar
Cristo Redentor
Outeiro da Glória
Bar VelosoPraia de Botafogo
Cristo Redentor Praia de Copacabana
Loelia van Rooy aceitou a tarefa de ilustrar este livro generosa e profissionalmente. Entendeu o nosso propósito e se pôs ao trabalho. São doze ilustrações de paisagens do Rio de Janeiro entremeadas nos textos do Caderno CHEGA DE SAUDADE, tributo a Vinicius de Moraes. O grupo agradece a dedicação e a delicadeza expressa em nanquim e filigrana.
Autores
Mineira de nascimento, carioca de criação e paulistana de coração, formou-se pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, frequentou o ateliê de Evandro Carlos Jardim, como também o ateliê Graphias. Realizou exposições individuais na Holanda e coletivas no Brasil, premiada nos concursos de artes plásticas do CAP e da ACESC. Seu trabalho é iconográfico retratando várias cidades.
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chega de saudade
Praia de Ipanema Lagoa Rodrigo de Freitas
Praia do Flamengo Praia de Ipanema
Os desenhos de Loelia van Rooy
Na aparência são registros de uma quase memória ou lembrança de um tempo sempre presente como substrato da história e da cultura de um lugar, para todos, indistintamente.
Loelia nos mostra suas litografias e seus desenhos a bico de pena e tinta nanquim, com pena tirada de uma haste muito fina e bem apontada.
Referentes à cidade do Rio de Janeiro, seus desenhos despojados e discretos na fatura e na economia dos meios materiais escolhidos para sua elaboração são registros que revelam o zelo e a rara sensibilidade de um gesto contido no traço ao servir um olhar que elege em silêncio o objeto a ser contemplado.
São tramas de um tecido gráfico que pelo traço modela luzes e sombras sobre uma folha de papel e sua conversão em sinais sensíveis que significam um espaço e seus diferentes tempos. O espaço geográfico de um lugar, seu mistério e seu destino, na alusão de uma paisagem de origem. Paisagem que, na sua unidade e variedade, também nos sugere o não visível por exceder, muitas vezes, as características externas de uma realidade, sem, entretanto, negar a identidade do objeto representado.
Com emoção e discrição seus desenhos nos oferecem as vistas de um território, sua materialidade, seu recôndito e a presença de um tempo que dispensa a data. Um horizonte intangível porque sempre distante. Sua atmosfera e sua luz como expressão do sentimento.
Evandro Carlos Jardim
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
Cassio Manga é chargista, cantor/compositor, diretor de arte e ilustrador. Estudou arquitetura na FAU, trabalhou em algumas agências de publicidade, como Denison e Usyna. Já publicou na Folha de São Paulo, no Pasquim, tendo feito várias capas. Fez capas também para a revista Primeira Leitura e Courier (Japão). Colaborou com as revistas Five Stars (onde ilustrou Ignácio de Loyolla Brandão, Ivan Ângelo e José Nêumanne Pinto), Meu Próprio Negócio, Bella Vitória e o Fanzine PnoB. Hoje faz charges para a revista O Paulistano e ilustra o quadro Pra Quem Você Tira o Chapéu, do Programa Raul Gil. Participou de inúmeras exposições, entre eles algumas no Metrô e no Salão de Humor de Piracicaba. Tem um livro de palindroemas (poemas em palíndromos) ilustrados lançado na Casa das Rosas. Apresentou também o quadro de comédia stand-up - Deu pano pro Manga - em bares e teatros. Co-escreveu e atuou na peça Sobre Humano. Produziu, escreveu e apresentou seu programa Fiapos do Manga na KazTV.
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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano
IconografiaAs epígrafes são de Vinicius de Moraes
pág.15 — Macho e fêmea os criou. Bíblia: Gênese, 1, 27 - O Dia da Criaçãopág.21 — De tudo, ao meu amor serei atento/Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto… - Soneto da Fidelidade pág.22 — Que o sofrimento vem, essa saudade/De estar perto, se longe, ou estar mais perto/Se perto,... - Monólogo de Orfeupág.23 — Quem és tu/Quem és/Serás a sombra que me espera/Ou és a breve primavera/A mariposa que se pousa/E que se vai - Quem és pág.25 — Há um renovar-se de esperanças/Porque hoje é sábado. - O Dia da Criaçãopág.27 — E o futuro é uma astronave/Que tentamos pilotar/Não tem tempo nem piedade/Nem tem hora de chegar - Aquarela, parceria com Toquinhopág.29 — Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo/Que descolorirá - Aquarela, parceria com Toquinhopág.31 — É claro que a vida é boa/E a alegria, a única indizível emoção - Dialéticapág.33 — … silenciosos […]/Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir/E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas/Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada. - Ausênciapág.34 — Quando lanças tua rede lanças teu coração com ela pescador! - Pescadorpág.35 — O tempo... sombras de perto e sombras na distância - vem, o tempo quer a vida! Sonata do Amor Perdido - Lamento no 1pág.38 — Tristeza não tem fim/Felicidade sim. - A Felicidade, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.40 — Quando a luz dos olhos meus/E a luz dos olhos teus/Resolvem se encontrar - Pela luz dos Olhos Teuspág.42 — Quem diz muito que vai, não vai/E assim como não vai, não vem/Quem de dentro de si não sai/Vai morrer sem amar ninguém. - Berimbau, parceria com Baden Powellpág.43 — O seu balanço é mais que um poema/É a coisa mais linda que eu já vi passar. - Garota de Ipanema, parceria com Antônio Carlos Jobim pág.46 — Se a tristeza um dia/Te encontrar triste sozinho/Trata dela bem/Porque a tristeza quer carinho - Canção de Enganar Tristeza, parceria com Baden Powellpág.48 — Não comerei da alface a verde pétala/Nem da cenoura as hóstias desbotadas/Deixarei as pastagens às manadas/E a quem mais aprouver fazer dieta - Não Comerei da Alface a Verde Pétalapág.50 — Voltou a esperança/É o povo que dança/Contente da vida/Feliz a cantar - Marcha da Quarta-feira de Cinzas, parceria com Carlos Lyra pág.53 — Um minuto o nosso beijo/Um só minuto; no entanto/Nesse minuto de beijo/Quantos segundos de espanto! - Um Beijopág.54 — Eu cá por mim, odeio paradoxos... - cortado por Vinicius na prova tipográfica do livro Para Viver um Grande Amor. pág.56 — Sem pedir licença muda nossa vida/Depois convida a rir ou chorar - Aquarela, parceria com Toquinhopág.58 — Pra que chorar/Se o sol já vai raiar/Se o dia vai amanhecer - Pra Que Chorar, parceria com Baden Powellpág.60 — Canta, canta/Canta, vai, vai/Segue cantando em paz - Canta, canta mais, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.63 — Mas sabia vibrar em presença da folha branca que me pedia versos, viva como uma epiderme que pede carinho. - O Aprendiz de Poesiapág.65 — Já não havia sombra em ti – eras como um grande deserto de areia. - Agonia
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chega de saudade
pág.67 — O amigo: um ser que a vida não explica/Que só se vai ao ver outro nascer. - Soneto do Amigopág.68 — Quem virá despetalar pétalas/No meu túmulo de poeta? - A Hora Íntima pág.70 — Um minuto nosso beijo/Nesse minuto de beijo/Quantos segundos de espanto! - Um Beijopág.72 — Chega de saudade - Chega de Saudade, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.73 — Copacabana, praia de memórias!/Quantos êxtases, quantas madrugadas/Em teu colo marítimo!/— Esta é a areia/Que tanto enlameei com minhas lágrimas. - Copacabanapág.75 — Eu amei/Eu amei, ai de mim, muito mais/Do que devia amar/E chorei/Ao sentir que iria sofrer/E me desesperar - Amor em Paz, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.76 — Filhos... Filhos?/Melhor não tê-los/Mas se não os temos/Como sabê-los? - Poema Enjoadinhopág.78 — Louco meu amor que, quando toca, fere/E quando fere vibra, mas prefere/Ferir a fenecer – e vive a esmo/Fiel a sua lei de cada instante/Desassombrado, doido, delirante/Numa paixão de tudo e de si mesmo. - Soneto do Maior Amorpág.81 — sabe, parceirinho? eu quero é desencarnar! pág.83 — deixa pensar que pra amar é preciso fingir - Estamos Aí, parceria com Antônio Carlos Jobim, Chico Buarque e Toquinhopág.85 — Amo-te tanto, meu amor... não cante/O humano coração com mais verdade... - Soneto do Amor Totalpág.87 — Chega impressentida/Nunca inesperada/Ela que é na vida/A grande esperada! - A Morte pág.89 — As feias que me perdoem/Mas beleza é fundamental. - Receita de Mulherpág.93 — Crê apenas no amor/E em mais nada - Duas Canções de Silênciopág.94 — Tu me beijaste, Coisa triste/Justo durante a elevação/Depois, impávida, partiste/A receber a comunhão - A Primeira Namoradapág.97 — Lembra que tempo feliz/Ah, que saudade/Ipanema era só felicidade/Era como se o amor doesse em paz. - Carta ao Tom, parceria com Toquinhopág.98 — Samba em Prelúdio - Samba em Prelúdio, parceria com Baden Powell pág.100 — Olha que coisa mais linda/Mais cheia de graça. - Garota de Ipanema, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.102— Não sei se é casa/Se é torre ou se é templo:/(um templo sem Deus). - Poética IIpág.103 — Sem saudade. Não ter contentamento/Ser simples como o grão de poesia/E íntimo como a melancolia. - Quatro Sonetos de Meditação Ipág.104 — Eu sei que vou te amar - Eu Sei Que Vou Te Amar, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.105 — Eu possa me dizer do amor (que tive):/Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure. — Soneto da Fidelidadepág.107 — Só danço samba/Só danço samba/Vai, vai, vai, vai, vai - Só Danço Samba, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.109 — O cachorro é o melhor amigo do homem. O uisquinho, é o cachorroengarrafado! - Livro de Letras pág.112 — Agora que não estás, deixa que rompa o meu peito em soluços! - Monólogo de Orfeu da Conceiçãopág.114 — Minha desventura é ter perdido teu amor. - Minha Desventura, parceria com Carlos Lyrapág.116 — Eu sem você /Não tenho porquê/Porque sem você/Não sei nem chorar. - Samba em Prelúdio, parceria com Baden Powell
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1 Guta Rezende Soares 2 Maria Angela de Azevedo Antunes3 Adriana Magalhães4 Agda Del Cioppo5 Ricardo Lahud6 Maria Lúcia Perrone Passos7 HelÔ Bello Barros8 Vinicius de Moraes9 Carlos Eduardo Cornacchione10 Rogério Matarazzo11 Ignez Matarazzo12 Danielle Martins Cardoso13 Maria Lúcia Rizzo14 Mariza Baur15 Angélica Royo16 Angela Guimarães17 Teresinha Taumaturgo Policastro18 Luiz Antonio de Queiroz19 Maria Júlia Kovács20 Maria Helena Nogueira de Almeida21 Bia de Castro Oliveira22 Giselda Penteado Di Guglielmo
23 Hans Freudenthal24 Betty Wey25 Carlos de Faro Passos26 Gisella Prado27 Silvana Marani28 Lisa Kahuna29 Tânia Nogueira de Melo Franco30 Luiz Tarcisio B. Filomeno31 May Parreira e Ferreira32 Vicente Rággio33 Maria Luiza Galli34 Lilian Gattaz35 Suzana Montoro36 Gilda Pasqua Barros de Almeida37 Heloisa de Queiroz Telles Arrobas Martins38 Guilherme Hernandez Filho39 Maria Helena F. Vieira40 Jairo Navarro de Magalhães41 Lygia Pistelli42 Renata Julianelli43 Christina Tibiriçá
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