A
C O N S P I R A Ç Ã O
C E L L A M A R E
N U N O
J Ú D I C E
:
Nuno Júdice
A CONSPIRAÇÃO CELLAMARE
Novela
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Tudo o que eu tinha projectado escrever no último
Verão ficara adiado para o Inverno. A literatura não é o
resultado de factores meteorológicos, pensava eu, e a
própria inspiração podia resistir à passagem do calor para
o frio, levando -me a subir ao terraço, nas noites de Lua
nova, para ver, no negrume do céu, a posição exacta das
constelações que eu sabia reconhecer, para encontrar a
origem dos signos que pontuam as vidas e as decisões
humanas. Precisava, antes de fazer qualquer outra coisa,
de definir o meu projecto. Sabia que tivera um parente
remoto que andara metido em conspirações, e que talvez
tivesse perdido um bom futuro nos braços de amantes
parisienses quando pôs o jogo acima dos segredos, o que
é o pior que se pode fazer num país estrangeiro, embora
se goze da imunidade diplomática, que ele tinha, como
Embaixador do rei de Espanha em França. O meu pro-
blema inicial era que eu não queria escrever um romance
histórico; eu nem sequer queria escrever um romance.
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Nuno Júdice
Seria uma mistura de géneros, entre o diário, as memó-
rias e a ficção; mas já sabia, ao definir esta hibridez, que o
resultado seria sempre classificado como não gozando de
nenhum desses estatutos e, por isso, carecendo da solidez
que se exige a um texto narrativo.
Chegado aqui, pensei que estava a ser vítima da influên-
cia do meu próprio tempo. Não sabia se o que se estava
a viver no mundo era uma mudança de época ou se iria
prolongar -se a mesma indefinição de poder. Por outro
lado, embora estivesse a pensar se deveria ou não tomar
posições no quadro da evolução que se estava a desenhar,
olhei para o presente e decidi que mais valia esperar para
saber para onde apontavam os ventos, ou seja, não os
ventos mas aquelas bandeirinhas que, nos aeroportos ou
nas auto -estradas, avisam os pilotos de que devem tomar
cuidado para não perderem o rumo ou, na pior das hipó-
teses, para não se despistarem. Enfim, se era isto que eu
queria fazer, teria de me informar; mas andar à procura
de documentos no meio de arquivos e velharias sobre
um antepassado que não ficou nos livros de História, e
cuja existência conhecia apenas por algumas vagas refe-
rências de linhagens familiares, não era a minha vocação.
Lembrei -me, então, que poderia compensar esse meu
desinteresse se preenchesse as lacunas com elementos
de pura imaginação, como fizeram muitos cronistas do
passado histórico antes que se descobrisse que não são
os homens o motor das transformações do mundo mas o
preço dos cereais, do petróleo, das acções, para não falar
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A Conspiração Cellamare
de factores mais recentes como a baixa do rating ou as
metas do défice ou a subida dos juros da dívida.
Avesso a este tipo de linguagem economicista e impes-
soal, a criação desses personagens poderia fazer renascer
um passado que desconhecia e fazer com que o vivesse,
eu próprio, no caso em que a ficção me desdobrasse em
seres que me completariam, correndo embora o risco de
que fossem duplos de mim próprio. Neste caso, como
não gosto de me ver no espelho do que escrevo, teria de
partir o vidro e deixar que ganhassem opacidade e espes-
sura para se libertarem de mim. Apesar de tudo, precisava
de um mínimo de certezas para não incorrer em erros no
enquadramento da época, a que se dá o nome de ana-
cronia, como fez Cecil B. DeMille quando deixou que se
visse um imperador romano a ver as horas num relógio de
pulso; e foi este o ponto de partida para uma experiência
que veio demonstrar que o acaso não existe.
Foi isto que me fez aceitar um convite para ir ao sul
de França onde já estivera, muitos anos antes, num hotel
recém -inaugurado da zona pós -moderna de Montpellier,
desenhada pelo catalão Boffil, onde fiquei amigo do
Gamal Al -Ghitany que, anos depois, me ligaria inespera-
damente da húmida quinta da Riba Fria em que o tinham
hospedado por ocasião de um encontro sobre imprensa
e liberdade. Estava sozinho, e pediu -me que o fosse bus-
car. Enquanto jantávamos, em minha casa, ensinou -me a
distinguir autênticos e falsos tapetes orientais. Começara
assim a sua carreira, como desenhador de tapetes, e falava
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Nuno Júdice
do tema com a sabedoria de quem não esqueceu as suas
origens. Obviamente, um romance tem muito dessa arte.
Tal como um tapete, divide -se em secções ou capítulos
onde o autor vai desenhando cenas e personagens que o
obrigam a ter um domínio pleno do todo em que se ins-
crevem; e quem olha de fora, vendo cada quadrado com a
sua autonomia, distingue as linhas que os ligam, com fios
subtis, para que o conjunto resulte harmónico. Quanto a
Gamal, nunca deixou de me ir dando notícias, até me ter
enviado, quase em sinal de testamento, pouco antes da
sua morte no Cairo, já na ressaca da Primavera egípcia,
um livro chamado Semáforos. Interpretei o título como
a metáfora da escrita, descrevendo a situação de quem,
perante a página branca à sua frente, espera que o verme-
lho do bloqueio criativo passe a verde, e possa avançar na
sua composição, como está agora a suceder nesta aber-
tura a que os antigos chamaram incipit.
Nestas viagens, sucedem sempre coisas imprevistas, e
fui parar a um hotel em que cada quarto tinha o nome de
um escritor, talvez porque era o período em que iria ter
lugar uma Feira do Livro naquela cidade. A ideia pareceu-
-me simpática e fui -me interrogando sobre qual deles me
iria calhar, enquanto subia a escada no meio de quartos
Balzac, Chateaubriand, Molière, Gide, nomes que eu
conhecia com maior ou menor profundidade através de
cursos que preparara ao longo dos anos sobre a obra de
cada um deles. Por fim, cheguei ao fundo de um corredor
no segundo andar para onde se tinha de subir a pé, e dei
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A Conspiração Cellamare
com um cartaz com o nome de Sade pendurado na porta.
Ainda hesitei antes de abrir, interrogando -me sobre se
seria um acaso ou se teria havido uma intenção por parte
de quem me destinara aquele quarto. De facto, eu publi-
cara há pouco tempo O Complexo de Sagitário de que o
Marquês fora um dos motivos inspiradores, e em parti-
cular certa passagem de A Filosofia na Alcova que, para não
me repetir, não vou aqui circunstanciar. Mas logo afastei
essa ideia, uma vez que o meu livro não estava publicado
em França, e os responsáveis do hotel não deviam fazer
ideia dessa minha relação com o Marquês, a qual ainda
tinha outra alínea dado que, além desse romance, eu tam-
bém publicara uma versão moderna do Diálogo entre um Padre e um Moribundo. E só para desfazer equívocos, devo
esclarecer que nunca dei o século XVIII francês, nas minhas
aulas, nem tive Sade no programa, lacuna de que decidi
penitenciar -me na decisão que tomei naquele instante.
Com efeito, ou voltava a descer e ia pedir para me
mudarem de quarto, ou aceitava o meu destino; e acabei
por aceitá -lo porque, depois de carregar uma mala escada
acima, já não tinha paciência para fazer o mesmo per-
curso em sentido inverso e, sobretudo, ter de explicar que
não gostava do nome dado ao meu quarto quando, afinal
de contas, a minha relação com a sua obra não me dava
outra hipótese senão resignar -me a abrir a porta, pousar
a mala, e reflectir nas coincidências que nos podem cair
em cima. E supus, por descargo de consciência, que para
me terem dado aquele quarto é porque nenhum outro
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A Conspiração Cellamare
pondo na prateleira do esquecimento as coisas desagra-
dáveis e guardando as boas recordações. Ao entrar no
meu quarto com o nome de Sade, porém, percebi que
não havia nada que me pudesse fazer sentir desconfor-
tável. Ter -me -ia sentido pior se o quarto se chamasse
Antonin Artaud; e nem quero imaginar o que teriam sido
os sonhos inspirados por esse louco surrealista, cuja voz
rouca e gritada eu ouvira em antigas gravações para a
rádio. Sade, apesar de tudo, fora um aristocrata e, embora
tivesse terminado a vida num hospício de loucos, nunca
perdeu a consciência e o génio com que imaginou o mal
absoluto. Assim, tranquilamente, enquanto ia abrindo a
mala, seguindo a rotina de sempre, com a vista do prédio
em frente, de janelas de guilhotina fechadas, lembrei-
-me que o poderia interrogar sobre um episódio pouco
lembrado da sua vida, logo a seguir ao seu casamento e à
noite em que, juntamente com o criado, obrigou quatro
prostitutas a abusarem das cantáridas, deixando -as muito
maltratadas. Condenado à morte, foge para Itália e, seis
anos depois de Casanova, refugia -se em Nápoles em 1776.
Não encontrei referência ao local em que terá residido;
e isto interessar -me -ia porque era em Nápoles que se
situava o palácio do meu remoto parente, o embaixador
Antonio Giudici, príncipe de Cellamare. O pai, Nicolau
Giudici, tesoureiro do vice-reino de Nápoles que então
fazia parte do império espanhol, fora o responsável pela
recuperação do palácio e por uma prole de quinze filhos;
e Antonio distinguiu -se em batalhas, durante a guerra da
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Nuno Júdice
Sucessão, ganhando a experiência que lhe permitiria con-
tinuar uma actividade em que teve sucessos ao serviço de
Espanha, na batalha de Luzzara em 1702, e insucessos,
como ter ficado preso dois anos quando participava no
cerco de Gaeta, em 1707. Embora o pormenor mais inte-
ressante desta guerra tenha sido a episódica conquista
de Madrid pelas tropas portuguesas, o que vem aqui ao
caso é que a nomeação de Cellamare para Embaixador
em Paris se deveu ao acordo de paz, em 1714, que deu a
Filipe V, neto de Luís XIV, a coroa de Espanha.
Graças à fortuna do pai tesoureiro, o palácio napoli-
tano ganhou a imponência que, apesar de épocas de declí-
nio, nunca perdeu, até hoje. Não sei se Antonio Giudici
saberia que Caravaggio ali tivera, na primeira década de
seiscentos, a sua última morada, antes de ser assassinado
em circunstâncias obscuras, a que não terá sido estranha
a sua vida de marginal nas tabernas e bordéis de Nápoles,
onde encontrara os modelos para os seus quadros em que
retratou costumes italianos e episódios do Evangelho,
usando também Cecco, um dos mais jovens dos seus
amantes, como figura central. Mas foi à Madalena em Êxtase, pintada a pedido de Costanza Colonna, mulher de
Francesco Sforza, e em cujos traços se terá inspirado para
compor a imagem da santa pecadora, que se ficou a dever
a sua ida para o palácio Cellamare, então propriedade de
Luigi Carafa -Colonna, sobrinho de Costanza. Uma cópia
do quadro ficou em Nápoles na posse dos descendentes
de Costanza até 1873; uma outra foi parar a um museu de
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A Conspiração Cellamare
Marselha; e o original, segundo dizem, terá sido desco-
berto na posse de uma família que não se quis identificar,
mas que generosamente o emprestou para uma retros-
pectiva de Caravaggio que, no mês em que comecei este
livro, inaugurou no Museu de Arte Ocidental de Tóquio.
O êxtase de Madalena é diferente do que também
encontramos na Santa Teresa de Ávila de Bernini; mas a
sensualidade que o pintor colocou na expressão do seu
rosto reflecte um prazer a que ele acrescenta um ricto mas-
culino. O ponto de partida é a mesma fusão erótica com o
sagrado da santa mística de Bernini; mas o que a Madalena
experimenta transforma -a numa figura andrógina a que as
mãos juntas, com os dedos cruzados, dão um toque pro-
fano e quase herético na sua total entrega ao divino. Sabe -se
que Caravaggio levou com ele o quadro, nas suas andan-
ças de fugitivo. Tê -lo -á devolvido a quem o encomendou
no seu regresso a Nápoles? A aventura não acabou bem e
só a recente descoberta dos seus restos na Toscana veio
esclarecer o enigma: foi a ferida que os inimigos lhe provo-
caram em Nápoles, quando residia no palácio Cellamare,
que gangrenou e, finalmente, o vitimou, já em fuga e ainda
pensando que poderia sobreviver aos perseguidores.
A associação do palácio à figura de Caravaggio não
seria um motivo suficiente para a sua compra e reabilita-
ção pelo pai de Antonio Giudici; mas a permanência do
quadro em Nápoles, e a relação da imagem da Madalena
caravaggesca com Costanza Colonna, teria ficado na
memória do futuro Embaixador, que viria a dar à sua filha
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Nuno Júdice
o nome de Costanza, o que terá sido mais do que mera
coincidência. Será exagero considerar que a compra e
reabilitação desse palácio se destinaram a prestar home-
nagem a um pintor de tão má fama nessas paragens, mas
o certo é que o pai confiou demasiado na sorte porque,
apesar de lhe ter restituído o esplendor e de ter acres-
centado arcos, pórticos, uma bela escadaria e sumptuo-
sos jardins, o filho não terá gozado da herança devido ao
seu afastamento da cidade a que não mais voltou, depois
da sua libertação de Gaeta. Se fosse hoje, não faltariam
jornalistas a persegui -lo para saber qual a origem dos
fundos que foram utilizados para recuperar tão opulenta
habitação; e acrescentariam que, se o filho não ficou em
Nápoles, isso não se ficou a dever ao desejo de servir
Espanha mas às suspeitas de corrupção que não deixa-
riam de recair sobre ele, na impossibilidade de constituir
arguido o pai que entretanto falecera, ou sobre algum
dos outros quinze filhos, todos eles suspeitos por serem
parte interessada na herança. Deixemos tais especu-
lações para outros que não sintam o apelo do sangue a
absolver a História, e limitemo -nos a verificar que terá
sido o seu abandono da cidade que fez com que o palá-
cio tivesse passado para outras mãos, o que levou a que,
durante uns dois séculos, já transformado em albergue,
tivesse mudado o nome de Cellamare para o dos novos
proprietários, a família Francavilla. E não foi já como
morada senhorial mas como hotel que acolheu em 1770
Giacomo Casanova, durante um curto período em que
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A Conspiração Cellamare
dívidas de jogo o empurraram para fora de Roma. Não se
pense, no entanto, que a situação de fugitivo interrom-
peu a sua actividade de sedutor. Homem do mundo, a sua
fama atraiu a Nápoles alguns nomes da grande sociedade,
entre os quais importa referir o abade Gama da Silveira,
lisboeta que viera para Itália secretariar bispos, arcebis-
pos e a própria embaixada portuguesa, e que partilhava
com Giacomo confidências e aventuras.
Em Nápoles, os seus caminhos cruzaram -se com pro-
veito mútuo, porque o abade vinha acompanhado por
Ágata, com quem Casanova tivera um dos seus mil e um
casos, tão passageiro como os outros, no tempo em que
ela exercia a sua actividade de dançarina. Passado esse
episódio amoroso, Ágata casou com um ilustre advogado
a quem deu quatro filhos e que acompanhava também a
mulher e o abade. Logo este, informado por Casanova da
aflição em que vivia, perseguido por credores, pediu ao
marido de Ágata que usasse a sua astúcia jurídica para o
libertar de perseguições criminais; o que ele fez com tanta
dedicação profissional que lhe restituiu a possibilidade
de voltar ao convívio público sem o risco de ter à porta
os oficiais de justiça para o prenderem. E foi numa festa
em que, além do abade Gama, estavam Ágata e o marido,
que apresentaram a Casanova um jovem apaixonado de
Ágata e a bela Calimena de catorze anos. Logo combi-
naram uma excursão a Sorrento, para onde o marido de
Ágata convidou o jovem amante da mulher, Ágata levou
a antiga amante do marido, e Casanova teve a companhia
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Nuno Júdice
de Calimena que, apesar da sua juventude, foi por ele ini-
ciada nas artes do amor em que era mestre. Satisfeitos os
seis excursionistas na linha daquilo que tão amável com-
panhia sugere, regressaram a Nápoles ao fim de quatro
dias bem repletos. Só não sabemos qual terá sido o papel
do abade lusitano, a não ser que a sua função fosse a de os
confessar e absolver, uma vez terminada a alegre aventura.
Não foi Casanova, porém, o único libertino de repu-
tação sulfurosa a ter procurado refúgio no palácio
Cellamare. Também o meu patrono de dormitório, o
marquês de Sade, igualmente em fuga, ali encontrou
abrigo. Ao que parece o seu nome não consta dos hós-
pedes do palácio, mas o facto de ter atrás de si a polícia
francesa pode levar a admitir que não terá usado a sua
verdadeira identidade, o que o iria denunciar, podendo
ter escolhido um nome falso que, sendo hoje indetec-
tável para qualquer investigador, por muito experiente
que seja, torna impossível o comprovativo de que tenha
dormido no mesmo quarto de Casanova. Porém, lendo
o que ele escreveu sobre a sua estadia, a impressão com
que se fica é a de um homem de sólida moral e espírito
puritano que, com a mesma minúcia com que observara
os lupanares de Marselha em busca de vítimas para os
seus excessos, percorria agora demoradamente as igrejas
da cidade para as descrever com o olhar atento do apre-
ciador de arte que, a cada passo, era desiludido por um
excesso barroco que o aborrecia; e talvez esse convívio
com o sagrado o tenha levado a censurar a imoralidade
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que reinava nas ruas onde mães vendiam as filhas de tenra
idade para actos que, embora já lhe fossem familiares,
e que iria descrever nos seus livros com o pormenor de
quem os conhecia pela prática, ele próprio condenou,
tais seriam os vícios a que as mães as forçavam. E era esse
conhecimento das sensações que o ser experimenta entre
os limites do horror e do sublime que lhe teria dado auto-
ridade para emitir opinião sobre o quadro que Caravaggio
pintou precisamente nessa cidade, quando ali habitara
o palácio Cellamare. Não é de crer, no entanto, que o
tivesse visto nem se sabe se, na altura em que Sade visitou
Nápoles, ele ainda estaria no palácio dos descendentes de
Costanza; mas, conhecendo nós o gosto dele pelo porme-
nor – como pude confirmar quando vi o manuscrito dos
120 Dias de Sodoma, que é uma demonstração da imensa
paciência do autor, enrolando num enorme cilindro de
papel as folhas em que, nos intervalos em que não comia
chocolates, bolos e outras guloseimas que funcionavam
como estimulantes da sua fértil inspiração e da sua gor-
dura, ia registando cada perversão que lhe passava pela
cabeça para fazer passar o tempo durante a sua prisão
na Bastilha, em 1785 – é indiscutível que teria deixado
nota, nos seus apontamentos de turista, dessa imagem
do êxtase místico que não deixaria de o impressionar,
embora não fossem apenas estéticas as suas preocupa-
ções pela razão simples de que esse passeio por Itália fora
uma fuga ao escândalo que o ameaçava de prisão depois
de terem sido denunciadas as orgias e maus tratos prati-
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Nuno Júdice
cados com as aias da mulher, todas de menor idade e uma
das quais emprenhara.
Fugitivo com nome de empréstimo, era seguido por
um informador da polícia francesa que nunca lhe per-
deu o rasto; e imagino que, nos longos tempos de tédio
que teve de sofrer enquanto observava os movimentos
da sua vítima, se dedicaria à leitura. Para quem considere
improvável que um agente da ordem pública se dedi-
que a este tipo de actividade, posso referir que mudei
a minha opinião acerca da cultura policial quando, por
ocasião de uma das minhas idas a Paris, logo a seguir a
Maio de 1968, vi, numa carrinha da polícia de choque que
vigiava a zona da Sorbonne, um CRS a ler O Espírito das Leis de Montesquieu. Como é óbvio, não será um inte-
resse comum a todos os agentes, e admito que aquele
tenha sido a excepção que justifica a regra; mas a partir
desse dia fiquei com uma ideia acerca do filósofo francês
que me obrigou a procurar saber as razões que levavam
a que o seu pensamento pudesse servir de inspiração ou
de argumento intelectual para uma utilização, ponderada
ou não, do cassetete daquele polícia nas cabeças de estu-
dantes mentalizados para o confronto de rua. Li o livro de
uma ponta à outra e não encontrei qualquer justificação
para o fascínio que um polícia poderia encontrar nessa
doutrina, a não ser que ele estivesse, no intervalo das suas
obrigações profissionais, a escrever uma tese de douto-
ramento sobre os antecedentes da Revolução Francesa.
E estaria justificada a sua filiação no corpo policial a partir
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