Departamento de Teologia
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A COMPREENSO DA COMUNIDADE JOANINA
EM RAYMOND E. BROWN
Aluno: Douglas Nascimento
Orientador: Isidoro Mazzarolo
Resumo
A histria da comunidade joanina depois do evangelho continua, nas epstolas.
1Jo no nomeia autor, nem indica o nome de seu destinrio, apesar que desde cedo, fora
considerada como obra do Apstolo e Evangelista Joo e, para alguns, o prlogo ao
Evangelho1. As epstolas 2Jo e 3Jo so cartas escritas por um homem que se designa
como (presbytero: 2Jo 1,1). E possuem um trao comum no que diz
respeito ao seu contedo e ao estilo, o que nos permite assegurar duas coisas: a
primeira, seriam provenientes do mesmo autor ou da mesma escola teolgica2; e a
segunda, a crise que a comunidade enfrenta algo que preocupa muito o autor, que
sente que a ltima hora (1Jo 2,18). Com isso, as epstolas tm como finalidade
fortalecer, instruir e construir os cristos joaninos. Mesmo que elas evidenciam o mal, o
seu tom positivo e construtivo3.
A voz de uma dessas das alas dessa disputa se perpetuou como cannica e
conhecida por ns atravs da forma final que obteve o Quarto Evangelho (=QE)4 e
tambm das trs epstolas atribudas a Joo. A proposta da pesquisa atual, nesta
pesquisa investigar as duas ltimas fases da comunidade joanina, reconstruindo-a
partir das epstolas joaninas e o QE. Tendo em vista que, os seus tpicos antropolgicos
e sociolgicos, representam elementos fundamentais da teologia crist e da pregao da
poca.
Introduo
Apresentamos at a agora a concepo do biblista norte-americano Raymond
Brown, em seu livro A comunidade do discpulo amado (2006), descrevemos a sua
teoria a respeito da histria da comunidade que estava ligada ao Quarto Evangelho (QE)
e as trs epstolas de Joo. Tendo, como base a sua reflexo, delimitamos a histria da
comunidade, nas seguintes etapas:
Primeira fase, corresponde ao perodo pr-evanglico da histria joanina
consciente, que acontece entre 50-80 d.C., na Palestina (ou em algum prximo), o grupo
compunha judeus de diferentes grupos, sendo eles: um discpulo que conhecera Jesus
durante seu ministrio (discpulo amado), samaritanos, seguidores de Joo Batista,
opositores ao templo, proslitos e gentios.
1 MAZARROLO, Isidoro. As trs cartas de So Joo: exegese e comentrio. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2010, p.17. 2 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado. So Paulo: Paulus, 2011, p. 100. 3 Ibdem, p.227. 4 Ao longo do trabalho usaremos esta sigla QE para referimo-nos ao texto evanglico joanino.
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Segunda fase, seria marcada pela rejeio do judasmo farisaico (Jmnia,
aproximadamente 85 d.C) dirigida aos membros dessa comunidade, que j havia sido
expulsos das sinagogas, mas que agora estavam sendo perseguidos (9,22;16,2-3). A
insistncia numa alta cristologia torna as lutas com os judeus mais intensas, fazendo
com que esta comunidade dirigisse aos judeus da dispora e aos gentios, situando-se
definitivamente em territrio gentio (sia menor, provavelmente feso), neste perodo
se d a principal redao do evangelho, aproximadamente no ano 90 d.C.
Terceira fase, estabelece dentro da comunidade, uma luta entre dois grupos dos
discpulos de Joo e que estava causando uma espcie de diviso (1Jo 2,19). Estes dois
grupos esto interpretando o evangelho de maneiras opostas, no que se refere
cristologia, tica, escatologia e pneumatologia. Os temores e o pessimismo
presentes nas epstolas, faz nos entender, que os separatistas esto tendo maior sucesso
numrico (1Jo 4,5) e o autor quer despertar os seus adeptos para se prevenir contra estes
e seus ensinamentos (2,27; 2Jo 1,10-11).
verdade que, no sabemos as argumentaes deste grupo separatista por meio
de textos provindos de seu prprio movimento. Mas, atrs das oposies expressas nas
epstolas joaninas, possvel identificar, pois todo pensamento tem seu avesso, ou o
pensamento um espelho duplo e ambas as faces podem e devem ser ntidas e
desempanadas5. neste tempo, que as epstolas sero escritas, aproximadamente no
ano 100 d.C.
Quarta fase, os dois grupos tiveram destinos diferentes, se dissolvendo em
movimentos maiores e mais expressivos. A parcela da comunidade representada pela
epstola entraria na Grande Igreja, ou no que Incio de Antioquia chama a Igreja
catlica, o que demonstra a aceitao crescente da cristologia joanina da pr-existncia
do (Verbo: Jo 1,1). No entanto, esta incorporao deve ter custado o preo da
aceitao joanina da estrutura autoritria do ensino da Igreja6, porque o prprio
princpio do como mestre (Parclito: Jo 14,26) no ofereceu a comunidade defesa suficiente contra os separatistas. O grupo dos separatistas teriam incorporado
para o docentismo, o gnosticismo, o cerintianismo e o montanismo. Isto,
aproximadamente no sc.II, depois que as epstolas foram escritas.
TERCEIRA FASE QUANDO FORAM ESCRITAS AS EPSTOLAS: LUTAS
INTERNAS
Gnero Literrio das Cartas
Das 5.437 palavras diferentes no grego do NT, as trs epstolas de Jo s utilizam
303 vocabulrios distintos7, com estilo direto, simples e com uma sintaxe muito
elementar. A 1Jo no um escrito volumoso, um pouco mais que um stimo do QE,
pouco menos de um quarto do Apocalipse. Todavia, oferece aos seus leitores alguns
temais fundamentais de reflexo, que procuraremos detectar e elucidar. Teologicamente
a 1Jo a mais importante, pois ela representa um dos pontos mais altos da teologia
neotestamentria, razo pela qual esta no deve ser esquecida na teologia e nem na vida
crist8 ela dedicaremos um interesse especial.
5 BAKHTIN, Mikhail/VOLOSHINOV, Valetin. Freudismo. So Paulo: Perspectiva, 2009. 6 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado. So Paulo: Paulus, 2011, p. 22. 7 MARSHALL, I. H. The Epistles of John. The New International Commentary on the New Testament.
Grand Rapids: Eerdmans, 1978. p. 02. 8 SCHREINER, Josef. Forma e Exigncias do Novo Testamento. So Paulo: Paulinas, 1977. pp.415-416.
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1Jo considerada uma epstola, porm o seu escrito no tem a forma de uma carta
antiga. Visto que no possui alguns elementos fundamentais, como: Nome do
remetente, destinatrio, local dos destinatrios, saudao e bnos. Fugindo da
caracterstica do estilo grego-romano, em que o autor e destinatrio so, normalmente,
conhecidos. O que faz alguns autores acreditar que tais caractersticas seriam do Oriente
Mdio (mundo semtico) 9. O vocabulrio de 1Jo muito repetitivo, e as 2Jo e 3Jo so
os menores textos do Novo Testamento, todavia apesar de pequenas, elas possuem a sua
importncia devido ao seu contexto prprio. Nessas duas epstolas o seu remetente,
apresenta-se como o Presbtero (2Jo 1, 3Jo 1).
H muitas semelhanas no estilo e no vocabulrio da 1Jo e o QE que sem dvida
procedem da mesma tradio. 1Jo adquire melhor sentido se analisado como um escrito
posterior ao perodo da apario do QE. 1Jo parece ser um escrito que se assemelha a
um comentrio ao QE, uma espcie de carta pastoral a vrias igrejas em forma de
instruo, de homilia10
. Isto fica evidente, na forma relacional que o escritor interpela os
seus leitores, com expresses afetuosas e familiares, sendo elas: filhinhos (2,14);
amados (2,7;3,2.21); filhos queridos (2,1.12.28; 3,7.18; 4,4; 5,21); irmos (3,13); pais e
jovens (2,13-14). 2Jo apesar da sua brevidade, segue o mesmo estilo e vocabulrio que
1Jo. S na 3Jo, que ocorre uma distino com relao ao vocabulrio e temtica, que
estaria mais prximo ao estilo paulino do que joanino11
.
Tais caractersticas so prprias do estilo joanino o que nos permite afirmar que a
1Jo um escrito que fora elaborado no mesmo ambiente do QE12
.As frases so
entrelaadas com a conjuno kai ou so simplesmente justapostas. Existem poucos
verbos compostos13
. A linguagem e o estilo destes escritos se aproximam muito do QE,
pois dos 298 lexemas das epstolas, 193 so comunis aos dois escritos14
. Muitos dos
termos cristolgicos caractersticos do QE se encontram tambm na 1Jo, vejamos
alguns: (aplicado a Jesus: Jo 1,1), (verdade, dito pelo Esprito: 1Jo 5,6),
(aplicado a Jesus: 1Jo 4,9), (salvador, predicado de Jesus: 1Jo 4,14),
(1Jo 4,2).
Aparecem vocbulos muito especficos do QE: conhecer (ginoskein), testemunho
(martyria), dar testemunho (martyrein) pai (dito de Deus: pater), mundo (kosmos),
guardar (terein), permanecer (menein), manifestar-se (phanerothenai). Se bem que
existam tambm ausncias de expresses importantes e vocabulrios caractersticos do
QE, como: lei (nomos), glria (doxa), glorificar (doxazein), subir e descer (anabainein e
katabainein), elevar (hypsoun), julgar (krinein), etc.
Embora haja semelhanas estilsticas e teolgicas profundas entre o evangelho e
as epstolas, h tambm diferenas insignificantes que levantam dvidas se o autor das
epstolas era o evangelista, ou seja, o escritor principal15
. possvel que o autor das
epstolas nem foi o evangelista, nem o redator, mas um dos colaboradores menores do
evangelho, ou algum que no tenha em absoluto participado da redao do evangelho.
9 MAZARROLO, Isidoro. A Bblia em suas mos. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2012, p.228. 10 GASS, Ildo Bohn. As comunidades crists a partir da segunda gerao. So Paulo: Paulus, 2010,
p.134. 11 MAZARROLO, Isidoro. As trs cartas de So Joo: exegese e comentrio. Rio de Janeiro: Mazzarolo
editor, 2010, p.15. 12 TUI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas catlicas. So Paulo: Ave
Maria,1999. P.157-158. 13 TUI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas catlicas. So Paulo: Ave Maria,1999. P.157. 14 MAZARROLO, Isidoro. As trs cartas de So Joo: exegese e comentrio. Rio de Janeiro: Mazzarolo
editor, 2010, p.19. 15
BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 99.
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Apesar, de no obtermos uma deciso determinante, haja vista que esta questo ainda
est aberta, podemos supor que o autor de 1Jo pertence ao crculo mais estreito em torno
do evangelista ou que ele dependa diretamente desse crculo16
.
E o fato de os mesmos pontos doutrinais e morais estarem sendo combatidos em
1Jo e em 2Jo e tanto 2Jo quanto 3Jo estarem se ocupando da aceitao de instrutores
itinerantes interligam as epstolas e torna provvel que todas as trs tenham provindo da
mesma fase da histria joanina. Brown vai desenvolver uma tese de uma escola joanina
de escritores que tinham em comum uma posio teolgica e um estilo17
.
Local da Comunidade Joanina
A origem da comunidade joanina situa-se na Palestina, tendo o prprio Discpulo
Amado seguido o movimento de Joo Batista (Jo 1,35-51), que consideramos fundador
da comunidade joanina, manteve-se em contato com os crculos batistas e esforou-se
por conquistar seus antigos companheiros na f crist (Jo 3,22-26). H uma adeso em
certo momento de samaritanos (4,35-38), que contriburam com a teologia joanina18
.
Em certo momento, o Discpulo Amado deixa a Palestina (Jo 7,35) para a Dispora
(provavelmente para feso).
O movimento migratrio judaico remota poca da deportao para a Babilnia,
no sculo VI a.C., e no cessou durante todos os sculos de dominao estrangeira na
Judia, e intensificou na dominao romana. O perodo de grandes migraes foi o do
assdio e da ocupao militar romana a partir do sculo 66 d.C. que concluiu com a
destruio de Jerusalm quatro anos mais tarde. As facilidades representadas pelas
estradas e navegaes proporcionadas por Roma coadjuvaram para migraes judaicas
nas mais diversas direes especialmente em busca de um futuro melhor19
. Eusbio
tambm atesta a fuga dos cristos de Jerusalm para Pella, no momento da Guerra
Judaica (66 70 d.C).
[...] Tambm o povo da igreja de Jerusalm, por seguir um orculo
enviado por revelao aos notveis do lugar, receberam a ordem de mudar de
cidade antes da guerra e habitar certa cidade da Peria chamada Pella20
.
Ficou estabelecido que muitos judeu-cristos se instalaram em feso e suas
proximidades, mais ou menos nesta poca. Numa carta do Polcrates, bispo da igreja de
feso a Vtor, bispo de Roma (cerca de 190 d.C.) podemos perceber isto:
Os bispos da sia, por outro lado, com Polcrates frente, seguiam
insistindo com fora que era necessrio guardar o costume primitivo que lhes
fora transmitido desde antigamente. Polcrates mesmo, numa carta que dirige a Victor e igreja de Roma, expe a tradio chegada at ele com estas palavras:
Ns, pois, celebramos intacto este dia, sem nada juntar nem tirar. Porque
tambm na sia repousam grandes luminrias, que ressuscitaro no dia da vinda do Senhor, quando vier dos cus com glria e em busca de todos os
santos: Felipe, um dos doze apstolos, que repousa em Hierpolis com duas
filhas suas, que chegaram virgens velhice, e outra filha que, depois de viver no Esprito Santo, descansa em feso. E tambm Joo, o que se recostou sobre o
16 KMMEL, Werner G. Sntese Teolgica do Novo Testamento. So Paulo: Teolgica, 2003. p. 316. 17 Ibdem, p. 100. 18 COTHENET, Edouard. Os escritos de So Joo e a epistola aos hebreus. So Paulo: Paulinas, 1988. p.61. 19 ARENS, Eduardo. sia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e Joo. So Paulo: Paulus, 1997.p. 158. 20 CESARIA, Eusbio de. Histria Eclesistica. So Paulo: Novo Sculo, 2002. III.V.III
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peito do Senhor e que foi sacerdote portador do ptalon, mrtir e mestre; este
repousa em feso. E em Esmirna, Policarpo, bispo e mrtir. E Traseas, tambm
ele bispo e mrtir, que procede de Eumenia e repousa em Esmirna. E que falta faz falar de Sagaris, bispo e mrtir, que descansa em Laodicia, assim como o
bem-aventurado Papirio e de Meliton, o eunuco, que em tudo viveu no Esprito
Santo e repousa em Sardes esperando a visita que vem dos cus no dia em que ressuscitar de entre os mortos? Todos estes celebraram como dia da Pscoa o da dcima quarta lua, conforme o Evangelho, e no transgrediram, mas seguiam
a regra da f. E eu mesmo, Polcrates, o menor de todos vs, (fao) conforme a
tradio de meus parentes, alguns dos quais segui de perto. Sete parentes meus foram bispos, e eu sou o oitavo, e sempre meus parentes celebraram o dia
quando o povo tirava o fermento. Portanto, irmos, eu com mais de sessenta e
cinco anos no Senhor, que conversei com irmos procedentes de todo o mundo e que recorri toda a Sagrada Escritura, no me assusto com os que tratam de
impressionar-me, pois os que so maiores do que eu disseram: Importa mais
obedecer a Deus do que aos homens." Logo acrescenta isto que diz sobre os bispos que estavam com ele quando escrevia e eram da mesma opinio: Poderia
mencionar os bispos que esto comigo, que vs pedistes que convidasse e que
eu convidei. Se escrevesse seus nomes seria demasiado grande seu nmero.
Eles, mesmo conhecendo minha pequenez, deram seu assentimento a minha carta, sabedores de que no em vo que levo meus cabelos brancos, mas que
sempre vivi em Cristo Jesus. 21
"
Podemos ento falar que uma boa porcentagem das comunidades crists das quais
emanou a maioria dos escritos do Novo Testamento encontrava-se na sia Menor22
.
Calcula-se que pelo menos dois teros dos judeus viviam no sculo I na dispora, longe
da Judia, porcentagem que cresceu consideravelmente a partir da dcada de 70 d.C.
Segundo Flon de Alexandria em sua apologia perante Roma, diz:
Os judeus so to numerosos que no podem ser contidos num s
pas, e por isso se instalaram em muitos dos pases prsperos da Europa e
da sia23
.
A excluso dos judeu-cristos repercute at no livro do Apocalipse, onde se falar
. (Ap 2.9). A comunidade joanina, dedicou-se a proclamar a f
crista num contexto helenista (Jo 3,16-17), mostrando que a f crist era a resposta
aspirao da Verdade fundamental24
. Como diz G. MacRae:
Que Joo pode ter sido unicamente universalista ao apresentar Jesus
numa grande quantidade de vestes simblicas, procurando faz-lo atraente para
21 O testemunho de Polcrates sobre as grandes luminrias que ilustram a sia - CESARIA, Eusbio de. Histria Eclesistica. So Paulo: Novo Sculo, 2002. V.XXIV. I-VIII. Demonstra o apego pelas tradies dos bispos, a celebrao da Pscoa, e o desenvolvimento das concepes milenaristas que so sinais que revelam a importncia das contribuies judeu-crists na sia Menor. 22 ARENS, Eduardo. sia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e Joo. So Paulo: Paulus, 1997.p. 157. 23 Flon de Alexandria, sendo citado em: ARENS, Eduardo. sia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e Joo. So Paulo: Paulus, 1997.p. 159. 24 COTHENET, Edouard. Os escritos de So Joo e a epistola aos hebreus. So Paulo: Paulinas, 1988. p.62.
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homens e mulheres de todas as classes e tradies e culturas, de modo a fazer
entender que Jesus transcende a todas as ideologias 25
.
Contexto das Epstolas
O prlogo da 1Jo comea com a apresentao do , como contedo da
tradio e razo do testemunho que esta comunidade recebeu.
, , ,
, .
(1Jo 1,1)
O que era desde o princpio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos
olhos, o que temos contemplado, e as nossas mos tocaram da Palavra da Vida.
(1Jo 1,1)
O autor das epstolas apresenta-se como testemunha fidedigna da tradio que
recebeu (1Jo 1,1-4). Se a Carta data do final do sculo I d.C. pouco provvel que
houvesse algum discpulo vivo. No entanto, possvel que ele tenha sido da segunda
gerao, visto e conhecido muitos resultados da ao de Jesus e dos que foram as
testemunhas oculares, como apstolos e discpulos26
. Ele quer, portanto, elucidar que o
seu contedo no fruto da reflexo ou da especulao intelectual, mas da experincia
de vida e da comunho da comunidade com o , e que s possvel atingir esse
mistrio pela f (1Jo 1,2)27
.
A carta assume caractersticas da convivncia fraterna, alicerada no amor, nos
compromissos da vida. Tais relaes afetuosas so pautadas pelo
(Novo Mandamento: Jo 13,34) que integra os discpulos a amar, que est acima de
qualquer outro conceito. Esta nova famlia pode ser a biolgica ou tambm a prpria
comunidade, onde se d a convivncia e o respeito alteridade, pois esto todos numa
nica perspectiva (At 2,42-46), utilizando-se do mesmo ensinamento que a do
(1Jo 2,20.27). Segundo Schnackenburg, afirmao da opo pelo amor
fraterno implica diretamente numa outra opo que a rejeio ao mal28
. passar da
treva do mal para a luz verdadeira que o prprio Cristo (1Jo 2,8-11). O amor na nova
famlia diferente do amor mundano (1Jo 2,16), pois a dinmica do amor no admite a
convivncia com as trevas, o pecado ou a mentira, pois ele capaz de restabelecer a Luz
entre os irmos29
, fazendo-os viver na dimenso de uma nova realidade mais construtiva
(1Jo 2,5) onde o amor e o perdo encontram lugar privilegiado. Os cristos so filhos de
Deus, que devem obedecer aos mandamentos de Deus, santificao e ao amor de Deus
e dos irmos.
O autor de 1Jo deixa alerta a grande responsabilidade com as igrejas no lugar
onde se encontravam. Pelas cartas joaninas possvel entender que a unidade havia sido
amenizada e que se tinha perdido em parte. E o foco do autor de 1Jo ciso interna da
comunidade, isto devido aos problemas pastorais que os cristos joaninos estavam
vivenciando: havia falsos mestres, muitos opositores e manipuladores da verdade. O
25 Brown citando G. MacRae em seu livro: BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discpulo Amado,
So Paulo: Paulus, 1999, p. 60. 26 Ibdem,p.48. 27 CHARPENTIERP, Etienne. Para Leer el Nuevo Testamento. Navarra: Verbo Divino, 1990. p.133. 28 SCHNACKENBURG, R. Cartas de San Juan Version, introducin y comentario. Barcelona: Herder,
1980.p. 121. 29 MAZARROLO, Isidoro. A pedagogia na famlia segundo 1Jo 2,12-14. Estudos Bblicos, Petrpolis, v.
85, p. 90-102, 2005.
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autor de 1Jo escreve com tanta urgncia no porque esperasse que esses falsos profetas
(4,1) lesse sua obra e se convertesse, mas sim porque tais lderes empregava um esforo
missionrio permanente para minar a adeso de seguidores. O autor espera que, atravs
da sua obra, ele detenha o xito que estes falsos profetas esto tendo, pois todo o mundo
est lhes escutando (4,5) 30
. Esta resistncia oferecida pelos opositores do Evangelho e
seus anunciadores, dificultava a implantao da mensagem evanglica. Desde modo, o
autor vai identificar tais pessoas, como sendo (anticristo: 1Jo 4,3). Por isso
o autor vai advertir que os cristos no permitam que tais atravessem a porta de sua
casa-igreja (2Jo 1,10).
Nos aspectos teolgicos que a epstola vai acentuando, percebemos: a clareza que
Jesus veio na carne (4,2). Com o intuito de repreender as tendncias que negavam a
encarnao de Jesus Cristo e pretendiam separar Jesus divino de Jesus crucificado,
isto tambm presente no prlogo do QE. Em 1Jo 5,6 diz que: Jesus no veio s pela
gua, mas tambm pelo sangue, sobretudo se percebemos que o tema da f em
Cristo est ligado ao amor de Deus. Em 1Jo5,4 diz que: e a vitria que vence o mundo
a nossa f, destacando a nova formulao faz verdades crists. Neste sentido a
epstola ajudou a Igreja a manter-se fiel sua essncia e ao seu esprito 31
.
Em 2Jo o presbtero tem uma grande preocupao com os pregadores itinerantes
ou visitantes ocasionais, que anunciavam falsas doutrinas aos discpulos de Jesus Cristo,
e confundiam as novas comunidades e os cristo imaturos (2Jo 1,12). As epstolas 1Jo e
2Jo so escritas a diferentes igrejas distantes do autor, que pretende visit-las (2Jo 1,12;
3Jo 1,14). Percebemos que esta carta est ligada a uma igreja (v.13)32
, mas que escreve
instrues para outra (v.1: A Senhora eleita e a seus filhos) o que nos d entender que
a comunidade joanina no se encontrava numa mesma rea geogrfica, mas em
diferentes cidades. Podemos entender que isto possvel j que os cristos primitivos se
reuniam em casas familiares que se tornavam igrejas, que no poderiam ter muitos
membros33
.
A primeira apario de Jesus, logo aps a morte, se d a portas fechadas, na casa
onde eles se encontravam por medo dos judeus (Jo 20,19). Em Pentecostes, eles
estavam tambm reunidos a portas fechadas, de uma casa, e receberam o Esprito Santo
(At 2,1-2). As comunidades no tinham instituio jurdica, ritos e formulas, mas um
espao fsico onde se celebrava a f e faz a memria dos ensinamentos recebidos. As
Igrejas, como espaos oficiais, suntuosos e pblicos, s aparecem no incio do IV
sculo, quando o cristianismo assumido como religio oficial do Imprio Romano34
.
As primeiras Igrejas crists nascem num sinnimo de muitas sinagogas, isto
porque, o cristianismo vivia sendo perseguido pelos judeus e logo depois pelo imprio
romano, assim os cristos faziam suas reunies em casas particulares, a fim de
sobreviver e no serem identificados pelos perseguidores. As Igrejas eram as pessoas,
no os ambientes fsicos. Onde estiverem dois ou mais reunidos em meu nome, ali
estou no meio deles (Mt 18,20). Nos tempos de Paulo, essas Igrejas no tinham
prdios, no tinham manuais, pouqussimos textos, ausncia total de rituais. Tinham a
pregao e a memria dos mestres para debater, discutir ou discernir, divididos,
30 BROWN, R. E. Las Iglesias que ls Apostoles nos dejaron. Bilbao: Desclee de Brouwer,1986,p. 108. 31 THUSING, Wilhelm. As Epstolas de So Joo. Petrpolis: Vozes, 1983.p. 10. 32 O termo igreja justificado pelo uso em 3Jo 6.9.10, cito aqui: BROWN, R. E. A Comunidade do
Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 97. 33 O Apstolo Paulo visitava numerosas casas-igreja na comunidade romana (Rm 16,5.14-15), e talvez em Tessalnica tambm (1Ts 5,27). 34 MAZARROLO, Isidoro. Filemon, a carta da alforria. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2011, p.61.
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provavelmente, em dois momentos: a. a orao; b. a beno e frao do apo (1Co 11,17-
34). As pregaes eram feitas nas casas, nas praas das cidades, nos lugares onde o
povo se encontrava, nos centros de transito e comrcio. Um dos locais usados como
ponto de partida eram as sinagogas (At 13,6.14;14,1). Outro eram os lugares pblicos,
onde debatiam as teses com o publico ou com estudiosos religiosos, caso fossem
convidados (At 17,19ss), ou nas praas e lugares de comrcio (At 17,17)35
.
Diferente das outras epstolas, em 3Jo, o presbtero escreve a Gaio elogiando-o
juntamente com seus filhos (comunidade) que so fiis a Verdade e pela sua
hospitalidade para com os missionrios itinerantes (vv.1,5-8). Igualmente, Demtrio
recebe louvor pelo seu testemunho e desempenho (v.12). O presbtero se dirige a Gaio,
porque na carta anterior Igreja (v.9) no foi aceita por Ditrefes que ambiciona o
primeiro lugar na Igreja. Este se recusa a receber quaisquer missionrios e est
expulsando da Igreja todos os que o fazem (v.10), ignorando assim a acolhida que deve
ser ter com os enviados (Jo 13,20), pois estes representavam aquele que os enviou.
Nestas cartas o presbtero promete fazer uma visita o mais depressa possvel, mas em
3Jo ele diz que cuidar da hostilidade de Ditrefes contra ele (v.14). As cartas joaninas,
portanto, so uma resposta a essa nova situao crtica dentro da prpria comunidade36
.
Escola Joanina
No final do sculo I em muitas reas estava se desenvolvendo uma estrutura
eclesial na qual um grupo de presbteros eram responsveis pela administrao e pelo
cuidado pastoral da Igreja, presente no Novo Testamento (At 14,23; 20,17.28-30; 1Pd
5,1; Jd 5,14; 1Ts 3,1-7; 5,17-22; Tt 1,5-11). O termo presbtero pode ser usado para
designar a gerao de instrutores depois das testemunhas, ou seja, pessoas que podiam
ensinar numa cadeia de autoridade, porque elas tinham visto e ouvido outras pessoas
que, por sua vez, tinham visto e ouvido Jesus37
.
O Parclito, Esprito Santo, o mestre por excelncia (Jo 14,26;16,13) da
comunidade. E o mestre humano, mesmo o Discpulo Amado, por sua vez, seria aquele
que agiria como uma testemunha da tradio que o Paraclito interpreta (Jo 19,35;21,24;
1Jo 2,27). A comunidade joanina aquela que percebe na atuao do Discpulo Amado
a existncia do Parclito, que estava em plena atividade atrs da interpretao da
tradio que era transmitida pelo Discpulo Amado. Depois da morte do Discpulo
Amado, a comunidade entendeu que a obra do Parclito continuava nos discpulos do
Discpulo Amado que transmitiu a tradio e ajudou a formul-la.
O segundo sentido de presbtero, modificado pela tica joanina, poderia explicar
porque o presbtero das epstolas joaninas fala como parte de um coletivo ns que d
testemunho do que fora visto e ouvido desde o princpio (1Jo 1, 1-2), e isto os leva ao
ponto principal da escola joanina38
.
provvel que no tempo do Discpulo Amado estabeleceu-se um crculo, cuja
importncia se reforou aps sua morte. Este crculo de telogos e mestres seguiu
cultivando e estudando suas tradies, deste grupo surgiram os escritos joaninos que
percebemos nas afirmaes, no plural: Sabemos que seu testemunho verdadeiro (Jo
21,24; 1Jo 1,2-3). Estabelece-se aqui, portanto, uma ligao entre o passado e o comeo
e o presente da pregao, num esforo evidente para vincular a tradio e transmitir o
que fora recebido: O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos (1Jo 1,3).
35 MAZARROLO, Isidoro. Filemon, a carta da alforria. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2011, p.61-62. 36 GASS, Ildo Bohn. As comunidades crists a partir da segunda gerao. So Paulo: Paulus, 2010. p.132. 37
BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 105. 38
Ibdem, p. 104-105.
Departamento de Teologia
9
Desenvolveu-se um cultivo e uma cultura da tradio, que est relacionada com essa
escola39
. R. A. Culpepper estende o termo escola a toda comunidade joanina, pois
para ele, todos participam da tradio que veio do Discpulo Amado e do testemunho
(Jo 15,27)40
.
Brown, no entanto, percebe que h um esforo em demonstrar um discipulado
joanino que fosse democrtico, pois muita das vezes o autor est se incluindo ao mesmo
nvel que seus leitores que so seus (irmos: designao que aparece quinze
vezes em 1Jo), contudo, em outras ocasies seu ns representa os transmissores e
intrpretes da tradio que so distintos de um vs que so os receptores da
mensagem (1Jo 1,1-5).
Inevitavelmente, alguns teriam estado mais prximos historicamente do Discpulo
Amado, porque alguns eram mais ativos em escrever e dar testemunho. para este
grupo ento, que Brown designa o termo escola joanina dentro de uma comunidade
mais ampla. Estes incluem o evangelista, o redator do evangelho, e quaisquer outros
escritores envolvidos, o autor das epstolas, e os transmissores da tradio41
.
O presbtero fala como representante desta escola joanina (1 Jo 1,1) , no porque
ele mesmo tenha sido uma testemunha ocular, mas por causa da aproximao da escola
joanina de discpulos do Discpulo Amado. Assim, podemos dizer que Jesus tinha visto
Deus, o Discpulo Amado tinha visto Jesus, e a escola joanina participa de sua tradio.
No perodo em que o evangelho foi escrito, o testemunho do Discpulo Amado era
suficiente, e a comunidade estava unida em aceitar esse testemunho. Mas, no perodo
em que as epstolas foram escritas, notamos que h grupos interpretando a tradio do
Discpulo Amado. Destaca assim, a atuao do presbtero que tenta corrigir seus
adversrios como parte de uma escola joanina de discpulos que possuem a doutrina
correta, que realmente conhecem o pensamento do Discpulo Amado, e estes, portanto
so suas testemunhas (1Jo1,1).
Cisma Joanino
A redao desta epstola foi feita pela voz joanina, para o grupo que ficou. Desde
o primeiro captulo percebemos a maneira como o autor utiliza-se do discurso do outro
grupo para corrigir as supostas distores consideradas herticas dos dissidentes e
apascentar o grupo que permaneceu na comunidade, de forma a evitar que outros se
levantassem com o mesmo discurso. Desta maneira, elas constituem este corpo de
pensamento, e nas pginas que seguem, os temas predominantes so: cristologia, tica,
escatologia, pneumatologia (dos separatistas joaninos), vistas atravs dos olhos do autor
de 1Jo42
.
Brown apresenta o ponto de vistas dos separatistas mostrando que eles possuem
uma lgica e um carter persuasivo, dadas as suas pressuposies. Nas diversas
tentativas de delinear um substrato que explique a teologia separatista, tem se colocado
uma influncia externa que levou os cristos a se desviarem do verdadeiro evangelho
joanino. comum acreditar que os separatistas tivessem ligaes com um movimento
hertico do segundo sculo, conhecido como gnosticismo. No podemos negar, que o
pensamento reconstitudo dos adversrios de 1Jo tem certas semelhanas com o
pensamento gnstico que conhecemos. K. Weiss chamou a ateno para o fato de que a
39 GNILKA, Joachim. Teologa Del Nuevo Testamento. Madrid: Editorial Trotta, 1998. p. 325. 40 R. A. Culpepper sendo citado por: BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 106. 41 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 106. 42 Ibdem, p. 108.
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maior parte das marcas caractersticas dos sistemas gnsticos falta completamente no
pensamento dos separatistas, o qual, de fato, contm caractersticas s quais se
opuseram os ltimos gnsticos43
. Um requinte da teoria gnstica que os separatistas
eram docetas que negavam a realidade da humanidade de Jesus44
. Cerinto tinha sido
proposto como seu chefe, com base em tradies do final do sculo segundo de que ele
era inimigo de Joo, filho de Zebedeu45
.
Para Brown, o pensamento separatista reconstitudo no se enquadra exatamente
nem no pensamento doceta, nem no pensamento cerintiano, paralelos mais perfeitos
encontra-se no pensamento dos adversrios de Incio de Antioquia, que podemos
perceber reconstituindo a critica que ele faz de seus adversrios. Uma vez que Incio
estava diante de situaes eclesiais somente uns dez anos depois que as epstolas foram
escritas46
.
Examinando a tese de que as ideias separatistas peculiares provieram de um grupo
que tinha sido admitido na comunidade joanina. Algumas vezes joga-se a culpa num
influxo de pagos ou gentios, frequentemente com a suposio errnea de que no havia
gentios na comunidade joanina quando o evangelho foi escrito. Outros pensam num
grupo judeu de lngua grega cujas ideias conteriam uma mistura de religio filosfica
helenista, em virtude da meno de falsos profetas (1Jo 4,1) e da exigncia por parte do
autor de testar os espritos, outros ainda pensaram numa invaso de carismticos
errantes. No h como desaprovar tais hipteses, porm elas no passam de
suposies47
.
Brown acredita que tanto o autor das epstolas quanto os separatistas conheciam o
quarto evangelho, mas a interpretavam diferentemente. Os adversrios no eram
estranhos denunciveis comunidade joanina, mas produto do prprio pensamento
joanino, justificando suas posies com o evangelho joanino e suas implicaes48
. No
est se afirmando que o evangelho joanino levou inevitavelmente sua posio nem
posio do autor, tampouco claro que ambas as posies sejam uma distoro total do
evangelho joanino. Subsequente a Igreja, aceitando 1Jo no cnon da Escritura, mostrou
que aprovou a interpretao do autor e no a dos seus adversrios.
43 Brown citando K. Weiss em seu livro: BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 110. 44 COTHENET, Edouard. Os escritos de So Joo e a epistola aos hebreus. So Paulo: Paulinas, 1988. p. 175: Antes de tudo, temos de nos lembrar do postulado que sustentava toda a filosofia grega desde Plato: a perfeio consiste nas ideias invisveis e eternas; as realidades histricas contingentes trazem, pelo contrrio, a marca da corrupo. A partir deste estado de esprito, a mensagem evanglica era inaceitvel como se apresenta. No se podia conceber um Deus perfeito que se d a conhecer sob traos de homem limitado a um pas, a uma poca e submetido, sem dvida, s transformaes e morte. Na poca helenista, podemos ver forte corrente dualista opor a matria ao esprito, de tal forma que o homem procura a salvao pelo desapego de tudo o que o conserva preso s coisas da terra; assim sendo, no convinha a Cristo Salvador subjugar-se ao corpo humano , se o fez para permitir que o vissem e o ouvissem, convinha estabelecer as distines necessrias para que seu ser profundo no fosse atingido. Jesus teria somente a aparncia da natureza fsica. 45 Conhecemos o nome deste homem e as ideias que professava, atravs de Ireneu (Adversus Haereses, livro 1, 26,1). 46 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 110. 47 Ibdem, p.111. 48 Ibdem, p.111.
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Na tradio havia textos de ambos os lados do problema. Assim, cada uma das
partes disputantes alegava que sua interpretao do evangelho era a verdadeira. No
estilo de argumentao do autor, ele no nega as afirmaes principais de seus
adversrios, mas as qualifica. Se as afirmaes principais de seus adversrios so tiradas
da tradio joanina, elas so tambm verdadeiras para o autor. E assim ele deve procurar
mostrar que seus adversrios no esto se atentando s implicaes destes princpios
(1Jo 2,4.6.9s). Algumas aluses, absolutamente explcitas aos adversrios da f,
caracterizam duas sees (2,18-26; 4,1-6); em outra passagem, podemos perceber ser
ainda retomada e condenada a pretenso deles, como por exemplo, em 1,8: Se
dissermos que no temos pecado, enganamo-nos a ns mesmos e a verdade no est em
ns, ou em 2,9: Aquele que diz estar na luz, mas odeia seu irmo est nas trevas at
agora 49
.
As advertncias sobre os inimigos fazem, alguns exegetas, acreditarem serem os
mesmos combatidos por Incio de Antioquia, na poca, se salientaram Cerinto e os
Nicolatas como opositores das teses crists. Esses inimigos viscerais do Evangelho
eram conhecidos como anticristos (1Jo 2,18.22;4.3;2Jo 1,7), pois, como Paulo fala,
eram tambm inimigos da cruz de Cristo (Fl 3,17-21), e podem ser os mesmos do
ambiente do Ap 2,2-4, onde eram denunciados os que se diziam apstolos mas no o
eram, eles no passavam de mentirosos visto que se infiltravam nas comunidades crists
ensinando coisas diferentes, exigindo a observncia de costumes judaicos concernentes
aos alimentos e ritos (um exemplo disso aconteceu na Antioquia, relatado em Gl 2, 1-
14), de modo anlogo, os Nicolatas, representantes da insubmisso e oposio
autoridade e de rituais de sacrificios no cristos (Ap 2,20). Outra corrente de perigos
vinha pela gnose, com aqueles que se dizem dos nossos, mas no o so (2,19),
rompendo com a fidelidade da comunidade. Nunca pertenceram comunidade, mas de
fato quem so eles? O que eles ensinam na est dito no texto, mas se percebe que no
reconhecem e no confessam Jesus como o Cristo, e, por isso, o autor os denomina de
anticristos (1Jo 2,18;4,3). Eles tambm so caracterizados como mentirosos e
enganadores (1Jo 2,21.22.26-27;3,7).50
Entre os esses inimigos estavam certamente os
docetistas, os gnsticos e os poderosos do imprio que espalhavam teorias dualistas,
ficcionistas e fantasiosas a respeito da paixo e da ressurreio de Jesus51
. Eusbio,
citando Ireneu, afirma que a Besta ou anticristo j era conhecido de todos na poca:
"Ns pois, no nos arrisquemos a manifestarmo-nos de maneira segura
sobre o nome do anticristo, porque, se houvesse sido necessrio na presente
ocasio proclamar abertamente seu nome, ter-se-ia feito por meio daquele que
tambm tinha visto o Apocalipse, j que no faz muito tempo que foi visto, mas quase em nossa gerao, ao final do imprio de Domiciano.
52"
49 COTHENET, Edouard. Os escritos de So Joo e a epistola aos hebreus. So Paulo: Paulinas, 1988. p.170. 50 TILBORG S. van. Primeira Carta de Joo, in: TEVSEN, G. et alii. Cartas de Pedro, Joo e Judas. So Paulo, Loyola, 1999.p. 187. 51 MAZARROLO, Isidoro. As trs cartas de So Joo: exegese e comentrio. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2010, p.23. 52 CESARIA, Eusbio de. Histria Eclesistica. So Paulo: Novo Sculo, 2002. V.VIII. VI
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A crise na comunidade de Joo comea quando os falsos mestres se levantam e
ensinam novas teorias, diferentes das postuladas pela tradio joanina (1Jo 1,4;2,7ss)53
.
Esses falsos mestres no so dos nossos (1Jo 2,19). Podemos perceber, que o autor est
em desvantagem em sua argumentao, e suas refutaes so curiosamente indiretas. Os
seus adversrios poderiam dar a impresso que de conhecer o evangelho joanino, mas,
em sua opinio, eles esto distorcendo precisamente porque ignoram a tradio que
constitui o seu substrato54
. O autor preocupado com a situao considera de extrema
importncia escrever a comunidade, a fim de que fiquem firmes no ensinamento dos
apstolos e naquilo que ele mesmo havia ensinado55
.
I- AS REAS DE DEBATE
Segundo Brown56
, as reas de cristologia, de tica, de escatologia, e
pneumatologia, foram os principais pontos de conflito entre o autor e seus adversrios.
Descreveremos ento a posio dos separatistas para ver se ela pode ter sado do
evangelho joanino, e tambm a interpretao do autor que se ope as separatistas. O que
est em jogo no diretamente a conduta moral, mas, antes de tudo, a prpria definio
do cristianismo, a autenticidade do novo relacionamento entre Deus e os homens
institudos por Jesus Cristo57
.
A. Cristologia
Uma cristologia muito elevada foi o ponto central das lutas histricas da
comunidade joanina com os judeus e com os outros cristos, na poca em que o
evangelho foi escrito. A crena na preexistncia do Filho de Deus foi chave da
contenda joanina de que o verdadeiro crente possua a prpria vida de Deus, e o QE foi
escrito par fortalecer a f dos cristos joaninos sobre este ponto (20,31).
O autor insiste claramente que Jesus o Cristo (Messias), o Filho de Deus; e todo
aquele que negar isto mentiroso e um anticristo (2,22). O autor que cr que a Vida
eterna que estava com o Pai nos apareceu (1Jo 1,2), que o Filho de Deus se
manifestou (3,8), que Deus enviou o seu Filho unignito ao mundo (4,9), que o Pai
enviou seu Filho como Salvador do mundo (4,14), que Jesus aquele que veio
(5,5.20), e que Jesus o verdadeiro Deus (5,20). Contudo, o autor desafiar as
concluses erradas que seus adversrios tiraram desta teologia encarnacional
comumente admitida, e assim ele tem o cuidado de acompanhar as afirmaes que
implicam a preexistncia com outras afirmaes que salientam a carreira do Verbo-
feito-carne, uma nfase mais formal e explcita do que se encontra no QE58
.
No prlogo de 1Jo e o prlogo do QE, aparecem os mesmos termos (princpio,
palavra, vida), mas com uma significao diferente. Enquanto para o QE (1,1) o
princpio antes da criao , para a epstola (1,1) o que era desde o princpio
53 Uma crise semelhante a esta pode ser encontrada em Filipos (Fl 1,16-17) e na Galcia (Gl 1,6-9), onde aparecem falsos missionrios infiltrados nas comunidades e criando confuses nos ensinamentos de Paulo. 54 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 112. 55 MARSHALL, H. The Epistles of John,p.14 56 Daqui para frente iremos basear nossa pesquisa no livro: BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discpulo Amado, So Paulo: Paulus, 1999, pp. 114-171. 57 COTHENET, Edouard. Os escritos de So Joo e a epistola aos hebreus. So Paulo: Paulinas, 1988. p.171. 58 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, p. 125.
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paralelo ao o que ouvimos...o que vimos...o que contemplamos... e nossas mos
apalparam, em outras palavras, o princpio do ministrio, quando Jesus comeou o seu
primeiro relacionamento com os seus discpulos. Em outras palavras para o autor da
epistola a Palavra da vida a mensagem evanglica da carreira vivificante de Jesus
entre os homens. o autor est tentando eliminar seus adversrios insistindo numa
confisso pblica de que este envio ou esta vinda foi em carne humana (1Jo 4,2; 2
Jo1,7). Sem esta modalidade humana, o autor afirma, a vida eterna no se teria
manifestada a ns (1,1-2)59
.
B. tica
Se a cristologia foi o primeiro campo de batalha entre o autor e os separatistas,
houve tambm escaramuas sobre as implicaes da cristologia no comportamento
cristo.
1- Intimidade com Deus e impecabilidade
Em 1Jo 1,8 e 10 h uma afirmao dupla dos adversrios de ausncia de pecado,
que a primeira vista ser estranha a tradio joanina. Os separatistas estavam baseando-
se no QE para justificar a sua ausncia de pecado, numa analogia entre os cristos e
Jesus. Jesus o Filho de Deus, e os que creem nele so filhos de Deus (Jo 1,12). Os
separatistas podem ter afirmado que, tornando-se filhos de Deus, eles ficariam sem
pecado, exatamente como o Filho de Deus era sem pecado (8,46) e que o Esprito que
eles receberam dava-lhes o poder sobre o pecado (20,22)? Que aquele que crer no Filho
no ser julgado (3,18; 5,24)? Os adversrios, no seu perfecionismo, vem a ausncia de
pecado como realidade e no como uma obrigao. O autor ento na sua afirmao
associa o desafio da ausncia do pecado com o fato de ter nascido de Deus (1Jo 3,5-6;
3,9). O autor ento v a ausncia do pecado como a prpria implicao da gerao
divina e por isso uma obrigao do cristo. Entendendo, que o seu cometer pecado
significa no cometer consequentemente pecado, pois noutra parte ele reconhece que
os cristos podem pecar, refutando o perfecionismo dos seus adversrios (1Jo 2,1)60
.
2- Observncia dos mandamentos
Outra maneira de como o autor de 1Jo contesta o perfecionismo dos adversrios
relacion-lo com a observncia dos mandamentos (2,3;3,22 e 24:5,2-3). Sem mais
cerimnias ele chama de mentiroso quem disser: Eu conheo Deus sem observar os
mandamentos (2,4). A explicao mais plausvel para da atitude dos separatistas diante
dos mandamentos que eles no do nenhuma importncia salvadora ao
comportamento tico, e que esta posio tenha derivado da sua cristologia. O autor
ento apela para o exemplo geral da vida terrena de Jesus como modelo da vida dos
cristos, argumento que est em harmonia com a diferena entre a sua cristologia e a de
seus adversrios, mas se torna necessrio ento permanncia de andar exatamente
como Cristo andou (1Jo 2,6), de purificar-se para ver Deus (1Jo 3,3) e de agir assim
como ele justo (1Jo 3,7)61
.
3- Amor Fraterno
Na tradio joanina s existe um nico mandamento que inclua todos os outros
mandamentos, a exigncia de amar (Jo 13,35; 15,12). O autor da epistola tambm,
59 Ibdem, p. 128. 60 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, pp. 131-132. 61 Ibdem, pp.133-136.
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embora fale de mandamentos (no plural), traduz tudo em amor fraterno (3,22-
24;4,21;5,3). Consequentemente, o nico pecado que especifico que o autor menciona,
quando ataca os separatistas e seu descaso em observar os mandamentos, no amar os
irmos (2,9-11; 3,11-18; 4,20). A chave do problema est na definio de irmos.
Para o autor da comunidade joanina que estavam em comunho (koinnia) com ele e
que aceitavam a sua interpretao do evangelho joanino. Os separatistas tinham-se ido e
j no eram irmos, eles so demonacos, anticristos, falsos profetas e encarnam a
malignidade escatolgica ou a iniquidade (1Jo 2,18.22; 4,1-6; 3,4-5). Com efeito, a sua
prpria separao era sinal de falta de amor pelos irmos do autor (1Jo 4,20)62
.
C. Escatologia
Como o autor das epstolas fiel a tradio, no h nenhuma surpresa que ele
tambm professasse uma escatologia realizada (1Jo 1-3.7.14; 2,5.9-10; 3,1;4,15) o autor
toma as duas medidas para prevenir que esta escatologia realizada encoraje seus
adversrios. Em primeiro lugar ele vincula uma necessidade tica de exigncia de
escatologia realizada (1,7; 2,5. 10; 3,10). Em segundo lugar, ele apela para a escatologia
futura (3,3), ou seja, ele est acentuando bnos futuras porque elas dependem da
maneira como os cristos vivem (1Jo 2,28; 3,18-19), e a escatologia futura pode,
portanto ser empregada como um corretivo tico dos separatistas63
.
D. Pneumatologia
O autor de 1Jo assegura que a seus ouvintes: No tendes a necessidade de que
algum vs ensine (2,27) e adverte como muitos falsos profetas vieram ao mundo,
eles devem examinar os espritos para ver se so de Deus (4,1). Isto nos leva a
suspeitar que os adversrios devem ter-se arvorado em doutores e profetas e devem ter
afirmado que falavam sob a orientao do Esprito. O sucesso lhes teria provado que
eles eram a verdadeira comunidade joanina que realizava orao de Jesus que previu
uma cadeia de converses (Jo 17,20). Eles estariam convencidos de que convertidos
eram o dom do Pai a Jesus que est assim tornando o seu nome conhecido como um
sinal ao mundo (17,23 e 26). No lado desfavorvel das estatsticas, o autor v o sucesso
de seus adversrios sob outra luz. Como o Parclito o Esprito da Verdade, que o
mundo no pode acolher, porque no o v nem o conhece (Jo 14,17), e o Esprito que
julga que o mundo culpado (Jo 16,8-10), o sucesso dos separatistas no mundo sinal
de que eles no examinaram os espritos. O esprito deles no o Esprito da Verdade;
eles pertencem ao Prncipe deste mundo, Jesus havia ordenado os seus seguidores (Jo
15, 18-19). O sucesso um sinal de que os adversrios no pertencem a Cristo, um
sinal que se junta convico pessimista do autor de que a ultima hora est prxima
(1Jo 2,18)64
.
QUARTA FASE DEPOIS DAS EPSTOLAS: DISSOLUES JOANINA
O autor das epstolas parece ter sido proftico quando afirmou que a diviso entre
seus adeptos e os separatistas marcava a ultima hora. Os escritos joaninos e alguns
elementos do pensamento joanino so confirmados no sculo segundo, mas depois das
epstolas no h mais nenhum vestgio de uma comunidade joanina distinta e separada.
No se pode negar a possibilidade de ter sobrevivido realmente uma comunidade que
62 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, pp. 136-141. 63 Ibdem, pp.141-144. 64 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado, So Paulo: Paulus, 2011, pp. 144-150.
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procedia quer dos adeptos do autor, quer dos separatistas (ou comunidades provinientes
de ambos), mas esta comunidade no deixou nenhum vestgio na histria. Alis, muito
mais provvel que os dois grupos fossem absorvidos respectivamente pela Grande
Igreja e pelo movimento gnstico. Os adeptos do autor teriam dado a sua prpria
contribuio joanina Grande Igreja. Os separatistas teriam dado a sua contribuio ao
gnosticismo. Mas em ambos os casos a comunidade joanina adptara de tal modo a sua
prpria herana em favor do grupo mais amplo, que a identidade peculiar do
cristianismo joanino, que conhecemos pelo QE e pelas epstolas, teria deixado de
existir.
Se parte da comunidade joanina do autor se fundiu gradualmente com os cristos
apostlicos integrando-se a Grande Igreja, levou consigo a alta cristologia joanina da
preexistncia, precisamente porque, na sua luta contra os separatistas, o autor das
epstolas tinha salvaguardado aquela cristologia contra qualquer interpretao que
levasse o docetismo ou ao monofisitismo. Contudo, o prprio fato de que uma
eclesiologia centralizada no Parclito no oferecia nenhuma proteo real contra os
cismticos fez, em ltima anlise, com que seus seguidores aceitassem a estrutura de
magistrio autoritria de bispo presbtero, a qual no sculo segundo se tornou
dominante na Grande Igreja, mas era inteiramente estranha tradio joanina. Os
separatistas, privados desta influencia moderadora que os adeptos do autor poderiam ter
apresentado, se no tivesse acontecido o cisma, foram mais alm na sua cristologia
ultra-elevada em direo do verdadeiro docetismo. Tendo pensado que a carreira terrena
de Jesus no tinha uma importncia salvfica real, deixaram ento de pensar nela como
real. Rendo pensado de si mesmos que eram filhos de Deus atravs da f em Jesus
Cristo pela escolha do Pai, eles comearam ento a colocar esta escolha antes de suas
vidas terrenas e pensaram que eles prprios eram divinos por sua origem, imitao de
Jesus Cristo. Como o Filho, eles tambm vieram ao mundo, mas eles perderam o seu
caminho, enquanto ele, no, e era agora a sua misso mostrar-lhes o caminho para a
casa, o cu.
O fato de estes separatistas trazerem o evangelho joanino com eles, oferecia aos
docetas e gnsticos, de cujo pensamento agora eles participavam, uma nova base sobre
a qual construir uma teologia, na verdade, servia como catalisador para o crescimento
do pensamento gnstico cristo. A Grande Igreja tinha aceitado elementos da tradio
joanina, quando aceitou os cristos joaninos que compartilhavam dos pontos de vista do
autor, no comeo teve muita cautela com o QE porque ele tinha dado origem a erros e
estava sendo usado em apoio dos erros. Eventualmente, contudo, tendo juntado as
epstolas ao evangelho, como um guia de interpretao correta, a Grande Igreja (pela
voz de Irineu, aproximadamente no ano 18 d.C.) defendeu o evangelho como ortodoxo
contra os intrpretes gnsticos65
.
Concluso
O grande avano que podemos notar desta pesquisa que o QE foi redigido em
etapas, concomitantes com os momentos mais conflitivos da historia da comunidade
unidade em torno da tradio do discpulo amado. Estas redaes se sucederam numa
trajetria que foi desde a formao da comunidade ainda no marco institucional do
judasmo, ao longo perodo entre o ministrio de Jesus e a Guerra Judaica (compilao
de tradies bsicas autnomas), passando pela ruptura dolorosa com a instituio
sinagogal no perodo ps-guerra (primeira e mais importante redao do Evangelho),
seguindo por um perodo de tenso ainda maior, em virtude de perseguio vivenciada
65 BROWN, R. E. A Comunidade do Discpulo amado. So Paulo: Paulus, 2011. pp. 151-153.
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no contexto do imprio romano e sem a mediao amortecedora da sinagoga (segunda
edio, revista e ampliada, do Evangelho), e concluindo no confronto da comunidade
joanina com as comunidades apostlicas em vias de institucionalizao (edio, reviso
e pequena ampliao, com a juno progressiva das trs Epstolas, em vista da
harmonizao do QE com as representaes mentais das comunidades apostlicas).
A comunidade do Discpulo Amado teve conflitos com grupos inimigos ou
diferentes da comunidade, mas tambm viu conflitos dentro da prpria comunidade. Na
comunidade e na tradio do discpulo amado nasceu uma tendncia helenizante e (pr)
gnstica, que fez uma interpretao espiritualista do evangelho. As assim chamadas
cartas de Joo so escritas para corrigir esta tendncia dissidente. O autor das trs cartas
tem uma interpretao do evangelho contraposta interpretao dos dissidentes
helenizantes e espiritualistas.
A primeira carta uma espcie de comentrio do evangelho, que o interpreta a
partir da tradio do Discpulo A mado (oque era desde o princpio...), para combater
a interpretao errada dos dissidentes espiritualistas. Os dissidentes levaro consigo o
evangelho e o difundiro nos ambientes gnsticos do sculo II. O comentrio mais
antigo do evangelho do gnstico Heracleo (160-180 d.C.). At o dia de hoje existe
esta interpretao gnstica, helenizante e espiritualista do Quarto Evangelho. Por isso a
importncia desta primeira carta para resgatar o esprito autntico e original da tradio
do discpulo amado e da comunidade. O ponto fundamental de conflito, dentro da comunidade com os dissidentes, era a
cristologia. Os dissidentes acentuavam a divindade de Jesus e davam pouco valor a sua
humanidade. Fazem uma leitura unilateral do evangelho. O Jesus histrico sua vida e
suas obras, inclusive sua morte na cruz no era importante para os dissidentes. Esta
posio espiritualista e helenizante encontrava em certo sentido um fundamento no
prprio evangelho, pois este apresenta um Jesus transfigurado, revelador da glria do
Pai. Sua prpria morte apresentada como uma glorificao, como uma ida ao Pai. O
problema que, quando escrito o evangelho, a humanidade de Jesus era o bvio, o que
todos aceitavam. O que era preciso provar era sua divindade. Por isso, o evangelho
acentua a divindade. Na poca posterior, quando ocorre o problema com os dissidentes
e se escreve a carta, a acentuao da divindade de Jesus leva supervalorizao de sua
humanidade. A preocupao central do evangelho mostrar que Jesus homem era Filho
de Deus. Agora a preocupao da primeira carta demonstrar que o filho de Deus o
homem Jesus.
O segundo ponto de conflito com os dissidentes era a tica, sobretudo o amor ao
prximo. Os dissidentes espiritualistas pretendiam ter tal intimidade com Deus que
pensavam ser perfeitos e sem pecado; descuidavam o cumprimento dos mandamentos,
sobretudo o do amor mtuo. Por isso a primeira carta insiste tanto no amor fraterno
(3,14). O amor de Deus no permanece naquele que fecha seu corao ao irmo que
padece necessidade (cf. 3,17) ou naquele que tem a arrogncia do dinheiro (2,16).
Um terceiro ponto de conflito era a escatologia. Os dissidentes defendiam uma
escatologia realizada: eles j estavam na luz, possuam a vida eterna, estavam em Deus.
A primeira carta no desconhece esta realizao, mas a condiciona a guardar sua
Palavra, prtica do amor fraterno, confisso dos pecados. A carta introduz um
esprito apocalptico, chamando ateno sobre a ltima hora antes do fim, quando o
crente deve fazer um discernimento entre os crentes e os anticristos (3,18-28), entre os
que confessam Jesus vindo em carne e os falsos profetas (4,1-6). Outro ponto de
conflito era a pneumatologia. Os dissidentes seguem a mestres e profetas que dizem
possuir o Esprito. O autor da carta no se ope a eles com um eu autoritrio e sim
lembrando que todos os crentes so mestres, com o Esprito e no Esprito (2,20.27).
Departamento de Teologia
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O autor deixa transparecer a conscincia de uma grande responsabilidade com a
comunidade, as questes pastorais na poca no eram tranquilas: haviam muito falsos
mestres, muitos opositores e manipuladores da verdade. Por isso, acompanhando as trs
composies de Jo (1Jo,2Jo e 3Jo, sendo esta um pouco separada das outras duas),
percebemos a dificuldade e a resistncia oferecidas pelos opositores. Em virtude dessa
resistncia dos anticristos, o autor precisa afirmar seu crdito e sua autoridade como
testemunha ocular da tradio joanina (1Jo 1,1-3).
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